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Alquimia da palavra: Livro das Horas, de Nélida


Piñon

Conference Paper · September 2014


DOI: 10.13140/RG.2.1.5034.0320

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1 author:

Wellington Freire Machado


Universidade Federal do Rio Grande (FURG)
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Alquimia da palavra: Livro das horas, de Nélida Piñon
Wellington Freire Machado (FURG)

1
O presente ensaio propõe uma leitura da obra Livro das horas, texto de
caráter autobiográfico assinado pela consagrada escritora Nélida Piñon. O livro não
segue necessariamente um desenvolvimento orientado por capítulos, mas sim uma
estratégia que retoma a ideia mater incitada pelo próprio título: cada parte surge
como uma reflexão repentina, resultante do exercício ruminante das horas que não
cessam. Este mecanismo de reflexão e autocrítica impulsiona a narradora a uma
profunda imersão memorialística na linha diacrônica que se dispõe ao longo de sua
vida. Dessa forma, o texto, de caráter autorreflexivo, desvela-se como poesia pura
através do vocabulário lapidado com traço fino.
Eduardo Portella, quem assina o prefácio do livro de Piñon, afirma que Livro
das horas indefine-se quanto aos seus limítrofes, de modo que (no livro) "a memória
e a autobiografia, o ensaio e o poema em prosa, assina um superior protocolo de
intenções, que uniria para sempre a narradora ardilosa e a vida do mundo,
superando mesmo os limites do que a autora chama, com propriedade, de real
fingido" (PORTELLA, 2012, p. 7). Nesse sentido, interessa-nos exatamente esta
determinada indefinição para orientar o caminho de leitura que neste ensaio busca-
se percorrer: o da alquimia da palavra.

2
O tempo, grande senhor e agente de transformação, possui papel de
relevância inegável no contexto de Livro das Horas, visto que é o principal agente de
maturação. De acordo com Jean Chevalier, em seu Dicionário de Símbolos, Chronos
é o senhor do tempo e não com rara frequência tem sido confundido com o titã
Cronos, especialmente durante o período alexandrino e renascentista. (CHEVALIER,
2010, p. 308). Este, por sua vez, tem o mesmo papel do tempo: devora, tanto quanto
engendra; destrói suas próprias criações; estanca as fontes da vida [...] “simboliza a
fome devoradora da vida" (CHEVALIER, 2010, p. 307). Na mitologia grega, além de
Chronos, também coexistem os conceitos de Kairós e Aion. Amanda Nuñez,
pesquisadora da UNED, afirma que Aión possui traços bastante perceptíveis que o
distinguem da violência de Kronos
Aión, no es ningún dios genético. Siempre está. No nace, no es
originado. No tiene que sublevarse contra nada, y no tiene que
comerse nada para ser eterno. Tan sólo da. Sus imágenes son
dobles: Por un lado se le presenta como a un viejo. Señor del tiempo
y de lo que no se mueve, de lo que no nace ni muere, de lo perfecto.
Así considerado es el tiempo de la vida. Aión es el tiempo de la vida.
A veces aparece rodeado de una serpiente, la serpiente que se
muerde la cola y que nos indica el eterno retorno del que también
habla Nietzsche como la excepción a la muerte de todo lo que puede.
Por otro lado, también se presenta como un joven que sostiene el
Zodiaco por donde circulan las estaciones. Pues aunque haya
muerte en cronos y cada invierno todo muera, siempre hay
repetición, y cada primavera todo renace. También serpiente del
eterno retorno. Dios del pasado, de la vejez y de la eterna juventud,
del futuro, a la vez. Un futuro y un pasado liberados de la tiranía del
presente de Kronos. (NUÑEZ, 2014, p. 1-2)

