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DO EFEITO VINCULANTE:

SUA LEGITIMAÇÃO E APLICAÇÃO


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CELSO DE ALBUQUERQUE SILVA

DO EFEITO VINCULANTE:
SUA LEGITIMAÇÃO E APLICAÇÃO

Editora Lumen Juris


Rio de Janeiro
2005
Copyright © 2005 by Celso de Albuquerque Silva

Produção Editorial
Livraria e Editora Lumen Juris Ltda.

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Impresso no Brasil
Printed in Brasil
Para meus pais:
Ivan Demetri Silva, que desde cedo me ensinou
o valor da retidão e honradez de caráter;
Irani de Albuquerque Silva, que me preparou
para vida, ensinando-me o caminho do amor e dos
sentimentos nobres.

Para meus sogros:


Antonio Leite Paessano, um homem de pouco
saber, mas muita sabedoria;
Ana de Moraes Paessano, uma admirável mulher
de fibra e muita sensatez.
Sumário

Apresentação ............................................................................................. xiii


Introdução .................................................................................................. xix

PARTE I – DOS PRINCÍPIOS LEGITIMADORES DO EFEITO VINCULANTE

Capítulo 1 – Igualdade e Efeito Vinculante............................................ 1


1. Introdução ............................................................................................. 1
2. O conceito de igualdade...................................................................... 2
2.1. Uma concepção de igualdade...................................................... 3
2.2. O princípio formal da igualdade.................................................. 7
3. Igualdade formal e justiça................................................................... 8
4. Eqüidade como uma teoria de Justiça – A teoria de Rawls ........... 10
4.1. O equilíbrio reflexivo..................................................................... 13
4.2. A posição original ......................................................................... 15
5. Igualdade e coerência ......................................................................... 21
5.1. Coerência atual ............................................................................. 21
5.2. Coerência futura............................................................................ 23
6. Igualdade e efeito vinculante ............................................................. 24
7. Crítica ao princípio da igualdade como legitimador do efeito vin-
culante – o dogma da única decisão correta .................................... 32
7.1. A idéia regulativa da única decisão correta – uma resposta à
crítica.............................................................................................. 34
7.1.1. A exigência de correção dos discursos jurídicos – seu
sentido ................................................................................. 36
7.2. A jurisdição extraordinária e a idéia regulativa da única deci-
são correta. A questão das súmulas 400 e 343 do Supremo
Tribunal Federal............................................................................. 37
7.2.1. A posição do Supremo Tribunal ........................................ 38
7.2.2. A posição do Superior Tribunal de Justiça ...................... 41
7.3. A idéia de única decisão correta e integração pessoal – uma
outra resposta à crítica................................................................. 46
Capítulo 2 – Legalidade e Efeito Vinculante .......................................... 51
1. Introdução ............................................................................................. 51
2. O princípio da legalidade .................................................................... 57

vii
2.1. A vinculação necessária entre o princípio da legalidade e
controle judicial ............................................................................. 58
3. O princípio da legalidade ampliado – seu sentido........................... 60
3.1. O positivismo jurídico de Herbert Hart – o direito como siste-
ma de regras .................................................................................. 61
3.1.1. O direito como um sistema de ordens baseado em
ameaças ............................................................................... 62
3.1.2. O sentido das regras .......................................................... 63
3.1.3. Direito como um sistema de regras primárias e secun-
dárias ................................................................................... 65
3.2. A doutrina pós-positivista de Ronald Dworkin – o “direito co-
mo sistema de regras e princípios” ............................................ 67
3.2.1. Um conceito de direito ....................................................... 69
3.2.2. O princípio da integridade ................................................ 71
3.2.3. A concepção do direito como integridade....................... 74
4. Princípio da legalidade e efeito vinculante ....................................... 78
4.1. Crítica à legitimação do efeito vinculante pelo princípio da
legalidade....................................................................................... 86
4.2. A nova hermenêutica – resposta à crítica.................................. 87
4.2.1. A função normativa da interpretação judicial na nova
hermenêutica ...................................................................... 91
4.2.2. A vinculação das decisões proferidas em sede de inter-
pretação conforme a constituição e de inconstituciona-
lidade parcial sem redução de texto. O reconhecimen-
to e autorização do legislador à função normativa da
interpretação judicial na nova hermenêutica.................. 96
Capítulo 3 – Democracia e Efeito Vinculante ......................................... 103
1. Introdução ............................................................................................. 103
2. Democracia dos Antigos e Democracia dos Modernos ................... 105
3. O que é democracia? ........................................................................... 110
4. Liberdade .............................................................................................. 113
4.1. Dois conceitos de liberdade......................................................... 115
4.1.1. Conceito de liberdade negativa ........................................ 115
4.1.2. Conceito de liberdade positiva ......................................... 117
4.1.3. A liberdade na Democracia ............................................... 118
5. Democracia e efeito vinculante .......................................................... 120
5.1. O princípio majoritário.................................................................. 121
5.2. Democracia e independência judicial......................................... 125
5.2.1. Independência judicial e imparcialidade......................... 126
5.2.2. Liberdade democrática e Efeito vinculante..................... 135

viii
PARTE II – DA APLICAÇÃO DO EFEITO VINCULANTE

Capítulo 4 – O Precedente Judicial nos Sistemas da Common e Ci-


vil Law ................................................................................................... 141
1. Introdução ............................................................................................. 141
2. O papel do judiciário nas modernas sociedades.............................. 143
2.1. Modelos teóricos do papel desempenhado pelas cortes no
desenvolvimento do direito de criação judicial ......................... 146
3. A vinculação ao precedente nos sistemas jurídicos da common
law ......................................................................................................... 150
4. A vinculação ao precedente no sistema romano-germânico .......... 152
4.1. A vinculação no direito alemão ................................................... 153
4.2. A vinculação no direito canadense (província de Quebec)...... 155
4.3. A vinculação no direito francês ................................................... 156
4.4. A vinculação no Brasil .................................................................. 159
5. Possibilidade de uma aplicação ampla do instituto do efeito vin-
culante em nosso sistema jurídico ..................................................... 166
5.1. Súmula vinculante......................................................................... 170
5.1.1. O processo de formação da doutrina vinculante nos
Estados Unidos da América .............................................. 172
5.1.2. O contexto brasileiro .......................................................... 174
5.2. Súmula vinculante ou súmula impeditiva de recurso? ............. 176
Capítulo 5 – Fundamentos Teóricos do Efeito Vinculante .................... 181
1. Noções conceituais .............................................................................. 181
1.1. Precedentes vinculativos e precedentes persuasivos .............. 181
1.2. Holding/ratio decidendi ................................................................ 182
1.3. Obiter dictum................................................................................. 184
1.4. Rationale......................................................................................... 186
2. Modelos teóricos de vinculação ao precedente judicial .................. 187
2.1. Modelo minimalista ...................................................................... 188
2.2. Modelo centrado no resultado ..................................................... 191
2.3. Modelo normativo ......................................................................... 194
2.4. Análise crítica dos modelos de vinculação ................................ 195
2.4.1. O modelo centrado no resultado....................................... 195
2.4.2. O modelo minimalista ........................................................ 197
2.4.3. O modelo normativo ........................................................... 200
2.5. Modelo minimalista x modelo normativo – fratura ou comple-
mentaridade?................................................................................. 203
3. Métodos de identificação do holding................................................. 210
3.1. Método fático-concreto................................................................. 211

ix
3.2. Método abstrato-normativo ......................................................... 213
3.3. Análise dos métodos .................................................................... 215
4. Um caso ilustrativo .............................................................................. 219
5. Conseqüências processuais decorrentes da adoção do efeito vin-
culante ................................................................................................... 222
5.1. Medida cabível da decisão posterior que afronte o preceden-
te vinculante .................................................................................. 222
5.2. Limites objetivos da decisão vinculante .................................... 223
5.2.1. Leis/atos normativos de conteúdo semelhante .............. 227
5.3. A concessão de liminar nos processos de controle concentra-
do de constitucionalidade ............................................................ 230
5.3.1. Efeitos da concessão de liminar nas ações declaratórias
de constitucionalidade....................................................... 230
5.3.2. Efeitos da concessão de liminar nas ações diretas de
inconstitucionalidade ......................................................... 232
5.3.3. Efeitos da concessão de liminar nas ações de argüição
de descumprimento de preceito fundamental ............... 235
5.4. Efeitos da denegação de liminar nas ações de controle con-
centrado da constitucionalidade de lei ...................................... 235
6. Limites subjetivos da decisão proferida no precedente.................. 242
6.1. Vinculação das instâncias inferiores do Poder Judiciário e do
Poder Executivo............................................................................. 242
6.1.1. Legitimidade ativa para propor reclamação visando
garantir a autoridade da decisão da corte superior do-
tada de efeito vinculante ................................................... 244
6.2. Vinculação da própria corte prolatora da sentença .................. 245
6.3. A distinção (distinguish) .............................................................. 247
6.3.1. Limitando a regra com base em inconsistência com
outra regra ........................................................................... 248
6.3.2. Limitando a regra com base em claro e inadvertido erro . 250
6.3.3. Limitando a regra em situações que a corte vinculante
claramente não queria que fossem abrangidas pela re-
gra fixada............................................................................. 251
6.3.4. Ampliando a regra fixada no precedente em razão de
um desenvolvimento posterior do direito ........................ 256
Capítulo 6 – A Mudança na Doutrina Vinculante .................................. 259
1. Introdução ............................................................................................. 259
2. Razões que legitimam a mudança na doutrina vinculante ............. 262
2.1. A completa invalidação da doutrina vinculante (overruling)... 266
2.1.1. Doutrina obsoleta e desfigurada....................................... 267

x
2.1.2. A doutrina é atualmente considerada plena e substan-
cialmente injusta e/ou incorreta ....................................... 272
2.1.3. A doutrina é inexeqüível ................................................... 278
2.2. A invalidação da doutrina com efeitos futuros (prospective
overruling) ...................................................................................... 284
2.3. A técnica de sinalização/aviso (signaling/caveat) .................... 295
2.4. Invalidação parcial da regra (Overriding) .................................. 296
3. Anotações sobre a compatibilidade do overruling e overriding e a
doutrina do efeito vinculante.............................................................. 303
Considerações Finais ................................................................................ 305
Referências Bibliográficas ........................................................................ 311

xi
Apresentação

É com imenso prazer que escrevo essas palavras introdutórias a


propósito do trabalho desenvolvido por Celso de Albuquerque Silva,
intitulado “Do Efeito Vinculante – sua legitimação e aplicação”. Referida
obra é resultado de sua extensa pesquisa no programa de Doutorado
em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro.
No presente estudo, pretendeu o autor aprofundar a análise sobre
o instituto do efeito vinculante e explicitar as razões pelas quais deve-
riam as cortes a quo perfilhar a decisão das cortes superiores, além de
propor uma teoria coerente sobre os fundamentos da aplicação do refe-
rido instituto.
Nas palavras de Celso Albuquerque,

“...apesar do efeito vinculante já existir em nosso sistema há


mais de uma década e estar sendo paulatinamente ampliado para
alcançar outras hipóteses, esse instituto tem sofrido sérias objurga-
ções por parte da doutrina e parcela do judiciário quanto à sua legi-
timidade. Como um consectário lógico dessa resistência de parte
dos operadores do direito, pouco se tem aprofundado no estudo dos
fundamentos teóricos da ‘doutrina vinculante’”.

O Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, ao disciplinar


a chamada representação interpretativa, introduzida pela Emenda no 7
de 1977, estabelecia que a decisão proferida na representação interpre-
tativa seria dotada de efeito vinculante (art. 187 do RISTF). Em 1992, o
efeito vinculante das decisões, proferidas em sede de controle abstra-
to de normas, foi referido em Projeto de Emenda Constitucional apre-
sentado pelo Deputado Roberto Campos (PEC no 130/1992).
No aludido projeto, distinguia-se nitidamente a eficácia geral (erga
omnes) do efeito vinculante. Tal como assente em estudo que produzi-
mos sobre este assunto, incorporado às justificações apresentadas no
projeto, a eficácia erga omnes e o efeito vinculante deveriam ser trata-
dos como institutos afins, mas distintos.

xiii
A Emenda Constitucional no 3, promulgada em 16 de março de
1993, que, no que diz respeito à ação declaratória de constitucionalida-
de, inspirou-se direta e imediatamente na Emenda Roberto Campos,
consagra que “as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal, nas ações declaratórias de constitucionalida-
de de lei ou ato normativo federal, produzirão eficácia contra todos e
efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e
do Poder Executivo” (art. 102, § 2o).
Mais recentemente, a Lei no 9.868, de 1999, estabeleceu, no art. 28,
parágrafo único, que “a declaração de constitucionalidade ou de incons-
titucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e
declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, tem
eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder
Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”.
Assim, o legislador assumiu uma nítida posição com o objetivo de
interpretar o efeito vinculante, que, na referida fórmula, passa a abran-
ger não só as decisões proferidas na ação declaratória de constitucio-
nalidade, mas também aquelas adotadas na ação direta de inconstitu-
cionalidade.
Tal constatação parece legitimar a investigação sobre o significa-
do do “efeito vinculante”, inspirado diretamente pela chamada
Bindungswirkung do direito germânico (§ 31, I, da Lei da Corte Consti-
tucional alemã).
A doutrina constitucional alemã há muito vinha desenvolvendo
esforços para ampliar os limites objetivos e subjetivos da coisa julgada
no âmbito da jurisdição estatal (Staatsgerichtsbarkeit). Importantes
autores sustentaram, sob o império da Constituição de Weimar, que a
força de lei não se limitava à questão julgada, contendo, igualmente,
uma proibição de reiteração (Wiederholungsverbot) e uma imposição
para que normas de teor idêntico, que não foram objeto da decisão judi-
cial, também deixassem de ser aplicadas por força da eficácia geral.
Essa concepção refletia, certamente, a idéia dominante à época de
que a decisão proferida pela Corte teria não as qualidades de lei
(Gesetzeseigenschaften), mas, efetivamente, a força de lei
(Gesetzeskraft). Afirmava-se inclusive que o Tribunal assumia, nesse
caso, as atribuições do Parlamento ou, ainda, que se cuidava de uma
interpretação autêntica, tarefa típica do legislador. Em se tratando de
interpretação autêntica da Constituição, não se cuidaria de simples
legislação ordinária, mas, propriamente, de legislação ou reforma cons-
titucional (Verfassungsgesetzgebung; Verfassungsänderung) ou de

xiv
decisão com hierarquia constitucional (Entscheidung mit
Verfassungsrang).
Embora o conceito de Bindungswirkung (efeito vinculante) corres-
ponda a uma tradição do direito alemão, tendo sido também adotado
por diversas leis de organização de tribunais constitucionais estaduais
aprovadas após a promulgação da Lei Fundamental, não se pode afir-
mar que se trate de um instituto de compreensão unívoca pela doutri-
na. Não são poucas as questões que se suscitam a propósito desse ins-
tituto, seja no que concerne aos seus limites objetivos, seja no que res-
peita aos seus limites subjetivos e temporais.
Entre nós, pretendeu-se, com o efeito vinculante, conferir eficácia
adicional à decisão do Supremo Tribunal Federal, outorgando-lhe am-
plitude transcendente ao caso concreto. Os órgãos estatais abrangidos
pelo efeito vinculante devem observar, pois, não apenas o conteúdo da
parte dispositiva da decisão, mas a norma abstrata que dela se extrai,
isto é, que determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não
apenas aquela objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucio-
nal ou inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado.
O Supremo Tribunal Federal percebeu que não poderia deixar de
atribuir significado jurídico à declaração de inconstitucionalidade pro-
ferida em sede de controle incidental, ficando o órgão fracionário de
outras Cortes exonerado do dever de submeter a declaração de incons-
titucionalidade ao plenário ou ao órgão especial, na forma do art. 97 da
Constituição. Não há dúvida de que o Tribunal, nessa hipótese, acabou
por reconhecer efeito jurídico transcendente à sua decisão. Embora na
fundamentação desse entendimento fale-se em quebra da presunção
de constitucionalidade, é certo que, em verdade, a orientação do
Supremo acabou por conferir à sua decisão algo assemelhado a um
efeito vinculante, independentemente da intervenção do Senado. Esse
entendimento está hoje consagrado na própria legislação processual
civil (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei no
9.756, de 17.12.1998).
Como se sabe, a ampliação do sistema concentrado, com a multi-
plicação de decisões dotadas de eficácia geral, acabou por modificar
radicalmente a concepção que dominava entre nós sobre a divisão de
poderes, tornando comum no sistema a decisão com eficácia geral, que
era excepcional sob a Emenda Constitucional de 16/65 e sob a Carta de
1967/69.
No sistema constitucional de 1967/69, a ação direta era apenas
uma idiossincrasia no contexto de um amplo e dominante modelo difu-

xv
so. A adoção da ADI, posteriormente, conferiu perfil diverso ao nosso
sistema de controle de constitucionalidade, que continuou a ser um
modelo misto. A ênfase passou a residir, porém, não mais no modelo
difuso, mas nas ações diretas.
O advento da Lei no 9.882/99 conferiu conformação à ADPF, admi-
tindo a impugnação ou a discussão direta de decisões judiciais das ins-
tâncias ordinárias perante o Supremo Tribunal Federal. Tal como esta-
belecido na referida lei (art. 10, § 3o), a decisão proferida nesse proces-
so há de ser dotada de eficácia erga omnes e de efeito vinculante. Ora,
resta evidente que a ADPF estabeleceu uma ponte entre os dois mode-
los de controle, atribuindo eficácia geral a decisões de perfil incidental.
Vê-se, assim, que a Constituição de 1988 modificou de forma
ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis
as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle
incidental de inconstitucionalidade, especialmente da exigência da
maioria absoluta para a declaração de inconstitucionalidade e da sus-
pensão de execução da lei pelo Senado Federal (art. 52, X, da CF 88).
Como se vê, as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal
em sede de controle incidental acabam por ter eficácia que transcende
o âmbito da decisão, o que indica que a própria Corte vem fazendo uma
releitura do texto constante do art. 52, X, da Constituição de 1988, que,
como já observado, reproduz disposição estabelecida, inicialmente, na
Constituição de 1934 (art. 91, IV) e repetida nos textos de 1946 (art. 64)
e de 1967/69 (art. 42, VIII).
Portanto, é outro o contexto normativo que se coloca para a sus-
pensão da execução pelo Senado Federal no âmbito da Constituição de
1988.
Ao se entender que a eficácia ampliada da decisão está ligada ao
papel especial da jurisdição constitucional e, especialmente, se consi-
derarmos que o texto constitucional de 1988 alterou substancialmente
o papel desta Corte, que passou a ter uma função preeminente na guar-
da da Constituição a partir do controle direto exercido na ADIn, na ADC
e na ADPF, não há como deixar de reconhecer a necessidade de uma
nova compreensão do tema.
De qualquer sorte, a natureza idêntica do controle de constitucio-
nalidade, quanto às suas finalidades e aos procedimentos comuns
dominantes para os modelos difuso e concentrado, não mais parece
legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no con-
trole direto e no controle incidental.

xvi
Somente essa nova compreensão parece apta a explicar o fato de
o Tribunal ter passado a reconhecer efeitos gerais à decisão proferida
em sede de controle incidental, independentemente da intervenção do
Senado. O mesmo há de se dizer das várias decisões legislativas que
reconhecem efeito transcendente às decisões do STF, tomadas em sede
de controle difuso.
É possível, sem qualquer exagero, falar-se aqui de uma autêntica
mutação constitucional em razão da completa reformulação do sistema
jurídico e, por conseguinte, da nova compreensão que se conferiu à
regra do art. 52, X, da Constituição de 1988. Valendo-nos dos subsídios
da doutrina constitucional a propósito da mutação constitucional,
poder-se-ia cogitar aqui de uma autêntica reforma da Constituição sem
expressa modificação do texto.
Em verdade, a aplicação que o Supremo Tribunal Federal vem con-
ferindo ao disposto no art. 52, X, CF, indica que o referido instituto
mereceu uma significativa reinterpretação a partir da Constituição de
1988.
Assim, é de se esperar que a adoção da Súmula vinculante venha
a acelerar a necessária revisão da jurisprudência sobre o papel do
Senado Federal em sede de controle incidental de normas, permitindo
que se atribua eficácia geral à declaração de inconstitucionalidade da
lei proferida pelo Supremo Tribunal também no modelo difuso.
Sobre a questão do papel exercido pelo Senado Federal no contro-
le difuso de constitucionalidade, anota Celso Albuquerque:

O sistema de controle difuso da constitucionalidade tem o sério


inconveniente de abalar a exigência da certeza do direito e a segu-
rança nas relações que ele disciplina. Esse defeito se atenua sensi-
velmente no sistema da common law, exatamente em razão da ado-
ção do stare decisis. No Brasil, adotado o controle difuso, substi-
tuiu-se a doutrina do stare decisis pelo sistema de compartilha-
mento de funções no controle difuso da constitucionalidade das leis
com o Senado Federal, que não se mostrou eficaz. O resultado foi
uma crescente insegurança jurídica e incerteza no direito.

O trabalho de Celso Albuquerque aborda, com superioridade, rele-


vantes questões sobre o efeito vinculante.
A primeira parte é dedicada aos princípios legitimadores do insti-
tuto do efeito vinculante – o da isonomia, o da legalidade e o democrá-
tico e ao explorar. Na segunda parte, o autor estuda a aplicação da dou-

xvii
trina vinculante, mediante análise de diversos modelos de vinculação
aos precedentes judiciais, terminando, no capítulo terceiro, por abor-
dar, com bastante acerto, a tensão existente entre a necessidade de
estabilidade do sistema jurídico e as demandas de flexibilidade do sig-
nificado dos conteúdos das normas legais, a fim de adaptá-las às dinâ-
micas demandas da justiça social.
O autor contempla, pois, tema da maior importância para o desen-
volvimento e consolidação de nosso sistema constitucional.
Estou certo de que o estudo desenvolvido configura contribuição
significativa para o estudo do controle de constitucionalidade e o apri-
moramento da função jurisdicional em nosso país.
Brasília, maio de 2005.

Gilmar Ferreira Mendes

xviii
Introdução

A presente obra, que foi resultado de estudo levado a efeito para


fins de doutoramento em direito, versa sobre o instituto do “efeito vin-
culante”, ou seja, a obrigação das cortes seguirem precedentes judi-
ciais. O trabalho tem por finalidade explicitar as razões pelas quais as
cortes de nível hierárquico inferior devem obedecer o que ficou decidi-
do pelas cortes superiores e, após descortiná-las, estruturar em uma
teoria coerente os fundamentos da aplicação desse instituto.
O “efeito vinculante” foi introduzido no ordenamento jurídico
nacional no ano de 1993, através da Emenda Constitucional de no 03
que, ao acrescentar o parágrafo segundo ao artigo 102 da Constituição,
atribuiu a eficácia vinculante às decisões de mérito proferidas pelo
Supremo Tribunal Federal na ação declaratória de constitucionalidade.
Posteriormente, o legislador ordinário estendeu essa eficácia às deci-
sões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na ação direta de
inconstitucionalidade, ao dispor no parágrafo único do artigo 28 da Lei
no 9.868, de 10 de novembro de 1999, que seria dotada dessa eficácia
vinculante a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalida-
de, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração
parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto. A Emenda
Constitucional no 45/2004, que tratou da reforma do Judiciário, atribuiu
esse efeito também para as decisões do STF proferidas no controle
difuso de constitucionalidade, desde que objeto de súmula aprovada
por dois terços de seus membros.
É interessante notar, entretanto, que apesar do efeito vinculante já
existir em nosso sistema há mais de uma década e estar sendo paula-
tinamente ampliado para alcançar outras hipóteses, esse instituto tem
sofrido sérias objurgações por parte da doutrina e parcela do judiciário
quanto a sua legitimidade. Como um consectário lógico dessa resistên-
cia de parte dos operadores do direito, pouco se tem aprofundado no
estudo dos fundamentos teóricos da “doutrina vinculante”.
Diante dessa realidade, optou-se por dividir o trabalho em duas
partes. A primeira irá tratar dos princípios que legitimam a adoção do
efeito vinculante, com o que se pretende vencer as resistências que são
opostas ao novel instituto jurídico. A seu turno, a segunda parte bus-

xix
cará aprofundar a discussão sobre os fundamentos teóricos para uma
correta operacionalização do efeito vinculante.
Na primeira parte foram selecionados três princípios legitimado-
res do instituto do efeito vinculante. O princípio da isonomia, o princí-
pio da legalidade e o princípio democrático. Os dois primeiros porque
são eles que historicamente justificaram a adoção desse efeito no sis-
tema jurídico da common law onde tomou a forma da doutrina do stare
decisis. O último, porque tem sido utilizado pela doutrina nacional, jun-
tamente com os dois primeiros para, paradoxalmente, criticar o institu-
to do efeito vinculante. Com base nesses princípios, pretende-se refu-
tar todas essas críticas e reavivar a idéia original de que eles, longe de
repelir, em verdade legitimam o “efeito vinculante”.
Nesse passo, impende ressaltar que, classicamente, o efeito vin-
culante tem sido considerado a melhor política judicial porque permite
concretizar a regra de justiça consubstanciada no mandamento isonô-
mico de que os iguais devem ser tratados igualmente. Desse princípio
deflui a regra de que litígios judiciais substancialmente semelhantes
devem ser destinatários de decisões judiciais idênticas. Essa regra de
justiça, portanto, exige um coerente tratamento dos casos judiciais. As
decisões judiciais precisam ser justificadas e é essa necessidade de
justificação que impõe uma exigência de coerência com padrões públi-
cos de justiça. Um desses princípios públicos de justiça é, como visto,
o de que casos iguais devem ter tratamento igual. Como a coerência
das decisões judiciais se dá com princípios públicos de justiça, esses
princípios são externos à própria decisão e se aplicam tanto a decisões
concomitantes como a decisões futuras, e essa aplicação a decisões
futuras é que forma a base legitimadora da adoção do efeito vinculan-
te de precedentes judiciais, conferindo uniformidade no tratamento
jurídico dos litígios sociais.
O segundo princípio que legitima a adoção do efeito vinculante é
o princípio da legalidade que encarna o ideal do governo das leis – rule
of law. As vantagens da adoção da rule of law são classicamente refe-
renciadas à previsibilidade do significado das leis e dos resultados de
sua aplicação, com o que se maximiza a liberdade dos cidadãos ao tor-
nar previsíveis as conseqüências legais de suas ações, permitindo-lhes
planejar e estruturar suas vidas em padrões razoáveis de confiabilida-
de. Como consectário, obtém-se um ganho líquido de eficiência na ges-
tão dos conflitos sociais pela natural redução de demandas que aumen-
tariam exponencialmente na ausência de regras claras de conduta.

xx
É o princípio da legalidade que garante consistência da ordem
jurídica e essa consistência deve se traduzir também nas decisões judi-
ciais, pois que o ordenamento jurídico nada mais é do que sua interpre-
tação que, em última instância, é levada a efeito pelo poder judiciário.
O efeito vinculante assegura essa consistência judicial ao tornar obri-
gatório o dever das cortes inferiores obedecerem os precedentes das
cortes superiores. Não é por outra razão que tanto teorias positivistas
quanto pós-positivistas sobre o que é o direito, devidamente tratadas
no capítulo 2 da primeira parte, acolhem em seu seio esse instituto.
A seu turno, o princípio democrático também pode ser considera-
do como legitimador do efeito vinculante. A uma, porque a obrigatorie-
dade de seguir os precedentes da corte superior atua como um auto-
controle da função judicial (self restraint), funcionando como um ante-
paro ao arbítrio judicial que poderia advir do exercício de um poder
absolutamente livre de qualquer obrigação de respeito à coerência e
consistência nas decisões judiciais. A duas, porque o efeito vinculante
reforça o princípio da maioria e capacita o Judiciário a resistir à tenta-
ção de repetidamente “legislar” sobre o mesmo assunto, ainda que
para o caso concreto, interpretando e re-interpretando uma particular
norma legal.
Ao seguir estritamente uma regra de efeito vinculante quanto a
uma dada interpretação conferida pela corte superior, o Judiciário per-
mite aos cidadãos instar a legislatura a corrigir qualquer interpretação
politicamente errônea ou inconveniente porventura levada a efeito
pelas cortes judiciais, reconhecendo no Poder Legislativo o órgão cons-
titucional legitimado, por excelência, a tomar as decisões políticas fun-
damentais concernentes à boa vida dos cidadãos e ao bem comum.
A segunda parte do trabalho lida com a aplicação da doutrina vin-
culante e foi dividida em três capítulos.
O primeiro capítulo analisa as funções que, nos sistemas jurídicos
da common law e civil law, as cortes judiciárias exercem nas moder-
nas sociedades, para concluir que elas não se limitam a resolver litígios
intersubjetivos mas, também e principalmente, exercem uma função
normativa de enriquecimento e desenvolvimento do ordenamento jurí-
dico que se dirige à coletividade como um todo. Essa função normati-
va decorre da valorização do Poder Judiciário e reconhecimento de que
ele é um verdadeiro poder político e permite que as Cortes Superiores
legislem para as Cortes Inferiores via adoção do efeito vinculante.
O segundo capítulo descreve três modelos de vinculação aos pre-
cedentes judiciais e conclui que o mais adequado e que melhor respon-

xxi
de aos anseios da sociedade brasileira é um modelo misto. Um modelo
de vinculação condicional no âmbito dos Tribunais Superiores respon-
sáveis pela elaboração da doutrina vinculante e um normativo de vin-
culação estrita aos precedentes das cortes superiores, no âmbito dos
tribunais inferiores, que admite poucas e raras hipóteses em que as
cortes inferiores podem se afastar do precedente pelo manejo da técni-
ca da distinção. Com o objetivo de contribuir para o desenvolvimento
de discussões sobre tão relevante tema, adotou-se uma abordagem
estruturada na análise crítica de diversas decisões da Suprema Corte,
delas extraindo os fundamentos teóricos para uma adequada aplicação
da doutrina vinculante.
O último capítulo da segunda parte trata da tensão existente entre
as necessidades de estabilidade e previsibilidade do sistema jurídico e
as demandas de flexibilidade do significado dos conteúdos das normas
legais, a fim de adaptá-las às demandas de justiça social que são dinâ-
micas. Nesse capítulo, discorreu-se sobre os princípios institucionais
que devem reger o abandono total ou parcial da doutrina vinculante
anteriormente estabelecida. Também aqui optou-se, na medida do pos-
sível, a extrair tais princípios de uma análise crítica de diversas deci-
sões judiciais, tanto da nossa práxis jurídica, como da experiência alie-
nígena.
Derradeiramente, impende ressaltar que o presente trabalho,
desde sua primeira idealização, não teve jamais a pretensão de exaurir
tão palpitante assunto, mas tão-somente estimular o aprofundamento
de seu debate e propor algumas linhas de orientação nesse propósito.

xxii
PARTE I
DOS PRINCÍPIOS LEGITIMADORES
DO EFEITO VINCULANTE
Capítulo 1
Igualdade e Efeito Vinculante

1. Introdução

A justiça deve ser considerada um princípio fundamental, inte-


grando, portanto, o próprio conceito de direito e da sociedade. Nada
obstante, algumas vezes o seu lugar fundamental foi compreendido
muito mais intuitivamente do que analisado racionalmente pelo siste-
ma jurídico. Sabe-se apenas, e isto foi objeto de reiterado reconheci-
mento por nossos tribunais, que o direito nunca obrigou as Cortes a
decidirem de forma injusta ou, pelo menos, manifestamente iníqua.
Essa busca intuitiva sobre o conceito de justiça não é em si má e
não merece ser desprezada ou completamente abandonada. É impor-
tante, mesmo porque alguns pontos de vista morais só podem ser al-
cançados dessa forma. Nada obstante, embora relevante e, até mesmo
necessária em certas ocasiões limites, a intuição não é suficiente para
dar respostas robustas às questões colocadas por este tema.
A comungar-se a concepção da justiça como não sendo apenas
mais uma, porém, a primeira das virtudes sociais, razão pela qual as
leis e instituições iníquas, ainda que bem elaboradas e eficazes devem
ser abolidas,1 mister se faz reconhecer-se que os fundamentos estrutu-
rantes da concepção pública de justiça devem estar assentados em ba-
ses racionais, pois essa concepção constituirá a pedra fundamental das
relações travadas em qualquer comunidade humana bem ordenada.
Considerando-se que parte do que se entende por justiça provém
da intuição, os princípios que regulam a ordenação de uma determina-
da sociedade são naturalmente objeto de uma razoável disputa. Essa
circunstância conduz ao nascimento de várias determinadas e concre-
tas concepções de justiça.
Nesse sentido, revela-se importante a distinção do conceito de
justiça das suas diversas concepções. A diferença não é simplesmente
de forma, mas de fundo. Quando me refiro ao conceito de alguma virtu-

1
Celso de Albuquerque Silva

de ou instituição, v.g., a justiça, apelo ao que justiça significa sem dar


importância às minhas opiniões sobre o assunto. Quando formulo uma
concepção não apelo ao significado abstrato da instituição ou virtude,
mas concretizo e determino aquilo que entendo por justiça. Na concep-
ção, minhas opiniões sobre o assunto são fundamentais para sua com-
preensão e formulação. O conceito coloca uma questão para o debate e
a concepção intenta dar solução para o problema colocado.2
O conceito de justiça, portanto, representa aquele aspecto mais
abstrato existente nas diversas concepções concretas de justiça,
naquilo que todas possuem em comum apesar das divergências de
princípio. Em outras palavras, significa o ponto de “consenso sobrepos-
to de doutrinas abrangentes e razoáveis”,3 representativo das premis-
sas básicas endossadas por todas as concepções de justiça, cada qual
evidentemente a partir de seu ponto de vista específico.
Esse consenso se materializa no “fato de que as instituições são
justas quando não há discriminações arbitrárias na atribuição dos
direitos e deveres básicos e quando as regras existentes estabelecem
um equilíbrio adequado entre as diversas pretensões que concorrem na
atribuição dos benefícios da vida em sociedade”.4 A igualdade na atri-
buição dos direitos e deveres dos cidadãos é, portanto, uma caracterís-
tica presente em todas as concepções de justiça.

2. O conceito de igualdade

A idéia de sociedade de iguais remonta à antiguidade. Em Atenas,


explicava o sofista Protágoras, “quando o objeto de sua deliberação
implica sabedoria política, eles ouvem a cada homem, porque supõem
que todos devem participar desta virtude, do contrário, não poderiam
existir poleis”. (Platão, Protágoras, 322E-323A).5
Essa assertiva de Protágoras só foi possível em virtude da políti-
ca, criação grega excepcional. Da mesma forma que a política, também
a teoria política tem suas origens na Grécia antiga. A pólis foi concebi-
da idealmente como uma comunidade de iguais, os chamados politai,
que determinavam a política em debate aberto e organizado.

2
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Isso demonstra que não faltou ao pensamento grego a idéia de


que o melhor modo de se exercer o governo parte do pressuposto bási-
co da igualdade de natureza ou nascimento, em razão da qual todos os
indivíduos são iguais e igualmente dignos de exercer o poder político.
Igualdade, portanto, já desde a Grécia na linguagem política, tem um
significado valorativo altamente positivo, ou seja, se refere a alguma
coisa que se deseja.
Embora seja algo desejável, a doutrina afirma que descrever o que
seja igualdade não está isento de dificuldades e a dificuldade maior se
refere a sua indeterminação. Não se discute que formular em termos
concretos uma concepção de igualdade é questão submetida a fortes
divergências. Entretanto, em um primeiro momento e para os fins da
argumentação, nos será suficiente o recurso ao conceito de igualdade,
que pela própria definição é mais abstrato e genérico, situando-se no
ponto convergente das diversas concepções de igualdade.
Para a linguagem política e também jurídica, o conceito de igual-
dade indica uma relação entre pessoas ligadas entre si em virtude de
algum vínculo fático, posteriormente submetido a um juízo normativo.
A igualdade ou desigualdade de algo ou alguém só adquire relevância
quando relacionada com uma outra situação ou pessoa paradigmática.
Se em termos de conteúdo valorativo pode-se entender a idéia de
liberdade em si mesma quando afirmo “eu sou livre”, o mesmo não
ocorre quanto à idéia de igualdade. A assertiva “eu sou igual” deman-
da uma informação adicional concretizada na resposta à seguinte
questão: igual a quê ou a quem?
Assim, em termos de conceito, naquilo que é compartilhado pelas
diversas concepções, pode-se expressar que igualdade significa uma re-
lação entre pessoas e coisas que, depois de cotejadas com base em cer-
tos standards de comparação, sejam reputadas similares ou diferentes
para fins de atribuição de direitos e deveres. Os específicos e concretos
standards de comparação utilizados para fins dessa averiguação são os
que compõem as diversas concepções desse conceito de igualdade.

2.1. Uma concepção de igualdade

Como já averbado anteriormente, não é tarefa isenta de dificulda-


des a elaboração de uma específica concepção de igualdade, exata-
mente em função dos diversos parâmetros de comparação que pode-
riam vir a justificá-la.

3
Celso de Albuquerque Silva

As possíveis concepções resultantes da combinação dos diversos


parâmetros conduzem a quatro formulações básicas: a) Igualdade de
todos em tudo; b) igualdade de todos em alguma coisa; c) igualdade de
alguns em tudo; d) igualdade de alguns em alguma coisa.6
No caso brasileiro, o princípio geral da igualdade vem positivado
no ordenamento pátrio no artigo 5o e inciso I da Constituição Federal
com a seguinte dicção:

“Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-


quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros resi-
dentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações,
nos termos desta Constituição.” (g.n.)

Diante do texto constitucional, já se pode desde logo afiançar, ao


menos em nosso sistema jurídico, que igualdade não pode significar
os princípios consagrados às alíneas “c” e “d” supracitadas, ou seja,
não poderia significar igualdade de apenas alguns, seja em tudo, seja
em alguma coisa, posto que a Constituição assegura a igualdade a
todos.
Resta, portanto, analisar as hipóteses parametrizadoras das alí-
neas “a” e “b”. Em outras palavras, cumpre verificar se o princípio da
igualdade significa igualdade de todos em tudo ou de todos em algu-
ma coisa, para fins de, na formulação do direito, serem tratados isono-
micamente pelo legislador e, a fortiori, pelo aplicador da lei.
Parece simples afirmar, até mesmo pela parte final do inciso I do
artigo 5o, I (iguais nos termos desta constituição), que igualdade não
significa o dever de o legislador colocar todas as pessoas na mesma
posição jurídica. Essa concepção conduziria a normas não funcionais,
absurdas e injustas. O legislador não apenas pode estabelecer serviço
militar somente para os adultos, prisão somente para os criminosos ou

4
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

tributar apenas quem demonstre capacidade contributiva, como deve


assim fazer, sob pena de criar normas não funcionais (serviço militar
para bebês), absurdas (prisão para criminosos e inocentes) ou injustas
(tributar quem não possui recursos para sua própria sobrevivência).7
De modo semelhante, igualdade não pode significar que o trata-
mento jurídico igualitário exige daqueles a quem se destina, a titulação
das mesmas propriedades naturais ou a identidade em todas circuns-
tâncias fáticas. Como é cediço, não existe ninguém em tudo igual a
outra pessoa em termos fáticos-naturais. Nem mesmo gêmeos univite-
linos. As diferenças decorrentes da loteria natural, tais como força,
beleza, inteligência, capacidade, talento etc., podem ser reduzidas ou
compensadas por um legislador justo e equânime, porém jamais elimi-
nadas.8 Assim, se igualdade não demanda uma igualdade fática abso-
luta e total, não pode significar um mandamento ao legislador para tra-
tar todos exatamente da mesma maneira, nem exigir que todos devam
ser tratados igualmente em todos os aspectos. Por exclusão, nossa con-
cepção de igualdade conduz ao resultado da letra “b”, ou seja, igualda-
de de todos em algo. O juízo de igualdade é o que Alexy chama de rela-
ção triádica:9 A é igual a B com relação a uma determinada proprieda-
de fática P. É, portanto, um juízo sobre igualdade fática parcial, ou seja,
igualdade em algum critério fático.
Assim, em primeira linha de aproximação, pode-se afirmar que o
princípio da igualdade não significa que o legislador deva tratar todos
exatamente da mesma maneira e em todos os aspectos, podendo, e
aliás devendo, estabelecer classificação de pessoas e bens segundo os
mais diversos critérios fáticos para fins de se atribuir a cada conjunto
da realidade efeitos jurídicos singulares. Por outro lado, o princípio da
igualdade não pode permitir toda e qualquer diferenciação ou toda
sorte de distinção se quiser possuir algum sentido. Como solucionar o
paradoxo?
Sobre o tema, já discorremos em outro lugar que, diante deste
paradoxo, a moderna jurisdição constitucional nem abandonou a exi-
gência de garantia do princípio da igualdade, nem negou à legislatura
o seu inequívoco natural, inafastável e inerente direito estabelecer

5
Celso de Albuquerque Silva

classificações e discriminações. Seguindo um meio-termo, resolveu a


contraditória exigência de concretização e individualização, no nível da
lei, e abertura/generalidade constitucional, adotando a teoria da clas-
sificação razoável.10
A razoabilidade da classificação desborda da simples identifica-
ção de uma igualdade ou desigualdade fática parcial. Isto, entretanto,
é facilmente explicável. É que a simples identificação de uma igualda-
de ou desigualdade fática não diz, de per se, nada sobre se está orde-
nado um tratamento igual ou desigual, na medida em que tais juízos
são plenamente compatíveis com tratamentos jurídicos distintos. O
simples fato de A ser um servidor público da mesma forma que B, não
impede que A seja punido administrativamente por indisciplina em vir-
tude da prática de uma falta funcional, enquanto B, que não praticou
qualquer falta, não o seja. Esse tratamento diferenciado, apesar da
igualdade fática parcial partilhada (qualidade de servidor público) é
razoável e justa.
A razoabilidade da discriminação efetuada pelo legislador e, a pos-
teriori, pelo aplicador da lei, ainda que diante de igualdades fáticas par-
ciais, remete a um juízo valorativo de igualdade ou desigualdade. As-
sim, a igualdade fática parcial que justifica o tratamento igualitário é,
não apenas uma igualdade fática, mas uma igualdade fática parcial
essencial. Existe uma “igualdade essencial quando um tratamento desi-
gual é arbitrário”.11 A seu turno, o tratamento legal é arbitrário quando
não é possível encontrar um fundamento razoável que decorra da natu-
reza das coisas ou torne justificável e compreensível sua adoção. O prin-
cípio da igualdade significa, então, que ao legislador é vedado tratar o
essencialmente igual de modo desigual, o que necessariamente conduz
à idéia de que alguns aspectos fáticos parciais são valorados juridica-
mente como destinatários de um idêntico tratamento jurídico.
Esse critério valorativo que permite encontrar os aspectos fáticos
essencialmente iguais, é um critério objetivo. Deve ser aferido com
base no propósito da lei e não em razão de preferências subjetivas do
intérprete. Uma classificação razoável e não arbitrária, é aquela que
inclui todas as pessoas que estão similarmente situadas em termos
fáticos quando referenciadas aos objetivos colimados pelo legislador.12

6
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

A concepção de igualdade põe em evidência a questão do que é uma


legislação correta, razoável ou justa.13 Igualdade, portanto, remete a
uma questão de justiça.

2.2. O princípio formal da igualdade

Como um subproduto do conceito de igualdade anteriormente afir-


mado, é também correntio na linguagem política e jurídica, referir-se à
igualdade tomando-se em consideração não uma relação entre pessoas
ou coisas, mas certos preceitos normativos que decorrem daquele con-
ceito. Tais axiomas ou proposições jurídicas são conhecidos como prin-
cípio formal da igualdade e a presunção da igualdade. O princípio for-
mal da igualdade estatui que as pessoas, coisas ou situações iguais,
devem ser tratadas igualitariamente; e pessoas, coisas ou situações
distintas, devem ter tratamento também diferenciado. A seu turno, a
presunção de igualdade expõe a idéia moral de que as pessoas devem
ser tratadas isonomicamente na ausência de boas razões para tratá-las
desigualmente.14
O princípio da igualdade de que devemos tratar igualmente os
iguais e desigualmente os desiguais na medida em que se desigualem,
é dito formal exatamente porque, ao não definir quem são os iguais e
quem são os desiguais para fins de tratamento jurídico, é suficiente-
mente abstrato para permitir um consenso entre as diversas concep-
ções de igualdade que postulam precedência.
Nesse sentido, pode-se afirmar que o princípio formal da igualda-
de é aceito por todas as concepções de igualdade. Apenas para umas,
ele será necessário e suficiente, enquanto que para outras, o princípio
em si é aceito como necessário e faz parte daquela concreta concepção
igualitária, mas a ele precisam ser agregados outros elementos para a
completude do preceito igualitário. Para esses últimos, a exclusiva uti-
lização desse princípio poderá conduzir a situações iníquas e, conse-
qüentemente, não isonômicas.
Pense-se no seguinte exemplo: Todos os servidores públicos de
autarquias federais de ensino são merecedores de um determinado
benefício funcional. Em razões de diferenças no poder de pressão polí-
tica, o chefe do executivo encaminha projeto de lei concedendo referi-

7
Celso de Albuquerque Silva

do benefício apenas para suas duas principais instituições de ensino,


excluindo injustamente, os servidores das instituições de ensino meno-
res e menos famosas. Houve aquilo que a doutrina constitucional
chama de exclusão arbitrária ofensiva ao princípio da igualdade, razão
pela qual os servidores dessas pequenas instituições ingressam em
juízo postulando uma ordem judicial que lhes estenda a percepção do
referido benefício. Por ingerência do princípio da separação de poderes
e da reserva de lei formal, o Judiciário está impossibilitado de estender
referido benefício legal sem a previsão na lei.15 Por outro lado, por inge-
rência do princípio da igualdade, todos os que estão na mesma situa-
ção fática devem ser tratados igualmente. A questão que surge é, por-
tanto, o que acontece agora com os servidores das demais autarquias
que receberam de forma justa o benefício. Há quem afirme que o prin-
cípio da igualdade se exaure em tratar igualmente os iguais. Assim,
como não é possível estender sem lei formal o benefício para as demais
autarquias, o judiciário deveria declarar a lei inconstitucional por ofen-
sa à isonomia, retirando-a do mundo jurídico.
Essa decisão, entretanto, seria totalmente inaceitável e o seria
por ferir nosso senso de justiça. A declaração de inconstitucionalida-
de retiraria o benefício daquela parcela do funcionalismo que o rece-
beu justamente, sem qualquer benefício para os demais que foram
excluídos injustamente de sua percepção. É que a cassação da norma
porque não contemplou um determinado grupo que deveria contem-
plar, além de outros que deveriam e foram contemplados, não assegu-
ra a fruição ao direito perseguido pelo seu eventual titular. A declara-
ção de nulidade de todo o complexo normativo ao fundamento de vio-
lação à isonomia revelaria uma esquisita compreensão do princípio de
justiça, que daria ao postulante pedra, ao invés de pão.16 A questão de
fundo não é, portanto, a igualdade formal em si, mas a igualdade
entendida como justiça.

3. Igualdade formal e justiça

Em termos de filosofia política, os termos igualdade e justiça são


muitas vezes utilizados como sinônimos. Essa noção de justiça tem raízes

8
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

em Aristóteles que tratou dos dois conceitos de justiça. O primeiro como


legalidade e o segundo como igualdade. Justo é o que é equânime.
Aristóteles, conquanto de forma concisa e talvez exatamente por
isso, fez três afirmações sobre igualdade que têm influenciado de forma
profunda e marcante o pensamento ocidental:

a) é justo tratar igualmente os iguais;


b) é justo tratar desigualmente os desiguais; e,
c) que essas afirmações são evidentes e aceitas por todos.17

Essa noção de igualdade, entretanto, tem sido objeto de divergên-


cia, embora a questão, tal como colocada, nos permita afirmar que tais
divergências são mais conceituais do que substanciais. De fato, como
já anotado anteriormente, a discussão se centra não na exclusão des-
sas afirmações Aristotélicas, mas na sua suficiência ou não, de sorte
que todo aquele que defende uma específica concepção de justiça não
pode deixar de reconhecer que pessoas iguais devem ser tratadas de
forma idêntica.
Transplantando essa afirmação para o aspecto central deste tra-
balho que diz respeito ao efeito vinculante das decisões judiciais, pode-
se inferir que, qualquer concepção de justiça que possa ser adotada
como ordenadora da vida de uma coletividade, assumirá a proposição
de que é exigência da justiça enquanto igualdade que os juízes jul-
guem casos semelhantes de forma semelhante, o que quando menos
significa a aplicação imparcial e coerente das regras jurídicas.18
Que igualdade de tratamento para situações iguais é sinônima de
justiça não é necessário muito esforço para justificação. É um senti-
mento natural, condensado no noético “dois pesos e duas medidas”,
cuja mensagem traduz uma crítica a um tratamento diferenciado para
situações idênticas e reputado como injusto, na medida em que
demonstra arbítrio de quem assim age. E arbitrariedade não se coadu-
na com a noção de justiça.
Essa noção de igualdade como justiça é intuitiva. Entretanto, por
vezes temos intuições que nos parecem justas, mas de fato não o são,
pelo menos para outra categoria de pessoas. O problema do intuicionis-
mo ético reside exatamente no fato de que, embora reconheça aos juí-

9
Celso de Albuquerque Silva

zos morais uma função cognoscitiva, porque apreendem uma proprie-


dade considerada valiosa, tal apreensão não pode (e na verdade nem
precisa) ser justificada racionalmente.19
Como hodiernamente não se admite a existência de uma moral
heterônoma ou sobre-humana, precisamos conciliar nossos sentimen-
tos intuitivos com princípios racionais para verificarmos se nossas
intuições imediatas são realmente justas (e por conseguinte morais).
Qualquer concepção de justiça para que seja aceita, deve possuir um
mínimo de racionalidade para pleitear sua observância.20 Há que se
buscar “um equilíbrio reflexivo”21 entre nossas crenças morais ordiná-
rias e intuitivas, portanto não refletidas, e algum arcabouço teórico que
possa unificar e justificar essas crenças, o que se buscará demonstrar
a seguir.

4. Eqüidade como uma teoria de Justiça – A teoria de


Rawls

A justiça como eqüidade de Rawls parte da idéia comum que vem


sendo explorada pelas teorias clássicas de contrato social. Rawls ima-
gina um grupo de pessoas que se reúnem em um determinado momen-
to para o fito de estabelecerem o contrato social que regerá e ordenará
a vida da comunidade. A posição original em que se encontram essas
pessoas quando realizam o ajuste é o fato inovador e marcante dessa
teoria.
Para Rawls, as pessoas que se encontram na posição original pos-
suem gostos, talentos, interesses e ambições divergentes, mas tam-
bém algumas aspirações comuns. Devem tais pessoas, na formulação
desse contrato, encontrar os princípios de justiça pública a que racio-
nalmente poderiam aderir independentemente de suas circunstâncias
e características pessoais ou sociais. Essa adesão voluntária tem como
premissa, o fato de essas pessoas na posição original serem iguais,
gozando dos mesmos direitos no processo para a escolha dos princí-

10
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

pios, podendo apresentar propostas, submeter argumentos em seu


favor etc.22
Para alcançar esses objetivos, essas pessoas passam por uma
ignorância temporal dessas características de sua própria personalida-
de. É o que Rawls chama de “véu de ignorância”. Na verdade, esse véu
é mais amplo, pois afasta do conhecimento das partes contratantes,
além dos dados referentes a sua pessoa (inteligência, capacidade,
força), qualquer informação sobre as circunstâncias particulares de sua
própria sociedade, ou seja, lhes é vedado o conhecimento de sua espe-
cífica condição política e econômica na sociedade, bem como o nível de
civilização e cultura que essa sociedade conseguiu atingir. Em suma,
as partes, no momento de contratar, não sabem quem serão na socie-
dade e nem de qual geração da sociedade farão parte.23 O assentimen-
to ao contrato deverá ser dado antes dos participantes recuperarem
seu conhecimento de si.
O objetivo desse véu de ignorância é anular a força centrípeta que
as inclinações e aspirações particulares, bem como as concepções de
cada um sobre seu próprio interesse e boa vida, exercem sobre a for-
mulação de princípios de justiça gerais que se aplicam a todos, mas
podem conflitar em determinados momentos com uma situação indivi-
dual de um ou alguns dos membros da coletividade irrelevante do
ponto de vista da justiça.
Rawls procura demonstrar que, sob esse véu de ignorância, se
essas pessoas forem racionais e atuarem unicamente visando alcançar
seu próprio interesse, escolherão seus dois princípios de justiça assim
formulados:

a) Princípio da maior liberdade igual para todos;


b) Princípio da igualdade eqüitativa de oportunidade e prin-
cípio da diferença.24

Os dois princípios, como veremos mais adiante com mais profun-


didade, apontam para a igualdade. O primeiro deles, e isto é fundamen-
tal, embora se refira à liberdade, afirma que não basta a existência da
liberdade; é necessário que ela seja igual para todos.

11
Celso de Albuquerque Silva

O segundo princípio aponta expressamente para igualdade. A


igualdade eqüitativa de oportunidade busca superar a igualdade libe-
ral em sentido estrito, ao defender a idéia de que as funções e carrei-
ras sociais devem não apenas ser formalmente abertas a todos, mas
que todos devem ter uma possibilidade razoável de as atingir indepen-
dentemente de sua posição inicial na sociedade ou seus talentos e
habilidades naturais. Explicitando melhor o princípio, Rawls pontifica:
“assumindo que há uma distribuição de ativos e qualidades naturais,
aqueles que têm talentos e capacidades do mesmo nível e a mesma
vontade de os aplicar, devem ter as mesmas perspectivas de sucesso,
independentemente do seu lugar inicial no sistema social”.25
Considerando-se, entretanto, que as desigualdades econômicas
sempre existirão, pois ainda que afastadas as contingências sociais
pelo princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades, persistem as
diferenças naturais, Rawls complementa esse princípio com o princípio
da diferença. Esse princípio, reconhecendo que na prática é impossível
assegurar iguais possibilidades de sucesso a todos em razão da pró-
pria loteria natural, afirma que nenhuma desigualdade econômica pode
ser admitida, a menos que melhore a posição social do menos favoreci-
do. Não sendo possível uma distribuição que melhore a situação de
ambos os sujeitos (melhor e pior favorecido) uma distribuição igual é
preferida.26
Esses princípios se justificam e seriam escolhidos, segundo
Rawls, porque eles permitem de uma forma melhor que qualquer outro,
passar pelo teste do “equilíbrio reflexivo”. Como se sabe, Rawls sus-
tenta que em termos de filosofia moral se busca chegar a um equilíbrio
reflexivo entre certas convicções intuitivas e determinados princípios
gerais. Desqualificamos aqueles princípios que contrariaram nossas
convicções particulares mais íntimas e profundas de um lado, e por
outro, abandonamos nossas intuições que não se justificam sob stan-
dards de princípios plausíveis. Nesse sentido, para analisarmos os fun-
damentos dessa conclusão de Rawls, devemos partir da idéia de que
as pessoas absorvem intuitivamente a posição original de Rawls como
um ponto de partida para a colocação dos problemas relativos à justi-
ça e que a considerariam correta se fosse demonstrado que as partes

12
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

colocadas naquela posição efetivamente estabeleceriam um contrato


que estipulasse os dois princípios mencionados.

4.1. O equilíbrio reflexivo

Como salientado anteriormente, pressuposto para a formalização


do contrato é a igualdade das partes na posição original. Essa igualda-
de não decorre de circunstâncias fáticas, mas de um pressuposto
moral. A equivalência das partes contratantes representa a igualdade
entre os seres humanos enquanto sujeitos morais, enquanto seres
dotados da capacidade de autonomamente definirem uma concepção
de seu próprio bem e capazes do sentido de justiça.27
O equilíbrio reflexivo de Rawls é, portanto, um modelo ético, um
fato familiar de nossa vida moral. As pessoas têm certas convicções
sobre o que é justo e o que é injusto. Muitas dessas intuições nada
mais são que derivações ou deduções de algumas crenças sobre o que
acreditamos ser o bom. Mas qual o fundamento dessas convicções?
Classicamente, a filosofia esboça sobre a natureza dos valores
duas posições unilaterais: o subjetivismo e o objetivismo axiológico.
Rawls busca com sua formulação superar as dificuldades dessas con-
cepções apodícticas.
Para o subjetivismo axiológico,28 os valores morais não existem
por si. Os valores éticos só existem quando relacionados a um determi-
nado sujeito e a sua concepção do que é bom. O bom, o belo ou o justo
não existem por si. Eles são uma relação psicológica do sujeito a deter-
minadas situações, coisas ou propriedades normativas. O justo ou
injusto vai depender do modo como a presença do objeto de avaliação
moral afeta o sujeito
O objetivismo ético tem suas raízes na doutrina metafísica de Pla-
tão sobre o mundo ideal das idéias. O bom, o justo ou o belo existe ideal-
mente como entidades supra-empíricas. Os valores morais independem
das pessoas para existirem. Subsistem por si próprios.29 São absolutos,

13
Celso de Albuquerque Silva

imutáveis, atemporais e incondicionados. Ao homem cabe apenas co-


nhecê-los ou na verdade intuí-los, uma vez que em sua grande maioria
tais crenças ou convicções não podem ser comprovadas empiricamente.
Importa para o desenvolvimento do raciocínio em curso menos
que realçar as diferenças entre os dois modelos, apontar as suas simi-
litudes. Para ambas teorias os valores não podem ser racionalmente
fundamentados. Os subjetivistas negam qualquer racionalidade aos
juízos morais, porque sendo produto do psiquismo individual não se
pode falar que um juízo é verdadeiro ou falso. Essa questão nem
mesmo se coloca pois, para o subjetivista, todo e qualquer juízo moral
é verdadeiro na medida em que traduz uma relação psíquica entre o
agente e uma propriedade normativa. Cai-se no ceticismo ético.
A teoria objetiva também não logra resultado na racionalização
dos juízos éticos. Entende que por serem propriedades não naturais, os
juízos morais nos são impostos sem necessidade de prova, como algo
evidente por si. Assim, os juízos morais são captados intuitivamente e,
por serem auto-evidentes, podemos considerá-los verdadeiros inde-
pendentemente de qualquer prova.
A intuição, não se nega é elemento integrante de uma concepção
de justiça. Ocorre que uma concepção baseada só nela seria incomple-
ta, pois diante da situação de duas pessoas – “A” e “B” – que, com refe-
rência a determinado juízo moral, tivessem intuições diferentes quanto
a seus deveres éticos, não haveria como solucionar o impasse. O pro-
blema que se coloca é que embora A e B reconheçam que suas intui-
ções são contraditórias e, portanto, um dos dois está errado, não há
como determinar qual delas é válida e justificá-la perante a outra a sua
validade. Se ambas as intuições são evidentes por si mesmas e não
existe nenhum critério independente que transcenda a própria evidên-
cia, não existe solução possível para o impasse, pois nenhum pode jus-
tificar racionalmente a validade do respectivo juízo moral perante o
outro. Cai-se no relativismo ético.
O modelo de Rawls difere dos modelos clássicos porque, embora
reconheça a existência de intuições do que é a justiça, não as trata
como propriedades independentes descobertas seja pela emoção, seja
pela intuição, mas como traços estipuladores de uma teoria ainda por
construir através de um equilíbrio reflexivo entre intuições e princípios
morais racionais.
O equilíbrio reflexivo traduz um modelo construtivo que, ao invés
de assumir a existência fixa e objetiva de princípios morais indepen-
dentes, estabelece que homens e mulheres têm a responsabilidade de

14
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

organizar os juízos particulares de justiça sobre o qual atuam em um


programa de ação coerente, ou pelo menos, que é esse tipo de respon-
sabilidade que têm os funcionários que exercem o poder sobre outros
homens.30 O equilíbrio de Rawls é, portanto, um processo dinâmico de
adaptação dos princípios gerais de justiça e das intuições éticas, até se
obter a melhor ponderação possível. Resta agora confirmar que os prin-
cípios que derivam do modelo de Rawls efetivamente cumprem melhor
o teste do equilíbrio como afirmado.

4.2. A posição original

O modelo de Rawls segue, como visto, a idéia contratualista. O


traço distintivo de sua teoria da justiça das outras teorias contratualis-
tas reside exatamente na posição original em que se encontram as par-
tes contratantes.
A posição original traduz uma situação limite de ignorância na
medida em que os homens e mulheres que irão realizar o ajuste não têm
conhecimento, quer de sua situação natural (talentos, capacidade, rique-
za, força etc.), quer de sua posição social. Essa situação naturalmente
limita os interesses que possam ser objeto de um ajuste, na medida em
que reduz substancialmente os objetivos individuais que as partes con-
tratantes desejariam perseguir e obter após a formalização do contrato.
É certo que esse véu de ignorância não elimina totalmente a capa-
cidade das pessoas para raciocinar sobre seus interesses. Entretanto,
como não sabem que interesses terão posteriormente à formalização
do contrato, os únicos interesses anteriores que porventura tenham,
seriam aqueles que otimizassem o máximo possível os interesses que
as partes posteriormente desejariam conseguir, mas que agora são
desconhecidos. Assim, os juízos que as partes contratantes podem fa-
zer referentes aos seus próprios interesses, necessariamente precisam
ser bastante abstratos, de molde a lhes permitir posteriormente uma
futura qualquer combinação de interesses, sem a pressuposição de que
alguns interesses seriam mais prováveis que outros. Não há como defi-
nir qualquer escala de probabilidade em razão do véu de ignorância.
Os direitos básicos que decorrem da teoria da justiça de Rawls são,
portanto, necessária e não apenas contingentemente, direitos abstra-
tos, direitos que não tenham por fim atingir nenhum objetivo individual
determinado e específico, porque as partes contratantes não sabem

15
Celso de Albuquerque Silva

ainda quais serão seus objetivos individuais. Em termos de teoria polí-


tica, dois direitos têm classicamente pleiteado essa função. O direito à
liberdade e o direito à igualdade. A teoria de Rawls, como já averbamos
alhures, reconhece como direito fundamental o princípio da igualdade.
Essa afirmação pode parecer inicialmente incongruente, na medi-
da em que é o próprio Rawls quem enuncia em forma de ordenação
lexical o seu primeiro princípio da liberdade como prioritário sobre o
segundo princípio da igualdade eqüitativa de oportunidades, do qual
faz, inclusive, depender.31 Estaria, então, a teoria de Rawls assentada
em um direito fundamental à liberdade? A resposta é negativa.
Estabelecer o significado do vocábulo liberdade é questão eriçada
de dificuldades, quando menos, porque esse termo na linguagem polí-
tica possui no mínimo dois sentidos diferentes. Um, quando relaciona-
do ao querer (liberdade positiva) outro, ao agir dos indivíduos (liberda-
de negativa). O conceito de liberdade negativa contrapõe-se ao de
coerção, se por coerção se considera qualquer deliberada interferência
de terceiros na área em que o indivíduo poderia atuar. Nesse sentido,
liberdade significa a área que alguém pode agir sem sofrer a obstrução
de outrem. Daí porque é comum na linguagem política a referência à
liberdade negativa como sendo a ausência de impedimento e de cons-
trangimento. Liberdade positiva na linguagem política equivale à auto-
determinação.32 Traduz uma situação em que o indivíduo orienta suas
decisões com base em sua vontade, sem depender ou estar vinculado
aos desejos ou querer de outra pessoa.
Rawls procura unificar as duas definições, mesmo porque conside-
ra que suas divergências se situam mais no valor que se dá a específi-
cas liberdades, do que na própria definição do que liberdade é.
Descreve a liberdade como sendo “uma estrutura institucional, um sis-
tema de regras públicas que definem direitos e deveres. Assim enqua-
drados, os sujeitos têm liberdade de fazer algo quando estão livres de
certas restrições quanto ao fazer ou não fazer, e quando sua decisão
está protegida da interferência de outros”.33
Liberdade geral pode então ser definida como o mínimo possível
de restrições globais por parte do governo ou por parte de outros ho-
mens, quanto à consecução de objetivos individuais de cada pessoa.34

16
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Não parece plausível que esse seja um direito passível de concordância.


Impede-o, o véu de ignorância na medida em que, embora os contratan-
tes não saibam quais interesses específicos terão depois da formaliza-
ção do contrato, sabem que alguns desses interesses exigem, como pre-
missa para sua satisfação, restrições pontuais na liberdade de outros e,
como não sabem se alguns desses objetivos serão por eles perseguidos,
segue-se a natural conclusão que o direito à liberdade que surge do con-
trato social se refere não a um direito abstrato à liberdade, mas a um
direito a certas, específicas e determinadas liberdades básicas, que
Rawls inclusive chega a catalogar. A passagem do liberalismo político
abaixo transcrita corrobora expressamente essa anterior conclusão:

“Uma outra questão preliminar é que as liberdades funda-


mentais iguais do primeiro princípio de justiça são especificadas
por uma lista que é a seguinte: a liberdade de pensamento e de
consciência; as liberdades políticas e a liberdade de associação,
assim como as liberdades especificadas pela liberdade e integri-
dade da pessoa; e, finalmente, os direitos e liberdades abarcados
pelo império da lei. Não se atribui nenhuma prioridade à liberda-
de como tal, como se o exercício de algo chamado ‘liberdade’
tivesse um valor preeminente e fosse a principal, senão a única
finalidade da justiça política e social.”35

Superado o princípio da liberdade, resta-nos analisar a igualdade.


Com efeito, o segundo princípio filosófico abstrato, talvez até mais que
o da liberdade, é o princípio da igualdade. Diferentemente do princípio
da liberdade geral que não pode ser protegido na situação original, os
homens e mulheres que estão na posição original não possuem outra
opção senão proteger o princípio da igualdade. Ora, face à amplitude
do véu de ignorância, o único interesse anterior à formulação do con-
trato social que todos os agentes compartem é o direito que cada pes-
soa tem de ser tratada isonomicamente, como pessoa humana que é,
sem se levar em consideração suas aptidões, talentos, gostos ou prefe-
rências. Esse direito mais genérico à igualdade tem como fundamento
justificador o fato de que ninguém, na posição original, pode assegurar,
ainda que em termos de probabilidades, uma posição melhor na socie-
dade em decorrência desses atributos individuais.

17
Celso de Albuquerque Silva

Em uma situação de total incerteza quanto a seus talentos, habi-


lidades, preferências, aptidões, objetivos e posição social, circunstân-
cias que, se conhecidas, permitiriam uma avaliação da posição social
de cada indivíduo, a única opção disponível é o reconhecimento do
direito à igualdade entre os homens, decorrente daquilo que é inerente
a todas as pessoas, a capacidade moral, independente de outras carac-
terísticas pessoais oriundas do acaso da loteria natural. Dessa singular
característica moral inerente a todo o ser humano decorre o direto a
que todas as pessoas, tanto o mais quanto o menos favorecido pela for-
tuna, tenham igualdade de consideração e respeito no desenho e admi-
nistração das instituições políticas que os governam.
Esse conceito de igualdade é, entretanto, muito abstrato. O signi-
ficado de “igualdade de consideração e respeito frente às instituições
políticas” é questão aberta ao debate e à formulação de diversas e con-
correntes concepções de justiça. Assim, poder-se-ia afirmar que esse
direito se encontra respeitado quando se assegura igualdade de opor-
tunidades para ocupar cargos públicos com base no mérito (concepção
meritocrática), ou uma concepção que assegure o aumento do bem
estar médio da coletividade, que seria utilizado como igual parâmetro
para averiguação do bem estar de cada indivíduo (utilitarismo), ou
ainda, como postula Rawls, se adota uma concepção que, em nome
dessa igualdade fundamental, defenda o princípio da prioridade de
iguais liberdades e o princípio da diferença que só admite desigualda-
des econômicas quando melhorarem a situação dos menos favorecidos.
A posição original, entretanto, demonstra que os dois princípios
de Rawls são os que melhor atendem à exigência de igual considera-
ção e respeito. Face o véu de ignorância, pode-se afirmar que não se
coadunam com o direito de igual consideração e respeito, aquelas ins-
tituições políticas que tratam melhor e respeitam mais os membros de
determinada classe (utilitarismo) ou pessoas que detêm determinados
talentos ou habilidades (meritocracia). Os homens que não sabem a
quais classes pertencem, nem quais talentos possuem, não podem
desenhar instituições que favoreçam sua classe ou pessoas que pos-
suam determinados talentos.
Na verdade, o direito a igual respeito e consideração é pressupos-
to e fundamento da própria teoria de Rawls, na medida em que é con-
dição sine qua non da posição original. Esta passagem da teoria da jus-
tiça bem o demonstra:

18
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

“É razoável supor que as partes na posição original são


iguais. Isto é, todos gozam do mesmo direito no processo para a
escolha dos princípios; todos podem apresentar propostas, sub-
meter argumentos em seu favor, e assim por diante. É óbvio que o
objetivo destas condições é representar a igualdade entre os seres
humanos enquanto sujeitos morais, enquanto criaturas com uma
concepção do seu próprio bem e capazes do sentido de justiça.”36

Essa noção sugere um equilíbrio reflexivo mais amplo que o que co-
loca Rawls explicitamente, já que ele deve dar-se não por dois, mas sim
por três princípios: convicções intuitivas particulares, princípios subs-
tantivos gerais que dêem conta delas e, por último, regras ou aspectos
formais do discurso moral que permitem derivar tais princípios.37
Revisitado, ou melhor, mais aclarado o equilíbrio reflexivo, pode-
mos afirmar que na formulação de uma teoria de justiça, devemos
abandonar nossas intuições que não possam se justificar sob a base de
princípios gerais plausíveis, modificar os princípios que não se ajustem
as nossas intuições mais firmes ou que não derivem de regras formais
do discurso moral e, por último, alterar a reconstrução das regras for-
mais quando elas não permitam derivar princípios plausíveis.
É essa incorporação da própria posição original pelo equilíbrio refle-
xivo que, segundo Nino, dá sentido ao ajuste que Rawls propõe entre
intuições particulares e princípios gerais, na medida em que esse ajuste
mútuo, tendente a detectar os princípios que de fato sustentamos na
moral positiva, se explica não porque tais princípios são válidos porque
são socialmente aceitos, mas porque esse ajuste é um passo prévio de
outro ajuste, tendente a detectar as regras formais do discurso moral
ordinário, regras essas sim, consideradas relevantes para a justificação
de certos princípios morais, sejam eles aceitos, ou não, socialmente.38
Está, portanto, aberto o caminho para a racionalização, explicita-
ção e justificação de nossos juízos morais. As teorias intuicionistas,
ao partirem da premissa de que as intuições morais se referem a pro-
priedades fixas, objetivas, imutáveis e atemporais, insistem na sua
manutenção, ainda que ande as testilhas com outras convicções que

19
Celso de Albuquerque Silva

decorram de um sistema de princípios gerais plausíveis e coerentes.


O mesmo se diga das teorias emotivistas. A coerência com minha
emoção ou com minha intuição de uma realidade metafísica me impe-
de de abandonar tais crenças, por mais inquietante e contraditório
que isto seja.
O modelo de Rawls, a seu turno, não descansa em pressupostos
céticos nem relativistas, entretanto não abandona as convicções sobre
juízos morais que as pessoas ostentam. Pelo contrário, parte da idéia
de que essas pessoas irão defender tais crenças, inclusive, para sus-
tentar críticas a atos ou sistemas públicos que ofendam tais convic-
ções por considerá-los ofensivos aos seus princípios de justiça. O
modelo parte do mesmo pressuposto moral que os modelos subjetivis-
tas ou objetivistas. A diferença é que a coerência nesses modelos tem
como suposto uma defesa intransigente das intuições ou emoções. O
modelo de Rawls parte do suposto de que o que deve ser congruente
é o atuar dos funcionários públicos. Isso demanda que eles só ajam
sob a base de uma teoria pública geral que proporcione padrões públi-
cos e racionais com base nos quais, de um lado se possibilite analisar,
discutir ou até mesmo prever o que fazem os funcionários, e de outro,
impedir que estes apelem para intuições particulares que, em deter-
minados casos, podem servir de máscaras do preconceito ou da defe-
sa do interesse privado.39
No modelo do equilíbrio, as convicções ou intuições do que é justo
funcionam como propulsores da discussão pública sobre princípios
gerais de justiça, podendo funcionar, ainda, como limite superior para
a definição desses princípios. Assim, princípios gerais que afrontem
violentamente convicções profundamente enraizadas devem ser afas-
tados. Por outro lado, como as convicções imediatas não são tomadas
como verdades absolutas, o modelo permite que algumas intuições
sejam abandonadas quando não puderem ser sustentadas coerente-
mente com outras convicções decorrentes de um sistema coerente de
princípios gerais de justiça plausíveis. As convicções são abandonadas
não porque sejam falsas, mas porque não se mostraram coerentes den-
tro do programa de princípios adotado. Sacrifica-se a coerência com a
fé em favor da coerência com princípios, dentre os quais sobressai o
princípio da isonomia.

20
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

5. Igualdade e coerência

É cediço que toda e qualquer norma jurídica fornece, em maior ou


menor grau, uma margem de discricionariedade na sua interpretação
e/ou aplicação. O intérprete e aplicador da lei não é mais um mero e
autômato transmissor da vontade autônoma da lei como professava
Montesquieu.
A aplicação da norma traduz uma certa atividade criativa dotada
de uma carga construtiva do direito.40 Ninguém pode mais seriamente
afirmar que a tarefa de interpretar se resume a um mero juízo de sub-
sunção lógica do fato à norma. Na verdade, na interpretação da norma
“não se pode fechar completamente a porta a ingredientes subjeti-
vos”.41 A moderna doutrina constitucional não busca hoje negar, mas
constranger, limitar, através da exigência de fundamentação racional
do juízo de valor proferido,42 aquele resíduo de voluntarismo que se faz
presente, inevitavelmente, em todo trabalho hermenêutico.43
Nada obstante esse inevitável voluntarismo e, ipso facto, juízo
“discricionário” do intérprete, é certo que dele se exige que em seu
mister exegético, proceda de modo justo e coerente. Considerando-se
que a discricionariedade do aplicador da lei é exatamente aquela mar-
gem de liberdade que ele possui para fazer um juízo de valor sobre a
questão que lhe é posta para solução, pode-se inferir que a exigência
de coerência não decorre da norma em si mesma, mas de um princípio
externo a ela que demanda aquela exigência: o princípio de justiça de
que os iguais devem ser tratados igualmente. Isso é o que a seguir se
passa a demonstrar.

