Você está na página 1de 67
CAMILLE PAGLIA PERSONAS SEXUAIS Arte e decadéncia de Nefertite a Emily Dickinson “iaducion MARCOS SANTARRITA 38 ramnpressio 1 SEXO E VIOLENCIA, OU NATUREZA E ARTE No principio, era a narureza. Pano de fundo a partic do qual ¢ contra 0 qual se fotmatam nossas idéias a respeita de Deus, a natureza continua seado supremo problema moral. Nao podemos esperar entender 0 sexo ¢ as identi- dades sexuais bumanas cnquanto ado esclarecermos nossa atitude em relagio 2 ela. O sexo € um subconjunto da namreza. Sexo € 0 natural no homem. A sociedade € uma constiugae attificial, uma defesa contra 0 poder da na- tureza. Sem sociedade, estariamos sendo jogados de um Jado para outro nas tem- pestades do mar da barbirie que € a nazuteza. Podemos alterar essas formas, Jenta ou subitamente, mas nenhuma transformagae na socicdade vai mudar a natureza. Somos apenas ums dentre 2 multidao de espécies sobre as quais a na- tureza exerce indiscriminadamente sua forca. A natureza tem um programa mes- tte que mal podemos conhecer. ‘A vida humana teve infcio na fuga e n0 medo. A religiio surgiu de rituais de propiciacio, sortilégios para aplacar a violéncia dos elementos. Até hoje, sio poucas as comunidades nas regides crestadas pelo calor ou agrilhoadas pelo ge- Jo, © homem civilizado esconde de si mesmo a extensio de sua subordinacio Anatureza. A grandiosida cultura, a consolacao da religifo absorvern suas ~ arengSes € conquistam sux £6, Mas, basta a natureza dar de ombros ¢ tudo cai em fuinas. Incéndios. inundacdes, raios, tufoes, futacdes, vulcdes, terremotos — em qualquer parte, a qualquer hora. A tagédia abate-sc sobre os bons ¢ os maus. A vida civilizada exige um estado de ikusio. A idéia da benevoléncia tlt ‘ma da natureza ¢ de Deus € 0 mais poderaso dos mecanismnos de sobrevivencia do homem. Sem ela, a culeura zeverteria ao medo ¢ ao desespero. Sexuuidade ¢ erotismo formam a complexa intersecco de nacureza ¢ cul AS inistas supersimplificam grosseiramente 0 problema do sexo quan- estio de convengao social: é s6 reotdenar a sociedade, purificar os papéis sexuais, que reinario a felici- o femin ao como todos os movimentos so- sseau, O contrato social (1762) esti acorrentado”’, Colocando a benigna navureza romantica contra a sociedade comupta, Rousseau pfoduziu a linha progressivista na cultura do século XIX, para a qual a teforma social eta o meio de ulcancar o Parefso na terra. A bolha dessas esperancas foi cstourada pelas catistrofes de duas guetzas mundiais, Mas o rousseauismo tor- now a renascer ne geraco do pés-guerta dos anos 60, da qual se desenvolveu 0 feminismo comemporineo. Rousseau rejeita o pecado original, a visio pessimista do cristianismo de gue o homem nasce imputo, com ume tendéncia para o mal. A idéia de Rous- seau, que deriva de Locke, da bondade inara do homem levou 20 ambientalis- mo social, hoje a ética dominante nos sesvigos sociais, cédigos penais ¢ terapias behavioristas americanos, Pressupde que a agressio, a violencia ¢ 0 crime resul- tam da privagfo social — um baitto pobre, um lar mim, Assim, 0 feminismo culpa a pornogratia pelo estupro, ¢, pot um raciocinio presuncosamente cizcu- lat, interpreta os suttos de sadismo como uma reacdo violenta contra o proprio feminismo. Mas estupro € sadismo tém estado presentes em toda a histétia, e, em certos momentos, em todas as culturas. Este livro adota a opiniao de Sade, © menos lido dos grandes esctitores da literanura ocidental. Sua obra € uma abrangente critica satitica a Rousseau, es- crita na década seguinte & primeira experiencia rousseauista fracassada, a Revo- lucdo Francesa, que texminou nao em pataiso politico, mas no inferno do Rei- nado do Terror. Sade segue Hobbes no Locke. A ugressio ver da naturez: € o que Nietzsche chamard de vontade de poder, Para Sade, voltar 2 naturcza (c imperativo tomantico que ainda impregna nossa cultura, dos conselheitos 8 xuais 20s comerciais de cereais) era dar rédea solta 4 violéncia ¢ ao desejo. Eu concordo. A sociedade nfo € a ctiminosa, mas a forea que contém crime Quan. do os conttoles sociais enfzaqueccm, a crucldade inata do. homem yem 2 tna “0 estirprador nao é crado por mds influéncias sociais, mas por uma falha de “ condicionamento-soeial-“Aé feiniaistas, buscando’ elimitiar do” sexo as télacbes de poder, colocatam-ée contra a propria natureza. Sexo & poder, Identidade é poder. Na cultura ocidental, nfio ha relagdes que nfo sejam de exploracao, To- dos matam para viver. A lei natural ¢ universal de criacio a pattir da destruicdo opera tanto na meate como na maréria. Como afirma Freud, herdeiro de Nietzs- che, identidade € conflito. Cada geragto passa scu arado sobze os ossos dos mortos. O liberalismo modetno softe de conttadigées nao resolvidas. Exalta o indi- vidualismo e a liberdade, ¢ sua ala radical condena as ordens sociais como op res sivas. Por outro lado, espera que 0 governo seja 0 provedor material de toc ‘bute ‘no, mas exige que ele aja como uma mae que amamenta. O fe essas contradigdes. Encara toda hierarquia como feptessiva todo aspecto negativo na a 6 saconucial nv Jaem seu luga

Você também pode gostar