de 2000 anos, existiram pessoas que foram fascinadas por Jesus e, nunca como em nossos dias, apareceu sobre ele uma quantidade tão grande de livros, reportagens em revistas, filmes e programas na TV. Mesmo na nossa época secularizada, numa civilização pós-cristã, mas que ainda vive de uma tradição cristã, a figura de Jesus não pertence ao passado; ele continua tão atual como outrora. Apareceram, inclusive, teorias extravagantes sobre Jesus, onde ele foi apresentado de maneiras muito diversas: um sábio como Buda, um reformador como Zaratustra, um moralista como Confúcio, um profeta como Maomé, um hippie, um revolucionário, um iluminado, um sonhador, um organizador da sociedade, um anarquista e como chefe do culto da Nova Era (New Age). 2
Consideramos a seguir apenas alguns
aspectos que podem nos ajudar a conhecer um pouco mais a verdadeira identidade histórica de Jesus de Nazaré, mesmo estando persuadidos de que o Jesus da história1 e o Cristo da fé2 são uma mesma e única pessoa3. Será levado em conta aquilo que foi dito de Jesus por testemunhas que viveram no seu tempo e no início do cristianismo. A questão de fundo é: o que podemos saber dele com precisão? Portanto, não serão considerados aspetos de sua vida pública e nem as temáticas fundamentais do seu ensinamento. 1 É o Jesus terrestre como é conhecido através da pesquisa puramente histórica, sem recorrer à fé. Existem algumas conclusões históricas a respeito de Jesus: o fato que era judeu, que anunciou o Reino, que realizou milagres, que narrou parábolas e que foi crucificado em Jerusalém sob Pôncio Pilatos. 2 Expressão que quer indicar a diferença que existe entre os
resultados provenientes de um estudo puramente histórico
de Jesus e a posição da fé que aceita Jesus como Filho de Deus e Salvador do mundo. 3 A distinção entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé” não
é própria do Novo Testamento nem da Igreja primitiva. Ela
só aparece e se desenvolve no mundo moderno, quando se radicalizam as exigências de cientificidade, especialmente no campo da história. Esta distinção aparece dentro de um contexto polêmico. 3
Nos dias de hoje é fácil saber muitas
coisas a respeito de uma pessoa pública (governador, presidente, etc.), mesmo sem nunca ter falado com ela pessoalmente. Olha-se a TV, livros e jornais são lidos diariamente. Mas Jesus pertence a um outro “mundo”. Ele viveu há muito tempo, numa cultura diferente da nossa e num país geograficamente longínquo. No seu tempo não existiam jornais e nem TV. Mesmo para aqueles que sabiam ler, os livros copiados à mão eram sempre um luxo e adquiri-los implicava um custo economicamente alto. Por outra parte, muitos dos livros escritos na antiguidade não chegaram até nós: por exemplo, foram perdidos pelo menos a metade dos escritos do grande historiador romano Tácito4. Nós sabemos relativamente pouco até dos grandes líderes políticos do tempo de Jesus. Júlio César5 escreveu as memórias 4 Historiador latino (Roma, 55-120 d.C.), autor de Anais: Histórias; Sobre a origem e posição da Germânia; Diálogo sobre os oradores. 5 Estadista e general romano (Roma, 101-44 a.C.). Historiador e escritor, César deixou, principalmente: De bello gallico (sobre a guerra da Gália) e De bello civili 4
das próprias campanhas militares e
Tácito nos deixou uma descrição da vida na corte imperial. Mas Jesus não foi uma grande figura política e não escreveu nenhum livro. Do ponto de vista do ambiente literário do seu tempo, Jesus poderia inclusive nunca ter existido. Ele foi uma homem de condições modestas, era dotado de uma cultura elementar e viveu poucos anos de popularidade como pregador itinerante. Ele não pregou nem em Roma e nem em Atenas, centros de cultura do tempo, mas no meio de pessoas que pertenciam a uma faixa social comumente desprezada e na província mais oriental do império romano: a Judeia. O único momento em que ele conquistou notoriedade foi quando os seus próprios concidadãos convenceram o governador romano Pôncio Pilatos que era necessário condená-lo à morte. Por que um homem semelhante a esse deveria deixar algum sinal nas páginas da história? Como poderemos conhecer alguma coisa de Jesus? (sobre a guerra civil). 5
Em todos os tempos foram feitas
tentativas de escrever uma biografia coerente da vida de Jesus. Ninguém conseguiu. Neste sentido deve-se dar razão a J.-M. Lagrange6, quando diz ser impossível compor uma biografia histórica de Jesus Cristo, com valor científico. Esta impossibilidade deve-se à natureza das fontes, que enquanto não cristãs, são muito poucas, e enquanto cristãs, constituem um gênero de conhecimento histórico muito particular.
