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All content following this page was uploaded by Wellington Freire Machado on 23 September 2015.
1
O presente ensaio propõe uma leitura da obra Livro das horas, texto de
caráter autobiográfico assinado pela consagrada escritora Nélida Piñon. O livro não
segue necessariamente um desenvolvimento orientado por capítulos, mas sim uma
estratégia que retoma a ideia mater incitada pelo próprio título: cada parte surge
como uma reflexão repentina, resultante do exercício ruminante das horas que não
cessam. Este mecanismo de reflexão e autocrítica impulsiona a narradora a uma
profunda imersão memorialística na linha diacrônica que se dispõe ao longo de sua
vida. Dessa forma, o texto, de caráter autorreflexivo, desvela-se como poesia pura
através do vocabulário lapidado com traço fino.
Eduardo Portella, quem assina o prefácio do livro de Piñon, afirma que Livro
das horas indefine-se quanto aos seus limítrofes, de modo que (no livro) "a memória
e a autobiografia, o ensaio e o poema em prosa, assina um superior protocolo de
intenções, que uniria para sempre a narradora ardilosa e a vida do mundo,
superando mesmo os limites do que a autora chama, com propriedade, de real
fingido" (PORTELLA, 2012, p. 7). Nesse sentido, interessa-nos exatamente esta
determinada indefinição para orientar o caminho de leitura que neste ensaio busca-
se percorrer: o da alquimia da palavra.
2
O tempo, grande senhor e agente de transformação, possui papel de
relevância inegável no contexto de Livro das Horas, visto que é o principal agente de
maturação. De acordo com Jean Chevalier, em seu Dicionário de Símbolos, Chronos
é o senhor do tempo e não com rara frequência tem sido confundido com o titã
Cronos, especialmente durante o período alexandrino e renascentista. (CHEVALIER,
2010, p. 308). Este, por sua vez, tem o mesmo papel do tempo: devora, tanto quanto
engendra; destrói suas próprias criações; estanca as fontes da vida [...] “simboliza a
fome devoradora da vida" (CHEVALIER, 2010, p. 307). Na mitologia grega, além de
Chronos, também coexistem os conceitos de Kairós e Aion. Amanda Nuñez,
pesquisadora da UNED, afirma que Aión possui traços bastante perceptíveis que o
distinguem da violência de Kronos
Aión, no es ningún dios genético. Siempre está. No nace, no es
originado. No tiene que sublevarse contra nada, y no tiene que
comerse nada para ser eterno. Tan sólo da. Sus imágenes son
dobles: Por un lado se le presenta como a un viejo. Señor del tiempo
y de lo que no se mueve, de lo que no nace ni muere, de lo perfecto.
Así considerado es el tiempo de la vida. Aión es el tiempo de la vida.
A veces aparece rodeado de una serpiente, la serpiente que se
muerde la cola y que nos indica el eterno retorno del que también
habla Nietzsche como la excepción a la muerte de todo lo que puede.
Por otro lado, también se presenta como un joven que sostiene el
Zodiaco por donde circulan las estaciones. Pues aunque haya
muerte en cronos y cada invierno todo muera, siempre hay
repetición, y cada primavera todo renace. También serpiente del
eterno retorno. Dios del pasado, de la vejez y de la eterna juventud,
del futuro, a la vez. Un futuro y un pasado liberados de la tiranía del
presente de Kronos. (NUÑEZ, 2014, p. 1-2)
3
Livro das Horas começa com uma importante constatação: a narradora afirma
que não é forte nem poderosa, e que tampouco está na flor dos vinte anos: "Não faz
falta enaltecer o meu retrato que a mãe Carmen outrora pendurou em seu quarto
antes de morrer. (...) Mas quem seja eu hoje, não pude combater as rugas, o
declínio, para lhe fazer a vontade". (PIÑON, 2012, p. 11). A autora admite a ação
potente do grande senhor tempo ― ou Chronos, se preferirmos ―, as rugas e o
declínio são marcas inevitáveis do passar dos anos, efeito selvagem ao qual
nenhum ser vivente pode escapar. Apesar desta consciência, a certeza de que tudo
contribuiu de forma substancial na constituição da pessoa que vive o "hoje": "Não
vivi sem resultados, minha vida não foi inóspita" (PIÑON, 2012:11). Este primeiro
parágrafo inicial expressa ao narratário a consciência temporal, a ideia de que é
possível olhar para trás e lá, neste passado longínquo, encontrar marcas de um
alguém que talvez não exista mais nas mesmas proporções:
Sempre que mencionam em tom de elegia de como era nos áureos
anos, sorrio. Recordo, agradecida, uma trajetória inteira e
ruborizo-me. A beleza, a esta altura, não me lisonjeia. Opto por ser
a heroína das ideias e das ações que desenvolvi, em especial por me
haver submetido ao que o corpo e a imaginação me ditaram.
(PIÑON, 2012, p. 11) grifo meu.