5.1. Coerência atual

A exigência de coerência na aplicação da lei surge desde logo e de


forma mais destacada e, por isso mesmo mais facilmente justificada,
em decisões concomitantes ou contemporâneas. O próprio ordenamen-

21
Celso de Albuquerque Silva

to processual pátrio possui instrumentos que visam obviar a incoerên-


cia ou inconsistência de decisões contemporâneas, através dos institu-
tos da conexão e continência.44
Exemplifiquemos, com um caso hipotético, a exigência de coerên-
cia na aplicação da norma legal. Suponhamos que um juiz condene con-
juntamente dois diretores da mesma empresa pela prática de sonega-
ção fiscal em um determinado período X. As penas previstas para o
referido crime variam de dois a cinco anos de prisão. O juiz tem por
princípio de justiça: a) que a pena mínima deverá ser aplicada ao con-
denado que tiver a seu favor todas as circunstâncias judiciais subjeti-
vas favoráveis e nenhuma agravante. Apesar desse princípio, ele tam-
bém considera justo que b), diante de certas circunstâncias sociais,
pena superior pode ser aplicada em tais hipóteses, como medida de
política criminal tendente a, forte na teoria do desestímulo, prevenir a
prática desse mesmo delito por outras pessoas.
Observe-se que, no exemplo, o juiz possui uma certa discriciona-
riedade na aplicação da pena. Analisando todo o processado, o juiz
verifica que militam a favor de ambos os réus todas as circunstâncias
judiciais subjetivas favoráveis e não existe qualquer agravante.
Decide, então, condenar os dois réus à pena mínima de dois anos de
prisão. Pode-se afirmar que a sentença é coerente, posto que adotou
para ambos os réus o mesmo princípio de justiça.
Por outro lado, ao sentenciar os réus, o juiz poderia agir de modo
diverso, condenando um dos réus à pena mínima de dois anos e o outro
à pena máxima de cinco anos. Para o primeiro, a sentença está coeren-
te com o princípio de justiça exposto anteriormente no item “a” e, para
o segundo, coerente com o princípio de justiça exposto no item “b”.
Ainda assim, pergunta-se: A decisão como um todo é coerente? Há
toda evidência que a resposta há de ser negativa, porque, para que
uma decisão seja coerente, não basta que ela adira a um princípio, mas
que ela adira a um princípio a que ela deve aderir.45
Na primeira hipótese de nosso exemplo, a decisão aderiu a um
princípio de justiça interno à norma, conjugado com outro externo e que
lhe exige a coerência, o de que os iguais devem ser tratados de forma
isonômica. Na segunda hipótese, ainda que se pudesse falar que a deci-
são guardaria coerência interna com princípios de justiça que dela

22
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

podem ser hauridos, falhou em aderir ao princípio externo, a que ela


obrigatoriamente deve aderir: “os iguais devem ser tratados igualitaria-
mente” e, portanto, não é coerente. Confirma-se, assim, que a coerência
da decisão é exigência externa a ela e que deflui do princípio de justiça
formal da igualdade de que os iguais devem ser tratados igualmente.

5.2. Coerência futura

A questão do dever de coerência das decisões judiciais em princí-


pio não se altera quando se passa de decisões concomitantes para
decisões futuras, ou seja, aquelas separadas por um determinado lapso
temporal.
Adote-se, por hipótese, um julgamento pelo tribunal do júri de
dois réus; A e B, acusados da prática de um homicídio simples cuja
pena varie de 3 a 10 anos de prisão. Os acusados são irmãos gêmeos,
tendo ambos, em decorrência de uma briga de trânsito, agredido a víti-
ma que faleceu em virtude das agressões. Os réus são defendidos em
juízo por um mesmo advogado que adota uma única tese para a defe-
sa conjunta.
Designada sessão do júri, apenas o réu A comparece. O réu B apre-
senta motivo justificado para seu não comparecimento. O julgamento,
então, é desmembrado, adiando-se o julgamento do réu ausente para a
próxima sessão e prosseguindo-se no julgamento do réu presente que
a final vem a ser condenado pelo tribunal do júri, restando ao juiz fixar
a sua pena.
Tal como nosso juiz singular do prévio exemplo relativo ao crime
de sonegação fiscal, o presidente do tribunal do júri considera como
princípios de justiça válidos: a) que a pena mínima deverá ser aplicada
ao condenado que tiver a seu favor todas as circunstâncias judiciais
subjetivas favoráveis e nenhuma agravante; b) por questão de política
criminal, pena superior à mínima pode ser aplicada para prevenir con-
duta semelhante por outras pessoas. Analisando os autos, nosso hipo-
tético juiz aplica a pena mínima segundo o princípio de justiça acolhi-
do na alínea “a”.
Dois meses após, é realizada a sessão de julgamento do Réu B
que, em síntese e no essencial, reproduz com fidelidade quase absolu-
ta o ocorrido na prévia sessão em que foi julgado o réu A. As teses cen-
trais da acusação e da defesa foram com o mesmo placar acolhidas
e/ou rejeitadas tal como tinham sido no julgamento anterior. As peque-
nas diferenças observadas foram totalmente irrelevantes para o resul-

23
Celso de Albuquerque Silva

tado do mérito da demanda. Assim, por exemplo, os jurados do segun-


do caso, levaram no total, dois minutos a mais para chegar à mesma
conclusão dos jurados do primeiro caso. Em outras palavras, o resulta-
do de ambos os julgamentos é essencialmente idêntico, restando ao
juiz presidente impor a pena ao condenado.
Ocorre que, tal qual o juiz da causa penal-tributária, nosso juiz
decide aplicar ao co-réu B, como técnica de política criminal, uma pena
muito mais gravosa, até para comparar os resultados dessa política,
tendo em vista a ampla repercussão que o caso teve na imprensa em
virtude da notoriedade da vítima ou dos réus. Essas decisões distintas
temporalmente, do mesmo modo que uma outra proferida conjunta-
mente, podem ser consideradas coerentes com princípios de justiça
internos a elas, mas quando se compara a decisão posterior com a
anterior, força é reconhecer sua incoerência, e mais do que isso, sua
arbitrariedade e injustiça. O princípio de justiça de que casos iguais
devem ter soluções iguais postula a invalidade da decisão posterior,
revelando que a coerência entre decisões prévias e subseqüentes, tal
como em decisões concomitantes, é exigência externa que deflui do
princípio maior de que os iguais devem ser tratados igualmente.

6. Igualdade e efeito vinculante


Nos tópicos anteriores vínhamos trabalhando com os aspectos
relativos à justificação de uma teoria na formulação e administração da
justiça. É hora, portanto, de aplicarmos os princípios teóricos então
levantados nas questões práticas concernentes às instituições públi-
cas que administram a justiça.
Por questões metodológicas relacionadas inclusive com o especí-
fico objeto de estudo, não nos preocuparemos em abordar os aspectos
relativos à justiça na formulação dessas instituições públicas, mas
somente à justiça na administração das políticas desenvolvidas por
essas instituições. Na verdade, o objeto de análise é ainda mais restri-
to, pois o estudo se limita a analisar a administração da justiça por
parte da instituição do Poder Judiciário e, nessa instituição, o papel
que a adoção do efeito vinculante pode desempenhar. Para esta finali-
dade, o modelo de justiça de Rawls nos é bastante útil.
O modelo de Rawls, como visto nos parágrafos anteriores, pressu-
põe que os princípios de justiça são uma construção humana e, assim,
podem ser racionalmente explicitados. Parte da premissa de que nossas
intuições sobre o que é a justiça são as molas propulsoras e traços fun-

24
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

damentais de uma teoria de justiça a ser construída pelo homem. Recusa


a idéia de que tais intuições sejam indícios de princípios de justiça obje-
tivos a serem pesquisados e “descobertos” pelo homem, ou pelo menos,
por alguns mais afortunados, em uma realidade metafísica inacessível à
razão humana. Diversamente, assume a proposição de que, ao invés da
responsabilidade de “descobrir”, cabe ao homem a responsabilidade de
organizar os juízos particulares de justiça, sobre cuja base e dentro de
um coerente programa de ação, há de pautar sua conduta.
Essa coerência com princípios plausíveis, racionalmente justifica-
dos e em equilíbrio com nossas convicções imediatas de justiça, é fun-
damental na administração pública da justiça. De um lado, traduz a
exigência incontornável de que os agentes públicos somente devem
agir com base nos princípios públicos de justiça que os obrigue a uma
coerência com essa teoria pública compartida pela comunidade. De
outro, proporciona um padrão público de aferição e discussão dos atos
e decisões dos agentes públicos, impossibilitando a tais agentes o
recurso a intuições excepcionais, que no caso concreto possam –
excepcionalmente ou não – servir de biombo para ocultar preconceitos
e predileções do próprio agente ou a prática de atos destinados a favo-
recimento de interesses particulares e não públicos.
Esse modelo construtivo de justiça não é estranho aos juristas e
na verdade é plenamente aplicável à adjudicação judicial. Suponha-se
que o juiz esteja diante de um caso difícil, ou seja, um caso onde as
regras legais não fornecem uma diretriz segura ao aplicador da lei rela-
tivamente ao caso objeto de adjudicação judicial e existam diversas
intuições sobre o que seja a decisão justa para aqueles casos. Diversos
juízos com diversas intuições estão dando decisões distintas. Ora, isso
sob a base de um coerente e racionalmente justificável programa de
justiça não se admite.
Imaginemos o seguinte exemplo absolutamente hipotético tanto
com relação ao fato, quanto as teses jurídicas nele sustentadas: dois
jovens namoram duas irmãs gêmeas menores de catorze anos. Ambos
mantêm relação sexual com suas respectivas namoradas. A namora I1
e B namora I2. A e B nem mesmo se conhecem, entretanto, os une um
ilícito penal: relação sexual com menores de 14 anos.
Eventualmente A e B acabam sendo processados e julgados por
juízos distintos por violação ao artigo 213 combinado com o 224 do
Código Penal, que considera presumida a violência quando a vítima é
menor de 14 anos. Não parece haver dúvida que um valor moral (é erra-
do e mais reprovável se aproveitar da inocência de uma criança, que

25
Celso de Albuquerque Silva

não possui condições emocionais e psicológicas de oferecer resistência


ao algoz) subjaz à norma atributiva da presunção legal. Diante do caso
que lhe é posto, o juiz J1 do réu A possui a intuição de que essa pre-
sunção legal é absoluta e deve ser aplicada em qualquer hipótese e sob
qualquer circunstância, não a elidindo a demonstrada perda anterior
da virgindade da vítima. Conseqüentemente condena o réu A pela prá-
tica do crime de estupro. A seu turno, o juiz J2 do réu B, considera que
a presunção legal é relativa, devendo ceder se a pretensa vítima já não
era mais virgem. Verificada essa circunstância no caso concreto, absol-
ve o réu B.
As partes vencidas nos dois processos recorrem. O réu A, para
fazer valer o princípio de justiça que subjaz a sentença proferida no
caso em que “B” foi absolvido. A seu turno, o Ministério Público recor-
re da decisão absolutória de “B”, para fazer valer o princípio que sub-
jaz a decisão em que “A” foi condenado. Ambos os recursos são proces-
sados e as causas chegam simultaneamente no Tribunal para julga-
mento pela mesma Turma.46 A Turma, julgando os recursos, dá pela
procedência do recurso do condenado A, reconhecendo como relativa a
presunção legal do artigo 214, I, do Código Penal, que deve ser afasta-
da pela razão invocada pelo juiz J2 de que a vítima não seria mais vir-
gem. Coerentemente julga improcedente o recurso do Ministério
Público, mantendo a decisão absolutória do réu B.
A coerência das duas decisões do Tribunal se expressa pelo prin-
cípio de que causas iguais devem ter tratamento idêntico. De fato, as
ordens jurídicas ocidentais, partem de há muito, com arrimo no direito
romano e sob a influência da filosofia do direito grego, de que o direito
e a justiça são caracterizados pela “regularidade”, quer dizer, pelo
igual tratamento do que é idêntico.47
Essa regra de justiça de tratamento idêntico para os iguais é intui-
tiva e, mais importante, o princípio que dela dá conta é racionalmente
explicitado através de um equilíbrio reflexivo, como já demonstrado ao
visualizarmos a justiça como equidade, na medida em que essa afirma-
ção nada mais é do que uma concretização do princípio mais abstrato
de igual consideração e respeito.

26
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

O entendimento da corte superior sobre a natureza relativa da pre-


sunção do artigo 224 do código penal é reiterado e ratificado em diver-
sas outras decisões até se tornar pacífico. É o momento, portanto, de
enfrentarmos a questão do efeito vinculante das decisões das Cortes
Superiores.
Suponha-se, agora, que o nosso juiz J1 tenha novamente em suas
mãos um outro caso de estupro presumido contra vítima menor de 14
anos, onde o acusado logra demonstrar que ao manter sua primeira
relação sexual com a vítima, ela não era mais virgem. Apesar disso,
nosso juiz J1 condena o réu “C” por estupro presumido.
A questão que exsurge é a seguinte: Poderia o juiz J1, legitima-
mente, julgar o pedido da acusação procedente, condenando o réu
“C”? Em outras palavras, pode então julgar, de modo diferente do que
decidiu o Tribunal de modo reiterado, manso e pacífico? Se for coeren-
temente cego com as suas convicções imediatas de justiça, sejam elas
decorrentes de percepção subjetiva do que a justiça é (emotivistas),
sejam decorrentes de intuições de uma realidade objetiva metafísica,
alcançável por alguns poucos privilegiados, mas insuscetível de ser
apreendida pela razão (intuicionistas), a resposta há de ser positiva.
Porém, dentro de uma teoria de justiça racionalmente justificável, há
toda evidência que a resposta há de ser negativa. A justificação dessa
resposta passa antes pela averiguação sobre a possibilidade, ou não,
de fundamentar racionalmente as decisões judiciais.
Hodiernamente é amplamente reconhecido que as decisões judi-
ciais embutem juízos de valor e, portanto morais, ou ao menos, em uma
tese mais fraca e por isso receptiva a uma aceitação mais ampla, que
tais julgamentos são “moralmente relevantes”.48 É manifesto que ao
juiz não é possível em muitos casos fazer decorrer a decisão apenas da
lei, nem sequer das valorações do legislador que lhe incumbe conhecer.
Tome-se como exemplo expressivo a legalização dos chamados concei-
tos indeterminados (mulher honesta) ou cláusulas gerais (boa fé). Em
tais hipóteses, o quadro legal é amplo e aberto, cabendo ao juiz, no
caso concreto, preenchê-lo com uma valoração adicional. A questão
avulta de importância quando se verifica que em variegadas hipóteses,
nas quais se acreditara que, “através de uma mera subsunção da situa-
ção de fato à previsão normativa, forçosamente objeto de interpretação
prévia, a norma legal seria suficiente, o que na verdade acontece é que

27
Celso de Albuquerque Silva

tem lugar uma ordenação valorativa ou se requer um juízo de valor para


qualificar a situação de fato de determinado modo, em consonância
com o indicado pela previsão normativa”.49 Diante dessa realidade ina-
fastável, surge a questão de se averiguar se essas valorações são sim-
plesmente um ato de opção pessoal e arbitrária ou, ao revés, são pas-
síveis de justificação racional.
Desde muito tempo se advoga a impossibilidade de se derivar de
um juízo de fato, um juízo normativo. Afirma-se que graças à experiên-
cia e à demonstração, pode-se estabelecer a verdade de certos fatos e
até mesmo de certas proposições lógicas e matemáticas, mas aos juí-
zos de valor falta qualquer lógica, pelo que permanecem controverti-
dos, sem que seja possível encontrar-se um método racional que per-
mita estabelecer um acordo entre eles, ou fazer a passagem do mundo
do ser para o do dever ser. A afirmação mais emblemática dessa posi-
ção é encontrada na seguinte passagem do Tratado do Entendimento
Humano de Hume:

“Em todos os sistemas de moralidade que examinamos até


agora, se terá notado sempre que o autor, por certo tempo, expri-
me-se de uma maneira habitual, e estabelece a existência de
Deus, ou faz comentários sobre os assuntos humanos; mas de
repente, surpreende deparar com o fato de que – em lugar dos ver-
bos copulativos ‘ser’ e ‘não ser’ entre as proposições – não há mais
nenhuma proposição que não esteja ligada por um ‘devia’ ou ‘não
devia’. Essa mudança é imperceptível, contudo, é de grande
importância. Porque, dado que esse ‘devia’ ou ‘não devia’ expres-
sa uma nova relação ou afirmação, é necessário que se analise e
se explique, ao mesmo tempo que se dá alguma razão de algo que
nos parece inconcebível, será preciso que nos expliquem como
esta nova relação pode ser uma dedução de outras que são total-
mente diferentes.”50

De acordo com Hume, a passagem de um juízo de fato a um juízo


de valor, ou seja, de um ser a um dever ser, simplesmente não poderia
ser racionalmente feita, pois não pertenceria à lógica. Acolher-se inte-

28
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

gralmente a tese de impossibilidade absoluta de justificação racional


das afirmações normativas, conduz inapelavelmente, em caso de diver-
gência de valores, a soluções baseadas na razão do mais forte que se
impõe pela força bruta, como a melhor ou a mais correta. Em última ins-
tância, se renunciarmos à idéia de racionalidade nos discursos norma-
tivos, significa abandonarmos às emoções, aos interesses, às preferên-
cias e, no final das contas, à violência, a solução de todos os problemas
relativos à ação humana, especialmente, à ação coletiva, tradicional-
mente relacionados com a moral, o direito e à política.51 Tal não se pode
hoje admitir. Embora se reconheça que os juízos de valor não decorrem
logicamente de juízos de fato, isso não implica dizer que o fato tenha
valor por si e tampouco que o valor possa existir independentemente
do fato, ou que a norma possa surgir e valer abstraindo-se da realida-
de humana efetiva. Por isso, a maioria dos jusfilósofos defende a possi-
bilidade de enunciados suscetíveis de fundamentação sobre as valora-
ções adequadas (no sentido de um dado ordenamento jurídico), mesmo
que os fundamentos não sejam cogentes de um ponto de vista estrita-
mente lógico.52
Assim, ao adotar-se uma concepção construtiva pública de justi-
ça, o juiz J1 está obrigado, no caso “C”, a abandonar suas convicções
imediatas, não porque sejam necessariamente falsas (podem até sê-lo,
mas não é requisito indispensável), senão, porque não são elegíveis
dentro de um programa que satisfaça a exigência desse modelo,53 que
exige um equilíbrio entre as convicções imediatas de justiça do indiví-
duo com princípios públicos de justiça. E essa convicção imediata do
juiz do caso de “C”, não pode ser justificada sobre a base de princípios
plausíveis, porque ofende o princípio formal da igualdade de que casos
iguais merecem tratamento igualitário.
A quase totalidade dos autores envolvidos na mais recente discus-
são metodológica partilha a concepção de que o direito tem algo a ver
com justiça, com a conduta socioeticamente correta. As decisões judiciais
precisam ser justificadas e sua justificação traduz uma exigência de coe-
rência com princípios de justiça públicos, daí porque externos à própria
decisão. Essa exigência de coerência também se aplica a decisões futuras
e é a base legitimadora da vinculação a precedentes judiciais anteriores.

29
Celso de Albuquerque Silva

A decisão judicial representa um caso especial do discurso racio-


nal prático em geral.54 É, portanto, um procedimento para provar e fun-
damentar enunciados normativos e valorativos por meio de argumen-
tos. A correção desses enunciados tem por pressuposto serem eles o
resultado desse procedimento, ou seja, do discurso racional.55
É certo que toda discussão tem que ter um ponto de partida. Não
pode começar do nada. Esse ponto de partida são as diversas intuições
normativas que os juízes terão sobre os casos que lhe são postos para
decisão. Mas essas intuições, esses sentimentos jurídicos não são fonte
do Direito. Uma vez que esse sentimento não é senão seu sentimento
individual, qualquer outra pessoa poderá partilhar, ou não, desse senti-
mento; ninguém poderá afirmar que seu próprio sentimento de justiça é
mais infalível que o do outro. A teoria do discurso nada mais é do que
um procedimento para seu tratamento racional, de molde que cada
intuição normativa relevante passa a ser um potencial candidato para
modificação ou abandono baseados em uma argumentação racional.56
A motivação da decisão judicial não tem por finalidade simples-
mente explicitar as intuições ou sentimentos de justiça de seu prolator
ou justificá-la para aqueles que compartilham do mesmo sentimento de
justiça. Na verdade, ela serve para convencer aquilo que Perelman clas-
sifica como um auditório universal, ou seja, o conjunto de pessoas que
tenham acesso ao conteúdo decisório e podem processá-lo racional-
mente o que, em tese, abarca o gênero humano como espécie racional.
O auditório universal é aquele que só pode ser convencido por meio de
argumentos racionais. O acordo desse auditório imparcial, composto
inclusive por aqueles que inicialmente discordavam da opinião mani-
festada, mas foram convencidos de sua correção pela força dos argu-
mentos, é que é o critério da racionalidade e objetividade da decisão.57
O valor da argumentação que convence apenas a parte vencedora é
muito menor do que o valor conferido àquela que convence imediatamen-
te todas as partes envolvidas no processo e, mediatamente os “juristas e,
principalmente, as instâncias superiores que teriam de conhecê-la”.58

30
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Uma argumentação racional, a seu turno, tem por pressuposto o es-


tabelecimento de regras objetivas nas quais o discurso se dará. Tais re-
gras devem atender em um juízo de otimização máxima as duas seguin-
tes condições: a) devem possuir o conteúdo valorativo mais forte possí-
vel, excluindo outros juízos de valor o mais possível com o fito de au-
mentar sua significação de decisão; b) devem ser o mais abstrato pos-
sível, a fim de obter ampla aceitação.59 Como demonstrado no item qua-
tro, o princípio da igualdade postula, com proeminência, essa posição.
Em razão da adoção de uma concepção de justiça como equidade,
pode-se dizer que o resultado do discurso não é apenas subjetivo, nem
apenas objetivo. É relativo, na medida em que está condicionado pelas
intuições iniciais dos participantes e é objetivo na medida em que
depende das regras públicas de justiça. Dessa maneira, a teoria da
argumentação jurídica evita tanto as deficiências das teorias morais
subjetivistas, quanto das teorias morais objetivistas.60 Nessa linha de
raciocínio não se admite que jurisdicionados tenham tratamento diver-
so quando postulam em juízo questões similares.
A falta de uma vinculação ao entendimento esposado pelas Cortes
Superiores permite, ao menos em hipótese, que o juiz julgue caso a
caso. Em assim procedendo, pode ser induzido por incúria, por erro, ou
até por infame vontade, julgar a mesma lide de modos distintos ou
duas lides distintas do mesmo modo. Em outro dizer, uma exclusão
arbitrária ofensiva ao princípio da igualdade de tratamento.
Sabe-se que, mesmo quando se encontra diante de um caso absolu-
tamente novo, sem previsão legal de solução, exige-se do juiz que, antes
de romper totalmente com a tradição, utilize-se da analogia, cujo funda-
mento axiológico é que até o limite do razoável o caso novo deva ser solu-
cionado como foram solucionados pela lei casos semelhantes e cujo obje-
tivo é mais uma vez a não disparidade de tratamento entre situações e
contextos que podem ser incluídos em uma única categoria geral.
Por isso sinala Dworkin que a força gravitacional de um preceden-
te se pode explicar apelando à equidade de tratar de maneira seme-
lhante os casos semelhantes. Um precedente é a constância de uma
decisão política prévia; o fato, mesmo dessa decisão, como fato da his-

31
Celso de Albuquerque Silva

tória política, oferece alguma razão para decidir outros casos de manei-
ra similar no futuro.61
No mesmo diapasão Perelman afirma: “A regra de justiça requer a
aplicação de um tratamento a seres ou a situações que são integrados
numa mesma categoria”. A seguir, conclui: “A regra de justiça fornece-
rá o fundamento que permite passar de casos anteriores a casos futu-
ros, ela é que permitirá apresentar sob a forma de argumentação
quase-lógica o uso do precedente”.62
Assim, o efeito vinculante, ao implicar que as cortes inferiores jul-
guem de conformidade com o que foi decidido pelas cortes superiores,
coarcta a possibilidade de tratamento desigual para situações seme-
lhantes, garantindo uniformidade, regularidade, segurança jurídica,
eficiência e transparência63 nas decisões judiciais e reforçando, diutur-
namente, o princípio da igualdade, direito fundamental da pessoa
humana e condição sine qua non de qualquer teoria pública de justiça.

7. Crítica ao princípio da igualdade como legitimador do


efeito vinculante – o dogma da única decisão correta

Vínhamos de defender que a regra consubstanciada no dever de


tratamento igual para situações semelhantes justifica a obrigação de
se seguir os precedentes. Não se poderia considerar completamente
demonstrada a necessidade de adoção do efeito vinculante como um
corolário do princípio da igualdade, sem se enfrentar a crítica mais
virulenta que se faz à linha de argumentação que se vem de deduzir.
Dizem os críticos que o equívoco da argumentação radica na pre-
missa adotada: a de que existe uma única decisão correta no processo
de adjudicação judicial, o que seria uma falácia. Tal como a pretensa
absoluta neutralidade do intérprete já foi rechaçada, também não
merece acolhimento a teoria que aponta para a existência de uma
única decisão correta, especialmente, nos ditos casos difíceis.
Alguns doutrinadores deduzem que o dever de seguir uma deci-
são anterior por respeito ao princípio de que os iguais devem merecer
tratamento idêntico, parte da premissa que o primeiro tratamento dado

32
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

é o único correto. A não ser assim, não haveria falar-se em ofensa ao


princípio da isonomia, pois que se existem outras decisões igualmente
certas para aquela específica questão objeto de adjudicação judicial, o
princípio da igualdade não exigiria uma coerência absoluta com a pré-
via decisão, já que não haveria qualquer injustiça na diferenciação. “O
sentido do justo comporta sempre mais de uma solução. Não existe
uma única resposta correta para os casos jurídicos; inexiste uma única
interpretação correta. Se for assim, cabe então indagar: por que conce-
ber uma interpretação ‘eleita’ como a única e universavelmente váli-
da?”64 Por isso, como afirma Enrique Garcia, “como ocorre com todos
os silogismos, a conclusão é inevitável, se as premissas são corre-
tas...o problema não é pois de lógica, mas de premissa”.65
A questão de se existe para toda questão jurídica uma única deci-
são correta é um dos problemas mais discutidos da atual filosofia do
direito. Quem desencadeou a discussão foi o filósofo de direito de
Oxford, Ronald Dworkin. A tese de Dworkin de que existe uma única
resposta correta para cada caso se inclui em uma teoria de sistema jurí-
dico que se distingue fundamentalmente de teorias positivistas como
de Kelsen e mais modernamente Hart. Como se sabe, segundo a pers-
pectiva positivista, o sistema jurídico é, ao menos no essencial, um sis-
tema de regras que podem ser identificadas tomando-se em considera-
ção sua validade e/ou eficácia. Um tal sistema jurídico é sempre um sis-
tema aberto, quando menos pela abertura da linguagem do direito,
pela possibilidade de conflito entre normas e pela existência de casos
não regulados. Se o caso objeto de adjudicação judicial cai numa espé-
cie de vazio do ordenamento jurídico positivo, que ademais não possa
ser solucionado de forma intersubjetivamente obrigatória com a ajuda
da metodologia jurídica, então força é reconhecer que em tais casos o
juiz não está vinculado pelo sistema jurídico. Como sempre tem que
decidir, deve fazê-lo por meio de fundamentos extrajurídicos, quando
então sua situação se assemelharia em tudo à do legislador. Sob esse
suposto, evidentemente que não se pode falar de uma única resposta
correta já dada pelo sistema jurídico, que só cabe reconhecer.
A seu turno, Dworkin contrapõe a este modelo positivista de
regras um outro que denomina modelo de princípios. De acordo com

33
Celso de Albuquerque Silva

esse modelo, o sistema jurídico é composto além de regras, essencial-


mente, de princípios. São os princípios jurídicos que vão permitir que
também exista uma única resposta correta naquele vazio onde as
regras não determinam uma única resposta correta. A única resposta
correta seria, portanto, aquela que melhor se pode justificar através de
uma teoria substantiva que contenha aqueles princípios e ponderações
de princípios que melhor correspondam com a constituição das regras
de direito e os precedentes judiciais.

7.1. A idéia regulativa da única decisão correta – uma


resposta à crítica

A tese de Dworkin acerca da única decisão correta coloca uma


grande quantidade de problemas. Desde logo, o próprio Dworkin reco-
nhece que até o presente momento não se encontrou nenhum procedi-
mento que conduza necessariamente a uma única resposta correta.
Mas isso não é um obstáculo absoluto para o reconhecimento de sua
existência. Um juiz ideal, chamado por Dworkin de Hércules, dotado de
habilidade, sabedoria, paciência e agudeza sobre-humanas estaria em
condições de encontrar a única resposta correta. É impossível apresen-
tar aqui um estudo elaborado da teoria de Dworkin e de suas rivais,66
mas afortunadamente é também desnecessário.
Na verdade, são os críticos do reconhecimento do princípio formal
da igualdade como legitimador da adoção do efeito vinculante que par-
tem da premissa errada ao afirmarem que ele demanda uma única res-
posta correta como condição sine qua non para o seu reconhecimento.
Os defensores do efeito vinculante, inclusive os que não concordam
com a idéia de única decisão correta, nunca defenderam essa tese, que
na verdade, chega a ser tautológica.
Com efeito, se uma corte superior prolata uma decisão considera-
da por todos os juízes como a única correta, a adoção do efeito vincu-
lante é uma completa desnecessidade. Essa decisão será seguida por
todos exatamente pelos seus elementos endógenos de correção e con-
vicção. Inexiste aqui a necessidade de um princípio a ela externo – de

34
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

igual tratamento – para garantir a obediência por parte dos demais


órgãos judiciais e/ou constitucionais. Ela se imporia por seus próprios
méritos de justiça e correção. O efeito vinculante é necessário somente
e exatamente naquelas hipóteses em que a absoluta correção da deci-
são judicial é colocada em xeque. Na verdade, aqueles que a ela não
querem aderir a reputam errada ou, o que é uma tese mais frágil,
“menos correta” e por isso se recusam a obedecê-la em outros casos
idênticos que lhe sejam postos para adjudicação.
Isso coloca a seguinte questão. A argumentação de que não exis-
te uma única resposta correta como razão para a não adoção do efeito
vinculante é uma falácia. Embora se admita a impossibilidade de se
obter uma única resposta correta do juiz ideal Hércules, corresponde ao
juiz real a tarefa de aproximar-se desse ideal o mais perto possível. O
aplicador do direito que utiliza a argumentação de que não existe uma
única resposta correta para não se vincular a prévias decisões das cor-
tes superiores não é totalmente honesto com suas convicções mais ínti-
mas pois, no fundo, acredita que a sua resposta é a (única) correta. A
não se entender assim, a noção de discurso prático e fundamentação
racional das decisões judiciais perderia qualquer sentido e cairíamos
no ceticismo moral da teoria subjetivista emocional onde tal questão
não se coloca para discussão, ou no intuicionismo moral onde, embora
a questão se coloque, não é possível encontrar uma solução racional
que convença a todos.
Por outro lado, as decisões judiciais devem ser justificadas através
de uma argumentação racional, típica de um discurso prático. A afirma-
ção de que a decisão judicial é um caso especial de discurso prático
geral, básica e principalmente, é fundamentada na característica de
que a argumentação jurídica é caracterizada por seu relacionamento
como a lei válida.
Tratando especificamente sobre o tema, Robert Alexy aponta uma
das mais importantes diferenças entre a argumentação jurídica e a
argumentação prática geral. Assim expressou sua tese:

“No contexto da discussão jurídica, diversamente no que


ocorre no discurso prático em geral, nem todas as questões estão
abertas ao debate. Essa discussão ocorre com certas limitações. A
extensão e os tipos de limitação são muito diferentes nas diferen-
tes formas. A mais livre e menos limitada é a discussão do tipo
científico jurídico. Os limites são maiores no contexto de um pro-
cesso. Aqui os papéis são desigualmente distribuídos, participa-

35
Celso de Albuquerque Silva

ção do acusado não é voluntária, e a obrigação de dizer a verdade


é limitada. O processo de argumentação tem limite de tempo e é
regulado pelas leis processuais. As partes são instruídas a se
guiar pelos próprios interesses.”67

Por outro lado, mais importante do que apontar as diferenças entre o


discurso jurídico e o discurso prático geral, é o dever de realçar as carac-
terísticas de gênero que permitem afirmar ser a discussão jurídica um
caso especial da discussão prática. A primeira é que as decisões jurídicas
também se preocupam com questões práticas, ou seja, com a justificação
de afirmações normativas, com asserções sobre o que deve ou não ser
feito ou deixado de fazer.68 A segunda é que tais questões normativas são
discutidas com exigência de correção, o que se passa a demonstrar:

7.1.1. A exigência de correção dos discursos jurídicos – seu sentido

A exigência da correção nos discursos jurídicos desde logo pode


ser inferida da própria estruturação desses discursos. Com efeito, como
observa Alexy, em qualquer forma de discurso jurídico são apresenta-
dos argumentos justificativos. Assim, “qualquer pessoa que justifique
algo, está implicitamente exigindo que essa justificação seja correta e,
portanto, que seja correta a afirmação. Não é permissível nos discursos
jurídicos assim como não o é nos discursos práticos gerais, afirmar algo
e depois se negar a justificá-lo sem dar razões para isso”.69
De fato, é algo fora de dúvida que os participantes de um discur-
so jurídico, para que suas afirmações e fundamentações tenham
pleno sentido, devam deduzir a pretensão de que a sua resposta é a
única correta, independentemente do fato de ela existir ou não em
termos absolutos.70
A exigência de correção das afirmações normativas convive cien-
tificamente com alguma incerteza. Diferentemente dos enunciados

36
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

sobre fatos perceptíveis que podem ser classificados como verdadeiros


ou falsos (errados) aos enunciados sobre a validade de afirmações nor-
mativas, classificamos como corretos ou incorretos. “Ambos os modos
de expressão significam aparentemente o mesmo; todavia, o segundo
exprime um grau de certeza mais débil. A ciência jurídica satisfaz-se
em regra com a correção de seus enunciados, sem com isso renunciar
à pretensão de cientificidade. Subsiste um resíduo último de incerteza,
mas que na prática pode ser negligenciado.”71
Derradeiramente, um outro forte argumento que aponta para a exi-
gência de correção da decisão judicial é que ela, por expressa determi-
nação constitucional, deve ser necessariamente justificada72 sob a
base do princípio da legalidade e da regra da lei.73
Destarte, pode-se afirmar que as afirmações jurídicas, tal com as
afirmações normativas gerais, fazem a exigência da correção. Se julga-
mentos de valor moral já impõem uma exigência através de seu signi-
ficado de possuírem a capacidade de serem aprovados por toda pes-
soa razoável e, nesse sentido, serem válidos, então isso deve ser verda-
de para graus ainda maiores de julgamentos de valor jurídico.
A idéia regulativa da única resposta correta, ao invés de negar,
reafirma a adoção do efeito vinculante como respeito ao princípio da
igualdade. Ainda que em termos absolutos não exista uma única res-
posta correta nas decisões reais, nessas mesmas decisões uma deve,
após passar pelo teste do discurso jurídico e dele ser resultante, ser
necessariamente considerada, recebida e aceita como correta, afastan-
do intuições iniciais que com ela se mostram, afinal, incompatíveis.
A estruturação hierarquizada dos órgãos judiciais tal como deli-
neada em nossa Carta Magna, permite a afirmação de que as decisões
da Cortes Superiores, depois de pacificadas no seio dos respectivos tri-
bunais, postulam essa qualidade.

7.2. A jurisdição extraordinária e a idéia regulativa da única


decisão correta. A questão das súmulas 400 e 343 do
Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal, enfrentando a tormentosa questão da


existência de uma única decisão correta para cada caso judicial, editou

37
Celso de Albuquerque Silva

duas súmulas relacionadas ao tema, consubstanciadas nos verbetes de


números 343 e 400.

“Súmula 343 – Não cabe ação rescisória por ofensa a literal


disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado
em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais.”
“Súmula 400 – Decisão que deu razoável interpretação à lei,
ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário
pela letra a do arts. 101, III, da Constituição Federal.”

Referidas súmulas teriam, assim, por fundamento hermenêutico, o


reconhecimento de que, em decisões reais, ainda não se descobriu a
fórmula ou o procedimento para se encontrar uma única decisão corre-
ta, o que desautorizaria reforma de decisão contrária a entendimento
posteriormente manifestado pelo excelso pretório, seja em via recursal
extraordinária, seja via ação rescisória na hipótese de seu trânsito em
julgado já ter ocorrido.
Como visto, porém, a existência real de uma única decisão correta
não é pressuposto para adoção da súmula vinculante, bastando o
recurso à idéia regulativa da única decisão correta para que se possa
alcançar tal desiderato.
Por outro lado, reconhecendo-se que a adoção do efeito vinculante
prescinde da absoluta e incontrastável correção da decisão vinculativa,
consectário natural seria a revisão, por parte do Supremo Tribunal
Federal, no que concerne às divergências de interpretação do texto
constitucional e pelo Superior Tribunal de Justiça no que concerne à
divergência de interpretação de texto infraconstitucional, do entendi-
mento anterior que deu origem à edição das citadas súmulas.

7.2.1. A posição do Supremo Tribunal

No ordenamento constitucional pretérito, o Supremo Tribunal exer-


cia a dúplice função de velar pelo respeito à Constituição Federal e bem
assim ao direito infraconstitucional. É naquele contexto, portanto, que
vieram a ser editadas as mencionadas súmulas consubstanciadas nos
verbetes nos 343 e 400.
A análise do enunciado dos referidos verbetes permite afirmar que
ambos tratam da mesma situação material – decisão judicial que deu
razoável interpretação da lei – diferençando-se apenas quanto ao mo-
mento processual em que referida decisão fora objeto de inconformis-

38
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

mo. No caso da súmula 343, a decisão já havia transitado em julgado,


enquanto que a hipótese da súmula 400 tratava de decisão ainda sujei-
ta a recurso, embora extraordinário. Ontologicamente, porém, os funda-
mentos para a edição dos verbetes eram os mesmos.
Desde cedo, o Supremo Tribunal Federal na aplicação da súmula
400, fez distinção entre lei ordinária e lei constitucional. No julgamento
do RE 81.429/SP74 o Ministro Moreira Alves afirmou que, tratando a
hipótese de dispositivo constitucional, “é cabível o recurso extraordi-
nário para examinar, se correta ou não, a interpretação que as instân-
cias ordinárias lhe deram. Não fora assim, e deixaria o Supremo Tribu-
nal Federal de ser o sumo intérprete da Constituição e, conseqüente-
mente, o guardião de sua observância”.
No que concerne ao verbete no 343, o Supremo Tribunal Federal no
ordenamento constitucional pretérito, vinha aplicando-o amplamente
até que em 1980 no julgamento do RE 89.108/GO, o Tribunal se afastou
de sua anterior orientação e passou a tratar de modo uniforme as hipó-
teses das súmulas 400 e 343. No julgamento do leading case que afas-
tou a aplicação da súmula 343 quando a controvérsia se referisse a
interpretação constitucional, o Ministro Moreira Alves escreveu:

“...Entendo que a súmula no 343 nada mais é que a repercus-


são, na esfera da ação rescisória, da súmula no 400 que não se apli-
ca a texto constitucional – âmbito do recurso ordinário. Como se
infere do artigo 119, III, a da Emenda Constitucional no 1/69, o cor-
respondente, no plano constitucional, à negativa de vigência de lei
é a contrariedade à Constituição, e, em assim sendo, se a legisla-
ção ordinária (no caso o Código de Processo Civil) se limite a alu-
dir como pressuposto da rescisória a violação literal de disposição
de lei, impõe-se que se distinga a lei ordinária (para qual é neces-
sária a negativa de vigência) e a lei constitucional (para qual basta
a contrariedade).”75

No ordenamento constitucional atual, o Supremo Tribunal Federal,


com expressa referência ao precedente antes citado, veio reafirmar a sua
função de intérprete supremo e último do texto constitucional e, portan-

39
Celso de Albuquerque Silva

to, a titularidade da competência para, concretizando o conteúdo da cons-


tituição, oferecer a única interpretação correta do texto constitucional.
Tratando de divergências na interpretação de texto constitucional,
o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, relator do RE (AgR) 328.812-AM, em
voto vencedor76 disse:

“Ora, se ao Supremo Tribunal Federal compete, precipuamen-


te, a guarda da Constituição Federal, é certo que a sua interpreta-
ção do texto constitucional deve ser acompanhada pelos demais
Tribunais, em decorrência do efeito definitivo absoluto outorgado
a sua decisão. Não se pode diminuir a eficácia das decisões diver-
gentes. Assim, se somente por meio de controle difuso de consti-
tucionalidade, portanto, anos após as questões terem sido decidi-
das pelos Tribunais ordinários, é que o Supremo Tribunal Federal
veio a apreciá-las, é a ação rescisória com fundamento em violação
de literal disposição de lei, instrumento adequado para a supera-
ção da decisão divergente. (g.n.)
Contrariamente, a manutenção de soluções divergentes em
instâncias inferiores, sobre o mesmo tema, provocaria, além da
desconsideração do próprio conteúdo da decisão desta corte, últi-
ma intérprete do texto constitucional, a fragilização da força nor-
mativa da Constituição.
A aplicação da súmula 343 em matéria constitucional revela-se
afrontosa não só à força normativa da constituição, mas também ao
princípio da máxima efetividade da norma constitucional. Admitir a
aplicação da orientação contida no verbete em matéria de interpre-
tação constitucional significa fortalecer as decisões das instâncias
inferiores em detrimento das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Tal prática afigura-se tanto mais grave se se considerar que no nosso
sistema geral de controle de constitucionalidade a voz do STF
somente será ouvida após anos de tramitação das questões em duas
instâncias ordinárias. Privilegiar a interpretação controvertida, para
a mantença de julgado desenvolvido contra a orientação desta corte,
significa afrontar a efetividade da constituição.”

Considerando-se que no atual ordenamento constitucional as


questões que podem ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal
Federal, diferentemente do que ocorria antes da Constituição de 1988,

40
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

se restringem a matérias de índole constitucional, pode-se afirmar que,


no âmbito da Suprema Corte não mais subsistem os enunciados dos
verbetes no 343 e no400.
Prevaleceu, portanto, o entendimento de que, sendo o Supremo
Tribunal, por expressa determinação constitucional, o intérprete últi-
mo e absoluto do Texto básico, suas decisões em matéria constitu-
cional, como ideal regulativo, são aquelas que devem ser considera-
das como as únicas corretas e passíveis de aplicação, defluindo
dessa circunstância o dever dos demais tribunais de vincularem
suas decisões posteriores a prévias decisões sedimentadas no seio
do Supremo Tribunal Federal.
Na hipótese de as decisões judiciais serem prévias à adjudicação
do caso constitucional pelo Supremo Tribunal Federal e terem transita-
do em julgado, caberá ação rescisória para fazer valer a autoridade do
Supremo e eficácia das normas constitucionais, dentre as quais se
sobressai o princípio da igualdade.
Em síntese, do supra narrado as seguintes conclusões podem
ser hauridas: a) decisão anterior trânsita em julgado dos demais tri-
bunais que contrarie interpretação conferida pelo Supremo Tribunal
Federal em sede de controle difuso ou concentrado estão sujeitas à
ação revisional; b) decisões posteriores dos demais tribunais sobre
questões pacificadas no seio do STF devem, obrigatoriamente e de
forma vinculante, observarem a interpretação sedimentada no seio
do Excelso Pretório, sob pena de em não o fazendo, ainda que
venham a transitar em julgado, se submeterem ao juízo revisional
daquela augusta corte.

7.2.2. A posição do Superior Tribunal de Justiça

Embora como já afirmado anteriormente, a axiologia que subjaz


às sumulas no 343 e no 400 do STF é ontologicamente a mesma, a
ponto de ter o ministro Moreira Alves reconhecido que a súmula no
343 nada mais é do que a repercussão da súmula 400 no âmbito da
ação rescisória, entendimento e circunstância que culminaram com a
desconsideração de ambas as súmulas quando a divergência se refe-
risse a interpretação de texto constitucional, o Superior Tribunal de
Justiça tem dado um trato diferente e até mesmo contraditório à
matéria.

41
Celso de Albuquerque Silva

No que concerne à aplicação do verbete no 400, desde logo o


Superior Tribunal de Justiça cuidou de afastá-la, posto que incompatí-
vel com o sistema recursal instituído na carta da república.77
Sálvio de Figueiredo Teixeira,78 cuidando de apontar as diferenças
na abordagem jurisprudencial do Superior Tribunal de Justiça quando
cotejada com prévio entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre
a matéria, pontificou: “A primeira dessas ‘insurreições’ localizou-se no
repúdio ao enunciado no 400 do STF. Ousada e destemidamente, embo-
ra com postura respeitosa, mostrou o novo Tribunal, vencidas peque-
nas resistências, a incompatibilidade do referido enunciado, que admi-
tia mais de uma interpretação como razoável com o novo sistema que
criara a Corte para dizer qual a exata exegese da lei”. (g.n.)
Diante da novel ordem constitucional, outro não poderia ser o
entendimento do Superior Tribunal de Justiça quanto ao tema. Tendo-se
em conta o disposto no artigo 105, III, c, da Constituição Federal que
elenca como uma das condições recursais do recurso especial a diver-
gência de interpretação de lei federal por parte de outros tribunais, seria
insano acolher-se o entendimento da súmula no 400, vedando acesso à
via especial, quando houvesse interpretações divergentes sobre uma lei
federal. Daí a sua natural e imediata rejeição pelo Superior Tribunal de
Justiça. Competindo ao Superior Tribunal de Justiça dirimir conflitos de
interpretação e definir o exato sentido da lei ou ato normativo federal,
não é possível aceitar-se a tese de várias interpretações razoáveis.
Embora essa plêiade de interpretações efetivamente possa existir, por
uma questão de sanidade do sistema, uma e somente uma deve vir a
prevalecer, e essa é a definida pelo Superior Tribunal de Justiça.
Relativamente à súmula no 343, o Superior Tribunal de Justiça tem
adotado entendimento que se harmoniza com o do Supremo Tribunal
Federal quando da edição do enunciado. Nesse diapasão, o STJ tem
afastado a aplicação da referida súmula quando a divergência for de
interpretação constitucional e mantido sua aplicação quando a diver-
gência se referir à interpretação de textos legais.
No julgamento do recurso especial no 93.96579 disse o ministro Ari
Pargendler, tangenciando a questão da única interpretação correta,
que a lei pode ter uma ou mais interpretações, mas ela não pode ser

42
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

válida e inválida a depender de quem seja o encarregado de aplicá-la.


Por isso, se a lei é conforme a Constituição e o Tribunal deixa de apli-
cá-la ou se declara inconstitucional uma lei conforme a Constituição,
há, em ambos os casos, aplicação equivocada do texto constitucional,
sujeitando o julgado à ação rescisória.
Posteriormente, no julgamento do recurso especial no 96.213,80 o STJ
reafirmando seu entendimento, afastou a aplicação da súmula 343, em
decisão bem fundamentada e talvez a mais completa sobre o cabimento
de ação rescisória por divergência de interpretação constitucional.
O voto vencedor do relator, ministro José Delgado, é bem abran-
gente ao apreciar a questão e, a par de abordar a já reconhecida prima-
zia do Supremo Tribunal Federal como intérprete último e absoluto da
constituição agregou, pela vez primeira, o princípio da isonomia como
elemento legitimador da revisão da decisão trânsita em julgado. Nesse
particular assim se manifestou:

“O trânsito em julgado da decisão ocorre, ou por o contribuin-


te não recorrer para o STF, ou pela apresentação de recurso sem
pressuposto legal para ser conhecido, fato este que, também, é
praticado pela Fazenda Pública. A desordem da aplicação da lei
tributária está, em decorrência, realmente, instalada pelo que
urge se construir um sistema capaz de evitá-la, em homenagem à
função principal da ciência jurídica aplicada que é de provocar
harmonia nas relações entre as partes, principalmente, quando
uma delas é o Poder Público, ante o dever de se obedecer aos prin-
cípios constitucionais e jurídicos que informam especialmente o
sistema tributário nacional, com destaque o da igualdade.
(...) Configurada qualquer uma das situações acima expostas,
entendo que o único caminho processual existente em nosso orde-
namento jurídico para solucionar a controvérsia é o da ação resci-
sória para que se restabeleça a aplicação harmônica de dispositivo
legal, com respeito ao princípio da igualdade para todos os contri-
buintes, especialmente porque se está diante de uma situação jurí-
dica de direito público específica, de natureza tributária, sujeita de
modo cogente, a um princípio constitucional pétreo, que é o da iso-
nomia tributária, previsto expressamente no art. 150, II, da CF.
Penso, desse modo, por entender que o fenômeno da coisa jul-
gada, enquanto posto no âmbito temporal relativo por não terem

43
Celso de Albuquerque Silva

decorridos dois anos exigidos para que possa ser atacado por res-
cisória, não pode atuar sobranceiro sobre o princípio da legalida-
de, da impessoalidade, da indisponibilidade da coisa pública e de
igualdade, quando se tem presente relação de direito público.
(...) Venho afirmando em meus escritos e decisões, com a
devida vênia dos que têm entendido diferente, que a função do
direito aplicado pelo Poder Judiciário é, exclusivamente, a de orde-
nar, impondo segurança e confiabilidade nas relações jurídicas,
em face de não lhe ser possível criar comportamentos que fujam
dos limites impostos pela legalidade objetiva e prestigiada pela
constituição.
Não concebo o atuar de qualquer ordenamento jurídico que
não seja na forma de sistema. Se assim não atuar não é ordena-
mento e não expressa função harmonizadora a ele exigida.
Impossível, conseqüentemente, que uma decisão judicial
importe em criar privilégio no âmbito das relações jurídicas, impo-
sitivos tributários, permitindo que uma empresa não pague deter-
minado tributo, mesmo que seja por período certo, enquanto
outras empresas são obrigadas a pagá-lo, apenas, porque, de
modo contrário ao assentado pelo STF, uma decisão se impõe.
O prevalecimento da sentença trânsita em julgado, em tal hi-
pótese, quanto atacada por ação rescisória, seria provocar um des-
respeito à ordem jurídica, cuja estrutura e finalidade estão volta-
das para a promoção da justiça. Esta, por sua vez, só será alcan-
çada se a todos for emprestado o sentimento de igualdade e de
segurança.
No trato de confronto de lei com a Constituição Federal, de
acordo com o nosso sistema imposto pela nossa Carta Magna, só
o STF tem competência absoluta para se pronunciar, declarando,
com força obrigatória, a sua constitucionalidade ou inconstitucio-
nalidade.
A declaração de inconstitucionalidade assumida pelos tribu-
nais de segundo grau não tem a mesma potencialidade de impera-
tividade da oriunda pelo STF pela ausência de efeito definitivo abso-
luto e por aqueles não terem a competência outorgada pela Carta
Magna de serem obrigados a guardarem a Constituição como a pos-
suída pela Colenda Corte (art. 102 CF)”. (grifos acrescidos)

Os fundamentos apresentados no bem lançado voto me parecem


irrespondíveis e corretamente equacionam a questão sob a ótica da

44
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

supremacia outorgada pelo constituinte à interpretação das cortes


superiores sobre o exato sentido da legislação constitucional (STF) e da
legislação infraconstitucional (STJ) e bem assim, sob o plano da igual-
dade dos jurisdicionados, princípio pétreo de nossa carta política.
Nada obstante, o Superior Tribunal de Justiça tem, até o presente
momento, aplicado a súmula 343 quando a questão se referir à diver-
gência de interpretação de textos legais, seja por alçar à categoria de
absoluto o princípio da segurança jurídica, via autoridade da coisa jul-
gada (ação rescisória 159, rel. Ministro Sálvio de Figueiredo), seja por
questão meramente processual, por reputar como condição, de conhe-
cimento do recurso especial a demonstração de afronta ao artigo 485,
V pela decisão na ação rescisória e não afronta aos fundamentos do jul-
gado rescindendo, em razão da interpretação divergente (Resp.
259.142/PE, Rel. Min. Vicente Leal, DJ de 30/10/2000, p. 206).
Essa posição ambígua do Superior Tribunal de Justiça não é digna
de encômios e termina por demonstrar a falta de sensibilidade do
Tribunal com sua função institucional de assegurar a uniformidade do
direito federal. Talvez o Superior Tribunal de Justiça não tenha ainda
percebido de que, a exemplo do que ocorre com o Supremo Tribunal
Federal em matéria constitucional, é o STJ o responsável pela última e,
conseqüentemente única, obrigatória e vinculante interpretação do
direito federal infraconstitucional.
A exemplo do que ocorreu com o Supremo Tribunal Federal que ini-
cialmente afastou a aplicação da súmula 400 e depois estendeu o
mesmo entendimento para a sumula 343, acreditamos e esperamos que
o Superior Tribunal de Justiça, fazendo valer sua missão constitucional,
também afaste a aplicação da súmula 343 para admitir a propositura da
ação rescisória quando a decisão trânsita em julgado afrontar entendi-
mento jurisprudencial sedimentado no Tribunal, uniformizando a apli-
cação do direito federal e distribuindo a justiça ao conferir tratamento
igual a situações jurídicas idênticas. O princípio da segurança jurídica
não pode ser adequadamente manejado nessas hipóteses para superar
as demandas da justiça igualitária, porque nessas circunstâncias ele já
está relativizado pela possibilidade de propositura da ação revisional.
Não existe justificada confiança que considere imutável o que decidido
na decisão trânsita em julgada, o que só ocorrerá quando ultrapassado
o lapso temporal para a propositura da ação revisional. O argumento
processual também não se sustenta, pois que o processo é apenas o
meio para a defesa do direito material, não se justificando o excesso de
formalismo aplicado ao conhecimento do recurso.

45
Celso de Albuquerque Silva

Pelo que se expôs, conclui-se que a adoção do efeito vinculante


promove a concretização de um direito fundamental do homem que é o
direito de ser tratado com igual consideração e respeito, princípio esse
base necessária para uma coerente formulação de uma teoria pública
sobre a Justiça.
A força jurígena da vinculação ao precedente se manifesta em
todos os aspectos quando se trata de objetos litigiosos idênticos. Dian-
te disso podemos afirmar as seguintes regras principais para uso dos
precedentes. Se o juiz pode aduzir a favor ou contra um precedente,
tem a obrigação de fazê-lo e, aquele que quiser afastar-se de um pre-
cedente, tem o ônus de racionalmente argumentar porque está decidin-
do contrariamente.81

7.3. A idéia de única decisão correta e integração pessoal –


uma outra resposta à crítica

A hierarquização constitucional do poder judiciário, ao menos no


que concerne aos tribunais superiores com as competências que lhe
foram conferidas,82 indica a intenção do constituinte de reconhecer nes-
ses órgãos a função que Smend classificou como de integração pessoal.83
Smend defende a tese de que essa força integradora pessoal não
deriva das qualidades pessoais daquele que detém o mando político,
mas sim de um sentimento espontâneo produzido pelos governados e
canalizado para a pessoa do governante. Esse, de agente externo e soli-
tário de mudanças sociais, é na verdade um receptáculo das aspirações
comunitárias, de modo que ambos – governantes e governados – são
“uma força dinâmica de tudo o que neles é capaz de converter-se em
vida social e espiritual”.84
Essa nova perspectiva retira da análise da força integradora da
integração pessoal as qualidades individuais do chefe político e permi-
te visualizar uma nova função para o dirigente político: a de obter o
reconhecimento dos governados de que consolida em si a responsabi-
lidade pela condução dos negócios públicos, independentemente de os

46
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

estar conduzindo bem ou mal. Mais importante do que se firmar como


um bom governante, é firmar-se como governante integrando a coleti-
vidade sob o manto da liderança. Nesse sentido, a integração depende
mais da capacidade do órgão político para gerar adesão, do que para
fazer um bom governo.
Como esclareceu Smend, “o característico da integração pessoal é
que o órgão constitucional legítimo simboliza basicamente a tradição
histórica dos valores políticos comunitários, isto é, constitui ao mesmo
tempo um caso típico de integração objetiva. Quando se ovaciona, por
exemplo, o Soberano, não se pretende com isso honrar a uma pessoa
concreta, senão que se trata de um ato de consciência de um povo poli-
ticamente unido”.85
Por outro lado, não se pode seriamente negar que a burocracia
judicial, apesar de exercer uma função técnica, também exerce função
integradora. Dessa afirmação não discrepa Smend ao averbar que “A
burocracia...judicial também pertence...ao círculo de pessoas que reali-
zam uma função de integração”.86
Reconhecido que o Poder Judiciário também possui uma função
integradora, força é concluir que a adoção do instituto do efeito vincu-
lante reforça esse sentimento coletivo de unidade e coesão, quando
menos pelas seguintes duas razões básicas:
Por primeiro, como já anotado adrede, o mais importante da inte-
gração pessoal, para fins de integração da comunidade, não é o acerto
ou desacerto pontual das decisões proferidas por aqueles que detêm o
mando político. Em termos de Poder Judiciário, evidentemente nas
suas diversas esferas de competência, a cúpula desse poder está con-
substanciada nos Tribunais Superiores em razão do poder de revisão
das decisões das cortes inferiores que lhe foi outorgado pelo consti-
tuinte originário. Ao Supremo Tribunal Federal foi conferida a qualida-
de de supremo intérprete da constituição. Ao Superior Tribunal de
Justiça, o de supremo intérprete da legislação infraconstitucional, pois
é sua atribuição pacificar e uniformizar interpretações divergentes dos
demais tribunais.
Por expressa vontade constituinte originária, ambos órgãos cons-
titucionais, dentro de suas respectivas competências, foram alçados a
categoria daquilo que Smend chama de “órgão estatal supremo“, a

47
Celso de Albuquerque Silva

quem foi conferida a fundamental tarefa de garantir, aos diferentes


fatores de integração, em especial dos distintos órgãos estatais, uma
efetiva força aglutinante real.87
Nesse diapasão, torna-se imprescindível a adoção do efeito vincu-
lante para as decisões proferidas pelos Supremos Tribunais, que se
apresenta como o único meio de tornar efetiva e eficaz a diretriz inte-
gradora expedida por aquelas augustas Cortes.
Com efeito, urge que se reconheça aos Tribunais Superiores o
papel integrador que lhe foi conferido pelo constituinte originário
decorrente da função de órgão máximo na defesa da Constituição. O
exercício dessa função indeclinável independe como visto, do acerto ou
desacerto pontuais das decisões proferidas pelos Pretórios. É mais
importante para o ordenamento constitucional pátrio, como elemento
integrador da comunidade, reconhecer-se que a decisão proferida pelos
Tribunais Superiores é, e deve ser aceita como a regulativamente cor-
reta e, portanto, definitiva, do que desrespeitá-la ao fundamento de
uma alegado desacerto desta ou daquela decisão específica. Daí por-
que a impossibilidade de se demonstrar que aquela é a única resposta
correta é irrelevante para a adoção do efeito vinculante.
É que, ademais de exercer sua função de interpretar a Consti-
tuição ou as leis com rigor técnico na medida do possível incensurável,
os Tribunais Superiores exercem uma segunda função igualmente
importante, qual seja, através de seus julgamentos, sejam eles subjeti-
vamente entendidos como bons ou maus, acertados ou equivocados,
afirmarem-se como os supremos guardiões e intérpretes da constitui-
ção e/ou das leis e obterem dos demais órgãos do Poder Judiciário e do
Poder Executivo o reconhecimento desse status e, ipso facto, o respei-
to ao que ficou decidido, que por isso mesmo deverá ser observado por
eles doravante de modo necessário e não meramente contingente.
Essa função integradora das decisões judiciárias foi reconhecida
pelo Justice Brandeis, ao afirmar que o “efeito vinculante é a melhor
fórmula política, porque na maioria dos problemas, é mais importante
fixar o sentido da norma do que fixá-lo corretamente”.88 Em outro dizer,
na maioria das vezes, é mais importante a função integradora da deci-
são judicial, do que a busca pela certeza da absoluta correção quanto

48
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ao sentido da norma extraído pela decisão. Mais importante do que evi-


tar uma decisão não tão correta é, em razão da insegurança gerada
pela falta de uma diretriz unificadora segura, evitar-se o caos e a desa-
gregação social ao se definir o significado da norma. A função de inter-
pretar o mais corretamente possível o sentido das normas não é des-
prezível, porém, a função integradora de uma decisão judicial, seja ela
“certa” ou “não tão certa”, é também importante na medida em que
alcança resultados positivos no sistema como um todo, em termos de
uniformidade e segurança jurídica.
A segunda razão justificadora da adoção do efeito vinculante
como fator de integração pessoal se relaciona com a mera existência
dos Tribunais Superiores. Como já alertava Smend, “a eficácia integra-
dora dos órgãos constitucionais pode resultar de sua própria existência
ou de seu processo de formação e funcionamento”.89 Quando resulta de
sua própria existência é fonte de integração pessoal.90
A integração pessoal decorrente da mera existência do órgão
constitucional resulta da autoconsciência de um povo quanto as suas
tradições históricas, concepções e valores culturais profundamente
enraizados na consciência coletiva de uma determinada nação. Nessa
hipótese, tais órgãos cumprem uma função integradora similar àquela
que realizam fatores objetivos ou funcionais de integração, a exemplo
das bandeiras, dos escudos ou hinos nacionais.
Esse tipo de integração se relaciona então com aqueles sentimen-
tos compartilhados pela nação, de devoção e respeito quase míticos
pelas suas instituições democráticas. Nesse sentido, é parte do senti-
mento coletivo o de pertencer a uma nação democrática, que respeita
os direitos fundamentais da pessoa humana, bem como estar submeti-
da a um Estado de Direito, que dentre outros princípios, vincula a atua-
ção de todo poder estatal aos postulados legais, restando ao judiciário
a efetivação desses princípios e/ou valores.
Assim, o respeito ao que ficou decidido pelos Tribunais Superiores,
independentemente da análise sobre o grau de correção do decidido, que
sempre será objeto de inconformismo especialmente nos chamados casos
difíceis, e a devoção conferida aos seus pronunciamentos, é valor que
deve estar inserido no sentimento cultural da nação brasileira como per-
tencente a um Estado Democrático de Direito, que traduz a consciência

49
Celso de Albuquerque Silva

de um povo politicamente unido na defesa dos princípios, regras e valo-


res que subjazem a tal espécie de sistema jurídico, dentre os quais
sobressai com indiscutível proeminência o princípio da igualdade.
Dentro dessa ótica, curial a conclusão de que o efeito vinculante
das decisões proferidas pelas Cortes Superiores exerce uma função
integradora de caráter pessoal, reforçando o papel integrador do direi-
to, inerente a qualquer sistema que postule a qualidade de ordenamen-
to jurídico, razão porque devem vincular os tribunais e juízos inferiores.

50
Capítulo 2
Legalidade e Efeito Vinculante

1. Introdução

O princípio da legalidade é uma das formas de manifestação do


ideal de justiça. Justiça enquanto regularidade na aplicação da ordem
estatal coerciva. Aristóteles escandiu seu conceito de justiça em duas
óticas. Justiça enquanto igualdade e justiça como legalidade. Existem,
defende ele, dois conceitos de justiça: a igualdade e a legitimidade.
“Sustenta-se que o termo ‘injusto’ aplica-se ao homem que toma mais
do que lhe é devido, o homem parcial. Portanto, é claro que o homem
respeitador da lei e o homem imparcial serão ambos justos. ‘O justo’,
portanto, significa aquilo que é legítimo e aquilo que é igual ou impar-
cial, e ‘o injusto’ significa aquilo que é ilegal ou aquilo que é desigual
ou parcial”.1
Sinala Kelsen, que como postulado esse conceito de justiça “signi-
fica apenas que o direito positivo será aplicado em conformidade com
seu próprio significado. A igualdade dessa justiça é a igualdade peran-
te o direito, o que significa apenas legalidade”.2 Justiça, nesse sentido,
é aplicação imparcial e regular das normas jurídicas, ou seja, é o domí-
nio da vontade lei (rule of law), sustentáculo do Estado de Direito, em
substituição à vontade dos homens, fundamento do Estado Absoluto.
Por outro ângulo, justiça como legalidade, como domínio da lei,
implica em fortalecimento do Poder Judiciário, último responsável pela
concretização da norma jurídica através da atribuição de um sentido ao
texto legal. “Ir a um juiz é ir à justiça, pois o juiz ideal é, por assim dizer,
a justiça personificada”.3
Nesse sentido, o princípio da legalidade assume vital importância
com a redemocratização do país, processo político que culminou com a

51
Celso de Albuquerque Silva

promulgação da Constituição de 1988 e propiciou o destravamento de


uma demanda social por justiça por longos anos reprimida em razão da
experiência autoritária vivida pelo país. A conseqüência fundamental
desse movimento político-social foi trazer o Poder Judiciário para o cen-
tro de atenção dos movimentos sociais que nele passaram a depositar
suas aspirações. Buscar a justiça é, em última instância, buscar socor-
ro no judiciário.
As esperanças que a sociedade depositava no Poder Judiciário com
relação à afirmação de seus direitos de cidadania não demoraram a
esmorecer. Diante da crescente enxurrada de ações judiciais, o Estado –
por seu Poder Judiciário – demonstrou completo despreparo, cristalizan-
do no seio da coletividade a idéia de que, tal como atualmente, estrutu-
rado, não possuiria condições de responder – a tempo e a hora – às legí-
timas demandas sociais que lhe eram colocadas para solução. A euforia
inicial cedeu passo ao desalento e este, logo a seguir, à crítica.
É então o Poder Judiciário confrontado com a dura realidade de
que precisava mudar para se adequar aos ventos da democracia.
Passou a ser alvo de acerbadas críticas por não cumprir com sua fun-
ção constitucional que é de distribuir a justiça, pacificando o tecido
social.4 Nesse quadro de mudanças, diversas reformas institucionais
estão sendo levadas a efeito no âmbito do Poder Judiciário, objetivan-
do torná-lo mais acessível a uma grande parcela da população excluí-
da dos reais benefícios da cidadania e que, efetivamente, não tem
acesso à Justiça.
Esse processo de reformas do judiciário não é uma experiência
exclusiva do Brasil, mas se apresenta como uma tendência em toda a
América Latina, continente que tem presenciado um número extrema-

52
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

mente elevado, seja em quantidade, grau e natureza, a apresentação


de propostas e iniciativas de reformulação das instituições judiciárias.5
Dentre as propostas de mudanças e iniciativas já implementadas,
pode-se citar um fortalecimento das carreiras judiciais, inclusive no
que concerne a sua necessária independência do poder político, a fim
de garantir a imparcialidade na apreciação das demandas; criação de
instituições estatais para representação dos interesses dos menos pri-
vilegiados – as defensorias públicas; uma revisão das leis processuais
objetivando maior celeridade na resolução dos conflitos; criação de jus-
tiças especializadas para julgamento de crimes de menor potencial
ofensivo, bem como causas cíveis de menor complexidade – os juizados
especiais, tudo com o declarado objetivo de levar a justiça aos pobres,
de resto excluídos também do acesso à justiça face aos elevados cus-
tos desse serviço público.
A dificuldade dos dotados de menor poder econômico acessar a
justiça, já foi explicada com a seguinte frase: “Os tribunais e os servi-
ços legais são em teoria disponíveis para todos, do mesmo modo que
no Sheraton Hotel qualquer um pode entrar; tudo que se precisa ter é
dinheiro”.6
As razões para tais mudanças são facilmente localizadas na tran-
sição operada nesses países de economia periférica, de um estado
autoritário para um estado democrático. Inseridos em estruturas auto-
ritárias, os sistemas judiciários dos países da América Latina nunca
possuíram papel de relevo que lhe confere um Estado democrático, não
passando, no mais das vezes, de um apêndice do governo, submetido
a intensa pressão política partidária, muito fraco e incapaz de fazer
cumprir a lei contra o Estado ou qualquer outro grupo social dominan-
te, além de ter sua estrutura minada pela corrupção.
Ocorre que o estabelecimento de sistemas políticos democráticos
em países que nunca os tiveram ou o restabelecimento da democracia
são os principais motores para o aumento da importância do papel do
Judiciário, o que implica necessidade de reformulação desse subsiste-
ma estatal específico.

53
Celso de Albuquerque Silva

O Brasil adotou várias dessas mudanças supracitadas. Criou


estruturas estatais para defesa dos menos privilegiados; modificou e
reformou inúmeras leis processuais visando tornar o processo judicial
mais coerente e eficaz; criou justiças especializadas para causas mais
diretamente ligadas aos pobres etc... Entretanto, o que se tem observa-
do até agora é um débil sucesso dessas iniciativas para garantir o aces-
so à justiça aos não privilegiados.
As defensorias públicas não conseguem dar conta da demanda
que lhe é imposta, sendo atendida apenas uma pequena parcela da
população mais desfavorecida. Ademais, a estrutura desses órgãos
estatais é, na melhor das hipóteses, extremamente precária. Seus qua-
dros são reduzidos, sua remuneração é bem inferior à percebida por
juízes e membros do ministério público, os recursos materiais infinita-
mente menores do que o das outras instituições da justiça, que já são
contingenciados, tudo a desestimular, tirante nobres e raras exceções,
a permanência dos melhores quadros de que dispõe. Com recursos
humanos e materiais deficientes não se pode esperar uma boa repre-
sentação judicial dos pobres. Não se pode exigir o impossível.
As justiças especializadas para causas de menor complexidade –
os juizados especiais – cuja criação objetivava expressamente possibi-
litar o aceso à justiça pelos pobres, através da simplificação de seus
procedimentos (em algumas hipóteses nem mesmo é necessária a
assistência de profissional qualificado tecnicamente); da ampliação da
“rede de atendimento”, do estímulo à composições amigáveis e da
celeridade de seus julgamentos, também se mostrou insuficiente. Logo
essas justiças se tornaram abarrotadas de causas para julgar, gerando
a mesma lentidão vista na justiça comum.7 A informalidade e oralida-

54
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

de dessa justiça especializada cederam passo a uma formalização simi-


lar a da justiça comum, não sendo raro o cidadão, especialmente nos
juizados especiais estaduais, embora sem que a lei o exija, ter que acei-
tar que sua causa seja patrocinada por advogados nomeados pelo jui-
zado, sob pena de não ver sua demanda apreciada. O objetivo declara-
do de tais exigências ilegais é garantir uma melhor defesa dos interes-
ses em juízo; o não declarado é facilitar a vida dos juízes acostumados
ao “juridiquês” e desacostumados do linguajar comum do povo.
Por outro lado, as reformas legislativas até agora implementadas
também não lograram o efeito desejado de racionalizar o processo e
desobstruir a pauta dos tribunais superiores.8
A par desses problemas que dificultam em muito, o acesso dos
pobres à justiça, existe outro tão grave ou talvez até mais grave, a aba-
ter-se sobre os não privilegiados, mesmo quando a despeito de todas
as dificuldades dantes mencionadas conseguem por sua causa em
juízo. Refiro-me à parcialidade da decisão judicial que, em termos de
aplicação da lei, ao menos em nossa experiência, tem sido discricioná-
ria – para não dizer arbitrária – e amiúde excessivamente severa, com
relação aos pobres.
A lei deveria funcionar como o grande equalizador dos cidadãos,
entendidos estes como pessoas legais, ou seja, portadores de direitos
e obrigações formalmente iguais não só no domínio político, mas tam-
bém nas questões privadas de natureza civil, comercial e nas relações
que mantêm com o Poder Público. Entretanto, o que se observa é que,
de variegados meios, os detentores do poder político ou econômico,
seja diretamente, seja indiretamente através de uma teia de ligações e
conexões adequadas, se eximem de cumprir a lei.
A atual estruturação pública decorre da origem patrimonialista
das instituições nacionais, ranço do qual não foi possível ainda nos
livrarmos. Apesar dos progressos já alcançados, em termos gerais, o
Estado brasileiro não opera em moldes modernos, estando ainda preso
ao padrão paternalista e cartorial que caracterizou a implantação de
nossas instituições econômicas, sociais e políticas. Nos padrões tradi-
cionais (não moderno), predomina a lógica de clientelas que enfraque-

55
Celso de Albuquerque Silva

ce as instituições políticas, pois se distribuem privilégios em vez de se


consolidarem direitos.9
Esse legado de origem ibérica da cultura política brasileira dá ori-
gem a um Estado antitético ao Estado de Direito: o Estado cartorial. Por
Estado cartorial, se entende aquele que, embora sob a aparência de uma
organização racional do serviço público, alegadamente comandada por
critérios funcionais,10 na verdade distribui cargos e privilégios para a
clientela política ou para amigos e parentes dos dirigentes políticos.11
A distribuição aleatória, subjetiva e abusiva de privilégios corrói
um dos sustentáculos básicos do Estado de Direito, consubstanciado na
aplicação imparcial da lei a todos os cidadãos e, inclusive, ao Estado.
Getúlio Vargas, ao afirmar “aos meus amigos, tudo; aos meus inimigos
a lei”, sintetizou a iniquidade das instituições públicas nacionais – aí
muita vez incluído o Poder Judiciário – na aplicação da lei e afirmação
dos direitos legais dos cidadãos.
A lei, na experiência da América Latina, não foi feita para ser
observada por todos. Sua aplicação não é geral, mas seletiva. Disso
decorre que a sua provável efetividade social, a razoável estimativa de
seu acatamento por todos não é levada em consideração no momento
da edição da norma. Daí a circunstância geralmente – e com acerto –
não compreendida por observadores estranhos à cultura brasileira de
tradição ibérica, de a aplicação da lei ser mais leniente do que nos paí-
ses de tradição anglo-saxã. É o contraste entre a norma moderada de
aplicação rígida, e a norma rígida de aplicação moderada.12
Essa aplicação seletiva, discricionária e amiúde excessivamente
rigorosa da lei para com os menos privilegiados, pode ser um eficiente
meio de opressão. O desrespeito ao primado da lei (rule of law) pode se
dar de dois modos: 1) pela simples e mera desconsideração da norma
legal ou, 2) quando ela é acatada, por interpretações distorcidas em
favor das elites políticas ou econômicas dominantes e como meio de
repressão ou contenção dos menos favorecidos.13

56
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

É o segundo modo de aplicação discricionária da lei que possui


íntima ligação com o nexo condicionante do princípio da legalidade e o
efeito vinculante das decisões das Cortes Superiores.
O objetivo do presente capítulo é demonstrar que a adoção do efei-
to vinculante atuará contra as forças centrípetas cartoriais que, der-
ruindo o primado da legalidade, deixam de submeter parte dos jurisdi-
cionados ao domínio da lei, através de sutis distorções no sentido da
norma, causadas pelo preconceito e parcialidade, que introduzem dis-
criminações efetivas contra certos grupos no sistema judicial.
A adoção do efeito vinculante, se pretende demonstrar, é exigên-
cia incontornável do princípio da legalidade, pois permite que a admi-
nistração da justiça se faça por modo regular, imparcial e, neste senti-
do, eqüitativo, dando origem aquilo que Rawls14 chama de justiça
como regularidade.

2. O princípio da legalidade

Qualquer resenha que se faça para captar a história da idéia de


Estado de Direito15 incluirá, necessariamente, o dado que o mesmo sur-
giu informado por duas idéias ordenadoras: a) uma, de ordenação sub-
jetiva, ancorada em um catálogo de direitos fundamentais; e, b) uma,
de ordenação objetiva, assente no princípio do constitucionalismo
moderno da separação de poderes, gênese do princípio da legalidade.
Não é por outra razão que o artigo 16 da Declaração de 1789 dispõe que
qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direi-
tos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.
Os pressupostos materiais inerentes ao princípio do Estado de Direito
podem sintetizar-se em três elementos: juridicidade, constitucionalida-
de e direitos fundamentais.16
Classicamente, o princípio da legalidade vem sendo tratado como
um aspecto limitador da atividade administrativa, sendo a tradução jurí-
dica de um propósito político: o de submeter os exercentes do poder em
concreto – o administrativo – a um quadro normativo que embargue

57
Celso de Albuquerque Silva

favoritismos, perseguições ou desmandos.17 A legalidade restringe a


atividade jurídica da Administração condicionando os poderes a exercer
e a forma de seu exercício, o objeto e o fim dos atos administrativos.18
Por tais condicionantes é que Hely Lopes Meirelles afirma que a
validade do atuar administrativo está condicionada ao atendimento da
lei, pois na Administração Pública não há nem liberdade nem vontade
pessoal. Enquanto ao particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe,
na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza.19
O princípio da legalidade enuncia a opção pela rule of law (o
governo da lei) em detrimento da rule of men (o governo dos homens).
Como leciona Norberto Bobbio, “da Inglaterra o princípio da rule of law
transfere-se para as doutrinas jurídicas dos estados continentais,
dando origem à doutrina, hoje verdadeiramente universal (no sentido
de que não é mais contestada por ninguém em termos de princípio,
tanto que, quando não se reconhece, se invoca o estado de necessida-
de ou de exceção) do ‘estado de direito’, isto é, do estado que tem como
princípio inspirador a subordinação de todo poder ao direito, do nível
mais baixo ao nível mais alto, através daquele processo de legalização
de toda ação de governo que tem sido chamado, desde a primeira cons-
tituição escrita da idade moderna, de ‘constitucionalismo”.20

2.1. A vinculação necessária entre o princípio da legalidade e


controle judicial

“É da essência do Poder Judiciário ocupar-se dos interesses


particulares e dirigir sua atenção sobre as pequenas questões que
se apresentam para sua apreciação; é também da essência desse
Poder, se não acorrer diretamente em auxílio daqueles que são
oprimidos, estar sem temor à disposição do mais humilde deles.
Por mais fraco que seja, pode sempre forçar o juiz a ouvir sua recla-
mação e respondê-la.

