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Escola-Favela e Favela-Escola:

"Esse menino não tem jeito!"

Rodrigo Torquato da Silva

Escola- Favela
Favela- Escola

ESSE MENINO
Editoração e capa
Fátima Kneipp NÃO TEM JEITO

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Rodrigo Torquato da Silva

S583e

Silva, Rodrigo Torquato da


Escola-Favela e Favela-Escola: "esse menino não tem jeito!" / Rodrigo
Torquato da Silva. - Petrópolis, RJ : De Petrus et Alii ; Rio de Janeiro :
Faperj,2012.
208p.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-61593-49-0

l. Educação. 2. Comunidade e escola. 3. Cidadania. 4. Vida comunitária.


5. Integração social. I. Título.

12-1442. CDD: 371.19


CDU: 37.06
12.03.12 16.03.12 033771
DPetAlii

Apresentação
Regina Leite Garcia

A mim foi solicitado fazer a Apresentação do livro de Rodrigo Torquato

da Silva. No entanto opto por fazer a apresentação do autor do livro e não da obra,

por m,e parecer importante conhecer uma trajetória de vida que ajuda a melhor
iompreender a obra, cujo título é

ESCOLA-FAVELA FAVELA-ESCOLA

Esse menino não tem jeito!

Trago a história do menino que tantas vezes a escola avalioti" esse menino

não tem jeito", e se não tinha jeito, a escola fazia o que sempre faz com aqueles que

não consegue "dar um jeito" - expulsa. O que não contavam as inúmeras escolas

pelas quais Rodrigo passou mas não ficou, pois não o deixaram ficar, era que, de-

safiando as avaliações das escolas, tratava-se de um resiliente. Outros, tantos outros,


que viveram como Rodrigo, a rejeição da escola, uns foram ficando pelo caminho,

.issumindo a culpa por seu próprio fracasso, outros, entrando na bandidagem, e cada

vez um maior número, foi caindo nas drogas.

Vamos então à história de superações de quem a cada obstáculo que a vida


IIle coloca, surpreendentemente se fortalece e vai em frente, como a se preparar

p.ira os novos desafios, que este parece seu destino.

Alexandre, este era o nome de batismo de Rodrigo, nasce de uma jovem

1I11,1st'criança mãe portuguesa com baixíssima escolaridade e de um pai nordestino,

1111('IIIOITCaos trinta anos, quando O quinto filho, nosso Rodrigo/ Alexandre, ainda
~I.:1:1l('Olllr:IV:I11:1 h:II'I'ig,I d,1 1II,Il',Vendo-se sem mínimas condições de criar os cin-
CII jtlllo.~ S('III qll,tlqlll'l' II'IIII~II IlIilll:ll,d I' III('SIIIOprsso,tI, a 11lk resolve dar todos

1\ ."~II11I1 111''1"1'1111
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12 Escola-Favela e Favela-Escola Apresentação - R.L. Garcia 13

pela mãe adotiva, que o faz, com medo de que a verdadeira mãe se arrependesse Mas a vida de Rodrigo é cheia de atalhos desafiadores que, para alguns
e quisesse de volta o já tão amado Rodrigo, seu nome por adoção. O casal de pais provocaria mudanças radicais de percurso, ou mesmo desistência. Não para ele,
adotivos morava na Rocinha e lá Rodrigo foi criado como filho, a quem dão uma com a sua sede de viver, melhor diria, de conquistar.A cada passo ou obstáculo, um
irmã também adotada pelo casal, até hoje analfabeta. acumular de forças, a ampliação de sua capacidade de negociar com a vida e com

os circunstantes.
Se insisto em afirmar terem sido todos analfabetos ou semi-analfabetos à
sua volta no início de sua vida, é para comprovar minha afirmação de que Rodri- Assim aconteceu quando, aos 15 anos se vê pai, se casa, o que o foi levando
go, desde sempre, contraria o esperado por uma certa teoria explicativa que prevê a já ter três filhos aos 24 anos e, hoje, aos 40 anos já ser avô, ao mesmo tempo em
fracassos inevitáveis face a certas circunstâncias ditas desfavoráveis. Afinal, Rodrigo ue acaba de ter uma nova filha num segundo casamento.
fazia parte do grupo que a escola considera "não terjeito". Cercado de analfabetos
A vida de Rodrigo é tecida com acontecimentos que uns se dão cedo
pelas pessoas mais importantes em sua vida, o esperado seria que Rodrigo também
demais, como se casar e ser pai aos 15 anos, enquanto outros só acontecem mais
se mantivesse por toda a vida, analfabeto. Assim aconteceu com sua irmã adotiva,
tarde do que costumam acontecer ao comum dos mortais, como ir aprendendo a
analfabeta até hoje, embora ao que parece, muito feliz. Para seu pai adotivo, o im-
I T com alguns vizinhos generosos, vez que da escola foi sendo expulse tantas vezes,
portante sempre foi trabalhar desde cedo, ser trabalhador, vencer pelo trabalho, sem
até desistir de insistir. Se conquistou um diploma de ensino fundamental completo,
dar qualquer valor ao saber ler e escrever. Apesar de seu filho letrado, dizia não lhe
o que à época não se lhe colocava como possibilidade ou mesmo aspiração, se deve
fazer falta saber ler e escrever, pois contava com muito orgulho ter sido ponteiro
.1meninada da Rocinha que lhe disse ser possível fazer um exame supletivo, graças
de prédio de bacanas e embora sem saber ler, ter conseguido entregar em cada
.1 uma lei de Darcy Ribeiro e que, com os conhecimentos que já tinha adquirido
apartamento a correspondência de cada família. Estratégias de sobrevivência, diria
p 'Ia vida, sem dúvida seria aprovado. E o foi. Foi também na Rocinha que lhe foi
de Certeau.
dit pelos participantes do Vestibular para Negros e Carentes, lhe ser possível com
Possivelmente por influência do pai, aos 7 anos já trabalhava como engra- OS onhecimentos que revelava ter, entrar na Universidade, fazendo o vestibular.
xate, vendendo cocadas, sendo carregador nas feiras. Até que, por acasos que lhe Assim fez, assim conseguiu ser aprovado para a Universidade, para o Curso de Ser-
foram favoráveis, vai trabalhar como office boy numa empresa, em que lhe empres- viç ocial. No entanto, no dia da matrícula, a partir de uma conversa casual com
tavam livros e ele começa a descobrir o prazer da leitura, lendo literatura, poesia e uma professora, até então desconhecida, que conclue ao ouvir de Rodrigo o que
política. Prazer que ganhará um sentido maior quando se liga à Igreja Metodista p,'ct .ndia fazer no curso - mas o que você querjazer é na pedagogia que vai encontrar.
Tradicional, onde é apresentado à Teologia da Libertação que o leva a Leonardo
E Rodrigo se matricula na Pedagogia, num curso novo que a Universidade
Boff, Frei Beto, chegando a Marx, que o leva aos sebos, onde pode comprar o
(:,1111:1 Filho estava abrindo no Shopping Down Town e vai fazendo o curso até
Capital e outros autores marxistas, que enriquecem e aprofundam as conversas e
euquau dava, enquanto ns uia conciliar o estudo e o trabalho, pois ele era o
as vivências na Igreja e na Rocinha, onde sempre viveu. E assim vai se fazendo o
,11,IVI'i,' Ia R..ocinha, om o qll(' se I rcvivia. m Ih r horário para o chaveiro
militante da luta por um mundo melhor, um mundo em que, como ouvimos há
1.1.1(, 'I.'is 11 .só I o li.i « 111.1,11 ,111' 111 1;1 tarde.Assim vai levnnd p rí d
pou da lisa, figura mblemática da Rocinha, um mundo etn que o pOIlO da Ro i/1/111
.111 (""n, pois 110 V' 111'11111111 1I dllllll'lIl1 I.i 11,111 d.1 ,I M.I' I IlII 11I ÚI.II 0111,,( ('I ('111
t:lil' I'I//r/ (I nuuui« o/ll'idcl.
I' ~(.;(/
14 Escola-Favela e Favela-Escola DPetAlii

sua vida, uma porta inesperada se abre e duas professoras lhe oferecem uma Bolsa
Introdução
Integral para o Projeto Renascer, pois, segundo elas, ele teria mais condições de

entender e ser entendido pelos alunos e alunas do projeto. Tudo vai bem até que os

garotos vão se alfabetizando para usar a Internet para buscar informações que não

estavam previstas nem desejadas pelo Projeto ... e Rodrigo perde a Bolsa. Perde, mas

por pouco tempo. Pois, como por milagre, e se milagre é o surpreendente, neste

momento acontece um milagre, pois um anjo salvador lhe diz: se o seu orgulho per-
mitir... fazemos uma vaquinha e pagamos a sua dívida.

Não só .pagaram a dívida, como todo o restante para que o curso pudesse
ser levado até o fim. E como por milagre, Rodrigo acabou o curso, terminando a
Graduação.

Assim, com idas e voltas, trancos e barrancos, a vida de Rodrigo foi acon-
tecendo. Da Graduação faz concurso e é aprovado tornando-se professor da rede

pública de Niterói, ao mesmo tempo em que faz o Mestrado na UER] e em


seguida, o Doutorado na UFF. Do Doutorado sai uma brilhante tese, com que se

titula Doutor, para imediatamente fazer concurso para professor da Uff em Angra
dos Reis. No decorrer dos processos de investigação, orientação e debates sobre a

presente tese, pude compreender que, ao fazer tal pesquisa, criava, ao mesmo tem-
Com esta biografia, nenhuma surpresa quando lhe foi dito por Ana Clara p ), outra possibilidade de fazer-me pesquisador. Tal afirmativa é representada pela
Ribeiro em sua Banca de Doutoramento, tratar-se de uma pesquisa visceral. E não unagem-epígrafe acima, que aqui se configura uma imagem temática, ou, mais que
é visceral a relação de Rodrigo com a vida?
ISSO, uma imagem metodológica desta outra forma de pesquisar "com" os cotidia-

1I0S das classes populares.

