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oA Gongas ves, Manan de Bon eida etal (06 7) CuabGeton' da Attra Aoje 2 Rea)’ de forerno fadileona FOV, 2072, ~ 1 Fazer defeitos nas memorias: Para que servem o ensino e a escrita da historia? Durval Muniz de Albuquerque Junior ‘Descobr aos 13 anos que o gue me dawa prazer nas lituras nd ora a beleza das frases, mas a doenea delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Pre- ceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujitoescalen, — Gosiar de fer defeios na fiase é muito saudwel, o Pade me disse Ele fez um limpamento em meus reeios, 0 Pave falou ainda: Maneel, isso ndo é doenga, pode muito que vocé carregue para o resto da vida wn certo gosto por nadas. Essoriu Voc nao é de bugre? — ele continuo. Que sim, eu respond Veja que bugres6 pega por dsvias, ndo anda em estradas is é nos desvios que encontra as melhores surpress eos aviticuns maduras. Hei que apenas saber errr bem o seu idioma Esse Padre Ezequiel foi o meu primeino professor de gramética. [Barros, 1997] Quando a historia surgi como uma modalidade de conhecimento, como um género narrativo na Girécia antiga, devia atender a duas fungdes: memorizar (08 feitos huumanos, os acontecimentos grandioyos e extraotdindrios que pu closer se tealizaclos pelos homens: servir dle exemplo, de guia para as agGes Durval Muniz de Albuquerque Knit futuras. Articulada a uma concepgio de natureza humana que a considerava universal e imutavel, esperava-se que, em circunstancias idénticas, os homens tendessem a repetir os mestnos erros e acertos, comportando-se do mesmo ‘modo. A historia evitatia que os homens viessem a cometer os mesmos equi- vvocos por falta de exemplos € modelos a seguir (Hartog, 1999). Como bem ‘expressa o tribuno e escritor romano Cicero, a hist6ria seria a mestra da vida, ‘memorizando e exemplificando, cumprindo assim tanto uma fungao politica, 44 que tratava de assuntos relativos as formas de governar, a maneira como chefiare dirigit 0s cidadios em momentos decisivos, como em uma ocasiio de guerra ou de ameacas externas — assunto predominante dos relatos hist ricos —, quanto uma fungéo moral, jé que punha em discussao os valores, 08 principios, os comportamentos, os costumes, as leis, os conceitos, as paixdes € 08 sentimentos que dirigiam e explicavam as ages humanas em dados mo- ‘mentos esituag5es. A histéria realizava nao s6 uma avaliagao politica e moral das atitudes tomades por aqueles considerados dirigentes das cidades, sub- metendo-os a valoracao da justeza de suas ages, mas também uma avaliagao da moralidade, da justica e da sabedoria politica das atitudes e das crengas dos cidadios da propria cidade a que pertencia o histor, dos dirigentes e povos das Cidades, dos impérios e reinos amigos ou inimigos. A histéria cumpria, assim, 0 designio de educar as geragdes vindou- ras, de educar motal e politicamente as futuras elites dirigentes, transmi- tindo experiéncia e sabedotia para os prximos governantes. O histor era alguém que, tendo presenciado acontecimentos significativos, deles dava testemunho, buscando absorver ensinamentos, avaliando eriticamente as agies realizadas, procurando extrair dos eventos as verdadeiras motivagées, para que, a partir desses exemplos, houvesse o aperfeigoamento das artes de governar, de fazer a guerra, de aplicar a justica. A histéria ocupava-se dos acontecimentos do presente. Seu recurso ao passado dava-se a medida que esse ajudava a tornar inteligiveis os eventos extraordinarios que o narrador presenciava e dirigia-se ao futuro a medida que se justificava pelas memérias €ensinamentos que transmitia. Feita para educar e moralizar, a histéria atingiria melhor seus objetivos se também conseguisse deleitar e seduzir os espititos, se, por meio da beleza de sua narrativa, do estilo em que era vazado o relato, prendesse a atenciio da platela que a escutava ou daquele que se dedicava a sua leitura. O histor deve- tia ter uma preocupagao estética com a obra, pois seu sucesso, sua capacidade de seduzir ouvidos e almas, dependia da beleza e da arte com que o relato era urdido, da destreza como essa descrigao era apresentada, do movimento e da Faerdelitos ras memes Vivacidade que o texto exibia, A felicidade na