2 Jesus nos escritos não cristãos
2.1 Historiadores judeus
O silêncio dos contemporâneos de
Jesus é quase total. Este silêncio surpreende-nos bastante, se bem que nada revele de anormal. A existência pública de Jesus foi breve e terminou por um suplício ignominioso. O único escritor não-cristão contemporâneo de Jesus que 6 Marie-Joseph LAGRANGE (1855-1938). Dominicano, exegeta e professor de história da Igreja e filosofia em Salamanca e Tolosa. Contribuiu de modo decisivo no desenvolvimento do método histórico-crítico na exegese católica. Obra principal: O método histórico (1903). 6
nos oferece informações sobre ele é o
judeu Flávio Josefo7, historiador muito bem documentado. Mas o seu testemunho é muito limitado e dificilmente verificável. Ao longo dos vinte oito volumes que escreveu sobre a guerra judaica, escritos pelo fim do primeiro século d.C., encontram-se apenas duas passagens que se referem a Jesus. Ele escreveu para leitores romanos e não tinha nenhuma razão para se interessar por um personagem suspeito em Roma e pelo qual ele próprio, sem dúvida, não tinha grande admiração. Flávio Josefo fala de uma maneira honrosa da condenação à morte violenta, no ano 62 d.C., de Tiago “o irmão de Jesus, o assim denominado Messias”8, mas não fornece nenhuma outra informação a respeito do próprio Jesus. Numa passagem precedente ele havia escrito um breve parágrafo sobre esse Messias. O problema é que as obras de 7 Historiador judeu (Jerusalém, 37 d.C. - Roma, 100), autor de As Antiguidades judaicas e A História da Guerra dos Judeus. 8 As Antiguidades Judaicas, XX, 2000. 7
Flávio Josefo foram conservadas pelos
cristãos e é comumente admitido o fato que a passagem sobre Jesus é o resultado de um acréscimo àquilo que Flávio Josefo havia originariamente escrito. Ele fala de Jesus de um modo que somente um cristão o faria, e Josefo não era cristão. Em 1971, o prof. Pinés, da Universidade hebraica de Jerusalém, descobriu numa obra árabe do século X, uma versão diferente daquela das edições clássicas, e este seria o texto original escrito por Flávio Josefo, que diz o seguinte:
Naquela época vivia um sábio de
nome Jesus. Sua conduta era boa, e era estimado por sua virtude. Numerosos foram os que, entre os judeus e outras nações, se tornaram seus discípulos. Pilatos condenou-o à crucifixão e à morte. Mas os que se haviam tornado seus discípulos não deixaram de lhe seguir o ensinamento. Ele contaram que lhes aparecera três dias após sua crucifixão e estava vivo. Era talvez o 8
Messias de quem os profetas
narraram tantos fatos maravilhosos.
Os estudiosos discutem sobre aquilo
que Josefo realmente escreveu. Como conclusão de toda a discussão, pode-se dizer que é muito provável que Josefo tenha escrito alguma coisa sobre Jesus de Nazaré, porque do contrário as suas referências a “Jesus o assim chamado Messias”, ficariam no ar. Entretanto não podemos saber com certeza como ele tenha descrito Jesus. Além destas referências de Flávio Josefo, existem pouquíssimos testemunhos sobre Jesus por parte de escritores não cristãos contemporâneos ou quase contemporâneos e mesmo aquilo que temos, provém de gerações sucessivas.
