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A máquina de ser - contos

O livro é composto de 24 contos, um número de valor simbólico em país onde o


hábito de depositar a fé no jogo do bicho leva à casa do veado. Veado, imagem tomada de
empréstimo para traçar um paralelo grosseiro entre o comportamento do animal do mato e
do homem que se afeta por outro homem. Pode sim, ser uma referência residente aos olhos
de quem quer ver o que o texto não permite. Fato é que a obra de Noll tem sido lida por
críticos que se lançam sobre a homoafetividade na literatura. Mesmo se tomada apenas “A
máquina de ser” posso trazer à tona este aspecto, mas não é meu interesse, pois me
interessa muito mais os corpos desabitados.
Antes de seguir adiante e demonstrar como esta máquina de ser perfura todo o livro,
acho interessante chamar a atenção para a variedade de narradores de seus contos. São
eles homens e mulheres, personagens ou não das histórias contadas, ou, em alguns casos,
as duas coisas ao mesmo tempo. É válido notar, e apenas faço uma observação em relação
ao fato, que as narrativas que recebem a voz de uma mulher são afetadas pelo esteriótipo
da sintaxe feminina, o que levaria a uma polêmica sobre o fato do homem ter propriedade
sobre o universo da mulher, a ponto de s colocar como sua consciência.
Para não deixar solta esta observação, vou exemplificar o que estou dizendo. No
conto Marabá, a narradora é uma mulher, que inicia a sua história relembrando fatos
ocorridos na infância. Entre eles, o de ver seu pai chegar em casa, trocar de roupa, ser
atendido pela mãe, que o conduz à cama. Não há na narrativa nenhuma indignação na voz
da narradora afetada pela submissão dela e da mãe. Em outro autor poderíamos não dar
atenção ao fato, pois assim, as muitas vozes femininas ainda se colocam e são colocadas.
Porém, há de fato uma atrofia da consciência dessa narradora, quando colocada ao lado
das vozes masculinas.
Essas vozes masculinas descrevem com afetação o universo dos homens. Todos os
fatos são perturbados pelas minúcias deste universo. No conto “Monges”, por exemplo, o
narrador, um homem que fala em primeira pessoa, descreve o instante em que sentado na
praça de alimentação, “olhava cada coisa como se nada fosse apenas um detalhe” (p. 85),
a ponto de, em certo momento... diz o narrador: “abaixei a cabeça e descobri uma ereção
por baixo de minha calça em tom gelo, tecido a sofrer também de alvura. Eu tinha entrado
no shopping vestido de calça bem grafite. Senti que aquele instante imenso ainda
prosseguia, que ia indo tão longe, e tanto e tanto, que a minha braguilha deu um soluço
formando uma flor úmida na sua superfície” (p. 86).
Ou seja, no trecho citado percebo como é capaz de se apropriar de detalhes.
Detalhes que não é capaz de perceber quando toma emprestado a consciência de uma
mulher para dar matéria às suas histórias. E isso não é um posicionamento político de
minha parte, o de achar que o homem não é capaz de ser mulher quando bem quer, Mia
Couto faz isso muito bem. Me demorei nesse aspecto por achar que é o único ponto fraco
de seu livro de contos.
Noll é surpreendente. Essa foi a primeira vez que me deparei com um de seus livros.
Um livro de contos, que poderia até ser um romance, posto que é tomado pela unidade
temática. Como se, e aí vou chegando próximo ao que propõe o título do livro, o homem
fosse uma máquina vazia, habitada ocasionalmente e ocasionalmente esvaziada, em
contato com o mundo por intermédio de uma lente. Suas personagens são vigiadas pelo
narrador, que é uma câmera, que faz cortes, panorâmicas, seleciona os espaços e encurta
as passagens de um cenário a outro. Mas as personagens são também vazias, melhor, são
temporárias, efêmeras. É impressionante a quantidade de corpos mortos nesses seus
contos. Não raro um homem acorda ao lado de um corpo sem vida. E, não raro, esse corpo
sem vida é deixado em cima de uma cama, enquanto o narrador personagem perambula
pela cidade.
No primeiro conto, “No dorso das horas”, Noll confunde vida e espetáculo, as lentes
das câmeras e dos olhos. Palavras e expressões descontextualizadas já conduzem a este
caminho. São exemplos delas: imagem, documentário, iluminação especial, a câmera
focava, a câmera me seguisse, aparato de som, filmagens e etc. Vamos ao conto:
O que vemos é uma cena - não tem como escapar dessas expressões - onde o
homem descreve como fora conduzido a atuar dentro de uma casa desconhecida, sob o
comando de um diretor, vazio de suas preferências ou de sua consciência e surpreendido
pelo enlace amoroso com a própria filha, médica. O que isso seria? Uma projeção erótica
com uma psiquiatra, a fuga para uma situação forjada depois do pai ter violentado sua filha?
São muitas as possibilidades. Noll dirige a narrativa, mas não completa os seus sentidos.
Faz isso por intermédio do leitor.
Percebo que este primeiro conto coaduna todas os outros. Traz a ideia do
homem-câmera, um homem-máquina. Vazio, guiado por uma voz externa, confuso,
passageiro. Traz o desconforto gerado pela relação pai e filha, mais na frente pelo
vivo-morto; sonho-realidade; tempo-espaço etc.
É importante destacar que essa alusão à câmera, ao homem-máquina, toma de
empréstimo os dados da realidade: a dos meios de comunicação - do cinema, da televisão -
porém, toma de empréstimo muito mais a realidade que nos alcança como homens
contemporâneos, vazios de sentido, homens sem tempo, sem espaço. Homens oníricos. O
paralelo entre o formato de suas narrativas e os sonhos é inevitável.
Primeiro porque os contos, e isso é próprio dos contos, condessam uma história
estendida, em poucas linhas. No caso de Noll, esse efeito de condensação é ampliado
porque o fluxo de pensamento passa imediatamente a ser ação.

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