Na perspectiva desta pesquisa, o sujeito do conhecimento, isto é, o sujeito

p 'S [uisador, está sempre mais do que diante de um objeto de pesquisa. A favela ou
.IS 'S .olas investigadas, no caso, não são exteriores a ele, Ocorre uma mistura que

envolve hist' rias locais e bio rafia em um processo complexo de dentro-fora-den-


11\) ~ill)1IIl5I1' . Isso impõe outro tipo de narrativa de pesquisa que não se encontra

,11111'1.1111 'lIl ' dispouiv«] 11,1\ hlhltlll",di:ls I' .fcr .ntcs a .stc t 'ma. A pr blcrnatização
d,' ,I I\-I.I~,II) \111('1111 111'1' 111' I , ,I ,11.1\,111 d,' 11111 IIOVO lel/II//\ (,'<'lI i( o, p,lI.1 .tI('1I1
16 Escola-Favela e Favela-Escola Introdução 17

dos já existentes, o que se consolida a partir da assunção de outra forma de fazer As escolas pesquisadas têm peculiaridades, como, por exemplo, o fato de
pesquisa e de escrever a própria pesquisa. istarem situadas em um local que atende a alunos(as) de favelas "dominadas" por

diferentes facções criminosas. Já a favela estudada, e que serve de base comparativa


A valorização do pesquisador, como alguém que sustenta a sua escrita na
para as análises das sociabilidades encontradas nas escolas de outros contextos, está
experiência das suas circunstâncias existenciais, faz com que ele valorize suas vivên-
in rustada na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em território urbano, provo-
cias e as trate como nexos dos contextos em que está inserido. Ao fazer isso, elege as
cando múltiplas especulações. Admito que tais especificidades não se encontram
entranhas das suas experiências, ou seja, elege as próprias vísceras, que amalgamam
~'1l1todas as escolas públicas dos municípios, nem em todas as favelas do estado.
a sua biografia aos contextos locais investigados. Em um momento ele é o narrador,
li irérn, é possível perceber regularidades discursivas, presentes nas falas de algumas
em outro, a argamassa dos contextos observados.
pr fessoras de escolas públicas e, também, entre alguns moradores da Rocinha, que
o presente trabalho visa a apresentar resultados, ainda que não plenamente pnrticiparam da pesquisa, acerca de lógicas de conhecimentos e de sociabilidades
conclusivos, da minha pesquisa de doutorado. A problemática central, na qual acre- li li ' operam na escola e na favela.
dito estar a originalidade da tese, é a ideia de que a favela ocupa um espaço den- ,
Diante do que temos assistido - escolas fechadas temporariamente por não
tro da escola. Nesse espaço, mantém valores, culturas, e, sobretudo, epistemologias
li'!' '111garantias do estado para o pleno funcionamento; professores em entrevistas
construídas a partir das aprendizagens que a favela possibilita.
para s jornais televisivos, com seus rostos em penumbra e suas vozes distorcidas,
Assim, demonstro que há espaços em algumas escolas que são controlados u.irrando situações de violência no cotidiano - é possível verificar uma constância
pelos alunos(as) e/ou regulados pelas lógicas de uma sociabilidade violenta' oriunda dI' situações semelhantes em várias escolas públicas do Rio de Janeiro, quiçá do
das favelas. Nesse sentido, o poder que regula as relações e impõe rotinas na favela IIl.lsil.A relevância deste estudo está não somente na compreensão dos enredamen-
também se faz presente, em graus de intensidades diferentes, dentro da escola, pro- I1.'1 das sociabilidades da favela no cotidiano escolar, mas na tentativa de entender o
vocando tensionamentos que redirecionam os caminhos e as expectativas almejadas 11.10saber lidar com tais situações.
pelos projetos e pelos currículos oficiais.
Faz-se necessário ressaltar que tanto os moradores das favelas quanto as
Embora esteja ciente de que a pesquisa pauta-se predominantemente no !,Iokss ras das escolas públicas dessas regiões estão marcados pelo medo. Medo de
estudo de especificidades de escolas públicas de dois municípios e na favela da .IIIW.lp físi a, do crime contra a pessoa. As pessoas têm medo de morrer, de per-
Rocinha, entendo que a problemática em questão não se limita a um fato isolado. .11'1seus patrimônios na favela, com as constantes expulsões de famílias. O medo
Acredito que este trabalho extrapola para outras realidades, na medida em que não 11.\0( simpl smente uma produção do imaginário ou uma produção da mídia. O
estou trabalhando somente com singularidades. O singular estrito é aquilo que só do '. '011 reto. É sensato ter medo. Só quem não se encontra
1111 nos padrões e nas
acontece uma vez em um lugar. Penso que não é o caso. Trago uma reflexão que é IIIIUh,'o s psíquicas ditas normais não tem medo. Penso que, realmente, a mídia
um ponto de partida, mas que não se esgota em si mesma. 1I1I!'ldl(.lllluit as is: s, M:1S o me 1 da sociabilidade violenta é o medo de mor-

I. dI' 1ll'llkl' S~'lISIWI'II'IIII' ,11 .1111


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18 Escola-Favela e Favela-Escola Introdução 19

pedagogicamente como deve ser o comportamento. A violência pode surgir por das favelas e das escolas. Com isso, as ações assumem significados em função das

parte de qualquer bandido contra um morador comum da favela, bastando que o . mpreensões que cada um tem dos seus fazeres, das suas experiências existenciais,

primeiro interprete uma ação deste último como um "desvio" da conduta imposta. das suas inserções no mundo. Isso sugere a existência de estranhamentos entre pro-
l" .ssores e alunos, que dificultam, muitas vezes, as relações de ensino e aprendizagem
o medo, muitas vezes, transcende os "muros" das favelas e chega ao coti-
naquilo que se propõe a escola, pois os que ali se encontram foram socializados a
diano da escola. É possível perceber que tanto os moradores da favela e das classes
partir de sociabilidades diferentes. E não conhecem nem aprenderam a lidar com as
médias, quanto os profissionais das escolas e os estudantes estão submetidos a uma
diferentes sociabilidades que se enredam com o cotidiano da escola.
imprevisibilidade na organização da própria rotina. Saímos de casa e temos menos

garantias de retorno do que há vinte anos. Entretanto, penso que há uma diferença ,A partir das observações e das anotações de campo, indico pontos de in-

na intensidade dos medos entre os que moram nas favelas e as classes médias, visto Icrl cução entre as lógicas de sociabilidades, oriundas da favela, e os currículos pra-

que a possibilidade de quebra das rotinas pela violência, na favela, é mais constante t icndos nos cotidianos das escolas públicas em que atuei como professor das séries
f
do que nos espaços controlados pelo poder oficial. rui .iais do ensino fundamental. Para isso, apresento algumas situações-exemplos

iv .nciadas com o cotidiano (ver: GARClA, 2003) dessas escolas, a partir das quais
Uma das motivações que me levaram à pesquisa foram os próprios confli-
u-llito e problematizo acerca das imposições de projetos universalizantes que, de
tos vivenciados na minha prática docente e as angústias que compartilho com os
I vrtn forma, impõem homogeneizações de padrões de sociabilidades e de compor-
meus pares professores, professoras e, também, com alguns moradores da Rocinha.
1.1111 ·ntos violentos, padrões de pensamentos e de conhecimentos, que podem ser
Muitas são as situações-exemplos que abordarei mais adiante e que me provocaram
i uustatados em situações simples.
inquietudes e indagações, nas quais as respostas prontas e generalizantes deixaram

de fazer sentido. Como construir instrumentos metodológicos para compreender A partir daí, dá-se a estrutura geral da tese: 1) Favela, escola e sociabilidades:

e discutir os impactos da sociabilidade violenta no cotidiano e nos currículos pra- II j IOS ondutores de uma problemática; 2) Contextos e referentes de uma história

ticados da escola? 111.d dita; 3) Momentos e situações: os nexos empíricos-metodológicos de uma


l'I'III/li,l'(1 viscerai',
Percebi que as referências e categorias com as quais sustentava minhas

práticas e meus discursos foram desequilibradas, pois a tentativa de compreender o A redito que essa estrutura reforça as vivências que serão mencionadas,

sentido das práticas e das lógicas de pensamento e de construção de conhecimen- 1'"1 p -rrnitc constatar que as classes populares da favela impõem, a contrapelo, os

to com as quais operam os grupos oriundos de favelas tornou-se a força motriz I 11 v.rlor 'S se iais e outros tipos de concepções morais, além de suas manifestações

das minhas reflexões. Para compreender o cotidiano da escola, faz-se necessário, I uluu.ri«, linguagens específicas do morro, entre outros elementos. A relação dialé-

também, considerar os processos de formação de nossas subjetividades, em seus 1/1 I I 1II I,' os conflitos e tensionamentos tece currículos distintos daqueles esperados

múltiplos espaços-tempos. I 1.1 I" 111.1, Muitas v 'Z .s, tnis conflitos são desconsiderados enquanto elemento

Dessa forma, as ações cotidianas vivenciadas por cada sujeito na scola são
.struturn Ias' cstruturant S 0111 as dif r .nt si' gi ':)~ dm divers s cotidianos '111
20 Escola-Favela e Favela-Escola DPetAlii

primordial para compreensão das práticas e das lutas cotidianas das classes popu- Favela, escola e sociabilidades:
lares. Porém, o resultado desse processo impõe mudanças nos fluxos das rotinas e os fios condutores de uma problemática
transformam o desenho prescritivo de uma realidade escolar, que visa a se manter
por meio de normas e de discursos institucionalizados.

Os elementos fundamentais que constituem este capítulo, dentro da pers-


Defendo, portanto, a tese de que existe uma relação ambígua e ambivalente
IH' .tiva da pesquisa visceral, são os dados biográficos de um sujeito-pesquisador que
de extrema complexidade, com a qual nós, professores e profissionais da educa-
1('1l1na própria biografia as vivências das circunstâncias existenciais e humanas, em
ção pública, não sabemos lidar: o enredamento de um tipo de sociabilidade violenta,
Iudas as dimensões que o constitui. Ou seja, os fios condutores da problemática em
propagada pelo tráfico de drogas das favelas, que não só está presente no cotidiano
questãosão os sujeitos nas suas experiências sociais, emocionais, espirituais, políti-
escolar, mas, 'sobretudo, se impõe, em muitas situações, ao poder constituído. Isso
,.IS, .ulturais e econômicas.
~eforça, nos estudantes dessas classes populares, a formação de uma mentalidade
f
vulnerável aos comportamentos e valores difundidos pela lógica dos "comandos" Devo esclarecer, primeiramente, que, ao acrescentar uma autobiografia em
de traficantes, aos quais muitos brasileiros estão submetidos. 11111iapitulo de uma tese de doutorado, não busco simplesmente uma autopromo-

,.10, mas, sobretudo, reforçar, fazendo coro com Ferraço (2003), que
Cabe lembrar que, ao escolher o tema desta pesquisa, o que estava emjogo
[...] Se estamos incluídos, mergulhados, em nosso objeto, chegando,
não era somente uma questão de reconhecer-me cientista social e/ou pesquisador,
às vezes, a nos confundir com ele, no lugar dos estudos "sobre", de
mas compreender a própria prática, como professor de primeira à quarta série (ou fato, acontecem os estudos "com" os cotidianos. Somos, no final de
primeiro ao quinto ano), de escola pública, e, também, como morador da favela tudo, pesquisadores de nós mesmos, somos nosso próprio tema de

da Rocinha, nascido e socializado nesse lugar. Acredito que para a escolha de um investigação. [Assim,] [...] no lugar de perguntas como que significa
essa atitude? Que quer dizer esse cartaz? que significa esse texto? qual
tema de pesquisa tem de haver paixão. E neste caso, a minha história de vida está
o sentido dessa fala?, devemos perguntar que leituras "eu" faço dessa
indissociável do tema que estudo. O lugar de onde falo está intrinsecamente ligado
atitude, cartaz, texto ou fala? (FERRAÇO, 2003, p. 160).
ao espaço e às práticas que pesquiso.

haveiro-professo r- pesquisador: as histórias arrombam a


ria

111i 'i :1 narrativa a partir da primeira instituição social à qual pertencemos:

1 1 IIlIdl.l, 1)ias antes de nas cr,111 u pai morreu, aos 32 anos. Eu era o quinto filho.
11111.1 \I
111.1 i I )gi a .ra p( rlugll 'S:' ',3 S d fr ntar 0111a realidade de cuidar de
11111 1!llIm, <'lIt.10~ d ' p.ri. dl'llllIl d,' 11111
I arrnco de S:lp\ '111lmbariê (r gião pobre

I ,k 1)1"1111'd,
111111111111111 ('I 11' I
I 1). d,'( uhu "rlo.u " m hllu», ('(lIlIO tive mais
22 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 23

sorte que meus irmãos, fui adotado por um casal sem filhos, retirantes nordestinos favela, aprendemos a "interpretar" o clima da favela. Lemos' quando está perigoso

que não sabiam ler nem escrever, moradores da favela da Rocinha, lugar em que ou tranquilo para subirmos o morro.

cheguei com quatorze dias de nascido.


