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infinito, © cada vez que se abre a porta de uma mo- radia, seja em Lillo ow em Manchester, sabe-se que a ‘mesma cena seré vista ainds uma vez, como a fusti- gagdo no esconderijo do Proceso de Kafka: ‘Muitas familias do Rouen dormem promiscuamente sobre uum estrado de palha, como os animais em um estébulo; sua Touga consste em um vaso de madeira ou de cerimica desbei- ado, que serve para todos os fins; os filhos menores dormem sobre um saco de cinzss; 0s outfos, pais e filhos, irmfos ¢ ‘rms, deltam-se todos juntos sobre aquele leito indescritivel. {Em Lille, as ruas’ dos bairros operdrios levam a] pequenos pétios que servem a0 mesmo tempo como esgoto © depésito de lixo, As janelas das rioradias ¢ as portas dos alojamen- tos abrem-se para essas passagens infectas, 20 fundo das quais uma grads é colocada horizontalmente ‘sobre bocasde-lobo ‘que servem como latrinas pébiicas, dia c noite. As habitagies ‘du comunidade estfo distribuidas em torno desses foros de pestiléncia, dos quals a misétia Iocal se compraz em extrair lum pequeno rendimento, 17 Durante a breve vida da Segunda Repiblica, 0 Conde A. de Melun, proveniente da Sociedade de S. Vicente ¢ deputado no Norte, consegue fazer com que soja aprovada a primeira ei urbanistica francesa, em 1850, As Comunas estfo autorizadas, de agora em diante, a nomear uma comissfo, que deverd indicar “as medidas indispensSveis de arranjo dos alojamentos © dependéncias insalubres, alugados © ocupados por pessoa diversa daquela de seu proprietério"; na co- missio, devem estar presentes um médico e um ar- quiteto, © o proprietério pode ser obrigado a pagar as ‘obras, se for responsdvel pelos inconvenientes, ow a ‘Comuna pode substituir-se ao proprietério, exproprian- do “a totalidade da propriedade compreendida no pe- rimetro das obras a serem efetuadas”. Esta tiltima disposigdo é a mais importante, uma vez que atribui novo significado & expropriacio. A Iei napolednica de 1810 ¢ a de 1833, emanada no principio do regime orleanista, consideram a expro- priagdo como uma operacio excepcional; a lei de 1841 facilita seu procedimento, mas estabelece que a auto- ridade somente se pode valer da mesma para a execugio de grands travaux publics ¢, de fato, serve coma preparativo para a lei de 1842 sobre a nova rede ferrovidria. Agora, contempla-se 2 expropriagao alg mesmo para o saneamento dos bairros residenciais © diz respeito a todo o perimetto dos trabalhos, por- 17. A, Buangut, eit, em P, LAVEDAN, op, cit, p. 68, 18. Cit. em P. Lavenan, op. elt, p. 89. 2 tanto, também As obras que deverdo retornar as mios dos particulares, como as novas casas; transforma-se, assim, em um instrumento urbanistico geral, com o qual @ autoridade intervém no proceso de transfor- magio das cidades, discriminando as exigéncias pabli- cas e particulares. E a lei que permitird que Haussmann, daf 2 pour co, efetue seus grandiosos trabathos de transformagio de’Patis. A aplicagio ocorreré em um clima politico autoritdrio, num espfrito diferente daquele dos lei ladores republicanos, 2. © movimento neogético © ario de 1830, que assinala 0 infcio das rofor- mas sociais ¢ urbanisticas, assinala também o éxito do movimento neogético na arquitetura, ‘A possibilidade de imitar as formas géticas, ao invés das classicas, esté presente na cultura arquite- tonica desde a metade do século XVIII e acompanha, com manifestagdes marginais, todo o ciclo do neoclas- sicismo, confirmando implicitamente 0 cardter conven- ional da escotha neoctéssica. ‘Na quarta década do século XIX, essa possi dade concretiza-se em um verdadeiro e préprio mo vimento, que se presenta com motivagées precisas, quer técnicas, quer ideolégicas, e que se contrapie a0. movimento neoclassico. O éxito desse contraste escla- rece de maneira decisiva os fundamentos da cultura arquitetdnica; com efeito, 0 novo estilo nao substitui nem se funde ao anterior, como ocorria em épocas passadas, mas ambos permanecem um ao lado do outro como hipsteses parciais, ¢ todo 0 panorama da histéria da arte surge rapidamente como uma sétie de hip6teses estilisticas méltiplas, uma para cada um dos estilos passados. Assim talvez se possa ver a relagio que liga 0 movimento neogético As reformas estruturais desse pe- riodo. As reformas comegam quando os problemas de organizagio, emersos da Revolugio Industrial, deli- neiam-se com clareza suficiente, e fica evidente a im- possibilidade de conservar as velhas regras de condu- ts, Ao mesmo tempo, na arquitetura, parece impossi- vel conservar a continuidade ficticia’ com a tradigio elissica, e vem A luz a natureza conyencional do re~ curso aos estilos passados, embora o problema fique em aberto, aguardando uma solugio nfo convencional. ‘No século XVIIT, 0 uso de formas géticas apre- sentava-se como uma variedade do gosto pelo exético, © possuia um caréter foriemente literdrio, B. Lan- : “aut € fp mn hn yi Slendeekrclae neha Spans nerdeensnwter 7 Stn 