2.2 Historiadores romanos
A mais antiga menção a respeito de
Jesus por parte de um escritor romano encontra-se em Tácito (por volta de 115 d.C.), onde descreve a perseguição do 9
Imperador Nero contra os cristãos. Para
explicar quem eram estes “cristãos”, ele diz que na Judéia, aquele que tinha dado o nome a esta seita, Cristo, foi condenado à morte, quando Tibério era imperador, por ordem do procurador Pôncio Pilatos. Isto é tudo. Tácito provavelmente repetiu aquilo que os cristãos do seu tempo diziam sobre as próprias origens. Quase no mesmo período, também Suetônio9, acenou ao fato de que em Roma, sob o poder de Nero, foram “sujeitos ao suplício os cristãos, raça de homens com uma superstição nova e maléfica”, mas não acrescentou nada sobre as suas origens. Plínio, governador da Bitínia (hoje parte da Turquia), fala dos problemas que os cristãos lhe estavam causando, mas a única menção de Jesus na sua longa carta é que eles cantavam “um hino a Cristo como se fosse um deus”. Este texto não nos oferece conteúdo suficiente para um
9Historiador latino. Escreveu Vidas dos doze Césares (de
César a Domiciano), antologia de fatos históricos pitorescos. 10
conhecimento de Jesus como figura
histórica.
3 Jesus na tradição cristã
3.1 Evangelhos apócrifos
Ao longo do tempo, muitas coisas
foram acrescentadas àquilo que se encontra nos quatro evangelhos. Às vezes ficamos surpresos em descobrir que muitas coisas, ditas e repetidas por todos, não se encontram na Bíblia. Por exemplo, os textos dos evangelhos não nos dizem que Jesus nasceu numa estrebaria; dizem somente que Jesus foi colocado numa manjedoura. Também não afirmam que os magos que o visitaram eram três, nem cita os nomes, que eram reis, e menos ainda que um era negro. As tradições sobre Jesus foram ampliadas e interpretadas no decurso dos anos, às vezes acrescentando pias fantasias e outras vezes deturpando o sentido. A partir do segundo século d.C. temos muitos escritos judaicos e cristãos que narram fatos sobre Jesus e fornecem informações a respeito do seu 11
ensinamento. Em geral esses livros são
classificados com o nome de “Evangelhos Apócrifos10”, que se constituem de escritos muito diversificados. Apresentam doutrinas estranhas e até mesmo heréticas. Nesses textos, com algumas variações, pode-se encontrar narrações que coincidem com as do Novo Testamento. Pode-se perguntar se é possível encontrar dados autênticos no meio desta fecunda proliferação de escritos. Teriam conservado alguma coisa do ministério histórico de Jesus que os evangelhos não registraram? Isto é possível. A conclusão do evangelho de S. João diz que “há muitas outras coisas que Jesus fez e que, se fossem escritas uma por uma, creio que o mundo não poderia conter os livros que se 10São denominados apócrifos (que significa escondidos), uma série de escritos que remontam ao judaísmo tardio e aos primeiros séculos do cristianismo. Diz-se, entre os católicos, dos escritos de assunto sagrado não incluídos pela Igreja no Cânon das Escrituras autênticas e divinamente inspiradas. Os protestantes chamam de apócrifos os livros, tanto do Antigo como do Novo Testamento, que os católicos preferem chamar de deuterocanônicos. 12
escreveriam” (21,25). Mesmo se os
apócrifos foram escritos um século ou mais após o tempo em que Jesus viveu, muito daquilo que ele disse e fez pode não ter sido registrado pelos evangelistas e sim ter sido recordado e incluído com fidelidade em outros livros escritos sobre ele. O problema é como provar se esses escritos são historicamente verdadeiros. Muito daquilo que está contido nesses livros é claramente legendário ou se destina a sustentar algumas novas doutrinas, sobretudo o gnosticismo11, doutrina que tem alguns pontos em comum com as idéias que hoje são sustentadas pela Nova Era. Porém, uma parte desse material foi definido como histórico, especialmente algumas citações do “Evangelho de Tiago”. Trata-se de uma coleção de sentenças de Jesus que foi descoberta no Egito em 1946, como parte de uma coleção de antigos escritos gnósticos. Algumas dessas sentenças do Evangelho 11Ecletismo filosófico-religioso surgido nos primeiros séculos da nossa era e diversificado em numerosas seitas, e que visava a conciliar todas as religiões e a explicar-lhes o sentido mais profundo por meio da gnose. 13
de Tiago são muito semelhantes com
aquelas que se encontram nos Evangelhos do Novo Testamento, enquanto que outras são claramente gnósticas (heréticas).
