ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís, MONTEIRO, Ana Maria. (Org.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 21-39.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís, MONTEIRO, Ana Maria. (Org.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 21-39.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In: GONÇALVES, Márcia de Almeida; ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís, MONTEIRO, Ana Maria. (Org.). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 21-39.
oA
Gongas ves, Manan de Bon eida etal (06 7)
CuabGeton' da Attra Aoje 2 Rea)’ de
forerno fadileona FOV, 2072,
~ 1 Fazer defeitos nas memorias:
Para que servem o ensino e
a escrita da historia?
Durval Muniz de Albuquerque Junior
‘Descobr aos 13 anos que o gue me dawa prazer nas lituras nd ora a beleza
das frases, mas a doenea delas. Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Pre-
ceptor, esse gosto esquisito. Eu pensava que fosse um sujitoescalen,
— Gosiar de fer defeios na fiase é muito saudwel, o Pade me disse
Ele fez um limpamento em meus reeios,
0 Pave falou ainda: Maneel, isso ndo é doenga, pode muito que vocé carregue
para o resto da vida wn certo gosto por nadas.
Essoriu
Voc nao é de bugre? — ele continuo.
Que sim, eu respond
Veja que bugres6 pega por dsvias, ndo anda em estradas
is é nos desvios que encontra as melhores surpress eos aviticuns maduras.
Hei que apenas saber errr bem o seu idioma
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeino professor de gramética.
[Barros, 1997]
Quando a historia surgi como uma modalidade de conhecimento, como um
género narrativo na Girécia antiga, devia atender a duas fungdes: memorizar
(08 feitos huumanos, os acontecimentos grandioyos e extraotdindrios que pu
closer se tealizaclos pelos homens: servir dle exemplo, de guia para as agGesDurval Muniz de Albuquerque Knit
futuras. Articulada a uma concepgio de natureza humana que a considerava
universal e imutavel, esperava-se que, em circunstancias idénticas, os homens
tendessem a repetir os mestnos erros e acertos, comportando-se do mesmo
‘modo. A historia evitatia que os homens viessem a cometer os mesmos equi-
vvocos por falta de exemplos € modelos a seguir (Hartog, 1999). Como bem
‘expressa o tribuno e escritor romano Cicero, a hist6ria seria a mestra da vida,
‘memorizando e exemplificando, cumprindo assim tanto uma fungao politica,
44 que tratava de assuntos relativos as formas de governar, a maneira como
chefiare dirigit 0s cidadios em momentos decisivos, como em uma ocasiio
de guerra ou de ameacas externas — assunto predominante dos relatos hist
ricos —, quanto uma fungéo moral, jé que punha em discussao os valores, 08
principios, os comportamentos, os costumes, as leis, os conceitos, as paixdes
€ 08 sentimentos que dirigiam e explicavam as ages humanas em dados mo-
‘mentos esituag5es. A histéria realizava nao s6 uma avaliagao politica e moral
das atitudes tomades por aqueles considerados dirigentes das cidades, sub-
metendo-os a valoracao da justeza de suas ages, mas também uma avaliagao
da moralidade, da justica e da sabedoria politica das atitudes e das crengas dos
cidadios da propria cidade a que pertencia o histor, dos dirigentes e povos das
Cidades, dos impérios e reinos amigos ou inimigos.
A histéria cumpria, assim, 0 designio de educar as geragdes vindou-
ras, de educar motal e politicamente as futuras elites dirigentes, transmi-
tindo experiéncia e sabedotia para os prximos governantes. O histor era
alguém que, tendo presenciado acontecimentos significativos, deles dava
testemunho, buscando absorver ensinamentos, avaliando eriticamente as
agies realizadas, procurando extrair dos eventos as verdadeiras motivagées,
para que, a partir desses exemplos, houvesse o aperfeigoamento das artes de
governar, de fazer a guerra, de aplicar a justica. A histéria ocupava-se dos
acontecimentos do presente. Seu recurso ao passado dava-se a medida que
esse ajudava a tornar inteligiveis os eventos extraordinarios que o narrador
presenciava e dirigia-se ao futuro a medida que se justificava pelas memérias
€ensinamentos que transmitia.