58
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Tal poder é por isso aplicável às necessidades da liberdade


em um tempo no qual os olhos e as mãos do Soberano se introdu-
zem sem cessar nos menores detalhes das ações humanas, e onde
os particulares, muito frágeis para se protegerem por si mesmos,
estão também demasiadamente isolados para poder contar com a
ajuda de seus semelhantes. A força dos Tribunais tem sido, em
todos os tempos, a maior garantia que se pode oferecer à indepen-
dência individual, porém isto é, sobretudo, verdadeiro nos países
democráticos; os direitos e interesses particulares estariam sem-
pre em perigo se o Poder Judiciário não crescesse e se expandis-
se à medida que as condições se igualam.”21

Com essas eloqüentes palavras, Tocqueville dignificou o controle


judicial como um elemento concretizador do princípio da legalidade.
Este princípio, tão caro ao Estado de Direito, ou ao que o seguiu com
vantagens, o Estado Democrático de Direito,22 não estaria assegurado
se não houvesse um controle efetuado por um órgão imparcial, a garan-
tir que o atuar da administração se mantivesse no marco de seus res-
pectivos limites.
É certo que esse controle da legalidade por parte do Judiciário não
encontra sua fundamentação apenas no princípio de separação de
Poderes acolhido pelo Estado de Direito, mesmo porque existem siste-
mas onde esse controle é feito por órgãos da própria administração,
como ocorre na jurisdição de contencioso administrativo da França. A
essência do controle judicial da legalidade reside na expressa outorga
constitucional dessa função, cujos fundamentos axiológicos residem no
binômio; independência do Poder Judiciário e imparcialidade com rela-
ção às partes em litígio.
A práxis jurídica tem demonstrado que, apesar das críticas aler-
tando para os riscos de um exagerado ativismo judicial,23 esse contro-
le judicial tem evoluído e se expandido sobremaneira, após ser absol-
vido de suas acusações pelo tribunal da história e ter se afirmado defi-
nitivamente como uma técnica quintassenciada de governo humano.24

59
Celso de Albuquerque Silva

Sinala Pertile25 que o Estado de Direito reconhece o princípio da


legalidade como sua viga mestra e o controle judicial como a garantia
do sistema. Para Sarria26 o regime constitucional é perfeito se a Admi-
nistração ademais da submissão à lei, se submete à justiça.
Se como Sarria afirma, a perfeição do regime constitucional exige
como condições a submissão à lei e à justiça, o princípio da legalidade
assume uma feição mais ampla, evoluindo para aquilo que parte da
doutrina chama de princípio da juridicidade.27 Preferimos o termo lega-
lidade pelos valores que historicamente o apelo a esse princípio invo-
ca. Legalidade, portanto, significa a submissão da Administração não
somente à lei em sentido estrito, mas ao direito.
O princípio da juridicidade ou, como preferimos, legalidade em
sentido amplo, aponta de um lado, para a submissão do Estado não
somente à norma jurídica objetiva, mas também aos princípios jurídi-
cos, ou seja, à ordem jurídica globalizante. Por outro lado, Estado sub-
metido à justiça, indica Estado cujos atos legislativos, administrativos
e também judiciais ficam sujeito ao controle jurisdicional no que tange
a legitimidade constitucional e legal.28 Assim, o princípio da legalida-
de em sentido amplo, significa submissão de toda função estatal (legis-
lativa, administrativa e judicial) ao direito.
Mas o que significa direito nesse contexto? A clarificação do sen-
tido do direito é questão que se impõe de forma apriorística para que
se possa apreender o sentido de princípio da legalidade em seu senti-
do amplo.

3. O princípio da legalidade ampliado – seu sentido

Nos itens anteriores duas observações importantes foram feitas. A


primeira, que o princípio da legalidade em sentido amplo vincula e sub-
mete toda forma de emanação do Poder Estatal. Também o judiciário –
e talvez principalmente ele – deve estar submetido ao referido princí-
pio. Essa conclusão será tida como auto-evidente razão porque não se
fará qualquer desenvolvimento sobre o tema.

60
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

A segunda observação equiparou o princípio da legalidade ao


direito. Essa conclusão, até mesmo pela divergência que grassa quan-
to ao que o direito significa, será objeto de desenvolvimento nos dois
itens que se seguem. O primeiro deles analisará o que é o direito dian-
te de uma teoria geral do direito descritiva utilizada pelo positivismo
jurídico. O segundo analisará o mesmo tema sob a perspectiva de uma
teoria geral do direito interpretativo, pós-positivista: “direito como
integridade” de Dworkin.

3.1. O positivismo jurídico de Herbert Hart – o direito como


sistema de regras

O direito é o direito. Esse o lema básico do positivismo clássico.


Para a doutrina positivista, o direito é um fato e não um valor. O direito
revela-se naquelas regras de convivência que vigem numa determina-
da sociedade impostas por um Poder soberano dotadas de coerção.29
Nessa concepção mais extremada, o direito não é o que os juízes
pensam que ele é, mas é aquilo que realmente é. A função judicial se
restringe a descobri-lo e aplicá-lo, jamais modificá-lo ou alterá-lo para
adequá-lo aos seus próprios padrões morais ou políticos. Menos ainda
criá-lo. Por essa razão, em termos de interpretação, o positivismo jurí-
dico sustenta que na atividade do jurista deve prevalecer a declaração
de um direito posto e existente, sobre a produção ou criação de regras
condicionadoras do agir humano.
A axiologia que subjaz tal doutrina que concebe o direito como
aquele conjunto dotado de completude, de ordens coercivas impostas
por um soberano, encontra seu ápice na defesa intransigente da segu-
rança jurídica e previsibilidade de ação, seja por parte dos destinatá-
rios das normas jurídicas – os cidadãos – seja por parte de seu aplica-
dor – O Estado.
Ao considerar o direito como um fato, o positivista busca justificar
o uso da coerção apenas naquelas hipóteses em que o desvio da condu-
ta padrão é aferido com base em critérios fáticos simples e acessíveis a
todos e não em apreciações de moralidade política que pessoas distin-
tas poderiam fazer de modo diverso. O direito não pode ser contingen-
te, mas certo e facilmente identificável, sob pena de inexistir justo títu-

61
Celso de Albuquerque Silva

lo para o uso da coação pública. O direito, portanto, é concebido como


aquele conjunto de ordens coercivas emanadas da autoridade.
A idéia do direito concebido simplesmente como ordens coercivas
emanadas de um soberano foi arrostada por Hart em sua clássica obra
o “conceito do direito”. Seus argumentos são uma tentativa de superar
as mais graves dificuldades enfrentadas pelo positivismo clássico para
justificar sua doutrina. Trata-se de um refinamento da postura anterior.
Visa o autor, com sua tese, responder as críticas que vinham sendo fei-
tas à doutrina positivista.
O ponto de partida de Hart para conceituar o que seja direito, cen-
tra-se na análise e resposta a três questões fundamentais: a) o direito
regula condutas humanas obrigatórias sob pena de sanção? b) Por que
modos uma conduta humana passa a ser não mais facultativa, porém
obrigatória? c) O direito se compõe de regras? Mas o que são regras?30
Para definir o direito, o autor se propõe, respectivamente, a distinguir o
direito de um mero sistema de ordens baseado em ameaças; distinguir
a obrigação jurídica da obrigação moral e, conceituando o que sejam
regras, concluir em que medida o direito é um sistema de regras.

3.1.1. O direito como um sistema de ordens baseado em ameaças

Hart não discorda que o direito contém normas que se aproximam


desse padrão bipolar ordem-ameaça, mas não as considera suficientes
nem em quantidade nem em qualidade para justificar uma conceitua-
ção do que direito é. Se assim fosse, nenhuma distinção haveria entre
uma lei penal que ordena um comando sob pena de aplicação de san-
ção, de uma ordem de um assaltante que comanda a sua vítima a que
entregue sua bolsa sob pena de matá-la, pois em ambas situações se
apresentam uma ordem e uma ameaça em caso de descumprimento.31
Por outro lado, no sistema jurídico encontram-se inúmeras normas
que não possuem essa estrutura bipolar ordem-ameaça. São leis que
não impõem uma conduta ou exigem uma abstenção, mas, ao contrá-
rio, outorgam poderes públicos ou privados para a prática de atos.
Assim, as leis que definem modos pelos quais se podem celebrar
testamentos ou casamentos ou que atribuem competência a um funcio-

62
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

nário para praticar um ato ou julgar uma lide ou ainda, complementar


a lei via poder regulamentar, “não impõem deveres nem obrigações”,32
mas simplesmente outorgam aos indivíduos “dispositivos para a reali-
zação de seus desejos, conferindo-lhes poderes jurídicos legais para
criar sob certos condicionamentos, estruturas de direitos e deveres
dentro do quadro coercitivo do direito”.33 Tais leis não podem ser facil-
mente enquadradas na estrutura comando-sanção. Nem mesmo a nuli-
dade pode ser considerada como forma de sanção, porque ela é inte-
grante deste tipo de norma, o que não ocorre com a sanção pelo des-
cumprimento de um preceito que nunca o integra.

3.1.2. O sentido das regras

Para explicar o significado do que uma regra é, Hart volta sua


atenção à parte final do conceito de direito oferecido pelo positivismo
clássico, o de que essa estrutura normativo-apenadora é emanada de
um soberano. Mas, por que se obedece ao soberano? Qual a sua legiti-
midade?
A doutrina aponta que é soberano aquele(s) a quem “habitual-
mente se obedece...uma pessoa ou um corpo de pessoas, a cujas
ordens a grande maioria dos membros da sociedade habitualmente
obedece e que habitualmente não obedece a qualquer outra pessoa ou
a quaisquer pessoas”.34 Hart professa fé de que a práxis social de obe-
diência às ordens emanadas pelo soberano não é a fonte do seu poder
normativo. Exemplifica com a hipótese de sucessão de um monarca M,
habitualmente obedecido. Após sua morte, M1, seu filho, passa a deter
o poder jurídico e expedir normas coercivas para aquela sociedade.
Como não existe ainda o hábito de obediência a M1 e como este não
pode ser derivado do hábito de obediência a M, se consideramos que
existe direito no momento da sucessão, conclui Hart que “deve ter
havido algures na sociedade durante o reinado do anterior legislador,
uma prática social geral mais complexa do que a que pode ser descri-
ta em termos de hábito de obediência; deve ter havido uma aceitação
da regra segundo a qual o novo legislador tem direito à sucessão”.35

63
Celso de Albuquerque Silva

A partir daí, Hart caracteriza o que uma regra é, através de seus


traços distintivos da prática social convergente denominada de hábito.
A regra é também uma prática social padrão convergente, porém: a)
diferentemente do hábito, os desvios do padrão de convergência são
vistos como “faltas suscetíveis de crítica”36 e “as ameaças de desvio
são objeto de pressão no sentido de conformidade”;37 b) O simples des-
vio do padrão de conduta é considerado suficiente a legitimar a crítica,
sendo esta considerada legítima, geralmente, tanto pelos que fazem-na
quanto pelos que sofrem-na;38 c) o mais importante: na regra existe um
“aspecto interno”, ou seja, a maioria dos membros daquela sociedade
deve ver no comportamento um padrão geral a ser observado pelo
grupo como um todo.39
Com efeito, se em uma cidade praiana como o Rio de Janeiro a
maioria da população tem o hábito de ir às praias no domingo, o fato de
um ou alguns membros do grupo preferirem ficar em casa para ver o
Domingão do Faustão não é necessariamente objeto de qualquer críti-
ca ou pressão social para que este desvio de padrão seja corrigido e os
infratores passem a ir à praia e, se essa pressão ainda assim for feita,
não será considerada legítima. Por fim, o fato da convergência social de
ir à praia ao domingo é aferido apenas externamente, mas para que
esse hábito seja constatado, não se exige nem mesmo que os membros
do grupo saibam que tal comportamento é geral. A ida dominical à
praia é um hábito, mas nunca uma regra.
Regra, portanto, é um comportamento social convergente, consi-
derado racional e conscientemente, pela maioria dos membros daque-
la comunidade como um padrão de conduta a ser observado por todos
os seus membros, cujos desvios são a razão e a justificação de críticas
e pressões sociais para adequação da conduta dos componentes da
coletividade ao padrão definido.
Por isso Hart afirma que diferentemente de um mero hábito, uma
regra social tem um aspecto interno para além do aspecto externo que
partilha com o hábito social e que consiste no comportamento regular
e uniforme que qualquer observador pode registrar.40 Esse aspecto

64
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

interno de qualquer regra – e, portanto, também a jurídica – é funda-


mental para a concepção de direito que Hart irá formular.

3.1.3. Direito como um sistema de regras primárias e secundárias

Característico das regras que Hart nomina de primárias, seja essa


regra social, seja de etiqueta, seja jurídica, é que ela prescreve de
forma obrigatória uma determinada atuação ou impõe um dever de
abstenção. Assim, a estrutura binária comando-sanção não é exclusiva
da regra jurídica. Essa, entretanto, é de ser caracterizada se se quer
conceituar o que direito é.
A distinção entre a regra jurídica e a regra moral não é, portanto,
em sua estrutura, mas sim na modalidade e forma da pressão social
exercida para a adequação das condutas individuais ao seu comando.
As regras primárias são concebidas como impondo o dever a todos de
observá-las, porque tais regras são consideradas importantes e, por
vezes, necessárias à manutenção da vida social ou de algum aspecto
essencial dela. Assim, a regra tenderá a ser considerada moral quando
a pressão social tomar apenas a forma de uma reação hostil ou demons-
tração de desagrado quanto à sua violação ou, ainda, sentimento de
vergonha, remorso ou culpa por parte de quem a violou. A seu turno, as
regras serão consideradas jurídicas quando, além disso, forem acresci-
das sanções de ordem física, definidas estritamente e aplicadas por
funcionários oficiais.41
O direito, porém, não é composto apenas de regras que impõem
deveres e obrigações (primárias), mas também de regras que outorgam
poderes e competências públicas e privadas. Dentre estas, são três as
que Hart considera como relevantes para a conceituação do que seja
direito: a) regra de reconhecimento; b) regras de alteração; c) regra de
julgamento. Para os efeitos deste trabalho só nos interessa analisar
duas delas. As regras de reconhecimento e de julgamento.
A “regra de reconhecimento” tem por finalidade identificar as
regras primárias daquela comunidade. As regras primárias são
padrões de comportamento consensualmente convergentes por razões
de convenção ou de convicção.42 Considerando que toda regra jurídica

65
Celso de Albuquerque Silva

possui um aspecto interno, que tem por pressuposto o reconhecimento


individual de que aquele comportamento deve ser seguido porque útil
à sociedade independentemente da efetividade ou não de uma sanção,
haverá momentos em que esse consenso poderá ser arrostado com o
argumento de que determinado comportamento não é considerado
pela coletividade, como padrão para todos e, portanto, como uma regra
primária de obrigação.
Nesses casos, a “regra de reconhecimento” servirá para colmatar
essa incerteza, pois irá fornecer “algum aspecto ou aspectos cuja exis-
tência em uma norma é tomada como indicação afirmativa e conclu-
dente de que é uma regra do grupo que deve ser apoiada pela pressão
social que ele exerce”.43
A outra regra secundária, intimamente ligada com a regra de reco-
nhecimento, é a regra de julgamento. Com efeito, de nada valeria a
existência de regras de reconhecimento para identificar se uma deter-
minada conduta constitui uma regra primária daquela sociedade, se
não existisse alguém com poder para dizer com autoridade e definitivi-
dade se, numa determinada situação concreta, foi violada uma norma
primária. As regras de julgamento são, portanto, aquelas que outorgam
poderes ao indivíduo para afirmar da violação ou não de uma norma
primária, juntamente com aqueloutras que definirão o processo a ser
seguido para essa decisão.
Essas regras de julgamento estão, como observou Hart, necessa-
riamente ligadas a uma regra de reconhecimento do que é o direito,
ainda que elementar e imperfeita. Isso porque, é um passo anteceden-
te necessário a ser seguido pelo juiz antes de proferir o julgamento se
uma regra primária foi ou não violada, afirmar o que as regras primá-
rias são. Só após afirmar o que significam é que pode dizer se foram ou
não violadas. Ouçamos as palavras de Hart:

66
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

“Isto é assim porque, se os tribunais tiverem poderes para


proferir determinações dotadas de autoridade quanto ao facto de
uma regra ter sido violada, estas não podem deixar de ser toma-
das como determinações dotadas de autoridade daquilo que as
regras são. Por isso, a regra que atribui jurisdição será também
uma regra de reconhecimento que identifica as regras primárias
através das sentenças dos tribunais e estas sentenças tornar-se-
ão uma fonte de direito”.44 (g.n.)

Estamos agora, em condições de definir o que é direito para Hart,


dentro da visão específica deste trabalho que se relaciona com o efeito
vinculante das decisões dos Tribunais e, portanto, da interpretação que
eles fazem do direito. Assim, mesmo em termos de teoria geral descri-
tiva, pode-se inferir que o direito é aquele conjunto das normas de con-
duta humana e os padrões de crítica dessas condutas, acolhidos em
convenções jurídicas em vigor na comunidade, conforme regras de
reconhecimento também convencionadas e aceitas pelos tribunais. A
aceitação pelos tribunais dessas regras de reconhecimento (poder para
dizer o que o direito é) é indiscutível na medida em que essa aceitação
é, ela em si mesma, uma regra de reconhecimento em nosso ordena-
mento jurídico. O direito, portanto, é o conjunto dos direitos e deveres
dos membros da coletividade decorrentes de uma estrutura de regras
expressas e socialmente compartilhadas, reconhecidas e declaradas
pelos tribunais.
Nos casos difíceis onde não houve ainda qualquer pronunciamen-
to do poder judiciário, o positivismo entende existir uma discricionarie-
dade judicial para criar um novo direito em virtude da sua incompletu-
de. Mas após esse momento de criação com a decisão judicial, em
razão da regra de reconhecimento da doutrina do precedente, esta
decisão passa a ser uma regra aceita convencionalmente e, portanto,
nos casos subseqüentes definirá seu resultado, não mais remanescen-
do qualquer discricionariedade.

3.2. A doutrina pós-positivista de Ronald Dworkin – o “direito


como sistema de regras e princípios”

Em seu livro “O Império do Direito”, Dworkin elabora uma teoria


para identificação do que seja o direito partindo da análise das decisões

67
Celso de Albuquerque Silva

judiciais, tendo em vista a reconhecida importância dessas decisões na


vida de qualquer coletividade com razoável padrão de desenvolvimento.
A análise das decisões judiciais demonstra, em sua visão, que os
processos judiciais sempre levantam questões de ordem fática, de
moralidade e questões de direito propriamente. Quanto às divergên-
cias fáticas, essas são objeto de prova e perfeitamente identificáveis.
Assim, em acidente de trânsito, as partes podem divergir sobre o fato
de o sinal estar aberto ou fechado no momento da colisão, sem que haja
qualquer dificuldade para se identificar sobre o que divergem. As ques-
tões de moralidade apresentam dissensos sobre o que as pessoas acre-
ditam ser certo ou errado em termos morais, o que, entretanto, em sede
de processo judicial não apresenta nenhum problema especial.
Ocorre que as partes também divergem sobre questões de direito,
ou seja, sobre o que uma determinada norma aplicada sobre um deter-
minado fato produz como conseqüência. Em outras palavras, embora
concordem com a existência e validade de uma determinada norma, dis-
cordam do que ela é, do que ela significa. Os dissensos sobre a existên-
cia de uma norma ou sobre a ocorrência dos fatos narrados no processo
são empíricos, ou seja, podem ser comprovados no mundo fenomênico.
Uma fotografia mostrando o carro avançando o sinal pode provar o fato
de que não parou quando deveria parar. As leis são publicadas e tam-
bém as sentenças judiciais. De qualquer forma não há dúvida sobre o
que se está divergindo. A discussão sobre o que a norma é, entretanto,
é mais complexa, traduz uma “divergência teórica”.45 Se o dissenso é
teórico e não empírico qualquer teoria que busque conceituar o direito
como um fato falharia redondamente, a exemplo do que ocorreria com o
positivismo em suas diversas concepções. A doutrina de Dworkin trata
então da divergência teórica no direito e tem por objetivo criar e defen-
der uma teoria particular sobre os fundamentos do direito.
De acordo com o autor, essa divergência teórica não é quanto à
aplicação ou rejeição de um direito já existente. Em outro dizer, não
divergem os Tribunais, nem as partes, se os juízes devem se limitar
naquele específico caso a aplicar o direito que conhecem, por conside-
rá-lo justo à hipótese, ou, ao contrário, devem abandoná-lo por reputá-
lo iníquo e “criar” um novo direito, aplicando não o direito que é, mas
aquele que deveria ser. A divergência encontrada nas decisões judi-
ciais e nos argumentos das partes não pode ser corretamente equipa-
rada ao debate público sobre a questão se os juízes descobrem ou

68
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

criam o direito. A divergência diz respeito à própria natureza do direi-


to. Divergem os juízes e as partes sobre “aquilo que determina a legis-
lação quando devidamente interpretada”.46
A lei é o veículo instrumentalizador da norma, entendida esta
como o direito que se cria quando se promulga o texto legislativo. A
divergência teórica entre os operadores do direito se dá então no nível
do que a norma é. Assim, os juízes quando se defrontam com um caso
precisam interpretar a norma que se insere no documento legal e,
quando divergem, o fazem não sobre o documento legal enquanto
aspecto fático, mas sobre qual é a “verdadeira lei – uma afirmação de
que diferenças a lei estabelece para os direitos de diferentes pessoas –
a partir do texto da compilação de leis”.47 A concepção do direito para
Dworkin é essencialmente interpretativa.48

3.2.1. Um conceito de direito

Em uma conceituação inicial, o direito é a lei corretamente inter-


pretada pelos Tribunais. Assim, o destino de quem quer que tenha uma
causa submetida à apreciação dos tribunais vai depender das convic-
ções interpretativas daquele indivíduo ou grupo de indivíduos que irá
proferir a decisão judicial.
Isso levanta sérias considerações. Embora se postule a existência
de métodos de interpretação e até mesmo uma certa hierarquia entre
os diversos métodos, o certo é que os fundamentos teóricos utilizados
pelos juízes para fundamentar sua convicção sobre o melhor sentido do
direito estão intimamente ligados as suas próprias convicções sobre
qual a função legitimadora do direito e essas convicções em maior ou
menor grau serão diferentes das de outros juízes ou tribunais.
É certo que existem fatores que apontam para uma certa conver-
gência desse labor interpretativo, mas também existem fatores não
menos importantes que apontam para uma força centrípeta. A presen-
ça de ambos fatores é reputada como coerente e até mesmo desejável
para uma teoria interpretativa, na medida em que o extremo da diver-
gência levaria ao caos da insegurança e incerteza não tolerado pelo
direito e o extremo da convergência também faria falhar o sistema jurí-

69
Celso de Albuquerque Silva

dico em decorrência de sua estagnação e conseqüente incapacidade


de justificar o seu uso coercitivo.
Aliás, a justificação da coerção é questão recorrente na filosofia do
direito. Todas as teorias gerais de direito produzidas por esse campo do
saber buscam, de uma forma ou de outra, apresentar o sistema jurídi-
co em sua melhor luz, na tentativa de alcançar um equilíbrio entre as
proposições jurídicas vigentes e a sua melhor justificação.
Essa linha conceitual é também compartida por Dworkin, que
busca, ainda dentro de uma teoria geral do direito que possa ser consi-
derada unânime e adotada por qualquer concepção específica, apre-
sentar um conceito geral e preliminar de direito, como sendo o “siste-
ma de direitos e responsabilidades que decorrem de decisões políticas
anteriores consideradas adequadas e que, por isso mesmo, autorizam
o uso da coerção”.49
O refinamento desse conceito geral é levado a cabo por Dworkin
ao formular sua específica concepção do “direito como integridade”.
Essa concepção busca explicar de que modo o direito oferece uma jus-
tificativa geral para o exercício do poder coercitivo pelo Estado,50 res-
pondendo com pretensão de superioridade a outras concepções, a três
perguntas colocadas pelo conceito, a saber: É correta a conexão entre
direito e coerção? É correto exigir que a coerção estatal seja usada
somente em conformidade com os direitos e responsabilidades que
decorrem de decisões políticas anteriores? O que significa “decorrer” –
que noção de coerência com decisões precedentes – é a mais correta?51
Quanto à primeira pergunta, o direito como integridade responde
sim, pois reconhece e aceita sem reservas o direito e as pretensões juri-
dicamente asseguradas.52 Quanto à segunda, afirma que a vinculação
ao direito beneficia a sociedade por oferecer previsibilidade e assegu-
rar entre os cidadãos um tipo de igualdade que torna a comunidade
mais genuína.53 A resposta à terceira pergunta define o que é o direito,
na medida em que especifica e delimita quais são os direitos e respon-
sabilidades com status jurídico. A essa pergunta responde que os direi-
tos e responsabilidades decorrem de decisões anteriores e possuem
valor legal quando estão explícitas nessas decisões ou quando proce-

70
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

dem de princípios justificadores das decisões explícitas.54 A integrida-


de é um princípio como a seguir se verá.

3.2.2. O princípio da integridade

Para definirmos integridade, partiremos da análise do que ela não


significa. Como virtude política, a integridade não se confunde nem
com equidade nem com justiça. Equidade é aqui entendida como uma
distribuição eqüitativa do poder político, estando, portanto, ligada com
o aspecto da imparcialidade. Justiça, a seu turno, é uma questão de
resultados. Assim, uma decisão política será injusta quando nega às
pessoas algum recurso, liberdade ou oportunidade que teriam sob o
abrigo de uma teoria de justiça melhor.
Para entendermos o que integridade significa, precisamos aceitar
o fato de que ideais políticos podem estar em choque. A equidade e a
justiça podem em algum momento entrar em choque. Não parece ser
necessário muito esforço para se demonstrar que uma instituição
imparcial e, portanto, eqüitativa, pode produzir decisões injustas e que
uma instituição parcial e, portanto, ineqüitativa pode produzir decisões
justas. Isso está presente na própria idéia de controle de constituciona-
lidade, onde o valor equidade é por vezes sacrificado em favor da jus-
tiça. Ninguém discorda que a regra da maioria é o melhor e mais eqüi-
tativo método para decisões colegiadas, nas quais se encartam muitas
decisões políticas. Por outro lado, também é cediço que a maioria pode-
ria impor decisões injustas à minoria. Na defesa da justiça contra a
equidade, certas matérias estão submetidas a restrições constitucio-
nais ao poder democrático, cuja operacionalização toma corpo via con-
trole de constitucionalidade.
Conforme Dworkin, a integridade é uma virtude política distinta
da equidade e da justiça e assume papel preponderante quando exis-
tem divergências sobre o que é eqüitativo ou justo. A argumentação de
Dworkin é confessadamente complexa e aqui será simplificada em
razão do objetivo restrito do estudo.
Colimando demonstrar a existência desse ideal político, Dworkin
parte do fato notório de que, quanto a alguns princípios fundamentais,
não se admite sejam os mesmos objeto de uma espécie de solução de
conciliação na hipótese de divergência moral. Fiquemos com o exemplo

71
Celso de Albuquerque Silva

dos princípios morais relacionados à discriminação racial55 existentes


em uma determinada coletividade. Parte dessa coletividade a entende
ser legítima e parte a considera imoral. Admitindo-se que a proporção
dos que defendem e contestam tal base discriminatória é idêntica, per-
gunta-se: por que não se promove uma conciliação do seguinte tipo? A
legislatura proíbe discriminação racial nas escolas, mas permite nos clu-
bes. Esse tipo de decisão é imediatamente objeto de rejeição por parte
de todos, mas por quê? Não porque seja parcial ao atender apenas um
dos interesses em disputa. De fato, a decisão é imparcial. Atende, ainda
que parcialmente, todos os interesses, razão porque não parece violar a
equidade. Na verdade a equidade fornece fortes razões para endossá-la.
A metade que era contra a discriminação foi atendida no caso da escola
e a outra metade que era a favor, foi atendida no caso dos clubes.
Por outro lado, a justiça, embora não endosse uma solução conci-
liatória, ao menos não a repele de plano em termos coletivos. De fato,
se há uma divergência sobre o que é justo no caso, não se pode desde
logo afirmar que uma outra solução traria resultados mais vantajosos.
É importante realçar que as razões de justiça que afastariam a solução
conciliatória devem ser comuns a todos os membros da comunidade.
Assim, não se apresenta válida a assertiva de que os defensores da
discriminação teriam razões de justiça para obter uma decisão que per-
mitisse a discriminação em todos os lugares, pois esse resultado seria
mais favorável do que apenas nos clubes. Da mesma forma, os defen-
sores da não discriminação teriam razões de justiça para condenar a
solução conciliatória, pois poderiam obter uma decisão que vedasse a
discriminação em qualquer lugar, o que lhe seria mais vantajoso. Essas
razões, entretanto, são particulares dos grupos e não comuns à toda
coletividade. E precisamos de uma razão de justiça comum para rejei-
tarmos a conciliação.
Um argumento comum poderia ser o da igualdade. A conciliação é
injusta porque trata pessoas arbitrariamente de forma desigual e a jus-
tiça exige que situações iguais sejam destinatárias do mesmo trata-
mento na ausência de boas razões para o tratamento diverso. Embora
essa assertiva seja verdadeira, ela tomada em consideração no âmbito
da justiça, também não permite rejeitar antecipadamente a concilia-
ção, pois esta pode, ao menos, impedir alguns casos de injustiça embo-
ra não todos, e a justiça não exige que não reduzamos a injustiça ape-
nas porque não podemos eliminá-la totalmente. Como exemplifica

72
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Dworkin, “suponhamos que só nos seja possível salvar alguns prisio-


neiros da tirania: a justiça dificilmente vai exigir que não salvemos
nenhum, mesmo quando apenas a sorte, e não um princípio, venha a
decidir quem será salvo e quem continuará sendo torturado”.56
Assim, rejeitar desde logo uma solução conciliatória, ainda quan-
do a outra solução será o triunfo total do princípio de justiça oposto ao
nosso, é igualmente perverso. A solução de conciliação teria salvo
algumas pessoas arbitrariamente escolhidas de uma injustiça que
outras na mesma situação continuarão a sofrer, mas a alternativa teria
sido não salvar ninguém e isso a justiça não exige.
Em conclusão, a justiça não fornece elementos para aprioristica-
mente rejeitar-se a solução conciliatória e ainda temos boas razões de
equidade para adotá-la. Entretanto, esse tipo de solução é condenado
e não pela justiça, menos ainda pela equidade, mas pelo ideal da inte-
gridade. Agora, finalmente estamos aptos a, primeiro, definir o que
integridade não é, para depois, afirmarmos o que ela é.
Integridade não é simplesmente coerência. Para além disso, a
integridade significa coerência com princípios. Assim, quando estão
em jogo questões de princípio e o Estado adota soluções conciliatórias,
viola a integridade porque ao mesmo tempo em que “endossa princí-
pios que justificam uma parte de seus atos, rejeita-os para justificar o
restante”.57 A integridade quer na legislação quer nas decisões judi-
ciais, exige coerência na aplicação dos princípios e condena a incoe-
rência de princípios entre os atos do Estado personificado.
A integridade concretiza o princípio constitucional da igualdade
perante a lei58 e protege contra a parcialidade, a fraude ou outras for-
mas de corrupção oficial59 e assim, promove a autoridade moral da
sociedade política para assumir e mobilizar o monopólio da força coer-
citiva. Isso porque a integridade permite a elaboração de um modelo de
comunidade mais evoluído em termos morais e políticos, que Dworkin
denomina de “modelo de princípio”.60
Esse modelo de sociedade tem por características a aceitação de
que os direitos e deveres dos membros da coletividade decorrem não
só de uma estrutura de regras expressas e socialmente compartilha-

73
Celso de Albuquerque Silva

das, como também de princípios comuns que governam aquela comu-


nidade política, mesmo quando tais direitos e deveres não tenham sido
ainda formalmente identificados ou declarados por decisões particula-
res tomadas por suas instituições políticas com base nesses princípios
cardeais de justiça, equidade e devido processo legal.
A integridade aponta, ainda que isso não seja totalmente possí-
vel, para um compromisso com a formulação de um único e coerente
sistema de princípios, abrangendo todas as normas especiais e outros
padrões estabelecidos pelo Poder Político. Assim, em sede legislativa,
ela “restringe aquilo que os legisladores e outros partícipes de criação
do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar as normas
públicas”.61 Em termos de jurisdição, a integridade requer também até
onde seja possível, que os “juízes tratem o sistema de normas públicas
como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de prin-
cípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a des-
cobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas”.62

3.2.3. A concepção do direito como integridade

O direito é um conceito interpretativo. A função de qualquer teoria


sobre o que é o direito deve não apenas descrever as proposições jurí-
dicas vigentes em uma coletividade, como também justificá-la. Para
Dworkin, a concepção do direito como integridade significa que os
juízes “interpretam a prática jurídica como uma política em processo
de desenvolvimento”.63 Ao dizer o que o direito é, os juízes nem fazem
meros relatos factuais decorrentes de decisões políticas passadas, nem
criam um novo direito para reger relações sociais futuras.
Dizer que o direito nada mais é do que a interpretação dos textos
legais não ajuda muito a filosofia do direito, pois que há várias formas
e concepções interpretativas. Para Dworkin, o direito não é qualquer
interpretação, senão o direito seria qualquer coisa e, conseqüentemen-
te, nenhuma coisa. Antes, o direito é a interpretação correta e esta é
aquela que mostra o direito na sua melhor iluminação. Na visão do
jurista é exatamente o direito como integridade.
Direito como integridade significa que os juízes, ao exercerem a
jurisdição, devem efetuar uma interpretação construtiva e complexa,

74
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

baseada em princípios acolhidos pela comunidade à qual pertencem. Es-


ses princípios devem ser coerentes entre si, posto que criados por um
único autor, expressando uma concepção coerente de justiça e eqüidade.
Nesse sentido, os juízes, ao interpretarem o direito, devem identi-
ficar como direitos e deveres legais apenas aqueles que constam ou
derivam dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal
que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da
comunidade.64
A interpretação jurídica é construtiva. Nem se limita a identificar
simplesmente a existência de uma decisão política anterior que atribui
direitos e impõe obrigações, nem buscar um futuro melhor criando,
através de uma motivação política direitos e deveres. Em uma palavra,
o juiz nem declara mecanicamente um direito já existente, nem cria
livremente um direito futuro. Faz as duas coisas e nenhuma delas.
O direito como integridade se fixa no presente, mas se conecta ao
passado para encontrar naquelas decisões políticas que legitimam o
uso da coerção os princípios jurídicos que as justificam, de forma a
“organizar a prática e justificar a prática atual por princípios suficien-
temente atraentes para oferecer um futuro honrado”.65
O direito como integridade é uma interpretação construtiva das
práticas jurídicas atuais porque visa encontrar, para o texto que está
interpretando, um propósito que decorre de um conjunto coerente de
princípios sobre direitos e deveres das pessoas. Esse propósito não
está definido de antemão por alguma decisão política anterior e nem
cabe ao juiz autônoma e livremente defini-lo. Cabe a ele sim, ao julgar
os casos difíceis, auxiliar nesse propósito cujos passos iniciais já foram
tomados. O juiz faz parte de um processo em cadeia. Ele é um dos elos
da cadeia e, portanto, tem um papel ativo na construção do que é o
direito – daí a sua função criativa –, mas é apenas um elo e, portanto,
deve manter coerência e união com os demais elos anteriores dessa
corrente, da mesma forma que os juízes que lhe seguirão deverão, em
decisões posteriores, ser coerentes com o que decidiu. Essa coerência
é principiológica e não política. Aqui, portanto, a função declarativa da
interpretação judicial. Por isso Dworkin afirma que os juízes são auto-
res e críticos do direito. Um juiz que decide um caso difícil66 introduz

75
Celso de Albuquerque Silva

acréscimos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com


uma nova tradição que inclui o que foi feito por aquele.67
Mas como exercer essa complexa estrutura da interpretação jurídi-
ca? Para que possamos entender essa tarefa interpretativa, não podemos
perder de vista que os juízes que aceitam o ideal interpretativo da inte-
gridade decidem os casos difíceis tentando encontrar, em algum conjun-
to coerente de princípios sobre os diretos e deveres dos membros daque-
la coletividade, a melhor interpretação da estrutura política e doutrina
jurídica da sua comunidade. Assim, um primeiro juízo que um intérprete
deve fazer em seu labor interpretativo é um juízo de adequação.
Juízo de adequação significa dizer que o intérprete não pode ado-
tar nenhuma interpretação que nenhum outro juiz ou legislador adota-
ria para escrever o texto jurídico que é entregue para interpretação. Se
adotasse tal interpretação, por mais complexa que fosse, o intérprete
não estaria dando continuidade a um projeto do qual faz parte no elo
de uma corrente, mas iniciando um projeto novo. Essa dimensão exclui-
rá interpretações radicais, que assimilariam o poder criativo do juiz ao
poder criativo do legislador e aquele não tem a mesma liberdade deste.
Os legisladores podem criar novos direitos para o futuro de forma
ampla, bastando demonstrar de que modo estes vão contribuir como
boa política para o bem estar da sociedade. Os juízes se, diante de
casos difíceis, elaboram regras de responsabilidade não reconhecidas
de forma expressa antes, devem fazê-lo com base em princípios
comuns da coletividade, não em política.
Mas o juízo de adequação é um filtro muito largo e pode ocorrer,
como de fato sempre ocorre nos casos difíceis, que várias interpreta-
ções se adeqüem, em princípio, ao propósito que se pretende impor ao
texto. E, entretanto, para o direito como integridade, uma, e apenas
uma, deve afinal prevalecer. A tarefa do intérprete é, portanto, apresen-
tar o texto sob sua melhor luz. O juiz, então, terá que escolher a inter-
pretação que, em sua opinião, tornará o texto mais adequado ao siste-
ma principiológico de que decorre. Nesse momento, é provável, embo-
ra não de todo absolutamente inevitável, que essa decisão dependa
daquilo que o juiz considera como justiça ou equidade. É o “resíduo”68
criativo de qualquer interpretação judicial.

76
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Mesmo aqui essa liberdade criativa é restrita. Como já averba-


mos em outro lugar, o conteúdo da norma deve ser buscado à luz da
consciência jurídica geral formatada com base em critérios objetivos,
v.g., os valores éticos reconhecidos pela comunidade, a natureza das
coisas, os princípios desenvolvidos pela doutrina e jurisprudência,
ou seja, uma consciência que não é apenas do juiz, individualista e
subjetivista, porém derivada do sentimento comum do que é justo e
eqüitativo, perfilado por todos que, de alguma forma, relacionam-se
com o direito.69
O direito como integridade exige do juiz que quando ele se encon-
tra diante de um caso difícil, reconheça que outros juízes decidiram
casos que, apesar de não exatamente iguais ao seu, tratam de proble-
mas afins; deve considerar as decisões dele como parte de um longo
projeto que ele tem de interpretar e continuar, de modo que a sua deci-
são sobre o que o direito é deve ser extraída de uma interpretação que
ao mesmo tempo se adapte aos fatos anteriores e os justifique até onde
isso seja possível.70 O direito como integridade reconhece validade às
proposições jurídicas, quando decorrem de uma interpretação de qual-
quer parte da imensa rede de estruturas e decisões políticas de sua
comunidade que consiga fazer parte de uma teoria coerente que justi-
ficasse essa rede como um todo.
Isso exigiria do juiz uma interpretação plena e abrangente de
todo o direito que rege a sua comunidade, o que é humanamente
impossível. Dworkin reconhece isso, tanto que utiliza o modelo con-
tra-fático que chama de juiz Hércules, um juiz imaginário, com capa-
cidade e paciência sobre-humanas.71 Mas também considera que um
juiz verdadeiro pode imitar Hércules até certo ponto72 e que o proje-
to Hércules de reconhecer o direito como integridade, busca mostrar
o direito em sua melhor luz. Em outro dizer, o direito como integrida-
de tem como meta final permitir ao exegeta no exercício de seu labor
interpretativo encontrar a resposta correta para o específico proble-
ma que lhe é posto para adjudicação.

77
Celso de Albuquerque Silva

4. Princípio da legalidade e efeito vinculante

Vimos anteriormente que o princípio da legalidade é imanente à


idéia de Estado de Direito e que possui seu significado encarnado no
conceito de direito. Assim, respeitar o princípio da legalidade é respei-
tar o direito. Vimos, também, que o direito, adote-se uma concepção
positivista ou a concepção pós positivista que entende o direito como
integridade é, em última instância, em maior ou menor grau uma con-
cepção interpretativa. O direito como integridade assume expressa-
mente essa qualificação, porém, mesmo na concepção descritiva do
direito adotada pelo positivismo jurídico de ver-se que, como incumbe
ao juiz “descobrir” e “aplicar” o direito encontrado, em razão da regra
de reconhecimento o direito é necessariamente aquilo que as cortes
judiciárias reconhecem (rectius: interpretam) como sendo o direito. É
que, como já assentou Siqueira Castro, “o que se aplica não é o direito
em si, mas a interpretação que lhe dê concretamente seu intérprete e
aplicador”.73 O direito é o que as Cortes judiciárias, mediante as con-
cepções que adotem, interpretam como sendo as proposições jurídicas
vigentes naquela comunidade.
Nessa esteira, a concepção de direito do positivismo moderado
reconhece o efeito vinculante como corolário do princípio da legalidade,
na medida em que esta concepção justifica a finalidade do direito no seu
mister de “fornecer orientações à conduta humana e padrões de crítica
de tal conduta”.74 A concepção de Hart, nitidamente acolhe como ele-
mento constitutivo da própria idéia de direito os princípios da seguran-
ça jurídica e da proteção da confiança, classicamente referenciados como
fatores legitimadores da adoção do efeito vinculante, na medida em que
este permite estabilizar as expectativas das clientelas dos tribunais a
respeito do que é e do que não é possível, ser objeto de proteção judicial.
Os valores que subjazem à adoção do efeito vinculante em razão do prin-
cípio da legalidade podem assim ser resumidos: 1) maximiza a liberda-
de ao tornar previsíveis as conseqüências legais na sua aplicação ao
comportamento dos cidadãos, permitindo-lhes, então, planejar melhor
seu futuro; 2) maximiza a justiça substancial por não frustrar a confiança
dos cidadãos na história institucional pretérita; 3) a eficiência que se

78
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

obtém, em termos de tempo da corte e dos demais operadores do direi-


to, ao se ter conseqüências legais previsíveis para possíveis lides; 4) o
ganho de igualdade obtido toda vez que a questões envolvendo um
grande número de pessoas é conferido o mesmo resultado.
Com efeito, não se discute, seja filosófica seja juridicamente, que
o homem, animal gregário que é, para que possa viver em coletividade
necessita de certa segurança para conduzir, planejar e conformar de
forma autônoma e responsável sua vida. Por tal razão, desde cedo se
considerou como elemento constitutivo do Estado de Direito o princípio
da segurança jurídica. A este princípio necessariamente se relaciona o
princípio da proteção da confiança, entendido como exigência constitu-
cional de leis tendencialmente estáveis, dotadas do atributo de previ-
sibilidade a fim de permitir um cálculo de seus efeitos por parte daque-
les a quem elas se destinam.
Como leciona Canotilho, “os princípios da proteção da confiança e
da segurança jurídica podem formular-se assim: o cidadão deve poder
confiar em que aos seus atos ou às decisões públicas incidentes sobre
os seus direitos, posições jurídicas e relações, praticadas ou tomadas
de acordo com as normas jurídicas vigentes, se ligam os efeitos jurídi-
cos duradouros, previstos ou calculados com base nessas mesmas nor-
mas”.75 Estabilidade, previsibilidade, uniformidade são os elementos
caracterizadores do princípio da segurança jurídica.
A estabilidade e certeza do direito são um forte argumento em
favor da adoção do efeito vinculante. A ausência de uma diretriz relati-
vamente segura para a solução de determinada controvérsia conduz
inevitavelmente a um permanente estado de insegurança e, conse-
qüentemente, injustiça. Como Lorde Elton sintetizou: “é melhor que o
direito seja certo do que cada juiz possa especular sobre melhoramen-
tos nele”.76
A importância da fixação do sentido da norma enfatizada por
Lorde Elton é compartida pelo ilustre processualista e Ministro do
Superior Tribunal de justiça Sálvio de Figueiredo quando, ao discorrer
sobre o enunciado 14 da súmula de jurisprudência dominante do STJ,
a dizer que “arbitrados os honorários advocatícios em percentual sobre
o valor da causa, a correção monetária incide a partir do respectivo ajui-

79
Celso de Albuquerque Silva

zamento”, após afiançar que sua edição teve por escopo dirimir forte
divergência então existente no País, averbou:

“Se o entendimento adotado por maioria não foi o mais técni-


co, dadas as sutilezas dos casos concretos, pelo menos teve o
mérito de pacificar o entendimento e fixar uma orientação para os
processos futuros ou ainda em curso à época.”77

A uniformidade, estreitamente relacionada com a questão da esta-


bilidade, é outro argumento em favor da adoção desse instituto. A uni-
formidade serve a vários interesses: Em primeiro lugar dá previsibilida-
de as decisões judiciais, com o que se capacita qualquer sistema jurí-
dico alcançar seus objetivos. Isso porque essa mesma previsibilidade
proporciona a redução do custo de manutenção de todo o sistema legal,
na medida em que quanto mais previsíveis são os sentidos das normas
legais é menos provável que os indivíduos as transgridam, o que impli-
ca numa geral redução das demandas civis e penais.
Em segundo lugar, a uniformidade permite sejam razoavelmente
calculados os efeitos decorrentes dos diplomas legais. Se as leis se
destinam a estimular as pessoas e órgãos governamentais a adotarem
condutas socialmente desejáveis, mister que o seu sentido seja conhe-
cido pelas partes potencialmente afetadas, para adequação de seus
comportamentos aos padrões sociais colimados pelo legislador.
Vê-se, portanto, que a concepção de Hart pressupõe o efeito vin-
culante como forma de atingir aquilo que Dworkin chama de “ideal das
expectativas asseguradas”,78 pois que uma vez tomada uma decisão
clara por um organismo autorizado por uma convenção e aceito que o
conteúdo dessa decisão foi estabelecido em conformidade com as
regras de reconhecimento sobre a melhor maneira de compreender
essa decisão, os juízes devem respeitar essa decisão, mesmo achando
que uma outra diferente seria mais justa ou mais sábia, sob pena de
impor a insegurança, o caos, e não possuir o direito assim interpretado
uma razão justificadora.
Hart é claro nesse ponto quando, discorrendo sobre a regra secun-
dária de reconhecimento (exatamente a que confere poderes aos
Tribunais para dizer o que o direito é), faz uma distinção entre o inte-

80
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

resse pessoal do membro da comunidade em obedecer as regras jurídi-


cas convencionadas e o interesse público comum dos tribunais em lhes
prestar obediência e averba:

“...Mas esse interesse meramente pessoal em relação às


regras, que é tudo que qualquer cidadão comum pode ter ao obe-
decer-lhes, não pode caracterizar a atitude dos tribunais para com
as regras, com as quais funcionam enquanto tribunais. Isto suce-
de ainda mais patentemente quanto à regra última de reconheci-
mento, nos termos da qual é apreciada a validade de outras
regras. Para que possa sequer existir, tem de ser considerada do
ponto de vista interno como um padrão público comum de decisão
judicial correta e não como algo a que cada juiz meramente obe-
dece apenas por sua conta. Os tribunais do sistema individual-
mente considerados, embora possam ocasionalmente desviar-se
dessas regras, devem, em geral, preocupar-se criticamente com
tais desvios, como sendo lapsos, por referência a padrões que são
essencialmente comuns ou públicos. Não se trata meramente de
uma questão de eficiência ou de sanidade do sistema jurídico, mas
é logicamente uma condição necessária da nossa capacidade para
falar da existência de um único sistema jurídico. Se porventura
alguns juízes atuassem ‘apenas por sua conta’, com o fundamen-
to de que o que é aprovado pela Rainha no Parlamento é direito e
não criticassem os que não respeitam esta regra de reconhecimen-
to, a unidade e a continuidade, características de um sistema jurí-
dico teriam desaparecido. Porque tal depende da aceitação, neste
aspecto crucial, dos padrões comuns de validade jurídica. Entre
estes caprichos do comportamento judicial e o caos que em última
análise resultaria quando o homem comum fosse confrontado com
decisões judiciais contraditórias, não saberíamos como descrever
a situação.” (g.n.)79

A concepção do direito como integridade também acolhe em seu


seio o instituto do efeito vinculante como algo inerente à própria idéia
de sistema jurídico. Suas razões para tal situam-se, principalmente, na
firme convicção de que os direitos e deveres dos membros de uma
comunidade decorrem dos princípios comuns de justiça, eqüidade e

81
Celso de Albuquerque Silva

devido processo legal, compartilhados por toda a coletividade, quando


interpretados na sua melhor luz. Assim, para o direito como integrida-
de não existem nos casos difíceis várias decisões possíveis, mas ape-
nas uma decisão correta.80 O direito como integridade é conceito inter-
pretativo e, para ele, o direito em sua melhor luz é aquele obtido atra-
vés daquela interpretação que assume para si o fato de que nenhuma
outra interpretação poderia ser melhor.81 Se a interpretação da corte
superior é a última e reviu a interpretação da corte inferior, evidente-
mente que, por ser a melhor interpretação possível, necessariamente
deve ser seguida pelos juízes inferiores.
Acresça-se que, como visto, o direito como integridade, ao tempo
em que realça a função criadora da interpretação judicial, sobreleva o
fato de que o intérprete é apenas um elo da cadeia, de sorte que sua
liberdade na criação e crítica do direito está restringida por princípios
públicos compartilhados na sociedade. Assim, ao interpretar a norma
não pode se olvidar que outros juízes decidiram casos tratando de pro-
blemas afins, devendo considerar as suas decisões dele como parte de
um longo projeto que ele tem de interpretar e continuar. Assim, sua
interpretação deve seguir, nos aspectos essenciais a interpretação de
outros elos da corrente, considerados pelo sistema jurídico-político no
qual se insere, como dotados de maior nível hierárquico, em respeito
aos princípios da justiça, equidade e devido processo legal.
Destarte, aplicar a lei tal como entendida pelas Cortes Superiores
nada mais é do que aplicar a lei. Já ficou célebre, apesar de inúmeras
vezes criticada, a afirmação de Charles Hughes, antigo presidente da
Suprema Corte Americana de que, a Constituição é o que os juízes
dizem que ela é. Utilizando outros termos, porém transmitindo a
mesma mensagem, o STF já afirmou que “o ordenamento normativo
nada mais é senão a sua própria interpretação, notadamente quando a
exegese das leis e da constituição emanar do Poder Judiciário, cujos
pronunciamentos qualificam-se pela nota de definitividade”.82
Nessa perspectiva, o efeito vinculante é corolário do princípio da
legalidade, pois sua adoção é uma das formas de sua concretização. O
efeito vinculante robora o princípio de que ninguém está acima da lei,
nem mesmo o juiz. Assim, se temos em conta a possibilidade de que as

82
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

decisões dos juízes, porque expressamente contrárias ao entendimen-


to já esposado pelos Tribunais Superiores, embora necessariamente
não o sejam, possam vir a ser interpretadas pelo público leigo, como
sendo frutos não de uma reflexão racional, mas de uma manifestação
arbitrária da vontade de um único juiz, isso tiraria, dessa decisão,
muito do seu poder moral que impele os jurisdicionados a obedecê-la.
Como é cediço, as Cortes têm pouco poder de coerção direta sobre
os destinatários de suas decisões. A prática, entretanto, demonstra
que, em geral, os litigantes obedecem às decisões judiciais. Importante
realçar, porém, como sinala Birmingham, que em grande parte eles
assim o fazem porque tais decisões são vistas como um produto de
uma aplicação racional de regras legais e não produto de meras apre-
ciações políticas ou pessoais. Assim, o efeito vinculante é importante
não somente porque os indivíduos estruturam sua atividade comercial
baseada nos precedentes, “mas porque fidelidade ao precedente é
parte e parcela de uma concepção do judiciário como uma fonte de jul-
gamentos racionais e imparciais”.83
O efeito vinculante, então, ao invés de tirar autoridade da decisão
do juiz inferior, em verdade reforça-a, na medida em que não tendo
poder de coerção direta, a obediência ao que ficou decidido deve
repousar sobre a idéia de que essas decisões são resultado de um pro-
cedimento racional levado a cabo por pessoas imparciais, racionais.
O efeito vinculante possui, portanto, íntima relação com o princí-
pio da legalidade (rule of law), na medida em que implica a interpreta-
ção regular e imparcial das regras públicas, dando origem ao que ficou
conhecido como igualdade ou justiça formal.
Não se desconhece que a garantia oferecida pela adoção do efeito
vinculante quanto à aplicação imparcial e regular da lei é compatível
com a injustiça se porventura as leis a serem aplicadas em si forem
injustas. A injustiça pode estar na formulação das leis e/ou na sua apli-
cação. O efeito vinculante não protege contra a injustiça na formulação
das leis, mas tão somente na sua aplicação. De fato, o efeito vinculan-
te ao reforçar o domínio da lei garante apenas a igualdade perante a lei
e não a igualdade na lei. Em outros termos: garante e protege a justiça
formal. Sobre essa justiça, disse Kelsen:84

83
Celso de Albuquerque Silva

“É óbvio que esse conceito de justiça, como uma lei do pen-


samento, é totalmente diferente do ideal original de ação que com-
preendemos como justiça. Esse ideal não tem em vista um siste-
ma normativo logicamente satisfatório, mas moralmente satisfató-
rio. Uma ordem totalmente não contraditória como sistema de
regras gerais, pode ser totalmente injusta no sentido original do
ideal. A substituição do valor moral de justiça pelo valor lógico de
não contradição, inerente à definição de justiça como igualdade
perante o Direito, é o resultado da tentativa de racionalizar a idéia
de justiça como idéia de um valor objetivo. Esse tipo de filosofia
racionalista, pretendendo responder à questão quanto ao que é
justo, e, portanto reivindicando autoridade para prescrever ao
poder estabelecido como legislar, acaba por legitimar o poder
estabelecido ao definir justiça como igualdade perante o Direito e,
assim, declarar que o Direito positivo é justo.”

Por esse motivo, tornou-se moda dizer que essa aplicação impar-
cial das leis não tem importância, pois oferece pouca proteção contra a
tirania. Deve-se, ao contrário, aplicar-se seletiva e discricionariamente
a lei como forma de superar a injustiça na sua formulação, substituin-
do-se o julgador na função do legislador na promoção da igualdade
substancial. Essa assertiva, entretanto, é uma meia verdade. É certo
que injustiças podem – muitas vezes, de fato o são – ser provocadas
pela adoção pura e simples da igualdade formal. Entretanto, também é
verdade que se não suficiente, a igualdade formal é necessária para a
superação desse estado de coisas. Uma comunidade que adote apenas
o princípio da isonomia formal será muito provavelmente uma comuni-
dade mais injusta que uma outra que adote, em acréscimo, a isonomia
material, porém será menos injusta se comparada com uma terceira
que agregue à injustiça na formulação da lei, aqueloutra referente à
injustiça na sua aplicação.
O que não se pode deixar de ter em mente, é que os direitos decor-
rentes da adoção de um princípio de igualdade material são na verda-
de um produto de uma legislação mais particularizada, “baseada his-
toricamente na ampliação prévia da legislação universalista formal e a
teve como premissa”.85 Em outro dizer: só se pode falar de igualdade
substancial – a igualdade na lei –, se tivermos em mente um passo

84
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

anterior e necessário da adoção do princípio da igualdade formal –


igualdade perante a lei. A igualdade formal é, portanto, um elemento
necessário, embora não suficiente para conceituação e identificação de
uma democracia. Por isso, é atualíssima a advertência de Rawls, no
sentido de ser “evidente que em igualdade de circunstâncias, os perigos
para a liberdade são menores quando a lei é regular e imparcialmente
administrada de acordo com o princípio da legalidade”.86 Em outro
dizer, não existe Estado Democrático de Direito sem a aplicação regu-
lar e imparcial das regras jurídicas. Esta, embora não suficiente é,
porém, pressuposto necessário daquele.
É por isso que a América Latina em geral, e o Brasil em particular,
possuem débeis democracias sociais. O déficit do princípio da igualda-
de formal na aplicação da lei é fator impediente de seu fortalecimento.
O primado do princípio da legalidade no Brasil é ineficaz exatamente
porque na aplicação da lei a práxis administrativa e judiciária tem, em
larga escala, passado ao largo do princípio da igualdade perante a lei.
Discorrendo especificamente sobre esse tópico, averbou O’Donnell:

“...a aplicação discricionária, e amiúde excessivamente seve-


ra, da lei aos fracos pode ser um eficiente meio de opressão. O lado
oposto disso são as múltiplas maneiras pelais quais os privilegia-
dos, seja diretamente, seja por meio de ligações pessoais apropria-
das, se isentam de cumprir a lei. Na América Latina, há uma longa
tradição de ignorar a lei ou, quando ela é acatada, de distorcê-las
em favor dos poderosos e da repressão ou contenção dos fracos.
Quando um empresário de reputação duvidosa disse na Argentina
‘ser poderoso é ter impunidade legal’, expressou um sentimento
presumivelmente disseminado de que, primeiro, cumprir volunta-
riamente a lei é algo que só os idiotas fazem e, segundo estar sujei-
to à lei não é ser portador de direitos vigentes, mas sim um sinal
seguro de fraqueza social. Isso é em particular verdadeiro e perigo-
so, em embates que podem desencadear a violência do Estado ou
de agentes privados poderosos, mas um olhar atento pode detec-
tá-lo também na recusa obstinada dos privilegiados a submeter-se
a procedimentos administrativos regulares, sem falar da escanda-
losa impunidade criminal que eles costumam obter.”87

85
Celso de Albuquerque Silva

Nesse sentido e, considerando-se que o direito é a interpretação


que dele fazem os tribunais, aplicar o que ficou decidido pelas cortes
superiores é aplicar a lei e, portanto, respeitar o princípio da legalida-
de, adote-se uma concepção hermenêutica positivista ou pós-positivis-
ta. Nesses termos, o princípio da legalidade explica e ao mesmo tempo
justifica e demanda a adoção do efeito vinculante que se apresenta
como um escudo de proteção contra a parcialidade, a fraude ou outras
formas de corrupção oficial na aplicação da lei88 que, tradicionalmente,
tem impedido aos mais desfavorecidos a fruição de direitos humanos
básicos que formalmente lhes foram conferidos pelo Estatuto Básico.

4.1. Crítica à legitimação do efeito vinculante pelo princípio


da legalidade

O dever de obediência do judiciário ao princípio da legalidade con-


duz, para parte da doutrina, à impossibilidade de adoção do efeito vin-
culante por importar em evidente ofensa a princípios constitucionais.
A crítica deduzida pode, no particular, ser sintetizada nos seguin-
tes pontos: a) violação à independência funcional interna do juiz que se
sujeitaria apenas à constituição e as leis e, b) violação ao princípio de
separação de poderes, pois o judiciário, ao interpretar de forma vincu-
lativa, esbulharia a função do legislador.
Com efeito, doutrinando sobre o tema, deixou averbado Luis
Flavio Gomes:

“A súmula vinculante, em derradeira instância, na medida em


que impõe coercitivamente ao juiz inferior o seguimento estrito de
uma determinada interpretação do texto legal elaborada por juiz
superior (poder que nem sequer o Legislador possui),...viola fla-
grantemente o disposto no artigo 2o da CF, que contempla um dos
‘princípios fundamentais’ do Estado Brasileiro, que é a indepen-
dência dos Poderes (leia-se: dos juízes). No que tange à indepen-

86
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

dência funcional interna, assegura-se, assim, ao juiz, o poder de


dirimir a contenda sem ‘coerção’ ou temor de seus companheiros
ou superiores. Não é concebível que o juiz de maior hierarquia con-
te com o poder de ditar normas ou de ‘impartir instrucciones de ca-
ráter obligatório’ no que se refere à função soberana de julgar.”89

Prosseguindo, acrescenta:

“Em segundo lugar, impõe-se refutar a súmula vinculante


porque, dentro do Estado de Direito Brasileiro, configura irrefutá-
vel usurpação de poder...Em decisões reiteradas um dos Tribunais
Superiores interpretará determinada norma num certo sentido e
essa ‘sua’ interpretação passaria a ter efeito vinculante, isto é,
todos os juízes deveriam adstringir-se a essa interpretação com-
pulsoriamente...Interpretar a lei com caráter geral, vinculativo,
significa usurpar atribuição exclusiva do Poder Legislativo.”90

Nessa linha de encadeamento, reputa-se inconstitucional a ado-


ção do efeito vinculante, pois o intérprete passaria a ser, sem legitima-
ção democrática para tanto, o verdadeiro legislador, criando-se uma
nova fonte normativa não derivada diretamente do povo, como ocorre
com as leis e a constituição às quais e somente às quais, devem os
juízes obediência e respeito.
Em adição, parte da doutrina afirma que a adoção do efeito no
Brasil aproxima assistematicamente o sistema jurídico brasileiro de
índole romano-germânica, ao da common law.91 Trata-se de reiterada,
embora escassamente fundamentada, afirmação de que a adoção do
efeito vinculante é incompatível com os sistemas jurídicos da civil law.92

4.2. A nova hermenêutica – resposta à crítica

A primeira linha de argumentação dos críticos é de que, por estar


o juiz vinculado apenas à lei, seguir obrigatoriamente as decisões das

87
Celso de Albuquerque Silva

cortes superiores implicaria na violação de sua independência judicial.


A questão, portanto, diz com o que se entende por obediência à lei,
entendida esta, como o direito posto.
Como se procurou demonstrar linhas atrás, o ordenamento jurídi-
co é composto de regras jurídicas, ou seja, é constituído por normas,
buscando as inferiores (leis) fundamento de validade nas superiores
(constitucionais). Consoante leciona Paulo de Barros Carvalho93 toda
norma jurídica é uma proposição prescritiva, na medida em que, embo-
ra possua uma base empírica na literalidade do seu enunciado, se situa
no plano imaterial das significações. Os enunciados do texto legal pres-
crevem condutas, porém as normas jurídicas são as significações cons-
truídas a partir dos textos do direito positivo e estruturadas consoante
a lógica dos juízos condicionais. O texto legal é posto pelo Poder Le-
gislativo, mas a norma que provém dele é construída pelo intérprete.
Sinala Zélia Luiza Pierdoná94 que norma jurídica é a significação
colhida a partir dos textos do direito positivo. É um processo intelecti-
vo que parte da literalidade textual dos enunciados prescritivos, os
quais, uma vez articulados, formam as estruturas mínimas. O texto
legal não é uma norma jurídica, mas uma composição de enunciados
prescritivos e a interpretação que se faz dele, com uma estrutura míni-
ma de significação (um antecedente implicando um conseqüente), é a
norma jurídica.
Para Castanheira Neves, o direito não o é antes de sua realização,
pois só na sua realização adquire sua autêntica existência e vem à sua
própria realidade. Citando Ihering leciona: “O direito existe para se rea-
lizar. A realização do direito é a vida e a verdade do direito; ela é o pró-
prio direito. O que não passa à realidade, o que não existe senão nas leis
e sobre o papel, não é mais do que um fantasma de direito. Não são
senão palavras. Ao contrário, o que se realiza como direito é o direito”.95
Fica claro, portanto, que a norma jurídica é sempre resultado da
interpretação de um texto. Os juízes, assim, não estão subordinados ao
texto legal, mas à norma que a partir dele é construída. Isso deve ficar
claro: o processo hermenêutico é sempre produtivo. Em qualquer labor

88
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

interpretativo não há como recusar a conclusão de que sempre se adi-


ciona ou se reduz o sentido do texto legal interpretado e, ao fazer isso,
o intérprete estará indo aquém ou além da literal expressão do texto.96
Por outro lado, não se pode admitir – e de fato ninguém admite –
que nesse processo produtivo, seja o intérprete absolutamente livre
para dizer o sentido da norma que subjetivamente melhor lhe aprouver,
o que o lançaria no autoritário mundo da relativização sofística. Como
visto, o poder criativo da interpretação judicial difere do poder criativo
do Poder Legislativo, muito mais amplo e livre. Os legisladores podem
criar novos direitos para o futuro de forma ampla, bastando demonstrar
de que modo estes vão contribuir, como boa política, para o bem estar
da sociedade. Os juízes, ao exercerem sua função criativa, devem fazê-
lo com base em princípios comuns da coletividade, não em política.
Acresça-se que a interpretação de uma norma não pode ser des-
pregada de seu contexto. O juiz faz parte de uma intrincada estrutura
que postula a si a qualidade de sistema. Como todo sistema, também
o jurídico, reivindica para si as características de unidade e continuida-
de. O juiz é um elo da estrutura hierarquizada de interpretação legal na
qual foi outorgada aos tribunais superiores a competência para, de
forma última e absoluta, interpretar as leis e a constituição. Sendo par-
tícipe ativo dessa estrutura, vincular-se à interpretação dos tribunais
superiores não se trata meramente de uma questão de eficiência, con-
veniência ou de sanidade do sistema jurídico, mas é logicamente uma
condição necessária para a existência de um único sistema jurídico.
Kelsen,97 tratando do controle da constitucionalidade das leis, já aler-
tava que a Constituição não poderia jamais conferir a toda e qualquer
pessoa competência para decidir essa questão, porque se assim o
fizesse, dificilmente poderia surgir uma lei que vinculasse os súditos
do direito e os órgãos jurídicos. Para obviar uma tal situação, afirma o
jurista, a Constituição apenas pode conferir competência para tal a um
determinado órgão jurídico.98

89
Celso de Albuquerque Silva

Não é demasiado salientar que em nosso sistema jurídico a Cons-


tituição atribui competência ao poder judiciário para se manifestar
sobre a constitucionalidade das leis. Em sede de controle difuso essa
função pode ser exercida por qualquer juiz ou tribunal, cabendo em tal
hipótese, revisão pelo Supremo Tribunal Federal via recurso extraordi-
nário e, à já referida suprema corte, foi outorgado o monopólio do con-
trole concentrado da constitucionalidade das leis via ação direta de
inconstitucionalidade ou declaratória de constitucionalidade. A seu
turno, o constituinte outorgou ao Superior Tribunal de Justiça, via
recurso especial, o controle e a revisão das normas jurídicas construí-
das a partir da interpretação dos textos legais, quando não estiver em
causa questão constitucional. Verifica-se, assim, que a constituição, a
exemplo do que já mencionava Kelsen, outorgou primazia aos Tribunais
Superiores para conceber o que é o direito vigente na coletividade.
Nesse diapasão, seguir a interpretação dada pelas cortes superio-
res nada mais é do que prestar obediência ao princípio da legalidade,
na medida em que se reconhece ser o direito alográfico (a norma é sem-
pre resultado da interpretação de um texto).
O dever de obediência do juiz não é ao texto frio da lei, mas à
norma que dele é construída. e, em assim sendo, não há falar-se em vio-
lação à independência do juiz, cuja finalidade é meramente instrumen-
tal do dever de imparcialidade a que está submetida a função judican-
te. Ora, seguir a interpretação dos tribunais superiores é aplicar o direi-
to de modo imparcial e regular, pois tal resultado se apresenta como
fruto de decisões racionais e não derivadas de meras opções políticas
e/ou pessoais do julgador.
Como visto, o intérprete não é livre para dar o sentido que quiser
à norma, mas está jungido e imbricado a, em seu labor interpretativo,
prestar respeito aos princípios consagrados no texto constitucional,
dentre os quais, avulta na hipótese, o princípio da legalidade, em sua
vertente de justiça formal. Por tal razão o Supremo Tribunal Federal dei-
xou assentado quando do julgamento do agravo regimental no agravo
de instrumento no 272.328-7, relator Ministro Moreira Alves, DJ 170-E,
de 01 de setembro de 2000, que “observar-se a jurisprudência firme da
Corte, no tocante à inexistência, no caso, de direito adquirido, não
implica ofensa ao princípio do livre convencimento do juiz, mas apenas
que se entende que essa jurisprudência deve continuar a ser seguida”.
Força concluir, portanto, que a adoção do efeito vinculante não
rompe com a independência funcional do juiz, cuja formulação encontra

90
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

como fronteira, o respeito e a observância do princípio da legalidade, que


vem de ser reafirmado e reforçado pela adoção do efeito vinculante.
Entender-se que o efeito vinculante anda às testilhas com a inde-
pendência funcional dos juízes parte da premissa equivocada de que a
vinculação dos juízes é ao texto frio da lei e não à norma concretizada
através do processo hermenêutico, o que não se coaduna com a moder-
na doutrina hermenêutica, especialmente embora não exclusivamente,
no âmbito constitucional, como se verá no tópico a seguir.

4.2.1. A função normativa da interpretação judicial na nova


hermenêutica

A segunda crítica à adoção do efeito vinculante segue na linha de


que, por não possuir o juiz função de criar o direito, tornar obrigatória
a interpretação das cortes superiores para os demais membros do
poder judiciário implicaria em violação do princípio de separação de
poderes inserto no artigo 2o de nossa carta da república e tornada cláu-
sula pétrea. Uma outra forma de se fazer a mesma assertiva, recorren-
do-se ao direito comparado, é reputar-se absolutamente distintos – no
particular – os sistemas da common law (onde o juiz seria fonte de pro-
dução normativa) e da civil law (onde o juiz não seria fonte de produ-
ção normativa).
Parece estar suficientemente demonstrado que a norma aplicada
é sempre resultado da interpretação de um texto jurídico. Nisso coinci-
dem todas as correntes doutrinárias acerca da função interpretativa
dos juízes. A divergência ocorre quanto ao que se entende ou deve se
entender como o “resultado” dessa interpretação. Para a concepção
clássica positivista, esse resultado nada mais é do que o descobrimen-
to de um sentido escondido, essencializado e, por isso, preexistente no
texto. As concepções modernas, porém, consideram o resultado do tra-
balho hermenêutico como uma concretização do texto legal,99 o que
implica um certo nível de agregação de sentido a ser feito pelo intér-
prete do texto.
A crítica que aponta a adoção do efeito vinculante como um insti-
tuto violador do princípio da separação de poderes acolhe, ainda que

91
Celso de Albuquerque Silva

inconscientemente,100 o Poder Judiciário como um mero limite contra o


Poder Absoluto, reduzindo a atuação judicial à clássica concepção de
um legislador negativo típica do estado liberal absenteísta. Nessa
visão mais conservadora do princípio da separação de poderes, o legis-
lador possuiria o monopólio na criação do direito.
Sabe-se, porém, que a moderna doutrina constitucional superou
de há muito essa visão conservadora estruturada no paradigma liberal-
individualista onde o direito é visto como mero ordenador de condutas,
para reconhecer à justiça a posição de um verdadeiro poder político. Ao
juiz moderno, atuando na nova concepção de um direito promovedor-
transformador típico do Estado Democrático de Direito, é reconhecida
importância capital para a efetiva concretização e realização dos valo-
res e princípios acolhidos na Constituição. Verifica-se, assim, a supera-
ção da função judicial negativista clássica, que cede passo a uma fun-
ção ativa e intervencionista do Poder Judiciário.
Por isso, já lecionava André Franco Montoro,101 que “o juiz não é o
aplicador mecânico das regras legais, mas um verdadeiro criador do
direito vivo. Já os antigos observavam que o juiz é a justiça viva, em
comparação com a lei que é a justiça inanimada”.
Essa função normativa da atividade judicial é facilmente encontra-
da em decisões de nossos tribunais superiores. A decisão proferida em
embargos infringentes na ADI 1.289/DF, bem retrata essa viragem her-
menêutica no seio do Supremo Tribunal Federal.
Tratava a ADI sobre a constitucionalidade de ato normativo do Con-
selho Superior do Ministério Público do Trabalho que autorizara a com-
plementação da lista sêxtupla de membros do ministério público para

92
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

investidura em cargo do juiz de Tribunal Regional do Trabalho de can-


didatos com menos de dez anos, quando não houvesse membros
candidatos no número previsto constitucionalmente que tivessem a
exigida antiguidade. Em decisão majoritária o STF a julgou proceden-
te, declarando inconstitucional o objurgado ato normativo. Contra esse
acórdão foram apresentados os embargos infringentes.
O Min. Gilmar Mendes, relator, inicialmente e em linha com a posi-
ção do Ministro Carlos Veloso, reconheceu que o pensamento a ser ado-
tado em sede constitucional, deve ser o pensamento do possível. Isto
implica na conclusão de que o imperativo teórico da não contradição
não deve obstaculizar a atividade própria da jurisprudência de realizar
positivamente, mediante prudentes soluções acumulativas, combina-
tóras e/ou compensatórias, a concordância prática das diversidades e
até mesmo de situações que, embora teoricamente contraditórias, são
desejáveis na prática.
A seguir, enriquecendo essa argumentação, agregou a perspectiva
de “lacuna constitucional”, para afastar a literalidade do texto constitu-
cional e dar provimento ao recurso. Citando Perelman, aduziu o relator:

“Uma lei sempre é feita apenas para um período ou um regi-


me determinado. Adapta-se às circunstâncias que a motivaram e
não pode ir além. Ela só se concebe em função de sua necessida-
de ou de sua utilidade; assim, uma boa lei não deve ser intangível,
pois vale apenas para o tempo que quis reger. A teoria pode ocu-
par-se com abstrações. A lei, obra essencialmente prática, aplica-
se apenas a situações essencialmente concretas. Explica-se
assim, que embora a jurisprudência possa estender a aplicação de
um texto, há limites a esta extensão, que são atingidos toda vez
que a situação prevista pelo autor da lei venha a ser substituída
por outras fora de suas previsões. Uma lei – constituição ou lei
ordinária – nunca estatui senão para períodos normais, para aque-
les que ela pode prever. Obra do homem, ela está sujeita, como
todas as coisas humanas, à força dos acontecimentos, à força
maior, à necessidade.
Ora, há fatos que a sabedoria humana não pode prever, situa-
ções que não pôde levar em consideração e nas quais, tornando-
se inaplicável a norma, é necessário, de um modo ou de outro,
afastando-se o menos possível das prescrições legais, fazer frente
às brutais necessidades do momento e opor meios provisórios à
força invencível dos acontecimentos”(Vanwelkenhuysen, le problè-

93
Celso de Albuquerque Silva

me des lacunes en droit cit, pp. 348-349). (Perelman, Lógica Jurí-


dica, p. 106).
Nessa linha conclui Perelman:
“Se devêssemos interpretar ao pé da letra o artigo 130 da
Constituição, o acórdão da Corte de Cassação teria sido, sem dúvida
alguma, contra legem. Mas, limitando o alcance deste artigo às
situações normais e previsíveis, a Corte de Cassação introduz uma
lacuna na Constituição, que não teria estatuído para situações ex-
traordinárias, causadas pela força dos acontecimentos, por força
maior, pela necessidade”. (Perelman, Lógica Jurídica, cit., p. 107)102

Analisando a questão posta sob adjudicação e confrontado, de um


lado com a possibilidade de inexistência de número mínimo de 6 mem-
bros do Ministério Público com mais de 10 anos candidatos ao quinto
constitucional e, de outro com a exigência constitucional de lista sêx-
tupla composta de membros com mais de dez anos de exercício, o
Supremo Tribunal Federal concluiu pela existência, na hipótese, de uma
lacuna constitucional e, em seu labor exegético, ainda que, em termos
literais contrariasse o artigo 94 da Constituição, construiu a norma pos-
sível. Consta do voto:

“Assim, também no caso em apreço, parece legítimo admitir


que a regra constitucional em questão contém uma lacuna: a não
regulação das situações excepcionais existentes na fase inicial de
implementação do novo modelo constitucional. Não tendo a maté-
ria sido regulada em disposição transitória, parece adequado que
o próprio intérprete possa fazê-lo em consonância com o sistema
constitucional. E, tal como demonstrado, a aplicação que menos
se distancia do sistema formulado pelo constituinte, parece ser
aquela que admite a composição da lista com procuradores do tra-
balho que ainda não preenchiam o requisito concernente ao tempo
de serviço. Assegurou-se aos órgãos participantes do processo a
margem de escolha necessária dentre procuradores com tempo de
serviço inferior a 10 anos, na hipótese de inexistência de candida-
tos que preenchessem o requisito temporal fixado.”103 (g.n.)