3.2 Os Evangelhos do Novo Testamento
Se o nosso conhecimento sobre Jesus
tivesse por fundamento somente as fontes até aqui consideradas, então poderíamos concluir que ele foi um visionário arrebatador de multidões. Este não é, porém, o fundamento do cristianismo. O fundamento está naquilo que até agora ficou fora da nossa consideração e que qualquer estudioso da história deve reconhecer como testemunho primário sobre Jesus: os quatro livros que falam dele, escritos pelos seus discípulos, e que são conhecidos como os quatro evangelhos do Novo Testamento. A maior parte daquilo que sabemos hoje a respeito de Jesus, procede destas fontes. No mundo antigo, não era coisa rara que as biografias dos grandes filósofos 14
ou chefes religiosos fossem escritas
pelos seus seguidores. As biografias estavam difundidas no mundo grego e romano. Em alguns casos, temos mais do que uma obra a respeito de um único personagem: por exemplo, existem diversas narrativas sobre a vida de Sócrates por parte de Platão e da parte de Xenofonte12. Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas estão intimamente ligados entre si. Cada um deles nos apresenta uma imagem própria da pessoa de Jesus, mesmo que muita coisa seja comum entre os três. Mesmo quando estes autores narram os mesmos fatos, existe às vezes um certo grau de independência que pode se apresentar desconcertante para aqueles leitores modernos que querem suprimir todas as diferenças. Quanto ao evangelho de João, deve-se dizer que é tão diverso dos demais, que seria quase legítimo perguntar-se se é
12Historiador, filósofo e general ateniense (430-355 a.C.),
um dos discípulos de Sócrates. Espírito mais curioso que profundo, Xenofonte escreveu um tratado sobre Sócrates (Memórias de Sócrates). 15
sobre o mesmo Jesus que ele está
escrevendo. Portanto, nós possuímos testemunhos sobre a vida e sobre os ensinamentos de Jesus. Nós temos quatro coleções de tradições sobre ele, memórias que devem ter sido recolhidas e transmitidas por muitos dos seus discípulos, antes que fossem incorporadas nos livros, na forma como chegaram até nós. Fazendo uma comparação de Jesus com a maior parte das figuras da antiguidade, nós temos uma quantidade notavelmente abundante de testemunhos antigos.