Muitas vezes a capacidade de aprender a ler esses contextos e entender as

A minha infância foi muito boa e muito ruim. Brinquei bastante nos becos lógicas do lugar não é entendida pela escola como uma capacidade crucial para o

e vielas do morro, mas também presenciei momentos de muita violência e de per- desenvolvimento de um sentimento de "s~gurança ontológica"2003). (GIDDENS,

das. Uma das coisas mais terríveis era o famoso "levantamento de plásticos". Expli- Aprender a ler o contexto
~----------~--- ~
para muitas crianças da favela tem um sentido de so-

co. Quando uma pessoa era assassinada, o corpo ficava exposto na rua até a chegada brevivência. As atitudes de intervenções possíveis praticadas pelos moradores co-

do "rabecão". Isso passava a ser um evento. Quase todo dia ouvia-se: "sabe quem muns no cotidiano são também orientadas pelas interpretações feitas, desde criança,

morreu?" Algumas crianças tinham papel fundamental nesses "eventos". Como, acerca das relações de poder, sociais e políticas que se estabelecem na favela. Tais

geralmente, os policiais faziam "a guarda" dos defuntos, os moradores ficavam ao práticas são muitas vezes interpretadas e categorizadas, por aquelas pessoas que não

redor esperando que alguém (atrevido) levantasse o plástico para que se pudesse ver . nhecem bem os processos e as relações sociais internas do lugar, como práticas

o estado do corpo e a maneira como ocorreu a morte. Eu era uma das crianças que, que se enquadram numa lógica de racionalidade que não é moralmente aceita pela

geralmente, levantava o plástico. sociedade "formal". No entanto, faz-se mister reforçar que as decisões cotidianas
são também balizadas pelas memórias.
Esses "eventos" geravam os relatos e as histórias que alimentavam o ima-
ginário coletivo por algum tempo, dinamizando a rotina cotidiana. Relatos esses Os moradores de favelas são orientados pela previsibilidade de ações vio-

que serviam, dentro de uma lógica pedagógica, para informar o que aconteceria lentas já conhecidas a priori, em função de fatos já ocorridos. Violência esta não

comigo, caso eu não apreendesse as leis do morro ou não disciplinasse a minha vida praticada por todos os bandidos, mas latente a todos eles, em virtude do acesso às

de acordo com os conselhos e ensinamentos da minha mãe e do meu pai ("homens .rrrnas e o uso da força no instante em que bem decidirem usar. Há o que poderi-
devem ser trabalhadores e não se misturar com porcos, porque quem se mistura .1111 s chamar de "núcleo duro" da bandidagem. São aqueles bandidos que não têm

com porcos, farelo come"). nenhuma perspectiva de enquadramento nas instituições que regulam a integração

ocial 'a "vida dos comuns" (de trabalho, família, lazer. ..). Aqueles cuja vida está
Na favela, somos informados (enquanto moradores "comuns") que preci-
1,ci:l I111ente inviável em função do que já "devem" à sociedade (crimes, idade avan-
samos adotar um tipo de comportamento e atitudes para sobreviver no lugar, a par-
,.Ida, I aixa ou nenhuma escolarização, estigmas, baixo grau de "empregabilidade"
tir dos exemplos que temos com a demonstração da força e as observações do que
1'.11:1 C()11 rrer no mercado de trabalho, etc.). Esses indivíduos utilizam a força, não
acontece com aqueles que não seguem tais "princípios" (como os de "ver, ouvir e
!l1.tiS com Lima expectativa de futuro, mas como um princípio regulador das suas
. calar"; "obedece quem tem juizo"; "minha vida é casa-trabalho"; "X-9 acaba no
,I II('S cotidianas na favela (I al que, geralmente, se torna o único mundo social
micro-ondas" ...). Construímos competências analíticas para saber o que conversar,
pm~ív(·I).'1:11 prin ipi '. r' ru!n lo, '0111 já disse, a "b l-prazer" dos bandidos, que
quando conversar, com quem conversar e, fundamentalm nte, para "ler" (d sd
I11I11 11111 tipo dt, p ·daf\ol',i.1 p.1I1t.1t1.1 11l) instan '.
a idade mais tenra, I11CSI11 qu ainda não stejarn S :111:11l'l iza los p 'I~ 'S 01(1) os
COIlI l' xios dos Iwros (' d:lS vielas. Ao dt:scl'1' do ôu ilHI • 1'111 I' 1 1 uplo, 11;1l'lI( 1 :ld.1 d.1
'Nu I 1111ti 11 dI' "111111'" 1'11111111111111 I (I 'Itl (1111/1)
24 Escola-Favela e Favela-Escola
Favela, escola e sociabilidades 25

Um fator muito positivo na minha infância foi - digo isso consciente do de Monteiro Lobato. Menciono isso para mostrar que o ethos de criança e de adul-
nsco político que corro - o trabalho infantil. Comecei a trabalhar muito cedo to, baseado na universalização de modelos, apresentado na série, era completamente
(engraxar sapatos, vender picolés na praia e saco de limão na feira, etc.), não porque avesso e antagônico àquele vivenciado por G.
passasse fome ou coisa desse tipo, mas por, pelo menos, dois motivos: um, porque
Sobre o meu processo de escolarização, que se dava muito mais fora da
era uma forma de transitar por outros lugares, mudar a rotina e conhecer outras
'scola do que dentro, torna-se importante frisar que os conteúdos (matemática,
pessoas, aprendendo, assim, muitas coisas com os "fregueses" que moravam num
p rtuguês, etc.) dos quais precisava e aprendia eram aqueles que me fossem práticos
conjunto luxuoso de São Conrado (nosso vizinho rico)". O outro motivo, diz res-
L' que resolvessem meus problemas imediatos. Talvez, por isso, minha experiência
peito aos usos possibilitados pelo acesso ao dinheiro.
c m a escola tenha sido tão curta, e eu, convidado a me retirar de pelo menos cin-
O dinheiro nas mãos de uma criança na favela tem o poder de, entre muitas (' escolas públicas das adjacências da Rocinha. A justificativa era sempre a mesma
coisas, deslocá-Ia de uma posição a outra na estrutura da organização familiar e ele- (aliás, essas palavras ecoam em meus ouvidos até hoje, quando estou dando aula na
vá-Ia a outro patamar, conferindo-lhe um status. Parece irrelevante, mas o simples quarta série do ensino fundamental público): "esse menino não temjeito".
fato de uma criança" colocar" mais dinheiro em casa do que o próprio pai, ou do

que os irmãos mais velhos, faz com que ela receba atenção privilegiada na família,
"Esse menino não tem jeito"
o que mexe com toda uma estrutura psicológica, de todos os envolvidos, levando

ao que poderíamos chamar de adultização precoce'.


Acredito que todos os processos de escolarização, de qualquer criança, são
Trazendo um exemplo, para melhor explicar o que estou tentando dizer,
III lis ociáveis das condições materiais e concepções simbólicas de infância que es-
exponho a situação de G, 15 anos, que era contratado pela vizinhança para fazer
LIO di, poníveis nos contextos de interação em que a própria criança está inserida.
orçamentos e executar obras em muitas casas. É importante frisar que quando falo

em obras, estou falando de um trabalho que requer uma alta confiança profissional, Nesse sentido, a minha relação com a escola está intrinsecamente ligada às

pois coloca em jogo 3 vida das pessoas que contratam tais serviços. Dessa forma, I ondiçõ s de m.inha infância, que me permitiram viver o tempo todo na fronteira.

aqueles que contratavam G, ao mesmo tempo em que lhe atribuíam a responsa- I 10 -., em um entre-lugar (BHABHA,1998) de múltiplas infâncias, em contato com

bilidade e a competência para tal empreitada, alteravam o jogo de representações .1 h,'il1 adeiras, o trabalho e a violência na favela, mas, contiguamente, aprendendo-

e expectativas doethos de criança (que não pode trabalhar ou que tem de estar na l'IIsill:ll1do om outros espaços de relações, fora da favela, aprendendo num pro-

escola). Enquanto G saia para trabalhar, seus irmãos mais novos e eu assistíamos ao ,,'NS() de .rnpiria com a vida cotidiana. Para Bhabha (1998), tal empiria constrói o

Sítio do pica-pau amare/c, uma série infantil adaptada para a televisão, baseada na obra di curso da p rplexidade viva e:
Na construçã I ste discurso da "perplexidade viva" que procuro
I r duzir d 'v '1l10S nos 1 mbrar que o espaço da vida humana é
2 Lembro-me de um médico que toda semana me arrumava uns vinte pares de sapatos e, durante o
trabalho, ficava horas me "politizando" (hoje compreendo assim o que ele fazia). levado ~I' SI'II l'xlll',IIO in '0111 .nsuráv I; O julgamento do viver é
3 Estou chamando de adulüzação precoce a alteração de comportamento' dos adultos de ti I ,'. pl'I'P!t-Xtl: 1i 1111111 ti.! 1I,III,lliv:r Il~() (, n '111 :1 id ·i:1 tr~ns nd ntal e
minado rupo NO 'iol (110 .aso aqui referido, estou considerando alguns rupo» ti . pur nt NOOS o lH'd,I~1(\I',II,1 tI.1 I1I 11111,1.111111 ,I illNlillli~',ltl do H,~t.lllo.III,IS 11111:1 -stranha
vi'lillllllll,'1I lJlIl <lI/I \lllllvlvi) III I' '111<; li r\s p 'InlivlIS r r r 1111'S li 11111lipo d ('lI/o,\' dI' 1'111111\'11
11'lIljllll.rlltllIll til 111'111\,111 tlll 111111111 Illltitl ti IIII! 11111'11111 11~1 il,lllll'
qlll\ 1111\111111111111111111111\' 111111111101'111do IlIdlvrdl/os qill'l'llIlIpj 1\111 \I I'I/pll 011 \\lVlldo
Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 27
26

no presente governante da autoridade cultural. (BHABHA, 1998,p. 221). integrado ao conjunto de comportamentos, enquanto representação de si próprio,
[E continua:] O discurso da minoria situa o ato de emergência no que os rótulos impõem, a sua forma de estar no mundo passa a estar submetida a
entre-lugar antagonístico entre a imagem e o signo, o cumulativo e o
tais rótulos e o seu comportamento ganha outro significado. Não só aos olhos do
adjunto, a presença e a substituição [proxy]. Ele contesta genealogias
acusador, mas, principalmente, aos seus próprios olhos. Ele passa não só a ser visto
de "origem" que levam a reivindicações de supremacia cultural e
0111.0 alguém rotulado, mas passa a internalizar os comportamentos que estereoti-
prioridade histórica. (p. 220).
pizam uma forma de estar no mundo, como forma transgressora e desviante. Assim,
A partir de múltiplas inserções iniciou-se meu processo de escolarização, o efeito da acusação de desviado e/ou transgressor provoca reações não só no cam-
que, como já dito, se dava muito mais fora da escola do que dentro. Tenho plena po molar, mas, também, no campo molecular (DELEUZE, 1987).
consciência, hoje, de que a matemática para o trabalho, o português para a comu-
Para que haja pessoas acusadas de desviadas ou de transgressoras numa
nicação necessária, as histórias da favela, a geografia dos becos e vielas e a ciência
sociedade ou em um grupo é preciso que o ponto de vista de alguns seja transfor-