escolha das palavras, das figu- ras, das imagens, a capacidade de fazer o evento narrado colocar-se & frente {do ouvinte ou do leitor, além do potencial de encenar, de pér diante dos olhos ilgo ausente, eram decisivos para que o texto histérico conseguisse impregnar hho espirito de quem o ouvia ou lia a mensagem que queria transmitir. Como lum sinete em uma placa de cera, o relato historico deveria prodwzir impres- shes profundas no espirito de quem 0 absorvia, além de ser capaz de marcar ‘esse sujeito com impressdes indeléveis, ensinamentos e exemplos para jamais ser esquecidos. O relato histérico deveria impressionar, deleitar, memorizar, ‘ducer e moralizar (Hartog, 2003; Momigliano, 2004), ‘A histéria, que por muito tempo foi considerada um género literéio, uma arte, embora devesse ter compromisso com a verdade — nas palavras de’ Tucidides (em Historia da Guerra do Peloponeso) “devesse ter a preocu- pagal em contar como as coisas se passaram, extraindo delas ligBes”" —, vai fer designada uma ciéncia ainda no século XVILL, com os pensadores ilumi- histas. Mas sera no inicio do século XIX que, em grande medida, a pritica historiografica passa a obedecer a regras distintas daquelas que presidiram a ‘vcrita da Historia desdea Antiguidade Classica, como deslizamento e alte- ragiio de sentido do topos historia magistra vitae, Em 1810, écriada na Uni- versidade de Berlim a primeira catedra de historia, entregue a Leopold von Ranke. Assim, inicia-se a profissionalizacdo do ensino e da escrita da histé- tornando-a um saber universitério, com aspiragbes a cientificidade e a 10 de objetivos e fungdes que serao tracados pelo Estado que promove, avalia efiscaliza a docéncia e produgio na area. Na Prissia, a profissionali- yagiio do ensino e da escrita da historia faz parte de um processo de moderni- zagito administrativa, de reforma do Estado, que se seguit & derrota para as {ropes napolednicas, A invasio ¢ o triunfo franceses nos campos de batalha Jevaram as elites prussianas @ avaliar a necessidade de reformar nio apenas preparo militar dle seu exército, como também a defender a necessidade de prepirar subjetivamente tanto os soldados quanto toda a populagdo — de indeeas tropas eram recrutadas —, para que demonstrassem maior disposi- «ilo ra hora de lutare defender o que essas elites definiam como nacio. ‘Como diz. Benedict Anderson (2008), a adogo do ensino de histéria nao npenasina universidade, mas nas escolas piblicas surgidas justamente a par- tirda Revolugio Francesa, passa a ser vista como ingrediente indispensivel \ginada, a nago, que deveria vir a paras criagio dessa nova comunidade ssubstituir as solidariedadles e relagdes comunitrias locais, em grande medi- da destruidas como fim dos vinculos feudais e com acrescente coneentragao dla popullagio nas cidades, devido ao desenvolvimento da economia mercan’ tile industrial. Constituir cidados que amassem a nagiio, que se dispuses: sem a viver ea morrer pelo que agora se nomeia de patria, torna-sea tarefaa ser cumprida pelo ensino e pela escrita da histéria. A historia continua sendo pensada e praticada, majoritariamente, como historia politica; neste momento, porém, como a historia dos Estados nacio- nais, como a historia daqueles que encarnam e representam o governo das nagdes. Tal como na Antiguidade, a histéria tem um caréter de exemplari- dade, é compreendida com um viés pedagogico, agora acentuado, porque ira integrar curriculos de instituigdes de ensino, tornar-se~ Ela continua visando educar e moralizar, porém agora visa formar cidados que nao habitam nem sto representantes ou dirigentes politicos de cidades, mas de nagdes, A historia passa a ser a historia nacional, a historia dos gran- des feitos e grandes fatos que, no decorrer do tempo, manifestaram a na- cionalidade — ou o que se chama de espirito ou alma nacional —e teriam contribuiido para a emergéncia, legitimidade e gléria de cada nagao, Mas, diferentemente do que ocorria na Antiguidade, a hist6ria fala agora, prefe- rencialmente, do passado, nao do presente, Passado acabado e separado do presente, que serve, no entanto, para explicé-lo e para inspirar as ages dos responsaveis por dirigir e, portanto, fazer a histéria de cada naciio. A histéria visa, assim, construir