Isto é, a surpresa gerada pela percepção dos encantos próprios tornou por
acarretar em Narciso o enamoramento pela própria imagem. A narradora logra
conceber Narciso dentro de uma outra percepção: "[...] os habitantes de Atenas,
cidade matiz, não passavam de um rascunho, de um modelo inacabado, cheio de
emendas estéticas. [...] Aquele povo estava condenado à decrepitude, enquanto ele,
Narciso, mantinha a beleza imaculada, sem sinais de declínio.” (PIÑON, 2012, p. 27)
A narradora empenha-se em compreender a beleza de Narciso dentro de um
paradigma de perfeição, tendo como base a beleza harmônica encontrada em seu
próprio lar ― fator que a condiciona à absolvição do personagem mítico: "Ao
contemplar as águas, Narciso sempre disposto a imolar-se em troca de fazer crer
aos demais que seu esplendor era um regalo dos deuses. Pois, alçado à categoria
de um deus, era natural que a perfeição lhe ofuscasse a razão" (PIÑON, 2012, p.
28). Nesse sentido, não o ego que relega a razão às profundezas, mas sim a
concepção de si baseada em contraposição a percepção do outro: "E por que não,
se, ao resistir com galhardia ao assédio dos invejosos, via a imagem eternizada nas
águas do lado? A sua lógica jamais previu o desenlace de qualquer iniciativa
narrativa." (PIÑON, 2012, p. 28). Assim, a percepção a partir ― e além ― da própria
experiência condiciona a narradora a uma concepção de realidade além do senso
comum.
Em Livro das Horas é perceptível uma autorreflexividade bastante cônscia. A
narradora admite o efeito de transformação proporcionado pela experiência vivida,
de modo que concebe-se como um indivíduo que vive vários "eus" dentro de uma
vida: "Minha vida mudou. A cada dia sou menos a Nélida que conheci até bem
pouco tempo atrás." (PIÑON, 2012, p. 24). Em praticamente todos os momentos
possíveis há o reconhecimento do papel transformador da arte, seja ela a literatura,
as artes plásticas ou o cinema. Em dado momento admite que aprendeu o valor da
solidão a partir dos livros do velho oeste, que enalteciam a vida no interior, a
realidade perigosa (PIÑON, 2012, p. 24). A brevidade da vida transpassada por
essas obras cinematográficas a lembra a centenária peça de Calderón de la Barca,
La vida es sueño. Reconhece a realidade emulada por escolhas, como o fato de ser
escritora ter-lhe condicionado a um nível de experiências limitado:
Ainda hoje, falta-me a medida com que avaliar o destino do heroi.
Invejo o seu sentido do dever. Quisera às vezes jamais ter sido a
mulher que ama o que há dentro da casa. E que, ao decidir ser
escritora, renunciou à vida nas savanas, nas tundras, no deserto. A
acampar, a viver em tendas varejadas pelo vento. Meu Deus, como
sonho com uma vida que me converta em heroina. (PIÑON, 2012,
p. 24)
Neste caso, a consciência plena de que cada escolha significa uma lista
infinita de renúncias. A presença de Gravetinho e a amizade brindada pelos amigos
são motivos de agradecimento, mas admite que está condicionada a uma realidade
quiçá um pouco aquém das aventuras sonhadas (mas não menos gratificantes):
"Resta-me hoje sair de casa e obedecer a uma agenda pré-traçada. Felizmente,
sinto-me desabrida. Aprendo muito, trago a mochila das ideias e da imaginação nas
costas." (PIÑON, 2012, p. 24).
Ao lançarmos um olhar sobre a bagagem de leitura da narradora, o que se
percebe é uma anima que se regozija nos braços da literatura universal. Como já
mencionado por Bachelard, as horas da anima e as horas do animus em cada ser
humano não pertencem ao mundo dos números e das medidas (BACHELARD,
2009, p. 57). A regozijante leitura em anima de obras da casta de autores clássicos
Eurípide, Sofocles, Hesíodo e Ésquilo, reflete diretamente na escritura em Animus
de masterpieces como Aprendiz de Homero, reconhecido e premiado livro de
ensaios de Piñon. Nesse ponto podemos compreender os resultados da
coexistência de uma anima com um animus no interior do Atanor desta leitora. Estes
processos alquímicos, de significativo valor, conduzem em instância última à
produção de conhecimento, produto de refino mais elevado (se considerarmos a
bagagem de leitura do escritor somado à importância de Chronos, Kairós e Aión
neste processo). Nesse sentido, é importante mencionar que a vitalidade da pedra
filosofal – e por conseguinte a criação do ouro alquímico – ocorre justamente quando
todas as experiências do sujeito se convertem em Conhecimento, nesse caso em
literatura.
Acaso a tragédia de Sófocles tinha por fim atrair mitos e divindades
para o fulcro humano? Para torná-los cúmplices das nossas ações?