da vovó (os conteúdos da empiria dos meus cotidianos fora da escola) não podem
mado em ponto de vista hegemônico. Ou seja, um referencial ou um modelo que
ser considerados suficientes. Por isso compreendo a pretensa tentativa da escola de
unpõe formas e concepções de estar no mundo a partir de uma unilateralidade,
possibilitar um acesso a outros conhecimentos, considerados importantes para a
que nega ou rejeita as concepções e formas de estar no mundo daqueles que não
minha inserção social, em outros mundos de códigos linguísticos e simbólicos para
'c enquadram no modelo. É a negação do outro como legítimo outro na relação
além daqueles dos meus circuitos de socialização. Porém, a questão que está sendo
(MATURANA, 1999), sob o discurso do melhor convívio possível e para a harmonia
problematizada é o desconhecimento e o silenciamento, por parte da escola, dos
entre todos. As regras sociais são estabelecidas a partir dos modelos e dos refe-
conhecimentos das crianças sobre tais riquezas das vivências cotidianas.
1('11.iais hegemônicos, porém, não significa o encontro do consenso. Com isso é
A falta de compreensão (ou dificuldade de aceitação), por parte da escola, pnssívcl perceber que os marcos e os modelos referenciais de comportamentos re-
dessas lógicas de construção e uso dos saberes oriundos das relações cotidianas com I" ,'S .ntam pontos de vistas dominantes, mas não a totalidade. E, como tal, para que
as ruas fez com que, como é de praxe, a parte mais fraca rompesse. Como as expec- I ~('s padrões sejam transformados em regras sociais gerais, faz-se necessário lançar
tativas de organização escolar são pautadas em modelos de comportamentos espe- ti ' algum tipo de poder. Assim sendo, há uma relação direta entre a criação de
111.111
rados a priori, às infâncias que não cabem nesses modelos são criados mecanismos 11111
dos' exercício do poder.
de descarte e de estigmatização dos transgressores. Tais mecanismos retroalimentam
A criação de regras sociais é inevitável. Entretanto, segundo Howard S.
um aparato discursivo que não somente justifica as sanções impostas aos desviados,
k T (19,3):
111"1
mas, principalmente, produz o desvio.
Todos los grupos sociales crean regIas y, en ciertos momentos y en

Assim, a acusação de desvio surge de uma relação de poder entr alguém determinadas ir unstancias, intentan imponerlas. Lãs regIas sociales
I, 111.n ·i .rtns situncion s y J s tip s de cornportamiento apropiados
que acusa, e alguém que se comporta como acusado. Esse comportam nt não só
pnrn lns Illi~lll,l', )lI('S( Iil i 'lido :llglln~s ~ tua ion S 1110"correctas"y
reafirma, mas retroalirnenta a imposição da n usação. Qu ro diz 'r qu ' (S rótulos
)1lllltihi('lllln 1111.111111111
"illrol'IITI:tS", Cunndo se iurponc LlII~rcgla, la
não d 'P .nd '111só dos nros '111si. 1I1:ISd,l~ I(·I.I~') 's d . poli 'I" qu ' :tll"illl '111si~rrllit1 pl'I~IIII.1di 1((1111' " •. 1(11('1.1!t.1.1I)llI'hl,1111.1l111
)111('('"M'I vi'l.1 IH)I"
.lIlo~ .1 I'II'~ ()" ('1,1,11.1III1'dlll.1 ('111,\11I \I" 1111.ulu" p,,,,.I.1 (" ('I' (111111
11111,'I 111di 1111,\1(1111
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1111111.
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11d. 1((111'"11\1I
----------

28 Escola-Favela e Favela-Escola Favela. escola e sociabilidades 29

puede esperar que viva de acuerdo com Ias regias acordadas por el resto -ntão, compreendido dessa forma, é criado pela sociedade (e não pelo indivíduo),
del grupo. Se Ia considera un marginal. (p. 13).
corno problema individual. Becker (1963) afirma:
Lo que quiero decir, en cambio, es que Ias grupos sociales crean Ia
A pessoa que é acusada de transgressora pode ter um ponto de vista dife-
desviación al hacer Ias regias cuya infracción constituye Ia desviación,
rente em relação ao próprio rótulo que lhe está sendo imposto pelo acusador. Talo y ai aplicar dichas regias a ciertas personas en particular y calificarlas
acusador, em função da própria limitação oriunda da unilateralidade do seu ponto de marginales. Desde este punto de vista, Ia desviacción no es una

de vista em conceber o estar no mundo daquele, não é capaz, muitas vezes, de per- cualidad del acto cometido por Ia persona, sino una consecuencia de
Ia aplicación que Ias otros hacen de Ias regIas y Ias sanciones para un
ceber que o rótulo que ele impõe ao outro ganha novos sentidos e significados no
"ofensa r". EI desviado es una persona a quien se ha podido aplicar con
uso e na apropriação que esse outro faz do próprio rótulo.
êxito dicha calificación; Ia conducta desviada es Ia conducta así llamada
por Ia gente. (p. 19).
Ao estudar os músicos do jazz, em Chicago, Becker constata que estes,
?""5s-?n "-
mesmo sendo rotulados de maconheiros, consideravam que aqueles que os rotula-
Como se pode ver, o desvio não é uma qualidade do tipo de conduta em si
vam não estavam legitimamente autorizados a fazê-lo, visto que não passavam de
1\1 'S1110, mas sim, o efeito das interações entre as pessoas que praticam atos que são
pessoas" quadradas", inaptas à compreensão do mundo dos músicos e da música.
H:i .itados por outras. As regras sociais são criação de grupos específicos. E os mar-
Por isso, o julgamento deles, nesse caso, era irrelevante. Surge aí uma ideia de ressig-
p,inais, nesse sentido, são aquelas pessoas julgadas por esses grupos como desviados
nificação do rótulo pelo acusado, que passa a marginalizar aquele que o acusa. As-
I', portanto, são postos para fora do círculo dos "normais".
sim, os acusadores são compreendidos como aqueles que estão à margem do mun-

do da música e dos códigos que nele se fazem presentes. Ou seja, os acusadores é No entanto, para que possamos refletir seriamente acerca da provocação

que são os marginais no mundo dos músicos, acusados e rotulados de maconheiros. lrvantada acima é preciso que nos perguntemos sobre o que significa "não ter jeito"

p,II'a algumas escolas que atendem às classes populares. Assim, a questão fundamen-
O mesmo, parece-me, acontece na relação entre o aluno da favela acusado
1.11 :l S' pensar é se o "jeito" esperado pelas escolas por onde passamos não seria
de transgressor pela escola. Ele pode estabelecer uma relação de deslegitimação de
IIlIl.I subalternização dos nossos saberes e vivências aos "conhecimentos relevantes"
tal acusação, na medida em que não reconheça os acusadores (professoras, direção
oI,lqu ,1:Js '$ olas. Ou seja, é possível constatar, através das situações analisadas que
ou funcionários) como pessoas autorizadas a fazê-lo.já que essas desconhecem as
,I Il'sisc"'n ia ao episternicídio (SANTOS,2004) imposto pelos padrões cientificistas
lógicas de estar no mundo daquele.
1llllw0ncri valorizados na escola, e consubstancializado na organização buro-

Dessa forma, pensar a questão do desvio ou dos "meninos que não têmjei- 11,lli('[I, unilateral, de algumas posturas funcionais, gera um conflito desestabilizante

.to" é refletir sobre a questão das regras sociais e dos pontos de vista predominantes. 1\,1 IIi -rarquias e nas estruturas rígidas da organização escolar. Para Boaventura
i'j ,'()S, _()()4):
Tanto transgressores quanto acusadores desenvolvem amplas ideologias, que expli-
A" ,('11 .iu" tornou-se padrão d aferição para "excluir" qualquer
cam as razões dos seus pontos de vista e dos seus comportamentos. O problema "
I'c)!' I 11:1ti' cOldl('cillI('1I10 t' de ornprc 'ns~o que não foss c nsiderada
que só um dos pontos de vista, o que é amparado pelos dispositivos do poder, s ' Nll, ,
"t'il'lIlíllt ,I" '1'1 11,1 1',11,11 I, d' lIllI:! (:llIlologi:I,III:lS 1I11l:\ tautologia qu
pr s ntc nos discursos dorninant 'S ,6 trnnsf rJ11:1(\< l'llI ,111',11111\'11('0ti, imdnmeu ("11111111.1di' plldl'l
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30 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, esco'la e sociabilidades 31

(descartando aquilo que não era considerado "científico"). É este, trazem consigo valores e expectativas oriundas da sua socialização, que muitas vezes
precisamente, o modo como funciona a colonialidade dos poderes, ontrariam as próprias crenças e práticas curriculares da escola. Acredito que essas
escondida sob o discurso da modernidade do poder que se auto-escreve
.rianças em muitos momentos tentam se adequar às regras impostas. Porém, muitas
como civilização, progresso, ciência e desenvolvimento, conduzindo à
vezes, sua vontade e seus impulsos não são suficientemente fortes para impor outra
liberdade, democracia, justiça e direitos humanos. (p. 705).
forma de estar no mundo, vide o que nos diz Maurício Camilo, com a sua pesquisa
Em outra perspectiva, mas na mesma direção, Quijano (2005) também traz a .erca da violência e os impasses na vida cotidiana dos educadores de rua, que, a
uma importante contribuição quando nos provoca a refletir acerca dos processos meu ver, é de extrema importância para o que está em debate,justificando, por isso,
de colonialidade do poder e do saber. Para esse autor: .1longa citação.
A elaboração intelectual do processo de mcdernidade produziu uma Certa vez, um pequeno grupo de educadores avaliava o trabalho
perspectiva de conhecimento e um modo de produzir conhecimento que vinha desenvolvendo há algum tempo na rua, com meninos e
que demonstram o caráter do padrão mundial de poder: colonialismo/ meninas. [...] Na medida em que esta avaliação retrospectiva avançava,
moderno, capitalista e eurocentrado. Essa perspectiva e modo concreto perceberam o quanto os meninos(as) de rua haviam mudado [...].
de produzir conhecimento se reconhecem como eurocentrismo. (p. A primeira leitura que tiveram, entenderam como positiva [...].
246).
A segunda leitura que fizeram resultou em admitir que,
involuntariamente, estavam violentando os meninos(as), pois apesar
Assim, excluídos das condições mínimas que possibilitam avanços signifi-
de os meninos e meninas incorporarem os valores e comportamentos
cativos na escolarização, muitos alunos das classes populares abandonam a escola dos educadores permaneciam na rua. Isto fragilizava os meninos(as)
em busca de saberes que possam trazer resultados mais imediatos para sua vida. diante da vida na rua, vida esta que exige uma postura muitas vezes
Essa estratégia de sobrevivência, não compreendida ou não considerada por muitos agressiva, rígida, para sobreviver a todas as violências que a sociedade
pode cometer contra crianças abandonadas.
estudiosos, e, infelizmente, por muitas escolas, obstaculiza as iniciativas individuais
Quanto mais reagiam ao projeto e a seus valores, utilizando drogas,
daqueles que tentam adequar as exigências da escola à sua realidade.
desenvolvendo pequenos furtos etc., mais fortes se sentiam para
Tal afirmação pode ser constatada, posteriormente, a partir da narrativa continuar no seu mundo público - a rua. (SILVA, 1996, p. 22).
apresentada na pesquisa sobre a dificuldade de um ex-aluno, ao tentar regressar,
Tal conflito, o de estar vivendo no entre-lugar de duas exigências de com-
tempos depois, ao meio escolar. O relato demonstra que a produção do "fracasso
1'11I1.1111
.ntos para sobreviver,leva o processo de individuação a conseq Uências ter-
escolar" cria mecanismos que mantêm os obstáculos de acesso e a permanência
I 1i,~,com ,por exemplo, conviver com uma espécie de "peso na consciência" por
dos mais pobres na escola, para além do momento (ou época) em que eles aban-
ou d sejar praticar coisas fora do padrão, mas ser tolhido por uma acusação
1111'1\'1
. donaram a mesma. Esses mecanismos criam não só os fracassados da escola, mas os
11I11'llI'i;ll, lUC C ntrola as matrizes das suas ações. Um exemplo disso é o rnaco-
fracassados na vida, que, como se não bastasse, têm as mar as d s fiimenro qu
UI) HOlit~ri .uqu le qu se confina para O uso da maconha (seja ele morador de
carregam no próprio corpo transformadas em esti mas.
1.11111th' qualqu ']" ( lIIIO \1.1111(1), ,~('II) parti ipnr de nenhum tip d grupo d
É d fundam '111:11
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0111111111
I 1111\1 1'111111.1.1IlI'l)s.11
32 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 33