o cidadao patriota, aquele que ama sua nagao, quedela tem orgulho por tudo de grandioso que ela fer. e representou no passado, que se inspira na vida e nas ages daqueles que foram responséveis por sua constituigo, defesa e governo: os herdis nacionais, que compdem o pan- ‘edo da patria, em que se devem buscar exemplos de moralidade, coragem, grandeza e sabedoria. A histéria passa a ser, desse modo, um instrumento zna construcao e reatualizacao das identidades nacionais, na elaboracio e re producao de narrativas da nacionalidade, das metanarrativas da nag&o, que sustentardo e dardo suporte ao novo dominio burgués que se instaura Assim como na Antiguidade, a historia continua tendo a fungao de mora- lizar, de ensinar valores, de fornecer modelos de conduta, de orientar a aco, no sentido do aperfeigoamento humano, Além de educar, de formar cidadios, a histéria deve civilizar — conceito ja existente entre os antigos, mas que ga: nnha uma centralidade e uma importincia decisiva num mundo que, desde 0 século XVI, se ampliou cada vez mais com o conhecimento de now ce novas populacdes, que viu emergir novas faces do humano, que nem sem~ pre agradaram ou foram consideradas suficientemente civilizadas. A historia torna-se também o texto que avalia e discute o aperfeigoamento dos costu- matéria escolar. terras 4 ‘como propugnada e praticada por Voltaire ainda no século i, historia da civilizagao, i humanon, AVI. A histo ‘vuwativa da progeessiva melhoria dos costumes humanos, Jylantugdes de conduta e que oferece exemplos, que sanciona ou elogia as ati- {uiler eos valores daqueles que foram personagens de eventos histérioos. Himbora possamos encontrar, na historiografia e nos clissicos do século ‘AIK, autores que se destacam peloesilo da scrita, grandes narradores, apreo- “ypugliocom a cientificidade — com dotar o saber histérico de um método que yuntinse sua cientificidade, quelevasce esse saber a se tornar rigoroso e meté- ‘Neo vai se sobrepor as preocupagGes estéticas eestilisticas que acompanha- ‘yuna produgio historiografica na Antiguidade ou mesmo a proclugao erudita poe renascentista. O caraterret6rico da historiografia passaa ser negligenciado, ‘qundo nio explicitamente combatido, em nome da cientificidade eda veraci- Jule que deveriam presidiro saber histirico. O historicismo alemao, a escola Jwtodica alema, capitaneada por Leopold von Ranke, preocupou-se em dotar \ historia de um método que fosse capaz de garantir que se chegasse a narrar 0 Jpantaclo tal como ele efetivamente fora. O método heuristico, apoiado na cri- {ica documental, na andlise da documentagio presente nos arquivos oficiais, serviria para estabelecer a versio correta, veraz, definitiva para cada evento. Os chumados fatos hist6ricos — fatos tinicos, singulares, no repetiveis, excep: clonais, grandiosos, quase sempre envolvendo raztes de Pstaclo — deveriam serorganizados cronologicamente e dispostos em uma lina do tempo, cujo fio ‘condutorseria o progresso da civilizago ea histéria nacional. A historia passaa ter assim, afungao de dizer verdade sobre o passado da civilizagao eda nagao, servindo de inspiracio para os homens do presente, que, com ela, aprenderiam ligdes — como deveriam comportar-se enquanto cidadaos, que ieias, valores ‘costumes deveriam professar, praticare cultivar—e, por ela, seriam conven cidos das verses para o que seriam nacao e progresso. No século XX, a Escola dos Annales es varias vertentes do marxismo fa~ Ho a critica a esse modelo historiografico, definindo-o como positivista, como 4 pritica de uma historia historicizante, de uma histéria événementielle ou de ‘uma histéria de tratados e batalhas. Os historiadores interpelados tanto pe Jas grandes transformagées historicas, pelas grandes tragédias humanas que pontuaram o século passado, quanto pelas ciéncias sociais emergentes, pelas rutagbes no campo dos saberes com a presenca crescente ¢ marcante da s0- ciclogia, da economia, da antropologia, da linguistica e da psicanalise, vio ter ‘que buscar novas formas de atuagio e legitimagdo para a existéncia do saber histérico. Tendo agora de concorrer, no interior da universidade, no campo se, além de historia da er que oferece 25

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