94
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Nitidamente, portanto, trata-se de uma decisão interpretativa adi-


tiva, que acrescenta significações não previstas no texto interpretado,
demonstrando a função criadora do intérprete, aliás expressamente
declarada e reclamada no teor do voto, ao considerar ser função do
intérprete regular a matéria que se encarte nos limites da lacuna cons-
titucional identificada.
Nesse sentido pode afirmar-se que a norma que deflui do artigo 94
da Constituição é, em verdade, aquela que reconhece não ser exigível
o lapso temporal de 10 anos de exercício da função ministerial, quando
inexistirem em número mínimo de seis, candidatos que preencham tal
requisito temporal. Esse o sentido da norma (da lei constitucional) e
interpretar de forma diferente, após o pronunciamento do supremo
intérprete, implica em violar o princípio da legalidade.
Dúvida ainda houvesse sobre a produção normativa no processo
de interpretação e bastaria para espancá-la, a remissão à recente deci-
são do STF na ADI 2332.104 Na mencionada ação direta de inconstitu-
cionalidade o STF entendeu que sua interpretação do significado da
locução justa e prévia indenização na desapropriação, consolidada na
súmula 618, que fixa o pagamento de juros compensatórios na indeni-
zação em 12% a.a., era fundamento relevante e suficiente para conce-
der liminar suspendendo a vigência em parte do artigo 15-A do
Decreto-Lei no 3.365/41, que limitava em até 6% o pagamento de juros
compensatórios em tais hipóteses. O STF adicionou, portanto, ao sen-
tido de justa indenização, o específico percentual de 12% a.a. a título de
juros compensatórios, evidentemente não previsto expressamente no
texto constitucional.
No seio do Superior Tribunal de Justiça, a mesma força criativa de
sua interpretação pode ser visualizada já no verbete no 83 de sua súmu-
la de jurisprudência dominante a dizer:

“Não se conhece do recurso especial pela divergência, quan-


do a orientação do Tribunal se firmou no mesmo sentido da deci-
são recorrida.”

Como é cediço, compete ao Superior Tribunal de Justiça, como


supremo e último intérprete da legislação federal, conhecer, via recurso
especial, decisões que contrariem ou neguem vigência a lei federal (CF

95
Celso de Albuquerque Silva

art. 105, III, a). Como repercussão dessa competência, a previsão da alí-
nea “c” do mesmo artigo autoriza o manejo do recurso especial no caso
de divergência de interpretações entre tribunais diversos. É simples: se
existem duas interpretações sobre o mesmo texto de lei, uma delas o con-
traria ou lhe nega vigência. Cabe, então, ao Superior Tribunal de Justiça
definir qual delas concretiza o texto legal e qual delas o contraria.
Ao fazê-lo, o STJ fixa de modo absoluto o conteúdo normativo do
texto legal. Por essa razão, o STJ não conhece de recurso especial pela
divergência quando a decisão recorrida guarda compatibilidade com a
interpretação firmada no seio do Superior Tribunal de Justiça, porque
em tal hipótese a decisão não contraria nem nega vigência à lei federal.
Embora se entenda e até mesmo se louve esse entendimento juris-
prudencial, o certo é que o texto constitucional, de per si, não autoriza-
ria tal entendimento, pois, no final das contas, a divergência de inter-
pretação persiste. Curial, portanto, a conclusão, que ao interpretar o
artigo 105, III, c, da CF/88 para chegar ao entendimento consolidado no
verbete no 83, houve agregação de sentido por parte do Superior
Tribunal de Justiça.
Em todas essas hipóteses, porém, não se pode afirmar que as cor-
tes judiciais estejam atuando como, nem usurpando as funções do
Poder Legislativo, pois, diversamente do atuar destes, os sentidos
agregados ao texto não têm por fundamento opções políticas ou de
moralidade consideradas mais adequadas, mas princípios jurídicos
compartidos pela coletividade, como, v.g., o princípio da concordância
prática, da razoabilidade e da ponderação de interesses.105

4.2.2. A vinculação das decisões proferidas em sede de interpretação


conforme a constituição e de inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto. O reconhecimento e autorização do legislador à
função normativa da interpretação judicial na nova hermenêutica

Esse novo paradigma da hermenêutica jurídica já cristalizado no


seio dos operadores do direito veio de ser reconhecido e positivado

96
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

pelo legislador pátrio com a edição da Lei no 9.868/99 que, regulando o


processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da
ação declaratória de constitucionalidade, dispôs no parágrafo único do
artigo 28106 que a declaração de inconstitucionalidade ou constitucio-
nalidade, ainda que proferida em sede de interpretação conforme à
constituição ou em nulidade parcial sem redução de texto, tem eficácia
contra todos e efeito vinculante.
Como leciona Gilmar Ferreira Mendes,107 oportunidade para inter-
pretação conforme a constituição existe sempre que determinada dis-
posição legal oferece diferentes possibilidades de interpretação, sendo
algumas delas incompatíveis com a Constituição. Por isso, já escreve-
mos anteriormente que nestas situações em que a norma não permite
a extração de um sentido unívoco, cabe ao tribunal extrair das possí-
veis e cambiantes interpretações o sentido da norma que a coloque em
consonância com o texto maior, ao tempo em que exclui todas as out-
ras interpretações que conduziriam a um resultado dissonante da von-
tade constitucional.108
Verifica-se que na interpretação conforme, a exemplo do que ocor-
re com a declaração de nulidade sem redução de texto, o tribunal exer-
ce uma função corretiva/manipulativa do conteúdo original da lei, para
torná-lo compatível com a Constituição.109 Ambas são espécies de
decisões interpretativas, entendidas estas, como decisões “que surgem
no interior de um processo hermenêutico-corretivo do texto normativo,
agregando-se acepções muitas vezes aquém ou além do explicitado ou
querido pelo legislador”.110

97
Celso de Albuquerque Silva

Assim, considerando-se a previsão legal de efeito vinculante des-


sas decisões, inafastável a conclusão de que o próprio legislador, ren-
dendo-se aos valores constitucionais que plasmam nosso Estado
Democrático de Direito, reconheceu ser ínsito ao exercício da função
jurisdicional moderna, o poder de exercer uma função “corretiva” da
própria substância e não meramente da forma da atividade legislativa,
reduzindo o âmbito de liberdade de conformação do legislador e
ampliando a função intervencionista do Poder judiciário para bem exer-
cer seu papel de concretizar e tornar efetivos os valores e princípios
plasmados no texto constitucional.
Essa função interventiva do Poder Judiciário visando não apenas
defender, mas promover os direitos assegurados no texto básico, impli-
ca na superação da função judicial na sua concepção clássica de “legis-
lador negativo” e reconhecimento de uma atuação positiva, embora
não tão ampla como a do poder legislativo, na criação do direito. Nesse
diapasão fica também superada a vetusta concepção de separação de
poderes que não reconhecia nenhuma atividade produtora e/ou agre-
gadora de sentido na interpretação judicial.
No particular, concordamos integralmente com Lenio Streck,111
quando afirma que com a promulgação da lei 9.868, o Poder Legislativo
rompeu com a clássica concepção de separação de poderes e daquilo
que até então se entendia compreendido no âmbito da liberdade de
conformação do legislador. Em suas palavras:

“Isto significa dizer que, com a institucionalização da inter-


pretação conforme a Constituição e da inconstitucionalidade par-
cial sem redução de texto através da Lei no 9.868, o Poder Legisla-
tivo brasileiro admite (explicitamente) que o Poder Judiciário pos-
sa exercer uma atividade de adaptação e adição/adjudicação de
sentido aos textos legislativos, reconhecendo, ademais, que a fun-
ção do Poder Judiciário, no plano do controle de constitucionalida-
de, não mais se reduz – repita-se – à clássica concepção de ‘legis-
lador negativo’. À evidência, isso não significa dizer que o
Judiciário se transformará em legislador positivo.”

Mais adiante, o constitucionalista conclui:

98
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

“Quando se adiciona sentido ou se reduz sentido (ou a pró-


pria incidência de uma norma), estar-se-á fazendo algo que vai
além ou aquém do texto da lei, o que não significa afirmar que o
Tribunal estará legislando. Pelo contrário. Ao adaptar o texto legal
à Constituição, a partir dos diversos mecanismos interpretativos
existentes, o juiz ou o tribunal estará tão somente cumprindo sua
tarefa de guardião da constitucionalidade das leis.”112

Essa nova abordagem hermenêutica torna bastante tênue e até


mesmo artificial a distinção apontada por alguns doutrinadores entre
os sistemas jurídicos originários da família do common law e do civil
law no concernente à função judicial. Quanto à contínua e consistente
aproximação entre os dois sistemas jurídicos assim leciona Perelman:

“Faz algumas décadas que assistimos a uma reação que, sem


chegar a ser um retorno ao direito natural, ao modo próprio dos
séculos XVII e XVIII, ainda assim confia ao juiz a missão de bus-
car, para cada litígio particular, uma solução eqüitativa e razoável,
pedindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, para consegui-lo,
dentro dos limites autorizados por seu sistema de direito. Mas é-
lhe permitido para realizar a síntese buscada entre a equidade e a
lei tornar esta mais flexível graças à intervenção crescente das
regras de direito não escritas, representadas pelos princípios
gerais de direito e pelo fato de se levar em consideração os tópi-
cos jurídicos. Esta nova concepção acresce a importância do direi-
to pretoriano, fazendo o juiz o auxiliar e o complemento indispen-
sável do legislador: inevitavelmente ela aproxima a concepção
continental do direito da concepção anglo-saxã, regida pela tradi-
ção da common law.”113 (g.n)

No mesmo diapasão, Sálvio de Figueiredo Teixeira114 doutrina que


em virtude da relevância que a produção jurisprudencial vai assumin-
do no processo de emanação do direito, atenua-se a distância entre o
sistema romano-germânico e a common law, apresentando-se cada vez

99
Celso de Albuquerque Silva

mais significativa a atuação dos tribunais nos países cujo sistema obe-
dece ao primado da lei.
Na concepção atual do direito já não se trata de limitar o papel do
juiz ao de uma boca pela qual fala a lei ( la bouche de la loi). A lei já não
constitui todo o direito; mas é apenas o principal instrumento que guia
o juiz no cumprimento de sua tarefa na solução dos litígios, não se
podendo mais excluir a jurisprudência como fonte criadora, como hoje
se reconhece quase à unanimidade.
Tendo-se em conta que toda lide envolve necessariamente um
desacordo, uma controvérsia, o papel do juiz é encontrar uma decisão
que esteja conforme ao direito, ou seja, como assevera Perelmam115 “é
necessário que a motivação da decisão demonstre suficientemente que
esta é conforme ao direito em vigor, tal como entendido pelas cortes
superiores”.
A adoção do efeito vinculante, portanto, é a nosso sentir uma con-
seqüência inexorável desse processo de revitalização hermenêutico,
pois permite, no limite do razoável, conciliar a tensão existente entre a
força aglutinadora do respeito à lei promulgada pelo parlamento e a
força desagregadora, embora necessária e até mesmo desejável, de
interpretações cada vez mais elásticas dos textos legais, algumas
inclusive contrárias à literalidade do texto, que poderia desaguar em
situações marcadas pelo subjetivismo, abuso e capricho do decisor. O
efeito vinculante, então, impõe limites necessários ao labor criativo do
juiz, subsumindo-o, naquilo que Perelman denominou de limites auto-
rizados pelo seu sistema de direito.
Para conciliar essa contradição entre o elemento objetivo da inter-
pretação – o texto da lei – e seu elemento subjetivo – a liberdade do
intérprete – que se apresentam como antitéticos em quase negação
mútua, Sálvio de Figueiredo116 realçando o caráter deontológico e nor-
mativo do processo hermenêutico e acolhendo lição de Tércio Sampaio
Ferraz Júnior, conclui:

“Não apenas estamos obrigados a interpretar (não há nor-


mas sem sentido, nem sentido sem interpretação), como tam-
bém deve haver uma interpretação e um sentido que preponde-

100
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

rem, e ponham um fim (prático) à cadeia das múltiplas possibi-


lidades interpretativas.”

Considerando-se a função exercida pelo Supremo Tribunal Federal


de guardião da Constituição e a função exercida pelo Superior Tribunal
de Justiça de guardião da legislação infraconstitucional, segue-se
como consectário natural o dever de obediência, pelos tribunais inferio-
res, das normas construídas pelos tribunais superiores no exercício de
seu labor exegético, decorrência inexorável que promana do princípio
da legalidade.
Sinale-se, à guisa de conclusão, que a função exercida pelos tribu-
nais superiores não é a de fazer justiça no caso concreto. No regime
federativo, os tribunais superiores não se destinam a corrigir todas as
eventuais falhas dos demais tribunais, mas salvaguardar a constitui-
ção, harmonizar e uniformizar a jurisprudência e, a título excepcional,
intervir no caso de decisões aberrantes ou manifestamente e em larga
escala iníquas. Não é por outro motivo que foram editadas as súmulas
5 e 7 do STJ e 279 e 454 do STF. Nesse sentido, ressai como consectá-
rio natural, a adoção do efeito vinculante para as decisões dessas cor-
tes que, ao se tornarem pacíficas no seio dos respectivos tribunais,
definem o exato sentido dos textos constitucional e legal, ali interpre-
tados construtivamente, que devem, obrigatoriamente constranger os
demais tribunais e juízos inferiores.

101
Capítulo 3
Democracia e Efeito Vinculante

1. Introdução

A palavra democracia não possui um sentido único, um conceito


unívoco, podendo assumir tantas significações quantos forem os con-
teúdos que a esse vocábulo se agreguem. Por tal razão, como nos
relembra José Nun, sua noção tenha se desfigurado no tempo, sendo
essa a explicação para o fato da literatura sobre o tema não ter outro
remédio que não o de buscar socorro nos epítetos diversos de democra-
cias a exemplo de transicionais, delegativas, de baixa intensidade,
relativas, incertas ou, inclusive, com uma significativa perversão voca-
bular, democracias autoritárias.1
Em verdade, a noção de democracia é problemática desde o prin-
cípio em função da própria dubiedade do significado da palavra demos:
Em um sentido o vocábulo se referia ao conjunto dos cidadãos; em
outro, designava a massa do povo, ou seja, os pobres, os incapazes,
analfabetos e até mesmo os malfeitores.
O vocábulo democracia, união de dois conceitos: demos, o povo e
kratos, governar, foi cunhado na Grécia, muito provavelmente em
Atenas. Apesar disso, ou talvez exatamente por isso, é importante
salientar que naquela cidade-estado grega, “embora a palavra demos
em geral se referisse a todo o povo ateniense, às vezes significava ape-
nas a gente comum ou apenas o pobre. Às vezes demokratia era utili-
zada por seus críticos aristocráticos como uma espécie de epíteto para
mostrar seu desprezo pelas pessoas comuns que haviam usurpado o
controle que os aristocratas tinham sobre o governo”.2
Isso explica porque os filósofos gregos que mais trataram sobre o
tema da democracia fossem verdadeiramente antidemocráticos, na
medida em que consideravam que a democracia, por representar o

103
Celso de Albuquerque Silva

governo dirigido pelo povo, ao qual se atribuíam não qualidades, mas


os vícios da licenciosidade, do desregramento, da incompetência, da
intolerância e da ignorância, não podia ser considerada como uma
forma ideal de governo.
Platão, no oitavo livro da República, ao descrever a democracia a
expõe como uma forma de governo popular que conduz a um estado de
desagregação social. Aristóteles seguindo na mesma senda ao discor-
rer sobre as diversas formas de governo, distinguindo os bons dos
maus, reserva para a democracia a qualificação de mau governo popu-
lar, pois que coloca a sociedade como refém de uma massa desprepa-
rada, incompetente, demagoga, corrupta e ignorante.
A mesma posição era defendida por Sócrates. Interessante saber
que a sua famosa frase “só sei que nada sei”, longe de significar uma
expressão de modéstia, em verdade tencionava, à sorrelfa, refrear as
ambições dessa heterogênea massa de pessoas que intentavam gover-
nar diretamente Atenas e, de tão incultas que eram, não possuíam
sequer consciência de sua ignorância. No tradicional debate sobre a
melhor forma de governo, a democracia foi quase sempre colocada em
último lugar. De qualquer sorte, apesar das críticas, a democracia era
aplicada pelos gregos, atenienses ou não, ao governo de Atenas e de
inúmeras outras cidades-estado gregas já por volta de 507 a.C.
Cerca de 2.500 anos depois do surgimento do primeiro governo
democrático conhecido e diversamente do que ocorria na Antigüidade,
quando à idéia de democracia se agregava um valor negativo, se obser-
va que hodiernamente se ajunta um valor altamente positivo a esse
termo. Nos tempos atuais não há regime algum, por mais autoritário,
por mais autocrático que seja, que não queira ser reconhecido como
“democrático”. Essa necessidade de reconhecimento do qualificativo
de democrático aos governos, encontrou expressão curiosa na justifica-
tiva apresentada por Talal Salman, editor do jornal libanês As-Safir,
para se desculpar pelo anúncio precipitado do resultado das eleições
americanas, quando afirmou:

“Estamos acostumados à profunda tradição árabe de democra-


cia em que os resultados são primeiros declarados, então as elei-
ções são realizadas e os eleitores comparecem para confirmá-los”.3

104
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Diante dessa “tradição árabe de democracia”, pleno de razão


Bobbio4 ao afirmar que, a julgar pelo modo como hoje qualquer regime se
autodefine como democrático, poderíamos dizer que no mundo já não
existem regimes não democráticos. Todos os regimes atuais, embora a
seu próprio e específico modo de configuração, seriam democráticos.
Atualmente é politicamente correto ser democrático e agregar ao gover-
no uma conotação positiva que a democracia antigamente não ostentava.

2. Democracia dos Antigos e Democracia dos Modernos

Quando se coteja as experiências democráticas antigas com as


atuais, visualiza-se desde logo duas diferenças básicas. A primeira dis-
tinção entre os dois tipos de democracia refere-se a uma circunstância
impensável para os gregos. A ampla, a maior possível, participação de
todos os cidadãos no processo de tomada de decisão. Em outro dizer, a
inclusão política. Todos os cidadãos, excetuados apenas aqueles inca-
pazes de gerir sua própria vida (crianças, adultos com deficiência men-
tal etc.), participam na formação das decisões políticas de sua coletivi-
dade. Essa circunstância era inaceitável para os gregos, devendo ser
registrado que uma grande parcela da população estava alijada do pro-
cesso político, bastando para confirmar tal assertiva a menção às
mulheres e aos escravos.
Outra distinção fundamental entre a democracia dos antigos e a
democracia dos modernos é que aquela era uma democracia direta,
enquanto esta é uma democracia representativa. Em outro dizer: na
democracia dos antigos todos os considerados cidadãos se reuniam
para juntos deliberarem sobre os assuntos da vida política, enquanto
que a democracia dos modernos se contenta em que os verdadeiros de-
tentores do poder político – os cidadãos – escolham aqueles que serão
seus representantes no processo de tomada de decisões políticas.
Curioso notar que o sistema representativo não possui raízes em
práticas democráticas, sendo mais um artifício utilizado por governos
não democráticos para facilitar a obtenção de rendas e outros recursos,
especial embora não exclusivamente, para fazer frente a despesas com
guerras. Catalina Vizcaíno,5 analisando as origens do princípio da lega-
lidade tributária, cuja feição moderna exige autorização do parlamento

105
Celso de Albuquerque Silva

para instituição ou majoração de tributos, nos dá um exemplo da utili-


zação de um sistema representativo por um governo não democrático.
Diz a jurista acolhendo lição de Sainz de Bujanda:

“El origen del princípio se remonta al 31 de marzo de 1091,


cuando Alfonso VI de España dirigió um documento al bispo y a
los habitantes de León sobre la imposición de um tributo extraor-
dinário a los infaziones y villanos, em cual especificaba que se lo
imponía com el consentimiento de quienes habían de satisfacerlo.
Se puede conjeturar que el consientimiento fue expresado em uma
reunión de la Curia Regia, em la cual se habría redactado el docu-
mento y posiblemente contó com la asistencia de villanos com
caráter muy excepcional, por la gravedade de las circunstancias.”

Analisando o surgimento do modelo representativo, Dahl escre-


veu: “de origens obscuras, aos poucos surgiu um parlamento represen-
tativo, que nos séculos futuros viria a exercer, de longe, a maior e mais
importante influência sobre a idéia e a prática do governo representa-
tivo: o Parlamento da Inglaterra medieval. Menos um produto intencio-
nal e planejado do que uma evolução às cegas, o Parlamento emergiu
das assembléias convocadas esporadicamente, sob a pressão de
necessidades, durante o reinado de Eduardo I, de 1272 a 1307”.6
O sistema representativo, portanto, era inicialmente uma institui-
ção não democrática, posteriormente enxertada na teoria e prática
democrática, pois possibilitaria ao Parlamento, com a ampliação da
base eleitoral representada, se transformar em um corpo mais repre-
sentativo que atenderia aos objetivos democráticos. De outro lado, a
representação obviava um problema insuperável da democracia direta
quando transplantada para Estados dotados de grande extensão terri-
torial; a impossibilidade física e temporal de reunir toda a população
para a deliberação dos assuntos de interesse do governo. Sobre a
representação democrática, Destutt de Tracy averbou: “a democracia
representativa é a democracia viável por muito tempo e sobre um ter-
ritório de grande extensão”.7

106
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

A substituição da democracia direta pela representativa deu-se,


portanto, fundamentalmente por questão histórica e eminentemente
fática: a impossibilidade de se reunirem rotineiramente todos os cida-
dãos dos complexos e territorialmente imensos Estados Modernos.
Mesmo na Grécia antiga onde os cidadãos eram em pequeno
número, não é crível que a participação do povo fosse absoluta. Ideal-
mente, uma participação total no processo decisório significava o direi-
to, titularizado por todos, de influir nas decisões não só pelo pronuncia-
mento no corpo soberano, mas principalmente pelo voto nas decisões.
Esse o ideal democrático. Entretanto, mesmo naquela época, esse pro-
cedimento era inexeqüível. Como sinala Finley:

“(...) na prática, as coisas eram diferentes. A assembléia ate-


niense normalmente se reunia num anfiteatro natural, na colina
denominada Pnyx, e é surpreendente que, em semelhante ajunta-
mento ao ar livre, de milhares de homens, que não dispunham de
modernos dispositivos amplificadores, freqüentemente com uma
pauta que devia ser cumprida em um único dia, o cidadão comum
desejasse ou ousasse pedir a palavra e fosse ouvido, se fizesse
isso...a evidência literária e epigráfica não deixa dúvida de que os
pronunciamentos e a real formulação de políticas e de proposições
constituíam um monopólio do que poder-se-ia chamar ‘pequena
classe política’.”8

Por essa razão Rousseau, embora tenha elogiado a democracia


direta, reconheceu que essa verdadeira democracia jamais existiu e
jamais existirá, apontando como algumas das causas para essa impos-
sibilidade a necessidade de existir um Estado muito pequeno, no qual
fosse fácil reunir o povo e onde cada cidadão conhecesse sem esforço
todos os demais e uma simplicidade de costumes que evitasse a acu-
mulação de questões e as discussões espinhosas.9
Nas sociedades atuais modernas compostas de vinte, duzentos
milhões e até um bilhão de pessoas, evidencia-se a total impossibilida-
de de instauração de uma democracia direta, sendo exigido necessaria-
mente algum sistema representativo. Mesmo os recentes avanços tec-

107
Celso de Albuquerque Silva

nológicos na área da computação e telecomunicação não oferecem os


meios necessários à implantação de uma democracia direta.
Como já alertava Rousseau, tal tipo de democracia não admite ques-
tões complexas ou espinhosas. Em nossas sociedades complexas atuais,
a maioria das questões teria que ser complexa e, por isso mesmo, os pro-
blemas dificilmente poderiam ser formulados tão especificadamente que
propiciassem respostas dos cidadãos que fornecessem uma clara diretriz
ao governo. As questões teriam que ser tão intrincadas, por exemplo,
como “quantos por cento de desemprego você admitiria a fim de reduzir
a taxa de inflação para x por cento? Ou, que aumento no imposto de renda
você admitiria para aumentar o salário dos aposentados ou os serviços de
saúde e em que percentagem se daria esse aumento”, que não permiti-
riam respostas objetivas, tipo sim e não, tornando impraticável sua racio-
nal catalogação e computação. Assim, mesmo que existissem normas
para iniciativa popular de questões e possibilidade de apresentação ele-
trônica dessas questões a todos os demais cidadãos, ainda assim, neces-
sariamente, os governos teriam que decidir muitas questões e, conse-
qüentemente, tomar várias decisões, inviabilizando um total processo
decisório feito pelos cidadãos diretamente.
As condições históricas que se alteraram enormemente desde a
transição da cidade-estado para os grandes Estados territoriais legiti-
maram a substituição da democracia direta pela representativa, mas
não são suficientes para explicar a segunda distinção – da massiva
inclusão dos cidadãos no processo político – o que só foi possível com
a instauração de uma nova concepção moral do indivíduo que passou
a ser reconhecido pela sua própria individualidade dotada de direitos
inalienáveis, consoante os postulados do iluminismo, dentre os quais
ressai com proeminência o direito a ser tratado com igual consideração
e respeito enquanto um ser dotado de razão e autonomia para decidir
seu próprio destino.
Para essa nova concepção moral do homem foi de importância fun-
damental a filosofia jusnaturalista, que promovendo uma verdadeira
revolução copernicana, transmudou súditos em cidadãos. Rompendo
com a tradição clássica, o modelo jusnaturalista promove uma radical
inversão de perspectiva na representação da relação política entre o
Estado e o cidadão que é característica da formação do Estado
Moderno. Neste Estado, essa relação é encarada do ponto de vista dos
direitos dos cidadãos frente ao Estado e não mais do ponto de vista dos
direitos do soberano em relação aos seus súditos, em franca correlação
com uma visão individualista da sociedade.

108
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Partindo-se de Locke, entende-se por concepção individualista da


sociedade, aquela na qual tem primado o indivíduo portador de valor
em si mesmo. Só depois vem o Estado, na medida em que este é forma-
do pelo conjunto de indivíduos que o compõe.O reconhecimento da
individualidade da pessoa humana afastou o último obstáculo a uma
concepção positiva da democracia, ou seja, a referência quase sempre
pejorativa ao corpo coletivo do demos, freqüentemente associado e
confundido com a massa, o vulgo, a plebe, os pobres etc...
A democracia não é mais entendida como o governo do povo, ou
seja, aquela massa considerada globalmente, mas sim como o governo
dos cidadãos agindo individualmente. Na democracia moderna a sobe-
rania não é do povo, mas de cada um dos indivíduos enquanto cida-
dãos. O individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça,
um voto. É certo que, como com sua peculiar clareza esclareceu Bobbio,
há individualismo e individualismo. Tratando sobre o tema assim pre-
leciona o jusfilósofo italiano:

“...Há o individualismo de tradição liberal-libertária e o indivi-


dualismo de tradição democrática. O primeiro arranca o indivíduo do
corpo orgânico da sociedade e o faz viver fora do regaço materno,
lançando-o ao mundo desconhecido e cheio de perigos da luta pela
sobrevivência, onde cada um deve cuidar de si mesmo em luta per-
pétua, exemplificada pelo hobbesiano bellum omnium contra omnes.
O segundo agrupa-o a outros indivíduos semelhantes a ele, que con-
sidera seus semelhantes, para que da sua união a sociedade venha
a recompor-se não mais como um todo orgânico do qual saiu, mas
como uma associação de indivíduos livres. O primeiro reivindica a
liberdade do indivíduo em relação à sociedade. O segundo reconci-
lia-o com a sociedade fazendo da sociedade o resultado de um livre
acordo entre indivíduos inteligentes. O primeiro faz do indivíduo um
protagonista absoluto, fora de qualquer vínculo social. O segundo faz
dele o protagonista de uma nova sociedade que surge das cinzas da
sociedade antiga, na qual as decisões coletivas são tomadas pelos
próprios indivíduos ou por seus representantes.”10

Circunstâncias fáticas, históricas e uma nova filosofia sobre o


homem possibilitaram, então, passar-se do paradigma democrático
grego de democracia de assembléia para o paradigma moderno de

109
Celso de Albuquerque Silva

democracia de representação, mas uma questão ainda resta em aber-


to. O que é a moderna democracia? É o que se buscará responder a
seguir, em termos de conceito abstrato, não de concepção concreta.

3. O que é democracia?

Ao se iniciar esse tópico uma advertência é de suma importância.


Não se pretende aqui responder de forma definitiva e ampla a pergun-
ta sobre o que seja democracia. Um rápido bosquejo na literatura sobre
o tema é suficiente para demonstrar que a essa pergunta têm sido
dadas resposta assustadoramente diferentes. O que se pretende, en-
tão, é algo bem mais simples. Apresentar um quadro de modelo teóri-
co acerca das características ideais que devem estar presentes para
que se reconheça um governo como sendo democrático. Uma outra
forma de dizer isso é afirmar-se que se está em busca de um conceito
abstrato de democracia e não de uma concepção concreta e última
dessa forma de governo.
Com efeito, em termos de concepções, as respostas à pergunta são
as mais variegadas possíveis. Para uns, democracia é entendida como
uma forma de governo que permite ao maior número de pessoas alcançar
a “boa vida”. É o caso da teoria utilitarista de Bentham ou da teoria pro-
tetora da felicidade do maior número de James Mill. Para outros, a demo-
cracia é a forma de governo que permite o desenvolvimento da natureza
humana. Em sua concepção democrática, John Stuart Mill parte da teoria
utilitarista, mas a ela agregou um valor moral de desenvolvimento da pes-
soa humana, para criar o seu modelo moral de democracia. A seu turno,
Joseph Schumpeter defende um modelo que concebe a democracia como
um simples método político para escolha e autorização de governos a
serem disputados pelas elites, sem qualquer conteúdo moral. Pode-se
mencionar, também, o modelo da chamada democracia participativa.
Este substancializa o conceito de democracia na medida que implica um
envolvimento maior do cidadão nos assuntos políticos de sua sociedade,
através de instrumentos que conduzem a uma mescla de democracia
representativa e direta. As diferenças entre esses modelos são de extre-
ma importância, mas, afortunadamente, para a conclusão do raciocínio
em curso não é necessário explicitá-las aqui.11

110
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

O que aqui se quer enfatizar é o papel central que certos valores


básicos possuem na configuração e reconhecimento de um modelo teó-
rico ideal de um governo democrático, independentemente da verifica-
ção concomitante de atual ou anterior existência desse governo em ter-
mos reais. Isso evitará as confrontações inevitáveis entre específicas e
concretas concepções de democracia, ao tempo em que permitirá ana-
lisar da compatibilidade ou não dessa forma de governo com a adoção
do efeito vinculante que é o objeto específico do trabalho.
Em termos de modelo teórico, Dahl12 informa que Democracia é a
forma de governo que proporciona oportunidades para: a) igualdade de
voto, b) participação efetiva dos cidadãos na política, c) aquisição de
entendimento esclarecido, d) exercício do controle efetivo do planeja-
mento, e) inclusão dos adultos. O critério da letra “a” decorre direta e
imediatamente do direito ao igual tratamento, consideração e respeito
conferido a todo indivíduo enquanto pessoa humana. Os critérios das
letras “b” e “c”, embora também decorram mediatamente do princípio
da igualdade, defluem do valor liberdade. De nada adiantaria possuir
direito de igual voto se a pessoa não fosse livre para manifestar sua
opinião em igualdade de condições, o que só pode ser alcançado efeti-
va e eficazmente se tiver oportunidades razoáveis para aprender sobre
o assunto em discussão e sobre políticas alternativas. O critério da
letra “d” é em verdade uma garantia de eficácia dos critérios das letras
“a”, “b” e “c”, pois se o que fosse objeto de discussão e aprovação não
estivesse em mãos de todos, mas apenas de uma pequena parcela da
coletividade, essa “igrejinha” jamais poria em votação políticas que
contrariassem seus interesses. O último critério, referente à inclusão de
todas as pessoas capazes, está relacionado com a necessidade de, em
uma sociedade pluralista, garantir-se voz para promover e proteger
todos os interesses presentes na coletividade.
Nesse sentido mais abstrato, pode-se afirmar que democracia traz
à mente a idéia de um autogoverno coletivo. Coletivo porque emana da
totalidade (ou melhor, a quase totalidade, excetuados os incapazes e
os que estejam de passagem) dos indivíduos que compõem o corpo
social que, embora cidadãos dotados de individualidade, são também
seres sociais não podendo ser considerados como mônadas isoladas.
Embora único enquanto pessoa, o indivíduo só realiza plenamente seus
fins na vida social.

111
Celso de Albuquerque Silva

Com efeito, a característica de um Estado Democrático reside na


particularidade de estar estruturado em uma cidadania ativa o mais
extensa possível, conduzindo a que o poder se exerça em nome de
contextos de sentido e valores políticos que os governados sentem
como seus; como aportados ou, ao menos, ativamente aprovados por
eles. Democracia é autodeterminação e isso só é possível em função
do reconhecimento de que os cidadãos são iguais e livres.
O sufrágio universal presente nas modernas democracias é uma
aplicação do princípio da igualdade na medida em que considera
titularizados os direitos políticos, tanto pelos homens quanto pelas
mulheres, tanto pelos pobres, quanto pelos ricos, tanto pelos letra-
dos quanto pelos analfabetos. Também é uma expressão do princípio
da liberdade, na medida em que se reconhece o direito de cada um
de participar do poder político, exercendo ativamente sua cidadania
com o que transparece a sua autonomia, ou seja, a possibilidade con-
ferida a um e a todos de orientar seu próprio querer num processo de
tomada de decisão sem ser determinado pelo querer de outros.
Analisando os fundamentos da Constituição Portuguesa, Cano-
tilho e Vital Moreira,13 resumiram em três os fundamentos estrutu-
rantes do princípio democrático, a saber: a liberdade, a igualdade e
a solidariedade social. Para José Afonso da Silva,14 a democracia
constitui instrumento de realização no plano prático dos valores da
igualdade e liberdade.
Sinala Habermas,15 que a função do Estado Democrático de
Direito é “servir em última instância, à auto-organização política
autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu com o auxílio do
sistema de direitos, como uma associação de membros livres e iguais
do direito”. A idéia de democracia é uma síntese das idéias de liber-
dade e igualdade.16 Igualdade e Liberdade são, portanto, valores
que servem de fundamento à democracia. A igualdade já foi tratada
no Capítulo 1 para o qual remetemos o leitor. Resta, portanto, anali-
sar o valor liberdade.

112
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

4. Liberdade

Liberdade é um conceito genérico, vazio, que precisa ser preenchi-


do se se quer alcançar um significado relevante em termos de linguagem
política. Por isso, como nos relembra Nun,17 há um século e meio atrás
Lincon já advertia que seu país necessitava com urgência de uma defi-
nição da palavra liberdade porque se havia desfigurado em excesso: “o
mundo nunca tem uma boa definição para essa palavra” – se lamentava.
“Todos estamos decididamente a favor da liberdade, apenas nem sem-
pre pensamos o mesmo quando a palavra sai de nossos lábios”.
A dificuldade para definirmos o que seja liberdade decorre em um
primeiro momento do fato de liberdade designar um estado de uma pes-
soa, ou seja, uma qualidade ou característica que se agrega a alguém,
tendo por consectário lógico que, em termos valorativos, seus significa-
dos necessariamente se agreguem aos valores defendidos por quem a
invoca. Decerto que o significado de liberdade para os opressores não
se confunde com o significado de liberdade para os oprimidos.
Nada obstante as dificuldades inerentes à tarefa de definir o sen-
tido do vocábulo liberdade, esta não pode ser negligenciada ou evita-
da. Quando nos encontramos diante de uma dificuldade para se desco-
brir o que algo é, muitas vezes nos ajuda quando identificamos o que
ela não é. Assim, começaremos com o que Liberdade não significa.
Parece claro que liberdade não significa licenciosidade, ou seja, não
pode significar que as pessoas são livres para fazer tudo o que elas
queiram fazer independentemente das conseqüências para os outros.
Se liberdade tivesse esse sentido, uma sociedade que não proibisse o
furto, o assassinato, danos à propriedade alheia, seria radicalmente
libertária. Entretanto, não poderia, também, ser segura, próspera,
poderosa ou mesmo agradável.18 Não me parece que essa concepção
de liberdade possa ser razoavelmente defendida.
Liberdade não pode significar a impossibilidade de qualquer restri-
ção por parte do Estado no agir dos seus cidadãos, como se toda intrusão
representasse uma invasão abusiva de sua liberdade. O que se reconhe-
ce constitucionalmente é que existem certas esferas da vida dos cidadãos
que, de regra, ao Estado é vedado intervir ou limitar. Para proteger essas

113
Celso de Albuquerque Silva

específicas áreas do agir humano foram criados certos direitos chamados


direitos de liberdade, v.g., liberdade de manifestação, liberdade religiosa,
liberdade sexual etc., que não podem ser limitados pelo Poder Público
sem que exista uma especial justificação mais poderosa e transcendente
do que a ordinária justificação exigida para outras decisões políticas,
incluindo as limitações em outras áreas do agir humano que não se
encontram protegidas por esses específicos direitos de liberdade.
Nessa linha de pensamento, liberdade significa ausência de restri-
ção por parte do Estado a determinadas áreas do agir humano que são
protegidas por um conjunto de direitos que exigem do Estado uma
especial justificação para interferência e limitação daqueles específi-
cos componentes do agir de seus cidadãos. Esses direitos à liberdade
normalmente incluem um mínimo de liberdade de consciência, mani-
festação e religião, além de liberdade de escolha no que concerne a
aspectos centrais da pessoa como ser humano, relativos à intimidade
da vida pessoal do cidadão, ou referenciadas as suas preferências
sexuais, educação dos filhos, matrimônio, procriação, saúde etc.
Essa concepção de Liberdade como direito e não como licenciosi-
dade permite-nos afirmar que ela pode sofrer – e de fato sofre – restri-
ções diante de algum outro objetivo político considerado merecedor de
uma proteção ainda mais especial. Com efeito, embora reconheçamos
a importância da defesa das liberdades básicas, o certo é que permiti-
mos inúmeras restrições ao seu exercício sem que admitamos existir
qualquer violação aos nossos direitos de liberdade. De fato, nós limita-
mos por inúmeras maneiras a liberdade de expressão com o simples
objetivo de evitarmos barulho em horas inconvenientes e proteger
nosso direito a um tranqüilo repouso; limitamos a liberdade de escolha
em termos de educação para garantir que todas as crianças sejam alfa-
betizadas, quando obrigamos seus pais, sob pena de prática de crime,
a matriculá-las na escola; limitamos, inclusive, a liberdade de opção
sexual, para garantir à maioria uma moralidade que ela deseja e o direi-
to resguarda, quando não permitimos o casamento de homossexuais.
Da mesma maneira, aceitamos restringir a liberdade contratual da
parte mais forte para obtermos ganhos de igualdade econômica, ao
protegermos a parte mais fraca da relação contratual, a exemplo das
normas de ordem pública do código de defesa do consumidor.
A razão porque admitimos tais restrições sem consideramos que
nossa liberdade esteja sendo violada, é porque não consideramos a
liberdade valiosa em si mesma, independentemente das conseqüên-
cias que sua defesa possa ter na vida dos outros e na nossa mesma.

114
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Pelo contrário, a liberdade só é considerada valiosa exatamente por


causa das conseqüências boas que nós consideramos que ela produz
na vida das pessoas. Liberdade não tem um valor intrínseco, separado
do papel que possui na vida dos que dela desfrutam (se tivesse essa
importância metafísica fundamental, não poderíamos jamais restringir
a liberdade de expressão apenas para dormirmos mais tranqüilos). A
defesa dos direitos da liberdade necessariamente passa pela premissa
de que o exercício dessas liberdades conduz a uma vida melhor que a
vivida sob quaisquer outras circunstâncias.
Liberdade, portanto, se refere à independência, à autonomia que
possui o indivíduo de, como pessoa moral que é, raciocinar, refletir e se
conduzir por si próprio dentro de uma moldura jurídico-política. Isso
envolve a capacidade de deliberar, julgar, escolher e agir diante de
diferentes possibilidades de condutas seja no âmbito privado, seja no
âmbito público. Para David Held,19 por autonomia se deve entender
que “as pessoas devem desfrutar direitos iguais e, correspectivamen-
te, iguais obrigações na especificação do quadro político que gera e
limita as oportunidades a elas disponíveis; isto é, elas devem ser livres
e iguais na determinação das condições de suas próprias vidas, en-
quanto elas não violarem esse quadro político, negando os direitos dos
outros”. De ver-se, portanto, que o conceito de liberdade não é abstra-
to e absoluto, mas antes está vinculado a um específico quadro jurídi-
co-institucional que tem como premissa limitadora-valorativa os direi-
tos dos demais membros da coletividade.

4.1. Dois conceitos de liberdade

Em termos descritivos, esse termo na linguagem política possui


no mínimo dois sentidos diferentes, quando são relacionados ao querer
ou ao agir dos indivíduos, respectivamente. Nessa ótica, a doutrina
costuma dividir o conceito unitário de liberdade nos de liberdade nega-
tiva (agir) e positiva (querer).

4.1.1. Conceito de liberdade negativa

O conceito de liberdade negativa na linguagem política conecta-


se com a idéia de ausência de impedimentos exteriores à ação do agen-

115
Celso de Albuquerque Silva

te. A liberdade do homem existe na medida em que nenhum outro


homem ou grupo de homens interfere com as suas atividades. Nesse
sentido, liberdade pode ser conceituada como a área que alguém pode
agir sem sofrer a obstrução de outrem. Se estou impossibilitado de
fazer, por cerceamento levado a cabo por terceiros, aquilo que, se não
existisse tal restrição poderia fazer, deixo de ser livre nessa medida.
Assim, quanto mais ampla a área de não interferência, mais ampla será
a minha liberdade.
O conceito de liberdade negativa contrapõe-se ao de coerção, se
por coerção se considera qualquer deliberada interferência de tercei-
ros na área em que o indivíduo poderia atuar; seja impedindo-o de
fazer algo que tencione, tornando certas opções impossíveis para
essa pessoa, seja praticando atos que coajam ou manipulem o agen-
te na escolha das opções, constrangendo-o a fazer algo diverso do
que colimava. Daí porque é comum na linguagem política a referên-
cia à liberdade negativa como sendo a ausência de impedimento e
de constrangimento.
A defesa dessa liberdade consistindo na meta negativa de contra-
por-se à interferência, caracteriza o reconhecimento do desejo do
homem de ser deixado sozinho, garantindo-lhe um núcleo de privacida-
de (right to be alone) reputado como algo sagrado pertencente à esfe-
ra de sua própria personalidade e dignidade enquanto pessoa. Esse é
o significado da liberdade que tem sido concebido pelos liberais do
mundo moderno. Liberdade como não interferência.
A liberdade absoluta, entretanto como já visto anteriormente, é
um ideal-limite impossível de ser atingido. De fato, apesar de seu forte
apelo emocional positivo, a liberdade como qualquer princípio admite
exceções e restrições em sua aplicação. A idéia de direitos ou princí-
pios absolutos possui conotação anti-social. Daí porque continua a ser
verdadeiro o fato de que a liberdade de alguns, em determinadas oca-
siões, precisa ser restringida para que se possa assegurar a de outros.
A idéia chave na concretização do princípio da liberdade é que deve ser
conferida ao indivíduo a maior margem de liberdade possível compatí-
vel com as liberdades dos demais indivíduos. Por tal razão a moderna
idéia republicana sobre liberdade a entende não como não interferên-
cia, mas como não dominação.
A diferença, embora sutil, possui inegáveis contrastes. A liberda-
de como não dominação significa que o indivíduo é livre na medida em

116
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

que ninguém tem a capacidade de interferir arbitrariamente em sua


vida ou seus assuntos.20
A distinção entre as duas concepções de liberdade, é que liberda-
de como não interferência, invoca a noção de interferência, enquanto
que liberdade enquanto não dominação, indo além, invoca a noção de
interferência arbitrária. Uma interferência é considerada arbitrária
quando o ato praticado está submetido somente ao arbítrio, decisão ou
julgamento do agente, que se coloca numa posição de praticá-lo ou não
a seu bel prazer.21
Nesse modo de pensar, liberdade é o estado de que desfruta o
indivíduo que incapacita terceiros a interferir em seus assuntos (ou ter
a possibilidade de fazê-lo) de forma arbitrária, ou seja, tomando por
base para a prática do ato apenas a visão pessoal de bem ou do mundo
externada por aquele que promove a intrusão. Assim, a interferência
estatal baseada em pressupostos de defesa do bem comum e de prin-
cípios normativos partilhados pela comunidade não é considerada
como ofensiva à liberdade individual, na medida em que, como já afir-
mava Rousseau, a liberdade está associada à participação na formação
da vontade geral, que estabelece igualdade entre os cidadãos na qual
eles podem desfrutar dos mesmos direitos.

4.1.2. Conceito de liberdade positiva

Liberdade positiva na linguagem política equivale à autodetermi-


nação. Traduz uma situação em que o indivíduo orienta suas decisões
com base em sua vontade, sem depender ou estar vinculado aos dese-
jos ou querer de outra pessoa.
Essa liberdade reflete um estado em que o indivíduo se reconhece
como um ser dotado de caracteres emocionais e também racionais que
o capacitam a direcionar suas decisões por critérios e valores intrínse-
cos, mediante referência a suas próprias idéias, desejos e objetivos.
Liberdade positiva remete ao tema da autonomia, ou seja, deter-
minar-se a si próprio e não ser determinado pelos outros, como exem-
plarmente explicitado no pensamento de Isaiah Berlin: “O sentido ‘po-
sitivo’ da palavra ‘liberdade’ tem origem no desejo do indivíduo de ser

117
Celso de Albuquerque Silva

seu próprio amo e senhor. Quero que minha vida e minhas decisões
dependam de mim mesmo e não de forças externas de qualquer tipo.
Quero ser instrumento de mim mesmo e não dos atos da vontade de
outros homens. Quero ser sujeito e não objeto, ser movido por razões,
por propósitos conscientes que sejam meus, não por causas que me
afetem, por assim dizer, a partir de fora”.22
O autor que celebrou a liberdade positiva foi Rousseau ao definir a
liberdade civil como o fato de obedecer só a si mesmo, na medida em
que ao agregar sua vontade com as dos demais para a formação da
vontade geral corporificada pela lei, “a obediência a lei que se estatuiu
a si mesmo é liberdade”.23

4.1.3. A liberdade na Democracia

A democracia assegura o direito à liberdade em seu todo unitário.


A proteção à chamada liberdade negativa vem da própria tradição e
formulação do Estado de Direito Liberal Burguês que tem como susten-
táculo jusfilosófico a instituição e o reconhecimento de um estatuto
jurídico-protetor negativo do cidadão frente ao Estado. Como é cediço,
são três as características básicas do Estado Liberal de Direito, a sa-
ber: a) submissão ao império da lei, b) separação de poderes, c) enun-
ciado e garantia dos direitos individuais. Essa última garantia é exata-
mente a que protege os direitos civis, também conhecidos como direi-
tos de liberdade, na sua concepção negativa.
O Estado democrático de direito é um passo além, embora indis-
sociavelmente ligado à idéia de Estado de Direito. No particular con-
cordamos com Canotilho e Vital Moreira,24 quando afirmam que o
Estado de Direito só o é verdadeiramente enquanto democraticamente
legitimado tanto pela sua formação quanto pelo seu conteúdo. Por ou-
tro lado, o Estado Democrático só o é genuinamente enquanto a sua or-
ganização e funcionamento assentam no direito e não na prepotência.
No que concerne à defesa das liberdades positivas na democracia,
esta pode ser visualizada na enunciação e reconhecimento da sobera-

118
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

nia popular como fonte primeira e última do domínio do homem sobre


o homem. A autoridade política só pode derivar do próprio povo (dire-
tamente ou mediante representação eleitoral), pois é o povo que detém
a titularidade da soberania ou do poder político.
Essa liberdade consistente na manifestação da vontade do cida-
dão quanto ao conteúdo das decisões políticas de sua comunidade
pode se dar de forma direta através dos institutos do plebiscito ou refe-
rendo, ou, indireta, através do direito de sufrágio, direito público subje-
tivo de natureza política que tem o cidadão de eleger, ser eleito e de
participar da organização e da atividade do poder estatal. Discorrendo,
no particular, sobre a função de uma constituição democrática, Klaus
Stern25 averbou:

“a) La Constitución tiene como tarea garantizar y assegurar la


libertad y la autodeterminación del individuo. Este elemento
essencial de la Constitución estaba ya tambiém incluído en el Art.
16 de la Declaración de Derechos del Hombre...La idea de la
Constitución y la declaración de derechos son ‘dos irradiaciones
de la misma atmósfera espiritual’...La Constitución ‘verdadera’ y
completa sólo nasce cuando en ella se contiene la posición básica
del individuo en el Estado, en especial los derechos subjetivos fun-
damentales del hombre frente al poder del Estado. Los derechos
fundamentales de la libertad personal y política. El orden de la
libertad y del poder no son en una constitución elementos contra-
puestos, sino una estructura inseparable. Se trata de contenidos
inescindibles. La unión de ambos en el documento constitucional
es la gran conquista de finales del siglo XVIII... Esta síntesis dió
su cuño al Estado Constitucional moderno. Los derechos funda-
mentales hicieron que la Constitución se convirtiera ao mismo
tiempo en ‘basis and foundation of government’. Si se sigue la his-
tória del desarrollo de la idea moderna de la Constitución y de los
derechos fundamentales, resulta acertada la afirmación de C.
Schmitt según la cual ‘la Constitución no es en primeira línea
poder y brillo des Estado, sino liberté, protección del ciudadano
frente ao abuso del poder estatal’.”

119
Celso de Albuquerque Silva

b) Pero la Constitución no pretende simplesmente garantizar


la libertad frente ao Estado, sino también la libertad en el Estado,
es decir, la participación del ciudadano en el poder del Estado y su
legitimación mediante el ciudadano. En este sentido se trata da
transformación del ciudadano de objeto de la política (súbdito) en
sujeto de la política (ciudadano). La constitución assegura en con-
secuencia los derechos de participación essenciales, como el dere-
cho de elección y ao acesso a los cargos públicos. Esta idea de la
democracia fue la que, juntamente com la idea de libertad, dió su
cuño al Estado Constitucional moderno.” (grifos no original)

Liberdade e democracia são conceitos indissociáveis. A democra-


cia é a forma de organização política que permite o florescimento e de-
senvolvimento da liberdade individual, ao possibilitar, de forma mais
ampla e abrangente, a busca da felicidade pessoal de cada indivíduo.
Quanto mais o processo de democratização avança, mais o homem se
liberta dos obstáculos que o constrangem e mais liberdade conquista.26

5. Democracia e efeito vinculante

No presente tópico se pretende demonstrar que a adoção do efei-


to vinculante das decisões dos tribunais superiores é consectário do
princípio democrático, ou pelo menos, o que é uma tese mais débil, não
é incompatível com a idéia de democracia. A argumentação, a exemplo
do que vem sendo feito, se fará em ternos de modelo ideal e não de
regimes democráticos reais, se bem que a abordagem empírica seria
mais fácil e cômoda. Nessa hipótese, bastaria a remissão a experiên-
cias alienígenas da adoção desse instituto, v.g., nos Estados Unidos,
Grã-Bretanha, Espanha, Alemanha etc., todos países democráticos,
para demonstrar e comprovar a compatibilidade da democracia com o
efeito vinculante. Seguiremos, porém, com a linha metodológica até
aqui utilizada.
Por efeito vinculante deve ser entendida a obrigatoriedade das
cortes inferiores seguirem o entendimento esposado pelas Cortes
Superiores quanto ao sentido da lei em um determinado suposto con-
creto, toda vez que esse suposto for trazido novamente à apreciação do
judiciário. Essa obrigatoriedade tem sido, então, acoimada de autoritá-

120
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ria e, conseqüentemente, antidemocrática por violar a liberdade de jul-


gar de todo e qualquer órgão jurisdicional.
Democracia, a seu turno, pode ser conceituada como a auto-orga-
nização política autônoma de uma comunidade, a qual se constituiu
com o auxílio do sistema de direitos, como uma associação de membros
livres e iguais do direito. Igualdade e liberdade são, portanto, valores
imanentes e intrínsecos da democracia. A questão que se põe nesse
modelo teórico ideal é como se deve solucionar a tensão que pode exis-
tir entre a liberdade de pensar e agir autonomamente que, como igual,
todo indivíduo tem, quando confrontado com uma decisão política não
unânime e da qual eventualmente discorde. É o que se abordará no
tópico a seguir.

5.1. O princípio majoritário

O ideal da auto-organização social é que ela conte com o apoio de


todos e que seja fruto de uma decisão unânime. O ideal limite da liber-
dade seria, então, plenamente alcançado. Ocorre que, como já assinala-
do anteriormente, essa liberdade absoluta é uma utopia. Mesmo em ter-
mos de modelo teórico não se pode afastar hipóteses em que a persegui-
ção de um objetivo por um ou alguns membros da coletividade implica-
rá necessariamente na restrição ou limitação da liberdade de outros. Daí
porque se afastou a idéia de liberdade como ausência de qualquer restri-
ção ou interferência, para compreendê-la como ausência de restrição ou
interferência arbitrária. É que uma ordem social genuína é incompatível
com a ausência de alguma interferência. Assim, se como ocorre na demo-
cracia, se reputa a liberdade como um valor base de organização social,
há que se encontrar técnicas que possibilitem limitar esse valor, apenas
no mínimo essencial, para permitir a existência de uma sociedade juridi-
camente organizada. Em sede de decisões democráticas essa técnica se
consubstancia na adoção do princípio da maioria.
No que diz respeito às modalidades de decisão, a regra fundamen-
tal da democracia é a regra da maioria, ou seja, a regra à base da qual
são consideradas decisões coletivas – e, portanto, vinculatórias para
todo o grupo – as decisões aprovadas ao menos pela maioria daqueles
a quem compete tomar a decisão.27 Tratando da questão da legitimida-

121
Celso de Albuquerque Silva

de das decisões na democracia em sua tensão dialética com a liberda-


de individual é exemplar a argumentação de Kelsen, quando expõe:

“O grau máximo possível da liberdade individual, e isso quer


dizer a aproximação máxima possível do ideal de autodetermina-
ção compatível com a existência de uma ordem social, é garantido
pelo princípio de que uma modificação da ordem social requer o
consentimento da maioria simples dos sujeitos desta...Como liber-
dade política significa acordo entre a vontade individual e a von-
tade coletiva expressada na ordem social, é o princípio da maioria
que assegura o grau mais alto de liberdade política possível den-
tro da sociedade.”28

A democracia, portanto, tem como suporte ineliminável o princípio


majoritário. Apesar disso, ou talvez exatamente por isso, não existe um
preceito constitucional a reconhecer o princípio majoritário como prin-
cípio constitucional geral. Várias normas apontam, porém, nesse senti-
do. No artigo 60, § 2o, exige-se uma maioria altamente qualificada de
três quintos dos votos dos membros do Congresso Nacional para ser
aprovada emenda constitucional; no artigo 66, § 4o, exige-se maioria
absoluta para derrubada de veto presidencial; o artigo 69 exige o
mesmo quorum para aprovação das leis complementares; o princípio
da maioria é, ainda, mencionado a propósito da declaração de incons-
titucionalidade das leis ou ato normativos do Poder Público, pelo Poder
Judiciário.
O efeito vinculante decorre do princípio democrático quando se
tem em conta sua função de reforçar o princípio da regra da maioria.
Como se sabe, o ideal democrático é que a legislatura inove na ordem
jurídica fazendo leis, que o Executivo as execute de ofício e que o
Judiciário as aplique na resolução de uma determinada lide. A realida-
de, porém, didaticamente, cuidou de demonstrar que o Poder
Legislativo não pode prever e, portanto legislar, sobre todas as situa-
ções do mundo da vida.
Por outro lado em inúmeras hipóteses, o Legislativo premeditada-
mente evita a regulação de certas questões, ou as regula de forma
ambígua, vez que os atos legislativos decorrem seguidamente de com-
promissos entre várias forças e valores, o que torna esse Poder muitas

122
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

vezes incapaz de fazer escolhas políticas difíceis. A conseqüência


dessa característica intrínseca da Legislatura é “que a legislação é
redigida continuamente em termos vagos; muitas vezes deixando deli-
cadas escolhas políticas à fase da sua interpretação e aplicação”.29
Tais ambigüidades são, via de regra, resolvidas por decisões judi-
ciais. “As Cortes Judiciárias, único dos Poderes do Estado que não é
eleito, rotineiramente escolhem entre uma variedade de possíveis
interpretações daquele ato legislativo, qualquer das quais o Poder
Legislativo poderia ter legitimamente escolhido.”30
Ao se seguir estritamente uma regra de efeito vinculante quanto
àquela interpretação adotada pela Suprema Corte, as Cortes Judiciá-
rias podem enviar um claro sinal ao Congresso de que ele não pode
abdicar completamente de sua função legislativa. Dessa forma, seguin-
do estritamente uma determinada interpretação da lei dada pela Corte
Superior, o Poder Judiciário pode dar importante contribuição na afir-
mação de importante valor democrático.
Assim, recusando-se a usurpar a regra da maioria que pertence ao
Legislativo, as Cortes podem impor aos cidadãos eleitores o ônus (rec-
tius: direito) de instar a legislatura a corrigir qualquer interpretação
politicamente errônea ou inconveniente porventura levada a efeito pelo
Judiciário. O presidente da Suprema Corte Americana na década de 40,
Justice Stone foi o maior expoente dessa orientação. Ele argumentou
que, se o congresso não modifica uma lei para invalidar a interpretação
dada pelo precedente judicial e, especialmente, se ele reedita a lei sem
mudar a sua linguagem operativa, presume-se que o congresso apro-
vou a interpretação judicial.31
Na orientação jurisprudencial norte-americana é recorrente o
argumento da capacidade do Poder Legislativo de reverter uma “errô-
nea” interpretação da intenção legislativa, como a principal justifica-
ção das cortes para a sua extraordinária relutância em invalidar um
precedente baseado na interpretação de uma lei (statute-based prece-
dents). “A maioria em Johnson v. Transportation Agency of Santa Clara
City recentemente capturou a essência desse argumento: quando uma

123
Celso de Albuquerque Silva

corte diz para a legislatura: ‘você (ou seu predecessor) disse X’ nós
quase convidamos a legislatura a responder: ‘nós não dissemos não’.”32
Poder-se-ia argumentar, como se faz na experiência norte-america-
na, que esse argumento não se aplica quando se trata de interpretação
constitucional dada a maior dificuldade de se aprovar uma emenda à
constituição. Essa linha de argumentação é mais prática do que teóri-
ca. Se houver vontade, o congresso, porque detém esse poder, inevita-
velmente corrigirá a interpretação judicial ainda que via emenda cons-
titucional. As exceções das cláusulas pétreas, exatamente por serem
exceções não são fatais para a argumentação. Por outro lado, a realida-
de brasileira – que é o que em última instância importa – demonstra a
relativa facilidade para se emendar a constituição, inclusive, quando o
Legislativo desaprova a interpretação dada pelo Supremo Tribunal Fe-
deral. Um claro exemplo dessa hipótese, pode ser visualizado na recen-
te decisão do STF que, ao interpretar o artigo 29, IV, da Constituição,
reconheceu que referido dispositivo constitucional estabeleceu um cri-
tério de proporcionalidade aritmética para o cálculo do número de
vereadores, não remanescendo aos Municípios autonomia para fixar
esse número discricionariamente.33 Essa interpretação reduziu o nú-
mero de vereadores nos municípios brasileiros. Discordando da inter-
pretação conferida a sua intenção, o Legislativo imediatamente ressus-
citou propostas de emenda à constituição existentes sobre o tema, que
modificam o teor da decisão judicial, imprimindo célere processamen-
to.34
Como se sabe, em uma democracia é o Poder Legislativo o órgão
democraticamente legitimado a tomar as decisões políticas fundamen-
tais no mister de outorgar a boa vida aos cidadãos. O caráter da repre-

124
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

sentatividade das modernas democracias não reduz esse papel funda-


mental. A uma, porque em razão do princípio da inclusão, todos (tiran-
te os incapazes e que estão de passagem) podem eleger seus represen-
tantes e postular o direito de serem eleitos como representantes. A
duas, porque a representação significa atuação no interesse do povo e
disposição para responder em congruência com os desejos e necessi-
dades dos representados.35 Se não agirem de conformidade com esse
sentido valorativo, os representantes podem ser periodicamente remo-
vidos o que não ocorre com os membros do Poder Judiciário. Nesse sen-
tido, o efeito vinculante contribui para a “preservação do princípio da
separação de poderes ao reforçar o judicial restraint”,36 e reconhecer
que o poder criativo do judiciário não possui a mesma amplitude e lar-
gueza do Poder Legislativo.
Em síntese, o efeito vinculante não é em si mesmo um princípio
democrático, na medida em que não altera em nada a natureza auto-
crática de qualquer decisão judicial. Entretanto, sua adoção promove,
ainda que indiretamente, a regra-valor da maioria ao capacitar o judi-
ciário para resistir à tentação de repetidamente “legislar” – ainda que
para o caso concreto – sobre o mesmo assunto, interpretando e reinter-
pretando uma particular norma legal.

5.2. Democracia e independência judicial

Como já averbado anteriormente, a adoção do efeito vinculante


tem sido acoimada de autoritária e de andar às testilhas com os princí-
pios que informam o Estado Democrático de Direito, notadamente o da
independência judicial funcional (independência com relação aos
Tribunais) que visa preservar o juiz de ingerências que possam ocorrer
dentro da própria instituição.37
O cerne dessa argumentação reside na idéia de que o princípio da
independência judicial teria por finalidade garantir que no processo de
mediação entre a lei e cada um dos tribunais não se interpusesse qual-
quer poder, mesmo que emergente de sua unidade de corpo, suscetível
de frustrar o êxito incondicional da lei ou que pudesse filtrá-la e desviá-

125
Celso de Albuquerque Silva

la mediante quaisquer outras intenções normativas, que não pura e


exclusivamente as legalmente prescritas.38 Esta tese postula a defesa
intransigente de uma “liberdade individual” do juiz de aplicar a lei vin-
culado apenas aos ditames de seu “livre” convencimento.
Luiz Flávio Gomes39 expressamente assume essa defesa ao aver-
bar: “O que está em jogo, em última análise é a ‘liberdade individual’
do juiz, bem como uma das bases do próprio modelo de Estado instituí-
do pela nossa Constituição de 1988. Quando Montesquieu, no seu
famoso livro XI, Capítulo VI, do O Espírito das Leis delineou a separa-
ção de poderes, tinha em mente exatamente a organização estatal e a
liberdade individual”.
O que se pretende demonstrar é que tais críticas partem de uma
premissa falsa, estando equivocados aqueles que reconhecem no efei-
to vinculante um instrumento que ameaça a ordem democrática por
partirem de uma visão distorcida do que seja e qual a função da inde-
pendência judicial. Mais do que isso se pretende demonstrar que tal
instituto guarda, ao revés, plena compatibilidade com a democracia,
através da íntima relação que mantém com os princípios estruturantes
daquela: a igualdade e Liberdade.

5.2.1. Independência judicial e imparcialidade


Inicio este tópico na tentativa de desfazer alguns equívocos,
desde logo postulando o entendimento de que liberdade e independên-
cia judicial são institutos distintos. A falta de um nítido critério de dis-
tinção entre esses termos tem provocado deploráveis confusões e con-
duzido a discussões estéreis. O critério que proponho para evidenciar
a diferença é o da finalidade. Esclareço.
Liberdade é um valor em si mesma. Ou seja, é um estado de uma
pessoa, ao qual se agrega significado emotivo extremamente positivo e,
portanto é, em última instância, uma meta desejável que tem por finali-
dade afastar um poder opressivo. A independência judicial é somente
um meio para se alcançar determinado fim. A separação e independên-
cia dos poderes compõem um sistema que “aparece como resultado de
um processo lógico-racional para assegurar a vigência da liberdade”.40
O objetivo expresso desse sistema é evitar que aquele que crie a lei,

126
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

também a execute e/ou a aplique na solução de um litígio. A divisão de


poderes tem como repercussão na esfera judicial, em termos publicis-
tas, a outorga da independência judicial como forma de garantir o dis-
tanciamento e, portanto, a imparcialidade do Estado Jurisdição frente
ao Estado Administração/Legislação. A independência judicial é garan-
tia instrumental destinada a assegurar imediatamente a imparcialidade
das decisões que os jurisdicionados recebem e mediatamente a liberda-
de individual dos cidadãos, não do próprio Estado juiz.
O princípio da imparcialidade, a seu turno, visa refrear um abuso
característico de qualquer sociedade na qual há governantes e gover-
nados: o abuso derivado do juízo parcial, que é aquele dado por uma
das partes em conflito. Da limitação desse abuso deriva uma garantia
de liberdade do indivíduo contra o Estado, na medida em que o Poder
Executivo não pode prevaricar com o Judiciário em função da indepen-
dência pessoal deste em relação àquele. Liberdade é fim, enquanto
independência judicial é meio para se alcançar um fim. Esta, em última
instância, visa outorgar uma (não a única) garantia da liberdade do
indivíduo frente ao Estado. Um fim não pode, sob pena de confusão
conceitual, confundir-se com o meio. Repise-se, a independência judi-
cial é um instrumento de concretização do princípio da imparcialidade.
A questão atinente à imparcialidade do Estado remonta, ainda
que de modo indireto e mediato, à antigüidade clássica, cujas formula-
ções sobre a melhor forma de governo já demonstram uma particular
sensibilidade para o problema.
Platão, ao desenvolver seus estudos sobre as formas de Governo,
procurou demonstrar que a degeneração da mais perfeita para a menos
perfeita, tem como causa essencial uma idéia de progressiva falta de
resistência às ligações corruptíveis, daí porque relaciona o decaimento
da democracia em tirania, com base no excesso de liberdade e na con-
seqüente negligência da ação governativa. Esta negligência é conside-
rada causa de uma censurável imoralidade pública.
Pela mesma senda segue Aristóteles, em quem se observa notável
preocupação sobre o tema. A análise de sua sistematização das formas
de governo permite a localização de um núcleo de moralidade pública,
na medida em que, para além da determinação de quem governa, o filó-
sofo incorpora um elemento valorativo que diz respeito exatamente aos

127
Celso de Albuquerque Silva

interesses perseguidos.41 Assim, a degeneração da democracia decor-


re em grande parte da permeabilidade do poder à ação dos demago-
gos, que irão fazer prevalecer interesses de determinados setores
sociais.
É, entretanto, com o surgimento do Estado Liberal e sua ideologia
de neutralidade, conjugado com a teoria política de separação de pode-
res desenvolvida por Montesquieu, que as questões de moralidade e
isenção políticas migram do campo das grandes opções de organização
dos modos globais de formas de governo, para o nível particularizado
das relações geradas através da atividade estatal, primeiramente a
jurisdicional e posteriormente a administrativa, que mais proximamen-
te estabelecem o diálogo entre o Poder e a Sociedade.
A partir daí, começam a surgir de modo mais amiúde as diversas
concepções do sentido do princípio da imparcialidade. Uma dessas
concepções, até hoje adotada por nossos constitucionalistas, é a que
resulta de uma determinada compreensão do contraponto negativo –
parcialidade - e que se limita a retirar daquele princípio os comandos
que o princípio da igualdade - visto numa perspectiva meramente for-
mal e circunscrito à função legislativa - contém. Ou seja, pelo princípio
da Imparcialidade, estaria toda e qualquer atividade estatal limitada
no sentido de que, entendido aquele como corolário lógico do princípio
da igualdade, imporia ao Estado o dever de tratar de modo igual, situa-
ções idênticas e que cobre, valorativamente, a proibição de discrimina-
ções positivas e negativas.42
É exatamente nesse prisma, em redor da premissa que encontra
no valor imparcialidade uma proibição de decisões que impliquem o
privilégio ou o prejuízo daqueles que se colocam sob o seu espaço de
operatividade, premissa essa cuja base fundante se assenta no repúdio
a uma indevida convergência de interesses privados exorbitante do
núcleo central do interesse público em causa, que se encontra o enten-
dimento tradicional do princípio da imparcialidade.
A análise da evolução das idéias relacionadas com o sentido clás-
sico da imparcialidade demonstra que é da composição legislativa em
torno da proibição de confusão (nemo iudex in causa propria), privilégio
e prejuízo de interesses, que se isolou a imparcialidade como princípio
jurídico com incidência na atividade jurisdicional do Estado.

128
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Assim, pode-se inferir que, das várias leituras possíveis do princí-


pio da imparcialidade como princípio jurídico globalmente reconheci-
do, um conceito mínimo, cujo núcleo é unanimemente reconhecido
pelas diversas concepções que dele decorram, reside na premissa de
que a sua descodificação tem colocado no seu centro ativo a proibição
de favores e odia.
Esse conceito revela uma vertente subjetiva do princípio da
imparcialidade, na medida em que, limitando a inclusão na decisão de
interesses não relevantes, proíbe expressamente a introdução no pro-
cesso decisório de interesses valorizados na sua componente subjeti-
va. Onde se verifica, portanto, uma intenção de favorecer ou prejudicar
alguém, existe expressa violação ao princípio da imparcialidade.43
O princípio da imparcialidade, não há discordância doutrinária
quanto a esse ponto, materializa, assim, uma exigência de isenção e
neutralidade decisória. A decisão não isenta é a decisão cuja pondera-
ção engloba interesses de parte que não são relevantes no contexto
decisório.
As técnicas para se garantir, então, a isenção e neutralidade
necessárias ao correto exercício da função jurisdicional, abrangem
desde a elaboração de normas relativas, à distribuição procedimental
de competências, vocacionadas para que não se verifique uma perso-
nalização do processo de construção da decisão44 (princípio do juiz
natural – CF, art. 5o, XXXVII, LIII), até aquelas vocacionadas a impedir
o ingresso no processo decisório de quem possa ter interesse direto ou
indireto no objeto do processo.
Tais regras vêm como garantias da imparcialidade, estabelecer a
concretização de uma idéia de imparcialidade que se vai formando em
torno da proibição de favorecimento ou prejuízo de interesses que se
colocam frente a frente com o interesse público e os interesses do titu-
lar do órgão jurisdicional.
Conforme vinha-se de ver, a linha tradicional da compreensão do
princípio da imparcialidade tem sido orientada à luz de regras de
garantia que regulam o dever de abstenção do titular do órgão que
tenha interesse pessoal na decisão ou relações particulares com os

129
Celso de Albuquerque Silva

interessados, com o claro propósito de obviar que sejam introduzidos


na decisão, interesses personalizados.
Modernamente, porém, a doutrina tem avançado na conceituação
do princípio da imparcialidade, para considerá-lo violado não apenas
quando a decisão incorpora elementos irrelevantes para o interesse em
litígio, mas também quando deixa de incorporar elementos relevantes
para a correta adjudicação da lide. Nesse sentido moderno, pode-se ver
uma profunda ligação entre o princípio da imparcialidade e o efeito vin-
culante.
Como se demonstrou alhures, independência judicial e liberdade
guardam íntima conexão (relação de meio e fim), mas não se confun-
dem. A liberdade individual pode sofrer danos e riscos se houver inter-
ferência na independência judicial, apenas se essa interferência impli-
car em perda da imparcialidade do juiz. E, sinceramente, não vejo
razões para afirmar que a imparcialidade do juiz fica prejudicada ao
seguir, necessariamente, o precedente judicial das Cortes Superiores.
Um juízo é parcial, quando leva em consideração o interesse de
apenas uma das partes, ou quando dado por uma das partes em litígio.
Ao seguir a interpretação do direito feita pelas Cortes Superiores, o juiz
não está decidindo consoante um juízo dado por uma das partes, mas
por terceiro – outro órgão judicial – que também é imparcial. Assim,
como a decisão proferida no precedente foi imparcial, a corte inferior ao
segui-la, necessária e não apenas contingentemente, também estará
decidindo de forma imparcial. Na verdade, ele estará apenas, aplican-
do, de forma racional, o direito ao caso concreto na medida em que o
direito só existe e se realiza com a sua aplicação. A lei não é lei em seu
real sentido enquanto não for aplicada o que demanda uma etapa ante-
rior referente a sua interpretação. Aplicar a lei tal como entendida
pelas Cortes Superiores nada mais é do que aplicar a lei, pois o orde-
namento normativo nada mais é senão a sua própria interpretação,
notadamente quando a exegese das leis e da constituição emanar do
Poder Judiciário, cujos pronunciamentos qualificam-se pela nota de
definitividade.45
Trabalhando nessa linha, Habermas já esclarecia que a clássica
separação de poderes, diríamos nós, independência entre os poderes,
é explicada através de uma diferenciação das funções do Estado. O

130
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Legislativo fundamenta e vota programas gerais, a justiça soluciona,


nessa base legal, conflitos de ação e a administração implementa as
leis que necessitam de execução. “Ao decidir autoritariamente no caso
particular o que é o direito e o que não é, a justiça elabora o direito
vigente sob o ponto de vista normativo da estabilização de expectati-
vas de comportamento.”46
A estabilidade e uniformidade do direito são tão importantes a
ponto de Tzu afirmar que, “um direito ruim é melhor que nenhum direi-
to, porque estabelece uniformidade. Se alguém reparte dinheiro tiran-
do a sorte na cara ou coroa, não significa que tal método conduza uma
justa divisão, mas um litígio, entretanto, terá sido evitado.”47
A afirmação de Tzu deve ser encarada cum granus salis, mas pode
ser bem compreendida no âmbito da discussão entre democracia, inde-
pendência judicial e efeito vinculante. É que se a independência judi-
cial fosse incompatível com a adoção do efeito vinculante por violar a
liberdade individual do juiz de julgar conforme sua própria consciência
independentemente do que já está pacificado e uniformizado no seio
dos tribunais superiores, isso significaria que cada juiz seria absoluta-
mente livre, diante de um mesmo suposto fático, para julgar o que o
direito é. Consectário natural é que, em tal hipótese, o direito poderia
ser qualquer coisa e, por conseguinte, coisa nenhuma. Nessa situação
de extremos, com razão Tzu. Melhor é um direito ruim do que nenhum
direito. Daí porque permanece atual a advertência feita por Roscoe
Pound no início do século passado, de que o generalizado ataque ao
dever das cortes de seguirem os precedentes judiciais, antes de demo-
crático, em verdade é parte da revivescência do absolutismo, verbis:

“Como as coisas estão atualmente, não posso deixar de pen-


sar que muito do ataque ao stare decisis é uma parte do renasci-
mento do absolutismo que é tão proeminente no pensamento polí-
tico e jurídico ao redor do mundo. Isso vai ao encontro da agitação
para a revogação do bill of rights, tornando o legislativo o único
juiz de seus próprios poderes, e libertando as agências adminis-
trativas do controle judicial, da qual temos ouvido bastante nos

131
Celso de Albuquerque Silva

últimos anos. Enquanto estamos nos livrando do sistema de freios


e contrapesos e colocando outras formas de ações oficiais livres
de controle, porque não deixar o judiciário livre também? Porque
não instituir um regime de decisão livre que é para permitir às cor-
tes decidirem os casos como únicos sem obrigação para um curso
de decisão uniforme e previsível? Tudo isso é parte de uma reação
geral contra o ensinamento sedimentado na América do século
XIX que se opunha ao depósito de poderes ilimitados em qualquer
lugar. O pensamento de hoje é tão intolerante quanto a poderes
governamentais limitados quanto os do século passado eram
sobre poderes absolutos.
É instrutivo comparar a demanda de hoje que as cortes sejam
livres para decidir cada caso sem referência ou à decisões passa-
das ou casos semelhantes com não menos demanda insistente no
último quartel do século XIX, e até na primeira década do presen-
te século, que não se deve permitir às cortes desenvolver o elemen-
to tradicional de nossa lei, que não deve ser permitido a elas
desenvolver experiência pela razão, mas que tudo no processo do
fornecimento de elementos para decisão e meios práticos para
ajustar relações ou ordenar condutas deve ser feito e somente feito
via legislação. As cortes deveriam ser confinadas à uma aplicação
lógica e mecânica de regras legais fixadas. Se elas fizessem qual-
quer coisa a mais, era considerado usurpação. Talvez o principal
divisor de águas tenha sido atingido por uma geração anterior
quando, de um lado os apóstolos do progresso estavam alertando
as cortes para não emendar a constituição por interpretação espú-
ria, e, de outro lado, os mesmos escritores estavam as atacando por
estarem aplicando os cânones ordinários de interpretação genuína
para dar um sentido razoável a uma lei. Como é usual quando tão
extremas posições são tomadas, a verdade repousa entre elas.”48

Por tudo isso se pode afirmar que o efeito vinculante não é incom-
patível com a democracia. Bem da verdade, pode-se ir além e afirmar
que o efeito vinculante reforça princípios democráticos. De fato, como
já visto, modernamente o princípio da imparcialidade incorpora uma
vertente positiva que exige do julgador a consideração de todos os ele-
mentos relevantes para a solução do litígio quando de sua decisão.