seriamente nas profecias que a escola sugere aos transgressores. Não temos como chegamos (as classes populares) ao doutorado é que entendemos que não tivemos
deixar de concordar com Becker (1963) quando aponta que a acusação-rotulação escola pública de qualidade. Uma escola de quatro horas, para as classes populares, é
é capaz de provocar no indivíduo consequências inimagináveis. uma escola boa? Se fosse, os ricos deste país não colocariam seus filhos em tempo

integral de estudos, com agendas cotidianas que abrangem conhecimentos teóricos,


É claro que nas escolas por onde passei, também encontrei professoras
viagens, acesso à arte, etc. Quando um rico matricula seu filho em uma escola pri-
comprometidas política e militantemente com essa problemática. Posso destacar
vada, que considera de boa qualidade, ele tem uma intencionalidade. Ele quer seu
a professora Maria Eugênia, da quarta série, na escola Luís Delfino, na Gávea. Tal
filho formado para dirigir, para comandar, nos espaços em que for inserido.
professora acreditava na manutenção das relações interclasses na escola como pos-

sibilidade de transformação da sociedade. Ela mantinha o próprio filho estudando ~ssim, permanece a grande e histórica questão do ensino público: qual es-
na escola e, frequentemente, levava alguns alunos para as festas de crianças no seu rola pública queremos e por qual lutamos? Aquela que mantém os que saberrçcom
condomínio. A única exigência que nos fazia era "vá do seu jeito e se comporte do () saber e o poder de dirigir, e os que não apreendem os códigos de dominação sob
seu jeito, seja você mesmo." Imagino, hoje, o que ela enfrentou, no início da década li jugo do fracasso escolar?
de 1980, para afirmar esse posicionamento político.
Pudemos perceber que algumas escolas públicas, na hora da matrícula, já
Lembro-me ainda de que, ao entrar na quinta série (numa outra escola das I'slão subalternizando as lógicas de sobrevivência dos mais pobres. Hoje, eu me
adjacências) minha mãe, uma mulher pobre, analfabeta e moradora de favela, foi pergunto: se fosse uma "rnadame" que quisesse matricular a filha da empregada na
chamada várias vezes à escola para ser comunicada de que se ela não "desse umjei- N('ola e quisesse colocar o seu endereço, como o da menina, seria ela questionada
to" em mim, e se eu continuasse com aqueles comportamentos, estaria fadado a me pl'b secretária da escola? E se minha mãe fosse de outra classe social seria informa-
tornar bandido. Jamais esqueci a postura da minha mãe, que, na maioria das vezes, .1,1,pr feticamente, pela escola, acerca daquela predestinação do meu futuro?
de pé e com a cabeça baixa, sempre respondia: "sim, senhora". "Não ter jeito!" - foi
A lógica dessa sociedade é ainda mais perversa do que se apresenta, pois
a resposta que a escola encontrou para aqueles que não submetiam a lógica de uso
empr deixa brechas para que alguns rompam as barreiras e sejam transformados
dos conhecimentos dos mundos em que os mais pobres estão inseridos às lógicas
111I' .gras, e para que ela, enquanto sociedade capitalista, possa se autoafirmar de-
supostamente superiores da escola de baixa qualidade que é oferecida às classes po-
11\11(
r;ÍLi a e manter a ideologia de que~a meritocracia é uma lógica justa.
pulares. Pois, na maioria das vezes, as classes populares permanecem entregues aos

saberes oriundos das memórias das suas estratégias de sobrevivências, dos relatos Horni Bhabha (1998) bem nos ensinou como o povo inglês era prepara-
das imprevisibilidades das táticas cotidianas (CERTEAU, 1994), decorrentes das lutas til I (' /()I"l1lado para se tornarem os futuros burocratas dos países colonizados, em
. que combatem dia a dia. 1111.1
vs 'ob qu ensinava, e continua ensinando, o aluno a acreditar que é superior

I 1111110.Este LI nsciente de qu citar a minha própria história com a escola é


Muitas escolas ainda estão organizadas para não deixarem entrar os traba-
lhadores das classes popular s, ainda qu ejam jov ns, adult s ou crianç s. Por"I1I,
'1"111.1111.,porém, muito I -ri ioso. Ela tant pde s rvir para demonstrar as per-

III'IIII.IS dos pr< Cl'SSOS d(' (' (III~.I" (' os 11Il'(':11liSI110Sde sul nltcrnizaçâo da escola
quand d 'iX:1I11-utrar, col )C:II1I-0S '11111111pro '~'SSO qllt' 1('111o "fi'rI nss( 'SCOI:II,!I
111111
.I~(l.I ('S !l011l11.11I, 111.1I1111
p"III' ~I'Ivil 1'.11.1rl'f()l~.1I .1 idc( loVin 1l\l'l'iIO-
('(\lIhl ('I('IIi('IIi(1 Itllld.IIII(' d.l~ 1('I.I~lH'~ti' 'lI~ill(l .11'" IIdlllP.I·111 SOIIH'IIt!' "11,11111,,
111.1 dI' qlll' "(1'11111lui.r, I ", I II '
34 Escola-Favela e Favela-Escola
Favela, escola e sociabilidades
35

A adolescência
tante para garantir a condição de reprodução intergeracional das famílias na favela,
pois é um "terreno" criado na vertical, a partir da construção de uma casa em ter-
Da adolescência, lembro-me pouco, porque não tive. Aos 14 anos de idade, ritório urbano escasso, extremamente disputado. Geralmente, os primeiros andares
num desses "namoricos" de baile, engravidei uma menina de 13 anos (com quem são construídos pelos pais (primeira geração familiar); na laje acima desse primeiro
fui casado durante dezessete anos e tenho três maravilhosos filhos). Talvez por es- .mdar, os filhos constroem outra residência (segunda geração); e, quando não é ven-
tar imbuído do processo que chamei acima de "adultização precoce", resolvi não dido o imóvel, o primeiro andar que inicialmente era dos pais, passa para os netos
ouvir os vários conselhos dos amigos para fazer um aborto. Talvez porque o que (terceira geração). Assim, nessa estratégia de sobrevivência urbana, é garantida a
estava emjogo era, em vez de um ethos de criança ou de adulto, uma ética dos mais I 'produção existencial-territorial de alguns moradores da favela. Ou seja, uma laje
pobres da favela, que não incorporavam aos seus fazeres-pensares a ideologia do 113favela representa mais do que um grande patrimônio. Representa uma lógifa de
individualismo que sugere: "cada um com os seus problemas". Ao contrário disso, a sociabilidade e de reprodução social. Significou, para mim, ter possibilidades con-
ética que me orientou pode ter sido a da coletividade tribal, dos nossos indígenas e cretas de construir um abrigo e uma família. Permitiu, também, uma ruptura com
dos nossos africanos. A ética que sugere:" onde come um, comem dois". Ou aquela muitas lógicas de racionalidades, sustentadas por discursos que afirmam o fim das
que diz: "na favela ninguém morre de fome, porque a gente desenrola e dá o nosso possibilidades de outra trajetória que não seja de um fracasso social, para aqueles
jeito". Assim, "assumi?" o filho e a esposa. A formação social dos meus pais, ambos que interrompem expectativas traçadas por modelos de sucessos com uma gravidez
analfabetos, foi fundamental nessa decisão, pois, entranhados na ideologia de que" o 11.1adolescência.

trabalho dignifica o homem", somado à religiosidade da minha mãe, fizeram-me


A laje, nesses contextos, permite sonhar. Não um sonho restrito à imagina-
conviver com um "senso de missão".
,.10, mas um sonho concreto, pois cria um conjunto de possibilidades reais, como
No entanto, um preço foi pago. Abandonei de vez a escola, na sétima série .1(" nomia de dinheiro, um local para estudar e um afastamento de determinados
do ensino fundamental. Nessa época,já trabalhava como qffice boy numa imobiliária I'~Iilos de vida. Possibilita, ainda, pensar o futuro como um projeto que se inicia a
em Ipanema. Decidi trocar tal emprego? por outro que me oferecesse mais perspec- p.lf'tir do "aqui e agora", cujas etapas de realizações se dão cotidianamente e podem
tivas de ganhos imediatos. Fui trabalhar, então, numa oficina de prestação de serviços, 'I ' n tabilizadas concretamente numa parede que ficou pronta, numa janela que
consertos e manutenção residencial. Logo depois, aprendi a profissão de chaveiro. '111comprada e instalada ou na expectativa de mudar ou construir um lugar melhor
p.II,1 viv r, mais arejado, mais confortável, mais seguro.
Algum tempo depois, construí um "barraco" em cima da "laje" da casa de

minha mãe. É importante frisar que a "laje" é um espaço territorial muito impor- Após a construção do abrigo, na laje dos meus pais, o próximo passo foi
1IIIIIItnr próprio "negócio". Aluguei um pequeno espaço, de dois metros por um,
4 Coloco entre aspas esse termo, visto que, se não fossem as redes de solidariedade que se tecem 111111.1prin ipal da favela (rua arn iriho do Boiadeiro, n. 25), e instalei uma oficina
na favela, eu e minha ex-esposa, provavelmente não teríamos tido o relativo sucesso que penso
termos tido. I III.IV ,i1'0. Parn tcnt: r 111' dislill ruir dos oncorr nt s, fIZ um tudo incessante
S Nesse emprego ganhava um salário mínimo, porém, c nviviu com 11'xP' 'lativa de um proj 1011; ,I 10 111-lhor ti
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Favela, escola e sociabilidades 37
Escola-Favela e Favela-Escola
36

13arcellos), com o qual passei a militar em várias frentes de lutas políticas. Entrei
sem obter muito sucesso. Até que, caminhando pelo centro da cidade do Rio de Ja-
para o Partido Comunista do Brasil e montamos o primeiro núcleo oficial do par-
neiro, percebi uma enorme fila, em uma loja de cutelaria, onde as pessoas aguarda-
lido em uma favela após a ditadura militar de 1964. Essas lutas, de certa forma, me
vam pacientemente sua vez, para afiar seus alicates e tesouras. Comprei um alicate,
projetaram politicamente nas redes de conflitos locais em disputas ideológicas nos
nas adjacências da loja, e entrei na fila. Ao chegar minha vez comecei a conversar
espaços da Rocinha. Isso teve um grande efeito: fez com que o chaveiro (enquan-
com o senhor que afiava os alicates e percebi que ele não era brasileiro. Era italiano.
t O espaço físico de prestação de serviços na favela) se transformasse num lócus de
Falei um pouco sobre minha vontade em aperfeiçoar-me naquela arte e parece que,
.irticulaçâo política local, onde tanto os grupos que se encontravam alheios aos co-
de alguma forma, conquistei a simpatia daquele senhor. Ele me disse que para con-
mandos das instituições locais, ONG's ou movimentos sociais, quanto aqueles que
seguir um trabalho de qualidade deveria comprar uma pedra de afiação importada,
I'SI:lvam à frente das mesmas, paravam ali para discutir e fazer análise de conjuntura.
da Itália. Perguntei se ele poderia ajudar-me nessa empreitada, pois eu o pagaria

pelo serviço. Ele aceitou e, por um preço extremamente alto, em relação às pedras