Feita para educar e moralizar, a histéria atingiria melhor seus objetivos
se também conseguisse deleitar e seduzir os espititos, se, por meio da beleza
de sua narrativa, do estilo em que era vazado o relato, prendesse a atenciio da
platela que a escutava ou daquele que se dedicava a sua leitura. O histor deve-
tia ter uma preocupagao estética com a obra, pois seu sucesso, sua capacidade
de seduzir ouvidos e almas, dependia da beleza e da arte com que o relato era
urdido, da destreza como essa descrigao era apresentada, do movimento e da
Faerdelitos ras memes
Vivacidade que o texto exibia, A felicidade na escolha das palavras, das figu-
ras, das imagens, a capacidade de fazer o evento narrado colocar-se & frente
{do ouvinte ou do leitor, além do potencial de encenar, de pér diante dos olhos
ilgo ausente, eram decisivos para que o texto histérico conseguisse impregnar
hho espirito de quem o ouvia ou lia a mensagem que queria transmitir. Como
lum sinete em uma placa de cera, o relato historico deveria prodwzir impres-
shes profundas no espirito de quem 0 absorvia, além de ser capaz de marcar
‘esse sujeito com impressdes indeléveis, ensinamentos e exemplos para jamais
ser esquecidos. O relato histérico deveria impressionar, deleitar, memorizar,
‘ducer e moralizar (Hartog, 2003; Momigliano, 2004),
‘A histéria, que por muito tempo foi considerada um género literéio,
uma arte, embora devesse ter compromisso com a verdade — nas palavras
de’ Tucidides (em Historia da Guerra do Peloponeso) “devesse ter a preocu-
pagal em contar como as coisas se passaram, extraindo delas ligBes”" —, vai
fer designada uma ciéncia ainda no século XVILL, com os pensadores ilumi-
histas. Mas sera no inicio do século XIX que, em grande medida, a pritica
historiografica passa a obedecer a regras distintas daquelas que presidiram a
‘vcrita da Historia desdea Antiguidade Classica, como deslizamento e alte-
ragiio de sentido do topos historia magistra vitae, Em 1810, écriada na Uni-
versidade de Berlim a primeira catedra de historia, entregue a Leopold von
Ranke. Assim, inicia-se a profissionalizacdo do ensino e da escrita da histé-
tornando-a um saber universitério, com aspiragbes a cientificidade e a
10 de objetivos e fungdes que serao tracados pelo Estado que promove,
avalia efiscaliza a docéncia e produgio na area. Na Prissia, a profissionali-
yagiio do ensino e da escrita da historia faz parte de um processo de moderni-
zagito administrativa, de reforma do Estado, que se seguit & derrota para as
{ropes napolednicas, A invasio ¢ o triunfo franceses nos campos de batalha
Jevaram as elites prussianas @ avaliar a necessidade de reformar nio apenas
preparo militar dle seu exército, como também a defender a necessidade de
prepirar subjetivamente tanto os soldados quanto toda a populagdo — de
indeeas tropas eram recrutadas —, para que demonstrassem maior disposi-
«ilo ra hora de lutare defender o que essas elites definiam como nacio.
‘Como diz. Benedict Anderson (2008), a adogo do ensino de histéria nao
npenasina universidade, mas nas escolas piblicas surgidas justamente a par-
tirda Revolugio Francesa, passa a ser vista como ingrediente indispensivel
\ginada, a nago, que deveria vir a
paras criagio dessa nova comunidade
ssubstituir as solidariedadles e relagdes comunitrias locais, em grande medi-
da destruidas como fim dos vinculos feudais e com acrescente coneentragaodla popullagio nas cidades, devido ao desenvolvimento da economia mercan’
tile industrial. Constituir cidados que amassem a nagiio, que se dispuses:
sem a viver ea morrer pelo que agora se nomeia de patria, torna-sea tarefaa
ser cumprida pelo ensino e pela escrita da histéria.