Diante da grandeza de Chronos e Aión, Kairós seria uma espécie de


representação temporal terciária, muito próximo do que hoje talvez se entenda como
um deus-menor ou um demiurgo, sendo que este possa vir a significar as
oportunidades que ocorreriam em uma perspectiva temporal exclusiva, uma espécie
de tempo suspenso. Logo, ao passo que Chronos significa a eternidade do nascer e
perecer, Aión registra-se na esfera "del eterno estar y retornar, lo que hay entre
nacer y morir. Entre nada y nada. Lo pleno." (NUÑEZ, 2014, p. 1-2).
Para compreender a grandeza do processo alquímico literário ocorrido no
grande Atanor da narradora de Nélida Piñon, é possível conceber a coexistência da
ação de ambos senhores: Chronos e Aión. Ao passo que Chronos dispõe à
narradora a crueza da realidade devoradora (como a morte dos parentes que tanto
ama e dos amigos como Clarice Lispector), Aión possibilita um grande
amadurecimento a partir da vivência das estações da vida, que se repetem como
boa música que pede para ser ouvida. Nesse sentido, a bagagem de leitura da
narradora constitui-se como uma importante ferramenta de transformação, na
inevitável companhia das horas.

3
Livro das Horas começa com uma importante constatação: a narradora afirma
que não é forte nem poderosa, e que tampouco está na flor dos vinte anos: "Não faz
falta enaltecer o meu retrato que a mãe Carmen outrora pendurou em seu quarto
antes de morrer. (...) Mas quem seja eu hoje, não pude combater as rugas, o
declínio, para lhe fazer a vontade". (PIÑON, 2012, p. 11). A autora admite a ação
potente do grande senhor tempo ― ou Chronos, se preferirmos ―, as rugas e o
declínio são marcas inevitáveis do passar dos anos, efeito selvagem ao qual
nenhum ser vivente pode escapar. Apesar desta consciência, a certeza de que tudo
contribuiu de forma substancial na constituição da pessoa que vive o "hoje": "Não
vivi sem resultados, minha vida não foi inóspita" (PIÑON, 2012:11). Este primeiro
parágrafo inicial expressa ao narratário a consciência temporal, a ideia de que é
possível olhar para trás e lá, neste passado longínquo, encontrar marcas de um
alguém que talvez não exista mais nas mesmas proporções:
Sempre que mencionam em tom de elegia de como era nos áureos
anos, sorrio. Recordo, agradecida, uma trajetória inteira e
ruborizo-me. A beleza, a esta altura, não me lisonjeia. Opto por ser
a heroína das ideias e das ações que desenvolvi, em especial por me
haver submetido ao que o corpo e a imaginação me ditaram.
(PIÑON, 2012, p. 11) grifo meu.

A experiência de Tristão e Isolda, ao prenunciar a morte como destino último


de todos os humanos, permite à escritora experienciar a catarse, o mais sublime dos
efeitos proporcionados pelo contato com a arte. A sensação do sentimento que
carboniza antes de conhecer a finitude, o amor como sentimento inato: "Falta-nos
grandeza utópica. Somos despreparados para a vida e imperfeitos para a ficção.
Apresenta-se como forma radical de viver, e é tão devastador que eu, pobre mortal,
esmoreço por não ser Isolda ou Tristão" (PIÑON, 2012, p. 14). Neste aspecto, a
consciência do leitor eternamente aberto e inacabado, sempre apto para se permitir
ser lapidado pela experiência literária.
Nesse sentido, a experiência machadiana em Dom Casmurro continua a
exercer fascínio e ser objeto de reflexão, sobretudo quanto à ambiguidade que recai
sobre Capitu ser procedente do brasileiro, tal como o compreendemos: “É comum a
pátria mencionar Capitu. A heroína de uma literatura com escasso uso dos
presságios, a que falta o sentido do trágico. Só que, por ser este enredo concebido
por Machado de Assis e pelo frágil Bentinho, impôs-se à imaginação brasileira”
(PIÑON, 2012, p. 14). A autora reflete sobre o tema do amor, da mulher, da traição e
da essência nacional. Há formas de resistir à insinuação de que a mulher tinha o
dom de trair? A companhia de Gravetinho, seu cão e amigo inseparável, serve de
alento para os pensamentos ruminados no silêncio e na fluidez das horas: “Indago o
que o amor representa no universo das minhas convicções. Será meramente
crepuscular? Às vezes, para aliviar o fardo narrativo de Capitu, transfiro para a pobre
mulher a minha insensatez.” (PIÑON, 2012, p. 14).
As reflexões da autora se dão no mais absoluto devir dos afazeres
corriqueiros, como presentear uma amiga e andar na rua, sem deixar-se abandonar
pela infinitude de pensamentos que não deixam de cessar, continuamente. Nesse
fluxo, o tema da traição aflige a autora, que não deixa de pensar na ópera de
Wagner nem em sua tão-querida Capitu:
No palco Tristão se debate. A febre da paixão o incomoda. A partir
de certo trecho, a tragédia, na iminência de eclodir. Reflete um mal-
estar civilizatório. E as implicações advindas de tal desenlace narram
as dores do mundo. Divido-me entre Isolda e a brasileira Capitu,
ambas a serviço da traição conjugal, tema recorrente na literatura,
cujas dores nivelam as emoções de qualquer época. Afogada, no
entanto, nas falsas alegorias, incorro no erro de avançar em temas
arcaicos. E sigo comparando Tristão e Isolda, que esgotaram o
conceito de amor proibido, com Capitu, que não sei a quem amou.
Mas por que relaciono os referidos amantes com a grosseira mirada
contemporânea, como se acreditasse que meras semelhanças entre
histórias criam imediata afinidade? (PIÑON, 2012, p. 15)