132
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Nesse sentido, ao excluir da decisão o entendimento consolidado nos


tribunais superiores sobre o que o direito é, o juiz passa a decidir com
base em pressupostos anímicos subjetivos, violando o princípio da
imparcialidade.
Por isso o Supremo Tribunal Federal já deixou assentado que
“observar-se a jurisprudência firme da Corte não implica ofensa ao livre
convencimento do juiz”49 e o Superior Tribunal de Justiça, seguindo a
mesma trilha, afirmou que “o direito deve emitir solução uniforme para
relações jurídicas iguais. Entendimento pessoal não deve ser óbice à
harmonia da jurisprudência”50 Evidentemente que essa conseqüência
inexorável do efeito vinculante não retira do juiz o poder-dever de deci-
dir a questão que lhe foi posta para julgamento, senão que apenas
“reduz a abstratividade genérica da lei ou a torna menos abstrata”.51
De fato, o instituto do efeito vinculante não retira a jurisdição das
cortes inferiores, apenas lhe reduz a discricionariedade ao impor limi-
tes substantivos para sua decisão, como aliás a legislatura pode e roti-
neiramente o faz. Um exemplo esclarecerá: o legislador pode estabele-
cer uma regra outorgando jurisdição ao juiz para: a) em caso de conde-
nação pela prática de um crime, considerando todas as circunstâncias
envolvidas, decidir qual seria o regime ideal de cumprimento da pena,
se aberto, semi-aberto ou fechado; b) em caso de condenação, ao con-
siderar todas as circunstâncias envolvidas – subjetivas e objetivas –
dar prioridade às objetivas, v.g., a pena aplicada, para decidir qual o
regime ideal de cumprimento da pena; c) em caso de condenação por
algumas espécies de crime, desde logo definir que ela deve ser cumpri-
da em regime fechado, v.g., no caso dos crimes hediondos.
Todas essas três regras são equivalentes em termos de jurisdição,
na medida em que as mesmas disputas entre as mesmas partes estão
sujeitas à mesma jurisdição, mas elas diferem bastante na medida em
que os conteúdos das decisões no exercício da jurisdição são guiados
por diferentes regras substancialmente regulativas.52 A primeira é
mais abstrata e confere uma discricionariedade bem mais ampla que
as outras duas; discricionariedade essa que vai paulatinamente sendo

133
Celso de Albuquerque Silva

reduzida na segunda até ser praticamente eliminada na terceira regra.


Se ninguém nega que ao assim agir o legislador se move dentro dos
limites que são conferidos a sua função, não se pode deixar de reconhe-
cer como legítima a redução dessa discricionariedade judicial pela
imposição de limites substantivos representados pelo instituto do efei-
to vinculante, quando tais limites forem impostos pelo legislador demo-
crático. O limite substantivo imposto pelo legislador, via efeito vincu-
lante, é exatamente o conteúdo extraído da interpretação conferida
pelas cortes superiores a um determinado suposto normativo.
A imposição desse limite substantivo não significa que o juiz ou tri-
bunal inferior deva concordar com a decisão da Corte Superior. A tanto,
o efeito vinculante não vai, nem exige do decisor. O juiz pode discordar
da decisão superior, como também pode discordar da opção política
substantiva acolhida pelo legislador. O que não pode fazer é desconsi-
derá-la – como não pode simplesmente deixar de aplicar a lei de que
discorde – devendo, em razão, dentre outros, do princípio da imparciali-
dade, aplicá-la enquanto não for modificada ainda que faça ressalva de
seu entendimento. Exemplar a argumentação do Ministro Oscar Correa,
no julgamento do RE 104.898/RS53 sobre o tema em questão:

“Que mantenha o juiz sua convicção contrária à decisão de


sua Corte, ou mesmo da Corte Suprema, admite-se, nem importa
rebeldia; mas, aplicando-a, enquanto não muda.
Que se recuse a aplicar a diretriz firmada pela maioria, ou
como no caso que insista em aplicá-la – consubstanciada em
súmula e aplicada sem discrepância, pelo Supremo Tribunal
Federal – não se justifica: força a parte condenada a mais um ônus,
retarda a decisão final; sobrecarrega, injustificavelmente, o apare-
lho jurisdicional (local e do Supremo Tribunal Federal), sem qual-
quer proveito.”

Assim, desconsiderando todos esses elementos relevantes em sua


decisão sem qualquer proveito para ambas as partes, vencida e vence-
dora, mas apenas para satisfazer seu entendimento pessoal, o juiz viola
o princípio da imparcialidade e retira muito da força moral de sua deci-
são. A credibilidade é a maior arma (se não a única) que o Poder
Judiciário tem para impor suas decisões e ela decorre do fato, acolhido
por toda a coletividade, que as decisões judiciais são fruto de um pro-

134
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

cesso racional e impessoal e não decorrência de um ato marcado pelo


subjetivismo de quem o pratica. Vê-se, portanto, que ao invés de andar
às testilhas com o princípio da independência judicial o efeito vinculan-
te reafirma os elementos axiológicos que a estruturam.

5.2.2. Liberdade democrática e Efeito vinculante

No tópico anterior demonstrou-se a compatibilidade entre a garan-


tia democrática da independência funcional do juiz e o instituto do efei-
to vinculante, afastando-se a confusão conceitual entre a independên-
cia do juiz e a liberdade. Nada obstante, tencionando colmatar qual-
quer lacuna argumentativa, no presente tópico enfrenta-se a questão
partindo-se do pressuposto de que, mesmo que se persista na confu-
são conceitual entre o instrumento-garantia (independência funcional
do juiz) e o valor objeto de proteção (liberdade individual), não existe
qualquer incompatibilidade entre o valor democrático da liberdade e o
efeito vinculante.
Escandindo-se, como o faz a doutrina clássica, o conceito de liber-
dade em liberdade de querer (liberdade positiva) e liberdade de agir
(liberdade negativa), pode-se desde logo afirmar que o tema nem
mesmo comporta discussão, por fugir do seu âmbito de proteção, quan-
to a esta última forma de liberdade. Com efeito, não há que se falar em
violação à liberdade negativa do juiz pela adoção do efeito vinculante,
na medida em que esse instituto não impede o agir do juiz. O instituto
do efeito vinculante não se confunde com uma avocatória que tira a pos-
sibilidade do juiz exercer jurisdição e sentenciar o feito pondo fim ao lití-
gio. O juiz ou tribunal inferior pode e deve agir; apenas, ao fazê-lo, deve
obedecer, seguir e respeitar o entendimento das cortes superiores sobre
o que é o direito naquela específica circunstância. Liberdade negativa e
efeito vinculante são, portanto, plenamente compatíveis.
Apesar de rejeitada de plano a questão quando se fala em liberda-
de negativa, em termos de liberdade positiva a alegação comporta um
certo nível de discussão. Liberdade positiva é uma qualidade da von-
tade, do querer pessoal do indivíduo. Embora o juiz quando julga não é
livre nesse sentido, pois ele não decide porque ele quer decidir (essa é
a sua função) nem o que ele quer decidir (ele aplica a lei na solução de
uma lide) não se pode e nem se quer negar que toda decisão contém
um resíduo de voluntarismo. No mínimo, o juiz manifesta o seu querer
de julgar a lide com base em seu próprio convencimento sobre os fatos
e sobre o sentido da lei, com base na interpretação que ele, juiz, confe-

135
Celso de Albuquerque Silva

re ao texto normativo para dizer o que o direito é. Nesse sentido, não


há como negar a presença da liberdade em sua função positiva e, na
medida que o juiz ou tribunal inferior não pode decidir dessa forma,
jungido e imbricado que está à interpretação conferida pelas cortes
superiores em virtude da adoção do efeito vinculante, força é reconhe-
cer que o instituto do efeito vinculante interfere em certa medida com
a independência (liberdade) do juiz.
Dessa afirmação, porém, não decorre necessariamente a conclu-
são de que o efeito vinculante viola a independência do juiz. É que,
como já visto anteriormente, o conceito republicano (vocábulo latino
para expressar a forma de governo grega democracia)54 de liberdade
não rejeita a idéia de interferência, repelindo-a apenas quando se mos-
trar abusiva.
Assim, pode-se concluir pela compatibilidade do efeito vinculante
com a liberdade democrática, pois a adoção desse instituto, embora em
termos amplos possa ser considerada como uma espécie de interferên-
cia no atuar do juízo vinculado, por sua natureza e fundamentos permi-
te afirmar que essa interferência não é arbitrária e, portanto, é compa-
tível com a idéia de liberdade que repele apenas a interferência como
dominação. E não é arbitrária, porque se baseia na noção conceitual do
bem comum na medida em que visa fortalecer princípios cardeais à
democracia como igualdade55 e legalidade56 e seus consectários natu-
rais de justiça, ordem, segurança, paz, harmonia etc.
Por outro lado, partindo-se da ótica da liberdade individual dos
jurisdicionados, o efeito vinculante privilegia, ainda que indiretamente,
o valor liberdade. De fato, nunca é demais repisar, que as decisões judi-
ciais são vistas como um produto de uma aplicação racional de regras
legais e não produto de meras apreciações políticas ou pessoais.
Existindo uma firme e consolidada jurisprudência no seio dos tribunais
superiores, não pode se considerar razoável que, apenas por divergên-
cia de opinião, o juiz inferior decida contrariamente aos tribunais supe-
riores, cuja única conseqüência será ver sua decisão contrastante refor-
mada subseqüentemente, sem quaisquer benefícios para qualquer das
partes ou para o bem comum. Esse proceder, como já decidiu o

136
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Superior Tribunal de Justiça, além de desarrazoado porque tal decisão


resultará ineficaz, “seria quase uma deslealdade para com a parte, o
juiz incutir-lhe esperanças infundadas”.57
Assim, se se tem em conta a possibilidade de que as decisões dos
juízes, porque expressamente contrárias ao entendimento já esposado
pelas Cortes Superiores, podem refletir a idéia de que são frutos não de
uma reflexão racional, mas decorrem de uma manifestação de vontade
de um único juiz, vontade essa dissonante do que já sedimentado nos
Tribunais, está-se diante de uma interferência arbitrária por parte do
Estado-Juiz na liberdade dos seus cidadãos-jurisdicionados, interfe-
rência essa que a adoção do efeito vinculante tende a eliminar.

137
PARTE II
DA APLICAÇÃO DO EFEITO
VINCULANTE
Capítulo 4
O Precedente Judicial nos Sistemas
da Common e Civil Law

1. Introdução

A importância dos precedentes judiciais na elaboração e desenvol-


vimento do direito tem crescido sobremaneira nas últimas décadas no
sistema jurídico pátrio. Paulatinamente, parte da doutrina nacional já
tem caminhado para o reconhecimento da jurisprudência como uma ver-
dadeira fonte formal do nosso sistema legal.1 A legislatura também tem
caminhado na direção do fortalecimento da jurisprudência através de
várias alterações legislativas no campo processual, que passaram a
reconhecer a adequação ao entendimento sumulado ou à jurisprudência
dominante dos tribunais superiores, como um verdadeiro pressuposto
processual para os recursos dirigidos aos tribunais. Com a emenda
constitucional no 03/93 foi instituído o efeito vinculante das decisões
proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações declaratórias de
constitucionalidade, cujo âmbito de aplicação foi ampliado pelas Leis
nos 9.868 e 9.882, ambas de 1999, para abranger as decisões proferidas
em qualquer processo de controle concentrado de constitucionalidade,
situação consolidada constitucionalmente com a emenda constitucional
no 45/2004, que ademais estendeu esse efeito também para o controle
de constitucionalidade exercido difusamente pelo Supremo Tribunal
Federal através da adoção da súmula vinculante. Atualmente, existe
grande controvérsia sobre a conveniência de conferir efeitos vinculan-

141
Celso de Albuquerque Silva

tes, também as decisões judiciais já sedimentadas no seio dos demais


tribunais superiores, através do instituto da súmula vinculante, tudo
indicando a importância e contemporaneidade do tema.
O presente capítulo busca analisar que papel o precedente judicial
tem desempenhado nos dois principais sistemas jurídicos do mundo
ocidental: common law e civil law. No segundo tópico a análise recai
sobre as funções desempenhadas pelo judiciário nas modernas socie-
dades, notadamente quanto ao aspecto de criação do direito via deci-
são judicial, pois é do papel desempenhado pelo judiciário enquanto
fonte de produção normativa, que se originará uma maior ou menor
obediência, respeito e vinculação aos precedentes judiciais e, portan-
to, abordagens distintas quanto ao status que o ordenamento jurídico
lhes confere.
O terceiro tópico analisará rapidamente o status conferido ao pre-
cedente judicial no sistema da common law, em virtude da adoção
nesse sistema da doutrina do stare decisis que impõe, como regra, a
vinculação dos tribunais aos precedentes judiciais. O quarto tópico
tratará da posição ostentada pela jurisprudência, enquanto fonte for-
mal do direito no sistema da civil law. Dada a disparidade de aborda-
gens quanto a este aspecto nos diversos sistemas filiados a essa tradi-
ção jurídica, privilegiou-se, nesta parte, a análise de alguns ordena-
mentos legais de tradição romano-germânica, por representarem três
paradigmas básicos possíveis: a) Alemanha, que possui um ordena-
mento jurídico vinculado à família da civil law, mas que acolheu legis-
lativamente a doutrina anglo-saxã da vinculação dos precedentes judi-
ciais (stare decisis) através do instituto do efeito vinculante; b) a pro-
víncia de Quebec no Canadá, que possui um ordenamento jurídico de
origem francesa e, portanto, de tradição civil law, cuja peculiaridade
reside na circunstância de se desenvolver em um ambiente circundan-
te de common law que (talvez exatamente por isso), nem acolhe nem
rejeita expressamente a vinculação aos precedentes judiciais; e, c) a
experiência da França, cujo ordenamento, filiado à família romano-ger-
mânica, possui expressa vedação legal ao exercício de uma função nor-
mativa por parte dos Tribunais. Por óbvio, descreveu-se, ainda, o status
conferido ao precedente judicial no hodierno sistema legal brasileiro.2

142
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

A última parte analisa a compatibilidade de uma adoção ampla


da vinculação ao precedente em nosso sistema jurídico, concluindo
não apenas pela sua possibilidade como, ainda, pela sua conveniên-
cia, dentre outras razões, em virtude da adoção de um sistema de con-
trole de constitucionalidade misto, que acolhe lado a lado um controle
difuso, exercido via incidental por todos os juízes e um controle con-
centrado exercido via ação, cujo monopólio pertence ao Supremo
Tribunal Federal.

2. O papel do judiciário nas modernas sociedades

É clássica no pensamento constitucional a divisão do poder esta-


tal em três funções básicas: legislativa, executiva e judiciária. À primei-
ra, caberia inovar na ordem jurídica através de edição de normas dota-
das de generalidade e abstração, enquanto às duas subseqüentes, a
aplicação concreta das normas gerais estabelecidas pelo legislativo. A
função executiva se consubstanciaria na aplicação de ofício de tais nor-
mas,3 enquanto que a função judiciária consistiria “em dirimir, em cada
caso concreto, as divergências surgidas por ocasião da aplicação da
lei”.4 Essa distinção, embora útil para uma rápida apreensão dos traços
distintivos básicos entre as três funções, implica em um inevitável
reducionismo da função judicial. Como qualquer outra instituição com-
plexa, as cortes judiciárias exercem várias funções, duas das quais,
porém, são fundamentais.
A primeira função capital das cortes judiciárias é exatamente
aquela mencionada como característica distintiva das demais funções
estatais: resolução de litígios. Todas as sociedades um pouco mais
complexas em suas estruturas sociais demandam uma instituição que
possa, de forma conclusiva e definitiva, resolver disputas legais basea-
das na interpretação, sentido e implicações de normas e princípios que
regem a vida em comunidade e balizam o atuar de seus membros. Em
nossas modernas sociedades essa instituição é exatamente o Poder
Judiciário. Como consectário lógico a resolução de litígios é uma fun-
ção suprema das cortes judiciais.

143
Celso de Albuquerque Silva

A proeminência dessa função pode ser explicada por diversos


motivos que caracterizam o atuar das cortes judiciais. O primeiro deles
reside exatamente no fato de ser ela que tem sido apontada pela dou-
trina como o traço distintivo entre a função judicial e as demais fun-
ções estatais. Além disso, essa função judicial é regida, salvo raras
exceções,5 pelo princípio da inércia judicial, de sorte que, diferente-
mente do poder executivo e legislativo, o judiciário não poderá agir
sem a iniciativa da parte interessada.6 Como decorrência natural do
princípio da inércia, o papel da corte, em razão do princípio dispositi-
vo, está restrito a dar solução apenas à questão posta nos autos e nos
limites em que posta.7 Os tipos de questões que podem ser levados ao
judiciário são também limitados. Por primeiro e óbvio, a questão dedu-
zida em juízo deve estar baseada em alegada violação ou ameaça de
violação a um direito reconhecido pelo ordenamento jurídico8 e se refe-
rir a uma pretensão resistida pela parte ré, sob pena de faltar interes-
se processual do autor em obter um provimento judicial. Assim, por
exemplo, refoge do âmbito da função judicial a adjudicação dos atos
políticos, ou seja, aqueles que contêm medidas de fins unicamente
políticos e se circunscrevem ao âmbito interno do mecanismo estatal.9
Ocorre que, ao lado da função de resolver litígios, se eleva uma
outra função social das corte judiciárias com igual dignidade e impor-
tância: a função de complementar e desenvolver o direito legislado.10
Nas atuais e complexas sociedades tecnologicamente adiantadas, a
velocidade das mudanças em situações anteriormente estruturadas
sobre padrões éticos, sociais, culturais, tecnológicos e econômicos já
superados e o surgimento de novas fontes de litígios até então impen-
sáveis, geram uma demanda por normas legais para regulá-las tão
intensa, que o Poder Legislativo simplesmente não pode adequada-
mente satisfazer essa demanda. A capacidade da legislatura de produ-

144
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

zir leis que regulem os diversos campos e tipos de relações travadas no


seio da coletividade é limitada e muito dessa capacidade deve e já está
alocada para a produção de regras relativas a questões estatais que,
por ingerência do princípio da legalidade, exigem lei em sentido formal
e material para serem regularmente tratadas, tais quais as relativas a
políticas públicas e ações econômicas, como orçamentos e tributação,
despesa pública, controle do câmbio e da moeda, combate à inflação,
definição de índices de reajustes dos vencimentos, proventos e pen-
sões de seus servidores e dos trabalhadores em geral, ou ainda, no
campo da regulação de assuntos que, em virtude de garantias funda-
mentais, são consideradas além da competência das cortes judiciais
como a definição de crimes e suas penas.
Nesse ambiente, é socialmente desejável que as cortes possuam
essa função de enriquecimento do direito legislado. Em verdade, mais
do que desejável essa função é indispensável. O artigo 4o da lei de
introdução ao código civil, dispondo que na omissão da lei o juiz deve
decidir de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de
direito, conjugado com o artigo 126 do código de processo civil que
veda ao juiz se eximir de apreciar uma questão ao fundamento de lacu-
na ou obscuridade da lei é o reconhecimento legal dessa função norma-
tiva exercida pelas cortes judiciárias. É certo que ao exercer essa fun-
ção criativa, o juiz não tem a mesma liberdade do legislador e por isso,
de um lado, “não deve o juiz ser arbitrário na criação de regras jurídi-
cas e sua decisão deve estar baseada em argumentos racionais”11 e de
outro, deve dar ênfase ao estabelecimento de regras jurídicas que
seriam as necessárias como se a única função das cortes fosse a de
resolver disputas.12
É indisputável que o poder criativo dos tribunais existiria ainda
que a única função dos tribunais fosse a de resolver disputas intersub-
jetivas. Se aos tribunais é conferido o poder para aplicar a lei dando-lhe
seu sentido e apontando suas conseqüências diante de novos fatos e
circunstâncias, não se poderia proibi-los de formular regras que não
tivessem sido previamente anunciadas, pois tal poder criativo é um
meio necessário para o atingimento das finalidades perseguidas pela
jurisdição na solução das disputas. Quem confere os fins, outorga

145
Celso de Albuquerque Silva

necessariamente os meios. Ademais, o direito é alógrafo. É o resultado


da interpretação.13 No início do século passado, Cardozo já alertava
que a natureza do processo judicial é muito mais de criação do que des-
coberta do direito.14 Hoje é lugar comum entre os estudiosos do proces-
so judicial que qualquer decisão, seja interpretação de uma lei, seja de
um precedente judicial, possui elementos criativos, e que uma maior ou
menor medida de mudança é inerente a todo ato de interpretação.15
Considerando que a função de enriquecimento e desenvolvimento do
direito é um meio necessário e, portanto, instrumental, para o exercício
da função de resolver disputas, a asserção anterior de que a função
criativa do judiciário possui a mesma dignidade e importância desta
última precisa de um maior aclaramento.

2.1. Modelos teóricos do papel desempenhado pelas cortes no


desenvolvimento do direito de criação judicial

Para explicar porque a função normativa dos tribunais é desejável


de forma autônoma, ou seja, independentemente da função de colma-
tar as lacunas da lei, é útil o recurso aos modelos do papel das cortes
na formulação de regras jurídicas sugeridos por Melvin Eisenberg:16 o
modelo de “resultado intersubjetivo” (by-product model) e o modelo de
“enriquecimento do direito” (enrichment model).
No modelo de resultado intersubjetivo, a produção normativa das
cortes seria apenas um resultado acidental no exercício de sua função
de resolver litígios. Assim, as cortes devem formular e aplicar proposi-
ções gerais se tal é necessário para a solução da lide. Em tais circuns-
tâncias justifica-se que os tribunais enriqueçam o direito legislado,
porém, apenas e tão-somente na exata medida necessária para solucio-
nar a questão que lhe é posta sob adjudicação e nem um milímetro a
mais. Diversamente, no modelo de enriquecimento, o estabelecimento,
por parte dos tribunais, de normas gerais que regulam a conduta social

146
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

dos membros da coletividade é tratado como desejável por si só, embo-


ra essa atividade criativa esteja subordinada a limites concernentes à
resolução da disputa judicial. Nesse modelo, as cortes, partindo do pro-
blema concreto que lhe é posto para solução, podem e devem desenvol-
ver o conteúdo do ordenamento jurídico de forma mais ampla. No mode-
lo de enriquecimento, a decisão judicial, a exemplo de normas legisla-
das, possuiria ambas as funções de facilitar a resolução de disputas e
de formatar a conduta humana de maneira a beneficiar a sociedade.17
Cotejando as conseqüências de um e outro modelo, o professor da
Universidade de Michigan, traçou o seguinte paralelo: a) sob o modelo
de resultado intersubjetivo se esperaria que as regras adotadas em
decisões judiciais fossem consideradas de forma respeitosa e com
grande consideração pelos demais oficiais públicos, mas não que fos-
sem consideradas obrigatórias. Sob o modelo de enriquecimento, refe-
ridas normas teriam o caráter de compulsoriedade; b) sob o modelo de
resultado intersubjetivo, as decisões judiciais somente enunciariam as
regras estritamente necessárias para a solução da disputa concreta.
Sob o modelo de enriquecimento, as decisões judiciais conteriam mais
normas gerais do que as necessárias para esse propósito.18 Analisando
a prática judicial na common law, que reputa obrigatório seguir-se o
precedente judicial pela adoção do instituto do stare decisis, bem como
a amplitude das regras enunciadas na decisões de casos exemplificati-
vos19 que menciona, em muito desbordantes do necessário para a solu-
ção da questão concreta, o autor conclui que os tribunais consideram
sua função normativa de enriquecimento e desenvolvimento do direito

147
Celso de Albuquerque Silva

como desejável em si mesma e a observação de sua prática sugere que


eles agem em conformidade com essa inclinação.20
Em favor da opção pelo modelo de enriquecimento em detrimento
do de resultado intersubjetivo, podemos, além dos mencionados por
Eisenberg, agregar ainda mais três argumentos: a) a obrigatoriedade de
fundamentação das decisões judiciais; b) a obrigatoriedade de publici-
dade dos atos jurisdicionais; e, c) a natureza objetiva do controle con-
centrado de constitucionalidade nos países em que ele é adotado.
Se o modelo seguido pelas cortes judiciárias fosse o de resultado
intersubjetivo, limitando-se a função criativa dos tribunais a ser um
instrumento para a consecução de sua finalidade de dirimir a contro-
vérsia entre as partes litigantes, a rigor suas decisões não necessita-
riam ser motivadas.21 De fato, dirimir uma disputa não é o mesmo que
dirimir um conflito, podendo e não sendo incomum, que apesar de deci-
dida a lide o conflito que lhe é subjacente ainda permaneça entre as
partes. Assim, a fundamentação não é exigida para resolver a disputa,
mas para demonstrar que a decisão foi tomada, não porque louvou-se
em características pessoais e subjetivas das partes, mas em normas,
regras e princípios objetivos que se aplicam a todos de forma imparcial
e não apenas aos litigantes. A generalidade que se extrai da decisão
judicial auxilia na própria resolução do conflito de idéias e interpreta-
ções existente na sociedade sobre aquele determinado assunto. É
certo que a parte perdedora ainda pode se mostrar insatisfeita com as
razões oferecidas, mas ajuda muito à administração da justiça se o per-
dedor acredita e confia que sua derrota deriva de uma honesta, objeti-
va e imparcial diferença de opinião, quanto à existência ou não do direi-
to pleiteado.
Em segundo lugar, ainda que se considerasse que a fundamenta-
ção fosse condição sine qua non para o exercício da função de dirimir

148
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

disputas, nada no exercício dessa função exigiria a publicidade do que


no processo ficou decidido. Seria suficiente o conhecimento pelas par-
tes, já que somente elas seriam os destinatários do direito de criação
judicial. Nada obstante, nosso ordenamento prevê a publicidade das
decisões judiciais. A única justificativa para tal exigência reside no fato
de que, ao decidir as questões concretas que lhe são postas para adju-
dicação, a função dos tribunais não é de unicamente por fim a uma
determinada disputa, mas também para preveni-las, instruindo a
comunidade sobre as regras que governam sua conduta. Portanto, ao
resolver tais disputas, as cortes estão estabelecendo regras e a decisão
e suas razões, constituem ou formulam uma norma geral.22 Essa função
normativa torna-se mais evidente, quando a Corte se utiliza da técnica
judicial conhecida como prospective overruling, ou seja, quando elabo-
ra uma norma que revoga a anterior, mas determina a sua aplicação
apenas nos casos futuros, aplicando a regra antiga no caso atual de
onde extraiu a nova regra.23
Por derradeiro, a natureza objetiva do controle concentrado de cons-
titucionalidade nos países que o adotam – como é o caso do Brasil –
assume nitidamente o modelo de enriquecimento, que põe relevo na
função de produção normativa dos tribunais, na medida em que inexis-
tem partes e não há defesa de direitos subjetivos em tais processos,
limitando-se essas ações diretas a outorgar ao tribunal um instrumen-
to político de controle de normas.24A função do tribunal neste tipo de
controle, não é a de dirimir litígios concretos, assegurando a defesa de
um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente protegido,
lesado ou na iminência de sê-lo, mas defender a constituição,25 ao
garantir a compatibilidade das regras legais com a Carta Básica, no
caso da ação direta de inconstitucionalidade, e a certeza jurídica, no
caso da ação declaratória de constitucionalidade.26 A função da deci-
são judicial em tais processos equipara-se em tudo à função legislati-
va27 de estabelecer diretrizes seguras às pessoas sobre as normas que

149
Celso de Albuquerque Silva

governam sua vida e seus negócios, máxime quando o Supremo Tribu-


nal Federal, ao invés de apenas declarar a constitucionalidade ou in-
constitucionalidade da lei ou ato normativo, se utiliza da interpretação
conforme a constituição e a declaração de inconstitucionalidade sem
pronúncia de nulidade, selecionando normas compatíveis e normas
incompatíveis com a constituição, derivadas do mesmo texto legal.

3. A vinculação ao precedente nos sistemas jurídicos da


common law

O instituto de stare decisis28 – ou seja, a vinculação das decisões


judiciais aos precedentes jurisdicionais que trataram do mesmo tema –
é, sem dúvida alguma, pedra angular dos ordenamentos jurídicos per-
tencentes ao sistema da common law. A justificativa teórica clássica
dessa doutrina remete às conseqüências benéficas de sua adoção,
incluindo a noção de que ela permite ao sistema legal usufruir as van-
tagens da previsibilidade na ordenação da conduta das pessoas, pro-
move a necessária percepção de que a lei é estável, evita as frustrações
de legítimas expectativas quanto aos direitos e deveres dos membros
da coletividade, reduz o custo econômico e aumenta a eficiência do sis-
tema judicial e, inclusive, preserva o princípio da separação de pode-
res por impedir uma desordenada e abusiva discricionariedade judicial
na criação de normas, reforçando o judicial restraint. Uma outra abor-
dagem mais moderna de justificação segue uma linha menos conse-
qüencialista e mais deontológica, ao afirmar que a regra do stare deci-
sis é um corolário lógico de princípios cardeais de nosso sistema jurídi-
co, como igualdade e integridade.29
Para bem compreender-se o instituto do stare decisis é fundamental
a percepção da função desempenhada pela decisão judicial no sistema
jurídico da common law. Nesse sistema de origem anglo-saxã a decisão
judicial, a exemplo do que ocorre nos sistemas originários das fontes
romano-germânicas, resolve uma determinada controvérsia, uma especí-
fica pretensão resistida, e, nesse ponto, pacifica o tecido social através do
instituto da coisa julgada que impede a eternização das demandas. Ou

150
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

seja, as partes do processo já não podem mais discutir aquelas questões


que foram debatidas e objeto de apreciação jurisdicional.
Ocorre que nesse sistema essa decisão judicial possui uma segun-
da importante função: a de ser considerada como um precedente. Um
precedente é definido no dicionário Oxford, como sendo “um caso ante-
rior que é ou pode ser considerado como um exemplo ou uma regra
para casos subseqüentes, ou através do qual algum ato ou circunstân-
cia pode se apoiar ou se justificar”.30
Evidentemente que nesse significado tão amplo, todo e qualquer
sistema jurídico seguiria precedentes judiciais. Assim, explicitando
melhor o seu sentido, ter o qualificativo de precedente significa que
essa concreta decisão judicial dá origem e enuncia um determinado
princípio de direito, princípio esse que é de ser considerado e observa-
do na solução de um caso semelhante futuro. Em outro dizer, a regra ou
princípio que se deduz da primitiva decisão judicial desborda seu
campo de atuação do litígio entre as partes para se projetar com pre-
tensões de solucionar casos futuros, desde que guardem semelhança
com este que foi decidido. Por isso, no sistema anglo-saxão, o princípio
cardeal é o stare decisis, fundamentado na teoria de que “quando uma
corte fixou uma regra de direito em um ou mais casos, a regra não esta-
rá mais aberta para exame ou para nova decisão pelo mesmo tribunal
ou por aqueles que estão obrigados a seguir suas decisões”.31
Essa é a regra unanimemente aceita na moderna doutrina inglesa
desde o final do século XIX32 – e em todos os países filiados à tradição
anglo-saxã – de sorte que os precedentes das cortes superiores são de
observância obrigatória. Assim, no sistema jurídico anglo-saxão a deci-
são judicial enuncia regras de direito e, sob a doutrina do stare decisis,
“uma corte está vinculada por seus próprios precedentes e aqueles das
cortes superiores de sua jurisdição”.33 Curial a conclusão que no siste-
ma da common law, a decisão judicial é fonte formal do direito.

151
Celso de Albuquerque Silva

4. A vinculação ao precedente no sistema


romano-germânico

“A noção prevalente de que stare decisis é peculiar ao siste-


ma legal anglicano é muito provinciana e longe de ser correta. Pelo
contrário, o princípio é inerente a qualquer sistema jurídico.”34

Essa afirmação feita por Lobingier tem por pressuposto inafastá-


vel o reconhecimento da decisão judicial como verdadeira fonte do
direito e, portanto, o papel fundamental que o Poder Judiciário desem-
penha em qualquer coletividade juridicamente organizada.35
À medida que se fortalece a função jurisdicional no ambiente de
um Estado Democrático, mais adequadas se tornam aquelas palavras
enunciadas ainda na década de 40 do século passado. A superação da
idéia do Poder Judiciário como um mero departamento do Estado, res-
ponsável apenas por “executar”, sem espaço para qualquer elemento
criativo, as determinações emanadas pelo Poder Legislativo, conferin-
do-se-lhe o status de uma fonte de produção normativa, com o conse-
qüente reconhecimento de uma atuação condizente com um verdadeiro
poder político,36 explica a crescente importância nos sistemas legais
componentes da família romano-germânica da análise dos precedentes
judiciais na solução das controvérsias postas perante o poder judiciário.
Na Roma antiga, precedentes judiciais eram parte essencial da
vida pública e os juristas romanos encontraram, em seu sistema
legal, uma larga aplicação para o que nós poderíamos chamar de pre-
cedente em seu sentido mais amplo.37 Com efeito, alguns dos juris-
consultos que apareceram durante a República foram agraciados
durante o império pelo imperador Augusto, com o jus repondendi e

152
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

suas opiniões (responsa prudentium) receberam a força de verdadei-


ros precedentes judiciais.38 Entretanto, pode-se afirmar que a se-
mente da força vinculativa do precedente foi plantada apenas mais
tarde no direito romano, quando Valentiniano conferiu pesos a serem
dados a cada um dos cinco maiores jurisconsultos e exigiu que as
cortes adotassem suas opiniões de acordo com o grau de respeitabi-
lidade conferido a cada um deles.39
O moderno sistema legal romano-germânico perpetuou o principio
da responsa prudentium dos antigos jurisconsultos romanos na forma
de doutrina sem a força vinculativa anteriormente outorgada. Com rela-
ção aos precedentes judiciais, verifica-se que, pelo menos na prática,
eles são freqüentemente seguidos, sendo certo que alguns países de
tradição romano-germânica, com o passar do tempo, passaram a segui-
los de forma obrigatória e vinculativa.

4.1. A vinculação no direito alemão

No que se refere ao efeito vinculante dos precedentes judiciais,


não se pode olvidar, como nos relata Mauro Capelletti,40 que nos orde-
namentos jurídicos da common law, por força do princípio do stare deci-
sis uma decisão a princípio vinculada a um caso concreto agigantava
seus efeitos para abranger casos futuros.
Como a função judicial possui inegáveis similitudes em ambos os
sistemas, tornou-se necessário que nos países de ordenação civil law
fosse encontrado um adequado substituto da Suprema Corte America-
na, cujas decisões eram dotadas de vinculatividade em virtude exata-
mente da doutrina do stare decisis. A solução consubstanciou-se na
criação dos Tribunais Constitucionais que passaram a decidir as ques-
tões da constitucionalidade das leis com eficácia erga omnes.
Dessarte, o efeito vinculante, ao menos das decisões referentes à
constitucionalidade ou inconstitucionalidade das leis ou atos normati-
vos dentro do modelo concentrado (sistema austríaco) é, em termos
hierárquicos, consectário lógico do monopólio conferido às Cortes

153
Celso de Albuquerque Silva

constitucionais para o exercício do controle de constitucionalidade.41


Substancialmente, porém, o argumento em favor da vinculação dos pre-
cedentes judiciais reside no reconhecimento do poder judiciário como
uma fonte de produção normativa. É dizer, a decisão judicial enuncia
determinada regra de direito que, exatamente por ser uma regra, deve
ser obrigatoriamente seguida e obedecida.
Apesar do direito germânico ser caracterizado por um elevado
grau de codificação legal, não é incomum naquele país tedesco, o reco-
nhecimento do poder normativo das decisões judiciais.
De fato, de acordo com a Corte Constitucional Alemã, é fora de ques-
tão que o juiz tem uma tarefa, e a necessária competência, para criar direi-
to. Além do mais, o judiciário está obrigado “a descobrir os valores que
são imanentes a uma ordem legal fundada constitucionalmente, mas que
não encontra expressão em leis escritas – e a efetivar aqueles valores em
seus julgamentos através de uma conscienciosa valoração”.42
Em outra oportunidade, o Tribunal Constitucional Alemão reiterou
seu entendimento quanto à natural função normativa exercida pelas
cortes judiciárias, acrescendo ser esse exercício normativo indispensá-
vel nos modernos Estados, ao averbar:

“A Corte Constitucional Federal sempre reconheceu a compe-


tência e o dever das cortes de criar o direito...Criação do direito
não foi simplesmente uma função do judiciário reconhecida na
história legal germânica, mas no estado moderno se tornou indis-
pensável. Ela forma a base de regras diretivas do atual direito pri-
vado e público...A força normativa das cortes encontra seus limi-
tes nas provisões do artigo 20 (3) da Carta Básica.”43

A lei orgânica do Tribunal Constitucional Alemão, em seu parágra-


fo 31,44 torna vinculante a decisão do Tribunal perante as demais cor-

154
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

tes judiciárias e os órgãos do poder executivo. Não existe previsão


legal de vinculação das decisões das demais cortes superiores. Nada
obstante, como afirma Kissel, à norma criada pelos tribunais é freqüen-
temente conferido o mesmo status de normas postas pela legislatura.45
Por essa razão, como bem ressalta Schlüter, os precedentes das cortes
superiores não são utilizados pelas cortes inferiores apenas como um
apoio para sua decisão em casos similares, mas freqüentemente são
obedecidos e seguidos de forma vinculante.46 As decisões judiciais das
corte superiores no direito alemão são, portanto, fonte formal do direi-
to no sistema legal germânico e, assim, dotadas do poder de vincular
as decisões das cortes inferiores.

4.2. A vinculação no direito canadense (província de Quebec)

Se um aprofundamento no estudo comparado e uma mútua com-


preensão entre as diversas maneiras de pensar e os métodos utilizados
pelos dois grandes sistemas jurídicos do ocidente é um assunto de
grande importância em um mundo moderno e globalizado como o atual
nos qual os países estão em constante e íntimo contato cultural e
comercial, realizando diariamente milhares de transações, para o
Canadá essa compreensão representa uma verdadeira condição de
sobrevivência e desenvolvimento de seu próprio sistema jurídico.
Isso é explicado pela característica de ser, o Canadá, talvez o
único país em que os sistemas da common law e civil law operam lado
a lado no mesmo país, com filosofia, métodos e tradições distintos, mas
reunidos por muitos contatos de uma nacionalidade comum, de insti-
tuições federais legais e políticas comuns, e a supervisão de uma corte
federal que abrange as tradições da common law e da civil law e inter-
preta ambos os sistemas.47
No Canadá, o pensamento jurídico majoritário é de tradição anglo-
saxã. Porém, a província de Quebec de colonização francesa, notada-
mente no que concerne a seu direito civil, deriva sua estrutura legal e

155
Celso de Albuquerque Silva

seu modo de pensar do código civil francês. Nada obstante, esse


ambiente jurídico de inspiração romano-germânica aceita sem maiores
dificuldades para si próprio a doutrina do stare decisis. Explicitando as
razões da convivência pacífica entre o instituto do stare decisis e o sis-
tema legal codificado da província de Quebec, ainda na ausência de
expressa autorização legislativa para tal, pontificou Friedmann:48

“Embora o código civil de Quebec seja essencialmente uma


versão revisada do código napoleônico, a posição das cortes de
Quebec, e sua abordagem com relação ao stare decisis, tem sido
desde o início muito diferente daquele das cortes francesas. Isso é
devido a inúmeros fatores. Em primeiro lugar, o direito civil de
Quebec opera em uma moldura dominada pela técnica e mentali-
dade da common law. Em segundo lugar, a mais alta corte de ape-
lação das decisões das cortes de Quebec é a Suprema Corte do
Canadá, cuja maioria dos membros são treinados na common law.
Terceiro, a técnica de julgamento das cortes de Quebec é mais
próxima da técnica da common law do que da técnica do direito
francês. Isso induziu uma abordagem com relação a doutrina do
stare decisis que tem muito mais em comum com o método da
common law do que com o da civil law.”

Assim, embora inexista qualquer autorização legal para que a


Suprema Corte Canadense repute suas decisões vinculantes no
ambiente jurídico da civil law da província de Quebec, a doutrina do
stare decisis, é aceita “em todo seu rigor nas decisões da Suprema
Corte Canadense, relativas a questões concernentes à aplicação do
código civil de Quebec”.49 No Canadá, os precedentes judiciais passam
a adquirir um efeito compulsório,50 sendo considerados, portanto, fon-
tes formais do direito.

4.3. A vinculação no direito francês

Para que se possa entender a atitude do atual sistema jurídico


francês frente ao precedente judicial, é fundamental ter-se em conside-

156
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ração os fatores históricos dos quais decorreu. Antes da revolução fran-


cesa, o antigo regime era caracterizado fundamentalmente pelo poder
absoluto e, conseqüentemente, arbitrário do rei. Colimando conter o
abuso, os revolucionários defenderam três ideais básicos. Primeiro, a
instalação de um governo representativo; segundo, a adoção de um sis-
tema baseado na doutrina de separação de poderes e, terceiro, substi-
tuir a vontade do soberano (rule of men), pela vontade da lei (rule of
law), conferindo uma posição privilegiada à lei dimanada da vontade
geral como norma obrigatória de conduta.
Os dois últimos objetivos constituem, em termos teóricos, a mais
clara indicação do desejo do povo francês de impedir fosse conferida
aos juízes a tarefa e os meios para o desenvolvimento de normas
gerais, restringindo sua atuação à situação concreta que lhe era posta
para adjudicação.
Nesse contexto, temendo por circunstâncias históricas o poder
dos juízes, inspirando-se em Montesquieu e levando a doutrina da
separação de poderes a sua versão mais radical, o legislador da revolu-
ção proibiu as cortes de exceder sua função de resolver litígios concre-
tos e usurpar as funções dos poderes executivo e legislativo.51
Acresça-se a isso, o fato de que o direito pré-revolucionário fran-
cês estava dividido em dois grandes ramos: Um na parte norte basea-
do nos costumes com mais de 10 variantes regionais e outro, no sul,
baseado em princípios escritos de derivação romana, gerando uma tal
incerteza e ausência de uniformidade no direito, a ponto de Voltaire
comentar que, “quando em viagem, as leis mudam com a mesma fre-
qüência que você muda de cavalo”.52 Nesse ambiente, a incerteza jurí-

157
Celso de Albuquerque Silva

dica era mais a regra do que a exceção, gerando insatisfação e facili-


tando a arbitrariedade nas decisões judiciais.
A revolução francesa e a declaração de 1789 marcam o fim dessa
confusão com um movimento popular buscando uma unificação construí-
da com base nos princípios revolucionários da liberdade e igualdade. O
meio legal escolhido para atingir esse fim, foi o terceiro objetivo acima
mencionado: a primazia do direito legislado. Com uma codificação legal
válida para toda a França, afastava-se a incerteza e falta de uniformida-
de do direito e negando-se ao juiz qualquer poder criador do direito,
expurgava-se a arbitrariedade judicial plasmada no ancién regime.
Na constituição de 3 de setembro de 1791, há uma resolução pres-
crevendo a criação de um código. O jurista Cambacérès conduziu três
tentativas de produzir esse código entre 1793 e 1799. A primeira foi
rejeitada por sua complexidade, a segunda, rejeitada por ser lacônica e
a terceira sequer chegou a ser completada. 53 Posteriormente,
Bonaparte instituiu uma comissão composta pelos juristas Tronchet,
Maleville, Bigot- Préameneau e Portalis, para a elaboração de um códi-
go, com a obrigatoriedade de produzir um texto definitivo. A comissão
concluiu seus trabalhos em 21 de março de 1804.54
Como conseqüência desse contexto histórico, o artigo 5o do códi-
go civil francês expressamente proíbe os juízes de decidirem os casos
que lhes são submetidos através de disposições gerais ou regulatórias.
A função judicial jamais poderia ser considerada como uma fonte nor-
mativa, função essa exclusivamente reservada ao poder legislativo.
Qualquer tentativa judicial de criar norma implicaria em abuso da fun-
ção judicial. O juiz, na clássica visão de Montesquieu, nada mais era do
que a boca pela qual a lei falava.
Nesse ambiente não se pode falar em vinculação de precedentes
judiciais. Isso, evidentemente, não significa, como algumas vezes tem
sido dito, que os precedentes no direito continental não tenham qual-
quer papel ou apenas um pequeno papel no desenvolvimento do direi-
to, ou que a influência da jurisprudência na França não possa ser de
alguma maneira comparada com o sistema de case law na Inglaterra.55
O professor Sales, bem pontificou a importância da jurisprudên-
cia na prática legal francesa. Tratando da questão em termos teóri-

158
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

cos, reconhece o jurista francês que, olhando para o artigo 5o e 1.351


do código civil francês, um precedente judicial jamais poderia ser
considerado vinculante para uma causa similar subseqüente.
Entretanto, em termos práticos, assevera que uma pessoa desejando
saber como um determinado problema seria resolvido, iria necessa-
riamente procurar por decisões judiciais anteriores que se aplicam ao
caso. Sua primeira preocupação seria estudar as decisões judiciais já
existentes sobre a matéria. Logo a seguir, conclui que a prática legal
“permite perceber o verdadeiro peso do precedente judicial na
França. Está longe da obrigatoriedade e vinculação da regra de stare
decisis do direito anglo-saxão, mas em muitas hipóteses, é uma
‘quase obrigatória’ regra de stare decisis”.56
Nada obstante a abordagem do professor Salès, o certo é que na
França, qualquer que seja a autoridade conferida ao precedente judi-
cial, mesmo quando constante sobre uma dada questão, ele nunca for-
ma uma norma juridicamente obrigatória a ser necessariamente obser-
vada pelas cortes. O sistema judicial francês rejeita tanto a criação do
direito pelo juiz, quanto o instituto do stare decisis.57 Se aderência das
cortes inferiores está relacionada apenas à convicção do acerto do pre-
cedente judicial, ou ao receio de que uma decisão sua contrária pode-
rá ser (e provavelmente será) reformada pela instância superior, poden-
do o juiz livremente desconsiderar a decisão de uma corte superior se
superar essas duas condições, a jurisprudência na França, embora
importante, possui apenas “uma simples autoridade de razão e não
deve ser considerada uma fonte formal do direito”.58

4.4. A vinculação no Brasil

Como visto alhures, o papel da Suprema Corte Americana na solu-


ção de casos concretos em virtude da doutrina do stare decisis expan-
dia seus efeitos para adquirir uma forma de norma geral a ser seguida
pelas demais cortes americanas. Nos países de tradição romano-ger-
mânica, a solução encontrada foi a criação dos Tribunais Constitucio-

159
Celso de Albuquerque Silva

nais,59 que passaram a deter o monopólio do controle da constituciona-


lidade das leis, dotando suas decisões de efeitos erga omnes e eficácia
vinculante.
O Brasil, embora herdeiro da tradição jurídica romana, após a pro-
clamação da república e por inspiração maior de Campos Sales e Rui
Barbosa, adotou como modelo o sistema instituído nos Estados Unidos
da América, sendo o Supremo Tribunal Federal a instituição nacional
congênere da Suprema Corte Americana.
A cópia se mostrou inferior ao paradigma tido como inspiração.
Não pela falta de genialidade de seus componentes, mas pelo caráter
mítico outorgado ao modelo original, cujo gênio de Rui Barbosa tinha
elevado a um nível supra-terreno e supra-humano.60 Ao injusto parale-
lo estabelecido sob essa base mítica, acrescente-se o sistema jurídico
em que se inseriu o Supremo Tribunal Federal que, ao tempo em que lhe
reconhecia apenas o poder de declarar incidentalmente em um caso
concreto e de forma difusa a inconstitucionalidade de uma lei, lhe
negava a adoção do instituto do stare decisis, preferindo, com a consti-
tuição de 1934,61 compartilhar essa função com o Senado Federal, que
seria o responsável por determinar a suspensão da lei declarada inci-
dentalmente inconstitucional. Tratando sobre a distinção entre os sis-
temas difusos e concentrados de controle de constitucionalidade, no
que concerne ao aspecto em comento assim averbou Poletti:

“O sistema difuso indica uma maior compatibilidade com o


common law, onde o costume, e não a lei, representa a mais impor-
tante fonte do Direito, e, ainda, onde os precedentes judiciais são
mais relevantes para a formação da jurisprudência a balizar as
outras e futuras decisões judiciais. Isso explica o sistema america-
no, proveniente do inglês, porém, transplantado para um regime
de constituição escrita. Elucida, ainda, o stare decisis, o preceden-
te que vincula as futuras decisões judiciais.
Já o sistema romanístico, coloca sua ênfase na dogmática
jurídica, quer ela se manifeste na norma positivada (a lei), que ela
aflore da doutrina e se consagre na evolução histórica do direito.

160
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Por isso, a certeza do direito se revela um fator relevante, presen-


te no sistema de jurisdição constitucional concentrada, que dirime
todas as dúvidas e não admite o descumprimento da norma
enquanto ela não for declarada inconstitucional.”62

O sistema de controle difuso da constitucionalidade tem o sério


inconveniente de abalar a exigência da certeza do direito e a seguran-
ça nas relações que ele disciplina. Esse defeito se atenua sensivelmen-
te no sistema da common law, exatamente em razão da adoção do stare
decisis. No Brasil, adotado o controle difuso, substituiu-se a doutrina do
stare decisis pelo sistema de compartilhamento de funções no controle
difuso da constitucionalidade das leis com o Senado Federal, que não
se mostrou eficaz. O resultado foi uma crescente insegurança jurídica e
incerteza no direito. A solução inicialmente encontrada, então, foi a
adoção paulatina de um controle de constitucionalidade concentrado63
ao lado do controle difuso, instaurando-se um controle misto de consti-
tucionalidade. As decisões proferidas em sede de controle concentrado
de constitucionalidade foram reconhecidas pelo Supremo Tribunal
Federal como dotadas de eficácia erga omnes. Ainda não foi neste
momento, porém, reconhecida a sua eficácia vinculante.
Nada obstante a convivência desses dois sistemas de controle de
constitucionalidade, o certo é que, em virtude da restrita legitimação para
a instauração do controle concentrado e do ambiente político autoritário
vivenciado até então, prevalecia no sistema jurídico brasileiro o controle
difuso de constitucionalidade com todos os seus efeitos deletérios antes
apontados. Essa fase se encerra com a promulgação da constituição de
1988 que, nitidamente, ao ampliar sobremaneira a legitimação64 para a
propositura da ação direta de inconstitucionalidade, deu prevalência ao

161
Celso de Albuquerque Silva

controle concentrado (e conseqüentemente, a certeza do direito), em


detrimento do controle difuso, privilegiando a função uniformizadora a ser
exercida pelas decisões do Supremo Tribunal Federal.65
Seguindo nessa linha evolutiva de conferir maior força ao prece-
dente judicial, o legislador infraconstitucional ao instituir normas pro-
cedimentais para processos perante o Superior Tribunal de Justiça e o
Supremo Tribunal Federal, dispôs no artigo 38 da Lei no 8.038, de 28 de
maio de 1990, que o relator dos recursos interpostos perante esses tri-
bunais superiores, negará seguimento àqueles que contrariarem nas
questões predominantemente de direito, súmula do respectivo tribu-
nal. Essa abordagem legislativa busca valorizar o precedente judicial,
quando já pacificado no seio dos tribunais superiores, chegando, ao
menos quanto ao aspecto de pressuposto recursal, “a equiparar-se à
norma da lei”.66 Trata-se, a nosso sentir, de uma fase intermédia67 en-

162
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

tre a absoluta liberdade das cortes inferiores para desconsiderarem os


precedentes das cortes superiores e a necessária compulsoriedade em
seguí-los, decorrente da adoção do efeito vinculante.
Foi somente em 1993, com a promulgação da Emenda Constitucio-
nal no 03, que o ordenamento jurídico pátrio contemporâneo68 deu um
salto de qualidade na matéria ao instituir a ação declaratória de cons-
titucionalidade de lei ou ato normativo federal (art. 102, I, da CF/88) e
atribuir, às decisões definitivas de mérito nessa ação, eficácia contra
todos (erga omnes) e efeito vinculante, relativamente aos demais ór-
gãos do poder judiciário e ao poder executivo (art. 102, § 2o, da CF/88).
Posteriormente, a Lei no 9.868, de 10/11/1999, que dispõe sobre o
processo e julgamento das ações diretas de inconstitucionalidade e
declaratórias de constitucionalidade, dispôs que são dotadas de efei-
tos vinculantes, com relação aos demais órgãos do poder judiciário e à
Administração Pública Federal, Estadual e Municipal, não apenas as
declarações de constitucionalidade, como também as de inconstitucio-
nalidade, a interpretação conforme a constituição, e a declaração par-
cial de inconstitucionalidade sem redução de texto (artigo 28, parágra-
fo único). Seguindo nessa mesma esteira, a Lei no 9.882, de 03/12/1999,
que regula o julgamento e processo da argüição de descumprimento de
preceito fundamental, dispõe que as decisões proferidas nessas argüi-
ções terão efeito vinculante com relação aos demais órgãos do poder
público (art. 10, § 3o).69

163
Celso de Albuquerque Silva

Como coroamento desse processo, foram apresentadas várias pro-


postas de adoção de efeito vinculante para decisões proferidas em pro-
cessos que versem sobre litígios intersubjetivos, desde que tais decisões
venham a ser sumuladas. Existem algumas variantes sobre as propostas,
mas em síntese, a proposta de emenda constitucional no 54/95, relatada
pelo Senador Jefferson Peres, previa a possibilidade de edição de súmu-
las com efeito vinculante por parte de todos os Tribunais Superiores. A
mais adiantada era a PEC 96/92, apresentada ao plenário da Câmara em
26 de março daquele ano pelo Deputado Hélio Bicudo, que veio inicial-
mente a ser relatada pelo Deputado Jairo Carneiro e posteriormente pela
Deputada Zulaiê Cobra e que trata da reforma do Judiciário.
Referida proposta de Emenda à Constituição aprovada pela Câma-
ra, chegou ao Senado no ano 2000 e foi protocolada como PEC no
29/2000. Após tramitação regimental, foi sua redação consolidada sob
a responsabilidade do então Relator, o Senador Bernardo Cabral, com
os pareceres CCJ no 538 e no 1.035, ambos de 2002, aprovados na
Comissão de Constituição e Justiça. A matéria foi então encaminhada
ao Plenário do Senado Federal, mas posteriormente foi determinado o
seu retorno à Comissão de Constituição e Justiça para reexame, tendo
sido designado como relator o Senador José Jorge.
O Relatório do Senador José Jorge, aprovado na comissão de cons-
tituição e justiça manteve a súmula vinculante para o Supremo Tribunal
Federal, mas acolheu destaque da Senadora Serys Slhessarenko, subs-
tituindo a súmula vinculante para o Superior Tribunal de Justiça e para
o Superior Tribunal do Trabalho, pela súmula impeditiva de recurso.
Essa proposta foi, então, aprovada pelo Senado com alterações, tendo
sido promulgada, pela emenda constitucional no 45/2004, a parte que
instituía a súmula vinculante para o Supremo Tribunal Federal70 e

164
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

retornado à Câmara a parte que instituía a súmula impeditiva de


recurso.71
Em síntese, portanto, pode-se concluir que de lege lata, são dota-
das de efeito vinculante apenas as decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal seja no controle concentrado de constitucionalidade
exercido vias ações direta de inconstitucionalidade, declaratória de
constitucionalidade e nas argüições de descumprimento de preceito
fundamental, mesmo que se refiram a uma interpretação conforme à
constituição ou a uma declaração de inconstitucionalidade parcial sem

165
Celso de Albuquerque Silva

redução de texto, seja em controle difuso, desde que a questão consti-


tucional seja sumulada mediante decisão de dois terços dos membros
do STF. Em outro dizer, no Brasil, as decisões proferidas pelo STF em
controle concentrado ou difuso (desde que objeto de súmula vinculan-
te) de constitucionalidade são fontes formais do direito.

5. Possibilidade de uma aplicação ampla do instituto do


efeito vinculante em nosso sistema jurídico
Essa problemática se propõe a analisar se é possível conferir-se a
uma decisão judicial proferida em um ambiente jurídico de tradição
romano-germânica, o mesmo status de fonte formal do direito que é
reconhecido nos sistemas jurídicos da common law.
Se é inegável que o mundo jurídico ocidental tem habitualmente
sido escandido em dois grandes sistemas ou tradições jurídicas – a
common law anglo-saxã e a civil law dos países da Europa continental,
hoje também já não se pode negar que muito dessa divisão é, em ver-
dade, mais aparente do que real, e pode, até certo ponto, ser conside-
rada desatualizada.
Essa apontada diferenciação classicamente se estrutura no reconhe-
cimento de que a tradição da common law tem como principal caracterís-
tica distintiva da tradição romano-germânica, o fato de ser baseada no
direito não escrito, ou seja, no direito não legislado, regido pelo que os tri-
bunais estabeleciam como direito nos casos postos para sua adjudicação,
reconhecendo a jurisprudência como a principal fonte do direito.
No particular, essa segunda característica da decisão judicial mar-
caria uma das mais significativas diferenças entre as duas grandes
famílias do direito da common law e romano-germânica.72 Enquanto a
família da common law centra-se no caso concreto, a família civil law
centra-se no direito posto pelo legislador.
Quando se relaciona essa característica com a questão da autori-
dade do precedente judicial, o problema tem sido enfrentado por
ambos sistemas legais através de diferentes abordagens. No sistema
da common law, o precedente judicial torna-se lei e deve ser obrigato-
riamente seguido pelos juízes das cortes inferiores73 e, de fato, até

166
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

mesmo a legislatura segue precedentes.74 Essa obrigatoriedade, entre-


tanto, não existiria nos países onde vigora o sistema de origem roma-
no-germânica. De fato, costuma-se afirmar que, a mais clarividente dis-
tinção entre a common e civil law, é que no sistema da civil law o juiz é
livre para desconsiderar a decisão de uma corte superior. Na common
law, isso nunca é feito, salvo em algumas situações específicas.75
O contraste entre as atitudes desses dois grupos de sistema jurí-
dico tem sido freqüente e vivamente explicado como um decorrente da
opção entre um método lógico e um empírico, entre um pensar deduti-
vo e um indutivo, entre uma regra da razão e uma da experiência.
Partindo dessa premissa, chega-se à conclusão de que na família
da common law, adota-se na solução dos litígios uma postura tópico-
problemática, caso a caso, repudiando-se o raciocínio a priori, de sorte
que a solução para os conflitos é revista a cada novo conflito, embora
leve em consideração, para a solução de novos litígios, prévias deci-
sões relativas a casos substancialmente idênticos. Esse sistema está
voltado para o passado, com base no processo. Diversamente, o siste-
ma romano-germânico estrutura-se sobre uma normatização geral,
abstrata e não casuística voltada para o futuro na medida em que veda-
da a retroação das suas normas.76 Essa diferença tornaria, então,
incompatível a adoção da adjudicação judicial baseada em casos pre-
cedentes no sistema jurídico romano-germânico, sendo contraditório e
assistemático conferir-se à jurisprudência o status de fonte formal do
direito.
Essa distinção é muitas vezes artificialmente inflada e a tentação
de se exagerar esse contraste no pensamento jurídico é freqüentemen-
te estimulada pelo nacionalismo, desconhecimento ou até mesmo pre-
conceito contra idéias e sistemas estrangeiros. Se essa era a principal
linha divisória entre ambos os sistemas, não resta dúvidas que, hodier-
namente, ela está superada.
De fato, quem ainda se atreveria a afirmar, com razoável grau de
seriedade e realismo que o direito norte-americano e mesmo o inglês,
tão ciosos de suas tradições, estão estruturados sobre um direito não

167
Celso de Albuquerque Silva

legislado? As leis norte-americanas são de uma precisão e detalha-


mento tão intensos, que muitas vezes as nossas próprias leis parecem
até outorgar mais discricionariedade ao juiz.77
No direito inglês, a realidade não é diferente, sendo objeto de
legislação detalhada inúmeras e importantes áreas que tratam tanto
da relação entre Estado e cidadão, como das relações jurídicas trava-
das entre particulares. Assim, por exemplo, as leis que regulam os ser-
viços de utilidade pública como água,78 gás,79 luz80 e telecomunica-
ções;81 a lei de proteção ambiental82 e da desregulação e contratação,83
que são tão, ou até mais detalhadas que nossas leis. Daí a atual adver-
tência de MacCormick, de que, embora os precedentes sejam a fonte
da qual certo tipo de direito é derivado – qual seja o case law – moder-
namente o puro case law é muito raro, e muito do direito derivado de
precedentes é resultado de decisões judiciais relativas a interpretações
de regras e princípios extraídos de textos legislativos.84
Da mesma forma, a função criativa do juiz nos sistemas jurídicos
de tradição civil law tem aumentado sobremaneira, notadamente, atra-
vés da adoção de cláusulas abertas como boa-fé, abusividade, interes-
se público, dentre outras, que aproximam sua atuação daquela desen-
volvida pelo juiz anglo-saxão.85
Não se quer aqui defender a tese de absoluta insubsistência da
divisão entre common law e civil law, mas tão somente reafirmar que
ela se tornou artificial no que concerne com a vinculação legal aos pre-
cedentes judiciais. A rápida e perfunctória descrição de alguns sistema
jurídicos da família civil law feita no tópico predecessor, que comprova
bem sucedida adoção do efeito vinculante em países de tradição roma-
no-germânica, claramente demonstra a inexistência qualquer incom-

168
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

patibilidade ontológica entre esse instituto e as estruturas legais dos


países vinculados à tradição européia continental.
Para começar, o processo silogístico de subsunção do fato à norma
é o mesmo provenha a norma do direito legislado ou de um preceden-
te. O raciocínio utilizado para se chegar ao resultado é o mesmo, e isso
é verdade seja a fonte da norma uma lei ou um precedente.86 O que faz
diferença, para reconhecer às decisões judiciais o status de fonte for-
mal do direito, é o modelo de função social da jurisdição porventura
adotado no país. Assim, países de mesma tradição jurídica, mas com
visão distinta da função social desempenhada pelo judiciário, possuem
visões diferentes acerca da obrigatoriedade de se seguir o precedente
judicial.
A Alemanha, após a trágica experiência nacional socialista, optou
por fortalecer sobremaneira a função do poder judiciário. Como heran-
ça – positiva remarque-se – de sua origem romana, optou por autorizar
legislativamente no § 31, alínea 2, da lei orgânica do tribunal constitu-
cional federal alemão, fossem dotadas suas decisões de força vincula-
tória perante os demais tribunais e o poder executivo. Consoante este
parágrafo, as decisões do tribunal constitucional federal têm força
legislatória no controle normativo abstrato, controle normativo concre-
to, verificação de normas e qualificação de normas; nos recursos cons-
titucionais, vale o mesmo quando o tribunal declara uma lei compatível
ou incompatível com a lei fundamental ou nula.87 A seu turno, o tribu-
nal constitucional federal alemão não se furtou de exercer esse funda-
mental papel político de co-responsável pela formatação e desenvolvi-
mento da ordem legal germânica. A atividade desse tribunal demons-
trou que a jurisdição constitucional não se limita em garantir a supre-
macia da constituição que sinala o coroamento do Estado de Direito,
mas contribui para o desenvolvimento de princípios constitucionais
cardeais, como o princípio do Estado de Direito, o princípio do Estado
Social, o princípio Democrático e o princípio Federativo.88

169
Celso de Albuquerque Silva

O Canadá, por ser um país de tradição anglo-saxã, que natural-


mente reconhece uma função social de enriquecimento do direito legis-
lado, não teve nenhuma dificuldade em adotar o stare decisis para a
província de Quebec, cujo direito se filia à tradição romano-germânica,
ainda na ausência de qualquer previsão legal autorizativa, pois enten-
de que esse status conferido à decisão judicial decorre do próprio sis-
tema jurídico e das funções que os tribunais nele exercem.
A seu turno, os países que limitam a função social do judiciário,
reduzindo seu papel ao de um mero departamento do Estado, prescre-
vendo-lhe basicamente a função de resolver conflitos intersubjetivos, a
exemplo da França, rejeitam o instituto do efeito vinculante. Por isso o
código civil francês expressamente proíbe os juízes de enunciarem
regras jurídicas gerais em suas decisões. Qualquer outra posição seria
inconsistente com a reduzida função social conferida naquele sistema
às cortes judiciárias, vez que inexistem razões para justificar a elabo-
ração de regras legais na decisão judicial, se inexiste a obrigatorieda-
de de aderir a tais regras em casos posteriores. Essa redução do papel
do judiciário na sociedade francesa, como bem observado por Hardisty,
ao compará-lo com o papel exercido nos Estados Unidos, “é ao mesmo
tempo causa e conseqüência do fato dos juízes franceses possuírem
menos poder e prestígio que os juízes americanos”.89 Feita a compara-
ção com o judiciário brasileiro o resultado se mantém inalterado. A judi-
catura brasileira goza de muito mais poder e prestígio que a francesa.
De tudo, então, se pode concluir pela plena compatibilidade da
obrigatoriedade das cortes posteriores seguirem o que ficou decidido
em casos antecedentes com o sistema de fontes normativas dos países
filiados à tradição romano-germânica, como é o caso do ordenamento
jurídico brasileiro.

5.1. Súmula vinculante

Como visto anteriormente, no âmbito do que está sendo tratado


como reforma do judiciário, existem várias propostas de emendas cons-
titucionais que buscam um maior fortalecimento e uma maior eficiência
do poder judiciário. Dentre as sugestões apresentadas, foi aprovada a
adoção da súmula vinculante das decisões do Supremo Tribunal Federal,
mas rejeitada para as decisões de todos os tribunais superiores. A súmu-

170
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

la vinculante, como o próprio nome já indica, confere força de lei e efeito


vinculante às decisões sumuladas pelos tribunais superiores proferidas
em contencioso concreto. A nosso sentir, a adoção da súmula vinculante
é o resultado final e esperado de um processo de maior valorização do
poder judiciário que se iniciou com a Constituição de 1988.
Diferentemente do que ocorre no sistema francês, o sistema jurídi-
co brasileiro confere grande poder e prestígio ao judiciário, chegando
mesmo a ser comparável ao do juiz americano. Basta ver que o ordena-
mento jurídico pátrio confere a todo e qualquer juiz o imenso poder de
deixar de aplicar uma lei por reputá-la inconstitucional, exercendo o
controle difuso da constitucionalidade das leis, o que soa impensável
no direito francês. Aliás, mesmo nos países europeus que privilegiam e
prestigiam o poder judiciário, essa função de declarar a inconstitucio-
nalidade ficou reservada a um órgão específico, o tribunal constitucio-
nal. Esse sistema de controle difuso foi importado dos Estados Unidos
da América e, como já averbado antes, possui sérios inconvenientes
quanto à certeza e uniformidade do direito.90 Esses inconvenientes
foram atenuados no país exportador do modelo, pela adoção da doutri-
na do stare decisis. Assim, para se analisar a conveniência da adoção
da súmula vinculante (similar nacional ao stare decisis americano), é

171
Celso de Albuquerque Silva

fundamental uma leitura do processo de formação da doutrina vincu-


lante nos Estados Unidos da América.

5.1.1. O processo de formação da doutrina vinculante nos Estados


Unidos da América

Na experiência jurídica norte-americana, é firme a orientação de


que a função criativa do direito exercida pelas cortes judiciárias se ori-
gina através da confrontação de diversos pontos de vista e soluções
jurídicas que possam ser hauridas de uma determinada aporia.
Axiologicamente esse processo de discussão repousa na premissa de
que o direito de criação judicial, para ser legítimo e obter aprovação
social que ele requer já que elaborado por um poder não eleito, deve ser
resultado de um amplo debate, no qual os juízes testam distintas solu-
ções possíveis e buscam persuadir da sua idoneidade, em termos jurí-
dicos e pragmáticos, as demais cortes, bem como a todo o auditório
jurídico, através de um discurso argumentativo. Assim, as distintas
opiniões e a dialética das posturas judiciais contrapostas, articuladas
e ordenadas a partir das regras que regem a dinâmica do sistema de
precedentes, constituem o mecanismo pelo qual os tribunais podem
prover o sistema de regras gerais que sejam percebidas pelo auditório
jurídico como justas e razoáveis, na medida em que decorrentes de um
racional e objetivo processo argumentativo.91
Todo o processo se inicia quando os tribunais se defrontam com
situações novas ainda não apreciadas pelas cortes (first impression
cases) ou se defrontam com os chamados casos difíceis, onde o ordena-
mento jurídico positivado não fornece diretrizes seguras para a adjudi-
cação judicial, momento em que com maior clareza se abre o espaço
para a criação do direito judicial. Quando tais controvérsias chegam
aos tribunais de apelação, começa o processo conhecido como “proces-
so de percolação”. Esse processo é um meio de filtragem das inúmeras
propostas, tendências e soluções apresentadas com relação a uma
mesma questão e assim se desenvolve em termos gerais: cada Tribu-
nal, seja estadual ou federal, à luz das discussões sobre as diversas
controvérsias jurídicas que colocam os operadores do direito (advoga-
dos, doutrinadores, juristas, professores e oficiais públicos), atento às

172
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

inúmeras nuances, problemas e pontos de vista que existem ao redor


de um mesmo assunto, estabelecerá distintas regras de decisão e as
confrontará com outras regras formuladas por outros tribunais de
mesma hierarquia, para ao final prolatar sua decisão, criando o direito
que entende mais adequado para a solução da aporia.92
Nesse processo é comum que os tribunais observem, avaliem, cri-
tiquem ou valorizem a atuação dos demais tribunais de mesma hierar-
quia, a fim de formar sua opinião de que regra de direito deve de fato
ser o direito que se aplicará em sua jurisdição. Isso permite que, na
arena judicial, comecem a existir distintas aproximações e pontos de
vista a respeito de qual direito deve regular determinada questão jurí-
dica. Essa discrepância nos pontos de vista dos tribunais, que ocorre
nessa primeira fase de desenvolvimento da doutrina vinculante, é fator
que enriquece e legitima socialmente o processo de formação do direi-
to de criação judicial.
Ocorre que esse dinamismo e dispersão que caracterizam e forta-
lecem a elaboração da doutrina vinculante em sua primeira fase é, a
longo termo, insustentável e prejudicial, na medida em que torna o
direito e, por conseguinte, a própria vida em sociedade, extrema e into-
leravelmente incertos e inseguros. Daí porque o sistema judicial ameri-
cano – como sói ocorrer com os demais – prevê a existência de um
órgão supremo93 para ordenar e corrigir os possíveis erros e fraturas
que potencialmente possam ocorrer na fase inicial do processo, garan-
tir a uniformidade do direito no país e prestar respeito ao mandamento
de tratamento isonômico a ser conferido a todos os membros da coleti-
vidade. No sistema norte-americano, esse papel foi outorgado à
Suprema Corte Americana que, então, possui a competência última
para elaborar e definir qual a lei federal que rege o país.
Mais importante, porém, do que descobrir a quem se outorgou
essa competência última, é sinalar que nesse processo de adjudicação
concreta dos problemas jurídicos, a Suprema Corte exerce seu poder
normativo definitivo quando o assunto está “maduro” juridicamente, já
exaustivamente debatido nas instâncias inferiores e conhecidas as
conseqüências sociais das diversas abordagens adotadas, de sorte
que, ao elaborar o direito de criação judicial, o Tribunal pode avaliar o

173
Celso de Albuquerque Silva

grau de controvérsia da questão, a partir dos efeitos jurídicos, políticos,


sociais e econômicos das diversas regras de direito estabelecidas pelas
instâncias ordinárias, o que lhe capacita a eleger o momento político
adequado para resolver o assunto, bem como determinar o nível de
generalidade de sua decisão, a fim de torná-la o mais aceitável social-
mente possível.