3.3 Veracidade dos Evangelhos
Qual seria a razão que nos leva a
deduzir que estas antigas narrações sobre Jesus são historicamente mais confiáveis do que aquelas que se encontram nos “Evangelhos Apócrifos”?13 Existem estudiosos que apresentam dúvidas sobre o valor 13Podem ser citados: Evangelho dos Hebreus, Evangelho de Pedro, Os Atos de Pilatos, Evangelho da Infância, Evangelho de Nicodemos, Proto-Evangelho de Tiago, etc. 16
histórico de grande parte daquilo que se
encontra nos evangelhos do Novo Testamento. Alguns, como Rudolph Bultmann, chegaram a afirmar que nós estamos numa condição de conhecer muito pouco sobre Jesus, além do fato da sua existência. Hoje em dia, a maior parte dos especialistas não chega a tanto ceticismo. Se por um lado se discute sobre muitos ditos ou fatos particulares, por outra parte existe hoje um acordo geral sobre as linhas gerais do ministério e dos ensinamentos de Jesus, da maneira como são apresentados nos evangelhos. Do ponto de vista histórico, são tidos como confiáveis. Os evangelhos apresentam a figura histórica de Jesus e não somente a devoção dos seus discípulos. Para tanto, ocorre ter presente que o período de tempo que vai da atividade de Jesus e a redação das primeiras narrações sobre ele, deve ter sido bastante breve. Lucas inicia o seu evangelho dizendo que já conhecia muitas destas narrações, quando diz: 17
“Visto que muitos já tentaram compor
uma narração dos fatos que se cumpriram entre nós - conforme no-las transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra...”(1,1-2). As narrações transmitidas oralmente, segundo a nossa experiência ocidental, não são muito confiáveis. No antigo oriente, porém, a tradição oral gozava de uma estima mais alta do que aquela escrita: as histórias, como as palavras, eram recontadas de uma maneira inalterada através das gerações, e entre os judeus isto acontecia de um modo todo particular. De qualquer modo, no tempo em que foram escritos os evangelhos do Novo Testamento, ainda vivia um grande número de pessoas que estiveram presentes durante a vida pública de Jesus. 18
Podemos nos perguntar se tem alguma
importância o fato de todos os depoimentos fundamentais sobre Jesus procederem de fontes cristãs. É certo que as narrações apresentadas não são objetivas e imparciais. Os autores dos evangelhos escreveram sobre Jesus porque estavam convencidos que se devia falar dele e queriam que outros seguissem os seus ensinamentos. Os que foram conquistados por Jesus tiveram o cuidado de transmitir a verdade sobre ele. 19
Concluindo, podemos dizer que não se
pode pretender conhecer Jesus como se conhece algum outro personagem da história. O estudo sobre Jesus deve estar precedido da fé, pois as únicas fontes que nos permitem conhecê-lo são documentos cristãos, isto é, textos escritos por pessoas que viam nele não só um homem, mas Deus e que, consequentemente, prestaram maior atenção aos fatos sobrenaturais. Portanto, o melhor caminho para saber quem foi Jesus é empenhar-nos para que a nossa vida seja uma nova edição da história que Ele viveu na Palestina, há quase dois mil anos.
4 Jesus de Nazaré: quando tudo começou
O primeiro anúncio sobre Jesus
começa narrando a sua história. Por isso no ponto anterior vimos a presença de Jesus Cristo na história e o que podemos saber sobre ele a partir das fontes que nos fornecem as informações. Vimos que as fontes de informação são limitadas. Consistem em algum dado proveniente 20
de escritos extra-bíblicos da antiguidade,
um certo número de detalhes presentes nos evangelhos apócrifos, indicações dispersas que aparecem nos escritos neotestamentários fora dos Evangelhos legítimos e aquelas que podemos considerar autênticas tradições históricas contidas nos próprios Evangelhos. Por isso João Paulo II afirma:
Mas aquele grande acontecimento,
que os historiadores não-cristãos se limitam a mencionar, adquire a sua luz plena nos escritos do Novo Testamento, os quais, apesar de documentos de fé, nem por isso deixam de ser, no conjunto das suas referências, menos atendíveis como testemunhos históricos14.
Disto tudo concluímos que Jesus
Cristo não é um mito, nem uma personagem legendária e nem uma invenção dos primeiros cristãos. Jesus, que viveu no início do primeiro século da
14 JOÃO PAULO II. Tertio Millennio Adveniente, n. 5.
21
era cristã, foi uma pessoa histórica no
pleno sentido da palavra. A seguir vamos ver os inícios da vida de Jesus e o que significou para ele viver na condição humana.
4.1 Os inícios
É muito complicado fazer uma
comparação da história bíblica com a história conhecida do tempo de Jesus. Jesus nasceu durante o reinado de Herodes o Grande (37-4 a.C.) e isto aconteceu antes que Quirino se tornasse governador da Síria (6-9 d.C.), sob cujo governo foi realizado o recenseamento (Cf. Lc 2,1). É bem provável que tenha havido um longo processo de recenseamento, que começou sob o reinado de Herodes e terminou no tempo da nomeação de Quirino como governador. Jesus, portanto, deve ter nascido antes do ano 4 a.C., ano da morte de Herodes. Mateus diz que Herodes mandou matar todos os meninos de dois anos para baixo (Cf. Mt 2,16). Segundo 22
esta referência, o nascimento de Jesus se
deu no ano 6 a.C.