Estes momentos de repentina reflexão, que coexistem com a realidade


emulada pelo narrador ― entre seus compromissos sociais e afazeres rotineiros, ―
se dão na manifestação mais pura de fugacidade expressa por kairós. Sobre esta
última manifestação do tempo, Nuñez se questiona "¿Cómo se puede pensar un
cuarto de hora en un minuto y medio? Por kairós. Kairós. Demonio fugaz que
aparece como inspiración y nos lleva a otra dimensión. Momento oportuno, se le
llama a este kairós. Ocasión." (NUÑEZ, 2014, p. 04). Estes momentos oportunos
surgem em todo Livro das Horas, momento de intercessão e coexistência pouco
pacífica entre as três manifestações temporais dadas pelo conhecimento dos antigos
gregos. Estes momentos sublimes de reflexão, permitem à narradora de Nélida
Piñon a consciência de que os personagens da literatura - Capitu, Tristão e Isolda -
se integram à galeria de protótipos, estando sendo sujeitados à fácil reprodução: "A
cultura, mesmo de massa, no afã de popularizá-los, apaga-lhes o vínculo mítico,
descaracteriza-os, logra destruir seu mistério. Uma cultura que aspira destinar
Tristão, Isolda, Capitu, Bento a uma estética lúmpen" (PIÑON, 2012, p. 14).
O papel da literatura no processo de construção do pensamento ― com base
nas experiências perceptíveis na própria esfera de ação do sujeito ― é um fato
notável ao longo de todo Livro das horas. Se a experiência em Tristão e Isolda e
Dom Casmurro auxiliam na percepção e constituição de um olhar direcionado a
temas como o amor, a mulher e a traição, nas páginas subsequentes quem ganha
vez é o mito ― em especial o mito de Narciso ―, que incita a narradora a observar
atentamente a experiência na casa da mãe. Neste aspecto, os objetos e o cuidado
com que sua mãe zela pela harmonia do lar, tornam-se pontos luminosos quando a
autora pensa no tema da harmonia: "Os objetos e os gestos reconciliavam-se entre
si, ensinando-lhes a trilha da beleza. Não parecia censurável defender o belo. Ou
que tal defesa merecesse uma desclassificação moral". (PIÑON, 2012, p. 26). A
mãe, de acordo com seu relato, não era uma mulher vaidosa, mas buscava a via do
meio que equilibrava o corpo e o espírito, regendo o cotidiano "com harmonia" (id).
Fora a mãe a pessoa que auxiliou a narradora a compreender que papel Narciso
desempenhava na trajetória humana:
Também a apreensão do universo grego ajudou-me a interpretar
Narciso, que parecia se encontrar no cerne das manifestações da
vida e da arte. Um mito visto a contemplar-se de forma apaixonada
nas águas do lago, que é o seu espelho. Um cristal líquido que lhe
devolvia a face renovada ao se movr. Uma superfície, propícia à
autocontemplação, induzindo-o a ser copioso nos pormenores
enquando se descrevia. Para que os demais soubessem como ele se
via. Se a vaidade de Narciso é um axioma, resume igualmente o
ideal da perfeição. Pois, além de refutar os que lhe censuravam os
excessos, propagava, belo e impávido, um paradigma estético
inalcançável aos mortais. (PIÑON, 2012, p. 27).