O confronto de Antígona com Creonte rompe no entanto os limites
civilizatórios e nos integra ao pensamento grego. Sem a
compreensão de tais postulados incrustados na formação da cultura
grega, e que nos chegaram intactos até os nossos dias, não se
compreenderia um passado no qual Antígona se estriba para
justificar o seu comportamento. Não sendo assim, como esclarecer o
projeto de Homero, ou de seus contemporâneos Hesíodo e Ésquilo,
corados todos pela grandeza? Ou mesmo Eurípides, que, atraído
pela vaidade da perfeição teatral, transformou a história dos
Argonautas, com sua mensagem humanitária de alta significação, em
um drama relativamente superficial, em que Jasão, mero navegante,
algoz e vil traidor de Medeia, torna-se herói, a despeito de levar a
desgraçada mulher a assassinar os próprios filhos. (PIÑON, 2012, p.
35)
4
Bachelard, ao discorrer sobre a união do Rei com a Rainha nas doze figuras
do Rosarium Philosophorum, relembra que ambas forças reais reinam no mesmo
psiquismo, sendo majestades das potências psicológicas que, graças à Obra hão de
reinar sobre as coisas. De acordo com o autor, a androginidade do sonhador vai se
projetar numa androginidade do mundo: "Aqui, igualam-se dois devaneios de cultura.
Mantemo-nos em equilíbrio de devaneio apoiando-nos nas duas transferências
cruzadas que seguem as projeções do animus sobre a anima e da anima sobre o
animus." (BACHEALRD, 1988, p. 79).
A comunhão do Rei com a Rainha, em quatro das doze figuras, são tão
perfeitas que os limites do corpo de ambos já não são mais perceptíveis. Nesse
sentido, a androginidade não se oculta em uma animalidade indistinta, nas origens
obscuras da vida: "Ela é uma dialética do apogeu. Mostra, vindo de um mesmo ser,
a exaltação do animus e da anima. Prepara os devaneios associados do
supermasculino e do superfeminino." (BACHELARD, 1988, p. 75).
Ao compreendermos o Livro das horas dentro dessa perspectiva, logramos
detectar os momentos onde ocorrem a junção da Leitora com a Escritora, e a partir
daí ― tal como no Rosarium Philosophorum ― a constatação de não poder-se mais
distinguir onde começa uma e termina a outra. Assim, a anima que reveste a Leitora
se entrelaça ao Animus que habita a Escritora, em um magnífico exercício de coito e
conjunção, ocorrendo o milagre da Androginia. Este processo ― como já
mencionado ― se dá no interior do Atanor, aquele vaso hermeticamente fechado
onde ocorrem as transformações, culminando, como resultado final, em uma
alquimia da palavra, graças à união da anima com o animus. Neste aspecto, a
eficácia e a percepção da literatura desde uma perspectiva alquímica: A criação
literária só se dá a partir de uma tríde indissociável: A experiência do sujeito, a
leitura e a escrita. O físico, neste processo, não é nada menos do que um recipiente,
por onde se dá toda a manifestação.
Assim, pode-se afirmar que a narradora de Nélida Piñon encontrou os meios
de constituir sua verdadeira pedra filosofal, transmutando de estado em estado (a
partir do exaustivo exercício de viver com sabedoria cada uma das horas de sua
vida), de grau em grau (errando, tentando e logrando seus objetivos), de condição
em condição (leitora, produtora de conhecimento), de polo em polo (no aconchego
íntimo ou na Academia Brasileira de Letras), de vibração em vibração (aceitando a
mudança como processo e mudando de opinião). Essa experiência, por fim,
caracteriza a verdadeira transmutação hermética expressa pelo Caibalion: a Arte
Mental, como instância máxima do aprendizado, materializada alquimicamente no
instrumento de trabalho do escritor: materializada no exercício da palavra, em
conexão perfeita com o cosmos.
Referências
ADRIÃO. Vitor Manuel. As mansões da filosofia de Praga. Disponível em:
http://lusophia.wordpress.com/2013/03/20/as-mansoes-filosofais-de-praga-por-vitor-
manuel-adriao/. Acesso em 21 abril 2014.
AGRIPPA. Henrique Cornélio. Três livros de filosofia oculta. São Paulo: Madras,
2008.
BORGES. Jorge Luis. Borges oral. Buenos Aires: Emece editores, 1979.
DEBBIO. Marcelo del. Enciclopédia de mitologia. São Paulo: Daemon, 2011. 3ªed.
ECO. Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das
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HOPCKE. Robert. H. Guia para a obra completa de C.G Jung. Petrópolis: Vozes,
2011.
NICHOLS. Salie. Jung e o tarot: uma jornada arquetípica. São Paulo: Cultrix, 2011.
NUÑEZ. Amanda. Los pliegues el tiempo: Kronos, Aión, Kairós. Disponível em:
http://www.artediez.es/exchange/kronos/tiempo.pdf. Acesso em 21 abril 2014.
Rosarium Philosophorum
ANEXO 02
Rosarium Philosophorum