61. abogo de K.F. Schinkel par una rela ptca Crea de 1810. ria io, gley, em 1742, publica um curioso tratado, Gothic Architecture Restore and Improved, no qual tenta de- duzir, das formas medievais, uma espécic de ordem de novo género, porém sua tentativa néo encontra qual- quer seguimento. Bm 1753, 0 romancista H. Wal- pole faz reconstruir em estilo gético sua casa de Strawberry Hill em Twickneham (Fig. 67); em 1796, J. Wyatt constréi para o literato W. Beckford a resi- déneia de Fonthill Abbey que, de acordo com os dese- jos de quem a encomenda, deve ser “um ediffcio or Ramental que tenha a aparéncia de um convento meio em rufnas, mas que contenha alguns cémodos ao abri- 0 das intempéries”. ‘Na Franca, o chamado estilo troubadour nfo esti ‘menos carregado de significados literdrios; em 1807, Chateaubriand embeleza sua villa de Vallée aux-Loups com decoragies géticas. Um pouco em toda parte, surgem construgdes de jardins, méveis e algumas fa- ‘chadas em estilo gético. Os estilos medievais sto as- sociados 20 espirito romdntico e so apreciados, no como um novo sistema de regras que substituam as lissicas, mas, antes, porque se supe que nilo possuem regras e detivem do predominio do sentimento sobre a azo; 0 g6tico parece, por enquanto, como uma massa confusa de pequenas ‘torres, pindculos, estantes enta- Ihadas, ab6badas tenebrosas e luzes filtradas por vitrais multicolores. Debret, na Encyclopédie moderne de 1824, tece Touvores 20 estilo gético, considerando-o, porém, “o elirio de uma imaginagio ardente que parece ter trans- formado sonhos em realidade”. ® Victor Hugo, no 10- mance Notre-Dame de Paris, de 1831, exalta a arqui- telura medieval e critica os monumentos clissicos, mas descreve a catedral parisiense como um antro escuro desmesurado no qual habita, como genius loci, 0 dis- forme Quasimodo. Visio sob essa Iuz, 0 estilo gético difunde-se ra- pidamente na pintura, na cenografia, na tipografia ¢ no mobilidrio, mas surge como uma imagem remota da prética de construgdo e parece néo ser adequado a aplicacio em larga escala na produgdo de edificios, enquanto a associagdo entre Classicismo © engenharia é segura e acertada. ‘A experiéncia que permite a introdugdo do goti- co nos projetos correntes provém das restauragdes dos edificios medievais que comegam no primeiro TImpério 19, Cit em E, TeDescus, LArchitetura in Inghittera, Florenga, s. dy p. 141. 20.” Cit. em L. Hautecocun, Histoire de architecture classique en France, Pats, 1955, (VI, b. 288, 84 ¢ se tomam cada vez mais freqiientes durante a Res- tauragio. Napolefo manda restaurar, em 1813 — de- sastrosamente — o interior de Saint-Denis a fim de ali introduzir 0 timulo de sua familia; 0 mesmo ar- quiteto, J. A. Alavoine (1777-1834) restaura, ent 1817, a Catedral de Sens ¢, em 1822, a de Rouen. Ao mesmo tempo, tem inicio a polémica dos li- teratos para a conscrvagio dos monumentos medievais, secularizados ou expropriados pela Revolugdo e caidos em mios de particulares, que fazem deles ‘0 que bem entendem. V. Hugo, esereve a “Ode sur ta Bande Noire", em 1834, 6 constitufda a Société Francaise d’Archéologie e, em 1837, a Comission des Monuments Historiques; na época da’ Monarquia de Julho o mais eélebre dos restauradores é J. B. A. Lassus (1807- -1857), que trabalha em 1838 em Saint-Germain- PAuxerrois € na Sainte-Chapelle e, a partir de 1845, ditige, juntamente com Viollet le Duc, as obras de Notre-Dame de Paris. Nos trabalhos de restauragdo, a relagio entre for- mas medievais ¢ problemas de construgio deve forgo- samente ser enfrentada pelos projetistas. Depois de 1830, esses conhecimentos passam, pouco a pouco, 20 projetos dos edificios novos ¢ enfrentam-se nfo 36 te~ mas decorativos ou residéncias para literatos de van guarda, mas também casas de moradia normais ¢ edi- ficios piblicos ocupados. Na Inglaterra, numerosos edificios ‘medievais so restaurados © ampliados no mesmo estilo, tais como © St. John’s College em Cambridge (T. Rickman ¢ H, Hutchinson, 1825) ou 0 castelo de Windsor (J. Wyatville, 1826): e, quando o velho palicio de West- minster 6 destrufdo em 1834 por um incéndio, 0 con- curso para a nova sede do Parlamento inglés prescre- ye que 0 projeto seja em estilo gético ou elisabetano, maneira m que, ofetivamente, 6 executado 0 edificio por Charles Barry (1795-1860) (Fig. 66). Na Alemanha, depois das obras para o término da Catedral de Colénia, iniciedas em 1840, os edifi- cios em estilo gético multiplicam-se de um extremo a0- ‘outro do pais, Na Franca, nfo obstante a resisténcia da Acade- mia que controla boa parte dos encargos para os edi- ficios pablicos, depois de 1830 constrocm-se em estilo Rotico muitas casas particulares © ediffcios religiosos; as vezes 0 clero exige propositalmente os projetos em ‘gético, como o arcebispo de Bordeaux que presereve esse estilo para todas as obras de sua diocese; em 1852, so construidas na Franca no menos de uma

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