Isto é, a surpresa gerada pela percepção dos encantos próprios tornou por
acarretar em Narciso o enamoramento pela própria imagem. A narradora logra
conceber Narciso dentro de uma outra percepção: "[...] os habitantes de Atenas,
cidade matiz, não passavam de um rascunho, de um modelo inacabado, cheio de
emendas estéticas. [...] Aquele povo estava condenado à decrepitude, enquanto ele,
Narciso, mantinha a beleza imaculada, sem sinais de declínio.” (PIÑON, 2012, p. 27)
A narradora empenha-se em compreender a beleza de Narciso dentro de um
paradigma de perfeição, tendo como base a beleza harmônica encontrada em seu
próprio lar ― fator que a condiciona à absolvição do personagem mítico: "Ao
contemplar as águas, Narciso sempre disposto a imolar-se em troca de fazer crer
aos demais que seu esplendor era um regalo dos deuses. Pois, alçado à categoria
de um deus, era natural que a perfeição lhe ofuscasse a razão" (PIÑON, 2012, p.
28). Nesse sentido, não o ego que relega a razão às profundezas, mas sim a
concepção de si baseada em contraposição a percepção do outro: "E por que não,
se, ao resistir com galhardia ao assédio dos invejosos, via a imagem eternizada nas
águas do lado? A sua lógica jamais previu o desenlace de qualquer iniciativa
narrativa." (PIÑON, 2012, p. 28). Assim, a percepção a partir ― e além ― da própria
experiência condiciona a narradora a uma concepção de realidade além do senso
comum.
Em Livro das Horas é perceptível uma autorreflexividade bastante cônscia. A
narradora admite o efeito de transformação proporcionado pela experiência vivida,
de modo que concebe-se como um indivíduo que vive vários "eus" dentro de uma
vida: "Minha vida mudou. A cada dia sou menos a Nélida que conheci até bem
pouco tempo atrás." (PIÑON, 2012, p. 24). Em praticamente todos os momentos
possíveis há o reconhecimento do papel transformador da arte, seja ela a literatura,
as artes plásticas ou o cinema. Em dado momento admite que aprendeu o valor da
solidão a partir dos livros do velho oeste, que enalteciam a vida no interior, a
realidade perigosa (PIÑON, 2012, p. 24). A brevidade da vida transpassada por
essas obras cinematográficas a lembra a centenária peça de Calderón de la Barca,
La vida es sueño. Reconhece a realidade emulada por escolhas, como o fato de ser
escritora ter-lhe condicionado a um nível de experiências limitado:
Ainda hoje, falta-me a medida com que avaliar o destino do heroi.
Invejo o seu sentido do dever. Quisera às vezes jamais ter sido a
mulher que ama o que há dentro da casa. E que, ao decidir ser
escritora, renunciou à vida nas savanas, nas tundras, no deserto. A
acampar, a viver em tendas varejadas pelo vento. Meu Deus, como
sonho com uma vida que me converta em heroina. (PIÑON, 2012,
p. 24)