A parede da loja servia como ponto de divulgação de eventos, como, por
vendidas no "Brasil, ele me entregou, após quase dois meses, a pedra italiana. • '1'llIplo, a inscrição ao Pré-Vestibular Comunitário da Rocinha, além de ser local
dI' ,IP io na organização da campanha e do Comitê Rocinha contra a Alca. Ali,
Esse foi, talvez, um dos passos mais importantes que dei na minha vida.
h êm, demos início (Antônio
1,1111 Xaolin e eu") a um projeto voluntário de alfabe-
Pois, a partir daí, obtive um destaque no campo dos negócios, na Rocinha, e con-
II/.I~'~Od jovens e adultos, denominado Centro de Educação Popular da Rocinha
segui ganhar uma quantidade de dinheiro que permitiu realizar alguns projetos,
( 1\1' I~ cinha), que funcionou na AMABB, sem apoio financeiro de nenhuma
entre os quais, comprar livros e criar uma rotina de leitura de jornais e revistas
I1 utuiçâo, sem fins lucrativos e sem custo para os alfabetizandos.Tínhamos a uto-
semanalmente.
1'101dI' alfabetizar os moradores da Rocinha e, ao mesmo tempo, conscientizá-los
Trabalhava de domingo a domingo, o que permitiu observar com mais 1'"11111
,1111.nte com debates sobre a conjuntura local e seus aspectos administrativos,
atenção o cotidiano da favela. A pequena loja de chaveiro e cutelaria se transfor- 1111.11 'políticos. Enfim, o chaveiro passou a ser uma referência local, registrado,
mou em ponto-de-encontro para debates, análises de conjuntura e, principalmente, 1111111
IV', '111pelo menos dois documentários exibidos em grande circuito: o "Ro-
num lócus de fazer política. Os encontros e debates com vários moradores, vizi- 1111",( .ollors" e o filme "Até quando?"
nhos, clientes, de várias idades e de diversas opiniões acerca dos problemas locais,
1\ partir das lutas políticas nas quais estava envolvido passei a constituir-me
forçaram-me a iniciar um processo de análise de conjuntura. Comecei a perceb r,
uk-utidade
11111.1 mbivalente.A minha ação profissional (como chaveiro) e política
então, que as minhas leituras de mundo eram insuficientes e pouco aprofundadas
111111
uulit.rn -) pa: saram a hibridizar-se no cotidiano. Passei a ter papéis e identi-
para compreender bem a política, a sociologia e a história da favela. Passei a I r,
I 1111.1is 111
istu radas. Dentro de uma reunião política, por exemplo, debatendo
avidamente, Marx,Althusser, Gramsci, entre outros.
111111polí(i 'os- munitários, 'LI ra tratado como alguém importante naquela
Concomitante as leituras, ini iei um processo de apr ndizagem a cr a das
I I, 1I1111N
U(\illllt• 1I111l'IIpfllllo
111/11'0intitulndo "1\ pollt] ti na luv 'Ia-escola: diálogos com
práticas d militân ins politicns r .ivindi 'ac' rias de rua. .onhc i um anti ro lídvl
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38 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 39

conjuntura política, na qual algumas pessoas queriam ouvir minha opinião acerca A formação acadêmica
das temáticas em pauta, e, no mesmo instante, a mesma pessoa me perguntava como

estava o alicate que deixou de manhã, na minha loja, para afiar.


No ano de 1998, fui aprovado no vestibular da Universidade do Estado do

Outro aspecto de extrema relevância foi o fato de ter tido, no chaveiro, a Estado do Rio de Janeiro (UER].) No entanto, ao analisar a grade de horários e os

oportunidade e tempo para iniciar um processo de autoescolarização. Após mui- 1 ustos das despesas com passagens, alimentação e materiais, percebi que a dinâmica

to tempo de leituras, algumas pessoas da rede política na qual estava inserido me 1 k funcionamento da universidade não possibilitaria a minha permanência, visto

orientaram a fazer o Exame Supletivo do Estado, para que eu pudesse adquirir um '111 " além das despesas necessárias para a manutenção dos estudos, ainda tinha a

diploma do ensino médio e, quem sabe, até entrar numa universidade. tnromparibilidade da lógica de organização de horários das disciplinas, com. o mo-

vuucnto comercial do chaveiro, e os fluxos de horários da Rocinha. Por exem;lo, o


Comecei, então, uma busca frenética por conhecimento. Lia de oito a nove
11I1I":írio de maior fluxo comercial, que sustentava todas as despesas necessárias para
horas por dia ..Buscava ajuda com todos os colegas que estudavam. Fiz do chaveiro a
uhr 'viver com a minha família, era, pela manhã, das 7h30min às 10h, e, na parte
minha escola (até aos 28 anos de idade, não tinha nem a oitava série do ensino fun-
d,1 tarde, das 17h às 21h.
damental). Recebi apoio de muitos, principalmente, do pessoal do Prê-vestibular

Comunitário da Rocinha (PVCR), que permitiu que eu fosse aluno-ouvinte de Passar no vestibular foi importante para que eu percebesse o quanto a lógi-

algumas aulas de matemática, física e química. 1,1 organizativa da universidade pública excluía a possibilidade de outras lógicas se
1111'\1 1I:1rem. a ela. Logo, em função dessa lógica, excluía, também, aqueles que não
Aqui, faz-se necessário uma breve pausa para explicar como funcionou a
p.uu.ivnrn as suas rotinas (não porque não quisessem) de acordo com os horários
Favela-escola nas suas redes de aprendizagens de conteúdos políticos e escolares,
1lI1IIlISl S. Entrei, então, para uma universidade privada, no curso de pedagogia.
fora da escola. Muitos jovens moradores da Rocinha, alguns, filhos de comerciantes

locais, tiveram a oportunidade de se dedicar aos estudos escolares de forma regular. s:a universidade tinha recém-inaugurado um campus na Barra da Tijuca,

Muitas fanúlias investiam tudo o que ganhavam. em. um. dos filhos ou filhas. Esse di 11II () ti . um shopping (Downtown) de extremo apelo ao modelo eurocêntrico de

"escolhido" tinha a "missão" de dar um orgulho para a família, destacando-se nos 11111 1I11\( 'de distinção social. A estratégia empresarial da universidade apresentava

estudos. Foi em função dessa lógica, e da solidariedade geradas em algumas rela- 11111.1 1',1':1<.1' de horário que visava a atender um público denominado por jargões

ções na favela, que consegui "recuperar" parte dos conteúdos que não aprendi no 1111dl,11 kos mo "os emergentes da Barra". Eram cursos de graduação com preços

meu curto processo de escolarização. Muitos foram os dias de semana em que dois h II IIN, I :11';1 a realidade da época, no período da tarde, que atendia em sua maioria

jovens, Leonardo Lima e Fabíola Camilo (esta última tornara-se, tempos depois, 1I1111111'1~'S, No .aso específico das turmas de pedagogia e de psicologia, na qual tive

minha segunda esposa) passavam no chaveiro e me ensinavam conteúdos d mat '- II 11 ,IOS estudantes, pude c nstatar que a maioria das turmas era formada por

mática, português e sociologia, entre outros. Deixavam listas d x 'r í .ios . d .p is 1IIIIII'Il'~ que moravam na I3n rra , LI nas adjacências, e não trabalhavam durante à

corrigiam. Sem essa rede de solidariedad " t nho c rtcza de qu ' n5 ) ;11 r -nd .rin ,I
" 1:11 '~lr:II "gia '1llII 'S:lI i.il, ellll 01':) I 'nS3 Ia para um grup social específico,

contento d 't .rminado: nt 'lidos, 111I1111l1I1l1lI.I'OlllP,lldllllll.ldl 1111111111" o lc vcndas c scr vi os lc um hav iro,

11.1 d,I I 11111111,1. (I 11111" 111 d I di 11(11111,1\ dll \111\11 \'111 '111(' 111(' 111,111i, ulvi
40 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 41

variavam entre 12hs e 16hs, o que coincidia exatamente com o ponto mais baixo Nesse projeto ocorreu uma situação que, hoje, posso entendê-Ia como em-
no pico das vendas e dos serviços no chaveiro. brionária das inquietudes que movem a esta pesquisa. Ao ser convidado para parti-

.ipar, perguntei quais eram os objetivos. A professora-coordenadora informou-me


Outra possibilidade oriunda das especificidades das lógicas de sociabilida-
que a principal questão era, a partir dos três campos acadêmicos envolvidos (his-
des da favela diz respeito a um tipo de rede de solidariedade entre os comerciantes
tória, psicologia e pedagogia), promover processos educativos que se incentivasse o
locais. Eu não precisava fechar a loja durante o período em que estava nas aulas,já
uso dos recursos ali oferecidos (humanos, tecnológicos e pedagógicos), pela univer-
que os vizinhos "davam uma olhadinha". Problemas com roubo nunca tive, pois,
sidade, para o desenvolvimento da autonomia daqueles jovens. Porém, uma norma
além da solidariedade comercial, há na Rocinha, e em muitas favelas, a internali-
íimdamental não poderia ser transgredida: os estudantes da universidade não pode-
zação de uma norma, seja por via do medo ou por um tipo de valor moral, "A Lei
I 1:1111
estender as relações com os jovens em conflito com a lei, para além do limite
do Morro", que não tolera roubo na favela.
"pr fissional". Percebi, com isso, não somente um paradoxo, mas uma inviabilidade