5.1.2. O contexto brasileiro

A situação brasileira é, no particular, muito similar à realidade


americana. O Brasil também é uma federação. Seu sistema judiciário é
repartido entre a justiça dos Estados e a Justiça Federal. Os tribunais
regionais federais são em número de cinco. Dois se situam na região
sudeste – segunda e terceira regiões –; um abrange a região norte e
centro-oeste – primeira região –; um está situado na região sul – quar-
ta região – e um se situa no nordeste – quinta região. Todos eles, mais
os tribunais estaduais, decidem questões baseadas em leis federais e
na constituição, já que acolhido em nosso sistema o controle difuso de
constitucionalidade.
Quando se defrontam com questões novas, não é incomum que
tais tribunais, no momento de formular suas regras de decisões, levem
em consideração decisões proferidas por outros tribunais de mesma
hierarquia seja para acolhê-las ou rejeitá-las, juntamente com a análise
dos fatores sociais, culturais e econômicos em que inseridos, já que o
Brasil é um país continental com grande disparidade nesses aspectos.
A conseqüência natural é a existência de uma plêiade de interpreta-
ções sobre o que é a lei que deve reger um mesmo assunto.
Tal como no sistema americano, a constituição previu um órgão
supremo (na verdade dois) para ordenar o sistema e uniformizar a apli-
cação do direito. O Superior Tribunal de Justiça nas causas concernen-
tes a controvérsias sobre o sentido e implicações da lei federal e o
Supremo Tribunal Federal nas questões de cunho constitucional. As
causas quando chegam a esses tribunais superiores, via recurso espe-
cial (STJ) ou recurso extraordinário (STF), já estão suficientemente
“maduras” em virtude da prévia discussão ocorrida nos tribunais de
segunda instância. Nesse contexto, a adoção da súmula vinculante,
mais do que conveniente, é um verdadeiro consectário lógico do siste-
ma e da função social que os Tribunais exercem em nosso país.
Assim, embora aprovada a súmula vinculante apenas para as
decisões do Supremo Tribunal Federal, não se compreende como se

174
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

possa negar ao Superior Tribunal de Justiça o efeito vinculante das


decisões já pacificadas em seu seio, quando uma das hipóteses de
cabimento do recurso especial é exatamente a insegurança gerada por
interpretações judiciais divergentes quanto ao sentido da lei federal
dadas pelos tribunais inferiores.
Com efeito, reconhecido que compete ao STJ, em existindo inter-
pretações divergentes acerca do significado das leis federais, definir
qual a interpretação que deve prevalecer, o consectário natural é que
essa decisão deve ser dotada de autoridade para vincular todas as cor-
tes, inclusive e principalmente, aquelas cortes que estavam conferindo
à lei federal interpretação divergente daquela reconhecida pelo
Tribunal Superior. Essa circunstância é exigência de racionalidade,
coerência, consistência e sanidade que se supõe inerentes a qualquer
sistema jurídico.
Sinale-se que o legislador infraconstitucional tem caminhado na
direção de outorgar aos tribunais superiores o poder de vincular os tri-
bunais inferiores no que se refere ao conteúdo de suas decisões profe-
ridas em processo subjetivos. A Lei no 10.259, de 12 de julho de 2001,
é um exemplo dessa tendência, pois outorgou ao STF e STJ, o poder de
no processo de uniformização de interpretação de lei federal, determi-
nar liminarmente a suspensão de todos os processos em que a contro-
vérsia esteja estabelecida (art. 14 e parágrafos e artigo 15).
Esse novo modelo legal traduz, sem dúvida, um avanço na concep-
ção vetusta que caracteriza o recurso extraordinário e o recurso espe-
cial, que deixam de ter caráter marcadamente subjetivo ou de defesa
de interesse das partes, para assumir, de forma decisiva, a função defe-
sa da ordem legal e/ou constitucional objetiva, orientação dominante
tanto nos modernos sistemas de Corte Constitucional, como também
no direito americano.94
Essas iniciativas legislativas nada mais são do que o coroamento
desse processo de solidificação do Poder Judiciário e uma resposta às
exigências de coerência, consistência e racionalidade sistêmicas. No
que concerne especificamente ao Superior Tribunal de Justiça, con-
quanto não aprovada reforma constitucional que expressamente outor-
gue efeito vinculante de suas decisões, nada impede, a nosso sentir, a
concessão desse efeito pela lei ordinária que se apresenta como ins-

175
Celso de Albuquerque Silva

trumento hábil para alcançar o desiderato, em virtude e decorrência


dos princípios da isonomia e legalidade, e bem assim da posição hie-
rárquica e das funções que lhes foram outorgadas pelo Poder Consti-
tuinte. Esse efeito, a nosso entender, já se encontra autorizado na Lei
no 10.259/2001, nas hipóteses ali mencionadas e que podem ser elaste-
cidas via interpretação judicial construtiva lastreada nos princípios
constitucionais acima mencionados.

5.2. Súmula vinculante ou súmula impeditiva de recurso?

Como descrito supra, originalmente a PEC 92/92 só previa a edi-


ção de súmulas vinculantes para as decisões do Supremo Tribunal
Federal. Posteriormente, tramitando no Senado sob no 29/2000, o rela-
tório do Senador Bernardo Cabral estendeu esse efeito para os demais
Tribunais Superiores, afinal, suprimido no substitutivo de relatoria do
Senador José Jorge, prevendo, em seu lugar, a súmula impeditiva de
recurso. A súmula vinculante foi mantida apenas para as decisões do
Supremo Tribunal Federal e, aprovado o substitutivo que instituía a
súmula impeditiva de recurso para os demais Tribunais Superiores.
Embora ontologicamente a súmula vinculante e a impeditiva de
recursos não sejam antitéticas, podendo esta última funcionar como
um filtro do que deve chegar aos Tribunais Superiores, sem afastar os
benefícios que advêm do efeito vinculante, a discussão travada cen-
trou-se nas vantagens comparativas entre os dois instrumentos. Nesse
estreito campo de análise, entendemos ser a súmula vinculante supe-
rior a súmula impeditiva de recursos.
Os argumentos utilizados pelos defensores da superioridade da
súmula impeditiva de recursos sobre a súmula vinculante, podem
assim ser sintetizados: a) ambos instrumentos processuais visam redu-
zir a desumana carga de processos repetitivos com que diariamente se
defrontam os Tribunais Superiores; b) a súmula impeditiva de recursos
alcança esse desiderato sem retirar a independência dos juízos inferio-
res;95 c) a súmula vinculante não reduzirá o número de feitos, pois as
partes vencidas sempre insistirão em recorrer da decisão que aplicou a
súmula vinculante, seja pelo desejo de reverter o resultado, seja por
reprovável chicana. Mais adequado seria adotar um mecanismo impe-

176
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ditivo da interposição de recursos, nas hipóteses em que já existe


súmula. Aí sim, haveria redução de recursos protelatórios, principal-
mente dos entes públicos que entulham os Tribunais.96 Analisemos
esses argumentos.
O primeiro desses argumentos peca por um reducionismo inacei-
tável. O efeito vinculante, do qual a súmula vinculante é apenas a
forma de operacionalização no contencioso concreto, tem finalidades
muito mais amplas e nobres do que simplesmente reduzir a carga de
trabalho dos Tribunais Superiores. Essa também é uma vantagem
decorrente de sua adoção, mas não é a única, menos ainda, a primeira
ou mais importante. Como visto na parte I deste trabalho, o efeito vin-
culante visa assegurar um tratamento igualitário entre os jurisdiciona-
dos, notadamente os menos favorecidos que têm sido excluídos dos
benefícios da cidadania, naquelas causas de repetição. Visa ainda
garantir a imparcial aplicação da lei, assegurando previsibilidade dos
efeitos decorrentes dos preceitos normativos, maximizando por conse-
qüência, o âmbito de liberdade dos cidadãos. Dessa previsibilidade e
estabilidade do direito é que, mediatamente, decorre a maior eficiência
da máquina judiciária, inclusive, com a redução de sua carga de traba-
lho em virtude da diminuição das demandas civis e penais face à esta-
bilização do sentido do direito vigente naquela coletividade. É também
um grande instrumento para coarctar o arbítrio judicial, pois reforça o
judicial restraint e o princípio da maioria que pertence ao Legislativo,
promovendo de forma indireta o princípio democrático. Assim, revela-
se incorreta e falsa a primeira premissa dos defensores da súmula
impeditiva de recurso, de que esta compartilha com a súmula vinculan-
te os mesmos objetivos. Como a súmula impeditiva não protege os
valores que a súmula vinculante protege, aquela é qualitativamente
inferior a esta.
O segundo argumento de que a súmula vinculante, para alcançar
seu objetivo, cobra uma preço excessivamente alto por implicar na retira-
da da independência judicial, também não colhe. Como já demonstrado
anteriormente,97 o efeito vinculante não retira a independência judicial,
apenas reduz a abstratividade da lei e impõe, via legislador democrático,
limites substanciais ao exercício da discricionariedade do julgador.

177
Celso de Albuquerque Silva

O terceiro e último argumento, é quase uma contradição em ter-


mos. Afirma que a súmula vinculante não irá reduzir o número de pro-
cessos nos tribunais, pois as partes insistirão em recorrer da decisão
que lhe tenha sido desfavorável com a aplicação da súmula vinculante.
A única saída seria, então, a adoção da súmula impeditiva de recurso.
Esta, em breve síntese, impediria o acesso à via recursal quando a deci-
são fosse compatível com a súmula do Tribunal Superior, ao tempo em
que permitiria a interposição de recurso quando a decisão contrarias-
se a súmula impeditiva.98 Mas de que recurso estamos falando? O
recurso de apelação, o recurso especial ou de revista, talvez, mas não o
de agravo.
Com efeito, a súmula impeditiva de recurso apenas troca um recur-
so por outro. A parte vencida terá negado seguimento ao recurso de
apelação, se a decisão aplicou o entendimento da súmula, por exemplo,
mas dessa decisão inevitavelmente agravará e, provavelmente, com o
fundamento de aplicação indevida da súmula. O recurso de agravo
necessariamente subirá, pois não se trata de recurso contra a decisão
que se amoldou à súmula, mas contra a decisão que negou seguimen-
to ao recurso de apelação que, evidentemente, não é alcançada pelo
impedimento da súmula. A súmula impede a discussão sobre o seu
mérito, mas não e nem poderia fazê-lo sob pena de violação ao devido
processo legal – se ela foi ou não corretamente aplicada. Admita-se que
no Tribunal o relator monocraticamente não conheça do agravo, pois a
decisão objeto do recurso de apelação está conforme a súmula impedi-
tiva. Novo recurso: agravo interno para a Turma. A Turma nega provi-
mento ao agravo. Novo recurso: recurso especial para o Superior
Tribunal de Justiça. Ou seja, a súmula impeditiva não reduz em abso-
lutamente nada a carga de trabalho dos Tribunais e talvez até a aumen-
te, se o agravo vier a ser provido, o que certamente ocorrerá em várias
oportunidades. Por outro lado, a súmula vinculante permite o manejo
da reclamação que leva imediatamente a discussão da questão para o
Tribunal que, alegadamente, teve a autoridade de sua decisão desres-
peitada, tornando mais eficiente a administração da justiça. Se a ques-
tão vai chegar de uma forma ou outra ao Tribunal Superior, melhor que
isso seja feito da mais célere e econômica forma. Isso levanta uma
outra questão muito importante.

178
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

A súmula vinculante abrange não só o Poder Judiciário, mas tam-


bém o Poder Executivo. Por outro lado, a redução dos processos nos
Tribunais Superiores decorre não da tentativa de se vedar a via recur-
sal à parte inconformada com a decisão, pois ela sempre encontrará um
meio de levar sua questão ao reexame do Tribunal. A redução decorre
de um efeito indireto da súmula vinculante. Ao vincular o Poder
Executivo, ele ficará impossibilitado de insistir em teses já refutadas
pelos Tribunais Superiores, reduzindo a demanda judicial imediata-
mente na própria primeira instância e a fortiori nos Tribunais. Ademais,
estabilizando o sentido da norma e tornando previsíveis os efeitos dela
decorrentes, todos os seus destinatários procurarão conformar sua con-
duta a esse sentido, o que acarreta uma natural diminuição nas lides
penais e civis. Um instrumento processual que busque meramente
vedar o acesso à Segunda Instância, não estabiliza e uniformiza o sen-
tido das normas; não implica em redução da demanda judicial na pri-
meira instância e, conseqüentemente, na segunda instância, pouco ou
quase nada contribuindo para a eficiência na gestão dos recursos
materiais e humanos à disposição do Poder Judiciário. A chamada
“súmula impeditiva de recurso” é, portanto, além de qualitativa, tam-
bém quantitativamente inferior à súmula vinculante, por deixar de fora
a vinculação do Poder Executivo.
Nesse diapasão, força reconhecer, como corretamente concluiu em
seu parecer o relator da PEC 29/2000, Senador José Jorge, ao rejeitar a
sugestão de outorgar também ao Supremo Tribunal Federal a súmula
impeditiva de recursos, que a “súmula vinculante parece superior para
enfrentar com eficácia a multiplicação de processos e a necessidade de
celeridade processual”.

179
Capítulo 5
Fundamentos Teóricos do Efeito Vinculante

1. Noções conceituais

O presente capítulo busca analisar os princípios teóricos que


orientam a adjudicação judicial baseada em precedentes judiciais – o
case system do sistema anglo-saxão – questão que assume contornos
que desbordam da simples conveniência para abarcar a seara da
necessidade, tendo em vista a adoção do efeito vinculante das deci-
sões do Supremo Tribunal Federal em nosso ordenamento jurídico.
O declarado objetivo é eriçado de dificuldades, haja vista a inexis-
tência de uma unanimidade quanto aos aspectos centrais da doutrina
vinculante mesmo nos países de larga tradição e experiência no tema.
Por esse motivo, a metodologia adotada intenta visualizar as diversas
tendências doutrinárias a respeito do tema e, após analisá-las, sugerir
aquela que melhor responda aos anseios e necessidades de nosso sis-
tema jurídico. Nada obstante, desde logo se adverte que a empreitada,
ainda que completamente exitosa quanto aos objetivos a que se pro-
põe, servirá apenas para estimular o debate sobre esse vital tema.

1.1. Precedentes vinculativos e precedentes persuasivos

Visando aclarar um pouco mais o tema objeto de análise, mister


esclarecer que os tribunais classificam os precedentes em duas cate-
gorias. Na primeira, eles se referem a precedentes obrigatórios, vincu-
lantes, que determinam o resultado de um caso futuro semelhante. Na
segunda categoria, enquadram os chamados precedentes persuasivos1
que possuem apenas força moral sobre as demais cortes, mas que não
impõem obrigatória obediência. Nada obstante a importância dessa
categoria de precedentes, este capítulo se dedicará exclusivamente à
análise da função e aplicação dos precedentes vinculantes. Assim,

181
Celso de Albuquerque Silva

quando aqui se utilizar da terminologia “precedentes”, estar-se-á tra-


tando apenas de precedentes obrigatórios.
A adjudicação judicial baseada em precedentes tem como núcleo
duro, a análise de três elementos básicos que estruturam a decisão dos
Tribunais: holding ou ratio decidendi, dictum e rationale. Esses conceitos
admitem distintos níveis de discussão e, conseqüentemente, diversos
significados. A perspectiva do presente capítulo tem por finalidade ana-
lisar o precedente judicial e, a fortiori, os elementos que o compõem por
apenas dois ângulos: a) do litígio decidido entre as partes e b) da força
normativa que essa decisão inter partes terá em litígios futuros.

1.2. Holding/ratio decidendi

Preliminarmente, impende esclarecer que as expressões holding e


ratio decidendi se referem ao mesmo elemento da decisão judicial. Em ou-
tro dizer, são expressões sinônimas. A primeira delas é própria do direito
norte-americano, enquanto que a segunda, do direito inglês. Para efeito
deste trabalho, ambas expressões serão utilizadas indistintamente.
Quando se tem em vista a específica decisão proferida no caso
concreto, o holding nada mais é do que a opinião da corte sobre a ques-
tão de direito que lhe é posta para análise. Em termos descritivos, a
ratio decidend implica simplesmente na explanação da justificação da
corte para sua decisão baseada em uma análise sociológica, histórica
ou até mesmo psicológica. O resultado dessa análise é considerado
verdadeiro ou falso como uma questão de fato. Em termos prescritivos,
a ratio decidendi se refere ao julgamento normativo, ou seja, uma ques-
tão de direito.2 Nesse último sentido, portanto, o holding é o princípio
jurídico que o Tribunal estabeleceu para decidir aquele específico caso.
Assim, a ratio decidendi, “é uma regra expressa ou implicitamente pro-
latada por um juiz que é suficiente para resolver uma questão de direi-
to colocada em discussão pelos argumentos das partes em um caso,
sendo uma questão sobre a qual uma regra era necessária para justifi-
car a decisão no caso”.3
No que concerne à força normativa que essa decisão terá em futu-
ros litígios, Salmond em seu clássico Jurisprudence averbou: “Um pre-

182
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

cedente é uma decisão judicial que contém dentro de si um princípio.


O princípio subjacente que contém o elemento de autoridade é fre-
qüentemente chamado ratio decidendi. A concreta decisão é vinculan-
te para as partes, mas é a abstrata ratio decidendi que sozinha possui
força de lei com relação ao resto do mundo”.4
Essa conceituação apresentada apesar de útil é insuficiente, pois
não enfrenta o real dilema com que se defronta a aplicação do prece-
dente ao caso subseqüente, momento em que o princípio contido na
decisão concreta se tornará abstrato e passará a desbordar de seu
campo de atuação na lide para vincular futuros litígios semelhantes.
Em outro dizer, qual a autoridade da regra legal encontrada no prece-
dente? É, em princípio, uma forte evidência do direito; ou é obrigatória
como um ato posto pelo legislativo, ou então, ocupa alguma posição
entre esses dois extremos. Outra questão ainda por responder e subs-
tancialmente relacionada com a primeira é como extrair da regra que
decide o caso concreto aqueloutra aplicável a hipóteses semelhantes,
o que implica em dotar de maior generalidade e abstração os fatos que
instruíram originariamente a lide. Como será visto mais adiante, não
existe uma resposta única à essas perguntas. É que, embora classica-
mente o holding de um particular caso seja considerado vinculante
para o resultado de casos futuros que sejam similares ao caso prece-
dente em todos os aspectos relevantes, “uma resposta incontroversa
sobre a questão de quais são as similitudes e diferenças relevantes
entre o caso atual e o caso precedente, não pode ser obtida até o pre-
cedente ser realmente interpretado pela corte vinculada”.5
Essa realidade insofismável de participação conjunta da corte vin-
culante e da corte vinculada na elaboração da ratio decidendi tem pro-
piciado o surgimento de inúmeras teorias sobre a força do precedente
judicial. É que, como uma questão prática, a força da doutrina vinculan-
te é inversamente proporcional à discrição que a corte vinculada pos-
sui para determinar qual é o holding do precedente. Quanto maior for
essa discrição, menor é a força da vinculação e vice-versa. Dentro
desse espectro, podem ser consideradas teorias, variando desde a
mais ou menos formalista que apontam para uma absoluta ou relativa
vinculação ao precedente, até a mais ou menos cética quanto a possi-

183
Celso de Albuquerque Silva

bilidade de se proceder a essa vinculação. “As teorias formalistas são


aquelas que apresentam a ratio como relativamente fixa e determina-
da, ou pelo menos determinável; as teorias céticas são aquelas que tra-
tam o termo como tendo somente uma referência ilusória e, conseqüen-
temente, como significando o que quer que a corte vinculada queira
que seja”.6 Essas variantes teóricas serão analisadas com maior pro-
fundidade no item 2.

1.3. Obiter dictum

O conceito de obiter dictum ou simplesmente dictum, está firme-


mente ligado ao conceito de holding. De fato, o dictum corresponde
exatamente à contraface do holding. Antes de se mover adiante para
conceituar e, ipso facto, distinguir o dictum do holding, mister se faz
alertar que essa problemática só se põe para as teorias formalistas, nas
quais é importante definir o que a corte disse. Teorias céticas sobre
precedentes se estruturam muito mais no que a corte fez, do que
naquilo que a corte disse, daí porque em tais hipóteses, perde relevo a
distinção entre o que dito a título de holding e o que foi dito a título de
dictum. É que, se para as teorias céticas o holding pode ser qualquer
coisa que a corte vinculada queira que seja, o que seria dictum, pode
ser considerado holding e vice-versa.
Como visto, holding é a regra ou princípio enunciado pelo juiz em
um determinado caso que era necessário para a resolução da questão.
Assim, toda e qualquer regra elaborada pela corte que não era neces-
sária para a solução da questão é considerada dictum. Considerando
que as cortes podem criar regras de direito, mas com a limitação de
que elas devem estar relacionadas com os fatos postos sob adjudica-
ção, esse poder está confinado pelas necessidades das controvérsias
que lhe são submetidas para decisão. Qualquer pronunciamento que
vá além dessa necessidade, não pode exercer autoridade obrigatória
sobre casos futuros.7
Os dictum, portanto, são aquelas considerações jurídicas elabo-
radas pelo Tribunal não relacionadas com o caso, embora as considere

184
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

desnecessárias para justificar a decisão proferida. São pronunciamen-


tos que se afastam do princípio justificador daquela decisão. A partir
do momento que dele se afastam, o tribunal passa a falar “extrajudi-
cialmente e nenhuma opinião que possa expressar é considerada vin-
culante”.8 Essa passagem do voto do Chief Justice Marshall em Cohens
v. Virgínia, bem equaciona a questão.

“É uma máxima para não ser desconsiderada que expressões


gerais em cada opinião devem ser analisadas em conexão com o
caso nos quais essas expressões são utilizadas. Se elas vão além
do caso, elas podem ser respeitadas, mas não devem controlar o
julgamento em um caso subseqüente, quando a questão é posta
para decisão. A razão dessa máxima é óbvia: A questão que está
realmente perante a corte é investigada e considerada em toda
sua extensão. Outros princípios que podem servir para ilustrá-la
são considerados em sua relação com o caso decidido, mas seu
possível significado em todos outros casos raramente é completa-
mente investigado.”9

O exemplo mais visível de utilização de um dictum é quando o tri-


bunal de forma gratuita sugere como resolveria uma questão conexa ou
relacionada com a questão dos autos, mas que no momento não está
resolvendo. Por exemplo, ao analisar um pedido da habeas corpus coli-
mando obter a nulidade do decreto de prisão cautelar do paciente ao
fundamento de excesso de prazo na instrução, o Tribunal indefere a
ordem por verificar que o atraso na instrução ocorreu por requerimen-
tos da defesa. Essa fundamentação10 é suficiente para decidir a lide.
Entretanto, gratuitamente e sem maiores investigações, a corte anota
que, não tivessem existido tais requerimentos, a solução seria diversa
e a ordem seria concedida com a declaração da nulidade da prisão cau-
telar. Essa proposição, de que havendo excesso de prazo sem que a
defesa tivesse concorrido para tal implicaria em nulidade do decreto de
prisão cautelar, é meramente dictum não possuindo força vinculante

185
Celso de Albuquerque Silva

com relação às demais cortes, pois não se investigou todas as possibi-


lidades a ela concernentes. É que poderia existir uma outra situação de
excesso de prazo, sem que a defesa tivesse concorrido para ele, mas
que tivesse decorrido de outros fatores que não estavam postos na
causa decidida, por exemplo, a complexidade do crime e quantidade
dos réus.11 Em tal situação, uma razoável extensão do prazo legal para
encerramento da instrução seria válida e não acarretaria nulidade do
decreto prisional, não estando uma outra corte obrigada a conceder
ordem de habeas corpus em uma causa subseqüente, contendo essas
circunstâncias fáticas, em razão do dictum exarado no precedente.
Certo que, tal como ocorre com identificação do holding, essa qualifica-
ção do dictum baseada no critério da desnecessidade da consideração
jurídica efetivada é bastante ampla e manejável e, talvez por isso
mesmo, seja tão preferida.

1.4. Rationale

A rationale de um caso é a razão dada pela Corte para adotar o


específico princípio ou a específica regra que irá decidir a lide, pondo
fim ao litígio. A importância das razões que subjazem à ratio deciden-
di no que concerne à vinculação do precedente judicial varia, depen-
dendo da função social conferida às cortes. No modelo de “resultado
subjetivo” (by product model) a sua importância é mínima, pois a regra
acolhida na lide só se aplica àquela específica decisão. Situação diver-
sa ocorre no modelo de “enriquecimento do direito” (enrichment
model), que reconhece uma função prospectiva ao poder normativo dos
tribunais, na medida em que as razões do caso “assumem sua maior
importância em situações nas quais a parte procura expandir a doutri-
na de um caso particular para além dos limites definidos por aquele
caso”.12 Uma análise da doutrina americana das classificações suspei-
tas (suspect classifications) ilustra muito bem a importância do rationa-
le na vinculação do precedente.
Na nota de rodapé no 4 lançada pelo Justice Stone no caso United
States x Carolene Products S.A., estabeleceu-se o princípio de que as
leis dirigidas contra minorias reduzidas e insulares que lhes trouxessem
prejuízo, ou fossem potencialmente perigosas aos processos pelos quais

186
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

seus direitos são defendidos, se submeteriam ao controle judicial mais


rigoroso, invertendo-se o princípio da presunção da constitucionalidade
da lei para o da inconstitucionalidade.13 Em Loving v. Virgínia, a
Suprema Corte Americana decidiu que, em razão do princípio da isono-
mia, classificações raciais estavam submetidas ao controle judicial mais
rigoroso.14 O princípio que governou o caso foi de que classificações
com base na raça são suspeitas e, portanto, se submetem ao critério
judicial mais rigoroso. A rationale para a adoção dessa doutrina foi que
os membros da raça negra são “uma minoria insular e reduzida”. Em
Yick Wo v. Hopkins, a Suprema Corte invalidou uma discriminação con-
tra os descendentes de chineses, afirmando que o princípio da igual
proteção previsto na 14a emenda deveria ser aplicado sem consideração
de raça ou nacionalidade.15 O princípio que dirimiu a lide foi de que dis-
criminação com base em nacionalidade é suspeita e, portanto, se sub-
mete ao controle judicial mais rigoroso. A rationale foi que estrangeiros
são “uma minoria insular e reduzida”. Em Reed v. Reed, a Suprema
Corte Americana julgou inconstitucional uma lei dispondo que existin-
do várias pessoas com direito a serem nomeadas administradores de
bens de falecido, os homens deveriam preferir às mulheres.16 O princí-
pio adotado para o caso foi que classificação baseada exclusivamente
no sexo é suspeita e deve se submeter ao controle judicial mais rigoro-
so. A rationale foi que os membros do sexo feminino são “uma minoria
insular e reduzida”. Como se vê, através da rationale das decisões,
pode-se verificar que o fato de ser de uma raça ou de ser estrangeiro, ou
de ser de determinado sexo, eram manifestações individualizadas e
concretas de um mesmo conjunto de fatos mais geral e abstrato e que,
portanto, deveriam se submeter ao mesmo princípio jurídico que gover-
nou o caso precedente. Essa circunstância demonstra a importância da
rationale no desenvolvimento do direito de criação judicial.

2. Modelos teóricos de vinculação ao precedente judicial


As cortes judiciárias exercem duas funções sociais fundamentais:
a função de resolver litígios que se volta para as partes do processo e

187
Celso de Albuquerque Silva

para o passado e a função de desenvolvimento do ordenamento jurídico


que se volta para a sociedade como um todo e para o futuro.17 Quando
referenciadas ao respeito que se deve dar às decisões passadas na solu-
ção de casos futuros, inevitavelmente surgirão tensões na diferença de
orientações que ordenam essas duas funções. Essas tensões possuem
dois níveis ou ângulos de análise. O primeiro se refere ao peso que deve
ser dado ao precedente judicial. Em outro dizer, o que ficou decidido no
caso precedente dever ser considerado uma forte presunção do que
direito é, mas que pode ser afastada se razões ponderáveis assim deter-
minarem; ou deve ser considerado de forma absoluta, pois efetivamen-
te define e concretiza a regra de direito, ou ainda, ocupa alguma posi-
ção entre esses dois extremos. O segundo nível está referenciado com a
seguinte questão: após definido qual o nível de vinculação deve ser con-
ferido ao precedente, como extrair a regra vinculante.
A doutrina busca reconciliar essas tensões ora privilegiando uma,
ora outra função, o que implica na elaboração de inúmeras teorias
sobre a influência de decisões pretéritas na solução de casos futuros
semelhantes. Todas essas teorias, porém, podem ser agrupadas sob o
manto de três abordagens básicas, que, na esteira da classificação de
Eisenberg, serão chamadas de “minimalistas”, “centradas no resulta-
do” e “normativas”.18 No presente item, a questão será abordada no
primeiro dos níveis mencionados, através da descrição e crítica das
três abordagens teóricas básicas sobre qual a força vinculativa do pre-
cedente. No próximo item, será analisada a questão de como se extrair
do precedente a regra que irá governar os casos futuros semelhantes.

2.1. Modelo minimalista

O modelo minimalista parte do pressuposto que a força conferida


a decisões judiciais pretéritas para governar um caso futuro semelhan-
te deve ser proporcional, tal como ocorre na ciência e na ética, à con-
gruência entre o princípio moral que sustenta a decisão e os princípios
morais que regem a vida da coletividade como um todo. A influência

188
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

que um caso anterior terá na decisão de um caso semelhante futuro


independe de uma exigência formal de que os precedentes devem ser
seguidos. A força do precedente não reside em aspectos formais, mas
substanciais. A correção moral da decisão judicial, ponderada com
diversas outras diretrizes morais que se interligam para a decisão do
caso subseqüente, é que irá determinar a real força e peso do prece-
dente na decisão da corte vinculada. Isso é assim, porque nesse mode-
lo advoga-se uma clara distinção entre uma interpretação dedutiva
típica de interpretação de textos legislativos e uma interpretação indu-
tiva típica de interpretação baseada em precedentes, distintas entre si
não pelos seus aspectos formais (geral para o particular na dedutiva e
particular para o geral na indutiva), mas pelo aspecto substancial
quanto ao modo de justificação da regra.
A questão crucial para esse modelo reside na resposta à seguinte
questão: O que legitima um juiz posterior generalizar uma regra jurídi-
ca extraída de fatos particulares de um caso anterior qualquer? Para os
minimalistas, o real problema enfrentado por essa questão é inerente a
qualquer generalização que decorre de um processo indutivo, seja no
direito, seja na ciência, seja na ética. O real problema, então, seria o de
encontrar um critério adequado para extrair, de um caso particular,
uma regra geral apropriada. Com exemplos extraídos da natureza
assim é posto o problema: como é possível passar-se da afirmação sin-
gular “este corvo é preto” e “aquele corvo também é”, para “todos os
corvos são pretos”? Se nós não vimos todos os corvos, o que justifica
conferir o status de verdadeira essa afirmação universal sobre os cor-
vos?19 A teoria minimalista rejeita a postura convencionalista que
imbrica em uma única base teórica a justificação da universalização e
a verdade dessa universalização. Não pode vir em socorro da resposta
o imperativo categórico de Kant, de que uma norma moral individual é
aquela passível de aplicação universal. Como conseqüência, para os
minimalistas, a forma universal da regra judicial só pode ser justifica-
da, se a forma individual da regra legal é ela própria correta e justificá-
vel.20 Por outro lado, a teoria minimalista reconhece como justificáveis
os valores substantivos perseguidos pela doutrina vinculante, espe-

189
Celso de Albuquerque Silva

cialmente a segurança jurídica e a igualdade, embora não lhes conce-


da um peso absoluto ou superior aos demais valores que se entrelaçam
para a solução da lide.21 A solução, portanto, se encontra na pondera-
ção entre esses distintos valores morais quando entre eles houver cho-
que ou contraposição.
Para uma melhor compreensão do modo de operacionalização do
modelo minimalista no sistema jurídico, é útil uma análise do processo
de tomada de decisão no âmbito extrajudicial.22 Adote-se a seguinte
hipótese: Quando meu filho atinge a idade de 18 anos, ele pede uma
motocicleta. Após avaliar todos os riscos e todas as vantagens de lhe
dar uma motocicleta, decido atender seu pedido. Quando minha filha
chega a mesma idade de 18 anos, faz o mesmo pedido. Para facilitar o
convencimento, além de apontar que os benefícios de possuir uma
motocicleta superam os riscos, naturalmente irá acrescentar, como
motivo autônomo, o fato de que anteriormente foi dada uma motocicle-
ta para seu irmão. Assim, ela tem a legítima expectativa (previsibilida-
de) que eu também irei autorizá-la a dirigir motocicleta, pois ela é
merecedora de um idêntico tratamento.
O modelo minimalista possui, basicamente, a mesma forma de
operar no sistema legal. No caso precedente que traz uma questão
nova (first impression case), a corte vinculante analisa todos os aspec-
tos concernentes à elaboração da regra que, ao por termo à lide, irá
decidir o caso em favor de uma ou da outra parte. As razões apresen-
tadas para justificar a decisão podem levar em consideração aspectos
relativos a apenas as partes ou também considerar os efeitos da deci-
são relativamente a todos os membros da coletividade. Menos que
apontar essas diferenças, mais importante é alertar que, sejam quais
forem as razões em que a corte vinculante se baseou para decidir a
questão, elas são razões que o tribunal acredita sejam aprovadas por
uma teoria moral e politicamente correta.
Nesse sentido, uma vez que a corte vinculante decida uma questão
nova, o só fato dessa decisão existir se transforma em uma razão autô-
noma que se somará àquelas que justificaram a prévia decisão, apon-
tando, em princípio, para o dever dos tribunais vinculados decidirem
litígios semelhantes da mesma maneira, tal como ocorreu com o exem-
plo de minha filha, onde minha prévia decisão de autorizar meu filho a

190
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

dirigir motocicleta passou a ser uma razão autônoma por ela utilizada
para obter a mesma decisão, razão essa que, como é óbvio, não existia
no caso precedente. Assim, a decisão precedente acrescenta àquele
conjunto inicial de razões mais algumas, como igualdade e segurança
jurídica, que apontam para a exigência de uma decisão similar.
Diante do caso futuro semelhante, a corte vinculada não irá ponde-
rar apenas as mesmas razões morais que foram ponderadas no caso pre-
cedente. Além delas, a corte vinculada deverá acrescentar à ponderação
daqueles aspectos, mais uma razão moral para se dar uma decisão seme-
lhante: a própria decisão precedente. Assim, é possível que, ao exercer
essa ponderação, a corte vinculada embora considere que a decisão pre-
cedente foi incorreta com base naquele conjunto inicial de razões e que,
portanto, não deveria ser repetida, ao decidir o presente caso cujo conjun-
to de razões foi acrescido pelos princípios da isonomia e da segurança
jurídica decorrentes da anterior decisão incorreta, pode entender que o
atual resultado da ponderação favoreça aquele que deveria ter perdido a
causa se a corte vinculada tivesse decidido a causa precedente. Nessa
situação, a corte vinculada estaria obrigada a seguir o precedente mesmo
o considerando incorreto. Entretanto, é possível que, mesmo com a adi-
ção dessas novas razões (igualdade e segurança jurídica), a ponderação
ainda leve a um resultado que penda em favor da parte que perdeu no
caso precedente. Nessa circunstância, a corte vinculada é livre para aban-
donar o precedente e decidir a causa que lhe foi posta para adjudicação
da forma que achar correta. Verifica-se, portanto, que a latitude do poder
discricionário da corte vinculada para seguir ou não o precedente é muito
ampla e, como alertado anteriormente, quanto maior essa latitude, menor
é a força obrigatória do precedente judicial.

2.2. Modelo centrado no resultado

Como o próprio nome já está a indicar, no modelo de vinculação


centrado no resultado o tribunal adere a um outro precedente conside-
rado vinculante sem levar em consideração se está ou não aderindo ao
princípio ou regra que justificou o resultado, mas sim ao próprio resul-
tado em si, na medida em que a exigência do mesmo resultado no caso
subseqüente decorre da similaridade dos fatos ou a diferença no resul-
tado reflete uma diferença dos fatos dos casos.23

191
Celso de Albuquerque Silva

Nesse sentido, diante de um caso subseqüente similar, a corte vin-


culada pode adotar basicamente duas condutas: a) seguir o preceden-
te se os fatos que se apresentam no caso subseqüente apontam na
mesma ou com maior intensidade para um resultado semelhante ao do
caso precedente, hipótese em que deve decidir de forma análoga a
parte vencedora no caso vinculante. A corte vinculada deve decidir
dessa forma, mesmo que no modelo minimalista que simplesmente
desconsidera qualquer regra estipulada no caso, pudesse decidir dife-
rentemente; b) por outro lado e como consectário lógico, a corte vincu-
lada pode abandonar o resultado do caso vinculante se os fatos do caso
subseqüente apontarem com menor intensidade para o mesmo resulta-
do do caso vinculante, ainda que a regra ou princípio formulado no caso
vinculante expressamente determine o mesmo resultado.
Nesse modelo, a vinculação da corte inferior seria um pouco maior
do que no modelo minimalista. Se os fatos do caso subseqüente apon-
tarem com idêntica ou maior intensidade para o resultado do caso pre-
cedente considerado incorreto, a corte vinculada deve seguir o prece-
dente, ainda que, em uma abordagem minimalista, após ponderar
todos os fatores envolvidos, inclusive o valor autônomo da igualdade e
da segurança jurídica que decorrem da prévia decisão, entendesse que
deveria decidir contrariamente ao resultado do caso vinculante. Em
outro dizer, o modelo centrado no resultado exige que a corte vincula-
da se afaste das premissas que orientam o modelo minimalista, mas
não de modo absoluto como faz o modelo normativo, senão que apenas
nas hipóteses em que os fatos do caso subseqüente apontam para o
mesmo incorreto resultado do caso precedente. O modelo centrado no
resultado busca ser, portanto, um meio termo entre o modelo minima-
lista e o modelo normativo.
A axiologia que subjaz o modelo centrado no resultado é o princí-
pio formal de justiça de que casos iguais devem receber tratamento
semelhante. O critério para se apurar se um caso posterior é idêntico
ou distinto do caso antecedente é a verificação se os fatos desse caso
posterior apontam ou não, com idêntica ou superior intensidade, para
a mesma decisão do caso antecedente.
O modelo centrado no resultado pode ser descrito também como
um modelo nos quais as cortes inferiores são vinculadas pelas razões
adotadas pela corte vinculante para decidir o caso e não pelo princípio
jurídico formulado quando da solução do litígio. Essa descrição exige
um prévio esclarecimento do significado do termo “razões da decisão”.
Se por razões da decisão se entender o processo adotado expressamen-

192
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

te pela corte para a resolução de um grupo de problemas semelhantes


em que se estipula com generalidade regras formais para obtenção do
resultado ou para a solução do problema, as razões se integram ao pró-
prio princípio legal enunciado pela corte e, portanto, dele não pode ser
separado. Neste sentido, estando vinculadas pelas razões, as cortes
inferiores estão necessariamente vinculadas pela regra legal enuncia-
da no caso precedente e dela não podem se afastar. Nesta hipótese, a
vinculação pelas razões não descreve acuradamente o modelo centra-
do no resultado, mas sim, o modelo normativo.
Por outro lado, as razões da corte vinculante podem ser entendi-
das como sendo um conjunto de princípios morais e políticos que ela
acredita fundamentar o resultado e a regra legal no caso precedente,
mas que não pode ser expresso como um processo seguido pela corte
para prolatar sua decisão. A corte vinculante acredita que seus princí-
pios são consistentes com uma teoria moral e politicamente correta. A
corte vinculada também pensa assim, entretanto, acredita que a corte
vinculante aplicou equivocadamente aqueles princípios moral e politi-
camente corretos e, conseqüentemente, a decisão prolatada foi incor-
reta. Considerando, porém, que ambas as cortes compartilham dos
mesmos princípios, a corte vinculada pode abandonar o precedente e
a regra legal nele afirmada, na medida em que está aplicando o mesmo
conjunto de princípios que foram aplicados pela corte vinculante, só
que de forma correta. Esse significado de razões de decisão não des-
creve o modelo de resultado, mas sim, o modelo minimalista, vez que
ambas as cortes estão tentando decidir do modo mais correto que as
razões determinam, ou seja, nessa interpretação das razões, permite-
se à corte vinculada fazer o que é o certo do seu ponto de vista.
Finalmente, as “razões” podem se referir a um conjunto de princí-
pios jurídicos e os pesos que a eles são conferidos na adjudicação judi-
cial que melhor justifica a (incorreta) decisão precedente. Nesse senti-
do, as “razões” existem e, portanto, constrangem em certa medida a
corte vinculada que não é livre para desconsiderar a decisão da corte
vinculante como ocorre no modelo minimalista. De outro lado, porém,
essas “razões”, por condensarem diversos princípios muitas vezes con-
correntes entre si, não são suscetíveis de serem expressas em uma
forma canônica com uma regra legislada e, a fortiori, não podem ser
objeto de uma aplicação como uma regra normativa. Essas “razões”,
diferentemente do modelo minimalista, vinculam, mas não no mesmo
grau adotado pelo modelo normativo. Elas vinculam, mas não como
regras, daí porque podem reduzir e/ou modificar o âmbito de incidên-

193
Celso de Albuquerque Silva

cia da regra extraída da decisão.24 Se a corte vinculada adota esse sig-


nificado de razões, então atua sob o modelo centrado no resultado.

2.3. Modelo normativo

O modelo normativo é um modelo formalista, ou seja, é um modelo


que parte da premissa da existência de uma determinada ou pelo menos
determinável ratio decidendi no caso precedente. Esse modelo também
admite e reconhece uma função prospectiva à decisão judicial prolatada
para solucionar um caso específico. Assim, sob este modelo, a corte vin-
culante não somente possui autoridade para decidir o caso que lhe foi
posto sob adjudicação, como também a possui para promulgar regras
gerais vinculantes para as demais cortes de nível inferior. Nesse modelo,
a regra legal de criação judicial opera da mesma forma que uma norma
legislada e, como tal, deverá possuir uma formulação canônica.25
O modelo normativo apresenta versões extremadas e moderadas.
Na primeira versão, a vinculação ao precedente é absoluta, de sorte
que a corte vinculada não pode, em qualquer hipótese, distinguir ou
abandonar um precedente. Na versão moderada, a vinculação é mais
fraca, podendo a corte vinculada, presente certas circunstâncias, dis-

194
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

tinguir ou abandonar o precedente. Embora para algumas versões do


modelo a observância obrigatória possa ser relevada, em nenhuma
delas a corte vinculada é livre para desconsiderar um precedente
baseada no fato de que, ao ponderar entre as vantagens oferecidas
pelos princípios morais da igualdade e da segurança jurídica e as van-
tagens oferecidas por uma decisão diferente, chegou a um resultado
que favorece a uma nova regra em detrimento da afirmada no prece-
dente, como pode fazer de modo mais ou menos amplo nos modelos
minimalistas e centrado no resultado, respectivamente.
Um outro aspecto em que se verificam variações, concerne à meto-
dologia utilizada para extrair a regra legal do precedente. Algumas teo-
rias mais restritivas procuram extrair a regra legal da opinião corte vin-
culante.26 Outras versões extremamente amplas descrevem a ratio
decidendi do caso precedente como sendo qualquer regra legal utiliza-
da pela corte precedente como um passo necessário para prolatar sua
decisão.27 Uma terceira linha de abordagem refere a ratio decidendi,
como localizada na decisão do juiz e nas razões por ele oferecidas que,
em sua opinião, é afirmada como justificando-a.28
O característico dessas versões é que todas consideram deva a
regra, ainda que posta de forma implícita na decisão, possuir uma for-
mulação canônica que, sintética e esquematicamente pode ser assim
referida: Presentes os fatos F1, F2, F3...Fn então a decisão deve ser Fd,
bem como ter sido fixada quando da decisão da corte vinculante,
cabendo à corte vinculada apenas interpretá-la. Por último, a regra
deve ser aplicada prospectivamente. Presentes essas condições, o
modelo de vinculação adotado é o modelo normativo.

2.4. Análise crítica dos modelos de vinculação

2.4.1. O modelo centrado no resultado

O modelo de vinculação centrado no resultado é um modelo híbri-


do, cuja função principal seria extrair as principais vantagens dos dois

195
Celso de Albuquerque Silva

modelos contrapostos, minimalista e normativo. Entretanto, o que seria


sua maior vitória é, em verdade, sua maior derrota. O que seria a sua
maior virtude, se revela como seu maior defeito. Como se verá a seguir,
a principal vantagem do modelo minimalista seria a sua correção
moral. As cortes judiciárias devem decidir “justa e corretamente” as
causas que lhe são postas para adjudicação, ainda que ao custo de fra-
gilizar os princípios da segurança jurídica e da igualdade, dos quais, no
mais das vezes, depende. A seu turno, a grande vantagem do modelo
normativo seria assegurar o primado da rule of law, através da coerên-
cia e consistência das decisões judiciais, operacionalizando o princípio
da segurança jurídica e tornando eficaz o princípio de justiça de que a
casos iguais deva ser dado tratamento idêntico.
O principal problema com o modelo centrado no resultado é de
natureza operacional: como determinar que o caso subseqüente é um
caso que deva ser considerado semelhante para o mesmo resultado do
caso vinculante. O critério, como explicitado supra, é a verificação se os
fatos desse caso posterior apontam ou não, com idêntica ou superior
intensidade, para a mesma decisão do caso antecedente. Aí reside a
principal dificuldade operacional desse modelo. Como identificar, no
caso anterior, todos os fatos e seus pesos utilizados para a obtenção do
resultado? A corte vinculante pode ter sido econômica na explicitação
dos fatos e razões que conduziram aquele resultado, caso em que pode
ser impossível à corte vinculada divisá-los na sua integralidade. Diante
dessa possibilidade a corte vinculada pode assumir duas atitudes.
Em sendo impossível acessar todos os fatos do caso precedente, a
corte vinculada pode decidir simplesmente seguir a regra fixada no
precedente, mesmo que, se adotasse o modelo minimalista, discordas-
se do resultado do precedente. Ocorre que esse procedimento simples-
mente caracteriza o modelo normativo.
Por outro lado, a corte poderia assumir que qualquer dado que não
fosse mencionado pela corte vinculante simplesmente não estava pre-
sente no caso precedente e, assim, discordando da regra fixada no caso
precedente, escolher qualquer fato presente no caso vinculado que não
foi mencionado no caso vinculante como fator distintivo e decidir con-
trariamente ao caso vinculante. Ocorre que se a corte vinculada pode
escolher qualquer fato do caso subseqüente para considerar que este
aponta com menos intensidade para o resultado do caso precedente
ela, de fato, atua sob o modelo minimalista.
E assim o é pelo hibridismo do modelo. Ora segue o modelo mini-
malista onde a vinculação é mínima, ora segue o modelo normativo

196
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

onde a vinculação é forte. Ocorre que inexiste qualquer critério para


que se possa saber quando a corte vinculada agirá no modelo minima-
lista ou no modelo normativo. O modelo centrado no resultado, portan-
to, nem possui a alegada correção moral do modelo minimalista, nem
possui as virtudes da rule of law do modelo normativo, não sendo, por-
tanto, justificável.

2.4.2. O modelo minimalista

A teoria minimalista pode ser descrita como uma teoria declarató-


ria do direito. O juiz, ao exercer sua função, deve analisar todos os as-
pectos envolvidos na disputa relativos a fatos, textos de lei, preceden-
tes judiciais, princípios e valores que se referem ao caso, para declarar
e aplicar o direito ao caso concreto e não constituí-lo.29 Assim, no
modelo minimalista é interdito aos tribunais legislar, cabendo-lhes tão
somente descobrir e seguir as regras que eles reputam como corretas.
A principal característica do modelo minimalista é que ele procura
ser um modelo moral. Nesse sentido, ele possui um forte componente
jusnaturalista. Ao exercer sua função, os tribunais devem agir buscan-
do distribuir justiça através de regras que eles consideram moralmente
corretas. Esses princípios não se referem a valores morais individuais
dos juízes, mas decorrem objetivamente de um corpo de doutrina forne-
cida pelo ordenamento jurídico, que incumbe às cortes descobrir. É una-
nimemente aceito, para esse modelo, que a decisão da corte será corre-
ta ou incorreta, certa ou errada, na medida em que esteja ou não em
conformidade com princípios jurídicos determináveis e seja aplicada de
acordo com padrões de justificação que não são pessoais do juiz.30
Atuando sob o modelo minimalista de vinculação, diante de uma
decisão errada e em virtude dos valores de segurança jurídica e da
igualdade que dela decorrem, as cortes podem agir de duas maneiras:
a) se a corte entender que o desvalor moral de seguir a regra que a
governa é menor do que abandonar a regra fixada, ela estará vincula-
da ao precedente e deve segui-lo; b) se entender que o desvalor moral
de seguir a regra é maior do que abandoná-la, é livre para decidir con-
trariamente ao que fixado no precedente. Nesse sentido, o modelo

197
Celso de Albuquerque Silva

minimalista, ao tempo em que leva em consideração as vantagens


morais que provêm da adoção da rule of law para chegar ao resultado
que os tribunais consideram conforme a uma razão reta, também con-
fere, após a ponderação de todos os aspectos envolvidos, absoluta
liberdade para os Tribunais desconsiderarem a regra do precedente, se
considerarem que isso é a atitude moralmente correta a ser adotada.
O problema que surge é que, como já ressaltou Hobbes, equiparar
o direito à razão reta, é dar permissão para cada um julgar o que o direi-
to é conforme aquilo que declara como sendo a reta razão e, portanto,
abre as portas para o subjetivismo e o arbítrio. A solução de Hobbes,
como se sabe, foi nem equiparar o direito como sendo a razão indivi-
dual do juiz, nem como sendo uma razão objetiva, fictícia e artificial do
próprio direito, mas sim, a razão natural da soberania.31 Na visão de
Hobbes, portanto, a regra do caso precedente deveria ser seguida pelo
simples fato de ter sido estabelecida por quem de direito, que no caso
seria a corte superior, mas o modelo minimalista, embora reconheça a
estrutura hierárquica do poder judiciário, recusa a vinculação à regra
do precedente pelo simples fato dela ser fixada por uma corte superior.
Esse posicionamento é uma natural conseqüência de sua premissa de
que as cortes não podem legislar, mas tão somente descobrir e aplicar
o direito. Embora a questão quanto ao poder das cortes de legislar já
tenha sido enfrentada anteriormente, se mostram oportunos alguns
esclarecimentos adicionais.32
O modelo não admite o poder de legislar às cortes porque adota a
hipótese de que uma regra individual só pode ser universalizada se ela
própria for correta, ou seja, verdadeira. Essa linha de argumentação,
entretanto, parte da equivocada premissa que a mesma lógica formal
que serve às ciências naturais (físicas) se aplica à ciência do compor-
tamento como é o direito. Em assim fazendo, o modelo minimalista, a
exemplo do jusnaturalismo moderno, tenta transformar o direito em
uma ciência lógico-demonstrativa e, portanto, racional, atada a um
conceito de verdade.

198
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Ocorre que a lógica do direito não é a lógica abstrata e formal, mas


a lógica do razoável. O razoável não se confunde nem com o racional,
nem com o irracional. O racional está ligado aos critérios da verdade,
coerência e eficiência. A ele se opõe dicotomicamente o irracional que,
por não estar conforme a razão, é tido como não verdadeiro, incoerente
e ineficaz para o bom método. O razoável, ainda que não se oponha ao
racional, está mais próximo do bom senso da razão prática e daquilo
que é aceitável em um determinado meio social e em um dado momen-
to.33 A lógica do direito é a lógica da argumentação e esta não visa à
adesão de uma tese exclusivamente pelo fato de ser verdadeira.34
Como não é possível demonstrar empiricamente a verdade ou fal-
sidade de conceitos normativos, ao inserir no processo de tomada de
decisão judicial a lógica formal das ciências naturais, o modelo minima-
lista se tornou internamente contraditório e não oferece uma base sóli-
da para assegurar o efeito vinculante dos precedentes judiciais. De
fato, os valores principais que legitimam a vinculação ao precedente
judicial são o da segurança jurídica e da isonomia.35 Embora nesse
modelo as cortes ao decidir levem em consideração as expectativas de
igual tratamento e segurança jurídica que decorrem de decisões passa-
das em conjunto com tudo mais que seja moralmente relevante, isso
não gerará a previsibilidade nas decisões e o respeito ao princípio de
justiça igualitária, na medida em que esses valores poderão ser supe-
rados pelos demais valores em choque. Essa só possibilidade gera
incerteza e insegurança, que o modelo visa evitar.
Se o modelo minimalista não pode logicamente negar ao juiz seu
supremo direito de discordar da identificação e elaboração do direito,
nenhuma doutrina de vinculação ao precedente pode ser admitida,
exceto ao custo de desconsiderar completamente a teoria.36 Essa inca-
pacidade do modelo em alcançar os resultados a que se propõe, pode
gerar um estado de coisas moralmente inferior aquele que seria alcan-
çado com o modelo normativo, cuja vinculação ao precedente é mais
forte. Se essa conclusão for aceitável, por mais paradoxal que possa
parecer, o próprio modelo minimalista aponta para a adoção do mode-
lo normativo. Essa assunção será vista mais adiante.

199
Celso de Albuquerque Silva

2.4.3. O modelo normativo

O modelo normativo é um modelo formal. Parte da premissa que o


tribunal, ao decidir uma causa, não se limita a proteger os interesses
subjetivos das partes, mas estabelecer pautas gerais e abstratas de
condutas para que os membros da coletividade possam organizar sua
vida em sociedade e postular os direitos que o ordenamento jurídico
lhes confere. A vinculação ao precedente judicial, é assim, o consectá-
rio natural do poder de criar direito do qual se investiu o poder judiciá-
rio. Peter Wesley Smith bem equacionou o ponto:

“Quando se reconhece ao juiz a capacidade de criar direito, a


noção de stare decisis vertical – de uma corte sendo vinculada
pelas cortes de nível hierárquico superior – é perfeitamente racio-
nal. Nenhuma corte superior é infalível quando ‘declara’ o direito,
mas uma corte superior pode ter uma maior autoridade do que
uma corte inferior para criar direito. Por outro lado, nenhum precei-
to legal está imune a uma emenda por parte de qualquer juiz. Na
Inglaterra, um juiz só tem capacidade para criar direito, quando
não existe uma decisão de uma corte superior controlando a ques-
tão que lhe foi posta adjudicação.”37

No particular, o modelo normativo permite uma maior efetividade


aos valores da segurança jurídica e da isonomia (uniformidade) na
medida em que os considera dogmaticamente como pressupostos
necessários para o asseguramento dos outros valores morais partilha-
dos na sociedade, porventura conflitantes. Nesse sentido, contém um
forte componente positivista. As decisões devem ser uniformes não
porque a regra formulada na decisão precedente deveria ter sido esta-
belecida, mas porque foi estabelecida.38 A deferência que é devida à
regra legal formulada no caso precedente é devida não à sua correção,
mas a sua autoridade. E ela possui autoridade no sentido que: “i) a
razão imediata para seguir a regra repousa no fato de que o litígio foi
decidido e a regra estabelecida e, ii) a regra fixa um certo curso de ação
e impede (ou ao menos alegar impedir) posterior discussão sobre a cor-
reção da ação em questão”.39

200
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

O modelo normativo não é isento de críticas. Em termos operacio-


nais tem se aduzido que as cortes não possuem capacidade para for-
mular regras de forma canônica como um regra legislada.40 Tem-se afir-
mado que, por vezes, os precedentes são tão ambíguos, que é difícil ou
mesmo impossível se extrair dele uma regra canonicamente formulada,
pressuposto necessário do modelo para conferir certeza ao direito.
Paradoxalmente, o nosso sistema filiado à família germânica funciona
como um antídoto para esse problema, na medida em que, de regra, os
juízes formulam explicitamente sua decisão. Tanto mais é verdade, que
a proposta ora em votação no congresso para estender o efeito vincu-
lante às decisões do STF no controle difuso, remetem à idéia de “súmu-
la vinculante”, que é exatamente a formulação canônica da regra que
governa o caso precedente, nos moldes em que se estrutura uma regra
legislada. A possibilidade de inexistência de uma regra de direito judi-
cial expressamente formulada parece muito remota, no nosso sistema,
de sorte que não ameaça a viabilidade de modelo.
Demais disso, ainda que não haja uma regra de direito expressa
canonicamente sobre a categoria geral da qual o caso precedente é um
exemplo, é muito provável que a corte indique suas razões para decidir
de uma maneira, ao invés de outra. “Considerando que uma razão só é
uma razão porque é logicamente anterior e mais geral do que a decisão
para qual ela é uma razão, a própria razão pode ser vista como uma
generalização. Conseqüentemente, a corte subseqüente poderá usar
os fundamentos justificantes no caso precedente para construir a
generalização que, ao ser adotada, compreenderá os predicados fáticos
de uma regra potencialmente vinculante”.41
Quanto ao aspecto relativo à ambigüidade, deve-se relembrar que
ela é uma característica do direito, provenha ele de fonte legislativa ou
judicial. Goodhart enfrentou bem a questão quando afirmou que, se
ambigüidade fosse fator impeditivo da certeza do direito, “também
seria correto afirmar que os comandos de um general não seriam vin-
culantes para os seus oficiais subordinados, porque nós sabemos que
ocasionalmente tais ordens são expressas de forma ambígua, ou que os
oficiais da marinha britânica não obedecem aos comandos de seus
almirantes, porque Nelson colocou sua luneta em seu olho cego na

201
Celso de Albuquerque Silva

batalha de Copenhagen”.42 A certeza absoluta é um mito. A incerteza


faz parte da vida; não é correto tentar eliminá-la. Devemos conviver
com ela, reduzindo-a a um nível tolerável. O processo judicial convive
pacificamente com certo grau de incerteza, quando menos pela sua
inevitabilidade.43
Superados os apontados defeitos inerentes ao modelo normativo,
ele se mostra como o mais adequado às necessidades decorrentes das
exigências do postulado de justiça. Ele confere maior previsibilidade às
decisões judiciais e assim possibilita as cortes inferiores e os membros
da coletividade em geral, preverem, com razoável nível de certeza, o
que o direito significa e, de conformidade com ele, pautarem sua con-
duta. Por outro lado e como conseqüência, o princípio da isonomia se
vê fortalecido, na medida em que o critério de distinção entre casos
similares ou distintos é objetivamente aferido, pois tudo o que se pre-
cisa saber do caso precedente é sua regra que estabelece o critério
relevante de igual tratamento.
Essa postura assume, como já visto acima, que os valores decor-
rentes da adoção da rule of law importam em um ganho líquido maior
em termos de qualquer moralidade política que nós defendamos,
mesmo que a custa de eventuais injustiças produzidas ocasionalmente
na resolução de disputas individuais. Mas, por que é assim? Qual a jus-
tificativa moral para essa assunção? A nosso sentir, Theodore Benditt
respondeu acuradamente a indagação:

“Uma resposta, eu acredito, é que dado o intenso debate na


sociedade sobre vários princípios políticos e sociais, incluindo os
princípios que as cortes aplicam para chegar as suas decisões,
algumas decisões da corte são em certos aspectos como uma
espécie de compromisso em casos difíceis. Quanto maior o acordo
nos princípios, menos a decisão judicial parecerá um compromis-
so arbitrário, mas quanto menor o acordo sobre princípios, mais a
decisão judicial parecerá como sendo um compromisso arbitrário.
Isso não significa dizer que, nos casos difíceis, esses compromis-
sos baseados em princípios, são arbitrários, porque usualmente
aqueles que fazem o compromisso pensarão que ele é correto. A

202
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

despeito disso, quanto maior o desacordo, mais como um arbitrá-


rio compromisso eles parecerão. O compromisso, claro, é para con-
tinuar a viver com um princípio contestado ou com sua aplicação,
mesmo quando surgem suspeitas de que ele pode ser errado.
Seguir precedente, pode então ser visto como um seguro contra
nossa (coletiva, não individual), ausência de certeza sobre a corre-
ção de certos princípios políticos e sociais que nós adotamos.”44

Assim, ainda que atue de forma indireta, o modelo normativo pare-


ce produzir uma correção moral maior do que seu “rival”; o modelo
minimalista que tem por objetivo exatamente garantir a correção moral
das decisões judiciais. Essa é a questão que se passa a analisar.

2.5. Modelo minimalista x modelo normativo – fratura ou


complementaridade?

Se os modelos minimalistas e normativos forem considerados


modelos morais, sendo o primeiro um modelo jusnaturalista e o segun-
do um modelo positivista, a fratura entre os dois modelos é inexorável.
Em linhas gerais, no modelo naturalista a regra para ser válida e apli-
cável deve estar em conformidade com uma moral ideal, universal e
atemporal. Havendo contrariedade entre a lei positiva e a lei moral,
esta última é que deve prevalecer. Em sentido diametralmente oposto
se situa o positivismo ético, para quem a lei positiva é moralmente boa
pelo simples fato de ser promulgada por quem de direito e permitir a
gestão da sociedade. Nessa perspectiva, o direito não tem como função
qualificar eticamente como boas ou más as condutas, mas sim, servir
como instrumento de administração social. Não é este o lugar próprio
para aprofundar a secular discussão acerca das vantagens e defeitos
do jusnaturalismo e do juspositivismo como modelos morais, mas feliz-
mente é também desnecessário.
A intenção do trabalho é tratar esses dois modelos de vinculação
como modelos sobre uma teoria da moral, entendida esta como sendo
“um conjunto de argumentos elaborados sistematicamente com o obje-
tivo de dar a uma moral, uma justificação racional que deve convencer
os outros a aceitá-la”.45

203
Celso de Albuquerque Silva

Eu também assumirei aqui que esses modelos, ao invés de serem


teorias que buscam justificar modelos morais distintos v.g., jusnaturalis-
ta x juspositivista, têm por finalidade justificar, através de métodos dis-
tintos, um mesmo modelo de moral que, na esteira do pensamento de
Stammler, vou denominar de modelo de “direito justo”.46 Por direito
justo se entende um direito cujo conteúdo de suas regras possui a carac-
terística da justiça que aponta para uma justeza normativa e significa a
justificação de uma pretensão de vigência ou a justiça de um ato.47
Como a justiça absoluta é ou divina ou um ideal, o modelo do direi-
to justo é um modelo “relativamente justo”, significando que é “com-
posto por regras que em certas condições dadas e em relação com o
momento histórico satisfazem o critério do justo”.48 Como essas condi-
ções históricas estão sujeitas a mudanças e o direito não possui uma
capacidade imediata de adaptação, o modelo de direito justo não exige
para sua validade normativa que seja totalmente justo, bastando, para
justificar sua validade, que o ordenamento como um todo esteja a cami-
nho para o justo. Assim, esse modelo admite a possibilidade da valida-
de de uma norma particular que em um determinado momento seja
considerada injusta, desde que a pretensão de validade de um ordena-
mento como um todo esteja justificada.49 Semelhantemente, esse
modelo aceita que em determinados âmbitos, v.g., quando houver
visões morais distintas, não exista uma única possibilidade que seja
justa (relativamente), mas várias, e entre elas pode-se pensar em diver-
sas combinações. Nesse caso, a decisão “pode considerar-se como
direito justo, sempre que seja razoavelmente conseqüente”.50
Definido e descrita a forma de operação de um ordenamento (rela-
tivamente) justo, resta apontar os critérios que o caracterizam. Esses
são para Larenz, “princípios de um direito justo, elementos rudimenta-
res, concebidos muito amplamente e necessitados de concreção, embo-
ra não desprovidos de conteúdo de regulação”.51 Esses princípios de
direito justo estão referidos a objetivos ou fins últimos do direito52 que

204
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

no pensamento jusfilosófico ocidental podem ser reduzidos a dois: a


paz jurídica e a justiça.53
O princípio da paz jurídica nada mais é do que a enunciação da
rule of law, pois representa o “senhorio do direito nas relações entre os
homens. Para isso é necessário, em primeiro lugar, que existam regras
segundo as quais os homens rejam sua vida em comum”.54 O princípio
da justiça nada mais é do que o princípio da isonomia, tanto na sua for-
mulação de justiça formal – tratar igualmente os iguais – quanto na sua
formulação substancial, que leva em consideração situações indivi-
duais, dentro do postulado do equilíbrio e da moderação, o que pode
ser resumido na vedação a um tratamento arbitrário.55 Analisando a
relação entre esses dois princípios assim se manifesta Larenz:

“A paz jurídica e a justiça, os dois componentes principais da


idéia do direito, estão entre si em uma relação dialética, o que sig-
nifica por um lado, que se condicionam reciprocamente. No longo
prazo, a paz jurídica não está assegurada se o ordenamento que
lhe subjaz é injusto e se sente como tal cada vez mais. Onde a paz
jurídica falta...desaparece a justiça.”56

Logo a seguir, tratando da tensão que pode surgir na aplicação


desses dois princípios nos casos concretos, averbou:

“Por outro lado, os dois componentes podem parcialmente


entrar em contradição. Ocorre assim, em especial, quando o direi-
to positivo considera tão insegura a probabilidade de alcançar um
juízo “justo”, que no altar da segurança jurídica permite a possibi-
lidade de um juízo que não seja justo, como ocorre com a prescri-
ção e com a coisa julgada... Deste modo se põe de manifesto que,
quando não se pode responder com segurança à pergunta sobre
o que é justo no caso concreto, deve-se, pelo menos, criar-se uma
certeza sobre o que em tal caso é conforme o direito (ainda que tal-
vez não seja justo), pondo-se um fim à controvérsia em obediência
à paz jurídica. Poderíamos dizer que fazer justiça é um objetivo
mais difícil de alcançar, porém, mais completo e que, quando a

205
Celso de Albuquerque Silva

obtenção da justiça é apesar de todos os esforços duvidosa, o


direito se contenta com algo que é mais facilmente alcançável,
como é a manutenção da paz jurídica”.57

No modelo moral de “direito justo”, abre-se a porta para, de modo


argumentativo, demonstrar-se que o modelo minimalista para alcançar de
forma ótima seus objetivos aponta para a adoção do modelo normativo.
A lógica argumentativa não se estrutura em uma prova irrefutável,
senão que persuasiva, por isso diz respeito mais à adesão do que à ver-
dade.58 A argumentação tem por pressuposto que deva partir de teses
que têm a adesão daqueles a quem se quer persuadir ou convencer.59
A tese aqui proposta é que seguir regras é uma vantagem moral, ou
seja, é bom em razão da previsibilidade que essa conduta gera, o que
afasta, ou o que mais fraco, reduz sensivelmente o âmbito da arbitra-
riedade, possibilitando um tratamento justo e isonômico aos membros
da coletividade, objetivo último de ambos os modelos de vinculação.
O modelo minimalista adere à idéia de que é moralmente valioso
seguir regras justas e que é função da corte, na ausência dessas regras
justas, decidir os casos como se essas regras justas tivessem sido cria-
das judicialmente. O modelo minimalista também admite a possibilida-
de de resultados injustos alcançados através de regras justas.60 O que
o modelo minimalista não admite, é que uma corte superior possa vin-
cular uma corte inferior ao promulgar uma regra que a corte inferior con-
sidera injusta. Em outras palavras, se o resultado injusto decorrer da
aplicação de uma regra justa, o modelo minimalista aceita a vinculação.
Por outro lado, se o resultado injusto decorrer de uma regra em si injus-
ta, o modelo, diferentemente do modelo normativo, não admite a vincu-
lação. Nessa circunstância, a corte vinculada pode abandonar o prece-
dente para decidir de forma que considera justa e moralmente correta.
O problema nessa abordagem é que, ao procurar alcançar o direi-
to justo quando existe uma controvérsia sobre quais são os valores polí-
tica e moralmente corretos que vigoram naquela coletividade através

206
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

de um recurso direto a tais valores, o modelo minimalista abre flanco


para o ingresso de fatores subjetivos, incontrolados e incontroláveis
que a longo termo conduzem ao arbítrio. Essa obrigação de fazer justi-
ça, ao custo de desconsiderar as regras promulgadas, por reputá-las,
individual e circunstancialmente injustas, pode pela imprevisibilidade
e incerteza que acarreta, gerar sob um sistema jurídico moral e politi-
camente correto, uma situação de maior desvalor moral daquela que
seria alcançada se as cortes seguissem as regras mesmo que, circuns-
tancialmente, as considerassem injustas. Isso tanto é mais correto na
medida em que o modelo normativo atue dentro de um sistema de
“direito justo”, como ocorre quando se adota o modelo normativo
moderado e não o modelo normativo estrito.
Como já visto supra, o modelo de “direito justo”, por ser um mode-
lo real, não exige que o ordenamento seja integral e absolutamente
justo. Admite e, até mesmo reconhece como inevitável, a existência de
regras particulares injustas. Essa circunstância, entretanto, não afasta
a validez dessa regra desde que o ordenamento jurídico na qual se
insere seja justificado na sua totalidade. O modelo de “direito justo”
também reconhece a possibilidade de conflitos sobre questões
morais/políticas que não impliquem em um único resultado correto,
mas vários, alguns inclusive decorrentes de compromissos entre os
valores a serem ponderados. Nessa hipótese, a regra é justa (relativa-
mente) se razoável.
Considerando que o modelo minimalista admite que uma regra
ideal pode conduzir a um resultado contrário ao resultado que seria
alcançado pelo recurso direto (sem a intermediação da regra) aos valo-
res políticos e morais que vigoram em determinada sociedade, ele acei-
ta a formulação de um modelo de “direito relativamente justo”. Nesse
modelo de “direito relativamente justo”, quando não se pode responder
com segurança à pergunta sobre o que é justo no caso concreto (v.g., a
corte inferior discorda quanto à justeza da regra fixada pela corte supe-
rior), deve-se, pelo menos, criar-se uma certeza sobre o que em tal caso
é conforme o direito (ainda que talvez não seja justo), pondo-se um fim
à controvérsia em obediência à segurança jurídica.61 Assim, desse
modelo pode-se extrair, em razão do princípio da segurança jurídica do

207
Celso de Albuquerque Silva

qual a justiça depende, a seguinte super regra ideal: “siga as regras


formuladas pelas Cortes Superiores”.
Essa super regra ideal é plenamente compatível com o modelo
minimalista. Como visto, este modelo aceita “resultados injustos”
desde que produzidos por “regras justas”. Pois bem, a “regra justa” no
caso é a regra superior acima mencionada “siga as regras formuladas
pelas cortes superiores”. O resultado injusto, mas que é aceito pelo
modelo minimalista, seria então, “a regra formulada pela corte vincu-
lante no precedente” naquelas hipóteses em que a corte vinculada dis-
corda da regra criada judicialmente. Em outro dizer: desde que o mode-
lo minimalista admite que os tribunais podem decidir casos com base
em regras justas que possam conduzir a resultados injustos em algu-
mas hipóteses, ele não possui qualquer objeção ontológica à possibili-
dade dos tribunais legislarem para outros tribunais, desde que tal
super regra seja justa. Ocorre que, no modelo de “direito justo”, esta
super regra demanda a adoção do modelo normativo.
Por outro lado, se é certo que o modelo de “direito justo” admite
esporádica e circunstancialmente a validez de particulares regras
injustas quando o ordenamento como um todo está justificado, pois
caminha para um direito justo, também o é, que a persistência desse
estado de coisas não é admitido. Há que se possibilitar a modificação
de tais regras, para que elas se adaptem às novas realidades sociais,
culturais e políticas da comunidade. Nesse sentido, aquela super regra
mencionada pode se tornar um fator impediente dessa necessária
modificação da regra a fim de torná-la compatível com as exigências da
justiça material, o que poderia por em risco a justeza da própria super
norma e assim, desqualificar o modelo normativo. Para evitar esse
risco, pode-se modificar a super regra, para incrementar seu potencial
de justeza para seguinte formulação: “siga as regras formuladas pela
cortes superiores quando elas atuam em um modelo de direito justo”.
Isso abre espaço para a necessária flexibilidade que qualquer modelo
de direito justo que pretenda ser real exige, pois a corte superior pode,
ela própria, rever sua regra anteriormente formulada..
Pode-se afirmar que essa reformulação abre margem à imprevisi-
bilidade e incerteza, em virtude da possibilidade de mudanças muitas
vezes radicais nas regras fixadas pela cortes superiores, o que enfra-
queceria o modelo normativo como um todo. A crítica não procede. Tal
como a justiça absoluta é um mito, a segurança jurídica absoluta é um
ideal inalcançável. A incerteza é inerente ao direito, mas essa incerte-
za é “controlada” no sentido de que ela é trabalhada em um nível de

208
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

suportabilidade social de modo a tornar decidíveis os eventuais confli-


tos. Como esclarece Tércio Sampaio Ferraz Júnior, “com o termo ‘con-
trolado’, queremos significar que a dogmática aumenta as incertezas (a
questão incerta do justo e do eqüitativo se torna mais complexa, pois
tem de se haver com a norma proibitiva), mas de modo que elas sejam
compatíveis com duas exigências centrais da disciplina jurídica: a vin-
culação a normas que não podem ser ignoradas e a pressão para deci-
dir os conflitos, pois para eles tem que achar uma saída”.62
Nesse sentido, pode-se entender os modelos minimalista e norma-
tivo não contrapostos, mas complementares e componentes de um
modelo normativo amplo, com dois graus de vinculação normativa –
fraco/minimalista e forte/normativo-estrito – aplicáveis em âmbitos
distintos. O modelo minimalista se aplica no âmbito dos tribunais
superiores e o modelo normativo estrito no âmbito dos tribunais de
nível inferior, o que otimizaria os resultados decorrentes das inevitá-
veis tensões decorrentes de conflitos localizados entre os dois princí-
pios mestres de um “direito justo”: o princípio da paz jurídica e o prin-
cípio da justiça (igualdade em suas diversas formulações).
Essa realidade intransponível foi reconhecida pela Suprema Corte
Australiana, adepta do modelo descritivo (minimalistas), como bem
anotou Peter Wesley Smith, verbis:

“Onde o direito foi declarado por uma corte superior, esta


corte se concorda que aquela declaração estava correta quando
feita, não pode alterar a common law. Pode, é claro, decidir que
aquela declaração foi errônea quando feita e ela própria declarar o
que a common law deveria ter propriamente prescrito. Uma deci-
são anterior não constitui o direito, mas é somente uma declaração
do que o direito é. Essa declaração, a menos que feita por um tri-
bunal superior, pode estar errada na opinião daqueles cuja pre-
sente função é interpretar e aplicar o direito. Os juízes estão vin-
culados ao seu juramento de serem leais ao direito. Se então, nós
entendemos que o direito está em claro conflito com o que nós ou
qualquer de nossos predecessores erroneamente pensamos que
era, nós não temos, como eu concebo, o direito de optar entre apli-
car o direito que julgamos correto ou manter uma interpretação
incorreta. Isso não é, em minha opinião, melhor do que a corte ser

209
Celso de Albuquerque Silva

persistentemente errada, a ponto de ser, em última instância, con-


siderada correta.”63 (g.n.)

Como se pode ver, o modelo minimalista é, em si, incoerente se


interpretado como antitético ao modelo normativo. Para compatibilizá-
lo com a doutrina vinculante, a “solução foi um curioso amálgama de
idéias declaratórias e positivistas. Juízes criaram direito no passado,
mas uma vez criado, a capacidade criativa dos juízes subseqüentes foi
reduzida. A conseqüência da teoria declaratória que os juízes não
poderiam ser vinculados por decisões de outros ou de si próprios foi
descartada, embora algo de sua retórica foi mantido e a noção do juiz
como fonte do direito tornou-se a nova ortodoxia”.64
Em síntese, porque nós temos razões para seguir regras, nós
devemos adotar um modelo normativo de vinculação aos preceden-
tes judiciais, modelo esse que possui duas facetas; uma mais tênue
no âmbito dos tribunais superiores e outra mais forte no âmbito dos
tribunais inferiores.

3. Métodos de identificação do holding

Semelhantemente ao que ocorre na formulação de modelos de vin-


culação ao precedente, as tensões que surgem no exercício das funções
sociais exercidas pelas cortes judiciais também servem como pano de
fundo para a elaboração de métodos de identificação do princípio da
decisão precedente que irá governar a decisão de um caso futuro seme-
lhante. As diversas formulações metodológicas podem ser resumidas
em duas grandes abordagens: uma restritiva e outra ampliativa.65
Os defensores da doutrina de que a função judicial deve se limitar
a resolver as disputas intersubjetivas postulam um método restritivo
de identificação do holding. Para essa corrente, o holding de um prece-
dente deve ser estabelecido de forma concreta, limitando-se a função
normativa dos tribunais apenas à mínima necessária para a solução do
litígio. Nesse sentido, o âmbito normativo da regra de direito judicial
está estritamente limitado pelas circunstâncias fáticas da lide.

210
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Por outro lado, os defensores da idéia de que a função normativa


dos tribunais é boa em si mesma e que é atribuição dos tribunais não
apenas resolver disputas concretas, mas também fixar normas gerais
de condutas para toda a coletividade, propõem um método amplo de
identificação do holding. Para os fautores dessa corrente, o holding
deve ser abstrato e geral de modo a compreender um grupo de assun-
tos, sendo a lide concreta apenas uma das múltiplas possibilidades de
concretização daquela regra abstrata. A seguir, ambos os métodos, que
denominarei de fático-concreto (restritivo) e abstrato-normativo
(ampliativo) serão perfunctoriamente descritos.