Neste caso, a consciência plena de que cada escolha significa uma lista
infinita de renúncias. A presença de Gravetinho e a amizade brindada pelos amigos
são motivos de agradecimento, mas admite que está condicionada a uma realidade
quiçá um pouco aquém das aventuras sonhadas (mas não menos gratificantes):
"Resta-me hoje sair de casa e obedecer a uma agenda pré-traçada. Felizmente,
sinto-me desabrida. Aprendo muito, trago a mochila das ideias e da imaginação nas
costas." (PIÑON, 2012, p. 24).
Ao lançarmos um olhar sobre a bagagem de leitura da narradora, o que se
percebe é uma anima que se regozija nos braços da literatura universal. Como já
mencionado por Bachelard, as horas da anima e as horas do animus em cada ser
humano não pertencem ao mundo dos números e das medidas (BACHELARD,
2009, p. 57). A regozijante leitura em anima de obras da casta de autores clássicos
Eurípide, Sofocles, Hesíodo e Ésquilo, reflete diretamente na escritura em Animus
de masterpieces como Aprendiz de Homero, reconhecido e premiado livro de
ensaios de Piñon. Nesse ponto podemos compreender os resultados da
coexistência de uma anima com um animus no interior do Atanor desta leitora. Estes
processos alquímicos, de significativo valor, conduzem em instância última à
produção de conhecimento, produto de refino mais elevado (se considerarmos a
bagagem de leitura do escritor somado à importância de Chronos, Kairós e Aión
neste processo). Nesse sentido, é importante mencionar que a vitalidade da pedra
filosofal – e por conseguinte a criação do ouro alquímico – ocorre justamente quando
todas as experiências do sujeito se convertem em Conhecimento, nesse caso em
literatura.
Acaso a tragédia de Sófocles tinha por fim atrair mitos e divindades
para o fulcro humano? Para torná-los cúmplices das nossas ações?
O confronto de Antígona com Creonte rompe no entanto os limites
civilizatórios e nos integra ao pensamento grego. Sem a
compreensão de tais postulados incrustados na formação da cultura
grega, e que nos chegaram intactos até os nossos dias, não se
compreenderia um passado no qual Antígona se estriba para
justificar o seu comportamento. Não sendo assim, como esclarecer o
projeto de Homero, ou de seus contemporâneos Hesíodo e Ésquilo,
corados todos pela grandeza? Ou mesmo Eurípides, que, atraído
pela vaidade da perfeição teatral, transformou a história dos
Argonautas, com sua mensagem humanitária de alta significação, em
um drama relativamente superficial, em que Jasão, mero navegante,
algoz e vil traidor de Medeia, torna-se herói, a despeito de levar a
desgraçada mulher a assassinar os próprios filhos. (PIÑON, 2012, p.
35)

Além disso, a experiência em Edipo Rei, significa para a autora parte da


biografia de qualquer brasileiro, visto que a tragédia constitui o ápice do
entendimento que ela – a narradora – tem do próximo: “Sofocles me seduz. Autor de
Antígona, Edipo Rei, Electra, ditou o ocaso humano. Não se vira antes na Grécia
clássica peças com semelhante dimensão.” (PIÑON, 2012, p. 14-15). Como se
percebe ao longo da leitura de Livro das Horas, é vital a importância de tragédia
clássica na formação da cosmovisão deste sujeito: “Ao longo de minha formação
literária, Sófocles e Eurípides abonaram minha vocação. No curso de leitura, eles
iam aos poucos alterando a visão das coisas. Faziam da tragédia um bem
necessário a fim de testar nossa humanidade.” (PIÑON, 2012, p. 34). A história,
antes de ser grega, constitui-se como mimese leal a essência humana, que pode
manifestar-se na Grécia clássica ou no Rio de Janeiro do século XXI:
Sófocles e Eurípides são esfinge. Ainda assim eu os persigo e os
traio com a minha peroração. Leio-os como se fosse contemporânea
deles. Gosto da leitura que fizeram de seu tempo. Um teatro cujo
autêntico campo de ação me modelou. Muitas vezes graças à
imaginação, sentia-me atriz, a ponto de encenar as peças desses
gregos, sem definir contudo qual seria do meu agrado. Para optar ao
final por Antígona, de cuja carne alimentamos brasileiros e
estrangeiros. (PIÑON, 2012, p. 34).