A historia continua sendo pensada e praticada, majoritariamente, como
historia politica; neste momento, porém, como a historia dos Estados nacio-
nais, como a historia daqueles que encarnam e representam o governo das
nagdes. Tal como na Antiguidade, a histéria tem um caréter de exemplari-
dade, é compreendida com um viés pedagogico, agora acentuado, porque
ira integrar curriculos de instituigdes de ensino, tornar-se~
Ela continua visando educar e moralizar, porém agora visa formar cidados
que nao habitam nem sto representantes ou dirigentes politicos de cidades,
mas de nagdes, A historia passa a ser a historia nacional, a historia dos gran-
des feitos e grandes fatos que, no decorrer do tempo, manifestaram a na-
cionalidade — ou o que se chama de espirito ou alma nacional —e teriam
contribuiido para a emergéncia, legitimidade e gléria de cada nagao, Mas,
diferentemente do que ocorria na Antiguidade, a hist6ria fala agora, prefe-
rencialmente, do passado, nao do presente, Passado acabado e separado do
presente, que serve, no entanto, para explicé-lo e para inspirar as ages dos
responsaveis por dirigir e, portanto, fazer a histéria de cada naciio. A histéria
visa, assim, construir o cidadao patriota, aquele que ama sua nagao, quedela
tem orgulho por tudo de grandioso que ela fer. e representou no passado,
que se inspira na vida e nas ages daqueles que foram responséveis por sua
constituigo, defesa e governo: os herdis nacionais, que compdem o pan-
‘edo da patria, em que se devem buscar exemplos de moralidade, coragem,
grandeza e sabedoria. A histéria passa a ser, desse modo, um instrumento
zna construcao e reatualizacao das identidades nacionais, na elaboracio e re
producao de narrativas da nacionalidade, das metanarrativas da nag&o, que
sustentardo e dardo suporte ao novo dominio burgués que se instaura
Assim como na Antiguidade, a historia continua tendo a fungao de mora-
lizar, de ensinar valores, de fornecer modelos de conduta, de orientar a aco,
no sentido do aperfeigoamento humano, Além de educar, de formar cidadios,
a histéria deve civilizar — conceito ja existente entre os antigos, mas que ga:
nnha uma centralidade e uma importincia decisiva num mundo que, desde 0
século XVI, se ampliou cada vez mais com o conhecimento de now
ce novas populacdes, que viu emergir novas faces do humano, que nem sem~
pre agradaram ou foram consideradas suficientemente civilizadas. A historia
torna-se também o texto que avalia e discute o aperfeigoamento dos costu-
matéria escolar.
terras
4
‘como propugnada e praticada por Voltaire ainda no século
i, historia da civilizagao,
i humanon,
AVI. A histo
‘vuwativa da progeessiva melhoria dos costumes humanos,
Jylantugdes de conduta e que oferece exemplos, que sanciona ou elogia as ati-
{uiler eos valores daqueles que foram personagens de eventos histérioos.
Himbora possamos encontrar, na historiografia e nos clissicos do século
‘AIK, autores que se destacam peloesilo da scrita, grandes narradores, apreo-
“ypugliocom a cientificidade — com dotar o saber histérico de um método que
yuntinse sua cientificidade, quelevasce esse saber a se tornar rigoroso e meté-
‘Neo vai se sobrepor as preocupagGes estéticas eestilisticas que acompanha-
‘yuna produgio historiografica na Antiguidade ou mesmo a proclugao erudita
poe renascentista. O caraterret6rico da historiografia passaa ser negligenciado,
‘qundo nio explicitamente combatido, em nome da cientificidade eda veraci-
Jule que deveriam presidiro saber histirico. O historicismo alemao, a escola
Jwtodica alema, capitaneada por Leopold von Ranke, preocupou-se em dotar
\ historia de um método que fosse capaz de garantir que se chegasse a narrar 0
Jpantaclo tal como ele efetivamente fora. O método heuristico, apoiado na cri-
{ica documental, na andlise da documentagio presente nos arquivos oficiais,
serviria para estabelecer a versio correta, veraz, definitiva para cada evento. Os
chumados fatos hist6ricos — fatos tinicos, singulares, no repetiveis, excep:
clonais, grandiosos, quase sempre envolvendo raztes de Pstaclo — deveriam
serorganizados cronologicamente e dispostos em uma lina do tempo, cujo fio
‘condutorseria o progresso da civilizago ea histéria nacional. A historia passaa
ter assim, afungao de dizer verdade sobre o passado da civilizagao eda nagao,
servindo de inspiracio para os homens do presente, que, com ela, aprenderiam
ligdes — como deveriam comportar-se enquanto cidadaos, que ieias, valores
‘costumes deveriam professar, praticare cultivar—e, por ela, seriam conven
cidos das verses para o que seriam nacao e progresso.
No século XX, a Escola dos Annales es varias vertentes do marxismo fa~
Ho a critica a esse modelo historiografico, definindo-o como positivista, como
4 pritica de uma historia historicizante, de uma histéria événementielle ou de
‘uma histéria de tratados e batalhas. Os historiadores interpelados tanto pe
Jas grandes transformagées historicas, pelas grandes tragédias humanas que
pontuaram o século passado, quanto pelas ciéncias sociais emergentes, pelas
rutagbes no campo dos saberes com a presenca crescente ¢ marcante da s0-
ciclogia, da economia, da antropologia, da linguistica e da psicanalise, vio ter
‘que buscar novas formas de atuagio e legitimagdo para a existéncia do saber
histérico. Tendo agora de concorrer, no interior da universidade, no campo
se, além de historia da
er que oferece
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HISTÓRIA PÚBLICA, MÍDIAS E LINGUAGENS CULTURAIS: DESAFIOS À PESQUISA E ÀS PRÁTICAS NO ENSINO DE HISTÓRIA Éder Cristiano de Souza Márcia Elisa Teté Ramos