Essa expressão ("A Lei do Morro") é uma gíria, e diz respeito ao fato 1'lIere tal norma e o objetivo.
de que nossa memória convive com muitas notícias de assassinato e/ou torturas
Com o tempo, minhas inquietações foram se transformando em argumen-
daqueles que foram pegos ou denunciados por roubo na favela e entregues à ban-
lu\, .onstatamos e debatemos em reuniões dois problemas considerados graves para
didagem do local. Os relatos de tais acontecimentos servem como uma espécie de
u ulrance dos objetivos. O primeiro foi uma dificuldade em organizar trabalhos em
. inibidor de ações que, de certa forma, dá uma ideia de "segurança" aos moradores
IlIpOS, pois os jovens adotavam a mesma forma organizativa em que se agrupavam
com os seus bens privados".
1111Criam, agrupamentos por facções. As estagiárias de psicologia e as professoras
A minha formação na graduação em pedagogia esteve intrinsecamente liga- 1I pousáveis tentaram resolver a questão a partir das suas teorias e de dinâmicas
da ao conjunto de possibilidades que o chaveiro me proporcionou. Entretanto, não di HI'UPOS.Como tal estratégia logo demonstrou sua impotência, as estagiárias de
tardou, e, já no segundo período da faculdade, não consegui pagar as mensalidades. los os campos começaram
1111 a ampliar os vínculos afetivos, ameaçando a norma
Diante da iminente possibilidade de abandono, fui convidado pela coordenação do ""111.1111
.ntal imposta. Com o estreitamento das relações, os jovens (independente
curso a participar de um projeto social em parceria com a segunda Vara da Infância e I1 1.11~'~ em que se autoincluíam) explicaram às estagiárias que a questão do não
Juventude. Em função desse projeto denominado "Projeto de Reintegração Social", 11 '1IIvill1into entre eles estava para além das suas próprias vontades. Caso vazasse
ganhei uma bolsa integral para atuar como monitor e coordenar um grupo de esta- n çã ,na favela em que moravam,
, li11111111 de que eles estavam tendo contatos uns
giários de três cursos distintos (história, psicologia e pedagogia). Foram desenvolvidas 11111os outros, os bandidos das respectivas favelas poderiam entender tal relação
atividades sociopedagógicas com crianças que estavam sob medidas socioeducativas, 1111111 P ssível conspiração
11111:1 com a facção rival, e, assim, os matariam. Essa era a
'em "regime semiaberto", em alguns Criam's" da cidade do Rio de Janeiro. 11 ,I 1111' .stnva m j go. Era uma questão de vida ou morte.
7 Uma coisa até engraçada, é que apelidaram o chaveiro de self-service, porque muitas vezes eu
aprontava um serviço e, como tinha de ir à faculdade, o próprio cliente, na minha ausência, pegava
(;0111 ) t .rnp ti .scohrintos, tarnb "111, qu a maioria dos jovens só partici-
o seu objeto dentro da loja e deixava o dinheiro na gaveta, visto que o espaço da loja, por ser um , dll elcm
\11°11'10P0I'(IIII' I \11 \'1,1 11111 'lHO que ontahilizava no afrouxamento
pequeno box de UITI rnetro por dois, facilitava para que a pessoa ITI 'SITIO de fora da loja ai an\'Uss'
o ohj 10 'li uv 'IR para colocur O dinheiro. I 11,1",ES\I' 1'1,11101\IIldll, 11111'111
ti 11, '1"1' I""IV.! plll 11,'"d,I!)III"'1 1,II'licip:I~·~o.

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110M 1101',
42 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 43

Entretanto, não foi isso que provocou o primeiro abalo na estrutura de Vi, naquele momento, meus sonhos definharem. No entanto, as relações
funcionamento do projeto, mas, o que o estreitamento dos vínculos gerou nas re- humanitárias, cotidianas e situacionais, que não permitem generalizações nem en-
lações interclasses dos jovens (tanto os da favela quanto as estagiárias). As relações quadramentos totais, se fizeram presente. No dia em que eu fui à secretaria finan-
humanas de afeto, de sedução, de excitação, de paquera, comuns entre jovens, e c .ira da universidade para calcular a minha dívida e trancar a matrícula, ao passar
presentes também naquela relação, subverteram a norma estabelecida e as distinções p '10 corredor, escutei alguém me chamando. Era uma professora que, por via das
sociais diminuíram naquele espaço. redes de comunicabilidades cotidianas, que existem em qualquer instituição de
ensino.já estava sabendo acerca do que ocorra comigo. Ela percebeu que eu estava
o impasse fundamental veio em seguida. Aos jovens eram oferecidos vários
muito abalado e me perguntou se eu aceitaria a ajuda de alguns professores e pro-
recursos didático-pedagógicos, entre os quais, o uso da internet". O computador
era utilizado, no projeto, como apoio para a ampliação do processo de letramento.
Ivssoras da casa, que estavam se prontificando a dar uma colaboração individpal em
dlllheiro, para ajudar a pagar a minha dívida.
Assim, os usos e os sítes propostos pela orientação pedagógica eram somente para
um nível elementar. Porém, ao aprenderem a usar as ferramentas básicas, alguns dos Ao resgatar, hoje, essa memória, consigo compreender um pouco melhor o
jovens, logo deram outros sentidos àquela ferramenta. Passaram a fazer pesquisas 11',lIifi ado das redes de solidariedades, como um fator fundamental para a compre-
sobre os tipos de armas existentes, a construção de bombas e procuravam saber mais I II .1() da noção de humanidade. Foi pago não somente a dívida, mas todo o restante
sobre drogas. Ainda que por um caminho não calculado pelas estratégias do projeto, dll p -ríodo. Essa situação me permitiu não somente aprender com o cotidiano
estavam atendendo ao objetivo do mesmo, ao ampliar os seus processos de letra- IItll' êtica e solidariedade, mas também me possibilitou conhecer três grandes
mentos e a autonomia no uso do computador. Estavam construindo textos, pes- 11111111('1" .s-professoras, que me fizeram compreender que não existe relação de clas-
quisando, lendo e fazendo uso social da leitura. Com isso, instalou-se uma crise. Na I '1"' não possa ser superada pela humanidade.
medida em que eu questionava a nossa incapacidade de lidar com aquela situação,
1 as três mulheres-professoras, uma professora, Eliane, liderou o processo
pois não sabíamos, de fato, o que fazer diante do alcance dos objetivos de promover
11"1 111(' 'UUdOLl a pagar a dívida. A outra, professora Maria de Lourdes Coimbra,
a autonomia e o letramento, passei a ser tratado como pessoa não grata, no grupo.
111 '(1(1" quando terminei a graduação, me convidou a permanecer estudando
Fiquei isolado, até que, no final do ano (ou seja, no segundo período d .1 IIlslitu ição, com uma bolsa integral para fazer uma especialização em psico-
funcionamento do projeto), não fui chamado para a renovação da bolsa. Liguei d.II',lIp,i.1'Iíni a-institucional. Aceitei e concluí essa pós-graduação no início de
para a professora-coordenadora responsável e perguntei o que estava acontecend . ti 11 I, jI(jI' último, a professora Maria de Lourdes Braziellas, que me apresentou à
A mesma disse para não me preocupar, pois estava tudo certo. Assim, passaram-se 111.1 I L:gi na Leite Garcia (UFF), o que me permitiu, pela primeira vez, par-
. os meses, e eu tentando entrar em contato com a professora-coordenadora, quando, d.' UIIl grup de pesquisa, em uma universidade.
em março, fui informado de que o projeto já havia começado e que a minhs bolsa
AIIHb 110 final de _()(L, fui nvidado a fazer parte da coordenação do
havia sido cortada desde dezembro. LIS ja, u estava 111 urna divida li, quauo
11!l11!.lr ;Olllllllil~1 io d.1 1 ocinhn (I V ,R). N '55' m vim nt social de
meses com a fa .uldad 'n5 tinha ('IlIIIO p.lf'.lr.
\11 \,1111r1.II, )lud,' '"lIljll, 111. 111.11 .1 11 lil 111.1 f(lIlll.lPtl polílic:i " :lÇ;ld~llli ':1,

1111111.1 \. "'1.1 11',1111.1 1'11111 11 11 ri, 11111111 I'I·d.II'ltgll, I' 1111 ',lllljlll d.1 1'11111.1 .111
44 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 45

política dos jovens e adultos da favela, intervindo,

cessos de disputas locais. Participei do PVCR


enquanto um coletivo, nos pro-

até o final de 2005. Esse foi outro


professora
bilitaram
Inês Barbosa (~sta, minha
a aprender
_.
orientad03-no_tgestrado).
a lidar com outras lógicas do jogo acadêmico.
-- Ambos me possi-
Com Renato,

espaço importante da Favela-escola. Pude, na interação com Fabíola Camilo, que aprendi a construir um discurso fundamentado nos autores críticos e entendi que

cursava a faculdade de Sociologia, no IFCS/UFR], aprender a elaborar a minha a questão racial deste país está imbricada nas questões das favelas. São oriundas

monografia de graduação em pedagogia. Ou seja, o que ela apreendia na faculdade de uma mesma matriz de opressão. Renato me inseriu no universo da pesquisa,

pública, socializava comigo. Isso muito me ajudou para que conseguisse um papel 'onvidando-me para ser o pedagogo responsável por sua pesquisa na Faperj. Daí,

de destaque na universidade privada e ser contemplado, após a conclusão da gradu- xmheci muitos trâmites e códigos para uma escrita acadêmica de impacto.

ação, com uma bolsa integral em psicopedagogia clínica e institucional. Foi nesse
Com a professora Inês Barbosa aprendi que para sobreviver no meio aca-
jogo de interações e trocas com meus pares bem sucedidos da escola que obtive os
rlêmico precisaria muito mais do que uma boa escrita e um bom discurso"s~bre-
recursos que me foram negados no período de minha escolarização. Fica claro, aqui,
111j , precisaria conhecer e aprender os comportamentos adequados para cada cir-
que a rede de- solidariedade na qual me inseri era maior do que a que está exposta,
I unstância dos jogos de máscaras acadêmicas, que se faz necessário aos cenários das
porque, de certa forma, usufruí dos esforços dos pais e famílias desses colegas, que
1111'rações universitárias. A questão, agora, não era somente de conflitos de classes,
"investiram" tudo o que tinham nos estudos dos filhos e, eles, os colegas, socializa-
III,ISde responsabilidade com os meus pares da favela, que me possibilitaram chegar
ram comigo o que estavam recebendo.
,I I'SS ' outro lugar de fala e de poder. Não podia permitir que o deslumbre apagasse

Em 2004, passei no concurso público para professor de primeira à quarta ,I minhas memórias, ou melhor, que as suplantasse. Iniciei uma pesquisa acerca

série no município de Niterói. Nessa experiência, pude experimentar a escola d,l vdu ação popular e os processos cotidianos na favela da Rocinha. Tal estudo

noutra perspectiva. Estou numa posição, agora, na qual é possível perceber que o 1'11sibilit u a elaboração de um projeto, que foi uma proposta de continuidade e

cotidiano escolar é construído com amor e paixão, mas também, com dor e an- '1"olillldamento nas questões levantadas durante o mestrado, que culminou com

gústia, e que tais sentimentos estão presentes no fazer-pensar-fazer pedagógico do I 11111111:1


aprovação no doutorado, em 2007, na Universidade Federal Fluminense

professor, o tempo todo. O "choque" entre a cultura escolar e a cultura dos alunos (I 111().

oriundos de favelas, que muitas vezes são socializados submetidos a uma sociabili-
As lições que aprendi até aqui, sempre na interação e nos conflitos, per-
dade violenta, ainda hoje, provoca reações (constatadas nas reuniões pedagógicas d'
111 ti 1111" li
I 11 somente estar defendendo esta Tese, mas, também, ter me tornado
que participei na escola, como professor) tais como aquelas que ocorriam comigo,
1'11111m ('( n ursado - D.E., da UFF Passei em primeiro lugar no concurso de
quando fui alunol''.
:1va a de professor da disciplina: Alfabetização
li 111,1'.\1':1 e Linguagens, no Institu-

Em 2005, fui aprovado para o curso de mestrado do Programa d P )s I di )I,ducaS'lio de Angra dos Reis (UFF). Com isso, aumenta mais ainda a minha

-graduação em Educação da UEl J. Aqui. illS -ri-rne m utra r de de int r:lç'( 's 11111,Ihilitl:id . na luta com os "de baixos", visto que, como professor concursado

na qual conheci duas p .ssons iIllPOI'li\llIíssilll.IS: o pr( fI'ss( r I '1I:1to 1\111'rSOIl l' ,I , di I iplina, iarr 'go 'ol1ligo o dil 'ma de não t r onseguido convencer meus
11 (l,tis (' minha illll.1 .1 ~I' ,dLdH'j izar '111 omi 1(). Essn probl mática será abor-
10 t\tUIIIIII111• n HHIIH 111 IIIIIN
111111I ,I 111111 ,,1111 ,,11111'11111
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46 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 47