A autora, ao final do livro, afirma que estas leituras, de valor inestimável,


foram vitais para que pudesse escrever Aprendiz de Homero, obra na qual aponta os
devaneios que acometem o escritor e que a literatura consente. A narradora afirma
que fizera um acordo no qual percorreu Micenas, Delfos, escutou Heródoto e
sucumbiu às religiões monoteístas, cujo fascínio corresponde à teologia da
imaginação: “Certos livros resumem quem posso ser ao criar. O Aprendiz de
Homero, por exemplo, realça uma memória literária que espelha leituras,
ajuizamentos, analogias. Instâncias culturais às quais estou atada.” (PIÑON, 2012,
p. 119).
Uma vida em sintonia com a literatura proporciona a esta leitora um processo
contínuo de refinamento, agindo como o alquimista, que ao contrário do cientista,
“tão logo termina uma destilação, recomeça misturando de novo o elixir e a matéria
morta, o puro e o impuro, para que o elixir aprenda por assim dizer, a libertar-se da
sua terra.” (BACHELARD, 1988, p. 73). Ao observar as confissões da narradora em
Livro das horas o que se percebe é exatamente este modus operandi alquímico
descrito por Bachelard: não importa continuar o processo de refinamento, mas
sempre recomeçar e reconhecer que a obra nunca está acabada.

4
Bachelard, ao discorrer sobre a união do Rei com a Rainha nas doze figuras
do Rosarium Philosophorum, relembra que ambas forças reais reinam no mesmo
psiquismo, sendo majestades das potências psicológicas que, graças à Obra hão de
reinar sobre as coisas. De acordo com o autor, a androginidade do sonhador vai se
projetar numa androginidade do mundo: "Aqui, igualam-se dois devaneios de cultura.
Mantemo-nos em equilíbrio de devaneio apoiando-nos nas duas transferências
cruzadas que seguem as projeções do animus sobre a anima e da anima sobre o
animus." (BACHEALRD, 1988, p. 79).
A comunhão do Rei com a Rainha, em quatro das doze figuras, são tão
perfeitas que os limites do corpo de ambos já não são mais perceptíveis. Nesse
sentido, a androginidade não se oculta em uma animalidade indistinta, nas origens
obscuras da vida: "Ela é uma dialética do apogeu. Mostra, vindo de um mesmo ser,
a exaltação do animus e da anima. Prepara os devaneios associados do
supermasculino e do superfeminino." (BACHELARD, 1988, p. 75).
Ao compreendermos o Livro das horas dentro dessa perspectiva, logramos
detectar os momentos onde ocorrem a junção da Leitora com a Escritora, e a partir
daí ― tal como no Rosarium Philosophorum ― a constatação de não poder-se mais
distinguir onde começa uma e termina a outra. Assim, a anima que reveste a Leitora
se entrelaça ao Animus que habita a Escritora, em um magnífico exercício de coito e
conjunção, ocorrendo o milagre da Androginia. Este processo ― como já
mencionado ― se dá no interior do Atanor, aquele vaso hermeticamente fechado
onde ocorrem as transformações, culminando, como resultado final, em uma
alquimia da palavra, graças à união da anima com o animus. Neste aspecto, a
eficácia e a percepção da literatura desde uma perspectiva alquímica: A criação
literária só se dá a partir de uma tríde indissociável: A experiência do sujeito, a
leitura e a escrita. O físico, neste processo, não é nada menos do que um recipiente,
por onde se dá toda a manifestação.
Assim, pode-se afirmar que a narradora de Nélida Piñon encontrou os meios
de constituir sua verdadeira pedra filosofal, transmutando de estado em estado (a
partir do exaustivo exercício de viver com sabedoria cada uma das horas de sua
vida), de grau em grau (errando, tentando e logrando seus objetivos), de condição
em condição (leitora, produtora de conhecimento), de polo em polo (no aconchego
íntimo ou na Academia Brasileira de Letras), de vibração em vibração (aceitando a
mudança como processo e mudando de opinião). Essa experiência, por fim,
caracteriza a verdadeira transmutação hermética expressa pelo Caibalion: a Arte
Mental, como instância máxima do aprendizado, materializada alquimicamente no
instrumento de trabalho do escritor: materializada no exercício da palavra, em
conexão perfeita com o cosmos.

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ANEXO 01

Rosarium Philosophorum
ANEXO 02

Rosarium Philosophorum

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