4.2 Infância de Jesus
Os evangelistas Mateus e Lucas
iniciam o seu Evangelho situando-a cada qual num lugar diverso. Marcos não faz nenhuma referência ao nascimento e infância de Jesus; ele entra quase que imediatamente no ministério público de Jesus. O evangelista S. João vai a um outro extremo: situa o seu cenário além da dimensão histórica. Numa frase breve e incisiva ele diz que “a Palavra se fez carne” (1,14). Esta afirmação suscita a pergunta: como e em que circunstâncias isto aconteceu? Mateus e Lucas nos dão a resposta. Embora narrando o nascimento de Jesus de modo diferente, as duas narrativas se complementam. Naquele tempo existiam pessoas devotas entre os judeus que esperavam impacientemente a vinda do Messias (que significa ungido). As suas expectativas tinham raízes nas profecias do A. Testa- mento e tinham como centro espiritual a 23
cidade de Belém. Ninguém, porém,
poderia imaginar que Jesus nascesse nas condições em que de fato nasceu. O fato de José e Maria não terem encontrado hospedagem não deve nos surpreender. Afinal, estava em curso um recenseamento, e todos deviam deslocar- se para a sua cidade de origem e por isso todas as hospedarias foram logo ocupadas. Se a manjedoura, que José en- controu, estivesse junto a um humilde lugar para peregrinos, ou fizesse parte de uma gruta transformada em habitação, como algumas tradições sugerem, isto é impossível demonstrar. Tradicionalmente se admite que fosse uma estrebaria, mas de fato nenhuma estrebaria é mencionada nos evangelhos. É somente uma dedução da palavra “manjedoura”, porque na antiga Palestina, geralmente os animais eram mantidos em estrebarias, junto com a habitação das pessoas. O que os evangelistas dizem com clareza é que o menino Jesus nasceu em condições de extrema pobreza (Cf. Lc 2,7).
4.3 Quatro modos diferentes
24
No registro que Lucas faz do anúncio
do anjo Gabriel a Maria, tanto a concepção, como a criança que devia nascer, foram fruto de um desígnio sobrenatural. No nascimento de Jesus não aconteceu nada de extraordinário. Sua mãe passou pela dor do parto e experimentou a alegria da qual todas as mães do mundo têm experiência. Isto foi tudo normal e natural. Mas o modo da concepção de Jesus, segundo a Bíblia, foi diverso: foi fora do comum, porque foi sobrenatural. Isto é o que os cristãos entendem quando falam do “nascimento virginal”. A importância desta afirmação consiste naquilo que ela nos diz de Jesus, mais do que aquilo que nos diz de sua mãe. O centro é Jesus. Maria deve ser honrada e amada. Jesus deve ser adorado e glorificado. É certo que a “encarnação”, pela qual o Filho de Deus se tornou o homem Jesus, representa um problema para a razão humana. De que modo uma pessoa pode ser ao mesmo tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem? A 25
nossa compreensão deste problema é
iluminada quando levamos em conta a maneira como Jesus nasceu. Ele nasceu de um modo natural: isto destaca a sua humanidade; verdadeiro homem. Mas ele foi concebido de maneira sobrenatural; verdadeiro Deus: isto é possível admitir se nós cremos também na sua divindade.
4.4 Importância e sentido da encarnação
Pela encarnação, Jesus assume a
matéria frágil da qual todos nós somos feitos. Assume e associa a si uma natureza humana concreta e completa: “Invisível em sua divindade, tornou-se visível em nossa carne” (Pref. do Natal). Aceita ser homem, sem deixar de ser Filho de Deus. Isto teve consequências muito concretas na sua vida. A encarnação impôs a Jesus um leque de limitações, mas também lhe deu muitas chances.