Passo, a seguir, a apresentar os caminhos metodológicos que estão sendo Ao ingressar no mestrado e iniciar todo um processo de leitura teórica

construídos nas fronteiras hibridizadas com a minha história de vida como mora- acerca dos embates epistemológicos no campo das pesquisas com o cotidiano, pude

dor da Rocinha e como professor de uma escola que atende, predominantemente, perceber que entre as premissas fundamentais dos pesquisadores desse campo, uma

moradores de três favelas de suas adjacências. O que estou tentando sugerir quando contemplava as minhas intuições de pesquisador popular!': aquela que diz respeito

trago a minha história é que não estou somente elaborando uma tese de doutora- à indissociabilidade entre sujeito e objeto na construção discursiva e fenomeno-

do. Aprendi no ofício de chaveiro, na Rocinha, que confeccionar uma chave não I'gica. Isto é, nesta perspectiva de pesquisa, a qual defendemos e acreditamos, não

se resumia apenas a esse ato em si mesmo. O doutorado segue a mesma lógica do " possível separar aquele que pesquisa do que é pesquisado, tal como propôs o

chaveiro, que é abrir portas em busca de melhor compreender e agir com os mun- P sitivismo sociológico, visto que, o que é pesquisado é, também, uma construção
dos, fazendo política de intervenção-reflexão sobre os impactos das nossas histórias ti pesquisador. •

nos processos globais, dos quais somos parte, e o impacto dos processos globais nas
Após tal constatação, através de muitas leituras, aconteceu um "reacender"
nossas narrativas de lutas.
IIL- muitas questões levantadas durante as conversas informais ocorridas principal-

111.nte na calçada da loja do chaveiro em que trabalhava. Posso afirmar, hoje, que as
Hibridização identitária: uma chave-mestra na pesquisa com a II111itasreflexões feitas, na época, por nós, moradores comuns da favela da Rocinha,
favela 1,1dialogavam com diversos autores que leio atualmente. Isso demonstra que as te-

111I,ISsó fazem sentido porque estão vivas e em movimento no cotidiano.


Tenho a convicção de que os processos investigativos e a curiosidade epis-
À medida que fui lendo Carlo Ginzburg (1989; 2006), Machado Pais
temológica que impulsionaram esta pesquisa com a favela não se inicia, somente,
( I()().l) , Azanha (1991), e, principalmente, Mignolo (2003) e a sua reflexão sobre os
no ato de uma obrigatoriedade, ou na exigência burocrática de um programa de
I III\'d:1I11entos das histórias locais e os projetos globais, reacendi a memória e apri-
mestrado ou doutorado, para a construção de um objeto de pesquisa e, consequen-
111111\'1ímpeto de pesquisador popular. Após as leituras e os debates realizados nas
temente, a elaboração de uma Tese. Creio que o que nos leva a tentar compreender
11111 vrsidad s em que passei, pude elaborar um projeto de pesquisa que era apenas
os cotidianos em que estamos inseridos é uma constante inquietude, oriunda das
I I u-matização de todas as indagações que sempre estiveram latentes nas análises
nossas práticas e inserções sociais, sejam elas numa escola, numa favela, ou em qual-
I 1111111,111
as das minhas experiências (e de outras pessoas), nas e com as circunstâncias
quer outro espaço de pertencimento.
IIpl\'SS~O • d lutas, em que estávamos inseridos.
Nesse sentido, o que me instigou a conhecer e compreender melhor os
'Ihis inquietudes me levaram, primeiro, a investigar uma questão territorial
processos históricos de existência social na Rocinha foram as próprias conversas c
I 1'.11i,di":l~-5 racializad na Rocinha. Fazíamos, como moradores dotados de
questionamentos que emergiram durante todo o tempo em que morei nesta favela.
I ut rosid.idc .pis '\11 16 ti ':1, muitas reflexões em c nversas informais a res-
Muitas pessoas estão contidas nas minhas in bg:lçtks. Aliás, muitas das indngaçô 'S

emergiram das curiosidad 'S d 'SS:1SP '~~(),I 111111,I' qll,li~ eu ()IIV .rs -i l' int '1";)li
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48 Escola-Favela e Favela-Escola Favela, escola e sociabilidades 49

peito da geografia local. Uma das coisas que mais nos intrigava era o fato de ser endo, com isso, verificar possíveis enredamentos das alterações, dos olhares
observável uma diferenciação de grupos sociais na ocupação da favela. Um grupo e das políticas que perpassam a Rocinha durante esse período.

de amigos meus, moradores desde criança na parte superior do morro (na rua Um), Identificar as mudanças de concepção de violência e as alterações nos
acreditava que essa região havia sido originada por remanescentes de escravos. Eles padrões de organização das rotinas cotidianas com a ação-intervenção
citavam como exemplo um local denominado Cesário!'. do tráfico.

A partir deste "reacender" da memória, conjugada com as leituras feitas, A escolha do público a ser entrevistado pautou-se nos seguintes critérios:
preparei um projeto com algumas estratégias de pesquisas, acreditando ser possível Ser morador da Rocinha há pelo menos quatro décadas.

encontrar os sinais e as pistas das histórias mal-ditas que, a meu ver, foram soterradas Moradores de subáreas diferentes que pudessem contemplar algumas
com a avalanche das reformas urbanas do Rio de Janeiro, nas décadas de 0950,60 e das múltiplas possibilidades de experiência de espaço na favela. •
70, e que incharam as favelas da cidade com a imigração nordestina.
Foram feitas entrevistas com os seguintes moradores:

Uma das estratégias de investigação foi elaborar um roteiro de entrevistas Um morador militante. Fundador de uma das associações local. Ex-di-

semiabertas, numa perspectiva metodológica que não se transformasse em uma retor do sindicato dos Metroviários e atual secretário geral da principal
"camisa-de-força", visto que a premissa não era a de um universalismo metodoló- associação de moradores da Rocinha.

gico, mas, ao contrário, uma entrega às possibilidades de surpresas com o inespe- Uma moradora da parte baixa da favela, que nunca teve grandes en-
rado. O roteiro estava orientado para as seguintes temáticas: origem da Rocinha, volvimentos políticos, porém, passou a maior parte do seu tempo "fia-
organização espacial, segregação racial, história e estrutura do tráfico, relação mora- nando" pelos becos e vielas da Rocinha;

dor-escola. Hoje, me questiono: como esperar surpresa com um roteiro norteador? Um casal de moradores, também sem grandes envolvimentos políticos.
Porém, o fato é que estabeleci, ainda, alguns objetivos: Ele construiu muitas casas na favela, era pedreiro no local, e ela (sua

• Refletir sobre as percepções dos entrevistados no que dizia respeito às esposa) era cozinheira de creche e traz um olhar sobre as mães e as
relações entre raça e modernidade, origem social e histórica da Rocin- crianças durante o período pesquisado.

ha e as possíveis alterações ao longo do tempo. Dois jovens (um homem e uma mulher) participantes dos grupos de
• Obter uma narrativa de como se deu e quais foram as mudanças e al- conversas gravadas.
ternâncias dos poderes locais (o poder da força, os traficantes e o poder
!\p' s a elaboração do roteiro, o passo seguinte foi uma conversa com al-
político, da associação de moradores, das instituições estatais e sociais,
1111 .unigos e antigas apresenrando-lhes a proposta da pesquisa de campo. Pergun-
ONG's).
1 11 11" 'a havarn da proposta, e se estavam dispostos a me ajudar, pois sem a ajuda
• Tentar identificar o ''jogo'' de posicionamentos hierárquicos das crianças,
uiria r mp 'r s limites de uma pesquisa apenas convencional,
com idade escolar do primeir e segundo ciclos (6 a 11/12 anos), n:IS
I' um títlllo 11 dOUI( r, .mb rn n~ d i asse d reconhecer a im-
relaçõ s com os adultos, 1\.1 /.1 W I:!, .ntr s an s de 1970 ' OOH,plet -nd
1111.\ d~'ss' títldo 1\.1 11111\11 I II.ql'lúll,I, ., sol» -tudo, \I() que o 111 'SIl1 pod ria
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111\\11
50 Escola-Favela e Favela-Escola DPetAlii

Ao me debruçar sobre as questões emergentes ficou evidente que, quanto Contextos e referentes de uma história
mais fazia leituras e releituras dos processos de pesquisa com o cotidiano, fazia mais
mal-dita
autocríticas acerca da minha condição de pesquisador com os moradores. Confesso
que, ao organizar o roteiro, não passei ileso da concepção positivista, que marca

fortemente a nossa formação acadêmica. É possível perceber, agora, relendo-me,


Falar da origem da favela é, ainda hoje, algo controverso. Os estudos so-
como estabeleci determinadas hipóteses direcionadas que, contraditoriamente, im-
ciológicos sobre ás favelas durante um tempo tentaram traçar alguns marcos de
punha antolhos à minha visão, limitando, consequentemente, as possíveis surpresas
origem desses espaços geográficos e sociais, cuja população local é constituída,
do cotidiano.
li" 'do~nantemente, pelos mais pobres da cidade. Parece que, na atualidade, alguns
Passo, d seguir, ao detalhamento desses processos e registros metodológi- ,11I Cores se mostram cautelosos no que diz respeito aos marcos de origem da~ cons-
cos que mapearam os caminhos que peguei, por entre becos e vielas, nessa ida ao unções das favelas. É possível perceber isso com clareza, por exemplo, no texto de
campo. Nesse primeiro momento de investigação apresento indícios de que há na Vrlladares (2000).
Rocinha um forte impacto da colonialidade do saber e do poder, que promove
A autora, num artigo intitulado "A gênese da favela carioca", publicado na
múltiplos processos de subalternização e silenciamentos. Anulam-se dos discursos
I ivista Brasileira de Ciências Sociais, coloca em pauta na agenda acadêmica a questão
as histórias e experiências de vida de povos e pessoas que são fundamentais para
d.1 origem da favela. O artigo tenta fazer um inventário das produções sobre as fa-
a compreensão de uma totalidade, que é constituída por essas redes complexas de
I I.IS,anteriores às ciências sociais. O estudo é feito a partir de uma bibliografia le-
sociabilidades cotidianas, silenciadas.
.iut.rcln p 10 Urbandata', e, segundo a autora, "permite reconstituir a evolução das

111'1 'S .ntações sobre esse espaço social a partir de marcos e momentos que fogem à

1" IIl xlização tradicionalmente utilizada" (V ALLADARES, 2000). Baseada nesse estudo,

I .uuora sugere que nas interpretações acadêmicas sobre o Brasil e sobre o Rio de

11I1l'1I0,110início do século XX, há certo desinteresse pelo tema favela. Tais discus-

I I Ilrlq arn apenas um lugar secundário nos debates. "Escreve-se muito sobre a

1"1111%1,11l3SO olhar do cientista está voltado para o cortiço, para o sanitarismo e


11,1,I Idorl11a Pereira Passos" (2000).

1\ favela, até então, estava presente geograficamente, mas ausente e invisi-


II/.li 1.1socin lm nte nos discursos acadêmicos dominantes. A descoberta da favela

I hluuulntu-Brusil(I) 111 'o ti !)lIdossobre o Brasil Urbano), sob a coordenação emérita de Licia
"1111111 VnlludurH' X 'i'lllIvlIdI' I 111:1, Antonio Ma .hado da ilva, é U111 verdadeiro "quem é
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