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Um dos grandes privilégios de ser amigo de um escritor foda é poder ler seus originais e

participar do processo de sua criação. Recentemente, no entanto, terminei a leitura de


"Paraízo-Paraguay", do Marcelo Labes, mas pouco (quase nada) pude fazer no sentido de
sugerir mudanças estruturais ou rumos alternativos no trabalho apresentado. O livro caiu no
meu colo já pronto.

Escrito numa prosa ágil, decidida e eficiente, mas nem por isso menos lírica, o primeiro
romance do Marcelo dá desdobramentos em ficção para algumas características cruciais da
sua produção recente em poesia: temos, em "Paraízo-Paraguay", a poética enciclopédica e a
contundência estilística do "Enclave"; o fundo nostálgico assombroso de "Trapaça"; e a
marginalidade social e regional reinvidicada pelo recentíssimo "Poeta Periférico", um poema-
manifesto que, pela edição caseira, inaugura também a vontade recente do autor de ter a
própria editora - o que será concretizado com a publicação deste primeiro romance.

"Paraízo-Paraguay" é a história pouco contada do passado alemão, nada glorioso, no Vale do


Itajaí, em Santa Catarina, através da saga de uma família que se estabelece na América pela via
do crime transatlântico e, num segundo momento, obtendo um pequeno pedaço de terra
como recompensa pela participação militar na Guerra do Paraguai. A partir de então, o texto
traça um panorama intergeracional de exatos 150 anos de solidões meridionais e de exílios,
pondo luz sobre questões espinhosas como as relações interétnicas na colônia do Vale, a
adesão de suas elites à Ação Integralista Brasileira e o trauma coletivo do silêncio linguístico
geral decretado por Vargas durante o Estado Novo - além de demonstrar, com visível
conhecimento de causa, o estado psíquico nada saudável da autoescravidão protestante no
cenário da cidade que, progressivamente, vai se estabelecendo como centro operário e fabril.

Com técnica literária atualizadíssima, misturando influências que vão do estilo documental-
televisivo à intercalação mais ou menos organizada de fragmentos espaço-temporais
heterogêneos - em vinhetas de vozes anônimas que são como intervalos férteis e dinâmicos no
corpo da trama central - que, por sua vez, é trabalhada com linearidade clássica -, "Paraízo-
Paraguay" é capaz de proporcionar boa fruição estética, potencializada pelo evidente caráter
combativo de pensar a história da própria cidade e da própria ascendência no contrapelo da
rígida narrativa oficial. "Paraízo-Paraguay", assim, acerta duas vezes: por contar, e muito bem,
uma ótima história; e por apresentar um trabalho desfolclorizante de fôlego, sempre seguindo
a linha da desconcertante aliança entre agudeza e leveza que já está virando marca registrada
de seu escritor.

Recomendadíssimo.

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