4.5 Vejamos algumas limitações
26
Jesus nasceu e cresceu no seio de
uma pequena família do interior, em Nazaré, vila obscura e sem notoriedade. Passou a maior parte de sua vida no anonimato, sem que ninguém suspeitasse do seu mistério e de sua missão. Dedicou-se, junto como o seu pai adotivo s. José, a um trabalho humilde e rude que apenas lhe rendia o sustento familiar. O documento do Concílio Vaticano II Gaudium et Spes (alegria e esperança), diz que Jesus “trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano” (n. 22). Ele teve uma vida terrena muito curta. O que pode fazer uma pessoa que pretende reformar o mundo e que morre ao redor dos 30 anos? E mais: não ultrapassou de três anos o tempo que se dedicou à sua missão. Ele veio para ser o centro e o salvador da história humana que contava já com dezenas e até centenas de milhares de anos e que se estenderia para um futuro de milhares ou talvez milhões de anos. Em relação à sua missão universal, atingiu uma 27
limitadíssima área geográfica e um
número muito reduzido de pessoas. Assumiu a língua e a cultura dos judeus, sem importância em relação ao mundo habitado daquela época. Ele teve que aprender a falar como qualquer criança judia do seu tempo. Uma curiosidade a respeito do Jesus histórico é saber qual a língua que ele fa- lava. No tempo de Jesus, saber falar uma única língua não era suficiente, nem mesmo para os romanos, que eram os dominadores do império. A língua grega era falada em diversos dialetos, sendo o mais comum conhecido como “koiné”. Como era natural, cada região ou província do império romano tinha a sua própria língua. Na Palestina havia duas: o hebraico, a antiga e tradicional língua bíblica usada na sinagoga, e o aramaico, a língua quotidiana, quase tão antiga como o hebraico. Toda a criança judia que frequentava a escola, aprendia o hebraico e o aramaico. É bem provável que Jesus tenha usado o aramaico como língua normal e quotidiana e também conhecesse o grego. Para isso podemos 28
usar o testemunho do N. Testamento.
Existem pelo menos duas ocasiões que aludem a uma possível conversa em grego. Certa ocasião, segundo nos diz Marcos (7,26), Jesus encontrou uma mulher grega, siro-fenícia de nascimento. Provavelmente ela não sabia falar o aramaico ou o hebraico. Jesus também falou com Pôncio Pilatos, que falava grego e latim. Por isso devemos novamente concluir que Jesus conhecia também o grego. A língua grega fazia parte da experiência quotidiana de Jesus e dos seus discípulos.
4.6 Vejamos as chances da encarnação
Assumindo a natureza humana, Jesus
de alguma forma assume a cada homem. A distância infinita que existia entre Deus e a criatura, com a encarnação desaparece. O máximo de distância tornou-se o máximo de proximidade e identificação. Jesus passa a fazer parte da nossa raça, da família humana. 29
Comunica-se com palavras, gestos e
atitudes humanas. O que ele nos diz de Deus, a quem conhece perfeitamente, é compreensível até pelos mais simples e ignorantes. O Deus invisível torna-se visível, palpável, audível. É com entusiasmo que João diz: “O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos, e nossas mãos apalparam da Palavra da vida” (1Jo 1,1). Na vida terrena assume toda a experiência humana, menos o pecado. Evidentemente, experiência limitada a um homem que viveu apenas 30 anos. Mas nesta curta vida, passa pela experiência da pobreza, do exílio, do trabalho duro, da ingratidão, da rejeição, da condenação injusta, da tortura, da angústia, do abandono e da morte. Também experimentou as alegrias humanas, o amor familiar, a amizade, a paz da oração, a contemplação da natureza.
4.7 Conclusão 30
Concluindo este ponto, podemos dizer
que a história da existência humana de Jesus é a história da presença de Deus no meio de nós. O nosso desejo de saber quem é Deus nos leva às vezes a imaginar um Deus fantástico, um Deus como nós desejaríamos que ele fosse ou como tememos que possa ser. Em Jesus, Deus saiu fora do seu mistério e apresentou-se a nós com uma identidade humana, para que nós pudéssemos conhecê-lo. “Ele é a imagem do Deus invisível” (Cl 1,15).