3.1. Método fático-concreto

Para o método restritivo fático-concreto, o holding do precedente é


o princípio jurídico que o juiz encontra com base na sua ponderação e
escolha de quais são os fatos considerados materiais e quais são con-
siderados imateriais para a decisão da lide.66 A regra que irá governar
o caso e os subseqüentes é extraída exclusivamente do conjunto de
fatos presentes na lide originária. Mais especificamente da forma como
selecionados e distinguidos pelo juiz, como sendo materiais ou imate-
riais, ou seja, relevantes ou irrelevantes para explicar o resultado da
decisão judicial.
Assim, as razões que o juiz dá para justificar sua decisão nunca
compõem a parte vinculante do precedente. Goodhart é bem claro no
ponto quando de modo peremptório afirma que, “a primeira regra para
se descobrir a ratio decidendi de um caso, é que ela não deve ser pro-
curada nas razões nas quais o juiz baseou sua decisão.67 A justifica-
ção da sentença só é importante para a pesquisa e descoberta de
quais fatos foram considerados materiais ou imateriais.68 Coeren-
temente, atuando sob esse modelo, o juiz não irá encontrar o princí-
pio do caso na “regra enunciada” pela corte precedente. Esta poderá
ser mais ampla ou mais estreita que o princípio do caso, mas com ele
não se confunde.69 Fixadas essas premissas, a corte vinculada deve
partir, então, para a descoberta do holding. Esse é um procedimento

211
Celso de Albuquerque Silva

realizado em duas etapas: Primeiramente, a corte vinculada deve


determinar todos os fatos do caso precedente como visto pela corte
vinculante, pois é pela seleção feita por esta corte no precedente
entre que fatos ela considera materiais e que fatos ela reputa imate-
riais, que o juiz cria o direito.70 Por isso afirma Goodhart: “o primeiro
e mais essencial passo na determinação do princípio de um caso é,
portanto, encontrar os fatos materiais com base nos quais o juiz
baseou sua conclusão”.71
Nesse diapasão, a corte vinculada após definir a totalidade dos
fatos do caso, deve descobrir quais desse conjunto foram considerados
como materiais (relevantes) para o resultado alcançado. Esse é o
momento mais difícil da primeira fase já que muitas vezes a corte vin-
culante não é suficientemente clara quanto a essa seleção. Essa dificul-
dade não é, porém, fatal para o método. Goodhart oferece algumas
regras que podem servir de parâmetro formal para guiar o labor da
corte vinculada nessa tarefa e que podem assim ser resumidas; 1) em
princípio, fatos relativos a pessoa, tempo, lugar, tipo e quantidade são
presumidos como imateriais; 2) todos os fatos que a corte expressa-
mente reputa imateriais, assim devem ser considerados; 3) todos os
fatos que a corte implicitamente considerou como imateriais, assim
devem ser considerados. Evidência dessa circunstância é encontrada
quando a corte relata vários fatos, mas omite alguns em sua conclusão.
Os fatos inicialmente descritos e posteriormente omitidos devem ser
considerados imateriais; 4) todos os fatos que foram expressamente
considerados materiais assim devem ser considerados; 5) Se a opinião
não distingue entre fatos materiais e imateriais, então todos os fatos
devem ser considerados materiais, exceto os previstos na primeira
regra que são presumidos imateriais. Essa presumida ampliação do
número de fatos materiais decorre da premissa que existe uma presun-
ção contra princípios amplos e quanto menor for o número de fatos,
mais amplo o princípio será.72
Concluída a primeira fase com a identificação dos fatos materiais
do caso precedente, a corte vinculada deve passar para a segunda
etapa do processo que consiste em descobrir a regra que governa o
caso. Isso é feito através da análise da conclusão ou resultado da deci-

212
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

são na base dos fatos materiais e exclusão dos imateriais: Nas palavras
de Goodhart:

“Em um determinado caso, a corte reputa presentes os fatos


A, B e C. Ela, então, exclui o fato A por ser imaterial, e com base
nos fatos B e C, chega a conclusão X. Qual é a ratio decidendi
desse caso? Há dois princípios: (1) Em qualquer caso futuro em
que estejam presentes os fatos A, B e C, a corte deve chegar a con-
clusão X e (2) em qualquer caso futuro em que estejam presentes
os fatos B e C, a corte deve chegar ao resultado X. No segundo
caso, a ausência do fato A não afeta o resultado, porque o fato A
foi considerado imaterial.”73

A análise do processo de extração do holding do caso elaborado


pelo método fático-concreto, permite afirmar-se que, para esse método,
a ratio decidendi deve ser buscada necessariamente no que o tribunal
fez (resultado) em resposta a determinados fatos por ele considerados
relevantes e nunca no que a corte disse, na medida em que a regra
expressamente fixada no caso precedente não é considerada o princí-
pio do caso.

3.2. Método abstrato-normativo

Para o método abstrato-normativo, a adjudicação judicial baseada


em precedentes, possui algumas similitudes com a adjudicação judicial
baseada em textos legais, especial, embora não exclusivamente, quan-
do a corte vinculante expressamente estatui de forma canônica o prin-
cípio ou regra que governa o caso, hipótese em que essa linguagem
explanatória será tratada posteriormente como uma regra especifica-
mente formulada.74 Nesse sentido, a atividade judicial deve se desen-
volver a partir de regras externas e preexistentes à disputa. Isso impor-
ta dizer que, ao decidir a causa que lhe é posta para adjudicação, o juiz
deve se valer de enunciados normativos que compreendam a res in
iudicio deducta.
Nada obstante essas similitudes, por outro lado, os defensores
desse método reconhecem que decidir com base em casos preceden-

213
Celso de Albuquerque Silva

tes vinculantes, freqüentemente envolve um proceder algo diferente


com relação àquele referenciado à decisão baseada em uma lingua-
gem legal especificamente formulada, porque o juiz vinculado dispõe
apenas de uma sentença que decidiu uma controvérsia específica, o
que pode tornar especialmente problemático definir os limites subs-
tantivos que a vinculação ao precedente judicial impõe à corte vincu-
lada.75
Assim, o primeiro passo a ser seguido pela corte vinculada é
extrair do caso vinculante um suposto normativo e geral. Isso só pode
ser alcançado se o precedente deixar de ser analisado retrospectiva-
mente, como uma decisão de ontem para ser aplicada hoje, e passar a
ser analisado prospectivamente, como uma decisão de hoje para ser
aplicada amanhã. Nesse sentido, como a corte da decisão de hoje que
será a corte vinculante de amanhã sabe que os fatos que são hoje obje-
to de adjudicação raramente surgirão com plena identidade no futuro,
ao decidir, colimando vincular decisões futuras, pensará (e conseqüen-
temente assim agirá) que a decisão atual estabelecerá um precedente
para uma diferente série de fatos que contêm algum ponto de identida-
de com a série de fatos ora analisada.
Nesse sentido, os tribunais quando decidem um caso concreto
buscam estabelecer uma regra geral e abstrata que congregue uma
classe completa de assuntos, o que lhes obriga a transcender os limi-
tes do caso concreto e solucionar a lide de um modo mais abstrato.
Como bem expressou Schauer:

“Se o futuro deve tratar o que nós fazemos agora como presu-
mivelmente vinculante, então nossa decisão atual afetará a deci-
são de outros casos futuros similares. Assim, o atual tribunal deve
também levar em consideração o que seria melhor para alguns
eventos futuros, algo diferente, mas semelhantes, ainda por ocor-
rer. O tribunal deve então decidir com base no que seria melhor
para todos os casos que se encontram dentro de uma apropriada
categoria de assimilação.”76

214
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Reconhecido que o holding da decisão não rege apenas os fatos


que concretamente deram origem à demanda, resta, em um segundo
momento, extrair a regra de relevância, ou seja, o princípio jurídico que
delimita qual categoria de assimilação dos diversos conjuntos de fatos
foi considerada apropriada pela decisão vinculante.
Como o método fático-concreto nunca permite a elaboração de um
suposto normativo geral e abstrato, o método abstrato normativo rejei-
ta que o holding da decisão seja extraído dos fatos materiais da lide
concreta. Ao contrário, para este método, a regra de relevância de um
precedente depende de como o tribunal caracterizou os fatos do caso
precedente.77
Assim, a forma como o tribunal descreve e analisa os fatos em sua
justificação para a decisão é que vai determinar a generalidade do hol-
ding do precedente. Essa articulada justificação dos fatos do caso vin-
culante não difere em essência de uma regra formulada, por isso impe-
de o uso de uma subseqüente e inconsistente justificação.78 Nesse sen-
tido, o tribunal vinculante decide, através da rationale de sua senten-
ça, o nível de generalidade conforme o qual devem ser interpretados os
fatos que deram origem à lide. Esses fundamentos justificantes são em
si mesmos considerados uma generalização, ou seja, uma forma de ela-
borar um suposto normativo abstrato e geral.
Para Schauer, os fundamentos justificantes, as razões oferecidas
pela corte vinculante, “agem como uma regra especificamente formu-
lada”,79 vinculando a corte subseqüente. Em conclusão, para o método
abstrato-normativo, a corte vinculada, para identificar o holding do
caso vinculante, deve analisar as razões do tribunal vinculante e a par-
tir de sua justificação, extrair o âmbito normativo da regra vinculante.80

3.3. Análise dos métodos

O método fático-concreto parte da premissa de que os tribunais


devem restringir ao máximo o exercício de sua função normativa. O juiz
só deve criar o direito na medida em que isso é necessário para resolver

215
Celso de Albuquerque Silva

a disputa concreta que tem a sua frente e nem um milímetro a mais.


Existe, para os defensores deste método, uma presunção contra a elabo-
ração de normas gerais e amplas, devendo o juiz, ao decidir o caso, apon-
tar o maior número de fatos materiais possíveis para a solução da lide.
Assim fazendo, o juiz reduz o âmbito de aplicação do princípio a casos
subseqüentes na medida em que, quanto maior for o número de fatos
materiais, menor será a generalidade da norma fixada no precedente.
No caso subseqüente, a corte vinculada ao precedente deve com-
parar se os fatos materiais do caso em julgamento estavam também
presentes no caso precedente. Por exemplo: no caso precedente, a
corte vinculante identificou os fatos A, B, C e D como presentes e con-
siderou como materiais apenas os fatos A e B. Se a corte vinculada tem
diante de si um caso com os fatos A, B e Z, pode decidir de duas manei-
ras. Se restringir como materiais apenas os fatos A e B, então ela esta-
rá vinculada ao princípio formulado no precedente e deverá decidir
como no caso vinculante. Se ao contrário, ampliar o conjunto de fatos
materiais para abranger o fato Z, a corte vinculada não está obrigada a
seguir o precedente, podendo, ou analogicamente estender sua aplica-
ção se julgar correto que o caso em julgamento deve possuir o mesmo
resultado do caso precedente, ou distingui-lo na base do fato material
Z e decidir contrariamente ao caso precedente. Da mesma forma se no
caso precedente a corte vinculante tivesse considerado todos os fatos
de A a D como materiais, a ausência dos fatos C e D no caso subse-
qüente poderia ser fator de distinção entre os casos, dando liberdade à
corte vinculada para decidir contrariamente ao precedente. Assim,
quanto maior o número de fatos materiais existentes no caso preceden-
te ou no caso subseqüente, menor será o âmbito normativo da regra
estabelecida no precedente e, quanto menor esse âmbito for, maior
seriam a certeza e a segurança jurídicas.
O método, então, assume que a generalidade da norma depende
exclusivamente do número dos fatos considerados materiais. O proble-
ma com essa assunção, é que, como bem apontou Stone ao criticar o
método de Goodhart, cada fato material “é ele próprio capaz de ser
entendido em vários níveis de generalidade, todos eles abrangendo o
fato em questão na decisão precedente, mas cada um deles podendo
produzir um resultado diferente na situação fática diferente no caso
subseqüente”.81

216
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Para exemplificar, Stone analisa os fatos materiais do caso


Donoghue v Stevenson, no qual o autor sofreu danos em decorrência da
presença de uma lesma morta na garrafa de ginger beer que ele tinha
adquirido. Limitando-nos apenas a estes dois fatos materiais: 1) o
agente do dano e 2) o veículo do dano, eles podem ser considerados em
si mesmos em vários níveis. Quanto ao agente do dano, o fato pode ser
entendido como: lesmas mortas, ou quaisquer lesmas, ou qualquer
corpo físico estranho nocivo, ou qualquer elemento estranho físico ou
não, ou qualquer elemento nocivo. Quanto ao fato veículo do dano, ele
pode ser entendido como: garrafa de ginger beer opaca ou uma garra-
fa de bebida opaca ou qualquer garrafa de bebida ou qualquer reci-
piente de mercadorias para consumo humano ou qualquer recipiente
de qualquer bem móvel para o uso humano, ou qualquer bem móvel ou
qualquer coisa, incluindo terrenos ou construções.82 Como se pode ver
desses simples exemplos, a restrição da regra criada judicialmente à
conclusão decorrente da escolha dos fatos materiais no caso preceden-
te não é hábil a assegurar a certeza jurídica perseguida pelo método.
Não bastasse, o método confere à corte vinculada uma grande
liberdade na escolha dos fatos materiais do caso para o fito de averi-
guar se está ou não obrigada a seguir o princípio firmado no caso pre-
cedente. Como todo caso sempre é em algum aspecto diferente do caso
precedente, isso permite que a corte vinculada escolha a seu arbítrio
qualquer fato que não esteve presente no caso precedente para fins de
distinção, decidindo contrariamente ao precedente. Essa absoluta
liberdade conferida pelo método, abre porta ao subjetivismo e arbitra-
riedade, derruindo o conceito de rule of law, que tem por objetivo prin-
cipal a redução, se não a própria exclusão, da arbitrariedade humana
no processamento do direito.83
Demais disso, o método fático-concreto falha terrivelmente ao
desconsiderar a rationale para encontrar a regra de relevância que
define o juízo de igualdade entre os diversos fatos distintos. Esse
menosprezo é fatal para o método, pois é somente pela análise das
razões que motivam e justificam a decisão vinculante que o juiz pos-

217
Celso de Albuquerque Silva

terior pode construir um critério objetivo e material para valorar as


igualdades e diferenças entre dois casos e decidir se aplica, estende
ou distingue a regra do precedente. Sinale-se que nem mesmo é pos-
sível definir, como propõe o método fático concreto, quais são os
fatos materiais e quais são os imateriais, sem que se analise as
razões que explicam e justificam porque a corte vinculante na esco-
lha dos fatos relevantes do caso precedente considerou uns e des-
considerou outros. O método fático-concreto é, portanto, internamen-
te contraditório.
Por outro lado, o método abstrato normativo é o único que se
compatibiliza com a função social dos tribunais de proverem pautas
gerais de condutas, guiando o agir futuro das cortes e demais mem-
bros da sociedade. A função dos tribunais superiores não é apenas a
de resolver disputas subjetivas, mas, principalmente, de defender a
ordem legal e/ou constitucional objetiva, resguardando simultanea-
mente, os princípios da segurança jurídica e da isonomia, esteios
fundamentais de qualquer ordenamento jurídico.
Se a adjudicação judicial, baseada em casos precedentes, pos-
tula a qualidade de um sistema orgânico e lógico, isso demanda
uma articulação coerente de uma “doutrina judicial vinculante”, o
que só pode ser alcançado pelo agrupamento de uma série de deci-
sões judiciais sob a capa de um princípio jurídico comum que as uni-
fica, objetivo esse que só pode ser alcançado se, de um lado, se
reconhece a possibilidade e a competência que possuem os tribu-
nais de, partindo de um caso concreto, estabelecerem normas mais
gerais e abstratas que transcendam os fatos que deram origem à
lide e de outro, se atente para a circunstância de que essas normas,
por serem prévias e mais gerais que os fatos da lide em julgamento,
só podem ser hauridas pela vinculação das cortes subseqüentes às
razões articuladas pela corte vinculante para justificar a regra espe-
cífica que governou o caso precedente, que exatamente por serem
razões são anteriores e mais gerais que a decisão para a qual elas
foram razões justificantes.
Reconhecido o método abstrato-normativo como o mais adequado
para a identificação do holding da decisão precedente, força concluir
que as cortes subseqüentes estão vinculadas não apenas pelo disposi-
tivo da decisão precedente, como também pelos seus fundamentos jus-
tificantes.

218
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

4. Um caso ilustrativo

Mévio, membro do ministério público federal, instaurou inquérito


civil público em desfavor de Tício, ex-presidente de uma agência regu-
ladora, para apurar denúncia de suposta prática de atos de improbida-
de administrativa consistente em beneficiar algumas empresas da ati-
vidade econômica que deveria regulamentar, desviar recursos públicos
e praticar atos que visavam dificultar o esclarecimento das irregulari-
dades. Na instrução do procedimento administrativo, Mévio ouviu
diversas testemunhas sobre o fato apontado como violador da probida-
de administrativa, todas indicando circunstâncias e fatos que aponta-
vam para a culpabilidade de Tício. Caio, o atual presidente da agência
e principal testemunha, afirmou que o representado teria sumido com
documentos importantes e deletado vários arquivos de computador, o
que estava impossibilitando a perfeita apuração do prejuízo público.
As contas da agência no período mencionado não tinham sido aprova-
das pelo Tribunal de Contas da União em virtude de possíveis irregula-
ridades, tendo sido determinada a realização de tomada de contas
especial para apurar os fatos. A seu turno, Tício alegou que as acusa-
ções eram falsas e feitas por motivos políticos, tendo já apresentado
todos os esclarecimentos necessários ao TCU.
Diante do quadro fático produzido no inquérito civil e ciente dos
prazos prescricionais, Mévio propôs ação de improbidade administrati-
va na qual, com base nos depoimentos colhidos, relatou inúmeras con-
dutas antiéticas e imorais praticadas contra os interesses maiores da
administração pública. Em sua defesa, Tício reproduz os argumentos
apresentados no inquérito civil público de que as acusações são verda-
deiras aleivosias decorrentes de motivação política, e que já prestou
todos os esclarecimentos necessários para a aprovação de suas contas
perante o TCU. O juiz, apreciando as provas dos autos, repele a defesa
de Tício, julga procedente a ação de improbidade e o condena à perda
dos direitos políticos por 4 anos.
Com elementos obtidos somente após a sentença, Tício, em seu
recurso de apelação, comprova que a principal testemunha do ministé-
rio público era seu inimigo capital e havia mentido em seus depoimen-
tos, colocando certa dúvida quanto ao acerto da decisão de primeira
instância. No decorrer do processamento da apelação, Tício junta deci-
são definitiva do Tribunal de Contas da União que julgou improceden-
te a tomada de contas especial e aprovou suas contas. Com esses

219
Celso de Albuquerque Silva

dados, o Tribunal reforma a decisão singular e julga improcedente o


pedido da ação de improbidade.
Absolvido na ação de improbidade, Tício propõe ação de indeniza-
ção contra Mévio sob o código civil e a constituição federal, alegando:
que Mévio, como procurador da república, conscientemente apresen-
tou em juízo um testemunho falso contra si; conscientemente deixou de
considerar e investigar em toda profundidade sua defesa de que as
acusações eram fruto de vingança política, que açodada e maliciosa-
mente propôs a ação antes do término da tomada de contas especial
que estava sendo feita pelo TCU; que, ao acusá-lo de ser um agente
público ímprobo, acusação da qual restou absolvido, ofendeu sua
honra, causou-lhe dor e sofrimento injustificados e, portanto, deve
reparar o dano.
Mévio, em sua defesa, alega preliminarmente que é parte ilegíti-
ma para responder à ação de indenização, devendo figurar no pólo pas-
sivo apenas o Estado. Traz como substrato de sua alegação, a decisão
proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE 228.977-2/SP, que vincu-
laria a decisão no presente caso. Supondo-se que essa decisão efetiva-
mente está dotada de efeito vinculante, resta analisar se ela se aplica
ao caso presente.
O primeiro passo é identificar quais princípios jurídicos controlam
o caso apontado como vinculante, ou seja, a primeira coisa que o juiz
posterior deve fazer, é descobrir na decisão judicial precedente um
suposto normativo geral e abstrato. O precedente mencionado tratava
de imputação de responsabilidade pessoal ao juiz em decorrência de
atos praticados no exercício da função jurisdicional. No precedente
ficou reconhecido que, em se tratando de ação reparatória por ato ilíci-
to, a autoridade judiciária não tem responsabilidade civil que é exclu-
siva do Estado.
Como visto, sob o método abstrato-normativo esta situação – res-
ponsabilidade do juiz por ato judicial – é apenas o fato que concreta-
mente deu origem à demanda, mas ele pertence a uma totalidade de
fatos abarcados pelo princípio mais geral e abstrato. Esse princípio
mais geral só pode ser alcançado pela análise das razões utilizadas
pela corte para justificar a decisão e resolver o caso concreto, bem
como dos objetivos que elas visam alcançar. É por esse motivo que as
razões das cortes, ou seja, os fundamentos justificantes nos quais se
estrutura a decisão são eles próprios vinculantes.
Retornando ao caso precedente, identifica-se no corpo da funda-
mentação as seguintes razões para decisão: a) embora sejam agentes

220
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

públicos, os magistrados se enquadram na espécie de agentes políti-


cos; b) os agentes políticos são investidos para o exercício de atribui-
ções constitucionais, sendo dotados de plena liberdade funcional no
desempenho de suas funções, com prerrogativas próprias e legislação
específica; c) essas prerrogativas e esse tratamento legal específico
são indispensáveis ao exercício de suas funções decisórias.84 A indis-
pensabilidade desse tratamento legal específico é facilmente justifica-
da. Os juízes freqüentemente prolatam, embora muitas vezes questio-
náveis, importantes decisões potencialmente geradoras de profunda
revolta na parte vencida, que poderá retaliar processando o magistra-
do. Conferindo imunidade de responsabilização civil pessoal, o sistema
capacita o juiz para exercer sua essencial função livre do medo de
sofrer retaliações. Além disso, possibilita à sociedade usufruir toda a
energia e tempo do magistrado no exercício de seu múnus, que esta-
riam séria e deleteriamente afetados, desviando o juiz de suas impor-
tantes funções, se a todo tempo tivesse que se defender de ações civis
de indenização por atos praticados nessas funções.
De posse das razões e objetivos que justificam a imunidade civil
pessoal para o exercício das atividades judiciais, estamos preparados
para extrair o princípio geral e abstrato (ratio decidendi) que governa
o caso: “os agentes políticos que exercem funções constitucionais deci-
sórias não possuem, perante à vítima, responsabilidade civil por seus
atos no exercício dessas funções, respondendo exclusivamente o
Estado pelos danos causados”.
Identificadas a regra da decisão e a sua rationale do precedente,
passa-se à fase final do processo: verificar se o caso atual possui a
mesma rationale e, portanto, se submete à mesma regra de decisão do
caso precedente.
Os membros do ministério público exercem funções governamen-
tais vitais, tanto na persecução penal dos acusados de cometimento de
delitos criminais, quanto na persecução daqueles que violam os princí-
pios reitores da Administração Pública, quando agem na defesa da
ordem jurídica e do regime democrático. Por essa razão, a exemplo do
que ocorre com os magistrados, também são considerados agentes
políticos e, como conseqüência, possuem tratamento legal e constitu-
cional similar à magistratura no concerne a eu estatuto de deveres e
direitos. Eles, a exemplo dos juízes, são em pequeno número e a socie-

221
Celso de Albuquerque Silva

dade necessita que seu tempo e energia sejam mais dedicados ao com-
bate dos ilícitos penais e civis do que na defesa de inúmeras ações de
indenização, a maioria sem qualquer fundamento. Por outro lado, os jul-
gamentos que os membros do ministério público fazem quando deci-
dem se devem ou não propor uma ação penal ou civil são muito simila-
res aos julgamentos feitos pelos juízes: É essa testemunha digna de
crédito? Ela está dizendo a verdade? Quão forte é seu depoimento?
Existem elementos indiciários suficientes para propor a ação? As res-
postas a essas questões, embora sejam questionáveis, também são
importantes e, provavelmente capazes de gerar uma reação irada de
um acusado que, posteriormente, venha a ser absolvido por um juiz ou
tribunal. Verifica-se, portanto, que as razões que justificam a inclusão
dos magistrados no princípio geral extraído do caso precedente, tam-
bém se aplicam aos membros do ministério público que pertencem a
uma outra classe abrangida pelo princípio fixado no precedente.
Inserindo-se a hipótese que se discute no caso posterior no âmbi-
to normativo da regra fixada no precedente, curial a conclusão de que
o juiz subseqüente está vinculado pelo precedente e, portanto, neces-
sariamente deve decidir no mesmo sentido do caso vinculante e reco-
nhecer a ilegitimidade passiva dos membros do ministério público para
responder pessoalmente demandas civis de indenização por atos ilíci-
tos, pelos quais responde exclusivamente o Estado.

5. Conseqüências processuais decorrentes da adoção do


efeito vinculante

5.1. Medida cabível da decisão posterior que afronte o


precedente vinculante

Como já anotado, o efeito vinculante obriga as cortes subseqüen-


tes a seguirem a mesma decisão prolatada no caso precedente consi-
derado vinculante. O princípio normativo que deriva do pronunciamen-
to efetuado no caso precedente deve ser observado pelas cortes pos-
teriores. No julgamento da ação declaratória de constitucionalidade no
01, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que decisão
posterior em sentido contrário ao entendimento fixado no caso vincu-
lante constitui afronta à autoridade do julgado do Supremo Tribunal
Federal e “possibilita aos concretamente prejudicados com o desres-
peito de sua decisão pelos demais órgãos do poder judiciário ao pres-

222
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

tarem a jurisdição que se valham da reclamação, meio mais rápido de


desconstituir esse desrespeito”.85 Assim, a medida cabível da decisão
que afronte o princípio firmado em um caso vinculante é a reclamação.
Essa construção jurisprudencial veio de ser acolhida pelo legisla-
dor no trato legal sobre o processo e julgamento da argüição de des-
cumprimento de preceito fundamental, ao prever no artigo 13 da Lei no
9.882, de 03/12/1999, o cabimento de reclamação contra o descumpri-
mento da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, neste pro-
cesso que é um dos meios postos à disposição do STF para controle
abstrato da constitucionalidade de lei ou ato normativo. Mais recente-
mente, o próprio legislador constitucional inseriu no parágrafo 3o do
artigo 103-A, previsão do manejo de reclamação contra ato ou adminis-
trativo que contrariar súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal.

5.2. Limites objetivos da decisão vinculante

Os aspectos relativos aos limites objetivos do efeito vinculante


estão ligados ao papel conferido às cortes judiciais em um moderno
Estado Democrático de Direito. Como vínhamos de demonstrar, esse
papel não se restringe apenas ao de solucionar disputas intersubjeti-
vas, mas prover, dentro dos limites que o ordenamento jurídico lhe con-
fere, pautas gerais de condutas para os membros da sociedade, a fim
de distribuir justiça em termos coletivos e permitir uma maior previsi-
bilidade das conseqüências jurídicas do atuar humano.
Para que o direito cumpra sua função final que é a de propiciar o
justo, é imprescindível que os tribunais reduzam a níveis toleráveis a
natural incerteza do direito. Os homens, ao menos quando partilham
de um modo de vida comum, têm necessidade de saber como serão
qualificadas objetivamente a norma jurídica e, ipso facto, sua conduta,
porque um direito incerto conduz, imediatamente a uma situação con-
trária ao próprio direito e, mediatamente, a um estado de coisas injus-
to, pois não é capaz de assegurar as situações futuras semelhantes a
um tratamento igualitário.
O efeito vinculante tem por finalidade exatamente de modo ime-
diato incrementar a certeza jurídica e, assim, mediatamente, assegurar

223
Celso de Albuquerque Silva

a justiça. Para alcançar esse desiderato, o efeito vinculante precisa


superar a visão clássica dos efeitos da coisa julgada que se limita à
parte dispositiva da sentença86 para abranger também os seus funda-
mentos justificantes. Essa peculiaridade não é apenas um aspecto
desejável, mas imprescindível para a fecunda operacionalização do sis-
tema. Isso tanto mais é verdade, que o princípio que governa o caso e,
a fortiori, vincula o resultado nos casos subseqüentes, só pode ser afe-
rido quando cotejado com as razões justificadoras do resultado, como
descrito no item 3 e exemplificado no item 4 supra.
Nesse sentido, o holding do caso vinculante é, na verdade, um
princípio mais abstrato, geral e amplo, extraído da fundamentação da
sentença que, a exemplo de uma norma legislada, se dirige de um lado
a todos os membros da coletividade como uma pauta geral de conduta
a ser observada, e de outro, se refere a um grupo ou coletividade de
fatos e circunstâncias dos quais, os fatos do caso vinculante represen-
tam apenas uma individualização. Consectário lógico dessa atuação
bifronte do efeito vinculante é: a) o dever geral imposto a todos os
órgãos sujeitos ao poder vinculante do tribunal, ainda que não tenham
integrado o processo no qual foi proferida a decisão, de observar e exe-
cutar o que foi decidido pela corte vinculante; e, b) referidos órgãos
estão vinculados à orientação estabelecida pelo Tribunal nas razões
oferecidas pela corte como justificação para a decisão também em suas
condutas futuras vez que, não é demais repetir, os fatos que deram ori-
gem à lide representam apenas uma das várias possibilidades abran-

224
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

gidas pelo princípio elaborado. Assim, toda vez que os órgãos subme-
tidos ao precedente da corte vinculante se defrontarem com situações
e/ou hipóteses que, embora não idênticas ao caso precedente, se insi-
ram no âmbito mais geral de aplicação do princípio extraído da decisão
vinculante, devem se abster de praticar a conduta que viola aquela
norma geral vinculante.
No mesmo diapasão, ao analisar o tema, assim se pronunciou
Gilmar Ferreira Mendes:

“A Corte Internacional Alemã sempre interpretou o efeito vin-


culante (Bindungswirkung) previsto no parágrafo 31, I, da Lei
Orgânica do Tribunal, como instituto mais amplo do que a coisa
julgada (e do que a força de lei, por conseguinte) exatamente por
tornar obrigatória não apenas a observância da parte dispositiva
da decisão, mas também dos chamados fundamentos determinan-
tes (Tragende Grunde). Os órgãos e autoridades federais e esta-
duais estariam, assim, vinculados as assertivas abstratas (abs-
trakte rechtsaussagen) da Corte Constitucional. A decisão não
resolveria apenas caso singular, mas conteria uma determinada
concretização jurídica da Constituição para o futuro.
Segundo este entendimento, a eficácia da decisão do Tribunal
transcende o caso singular, de modo que os princípios dimanados
da parte dispositiva (Tenor) e dos fundamentos determinantes
(tragende grunde) sobre a interpretação da Constituição hão de
ser observados por todos os Tribunais e autoridades nos casos
futuros.”87

Com efeito, em se admitindo que o efeito vinculante, dada a gene-


ralidade do holding, abrange não apenas a parte dispositiva do julga-
do, mas igualmente os fundamentos determinantes da decisão, força é
reconhecer que, para além da solução para o caso concreto, a decisão
vinculante contém assertivas gerais e abstratas, apontando para o
dever de observância por parte de outros atores jurídicos distintos
daqueles envolvidos na questão decidida, de considerar que, nas mes-
mas circunstâncias, conduta semelhante é permitida ou proibida.

225
Celso de Albuquerque Silva

De vê-se, portanto, que o efeito vinculante postula uma eficácia


adicional à decisão proferida, transcendendo os limites inerentes à efi-
cácia erga omnes da decisão, para o fito de determinar aos órgãos esta-
tais por ele abrangidos que não se limitem a obedecer ao conteúdo do
dispositivo sentencial, senão que, desbordando desse limite, observem
a norma abstrata que é extraída do decisum. Em outro dizer: “que
determinado tipo de situação, conduta ou regulação – e não apenas
aquele objeto do pronunciamento jurisdicional – é constitucional ou
inconstitucional e deve, por isso, ser preservado ou eliminado”.88
Essa linha de orientação veio a prevalecer na ação direta de
inconstitucionalidade no 1.662-7/SP,89 requerente Governador do
Estado de São Paulo e requerido o Tribunal Superior do Trabalho, em
que se impugnava a instrução normativa 11/97 aprovada pela resolu-
ção 67, de 10/04/97, do órgão especial do Tribunal Superior do Trabalho.
Na referida ação, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucionais
os itens III e XII do ato normativo impugnado.
O item III equiparava a “não inclusão no orçamento de verba
necessária à satisfação de precatórios judiciais” à “preterição do direi-
to de precedência”. O item XII procedia à mesma equiparação na hipó-
tese de “pagamento a menor, sem a devida atualização ou fora do
prazo legal”. Diante dessa equiparação, autorizava, presentes essas
duas hipóteses, a decretação de seqüestro de quantia necessária ao
pagamento.
O Tribunal, então, por maioria de oito a dois, julgou inconstitucio-
nal a equiparação dessas duas hipóteses, à preterição do direito de pre-
cedência para fins de seqüestro. A rationale da decisão foi que “nos
termos do art. 100, § 2o, da Constituição, somente se pode decretar o
seqüestro de verba para pagamento de precatório na exclusiva hipóte-
se de inobservância da ordem cronológica de apresentação do ofício
requisitório”. Na visão tradicional da vinculação à coisa julgada, o efei-
to vinculante estaria limitado ao dispositivo, ou seja, “é inconstitucio-
nal a equiparação à violação da ordem de precedência, a não inclusão
no orçamento de verba necessária ao pagamento e o pagamento a
menor, sem a devida atualização ou fora do prazo legal”. E só. Essa
aplicação restrita do efeito vinculante, entretanto, pelas razões já adu-
zidas é inaceitável. Assim, em sendo vinculantes os fundamentos da

226
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

decisão, o holding da sentença traduz a seguinte determinação geral e


abstrata: “a única hipótese em que se pode decretar o seqüestro, é a
inobservância da ordem cronológica de apresentação do ofício requisi-
tório, sendo inconstitucionais todas as demais equiparações feitas a
essa exclusiva hipótese”.
Assim, qualquer outra hipótese que não a inobservância da ordem
cronológica não poderia ser considerada pelos órgãos constitucionais
vinculados como justificadora do decreto de seqüestro e, se fosse,
caberia reclamação por afronta ao que decidido de forma vinculante na
mencionada ADI. Foi o que ocorreu na reclamação 1.987/DF.90 Referida
reclamação foi manejada pelo Governador do Distrito Federal (que não
participou do processo vinculante) contra ato da juíza presidente do
TRT 10a Região (que também não participou do processo vinculante),
determinando seqüestro de verba pública pela hipótese “de não paga-
mento de quantias incluídas no orçamento” (hipótese diversa das duas
analisadas na ADI 1662-SP).
O relator da reclamação Min. Maurício Correa, embora reconhe-
cendo que essa hipótese não estava contemplada na instrução norma-
tiva 11/97, proferiu voto, afinal acolhido pelo Supremo Tribunal, no sen-
tido de “julgar procedente o pedido formulado na reclamação por
entender que o STF, no julgamento de mérito da mencionada ADI 1.662,
decidira que não houvera substancial alteração do art. 100, § 2o, da CF
com a nova redação dada pela EC 30/2000, e fixara o entendimento de
que somente se legitima o seqüestro de verbas públicas para paga-
mento de precatórios quando se verificar a preterição ao direito de pre-
cedência, de maneira que, todas as demais situações de inobservância
das regras disciplinadas pelo artigo 100 e parágrafos da CF, consti-
tuem-se em manifesto desrespeito à decisão do STF na ADI. 1662”, o
que de um lado demonstra que o efeito vinculante se estende também
aos fundamentos justificantes da decisão e de outro, outorga um elas-
tério maior que o classicamente reconhecido, aos limites objetivos da
decisão judicial.

5.2.1. Leis/atos normativos de conteúdo semelhante

A vinculação dos demais órgãos constitucionais também aos fun-


damentos justificantes do caso precedente tem importante repercus-

227
Celso de Albuquerque Silva

são nas hipóteses de leis e/ou atos normativos de conteúdo semelhan-


te àquele apreciado pela Corte vinculante.
É que, como visto anteriormente, superada a visão clássica dos
limites objetivos da coisa julgada, a vinculação ao fundamentos justifi-
cantes do precedente implica ou na obrigação dos órgãos constitucio-
nais de se omitirem em adotar qualquer conduta específica que faça
parte daquela categoria de condutas consideradas ilegítimas pela
decisão vinculante ou na obrigação de praticarem a conduta conside-
rada legítima e, portanto, exigível.
Destarte, inaplicada qualquer norma de conteúdo semelhante a
outra já considerada constitucional pelo Supremo Tribunal Federal evi-
dencia-se cristalina violação ao que foi decidido de forma vinculante.
Igualmente, aplicada que seja qualquer norma de conteúdo semelhan-
te à outra já declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal
essa aplicação importa afronta à autoridade da decisão do Supremo
Tribunal Federal, legitimando o manejo da reclamação, ocasião, inclusi-
ve, em que se pode declarar incidentalmente a inconstitucionalidade
da lei de conteúdo semelhante. Na reclamação 595-0/SE91 o STF aco-
lheu essa orientação.
Cuidava a hipótese de requerimento para extinção sem julgamen-
to do mérito de ação direta de inconstitucionalidade perante o Tribunal
de Justiça, proposta contra lei municipal face à dispositivo da consti-
tuição federal. Referido controle abstrato da norma local hauria sua
legitimidade do artigo 106, I, c, da Constituição do Estado de Sergipe,
a dispor ser da competência do Tribunal de Justiça processar e julgar
originariamente “a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou atos
normativos estaduais em face da Constituição Estadual e de lei ou ato
normativo municipal em face da Constituição Federal ou da Estadual”.
Sucede, como expresso no voto condutor do relator Ministro
Sydney Sanches, que a Suprema Corte tratando de norma constitucio-
nal semelhante do Estado do Rio Grande do Sul92 decidiu na ADI no
409-3/RS,93 que a adoção de controle concentrado de leis municipais
frente à Constituição Federal importa em violação à Constituição

228
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Federal, pois esta só admite argüição de inconstitucionalidade das nor-


mas locais, via controle difuso. Em conseqüência, lastreado na rationa-
le exarada na precedente ação direta que tratou de norma semelhante,
o STF conheceu da reclamação para julgá-la procedente e declarar inci-
dentalmente a inconstitucionalidade do dispositivo da Constituição do
Estado de Sergipe, determinando, ainda, fosse feita comunicação ao
Senado Federal para dotar sua decisão de eficácia erga omnes, o que
conduz inapelavelmente à conclusão de que, aplicada pela administra-
ção ou pelo judiciário, uma lei ou um ato normativo de conteúdo seme-
lhante a outra norma já reputada inconstitucional pelo Supremo
Tribunal Federal, esse proceder implica em desrespeito a autoridade da
decisão daquele excelso sodalício e em expressa violação ao que ficou
decidido de forma vinculante.
Essa conseqüência também se observa na curiosa hipótese de
represtinação de normas de conteúdo semelhante da norma revogado-
ra em razão da declaração, provisória ou definitiva, de inconstituciona-
lidade da última. O STF teve oportunidade de se defrontar com situa-
ção desse naipe nas reclamações nos 1.507-6/RJ e 1652-8/RJ.94
As reclamações foram propostas pelos respectivos autores das
ADIs 2188-5 e 2.049-8/RJ, nas quais o Supremo Tribunal Federal, limi-
narmente, considerou inconstitucionais dispositivos de leis fluminen-
ses que autorizavam a cobrança previdenciária dos servidores inativos
e pensionistas do Estado do Rio de Janeiro. O fundamento justificante
das decisões liminares foi o de que a imediata incidência do artigo 195,
II da Constituição, na redação conferida pela Emenda Constitucional no
20/98, vedava a cobrança de contribuição previdenciária sobre aposen-
tadoria e pensão. O Governador do Estado do Rio de Janeiro, à vista da
liminar afastando provisoriamente a vigência das leis fluminenses,
aplicou a legislação que fora revogada pelas normas suspensas ao
argumento de sua represtinação e continuou a efetuar a cobrança das
contribuições sociais consideradas inconstitucionais pelo Supremo.
Propostas as reclamações, o Supremo Tribunal Federal por maioria
as admitiu, e sem maiores fundamentações teóricas as julgou proce-
dentes. O ministro Néri da Silveira se limitou a afirmar que a
Constituição Federal desde a EC no 20/98 não autoriza a cobrança de
contribuição previdenciária de servidores inativos e pensionistas, não
cabendo, portanto, ao reclamado ter por represtinada legislação ante-

229
Celso de Albuquerque Silva

rior que previa contribuições previdenciárias de servidores inativos e


seus pensionistas, somente porque disposições de lei nova sobre essa
matéria foram suspensas. Mas, por que não? O ministro Sepúlveda,
embora com a habilidade que lhe é característica, mas a nosso sentir,
in casu, inconvincente, alegou que a lei nova revogou um sistema intei-
ro por outro, não sendo a hipótese de se falar em represtinação.
A questão, na verdade, embora não aprofundada pelo ministro Néri
da Silveira, não se centra na questão da represtinação ou não da norma
anterior. Essa circunstância é indiferente para o dever de agir do chefe
do executivo. Mais importante do que se discutir sobre a represtinação
ou não da norma, é afirmar a vinculação ao fundamento justificador da
decisão afrontada. Estando o executivo vinculado também pela rationa-
le da decisão, que é exatamente a inconstitucionalidade de qualquer lei
que institua contribuição previdenciária para servidores públicos inati-
vos e pensionistas na redação da EC no 20/98, ainda que represtinada,
a norma não poderia ser aplicada pelo executivo, pois isto importaria
em violação a uma decisão precedente vinculante, que impede a práti-
ca de qualquer conduta que se insira na categoria daquelas considera-
das inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.
É exatamente em virtude da vinculação aos fundamentos da deci-
são precedente, que reputamos plenamente legítimo o manejo de recla-
mação alegando afronta ao decidido, liminar ou definitivamente, em
ações diretas de inconstitucionalidade ou declaratórias de constitucio-
nalidade, ou em controle incidental, desde que sumulado de modo vin-
culante, contra ato/decisão praticado por autoridade judicial ou admi-
nistrativa com base em leis ou atos normativos de conteúdo similar à
norma declarada inconstitucional pelo STF, a fim de se obter a sustação
do ato ou decisão contrária ao precedente que tratou de ato normativo
de conteúdo similar.

5.3. A concessão de liminar nos processos de controle


concentrado de constitucionalidade

5.3.1. Efeitos da concessão de liminar nas ações declaratórias de


constitucionalidade

Dispõe o parágrafo 2o do artigo 102 da Constituição Federal na reda-


ção dada pela emenda constitucional no 03/93, que as decisões definiti-
vas de mérito proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações decla-
ratórias de constitucionalidade, produzirão eficácia contra todos e efeito

230
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

vinculante aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.


A constituição, então, diversamente do que ocorre no trato da ação dire-
ta de inconstitucionalidade para a qual expressamente prevê a conces-
são de medida cautelar (art. 102, I, p, da CF/88), silenciou quanto a pos-
sibilidade de concessão de medidas cautelares no âmbito do processa-
mento das ações declaratórias de constitucionalidade.
No julgamento da ação declaratória de constitucionalidade no 04-
6/DF,95 forte em precedentes da Corte apontando de modo indiscrepan-
te para a orientação de que o poder geral de cautela do juiz é exercido
para garantir a efetividade e o resultado útil da prestação jurisdicional
sempre que houver risco de que um dos interessados sofra grave lesão
de difícil reparação antes do julgamento da lide, o Supremo Tribunal Fe-
deral reconheceu a possibilidade, mesmo sem expressa previsão consti-
tucional, de concessão de medida cautelar nas ações declaratórias de
constitucionalidade, toda vez que ela fosse necessária para assegurar,
temporariamente, a eficácia contra todos e o efeito vinculante da decisão
de mérito a ser futuramente proferida, pois o poder de acautelar é imanen-
te ao de julgar. Essa construção pretoriana veio de ser reafirmada e pres-
tigiada pelo legislador, ao prever no artigo 21 da Lei no 9.868, de
10/11/1999, a possibilidade de concessão de medidas cautelares na ADC.
Superada a questão sobre o cabimento de concessão de medida
cautelar na ação declaratória, surge o aspecto de maior relevância con-
cernente à definição do conteúdo possível a ser conferido a essa caute-
la provisória. A questão assume contornos de relevância, na medida
em que se reconhece aos processos de controle concentrado de consti-
tucionalidade um caráter dúplice. Em outro dizer, uma ação direta de
inconstitucionalidade pode conduzir tanto a um resultado que afirme a
inconstitucionalidade do ato normativo, quanto a outro que afirme a
constitucionalidade desse mesmo ato. Similarmente, a ação declarató-
ria de constitucionalidade pode conduzir tanto a um provimento pela
sua procedência, hipótese em que se declara a constitucionalidade do
ato normativo, quanto a um provimento pela sua improcedência, hipó-
tese em que se declara a sua inconstitucionalidade.
Como a medida cautelar tem por finalidade única garantir a eficá-
cia do provimento definitivo de mérito a ser futuramente decidido e
este pode ser pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da
norma, a cautelar na ADC não pode possuir o conteúdo que determine

231
Celso de Albuquerque Silva

a obrigatória aplicação da norma provisoriamente considerada consti-


tucional, vez que esse conteúdo poderia vir de encontro a uma futura e
possível decisão que julgue improcedente o pedido e declare inconsti-
tucional o ato normativo.
Para obviar a tensão que poderia surgir da aplicação concomitan-
te dos sistemas de controle difuso e concentrado de constitucionalida-
de, o Supremo Tribunal Federal decidiu, no julgamento da citada ADC
no 04-6/DF, que o conteúdo da medida cautelar concedida em ação
declaratória de constitucionalidade, é o de suspender qualquer decisão
em processo que, a juízo da corte vinculada, tenha por pressuposto a
afirmação da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei obje-
to da ação declaratória de constitucionalidade.96
Em síntese, pode-se concluir que a concessão de medida cautelar
em sede de ação declaratória de constitucionalidade afasta o exercício
do controle difuso, na medida em que o juiz posterior vinculado nem
pode deixar de aplicar o ato normativo por reputá-lo inconstitucional,
em razão do efeito vinculante conferido pela medida cautelar, nem
pode ser obrigado a aplicá-lo, em virtude da provisoriedade do provi-
mento que poderá ser reformado quando do julgamento do mérito da
causa. Consectário lógico desse entendimento é a suspensão dos pro-
cessos em que incidentalmente se discuta a constitucionalidade da
norma objeto de controle concentrado de constitucionalidade. Essa
solução de compromisso, construída pelo Supremo Tribunal Federal
para permitir a convivência entre os dois sistemas de controle de cons-
titucionalidade adotados em nosso ordenamento jurídico, veio de ser
acolhida no artigo 21 da Lei no 9.868/99.

5.3.2. Efeitos da concessão de liminar nas ações diretas de


inconstitucionalidade

As ações diretas de inconstitucionalidade e declaratórias de cons-


titucionalidade representam as duas faces de uma mesma moeda. Daí
a feliz definição desta última como nada mais sendo do que “uma ação
direta de inconstitucionalidade com o sinal trocado”.97 É que, para efei-
to de controle abstrato de constitucionalidade de lei ou ato normativo,

232
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

há similitude substancial de objetos na ação declaratória de constitu-


cionalidade e na ação direta de inconstitucionalidade. A distinção se
refere apenas ao provimento postulado pelo autor da ação: aferição
positiva de constitucionalidade na primeira e pretensão de declaração
negativa na segunda. Ambas ações, porém, são espécies de fiscaliza-
ção objetiva, que traduz manifestação definitiva do Supremo Tribunal
Federal quanto a conformação, ou não, da norma com a Constituição
Federal, razão pela qual o efeito vinculante de que é dotada a decisão
proferida na ação declaratória não se distingue, em essência, dos efei-
tos das decisões de mérito proferidas nas ações diretas de inconstitu-
cionalidade.98
Nesse sentido, exsurge como imanente aos idênticos fins colima-
dos por essas ações, a outorga, nas concessões de liminares na ação
direta de inconstitucionalidade, da mesma conseqüência processual
conferida à cautelar proferida em sede de ação declaratória de consti-
tucionalidade.
Com efeito, reconhecida a força vinculante das decisões de mérito
proferidas em sede de ação direta de inconstitucionalidade, se mostra
inafastável a atribuição à decisão cautelar nela proferida, de efeito sus-
pensivo dos processos cuja decisão penda de aplicação, inaplicação ou
declaração de inconstitucionalidade em concreto da lei que teve a sua
eficácia suspensa por força de decisão cautelar do Supremo Tribunal
Federal.99
Isso porque, como bem demonstrou o Ministro Gilmar Mendes em
alentado e percuciente voto proferido nos autos da Reclamação no
2.256/RN,100 a concessão de liminar em Ação Direta de Inconstitucio-
nalidade retira não apenas a eficácia, mas a própria validade da norma,
afetando a sua vigência tanto no plano fático, quanto no plano norma-
tivo. Essa conseqüência é comprovada tanto pela orientação pretoria-
na sobre a possibilidade de, em casos excepcionais de exaurimento da
situação com a mera edição da norma, conferir-se eficácia ex tunc à
medida cautelar,101 quanto pela orientação pacificada no seio do
Supremo Tribunal Federal de que a suspensão liminar da eficácia da lei

233
Celso de Albuquerque Silva

torna aplicável a legislação anterior acaso existente, represtinando-


a.102 Daí a conclusão a que chegou o eminente ministro:

“...a possibilidade, admitida pelo Tribunal, de que se conce-


da, ainda que em casos excepcionais, a cautelar com eficácia ex
tunc, e a aceitação pela Corte da idéia segundo a qual, concedida
liminar, restaura-se a vigência do direito eventualmente revogado,
revelam, em verdade, que já no juízo de liminar se cuida de uma
questão de vigência da norma questionada.
Portanto, a medida cautelar deferida em processo de controle
de normas, opera não só no plano estrito da eficácia, mas também
no plano da própria vigência da norma.
Não há dúvida, pois, de que a suspensão liminar da eficácia
da lei ou seu ato normativo, equivale à suspensão temporária de
sua vigência.”103

É importante realçar que essa dupla orientação do Supremo


Tribunal Federal foi prestigiada pelo Legislador, ao positivá-la nos
parágrafos 1o e 2o do artigo 11 da Lei no 9.868, de 10 de novembro de
1999.
Assim, o provimento liminar que afasta a vigência da lei ou ato
normativo impede o juiz vinculado de aplicá-lo incidentalmente para
solucionar a controvérsia concreta que lhe é posta para decisão. Por
outro lado, devido a provisoriedade do provimento, o juiz vinculado
também não pode deixar de aplicá-lo em definitivo, pois a liminar pode
ser revogada com o julgamento final de mérito da ação direta de
inconstitucionalidade, se o pedido for julgado improcedente.
Nesse sentido, do mesmo modo como ocorre na ação declaratória
de constitucionalidade, a concessão de medida cautelar na ação direta
de inconstitucionalidade afasta o exercício do controle difuso de cons-
titucionalidade sobre o mesmo tema e importa “na suspensão do julga-
mento de qualquer processo que tenha por fundamento lei ou ato esta-
tal cuja eficácia tenha sido suspensa por deliberação da Corte, em sede
de ação direta de inconstitucionalidade, até final julgamento desta”.104

234
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

5.3.3. Efeitos da concessão de liminar nas ações de argüição de


descumprimento de preceito fundamental

A argüição de descumprimento de preceito fundamental é proces-


so destinado a afastar fundada controvérsia sobre lei ou ato normativo
federal, estadual e municipal, inclusive de normas pré-constitucionais.
É, portanto, ao lado das ações declaratórias de constitucionalidade e
indireta de inconstitucionalidade, processo de natureza objetiva que
visa assegurar a supremacia da constituição.
Por essa razão, o legislador já previu no parágrafo 3o da Lei no
9.882, de 03 de dezembro de 1999, a possibilidade de concessão de
medida liminar consistente na determinação de que juízes e tribunais
suspendam o andamento do processo ou os efeitos de decisões judi-
ciais que apresentem relação com a matéria objeto da argüição de des-
cumprimento de preceito fundamental.
O Supremo Tribunal Federal na argüição de descumprimento de
preceito fundamental no 33/PA, que objetivava ver declarada com eficá-
cia erga omnes a não recepção do artigo 34 do regulamento de pessoal
do Instituto de Desenvolvimento Econômico-Social do Pará, em face da
proibição da vinculação de salário mínimo contida no artigo 7o, IV, da
Constituição Federal, concedeu medida liminar determinando a suspen-
são de todos os processos em curso e dos efeitos das decisões judiciais
que versam sobre a aplicação do artigo arrostado, até a decisão final da
ação, atuando de forma coerente com o princípio firmado pela Corte de
que a concessão de liminar em processo de controle concentrado de
constitucionalidade afasta o exercício do controle difuso.105

5.4. Efeitos da denegação de liminar nas ações de controle


concentrado da constitucionalidade de lei

Como vínhamos de demonstrar, é entendimento pacificado no seio


do Supremo Tribunal Federal que, a vista da natureza dúplice dos pro-
cessos de controle concentrado de constitucionalidade, se a ação dire-
ta de inconstitucionalidade for julgada procedente, a lei ou ato norma-
tivo objeto da causa, será declarado inconstitucional e, se improceden-
te, constitucional. Na ação declaratória de constitucionalidade ocorre o
exato oposto, pois se for procedente, a norma dela objeto será declara-

235
Celso de Albuquerque Silva

da constitucional e, se improcedente, inconstitucional. Daí porque pre-


valeceu a orientação de que a ação declaratória de constitucionalidade
é uma ação direta de inconstitucionalidade com sinal trocado, devendo
sobre ambas recair o mesmo tratamento jurídico.
Consectários lógicos desse entendimento foram: a) extensão da
possibilidade de concessão de medida cautelar, prevista expressamen-
te apenas para a ação direta de inconstitucionalidade (CF/88, art. 102,
I, p), também para a ação declaratória de constitucionalidade; e, b) ex-
tensão do efeito vinculante, previsto expressamente apenas para a
ação declaratória de constitucionalidade (CF/88 art. 103, § 2o), também
para as decisões proferidas nas ações diretas de inconstitucionalida-
de.106 Por igual razão, a concessão de provimentos cautelares em
ambas ações conduziu ao mesmo resultado processual: suspensão dos
processos que tivessem por pressuposto a aplicação ou inaplicação da
norma objeto de aferição no juízo concentrado de constitucionalidade.
Nessa linha de orientação pretoriana, força é reconhecer que não
só o deferimento, mas também o indeferimento do provimento cautelar
pedido pelo autor, implicam na conseqüência processual de suspensão
de todos os processos que tenham por pressuposto a interpretação da
norma objeto dessas duas ações objetivas.
Como já assentado na Suprema Corte. inexiste diferença ontológi-
ca no conteúdo dos provimentos jurisdicionais cautelares e de mérito
nas ações declaratórias de constitucionalidade e indiretas de constitu-
cionalidade. Atento a essa circunstância, não vislumbro, na sua essên-
cia, qualquer diferença entre a decisão que defere uma liminar na ação
declaratória de constitucionalidade e aquela que, em juízo de deliba-
ção provisório, considera constitucional uma norma ao indeferir a limi-
nar na ação direta de inconstitucionalidade. Do mesmo modo, o conteú-
do extraído de uma liminar deferida em ação direta de inconstituciona-
lidade é, em essência, semelhante ao extraído de um indeferimento
liminar em sede de ação declaratória.
Sinale-se que os fundamentos justificantes da concessão de medi-
das liminares nessas ações determinando a suspensão dos processos
que tenham por pressuposto a aplicação das normas objeto de análise
no sistema concentrado, decorre da possível tensão existente entre a

236
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

provisoriedade do provimento cautelar proferido no sistema concentra-


do e definitividade do provimento porventura proferido no sistema difu-
so. Se, exemplificativamente, em virtude da cautelar deferida em uma
ação declaratória fosse o juiz vinculado obrigado a aplicar a norma pro-
visoriamente tida por constitucional, isso poderia conduzir a um resul-
tado inconsistente, na medida em que na decisão de mérito a lei pode-
ria ser considerada inconstitucional. Assim, a medida cautelar que tem
por fim último e exclusivo assegurar o resultado útil do provimento
definitivo, estaria em verdade, determinando a obrigatória aplicação de
uma lei inconstitucional, o que soa absurdo. O mesmo se diga quanto
à concessão de liminar em ação direta. Se fosse entendido que seu
comando obrigasse o juiz vinculado a deixar de aplicar em definitivo a
norma suspensa provisoriamente, o resultado final também poderia ser
contraditório se, no mérito, a ação fosse julgada improcedente, e cons-
titucional a norma.
Isso demonstra que a já difícil convivência entre os sistemas de
controle difuso e concentrado de constitucionalidade de normas se
mostra, com a adoção do efeito vinculante, virtualmente incompatível
de aplicação simultânea, daí, dado o privilégio outorgado ao sistema
concentrado, da necessidade, reconhecida pelo Supremo Tribunal
Federal, de afastar o exercício do controle difuso, determinando-se a
suspensão de todos os processos em que se controverta a aplicação da
norma objeto da aferição no sistema concentrado.
Essa orientação veio a prevalecer no julgamento da ação declara-
tória no 04-6/DF que, pela vez primeira, reconheceu a possibilidade de
concessão de medida cautelar em sede de ação declaratória e fixou o
conteúdo possível dessa medida. Assentou o Ministro Sepúlveda
Pertence no voto proferido na questão de ordem sobre a admissibilida-
de do provimento cautelar, verbis:

“...O Brasil, no entanto, importou, com a República, o sistema


difuso americano, enfraquecido, porém, entre nós, pela ausência do
stare decisis, e foi, talvez por isso, pouco a pouco fazendo conces-
sões ao sistema austríaco até que, em 1965, de repente – à base de
uma fundamentação despretensiosa ligada ao descongestionamen-
to do Supremo Tribunal Federal – se completou esse acoplamento e
passaram a conviver os dois sistemas na sua integralidade.
A partir daí, é claro, cabe a este Tribunal construir um siste-
ma de convivência, de harmonização desses dois sistemas, no
qual é fatal, dada a eficácia universal do controle abstrato, que

237
Celso de Albuquerque Silva

este venha a predominar sobre o controle difuso, paralisando-o ou


mesmo extinguindo-o em cada caso, seja por força da decisão limi-
nar da ação direta – praticada entre nós com dimensões que
nenhum outro ordenamento conhecida –, seja por força da decisão
definitiva do Supremo Tribunal Federal.”107 (g.n.)

Ao fixar o conteúdo possível do provimento liminar, assim se mani-


festou o eminente ministro:

“...o conteúdo do provimento cautelar que considero possível


é suspender qualquer decisão em processo que, a juízo do magis-
trado competente, dependa da afirmação da constitucionalidade
ou inconstitucionalidade da lei, objeto da ação direta...só a admito
nesse sentido, porque, primeiro, uma perda da perspectiva de que
se trata de uma ação tipicamente dúplice poderia levar a interpre-
tar-se a nossa medida cautelar como determinando, estabelecendo
como norma geral, que o juiz tem que aplicar a lei aos casos con-
cretos. Não estou declarando provisoriamente a constitucionalida-
de, porque a ação é dúplice, e do seu julgamento pode eventual-
mente resultar a declaração de inconstitucionalidade da lei. Minha
proposta é de sustar qualquer decisão a respeito, até que aqui se
decida, com eficácia erga omnes e força vinculante, entre a decla-
ração de constitucionalidade e a inconstitucionalidade.”108

Curial, portanto, que se o fundamento justificante (rationale) que


decorre da adoção do efeito vinculante é afastar o controle difuso que
deve ceder passo ao controle concentrado, para determinar liminar-
mente a suspensão de todos os processos em que se discuta a aplica-
ção da norma objeto de uma ação direta, é indiferente, havendo uma
manifestação provisória do Supremo Tribunal Federal, se foi deferido ou
indeferido o provimento pleiteado pelo autor. Mesmo porque, o indefe-
rimento da medida cautelar em uma ação direta de inconstitucionalida-
de, possui a mesma significância normativa do deferimento do mesmo
pleito em uma ação declaratória de constitucionalidade e vice versa.
A não se entender assim, proposta uma ação direta de inconstitu-
cionalidade e negada liminar, verificando o pólo passivo da ação que a

238
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

decisão do Supremo ao negar a liminar reconheceu provisoriamente


que a norma não deve ser expungida do ordenamento jurídico e que
este reconhecimento está sendo afrontado por decisões proferidas em
controle difuso, determinando liminar ou definitivamente a inaplicabi-
lidade da referida norma, poderia, então, propor uma ação declaratória
com o único objetivo de obter um provimento cautelar positivo com o
mesmo conteúdo do prolatado de forma negativa na ação direta, ape-
nas para atribuir à decisão o efeito vinculante, o que seria ilógico, não
funcional e ineficiente, para dizer o menos.
Aliás, a ação declaratória no 4-6/DF é exemplo emblemático da
correção dessas afirmações pois, ao analisar o pedido de medida cau-
telar, o relator Ministro Sydney Sanches fez expressa referência ao deci-
dido pelo pleno do STF na ação direta de inconstitucionalidade no 1576-
1 proposta contra a medida provisória no 1.570, de 26/03/1997, que
indeferiu a suspensão cautelar do artigo 1o da medida provisória de
idêntico teor do artigo 1o da Lei no 9.494, de 10/09/1997, objeto da cita-
da ação direta. Partindo da premissa de que o indeferimento da medi-
da cautelar na ADI traduzia, em essência, o acolhimento de uma pre-
tensão cautelar positiva a ser conferida no bojo de uma ação declarató-
ria, assim expressou o relator em seu voto:

“O acórdão, relatado pelo eminente Ministro Marco Aurélio,


no ponto que aqui interessa, ostenta o seguinte resumo:
‘Tutela Antecipada – Servidores – Vencimentos e Vantagens –
Suspensão da Medida – Prestação Jurisdicional. Ao primeiro
exame, inexiste relevância jurídica suficiente a respaldar a conces-
são de liminar, afastando-se a eficácia do artigo 1o da Medida
Provisória no 1.570/97, no que limita o cabimento da tutela anteci-
pada, empresta duplo efeito ao recurso cabível e viabiliza a sus-
pensão do ato que a tenha formalizado pelo Presidente do Tribunal
a quem competir o julgamento deste último’.
Ora, se o Plenário naquela ação direta de inconstitucionalida-
de, ao menos ao ensejo do requerimento de medida cautelar, teve
por constitucional o dispositivo e por isso indeferiu a medida, pela
mesma razão deve reputá-lo constitucional aqui, até o julgamento
final da presente ação direta de constitucionalidade, que trata do
mesmo texto, agora constante do art. 1o da Lei no 9.494, de
10.09.1997.” (g.n.)

239
Celso de Albuquerque Silva

Nesse diapasão, decisão de juiz posterior que, em processo de


controle difuso de constitucionalidade, declara liminar ou definitiva-
mente inconstitucional uma norma que, em ação direta de inconstitu-
cionalidade teve apreciado e indeferido pedido de medida cautelar,
implica em desrespeito a essa decisão liminar (negativa), cujo conteú-
do equivale a decisão liminar positiva na ADC dotada de efeito vincu-
lante, sujeitando-se à reclamação para sustar o ato jurisdicional a fim
de assegurar a autoridade e a utilidade da decisão do Supremo
Tribunal Federal. Ao indeferir a medida cautelar em ação direta de
inconstitucionalidade, o STF emite juízo de significância normativa que
traduz a mensagem de que a norma objurgada deve, ainda que provi-
soriamente, ser observada. Permitir que juiz posterior desconsidere
esse juízo e não aplique a lei, implica em tornar inútil futuro provimen-
to judicial de mérito que confirme o juízo provisório, ao julgar improce-
dente a ADI e reconhecer a constitucionalidade da norma. Não fosse
admitida a reclamação, estaria o Supremo Tribunal Federal impedido
de adotar providência para prevenir efeitos manifestamente contrários
a autoridade da decisão liminar (negativa) proferida.109
Como as ações diretas possuem natureza dúplice, o indeferimento
da cautelar na ADI não pode implicar na obrigatoriedade de aplicação
definitiva da norma, assim como o indeferimento de medida cautelar na
ADC não significa obrigatoriedade de inaplicar a norma. A solução, em
ambas as hipóteses, como já ocorre na hipótese de deferimento é, por-
tanto, a suspensão de todos os feitos que tenham por fundamento a
aplicação ou inaplicação da norma objeto de aferição abstrata de cons-
titucionalidade.
A situação não se altera quando o indeferimento da concessão da
medida cautelar se basear apenas na inexistência do periculum in mora
e não na ausência de plausibilidade jurídica da argüição. Não importa.
O fundamental é que as razões justificantes da suspensão dos proces-
sos decorrem da inconveniência, para não dizer ilogicidade, do exercí-
cio simultâneo dos controles difuso e abstrato de constitucionalidade
que pode conduzir a uma ineficácia do provimento geral conferido nas
ações diretas. Dessa tensão decorre a necessidade de se afastar o exer-
cício do controle difuso em tais situações, o que, aliás, foi decidido com
eficácia vinculante na ação declaratória no 04-6/DF. Assim, a suspensão
de todos os processos que tenham por fundamento a aplicação ou ina-
plicação de lei objeto de controle concentrado, também nas hipóteses

240
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

de indeferimento do provimento cautelar, não tem meramente sabor de


conveniência, mas de obrigatoriedade em função dos fundamentos jus-
tificantes da ADC no 4-6/DF também vincularem as cortes inferiores.
Urge, portanto, que se altere a orientação que vem prevalecendo no
seio do Supremo Tribunal Federal de que, indeferida a medida cautelar, ao
contrário do que sucede na hipótese de concessão, não se suspende, em
princípio, o julgamento dos processos em que incidentemente se haja de
decidir a mesma questão de inconstitucionalidade110 e que não é cabível
reclamação em tais hipóteses, por impropriedade da via.111
O argumento deduzido para não se suspender os processos na
hipótese de indeferimento de liminar foi, como expressamente declara-
do no voto condutor do Ministro Sepúlveda Pertence, eminentemente
prático. A conveniência de se evitar a ocorrência de coisa julgada no
processo subjetivo antes que se decida o processo objetivo, não supe-
raria os inconvenientes decorrentes da paralisação de decisões inci-
dentes sobre a questão constitucional em todo o país. Essa conclusão
decorreria de dois dados extraídos da experiência da corte.
O primeiro é que na grande maioria das ações diretas de inconsti-
tucionalidade existe pedido de medida cautelar. Esse dado nada indi-
ca, pois se em todas fossem deferidas as liminares requeridas, os pro-
cessos seriam suspensos. Assim, da quantidade de ações em que se
requer concessão de medida cautelar não decorre logicamente a con-
clusão de inconveniência de não se suspender os processos.
O segundo dado é que, consciente da demora inevitável da decisão
definitiva, o tribunal tem aprofundado a cada dia esse juizo liminar, só
teoricamente de simples delibação: a conseqüência é de ser rara a inver-
são, no julgamento de mérito, do sentido do julgamento da cautelar. Ora,
esse argumento favorece a tese de suspensão de todos os processos. Se
o juízo liminar está mais aprofundado, quando se indefere o pedido, pro-
vavelmente a norma será julgada constitucional no julgamento de méri-
to. Assim, decisão judicial que determine a inaplicação do preceito tor-
nará inútil o resultado útil definitivo do processo, afrontando a autorida-
de da decisão liminar proferida e da definitiva a ser provavelmente pro-
ferida. Nesse sentido, a conveniência é de suspender todos os processos
em que se discuta incidentalmente a validade da norma.
Demais disso, como já antecipado, além de discutível o argumen-
to pragmático oferecido, a questão, após a decisão proferida na ADC

241
Celso de Albuquerque Silva

4-6/DF não é mais de conveniência ou inconveniência, mas de respeito


ou desrespeito ao que, de modo vinculante, foi fixado pelo Supremo
Tribunal Federal.
Por outro lado, também não se sustenta a afirmação de impro-
priedade da reclamação para garantir a autoridade da decisão limi-
nar negativa do Supremo, pois isto implicaria atribuir à reclamação
efeito declaratório de constitucionalidade (indeferimento de medida
cautelar em ADI) ou, de inconstitucionalidade (indeferimento de
medida cautelar em ADC), que ela não possui. Com a devida vênia,
a reclamação não atribui efeito declaratório de constitucionalidade
ou inconstitucionalidade; pelo contrário, impede que esse efeito seja
atribuído por decisão em processo subjetivo, ao determinar a sus-
pensão de todos os processos em que se exerce o controle difuso,
embora nada impeça em sede reclamatória, a declaração de consti-
tucionalidade de uma norma (Recl. 1880/SP, DJ, de 19/03/2004) ou
sua inconstitucionalidade (Recl. 595-0/SE, DJ, 23/05/2003).
Em resumo, o exercício do controle difuso da constitucionalidade
é livre enquanto não houver qualquer pronunciamento cautelar em
sede de controle abstrato, seja porque não houve requerimento pela
parte autora, seja porque apesar de existir, o STF ainda não se pronun-
ciou. Exercido, entretanto, o juízo liminar de delibação para deferir ou
indeferir o provimento cautelar, fica suspenso o exercício do controle
difuso, até decisão final na ação direta e, conseqüentemente, todos os
processos que dependem desse controle incidental de constitucionali-
dade devem ter seu curso paralisado.

6. Limites subjetivos da decisão proferida no precedente


6.1. Vinculação das instâncias inferiores do Poder Judiciário e
do Poder Executivo
Não obstante a argumentação de Enrique Alonso Garcia, para
quem “El que el tribunal inferior siga el precedente del superior no es
una derivación del princípio de stare decisis, sino de la regla adminis-
trativa que, para el buen funcionamento de los tribunales y en aras de
la uniformidad, implica el que dicho tribunal inferior siga las diretrices
del superior”,112 é doutrina correntia que, face ao stare decisis, inexis-
te dentro do sistema do common law possibilidade de o juiz inferior,

242
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

verificados presentes os requisitos que assemelham as situações pre-


térita e nova, se furtar de aplicar o princípio haurido do caso preceden-
te, por isso que ele é a lei aplicável à hipótese e negá-lo seria, dentro
da estrutura anglo-saxã, corromper os alicerces da estabilidade e coe-
rência do direito.
Acolhido o efeito vinculante no seio de nosso ordenamento jurídi-
co, a conclusão acima é aplicada em toda sua amplitude no sistema de
família romano-germânica. Essa vinculação decorre da necessidade do
juiz inferior estar limitado pelo sistema de fontes de seu país, que inclui
o dever de observar as decisões das cortes superiores quando o siste-
ma jurídico lhes atribui efeito vinculante. Assim, negar aplicação do
precedente quando ocorrentes as hipóteses que legitimam sua aplica-
ção é, nas palavras de Miguel Beltrán de Felipe, praticar “terrorismo
judicial, pois que otra cosa puede pensar-se de juez que ignora aquel-
la jurisprudência que no comparte, siendo más fiel a su própria teo-
ria...que al sistema de fuentes?”.113 Está, portanto, a instância inferior
submetida, vinculada ao que ficou decidido no precedente judicial.
O modelo a ser seguido pelas instâncias inferiores do Poder
Judiciário e pelo Executivo é o modelo normativo estrito que torna ina-
fastável essa vinculação, de sorte que proferida decisão no controle de
constitucionalidade os demais órgãos do Poder Judiciário das instân-
cias inferiores e o Poder Executivo estão obrigados a seguir a interpre-
tação adotada, devendo guardar-lhe plena obediência. Assim é, pois
implica retirar de todos os demais órgãos do Poder Judiciário a aptidão
para formar um convencimento diverso daquele contido na decisão de
mérito proferida na ação, ou seja, nenhum juiz ou Tribunal poderá deci-
dir contrariamente ao que decorrer do processo concentrado de inter-
pretação e declaração de constitucionalidade.114 O mesmo dever é
imposto à Administração Pública direta e indireta nas esferas federal,
estadual e municipal, a teor dos artigos 102, parágrafo 2o, e 103-A da
Constituição Federal na redação da emenda constitucional no 45/2004.
O modelo normativo estrito de vinculação limita os juízos de valor
e a discricionariedade dos juízes inferiores e da Administração Pública
nos seus diversos níveis, ao reconhecer que o efeito vinculante impõe
limites substantivos ao conteúdo decisório desses tribunais em causas
posteriores. Como esse modelo assume que a regra estabelecida no

243
Celso de Albuquerque Silva

precedente é, a exemplo de uma regra legislada, dotada de generalida-


de e abstração, então o juiz posterior a ela vinculado não pode dotar de
relevância jurídica qualquer das diferenças fáticas que existem entre o
caso atual e o precedente vinculante. O princípio da igualdade que jus-
tifica a adoção do efeito vinculante fica resguardado e protegido pela
generalidade e abstração do holding. É o suposto de fato abstrato da
regra que determina a categoria de pessoas e situações que são por ela
regulados, razão pela qual devem aplicar a regra em todos os fatos que
se encartam dentro de sua categoria geral. Os órgãos vinculados não
podem limitar, restringir ou revogar o princípio formulado no caso pre-
cedente, salvo nas raras hipóteses admitidas pelo modelo como fator
de distinção.115

6.1.1. Legitimidade ativa para propor reclamação visando garantir


a autoridade da decisão da corte superior dotada de efeito
vinculante

Em sede de limites subjetivos da decisão vinculante, é importan-


te ressaltar a existência de dois pólos. O pólo passivo, representado
pelos órgãos constitucionais e administrativos que estão submetidos à
orientação firmada pela corte superior em seu precedente vinculativo e
o pólo ativo, representado por todos aqueles que demonstrem interes-
se em ver respeitada a autoridade daquilo que foi decidido de forma
vinculante.
Quando analisamos os limites objetivos do precedente vinculante,
firmamos a orientação de que, para a fecunda operacionalização do ins-
tituto, se mostrava fundamental a vinculação não apenas ao dispositi-
vo da sentença, mas principalmente aos fundamentos justificantes da
decisão, pois são deles que se extrai o princípio geral que congrega
toda uma classe de condutas consideradas proibidas, permitidas ou
exigidas, dentro da qual se encarta a conduta objeto da específica deci-
são judicial vinculante.
Essa visão ampliada dos limites objetivos da decisão guarda ínti-
ma relação e tem profunda repercussão nos limites subjetivos do julga-
do, vez que como visto no item 5.2, todos os órgãos submetidos ao
poder vinculante do tribunal devem observar e executar o julgado,
mesmo que dele não tenham participado. Essa ampliação subjetiva

244
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

passiva também se aplica quando se tem em conta o pólo ativo da rela-


ção processual, ou seja, quando se busca identificar quem pode reque-
rer a observância, por parte dos órgãos vinculados passivamente, a
obediência e o respeito à decisão vinculante.
Nesse sentido considerando que a ampliação dos limites objetivos
tem por finalidade garantir que o efeito vinculante assegure a defesa
imediata da segurança jurídica, o respeito à ordem constitucional e ao
princípio da isonomia, parece ser consectário lógico, reconhecer legiti-
midade para propor a reclamação a todos aqueles que comprovem pre-
juízo em razão de um provimento judicial, ou de um ato da Admi-
nistração que seja contrário ao que foi decidido de modo vinculativo,
pois somente ampliando o acesso à reclamação será possível assegu-
rar de forma plena os valores protegidos pelo efeito vinculante.116

6.2. Vinculação da própria corte prolatora da sentença

O instituto do efeito vinculante implica a idéia de que um tribunal


deve seguir o precedente em um caso análogo que se insere dentro do
âmbito normativo do princípio firmado no caso vinculante. Dito princí-
pio estabelece tanto a vinculação de cortes inferiores (vinculação ver-
tical) quanto a autovinculação de cada tribunal a suas próprias regras
de decisão (vinculação horizontal).
A adoção do instituto do efeito vinculante só se legitima quando
se reconhece às Cortes o papel de fonte de produção normativa, outor-
gando-se-lhes a função de estatuir regras jurídicas de aplicação geral.
Para que um tribunal seja capaz de firmar princípios jurídicos que vin-
culam os tribunais inferiores, é premissa inafastável que confira a esses
princípios força jurígena para obrigar suas próprias decisões. Entendi-
mento dissonante e seria impossível a formatação de uma doutrina vin-
culante que assegurasse imediatamente o princípio da segurança jurí-
dica e mediatamente o princípio da justiça, objetivos colimados por
qualquer ordenamento jurídico.
De fato, de pouco adiantaria determinar-se a obediência irrestrita
pelas cortes inferiores às decisões das cortes superiores, visando for-
necer pautas gerais e seguras de condutas para esses tribunais e a

245
Celso de Albuquerque Silva

coletividade como um todo, se as próprias decisões vinculantes esti-


vessem sujeitas a todo momento a modificações e alterações contí-
nuas. O exercício da função de prover normas por parte dos Tribunais
Superiores demanda que esses tribunais articulem uma linha coerente
de decisões judiciais, ou seja, que dessas decisões possa ser extraído
um corpo ordenado de regras gerais de conduta, sob pena de se gerar
incerteza e insegurança. Disso não se conclua, porém, que a vinculação
horizontal possua o mesmo grau da vinculação vertical.
Por serem os formadores da doutrina vinculante, os Tribunais
Superiores necessitam de certa margem de liberdade para modificá-la,
se razões suficientes demonstrarem necessidade de se adequar as
decisões judiciais à realidade social que subjaz ao direito e que, por
natureza e índole é mutável, sob pena de petrificação do direito, vez
que obrigaria o Tribunal a sustentar teses anteriores que julga errôneas
ou já superadas pela evolução social. É que os fatos mudam, as socie-
dades, notadamente na época atual, estão em contínua, inexorável e
vertiginosa evolução pelo que os valores por elas socialmente compar-
tilhados alteram-se com o decorrer do tempo.
O direito, até por ter a pretensão de regular a conduta humana em
determinada sociedade, deve acompanhar a evolução do homem.
Assim, o que ficou decidido hoje e vale para a situação atual, pode já
não mais ser válido amanhã. Por outro lado, embora se reconheça a
possibilidade de abandono do precedente, bem de ver-se que um
mesmo órgão jurisdicional não pode modificar arbitrariamente o senti-
do de suas decisões em casos substancialmente iguais. Quando isso
acontece, deve oferecer uma fundamentação suficiente e razoável.
Desse mesmo sentir é Bryde para quem é importante “que o Tribunal
não se limite a mudar uma orientação eventualmente fixada, mas que
o faça com base em uma crítica fundada do entendimento anterior que
explicite e justifique a mudança.117
A necessidade de explicitação, por parte do Tribunal, das razões
que o levaram a mudar seu anterior entendimento do assunto é postu-
lado e exigência fundamental decorrente do Princípio da Igualdade. Por
isso que, tendo o Tribunal firmado sua primeira posição, urge conferir,
em casos idênticos, o mesmo tratamento sob pena de aplicação desi-
gual da lei, em flagrante violação ao princípio da igualdade, pois não
existem cidadãos iguais, sem iguais decisões judiciais, exceção feita

246
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

quando ficar comprovada a alteração da situação fática ou jurídica que


serviu de esteio para a primeira decisão.
Em resumo, pode-se afirmar que, enquanto a vinculação das cor-
tes inferiores ao que ficou decidido pelas cortes superiores opera sob o
modelo normativo forte/estrito que não permite as cortes vinculadas
modificar ou revogar a regra estabelecida pelas cortes vinculantes, a
vinculação das cortes superiores a suas próprias decisões opera sob o
modelo normativo fraco/minimalista, que estabelece uma obrigação
condicional de seguir seus precedentes, sempre que não existam
razões substantivas superiores aos valores da segurança jurídica e iso-
nomia perseguidos pelo efeito vinculante, que permitam ao Tribunal
afastar-se de suas prévias decisões e, adequando-as à nova realidade
fática ou jurídica, renovar a doutrina. Essas mudanças na doutrina vin-
culante serão analisadas no capítulo seguinte.

6.3. A distinção (distinguish)

Para o modelo normativo, a regra do precedente, como já averba-


mos anteriormente, deve ser inexoravelmente aplicada em todas as cir-
cunstâncias que se incluem em seu âmbito normativo. Assim, se o caso
traz uma circunstância nova que não se insere no âmbito normativo da
regra estabelecida no precedente não é o caso de se fazer distinção do
caso atual com o caso precedente na base dessa nova circunstância
fática. Aqui a regra simplesmente não se aplica e, portanto, a decisão
anterior não vincula. Nessa hipótese, uma decisão que não siga o prin-
cípio do caso precedente não perturba os defensores do modelo norma-
tivo de vinculação, pois estão fora de seu âmbito de aplicação.
A distinção, portanto, só ocorre quando a regra fixada no prece-
dente coloca sob seu âmbito normativo o caso atual e, ainda assim, o
juiz decide contrariamente àquela regra. O distinguish, portanto, signi-
fica criar uma exceção à regra geral na medida em que, como o caso
que atualmente se decide se encontra por ela abrangido, deveria ser,
mas de fato não é por ela alcançado.
Como regra geral, atuando sob o modelo normativo de vinculação
ao precedente é defeso à corte vinculada promover qualquer alteração
na regra fixada no precedente, pois este modelo parte do princípio de
que as cortes decidem com base em normas gerais e preexistentes e
que essas normas são obrigatórias e indisponíveis para o julgador. Se
a corte flexibiliza, por mínimo que seja a regra precedentemente fixa-
da, ela está abandonando o precedente e fixando uma nova regra para

247
Celso de Albuquerque Silva

governar o caso posto para adjudicação. Essa assertiva é peremptória


no modelo normativo absoluto, mas admite exceções no modelo mode-
rado, que aqui se propõe.
Na versão normativa moderada, a corte vinculada pode fazer
distinções, temperando e flexibilizando a aplicação da regra firmada
no caso vinculante nas seguintes hipóteses: a) quando houver con-
corrência com outras regras derivadas de outros precedentes vincu-
lantes que não tenham sido revogados; b) quando a regra se baseou
em um claro e inadvertido erro; c) quando a corte vinculada se
defrontar diante de situações que claramente a corte vinculante não
queria abranger quando fixou a regra; d) quando houver um desen-
volvimento posterior do direito. Essas exceções são compatíveis
com o modelo normativo porque são razões que permitem ao juiz se
afastar da literalidade de um texto legislativo sem incidir em viola-
ção de seu conteúdo. Como o modelo normativo, para fins de vincu-
lação, confere à regra legal de criação judicial o mesmo status que
confere aos textos legislativos, essas exceções estão dentro do âmbi-
to desse modelo.

6.3.1. Limitando a regra com base em inconsistência com outra


regra

A doutrina pátria e alienígena tem feito força para traçar os cri-


térios distintivos entre princípios e regras. Assim, aponta-se como
critérios distintivos: a) o grau de abstração da norma que seria maior
nos princípios do que nas regras e, b) a função de fundamento norma-
tivo que nos princípios seria o de permitir que determinada regra seja
encontrada, enquanto que na regra visariam fundamentar uma deci-
são. Em outra linha, a distinção seria baseada no conteúdo axiológi-
co que seria explícito nos princípios. Assim, eles seriam, ao contrário
das regras, fundamentos axiológicos para a decisão a ser tomada. Um
quarto critério seria o do modo de aplicação. As regras seriam aplica-
das ao modo “tudo ou nada”, ou seja, se preenchidas as condições de
sua incidência, ou a regra é válida e sua conseqüência normativa
deve ser aceita, ou ela não é válida. Como consectário desse quarto
critério, aponta-se um quinto: No caso de colisão entre regras, uma
deve necessariamente ser considerada inválida. Diferentemente, os
princípios possuem uma dimensão de peso. Assim, quando entram

248
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

em colisão, o princípio com peso maior se sobrepõe ao outro sem que


este perca sua validade.118
Essa plêiade de abordagens sobre a distinção entre princípios e
regras foi magistralmente esquematizada por Humberto Ávila que as
agrupou em quatro categorias de critérios: o critério hipotético condi-
cional, o critério do modo final de aplicação, o critério do relacionamen-
to normativo e o critério do fundamento axiológico.119
Para o presente tópico, interessa analisar a hipótese referenciada ao
critério do relacionamento normativo. O pensamento dominante tem
sido que, havendo conflito entre duas regras, uma necessariamente deve
perder sua validade. Dentro dessa visão, não seria possível admitir-se a
limitação da regra do caso vinculante se, porventura, entrasse em confli-
to com uma outra regra de um outro caso. Um dos casos precedentes
teria revogado o outro. A questão não seria de ponderar e otimizar a apli-
cação da regra do caso precedente que melhor se ajusta à situação com
que a corte vinculada se defronta (o que só se poderia fazer na hipótese
de princípio), mas sim, verificar qual das regras precedentes está valen-
do e governa o caso vinculado. Esse entendimento, como bem demons-
tra Ávila, embora tentador merece ser repensado, pois é possível ao que
acrescentamos e mesmo é comum que duas regras possam entrar em
conflito sem que percam a sua validade e a solução do conflito depende
de uma ponderação e, conseqüentemente, flexibilização das regras. O
exemplo do autor bem explicita a situação.120

“(...) uma regra do Código de Ética Médica determina que o


médico deve dizer para seu paciente toda a verdade sobre sua
doença, e outra estabelece que o médico deve utilizar todos os
meios disponíveis para curar o paciente. Mas como deliberar o que
fazer no caso em que dizer a verdade ao paciente sobre sua doen-
ça irá diminuir as chances de cura em razão do abalo emocional
daí decorrente? O médico deve dizer ou omitir a verdade? Casos
como esse não só demonstram que o conflito entre regras não é
necessariamente estabelecido em nível abstrato, mas pode surgir
no plano concreto, como ocorre normalmente com os princípios.”

249
Celso de Albuquerque Silva

Em uma situação como a descrita, supondo-se que as regras


decorressem de criação judicial, é plenamente possível, em existindo
no caso concreto o conflito, limitar a regra mais ampla que impõe o
dever de “dizer toda a verdade ao paciente sobre sua doença”, para,
por exemplo, se chegar a uma outra nesses termos “dizer a verdade ao
paciente sobre sua doença até o nível em que não ponha em risco ou
reduza suas chances de cura”. Nessa hipótese, nenhuma das prévias
regras foi invalidada e, também, não se pode falar que a corte vincula-
da abandonou o precedente.

6.3.2. Limitando a regra com base em claro e inadvertido erro

A adoção do efeito vinculante tem por substrato axiológico a pro-


moção de valores essenciais de qualquer coletividade juridicamente
organizada, dentre os quais avultam o da igualdade e da legalidade (se-
gurança jurídica). A defesa desses valores postula a presença de coe-
rência e consistência nas decisões judiciais. Ocorre que essa coerência
exigida pelos princípios não é uma coerência cega, abstrata, absoluta e
incondicional. O respeito a esses dois valores não demanda – e em ver-
dade até mesmo repele – uma coerência com o desatino ou a inadver-
tência. O mundo normativo, apesar de regido por uma relação que lhe
é peculiar – relação de imputação – a possibilitar que a um determina-
do antecedente se impute o conseqüente desejado, não pode ser inter-
pretado como totalmente despregado do mundo fenomênico regido por
uma relação de causa e efeito. A racionalidade do mundo normativo é,
ou deve ser moderada, para permitir uma contínua adequação da razão
humana ao desenvolvimento histórico da humanidade. Por isso, a coe-
rência exigida pelos princípios da igualdade e da legalidade é uma coe-
rência com princípios de justiça públicos mais abrangentes daquela
coletividade.121
Nesse sentido, se a corte vinculada de forma objetiva (e não sub-
jetiva) verifica que a regra vinculante é excessivamente abrangente e
esse excesso decorreu de um claro e inadvertido erro da corte vinculan-
te quanto a um aspecto de fato ou de direito relevante para a justifica-
ção da regra, pode reduzir seu âmbito de aplicação. Quando se diz que
essa verificação deve ser feita objetivamente, quer se fazer referência

250
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

às características do erro que justifica a limitação da regra que são: cla-


reza e inadvertência.
Erro claro significa aquele erro que pode ser detectado imediata-
mente, de forma auto-evidente, das próprias circunstâncias objetivas
que circundam o litígio sem qualquer margem para apreciação subjeti-
va. Por exemplo, a corte vinculada, estando de posse dos dados pes-
soais das partes, afirma que o autor não possui a idade X que legitima
sua pretensão, quando a certidão de nascimento comprova que ele
possui. O erro é claro e pode ser aferido objetivamente.
O erro é inadvertido quando a corte vinculante não ponderou
razões contra ou favor sobre um determinado aspecto de fato ou de
direito que ela mesma considerou relevante para a elaboração da regra
que governa o resultado do caso. Por exemplo, a corte firmou a regra
baseada em uma lei que teria sido parcialmente revogada por outra
posterior. A corte inadvertidamente não atentou para a existência da
lei revogadora e sobre ela não se pronunciou. Presente a hipótese, é
lícito à corte vinculada reduzir o âmbito normativo da regra vinculante.
Diferentemente é a hipótese da corte vinculante ter se manifestado
sobre a lei posterior, mas “equivocadamente” entendido que ela não
revogou a lei anterior. Nessa hipótese, o “erro” (se é que se pode cha-
mar de erro) foi advertido e, portanto, a corte vinculada não pode limi-
tar a regra vinculante, porque em tal hipótese a análise sobre a existên-
cia ou não do erro passa por um componente subjetivo.
Nessas hipóteses, é fácil verificar que a decisão da corte vincula-
da que restringe ou limita regra anteriormente fixada é compatível com
a exigência de vinculação com o decidido pelas cortes superiores.
Basta relembrar a prática dos nossos tribunais de conceder efeitos
modificativos aos embargos de declaração, que normalmente não os
tem, quando em decorrência desses erros claros (erros materiais) e
inadvertidos (omissão no julgado) decorrer a modificação do resultado
e da regra que o governa. Nenhum operador do direito dirá – e que se
saiba nenhum até hoje o fez – que a corte ao modificar o julgado agiu
de forma incoerente e inconsistente.

6.3.3. Limitando a regra em situações que a corte vinculante clara-


mente não queria que fossem abrangidas pela regra fixada

Semelhantemente à primeira hipótese analisada – subitem 6.3.1. –


esta situação também pode ser referenciada à apontada distinção
entre regras e princípios, agora apreciada sob o critério do modo final

251
Celso de Albuquerque Silva

de aplicação. Sob esse ângulo, as regras se distinguiriam dos princí-


pios porque, enquanto estes na sua aplicação permitiriam a flexibili-
zação de seus comandos permitindo uma aplicação gradual mais ou
menos, aquelas seguiriam um modo de aplicação absoluto tudo ou
nada.122 Uma outra forma de transmitir a mesma mensagem é que a
aplicação dos princípios segue a lógica do razoável, enquanto que a
aplicação das regras segue a lógica do racional, característico da lógi-
ca formal abstrata do positivismo jurídico.
Esse pensamento que permeia o inconsciente coletivo dos opera-
dores do direito merece ser reformulado. Já afirmamos alhures que toda
atividade estatal para ser constitucional deve ser razoável.123 Assim, a
adjudicação judicial no que se refere à aplicação de regras deve seguir
a lógica do razoável. Um exemplo124 pode aclarar melhor a hipótese:
Lei federal instituiu um programa de pagamento simplificado de
tributos – o SIMPLES – para beneficiar e possibilitar o desenvolvimen-
to das micro e pequenas empresas nacionais, definidas com base em
seu faturamento anual. A mesma lei vedou o ingresso no programa de
empresas que importassem produtos estrangeiros e determinou a
exclusão do programa se essa circunstância fosse constatada.
Proposta ADI, por exemplo, ao fundamento de violação à isonomia por
vedar o acesso ao programa as micro e pequenas empresas importado-
ras, o Supremo Tribunal Federal declara, com efeito vinculante, a cons-
titucionalidade da lei ao fundamento de que o fim da norma é estimu-
lar a produção nacional das pequenas empresas, o que justifica o trata-
mento diferenciado. A regra específica que governa o caso é “empresa
que importar mercadorias não pode ingressar no SIMPLES e se já par-
ticipar do programa dele será excluída”. A seu turno, a rationale é “o
programa SIMPLES é um programa de estímulo à produção nacional
das micro e pequenas empresas”.
O caso atual que se apresenta para a corte se refere a uma pequena
fábrica de sofás que importou uma única vez quatro pares de pés de sofás
e, portanto, foi excluída do SIMPLES. Dentro de uma interpretação razoá-
vel e não meramente racional e mecânica, a corte vinculada pode limitar
o âmbito de incidência da regra fixada na ADI vinculante, pois a rationa-

252
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

le que fundamenta a regra vinculante e a ela adere, não exige a aplicação


de seu comando nessa hipótese extraordinária e anormal.
Essa é uma forma de limitação da regra quando ponderada com as
próprias razões que a originaram, o que levanta sérios questionamen-
tos. Se no modelo normativo as razões da regra podem limitar seu
âmbito de aplicação, qual a diferença entre esse modelo e o modelo
centrado no resultado ou mesmo o modelo minimalista que claramente
aceitam esse tipo de limitação? Nesse passo é necessário se esclarecer
o que se entende por “razões”.
Para o modelo centrado no resultado, os fatos da lide sozinhos
nada representam. A relevância dos fatos só é reconhecida pela parti-
cipação deles nas razões que a corte aderiu para adotar a regra que irá
governar a decisão do caso. Assim, para encontrar os fatos materiais
da decisão que irão determinar quais são os fatos relevantes do caso
subseqüente e se eles apontam com maior ou menor intensidade para
o resultado incorreto do caso precedente, é necessário responder as
seguintes perguntas: Por que esses fatos são importantes? O que em
termos de política, moralidade, decisões passadas, necessidades so-
ciais, utilidade, história etc... leva a corte a decidir com base nesses fa-
tos dessa maneira?125 Respondidas essas questões, encontra-se então
aquele conjunto de princípios com seus respectivos pesos conferidos
quando da ponderação dos diversos fatores na tomada de decisão e for-
mulação da regra legal do caso.
Encontradas as razões que justificam a decisão (e a regra do caso),
na hipótese de existir conflito entre esta e aquelas, o modelo centrado
no resultado permite que se reduza o âmbito de incidência da norma,
sem que se fale em desrespeito à decisão precedente. Os casos relati-
vos a estrangeiros poderiam dar um bom exemplo dessa possibilidade.
Em várias decisões a suprema corte americana afirmou expressamen-
te que discriminações contra estrangeiros estariam submetidas a um
controle judicial mais rigoroso, pelas razões também expressas de que
os estrangeiros são uma categoria insular e reduzida.126 Nada obstan-
te, embora não expressa na decisão vinculante, poderia uma corte sub-
seqüente pesquisar e encontrar uma razão ou princípio moral mais
abrangente que aquele expresso nas prévias decisões, por exemplo, o

253
Celso de Albuquerque Silva

de que “é fundamentalmente injusto punir indivíduos na base de


características sobre as quais eles não têm controle”. A característica
de ser estrangeiro claramente se enquadra nessa categoria. Assim,
essa razão moral mais abrangente justifica a razão moral expressa na
decisão precedente.
Adote-se, agora, o seguinte exemplo. Uma lei limita o acesso a bol-
sas de estudo fornecidas pelo Estado apenas aos nacionais e aos
estrangeiros que tivessem requerido sua nacionalização ou, se no
momento da concessão da bolsa não tivessem preenchido os requisitos
para requerer a nacionalização, assinassem uma declaração se compro-
metendo sob quaisquer que fossem as sanções, a requerer a nacionali-
dade quando preenchesse os requisitos exigidos. Um estrangeiro pos-
suidor dos requisitos para requerer a nacionalização, mas sem querer
fazê-lo, propõe uma ação alegando que, na esteira de casos preceden-
tes, essa lei, por discriminar estrangeiros, está submetida ao controle
judicial mais rigoroso em cujo nível é manifestamente inconstitucional.
A regra firmada nos precedentes judiciais foi: “leis que discriminam
estrangeiros estão submetidas a um controle judicial mais rigoroso”. A
corte vinculada concorda com o resultado dos casos precedentes, mas
não com sua regra, que entende demasiadamente abrangente. Com
base nas razões mais amplas já mencionadas, entende que os fatos
relevantes apontam com menor intensidade para o mesmo resultado
dos precedentes e restringe a norma anteriormente firmada para, por
exemplo: “leis que discriminem estrangeiros com relação a caracterís-
ticas sobre as quais eles não possuam controle, estão sujeitas a contro-
le judicial mais rigoroso”. Feito isso, pode decidir contrariamente aos
precedentes citados sem que se possa falar de infringência à doutrina
vinculante e reforma dos precedentes mencionados. Esse recurso a
“razões mais amplas” que as expressamente acolhidas pela corte vin-
culante não é possível de ser feito no modelo normativo. Se as razões
da regra podem, excepcionalmente, limitar a própria regra, essa limita-
ção precisa se referir a situações que a corte expressamente não que-
ria fossem abrangidas por sua regra e não a situações encontradas
através de recursos a razões morais mais amplas não reconhecidas na
decisão vinculante. Mas como reconhecer essas situações? Uma res-
posta, acredito, pode ser encontrada no critério de distinção entre
regras e princípios quanto ao modo de aplicação (tudo ou nada e mais
ou menos) após a sua reformulação ou talvez refinamento levado a efei-
to por Ávila. Para o autor, tanto a aplicação dos princípios quanto das
regras, apesar de seus comandos gerais e abstratos, permitem a consi-

254
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

deração de aspectos concretos e individuais quando de sua aplicação,


embora com importantes diferenças:

“No caso dos princípios, essa consideração de aspectos con-


cretos e individuais é feita sem obstáculos institucionais, na medi-
da em que os princípios estabelecem um estado de coisas que
deve se promovido sem descrever, diretamente, qual o comporta-
mento devido. O interessante é que o fim independe da autoridade,
funciona com razão substancial para adotar os comportamentos
necessários a sua promoção...Já no caso das regras, a considera-
ção a aspectos concretos e individuais só pode ser feita com fun-
damentação capaz de ultrapassar a trincheira decorrente de que
as regras devem ser obedecidas. É a própria regra que funciona
como razão para adoção do comportamento...a autoridade prove-
niente da instituição e da vigência da regra funciona como razão
de agir.”127

Nesse sentido, a regra estabelecida no precedente funciona de per


si como razão de agir, como razão substancial para adotar os compor-
tamentos que determina, de modo que não pode ser limitada por
razões a ela externas. Em conclusão, modelo normativo só admite que
a regra seja limitada por suas próprias razões e não por outras razões
mais abstratas ou amplas, de sorte que essas razões precisam vir,
como no exemplo supracitado relativo ao SIMPLES, expressas na pró-
pria decisão vinculante. Se a corte vinculada abandona as razões
expressamente estatuídas na decisão vinculante integrantes da regra
legal que governou a decisão precedente e adota outras razões mais
amplas, ainda que possam ser vistas como razões maiores das quais se
originam as razões expressas, a corte vinculada cai ou no modelo cen-
trado no resultado ou no modelo minimalista dependendo do grau de
abstração das razões adotadas para limitar a regra. O modelo normati-
vo moderado (o absoluto não permite qualquer limitação) é compatível
com a limitação da regra quando, no caso concreto ela se mostre con-
flitante com suas próprias razões, dado que a corte vinculante admite
a limitação da norma por ela fixada quando diante de tais situações
que refogem do âmbito normal de sua aplicação. Isso se explica porque
a regra de criação judicial tal qual a regra legislativa é feita por home-

255
Celso de Albuquerque Silva

ns e, portanto, se destina a regular condutas em situações normais e


paradigmáticas. Diante de situações anormais que ela, pela sua gene-
ralidade, não poderia prever, deve ser flexibilizada pelo juiz para adap-
tar-se àquela específica situação que foge dos padrões de normalida-
de, afastando-se o menos possível das prescrições legais.

6.3.4. Ampliando a regra fixada no precedente em razão de um


desenvolvimento posterior do direito

Diferentemente das hipóteses anteriormente analisadas, o mode-


lo normativo aceita sem maiores dificuldades uma decisão da corte vin-
culada que modifique a regra fixada no precedente, ampliando seu
alcance.128 Com efeito, se a regra fixada no precedente afirmar, presen-
tes os fatos F1, F2, F3, então decida por R, a corte vinculada diante de
um caso subseqüente em que estão presentes os fatos F1, F2, F3, e F4,
decidir estender a regra, que passará abranger também a nova hipóte-
se que surge com o acréscimo do fato F4, não se pode falar que aban-
donou o precedente, na medida em que sua decisão e o princípio que a
suporta podem ser conciliados com a decisão precedente, pois ela se
insere no âmbito da nova regra mais ampla.
É que, como visto, para o modelo normativo, a questão da vincula-
ção ou não das cortes inferiores só assume relevância quando o caso
posterior se insere no âmbito normativo do precedente. Essa não é, de

256
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

regra, a hipótese de ampliação da regra, via procedimento analógico,


para abranger uma outra situação que não se inseria no âmbito norma-
tivo da regra. Assim, não há que se falar em modificação da regra vin-
culante, mas sim, sua extensão analógica.
Nada obstante, em raras e específicas circunstâncias, a ampliação
da regra do precedente pode implicar em sua modificação. Se a regra
fixada no caso vinculante possuir a seguinte estrutura: se presentes
apenas os fatos F1, F2, F3, então se decida por Fd, a ampliação da
regra para abranger também o fato F4 é, em verdade, revogação do
caso precedente. Nessa hipótese, a ampliação da norma só será possí-
vel se houver algum desenvolvimento no direito que permita, em virtu-
de da mudança nos padrões jurídicos, incluir o fato novo que era
expressamente excluído pela regra anterior. Uma decisão do Supremo
Tribunal Federal quanto a sua competência para processar e julgar o
Advogado-Geral da União exemplifica essa hipótese.
Em 08 de agosto de 2000, o Supremo Tribunal Federal, na petição
n 2.084, declinou de sua competência para processar interpelação
o

requerida em desfavor do Advogado-Geral da União. Ao embasar sua


decisão, o Ministro Sepúlveda Pertence, com base no precedente firma-
do no AgRPet 1199 (RTJ 169/885), argumentou que a aferição de quais
são os ministros de estado para efeitos constitucionais de reconheci-
mento de foro privilegiado, deveria ser feita à luz da lei ordinária que
venha a dispor sobre a criação, estruturação e atribuições dos
Ministérios e órgãos da administração pública. À época de decisão,
referido instrumento normativo não contemplava o Advogado-Geral da
União. Em conseqüência, o Supremo Tribunal Federal reconheceu sua
incompetência para processar a interpelação. Menos de um mês após,
em 06 de setembro de 2000, o Supremo Tribunal Federal foi confronta-
do com a mesma questão no julgamento do inquérito n o 1.660-8,129 que
tratava de uma queixa crime em desfavor do Advogado-Geral da
União. No julgamento do citado inquérito, o Ministro Sepúlveda
Pertence apontou alteração normativa superveniente, em virtude de
reedição da medida provisória no 2.049, que em 28 de agosto de 2000,
incluiu em seu parágrafo único o Advogado-Geral da União, conferin-
do-lhe o título de Ministro de Estado. Diante da legislação superve-
niente, a Corte, então, modificou sua decisão precedente e afirmou a
sua competência para processar a queixa crime. Assim, a regra ante-
rior que excluía o foro de prerrogativa de função perante o STF para o

257
Celso de Albuquerque Silva

Advogado-Geral da União, em virtude de desenvolvimento posterior do


direito vigente, foi modificada para, ampliando seu âmbito normativo,
incluir a referida autoridade.

258
Capítulo 6
A Mudança na Doutrina Vinculante

1. Introdução

O direito deve ser estável, porém, não pode ser estático. Por isso,
todo o pensamento sobre o direito tem lutado para reconciliar as ten-
sões decorrentes da necessidade de estabilidade e a necessidade de
mudança.1 Esse dilema sintetiza o problema básico de qualquer siste-
ma legal. Todas as leis oscilam entre as demandas da certeza jurídica,
que exigem firmes e confiáveis guias de conduta fornecidos pela auto-
ridade legal e as demandas de justiça, que exigem que a solução de um
caso individual seja eqüitativa e conforme aos ideais e concepções de
justiça que imperam em uma determinada coletividade. Todo sistema
jurídico que postule legitimidade deve buscar uma solução de compro-
misso entre esses dois fins do direito; deve, portanto, balancear rigidez
com flexibilidade.
Com relação ao instituto do efeito vinculante a situação não é
diversa. As pessoas confiam em decisões judiciais pretéritas no senti-
do de que elas tomam decisões e investem recursos baseados nelas. Os
membros de uma comunidade formalizam contratos com base na
expectativa de que regras legais certas e definidas serão aplicadas a
eles e regularão seus efeitos jurídicos. Se as pessoas são obrigadas a
cumprir as leis sob pena de sanções, inclusive de ordem física, e não
podem se escusar ao seu cumprimento sob alegação de desconheci-
mento da norma, o mínimo que o Estado está obrigado a fazer é torná-
las o mais transparente e cristalinas possíveis. É fácil imaginar o caos
social, como seria injusta uma sociedade e quão difícil nela seria a vida,
se não houvesse um certo nível de certeza e uniformidade relativamen-
te a assuntos da vida cotidiana como esses mencionados. Essa unifor-
midade, coerência e consistência do sistema jurídico se aplica com
igual intensidade nas decisões judiciais.

259
Celso de Albuquerque Silva

Por outro lado, a adoção do princípio de que as cortes judiciais,


inclusive a própria corte prolatora da decisão, devem necessariamente
seguir o que ficou decidido em casos anteriores não pode, a pretexto de
proteger o ideal da segurança jurídica, significar que a doutrina judicial
uma vez fixada não poderá mais ser alterada. O conservadorismo abso-
luto que faria o exemplo de hoje a inexorável regra de amanhã para evi-
tar o embaraçoso, mas desejável, confronto das diversidades de pensa-
mento e práticas que pertencem a seres livres, racionais e imperfeitos,
engessaria a sociedade em um rígido molde de um direito imutável e
implicaria na indesejada opção política de que as gerações futuras
seriam governadas pelos seus mortos, impedindo a necessária adapta-
ção das regras legais às dinâmicas exigências sociais de justiça. O
mundo social muda e as regras legais precisam se adaptar a essas
mudanças. O direito não pode ser absolutamente estático. Assim, em
algum momento, precedentes devem ser abandonados ou pelo menos
evitados. Isso não significa negar a necessidade de estabilidade nas
decisões judiciais, apenas demonstrar seus limites. Se se quer conferir
algum valor ao instituto do efeito vinculante e, conseqüentemente, ao
princípio da segurança jurídica, as demandas de justiça também não
podem significar que a doutrina vinculante pode ser alterada toda vez
que uma corte subseqüente entender que a decisão precedente não é
a mais adequada.
Com efeito, se as regras legais de criação judicial fixadas no caso
precedente puderem ser modificadas quando suas conseqüências
forem vistas como inconsistentes com valores morais e políticos consi-
derados melhores ou mais corretos, então essas regras não contêm
nenhum dever autoritativo de obediência. Se essas regras fixadas nas
decisões vinculantes estiverem sempre sujeitas a modificações toda
vez que o caso subseqüente aparenta indicar um desejo de modifica-
ção da regra precedente, então o efeito vinculante não possui qualquer
força normativa. Em outras palavras: as regras de criação judicial não
podem, em última instância, serem consideradas como verdadeiras
regras. Acolhida esta outra tese extrema, as regras fixadas nos casos
precedentes não poderiam ser consideradas regras normativas senão
que meras regras de experiência. A solução há de ser encontrada em
seu termo médio.
Regras legais e regras de experiência não se confundem e não se
equiparam. Semelhantemente, a decisão baseada em precedente não
se confunde nem se equipara a decisão fundada em experiências pre-
téritas, embora comunguem da mesma característica de utilização de

260
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

um fato passado na estruturação da decisão. Nessa singular caracterís-


tica – utilização do passado – se exaure a similitude entre a argumenta-
ção baseada em precedentes e a argumentação fundada em regras de
experiência. Esta última é mais ampla que aquela, na medida em que o
passado pode ser utilizado para vários propósitos e apenas alguns deles
se utilizam de decisões precedentes como apoio e justificação para
obtenção no presente do mesmo resultado alcançado no passado.
Dois exemplos podem ajudar a demonstrar essa variância no uso
do passado quando se trata de argumentar e decidir com base na expe-
riência: a) quando um bebê começa a engatinhar e pela primeira vez vê
uma tomada elétrica pode, em virtude de sua natural curiosidade, colo-
car o dedo nela e sofrer um choque elétrico. Entretanto, ao identificar
no presente outra tomada elétrica, ele provavelmente evitará colocar
seu dedo novamente nela, pois já descobriu no passado, o perigo dessa
ação; b) quando um médico verifica novamente no presente os mesmos
sintomas que no passado ele identificou como indicativos de uma certa
doença ele, confiando na sua experiência pretérita, provavelmente
diagnosticará o atual paciente como portador daquela mesma doença
e lhe prescreverá o mesmo tratamento médico. Agora, se entendemos
por efeito vinculante a obrigatoriedade das cortes vinculadas tratar da
mesma maneira o caso atual e o caso precedente, vemos a nítida dis-
tinção entre argumentar com base em precedentes e argumentar com
base em experiência. Ambos os exemplos acima argumentaram com
base em fatos passados, mas apenas o exemplo “b” seguiu a lógica da
argumentação baseada em precedentes.
Essa constatação bem demonstra que quando se decide com base
na experiência passada, “os fatos e conclusões do passado só têm rele-
vância no que eles nos ensinam sobre o presente. A probabilidade de
que o presente será como o passado determina e exaure o valor da
experiência prévia”.2 Assim, tal como ocorre com a criança que tomou
o choque ao inserir o dedo na tomada, ao raciocinarmos com base na
experiência, se consideramos que a prévia decisão foi incorreta, nós
simplesmente a rejeitamos e decidimos contrariamente. Diversamente
ocorre se argumentarmos com base em precedentes. Em tal hipótese,
a decisão passada traz embutida uma presunção de correção, de sorte
que, só o fato daquela decisão anterior existir, exerce influência na
atual decisão a despeito de nossa crença que a decisão precedente foi
errada. Como explicitou Schauer:

261
Celso de Albuquerque Silva

“Se precedente possui algum significado, uma decisão


anterior agora considerada errônea ainda afeta a atual decisão
simplesmente porque é anterior, e assim, um argumento extraí-
do de um precedente funciona substancialmente como um
argumento extraído de uma regra. Como um argumento deriva-
do de uma regra fornece uma razão independente para o fato de
que um resultado é indicado por aquela regra, assim também
um argumento derivado de um precedente fornece uma razão
independente para um resultado semelhante ao alcançado no
passado.”

Nesse sentido, a mudança na doutrina vinculante demanda, para


além da crença da corte subseqüente de que a decisão anterior foi erra-
da, a presença de outros valores sociais que justifiquem seu abandono.
Em virtude da doutrina vinculante um precedente judicial deve ser
seguido, a menos que existam razões suficientemente fortes para
assim não proceder. Mas, quais razões ou princípios são esses? É o que
se passa a analisar.

2. Razões que legitimam a mudança na doutrina


vinculante

A afirmação de que o efeito vinculante importa na assunção da


regra de que os precedentes devam ser seguidos a menos que existam
razões suficientemente fortes para não fazê-lo, abre uma margem
muito ampla de discricionariedade judicial. O que se pode entender por
razões suficientemente fortes? Essa expressão pode possuir significa-
dos quase que ilimitados. Pode-se, por exemplo, considerar que tais
razões estão presentes quando existem poucos casos anteriores que
contam como precedente, ou quando as razões justificadoras do pre-
cedente são cristalinamente injustas ou más; ou quando o precedente
foi apenas raramente seguido pelo juízes que, em virtude da técnica de
distinção, afastaram reiteradamente sua aplicação, ou ainda quando a
inteira situação social e econômica que lastreava a decisão anterior
tenha sido radicalmente alterada etc.
Um grande número de autores tem procurado, através da análise
descritiva da atuação das cortes superiores, elaborar e classificar cer-
tas técnicas, cujo objetivo seria o de possibilitar a previsão e sistema-
tizar as hipóteses nas quais uma corte superior poderia alterar sua

262
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

doutrina vinculante. Nesse desiderato, Lindel Prott3 formulou, embora


não exaustivamente, cerca de 15 tipos de argumentos utilizados pelas
cortes superiores australianas, tanto a favor, como contra a mudança
da doutrina vinculante.
Eis a síntese do autor. Argumentos para abandono da doutrina: 1)
em regra, o precedente deve ser reputado errado; 2) o precedente
causa uma óbvia injustiça; 3) o precedente não representa mais uma
boa política pública; 4) circunstâncias se alteraram desde que o caso
precedente foi decidido; 5) o parlamento legislou sobre o assunto e
modificou o entendimento do tribunal sobre o tema; 6) o precedente se
refere a uma questão mais abrangente; 7) é uma decisão recente; 8) é
uma decisão antiga; 9) o precedente está impedindo o desenvolvimen-
to do direito; 10) a regra fixada no precedente é mais processual do que
substancial; 11) o precedente tem conduzido a uma série de distinções
muito detalhistas com o que aumentou a incerteza do direito; 12) o pre-
cedente é constitucional e a decisão não decorre de manifestação da
corte superior; 13) a decisão decorreu de um claro erro ou está em con-
flito com outras decisões ou princípios já pacificados; 14) a composição
da corte mudou; 15) a decisão foi posteriormente utilizada pelo Poder
Legislativo para ameaçar o equilíbrio da Constituição.
Argumentos a favor da doutrina vinculante: 1) O precedente não é
errado; 2) revogar o precedente ameaçaria a certeza nessa área do direi-
to; 3) acordos comerciais, financeiros e fiscais foram feitos com base no
precedente; 4) revogar o precedente estimularia litigantes freqüentes4 a
rediscutir teses já julgadas em seu desfavor; 5) o parlamento legislou
sobre o assunto e não mudou a orientação do tribunal; 6) revogar o pre-
cedente reabriria muitas questões já pacificadas com base no preceden-
te; 7) é uma decisão recente; 8) é uma decisão antiga; 9) o precedente
se refere a uma questão que é de iniciativa exclusiva do parlamento;
10) existe uma forte divergência na opinião judicial e ambos pontos de
vista são defensáveis; 11) o precedente se refere a uma interpretação de
um texto legislativo; 12) o precedente se refere a um caso criminal; 13) o

263
Celso de Albuquerque Silva

precedente é parte de uma série de decisões, mais de uma já reafirma-


das; 14) a decisão considerou uma legislação válida e aquela legislação
influenciou os atos de seus destinatários; 15) o caso foi inteiramente
argumentado do mesmo modo que na corte precedente.
A análise isolada desses argumentos, embora possua alguma uti-
lidade, não fornece guias seguros para a superação do impasse que
surge da tensão entre estabilidade e flexibilidade, mesmo porque mui-
tos deles se anulam mutuamente ou são utilizados com igual força a
favor ou contra o abandono do precedente v.g., os de números 7 e 8.
Essa circunstância permitiria inferir-se que o abandono da doutrina
vinculante é uma arbitrária opção das cortes que podem se valer dos
mesmos argumentos, tanto para seguir, quanto para abandonar os pre-
cedentes. Essa conclusão, porém, levaria ao caos e desarmonia e não
à uniformidade e previsibilidade; logo, não pode ser admitida. Ade-
mais, a despeito da grande margem de liberdade que o termo “razões
suficientemente fortes” pode conferir, as cortes ordinariamente funda-
mentam suas decisões em regras e princípios jurídicos, argumentos
esses considerados racionais e razoáveis. Assim, uma decisão que
abandona ou parcialmente se afasta de um caso vinculante, como qual-
quer outra decisão judicial, deve ser justificada em bases principiológi-
cas razoáveis e não com base em manifestações de vontade subjetivas
e individuais o que poderia, a longo termo, produzir situações não con-
troláveis racionalmente, com o conseqüente enfraquecimento da legiti-
midade das decisões judiciais.
O expurgo de componentes exclusivamente subjetivos na aprecia-
ção da cláusula aberta “razões suficientemente fortes”, já representa
um grande limite à possibilidade das cortes superiores abandonarem
seus próprios precedentes. Daí porque é de ser deplorada a possibili-
dade de mudança de doutrina vinculante pela simples e única razão de
alteração da composição da corte. A situação seria “intolerável se
mudanças na composição das cortes fossem acompanhadas de mudan-
ças em suas decisões”.5 Uma corte que arbitrariamente desconsidera
um precedente enfraquece sobremaneira o simbolismo encarnado no
ideal da certeza do direito. “Essa seria uma corte que muda o direito à
medida que seus membros mudam, que não sente qualquer lealdade
institucional, que não respeita minimamente seus predecessores, e que

264
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

exerce seu poder sem considerar as necessidades mais gerais do siste-


ma legal relativas à estabilidade, consistência e imparcialidade. A
deferência a esses objetivos mais amplos significa que alguns ‘insen-
satos’ precedentes devem ser seguidos e que não é qualquer ‘diferen-
ça de opinião’ que deve conduzir a uma mudança no direito”.6 Essa ati-
tude está refletida na opinião afirmada em Fitzleet Estates Ltd v.
Cherry, onde se requeria o abandono de precedentes vinculantes ao
simplório argumento de terem sido decididos erradamente. Em seu
voto, assim se pronunciou Lord Wilberford:

“Nada poderia ser mais indesejável, de fato, do que permitir


aos litigantes, após uma decisão ter sido dada por esta Casa de
modo definitivo, retornar a esta Casa na esperança de que um di-
ferente conjunto de membros possa ser persuadido a aceitar uma
solução que seus predecessores rejeitaram. É verdade que a deci-
são anterior foi dada por maioria de votos: Eu não discuto sobre
sua correção ou sobre a validade de sua justificação. Que havia
duas soluções razoavelmente possíveis é demonstrado pelo dis-
senso dos membros da Casa. Porém, sem sombra de dúvida, ques-
tões têm que ser resolvidas e o direito não conhece melhor manei-
ra de resolvê-las do que através de uma opinião majoritária de um
tribunal superior. Exige-se muito mais do que dúvidas quanto à
correção de tais opiniões para justificar-se seu abandono.”7

Como uma simples diferença de opinião quanto à justiça ou injus-


tiça, correção ou incorreção da decisão precedente, em virtude do
dever de deferência aos valores decorrentes do princípio da certeza
jurídica, não pode ser razão suficientemente forte para que se ignore o
progresso humano derivado da adoção de regras e se desconsidere o
direito dos outros que derivam da observância uniforme dessas mes-
mas regras, o sentido da locução “razões suficientemente fortes”, só
pode haurido através de uma casuística e cuidadosa ponderação entre
as exigências derivadas da necessidade de adoção de boas políticas
sociais e as demandas da segurança jurídica. O resultado dessa ponde-
ração pode conduzir a uma total (overruling) ou parcial (overriding)

265
Celso de Albuquerque Silva

invalidação do precedente. A seguir, serão analisadas essas possibili-


dades e os princípios legitimadores sobre as quais elas se estruturam.

2.1. A completa invalidação da doutrina vinculante


(overruling)

Classicamente o overruling tem sido entendido não como uma


mudança no direito estabelecido, mas como a correção de um erro.
Essa visão está ligada à superada idéia de que as cortes apenas inter-
pretam, reconhecem e declaram um direito preexistente. Essa visão é
muito restritiva e não corresponde ao real espectro de atuação das cor-
tes judiciais, por isso mesmo já se encontra há muito abandonada
embora, como resquício, permaneça como um fantasma a idéia de que
o princípio invalidado nunca foi o direito.
Como visto linha atrás, a mera alegação de um erro não é suficien-
te para o abandono do precedente. Isso não significa dizer que as cor-
tes judiciais não erram. É claro que cometem erros, afinal são compos-
tas por seres humanos falíveis por natureza. O que se quer dizer é que
decisões erradas têm um papel menor nas mudanças no direito de cria-
ção judicial. Se a demonstração de um “erro” não justifica a modifica-
ção na orientação firmada pelo tribunal, o que justifica a alteração do
significado do “efeito vinculante” que, em uma primeira leitura, sim-
plesmente obriga as cortes seguirem decisões passadas que são simi-
lares, para aqueloutro que afirma que isso deve ser feito a menos que
existam boas razões para não fazê-lo? A resposta só pode ser correta-
mente apreendida quando se abandona a teoria declaratória do direito
e se reconhece às corte judiciais o poder de criar o direito. Se os tribu-
nais podem criar direito ou, o que é uma tese mais débil, prolatam deci-
sões das quais o direito emerge, então não há nenhuma dificuldade em
reconhecer o seu poder de mudar as regras que por eles foram estabe-
lecidas anteriormente.
Nesse sentido, se o overruling nada mais é do que uma decisão
que cria (ou da qual emerge) uma regra que invalida outra regra ante-
riormente firmada, embora aparentemente pareça ser uma decisão
radicalmente revolucionária, a mudança não é, no final das contas,
“totalmente revolucionária, pois é feita por oficiais dentro do sistema
que têm autoridade para decidir casos de acordo com a razão”.8 Assim,

266
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

como processo decisório, a decisão que invalida um princípio anterior-


mente firmado é comparável à decisão que firmou o referido princípio
e, portanto, como outras formas de decisão, é governada por princípios
institucionais.
O princípio básico de overruling, como definiu Eisemberg,9 pode
ser formulado da seguinte maneira: A doutrina vinculante deve ser
invalidada se, concomitantemente a) não satisfaz mais as exigências
de congruência social e consistência sistêmica e b) os valores que legi-
timam o efeito vinculante, tais como proteção de justificável confiança,
defesa contra injusta surpresa, previsibilidade, isonomia etc. ..., não
são melhor servidos pela preservação do que pela sua invalidação. De
regra, essas duas condições são encontradas nas seguintes hipóteses
a seguir analisadas: i) a doutrina está obsoleta e desfigurada, ii) a dou-
trina é absolutamente injusta e/ou incorreta e iii) a doutrina se revelou
inexeqüível na prática.

2.1.1. Doutrina obsoleta e desfigurada

O princípio institucional que guia a completa invalidação da dou-


trina vinculante tem integral aplicação naquelas hipóteses em que a
substituição de uma regra antiga anterior por uma nova tomou a forma
de uma lenta, mas persistente e reiterada, erosão daquela, a ponto de
torná-la essencialmente desfigurada. O direito se desenvolve pelo equi-
líbrio de uma dupla exigência, uma de ordem sistemática que demanda
a elaboração de uma ordem jurídica consistente e outra de ordem prag-
mática, que implica na busca de soluções aceitáveis pelo meio social em
que se inserem, porque conforme ao que lhe parece justo e razoável.
Ocorre que o desenvolvimento e aperfeiçoamento do direito não são
causados unicamente pela descoberta e exclusão de erros passados,
mas também e, acrescento ainda, principalmente pela adoção de novos
pontos de vistas. A necessidade de repensar, de reavaliar velhos valo-
res para ajustá-los a condições mutáveis – tão vital em todas as áreas
das atividades humanas – aplica-se igualmente ao direito. Uma das for-
mas de operacionalizar essa reavaliação é exatamente a invalidação de
valores ultrapassados (overruling). Uma excelente ilustração dessa
hipótese pode ser vista na evolução jurisprudencial sobre a responsabi-
lidade civil das instituições de caridade americanas.

267
Celso de Albuquerque Silva

No início do século passado vigorava nos Estados Unidos a regra


de que as instituições de caridade e seus representantes eram imunes
à responsabilidade civil por danos causados aos seus beneficiários
diretamente ou através de seus funcionários. As principais razões que
sustentavam essa regra podiam assim ser resumidas: a) a utilização
para pagamento de indenizações, de recursos dos fundos para carida-
de violaria os objetivos em razão dos quais eles foram obtidos; b) o
princípio da responsabilidade subsidiária dos dirigentes era aplicável
apenas às instituições lucrativas; c) os beneficiários de uma instituição
de caridade renunciavam a indenização ou assumiam os riscos de
sofrer danos; d) impor a responsabilidade civil por danos às institui-
ções de caridade dissiparia seus fundos financeiros, privando os
pobres e o público em geral dos benefícios assistenciais e ainda deses-
timularia contribuições para caridade.10
Essas razões expressamente firmadas nos casos precedentes, nada
mais eram do que um reflexo da situação social vigente à época em que
os casos foram decididos e a doutrina estabelecida. Em síntese, a realida-
de social da época convivia com benefícios assistenciais prestados por
instituições pequenas e fracamente organizadas que não seriam econo-
micamente viáveis se tivessem que absorver os custos de reparações por
danos causados na prestação de seus serviços. Ademais, em uma época
onde programas de bem estar social públicos eram raros e esparsos, a
manutenção dessas instituições era essencial para o bem estar da comu-
nidade. Por tais motivos, considerava-se justo e razoável que, excepcio-
nalmente, algumas pessoas sofressem danos sem reparação a fim de evi-
tar que uma comunidade inteira fosse privada desses serviços considera-
dos essenciais. Nesse ambiente socioeconômico-cultural, a propositura
de ações judiciais por parte de quem se beneficiou da caridade era, inclu-
sive, considerada uma grave forma de ingratidão.
Essa situação fático-social havia se alterado profundamente em
meados do século passado. As instituições de assistência social, em
sua maioria, tinham se transformado em grandes e bem organizadas
instituições burocráticas, freqüentemente administradas por executi-
vos profissionais bem remunerados, atuando da mesma forma que os
executivos de empresas lucrativas, com a única diferença de que não
responderiam pelos danos que causassem aos beneficiários de seus
serviços. Ao invés de pequenos hospitais em pequenas cidades, o
paradigma dessas instituições passou a ser grandes complexos médi-

268
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

cos urbanos com orçamentos de dezenas ou centenas de milhões de


dólares. Nessa realidade, a contratação de apólices de seguro de res-
ponsabilidade civil, agora amplamente disponível, passou a ser apenas
mais um custo ordinário da atividade assistencial. Ao mesmo tempo, o
Estado passou a intervir mais na sociedade, buscando reduzir as desi-
gualdades sociais através da adoção de massivas ações de bem estar
social, o que, juntamente com o desenvolvimento do mercado de previ-
dência privada, tornou a sobrevivência de uma ou outra instituição de
caridade menos essencial para a coletividade.11
Em conseqüência, a doutrina anteriormente firmada perdeu a sua
coerência social, já que não mais representava a realidade sócio-econô-
mica da coletividade. Em razão dessa incoerência, os padrões morais
que até então sustentavam a doutrina também se alteraram. Diante da
nova realidade já não se considerava justo que poucos sofressem danos
em benefícios de muitos, pois suportar tal dano não era mais necessá-
rio. A visão prevalente passou a ser de que toda empresa, pública ou
privada, lucrativa ou não, deveria responder pelos danos causados por
seus empregados, principalmente quando a empresa ostentava uma
posição que a permitia, via contratação de seguros de responsabilida-
de, a repartição desse ônus e o indivíduo prejudicado não. Reclamar
por danos causados na prestação de serviços assistenciais deixou de
ser ingratidão e passou a ser considerado regular exercício de um direi-
to. O resultado dessa alteração na realidade social e nos padrões de
justiça foi uma crescente e espraiada crítica à doutrina então firme-
mente estabelecida.
É que, quando presentes as circunstâncias sociais que tornavam
justificável um tratamento diferenciado entre as instituições de carida-
de e empresas lucrativas que prestavam o mesmo serviço, era razoável
impor responsabilidade pelos danos causados por estas, ao tempo em
que se concedia imunidade pelos mesmos fatos àquelas. Alteradas que
foram tais circunstâncias e, conseqüentemente, ausentes as razões
que legitimavam o tratamento legal mais favorecido às instituições
assistenciais, este passou a ser arbitrário e inconsistente com trata-
mento legal dado as outras empresas que prestavam os mesmos servi-
ços e estavam sujeitas à responder pelos danos que causassem. A
única diferença de serem ou não empresas lucrativas não se mostrava
razoável, quando cotejada com os objetivos colimados pela regra da
imunidade à responsabilidade. A doutrina passou a ser, portanto,

269
Celso de Albuquerque Silva

externamente inconsistente com outras doutrinas sobre o assunto e,


por tal razão, foi sujeita a incontáveis e inconsistentes exceções.
A jurisprudência passou a fazer distinções arbitrárias quando refe-
renciadas aos objetivos colimados pela doutrina. Assim, em algumas
jurisdições a doutrina só era aplicada quando se referia a beneficiários
de uma ação assistencial, mas não quando a ação era proposta pelos
empregados ou qualquer outra pessoa que não fosse beneficiária. De
outra sorte, os tribunais passaram a fazer distinções entre danos causa-
dos por negligência administrativa ou gerencial e negligência na pres-
tação dos serviços de caridade, para exonerar de responsabilidade civil
nesta hipótese e admitir naquelas. Essa distinção conduziu ela própria
a inúmeras decisões inconsistentes que tornaram impossível a adminis-
tração da doutrina de modo coerente. Como nos relata Eisenberg:

“As cortes de Nova York decidiram que colocar uma bolsa de


água quente impropriamente embalada em um paciente era
‘administrativo’ e não se aplicava a imunidade, porém, manter uma
bolsa de água quente em um paciente por muito tempo era ‘médi-
co’ e a imunidade impedia a ação. Transfundir sangue para um
paciente errado era administrativo, mas transfundir sangue errado
em um paciente correto era médico. Aplicar uma injeção impropria-
mente esterilizada era administrativo, mas aplicar uma injeção
erroneamente era médico. Se omitir em colocar laterais na cama
depois de decidido que elas deveriam ser usadas era administrati-
vo, mas se omitir se as laterais deveriam ser usadas era médico. As
cortes de Nova Jersey decidiram que uma mãe que sofre um aci-
dente quando visita seu filho no hospital era um beneficiário assis-
tencial, mas um bombeiro que trouxe um paciente para o hospital
e sofreu um acidente não era. Uma escoteira que se machucou nas
escadas de uma igreja onde sua tropa se encontrava nas salas para
a qual tinha feito uma doação era uma beneficiária assistencial,
mas uma mulher que caiu na escada de uma igreja enquanto par-
ticipava de um evento social para o qual ela pagou uma entrada,
não. As cortes de Ohio decidiram que um membro de uma igreja
que caiu depois do serviço quando se dirigia ao porão onde a igre-
ja vendia artigos religiosos era um beneficiário, e portanto a imuni-
dade impedia a ação, mas que cabia a um júri decidir se a imuni-
dade se aplicava a um membro que usufruiu de um jantar pago na
igreja enquanto participava de um bazar para levantar fundos para
a igreja. As cortes de Missouri decidiram que a imunidade impedia

270
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ações por danos causados em um imóvel que uma instituição de


caridade possuía e mantinha, parte do qual a instituição ocupava,
mas metade do qual alugava, mas a imunidade não se aplicava a
um imóvel que uma instituição de caridade possuía e mantinha,
mas não ocupava, embora as receitas obtidas com o imóvel fossem
gastas somente com asilos para idosos.”12

Diante de tantas arbitrárias distinções na aplicação da doutrina


vinculante em virtude da perda de sua coerência social, ela acabou por
perder sua própria consistência interna, na medida em que resultados
absolutamente distintos foram dados para situações relevantemente
semelhantes dentro da própria doutrina. Em outro dizer, dada diversi-
dade de sua aplicação, a doutrina passou também a ser inconsistente
com suas próprias exceções.
Em resumo, a doutrina de imunidade como um todo passou a ser
inconsistente, pois perdeu sua consistência externa com outros princí-
pios sobre a responsabilidade civil em virtude da perda de sua coerên-
cia social e perdeu sua consistência interna, pois suas inúmeras exce-
ções não permitiam a formação de um corpo coerente e ordenado de
princípios.
Por outro lado, a perda da consistência externa e interna da dou-
trina conduz a um estado de incerteza e insegurança jurídica. Nesse
estágio, já não é mais possível, dada a multiplicidade de distinções
arbitrariamente selecionadas, prever com razoável grau de acuidade
qual será o resultado provável de uma demanda, nem garantir decisões
iguais para situações semelhantes. Os valores que a doutrina vinculan-
te persegue, quais sejam, previsibilidade, justificada confiança e trata-
mento idêntico para situações semelhantes, não podem ser melhor ser-
vidos pela manutenção da doutrina do que pela sua invalidação.
De fato, quando a doutrina passa na mesma área geral a ser sujei-
ta a múltiplos casos de distinções sem relevantes diferenças, a prática
judicial passa a ser injusta e arbitrária. Quando as cortes utilizam dis-
tinções ultra-refinadas, quando os tribunais se tornam tão envolvidos
no exame das mínimas e irrelevantes particularidades do caso concre-
to, quando sua atenção se centra apenas nos detalhes das árvores a
ponto de perder de vista o conjunto da floresta, o direito sofre um golpe
fatal. A certeza jurídica é solapada, as previsões sobre as condutas cor-
retas ameaçadas e a confiança nas orientações de conduta extraídas

271
Celso de Albuquerque Silva

das decisões judiciais completamente desfigurada. Nessa situação, o


melhor que a corte pode fazer é invalidar completamente a doutrina
que se tornou obsoleta e o overruling, ao invés de retirar do mundo jurí-
dico um pretérito erro, funciona como um fator de desenvolvimento do
direito de criação judicial.

2.1.2. A doutrina é atualmente considerada plena e substancialmente


injusta e/ou incorreta

Um direito justo, como visto anteriormente,13 convive com regras


transitória e circunstancialmente injustas. Essa convivência decorre do
inexorável lapso de tempo entre as mudanças nas condições sociais em
que originariamente a regra foi firmada e a sua necessária adaptação
às novas circunstâncias. Tanto o processo legislativo quanto o judicial
não prescindem de um exame minucioso das mudanças sociais e de
suas repercussões nos fundamentos do direito.14 Isso demanda tempo.
Assim, uma regra pode ter sido boa ou correta ou justa quando de sua
primeira formulação, mas pode ter se tornado com o passar do tempo
uma péssima regra, muitas vezes insuportavelmente injusta. Nesse
estágio de prolongada e aguda injustiça, o modelo de direito justo não
suporta uma convivência pacífica com tais regras, devendo existir
alguma forma institucionalizada de serem descartadas.
O direito serve para regular e coordenar as atividades humanas.
Ele expressa um desejo social e é obrigado a considerar os fatos soci-
ais se tiver pretensão de eficácia.15 Cardozo já apontava que o fim últi-
mo do direito é o bem estar social, daí o íntimo contato entre o direito
e a sociologia.16 Hesse deu uma contribuição fundamental para tornar
aceitável na resolução de uma controvérsia judicial, considerações de
ordem sociológicas tais como educação, desenvolvimento, ética, cultu-
ra e sua importância no conteúdo da lei, ao afirmar que a normativida-
de da constituição não é senão a de uma ordem histórico-concreta, não
sendo a vida que está chamada a regular outra que não a vida históri-
co-concreta, de modo que, se uma constituição quer tornar possível a
resolução das múltiplas situações históricas cambiantes, seu conteúdo

272
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

deve permanecer necessariamente aberto ao tempo.17 É essa incom-


pletude e abertura das normas que permite conferir-lhe uma interpre-
tação evolutiva que adapte seus significados às novas situações por
elas reguladas.
Por outro lado, o limite dessa evolução interpretativa situa-se na
própria norma, precisamente naquelas hipóteses em que existe algo
estabelecido de forma vinculante. Assim, não sendo possível, em virtu-
de do sentido mínimo transmitido pela sua expressão vocabular, adap-
tar-se o conteúdo da norma aos novos valores morais, políticos e
sociais hodiernamente compartilhados, o overruling aparece como um
instrumento natural de aprimoramento do direito justo. Quando uma
regra, após ter sido adequadamente testada pela experiência se reve-
lou inconsistente com o senso de justiça ou com o bem-estar social, não
se deve hesitar em francamente reconhecer essa perda de congruência
social e, conseqüentemente, abandoná-la totalmente. Lawrence v
Texas18 é um bom exemplo dessa hipótese.
A pouco menos de duas décadas atrás, a Suprema Corte America-
na apreciando em Bowers v Hardwick a constitucionalidade de uma lei
do Estado da Geórgia que criminalizava a sodomia, julgou válida a
norma legal. Os fatos que deram origem à causa podem ser assim resu-
midos: um oficial da polícia atendendo a uma ocorrência policial ingres-
sou de forma legítima na residência de Hardwick, flagrando-o em seu
próprio quarto em intercurso sexual com outro adulto do sexo masculi-
no, razão porque foi preso. Hardwick não foi denunciado, entretanto,
ingressou em juízo em uma corte federal colimando obter a nulidade da
lei ao fundamento de que ele era homossexual e a proibição legal vio-
lava seus direitos abrigados sob a capa do devido processo legal.
A Suprema Corte Americana julgou improcedente a ação propos-
ta declarando a constitucionalidade da lei estadual. A corte entendeu,
à época, que a constituição federal não conferia nenhum direito funda-
mental que protegesse relações sodomitas homossexuais. Pelo contrá-
rio, asseverou que prescrições contra esse tipo de conduta estavam
firme e longamente enraizadas na cultura e tradição do povo america-
no. Em sua justificação, a corte mencionou o fato de que antes de 1961
todos os cinqüenta estados americanos consideravam ilegal esse com-

273
Celso de Albuquerque Silva

portamento e, ao tempo da decisão, 24 estados e mais o distrito de


Columbia, ou seja, praticamente a metade dos entes federados, ainda
possuía leis banindo essa conduta. Acrescentou ainda, que as decisões
individuais relacionadas à conduta homossexual têm sido submetidas
à intervenção estatal por toda a história da civilização ocidental e que
a condenação dessas práticas está firmemente enraizada nos padrões
éticos e morais judaico-cristãos.
Em meados de 2003, a suprema corte conferiu writ of certiorari ao
recurso interposto por Lawrence contra decisão da corte de apelação
do Texas que, por maioria, havia mantido sua condenação pela prática
de sexo sodomita com base no precedente Bowers v. Hardwick. Os
fatos em Lawrence x Texas eram similares aos de Bowers. O recorrente
Lawrence também fora flagrado na sua residência por um policial, que
nela licitamente ingressara, em intercurso sexual com outro homem
adulto. A única diferença é que a lei da Geórgia criminalizava a prática
sodomita mesmo que praticada por pessoas de sexo diferentes,
enquanto a lei texana só criminalizava a conduta se praticada por pes-
soas do mesmo sexo. A suprema corte concedeu o certiorari para con-
siderar três questões: a) violação do princípio da igualdade; b) violação
dos direitos da liberdade e privacidade protegidos pela cláusula do
devido processo legal; c) se Bowers v. Hardwick deveria ser invalida-
do. Ao julgar o recurso, a corte centrou sua atenção na possibilidade de
invalidar Bowers, o que de fato fez.
Ao entregar a opinião da corte, Justice Kennedy buscou demons-
trar a ausência de coerência social da regra fixada em Bowers. Inicial-
mente afirmou: “as antigas leis americanas que proibiam a sodomia
não eram dirigidas aos homossexuais enquanto tais, mas visavam proi-
bir atividade sexual não procriativa...e não parecem ter sido aplicadas
quando o ato foi praticado entre adultos e com seu consentimento mas,
em princípio, apenas contra atos predatórios contra aqueles que não
podiam ou não consentiram, como nos casos de menores ou de vítimas
de agressão.”19 A seguir, acrescentou que “no curso das últimas déca-
das Estados que criminalizavam a conduta homossexual têm paulati-
namente abolido a tipificação”.20 Essa incoerência com a realidade
social da regra fixada em Bowers se mostrou ainda mais significante
nos anos que se seguiram à decisão pois, “os 25 Estados com leis proi-

274
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

bindo a conduta referenciada na decisão de Bowers estavam agora


reduzidos a 13, dos quais apenas 4 aplicavam suas leis apenas contra
a conduta homossexual. Naqueles Estados onde a sodomia ainda é
proscrita, seja para relações homossexuais ou heterossexuais, há um
padrão de não aplicação quando a conduta é realizada com consenti-
mento entre adultos e privadamente”.21 Da experiência alienígena, se
referiu à decisão da Corte Européia de Direitos Humanos prolatada em
1981 que, ao analisar questão trazida por um adulto homossexual que
desejava ver reconhecido o direito de manter relações homossexuais
proibido pelas leis da Irlanda do Norte, decidiu que as leis proibindo
esse tipo de conduta eram inválidas sob a convenção européia de direi-
tos humanos, à qual se submetem todos os membros do conselho da
Europa, que à época da decisão em Lawrence era composto de 45
nações. Anotou ainda, que a Corte Européia de Direitos Humanos
seguiu esse precedente em “P. G. & J.H. v. United Kingdom, App no.
00044787/98 (Eur. Ct. H.R., Sept, 25, 2001); Modinos v. Cyprus, 259 Eur.
CT.H.R. (1993); Norris v. Ireland, 142 Eur. Ct. H.R. (1988)”.22
A seguir, a corte passou enfrentar a questão da injustiça da regra
firmada no precedente ao afirmar que, “quando uma conduta homosse-
xual é tipificada como crime pela lei do Estado, aquela declaração é de
per si um convite para submeter pessoas homossexuais à discrimina-
ção, tanto na esfera privada quanto na pública. O holding central de
Bowers foi trazido para discussão e deveria ser enfrentado. Sua conti-
nuidade como precedente restringe as vidas das pessoas homosse-
xuais”.23 Pessoas em uma relação homossexual possuem autonomia
para escolher sua conduta sexual privada e “a decisão em Bowers lhe
nega esse direito”.24 Há épocas que podem nos cegar para certas ver-
dades e gerações posteriores podem descobrir que leis antigamente
reputadas necessárias e corretas de fato servem apenas para oprimir.25
A estrutura da argumentação deduzida em Lawrence para invali-
dar Bowers cristalinamente demonstra que a Corte considerou sua
decisão anterior errada por reputá-la absolutamente aberrante do sen-
timento de justiça prevalente nos Estados Unidos e na imensa maioria,
países de cultura ocidental. A doutrina não foi invalidada porque esta-

275
Celso de Albuquerque Silva

va desfigurada (ao contrário, estava sendo observada pelas cortes infe-


riores), mas porque foi considerada absoluta e insuportavelmente in-
justa. A regra fixada em Bowers considerava criminosa uma conduta
sexual privada e consentida entre dois adultos muitas vezes represen-
tativa de apenas uma faceta de um relacionamento mais abrangente
entre dois seres humanos livres e autônomos. A corte não reconheceu
um direito fundamental à sodomia homossexual.26 A corte nem mesmo
reconheceu as pessoas homossexuais o direito a obter do Estado um
reconhecimento formal a qualquer forma de relacionamento que por-
ventura quisessem partilhar. O que a Corte reconheceu foi que o
Estado, ao pretender controlar a existência ou o destino de uma pes-
soa, criminalizando sua conduta sexual privada e consentida, não per-
seguiu um legítimo interesse que justificasse tal intrusão, cujas únicas
conseqüências seriam a de fomentar odiosa discriminação pública e
privada contra uma parcela da população, submetê-las há vários cons-
trangimentos além da reprovação moral, como registros criminais desa-
bonadores, reduzir o pleno potencial de desenvolvimento de suas
vidas, oprimindo-as injustificadamente, o que é injusto e inaceitável.
Dada a grandeza da injustiça carreada pela regra, ela já não mais se
mostrava coerente com a ordem social.
Como conseqüência, essa falta de coerência social da regra firma-
da em Bowers a tornou inconsistente com outros princípios derivados
de outras decisões judiciais. Assim, cerca de 10 anos após sua decisão
em Bowers, a suprema corte em Romer v. Evans (1996),27 invalidou uma
emenda à constituição do Estado do Colorado que discriminava os
homossexuais tanto na esfera privada quanto na pública. Referida
emenda retirou dos homossexuais, mas não de outras classes, especí-
ficas proteções legais contra danos causados por discriminação e ainda
proibiu o restabelecimento dessas proteções, a menos que uma outra
emenda constitucional autorizasse. A corte, então, concluiu que o tra-
tamento inferior conferido apenas aos homossexuais decorreu exclusi-

276
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

vamente de animosidade para com esse específico grupo e que o dese-


jo de prejudicar um grupo politicamente impopular não poderia ser
considerado um legítimo interesse a ser perseguido pelo Estado, decla-
rando inconstitucional referida emenda constitucional. Considerando-
se que a regra fixada em Bowers estimulava a discriminação contra os
homossexuais tanto na esfera pública quanto na privada, ao considerar
lícita a criminalização de uma conduta particular que não causava
dano ou prejuízo ao público ou a outro indivíduo, ela se mostrou com-
pletamente inconsistente com outros princípios que inadmitiam qual-
quer espécie de discriminação pelo simples fato de alguém possuir
uma orientação homossexual. A perda da coerência social e da consis-
tência sistêmica da regra firmada no precedente possibilitava, em prin-
cípio, a sua invalidação.
Por outro lado, com base no princípio institucional que governa o
overruling, não é suficiente que a decisão seja considerada clara e pal-
pavelmente injusta ou errada para ser invalidada. Exige-se ainda que
a correção do erro/injustiça seja benéfica para o bem estar público28 e
que não haja prejuízo para quem justificadamente confiou na decisão
precedente e baseou suas ações na regra nele fixada.29
Essa segunda condição foi objeto de expressa aferição pela corte
que assim se manifestou: “O holding em Bowers não induziu prejuízo
decorrente de confiança comparável a outros exemplos onde direitos
individuais estão envolvidos.30 Não houve confiança individual ou so-

277
Celso de Albuquerque Silva

cial em Bowers do tipo que poderia aconselhar contra a invalidação de


sua regra, uma vez que existam razões compulsórias para fazê-lo”.31
De fato, não parece difícil demonstrar que, seja em termos indivi-
duais, seja em termos coletivos, ninguém deixou de contratar ou contra-
tou, alterou sua planificação econômica ou fez planos para uma vida
sentimental futura diversa da que suas emoções ditavam, apenas por-
que a sodomia homossexual tinha sido considerada crime pelo holding
de Bowers. Uma pessoa com orientação homossexual não iria contrair
núpcias com pessoa de outro sexo apenas porque a relação sodomita
era tipificada como crime. Muito provavelmente sua escolha seria a de
insistir em sua orientação, ainda que correndo o risco de enfrentar cir-
cunstanciais dissabores, vez que sua outra opção seria a de viver uma
inteira vida infeliz. Se a só existência da regra em Bowers reduzia a vi-
da das pessoas homossexuais, submeter-se a ela poderia aniquilá-la.
Presentes as condições exigidas: perda da coerência social face a fla-
grante injustiça da regra do precedente; perda de sua consistência sis-
têmica por incompatível com outros princípios posteriores baniam a dis-
criminação por orientação sexual, e o fato de que não se mostrava
melhor para o interesse público manter a regra do que invalidá-la, dada
a ausência de justificada confiança na regra antes firmada, o overruling
se apresenta como um válido instrumento de evolução social do direito.

2.1.3. A doutrina é inexeqüível

O total abandono do precedente também pode ser justificado


naquelas hipóteses que o princípio fixado no precedente se revelou na
prática como não funcional e inexeqüível. Isso ocorre, por exemplo,
naquelas hipóteses em que a regra não é capaz de fornecer orientações
firmes e seguras para sua aplicação em virtude da largueza de sua for-
mulação e impossibilidade de fixação de critérios minimamente objeti-
vos que permitam conferir um mínimo de uniformidade na sua aplica-
ção. Garcia v. San Antonio Metropolitan Transit Authority torna aparen-
te essa hipótese.

278
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Em 1974 o congresso norte-americano estendeu para os trabalha-


dores dos serviços públicos de transporte de massas a legislação do
Fair Labor Standard Acts (FLSA) que tratava do salário mínimo e limite
máximo de horas de trabalho. Essa legislação foi devidamente aplicada
até 1976 quando, julgando o caso National League of Cities v. Usery, a
Suprema Corte Americana decidiu que a cláusula de comércio, da qual
o congresso haurira sua legitimidade para legislar sobre a matéria, não
autorizava aquela casa legislativa a impor tais obrigações trabalhistas
aos entes federados “nas áreas de funções governamentais tradicio-
nais”, nas quais se encartava o transporte público de massas. Quatro
meses após a decisão, as empresas de transporte público informaram a
seus empregados que não estavam sujeitas às provisões do FLSA.
Colimando tornar mais explícita a regra firmada, a Suprema Corte
Americana, em Hodel v. Virginia Surface Mining and Reclamation
Association Inc., resumiu em três as condições que deveriam estar pre-
sentes para que a decisão em National League of Cities v. Usery fosse
considerada como precedente: primeiro, deveria existir uma demons-
tração de que a norma objurgada regulava os “Estados, enquanto
Estados”; segundo, a regulação federal deveria se referir a matérias
que são inegavelmente atributos da soberania estadual e, terceiro,
deveria ser demonstrado de forma cristalina que a obediência do
Estado à legislação federal, prejudicaria diretamente sua capacidade
de estruturar de modo satisfatório serviços prestados em “áreas de
funções governamentais tradicionais”.32
Seis anos após a decisão em National League of Cities a Suprema
Corte Americana, seguindo o precedente ali firmado, decidiu em
United Transportation Union v. Long Island Railroad, que o Estado pro-
prietário de uma estrada de ferro não estava imune às obrigações tra-
balhistas previstas no Railway Labor Act, porque a operação de uma
ferrovia não era uma função estatal tradicional. Nada obstante, apenas
um ano após, a corte em Equal Employment Opportunity Commission
v. Wyoming julgou válida uma lei federal que proibia a aposentadoria
involuntária para funcionários com menos de 70 anos. Para fundamen-
tar sua decisão discrepante do precedente, a corte justificou que a obe-
diência do Estado à norma federal seria menos custosa e não prejudi-
caria a flexibilidade estatal no mesmo grau que a provisão legal sobre

279
Celso de Albuquerque Silva

salário mínimo e horas extras objeto de análise em National League of


Cities. As proibições do Age Discrimination Act envolviam uma intru-
são federal que era suficientemente menos gravosa e que não prejudi-
caria a capacidade dos estados de estruturar integralmente seus servi-
ços, uma questão que “deve depender de considerações de grau”.33
Finalmente, em Garcia v. San Antonio Metropolitan Transit
Authority a Suprema Corte Norte Americana abandonou o princípio for-
mulado em National League of Cities, por entender que a tentativa de
demarcar as fronteiras da imunidade estatal à regulação federal, em
termos de “função governamental tradicional” era inexeqüível e incon-
sistente com princípios decorrentes do sistema federalista.
Em seu voto vencedor, o Justice Blackmum afirmou que, embora
em National League of Cities, a corte tenha fixado o princípio de que o
congresso não poderia legislar sobre salário mínimo e horas extras em
áreas de funções governamentais tradicionais, arbitrariamente ali
exemplificadas, não ofereceu “nenhuma explicação geral de como uma
função tradicional deve ser distinguida de uma função não tradicional.
Desde então, cortes federais e estaduais têm arduamente se dedicado
à tarefa, assim imposta, de identificar uma função tradicional objeti-
vando aplicar a imunidade estatal”.34
Essa empreitada revelou-se inconsistente e inexitosa. A própria
Suprema Corte fez poucos avanços no escopo de definir funções gover-
namentais protegidas sob a regra firmada em National League of Cities.
Em United Transportation Union v. Long Island Railroad a corte reco-
nheceu a extrema dificuldade para estabelecer um critério substancial
que permitisse, com clareza, distinguir funções públicas tradicionais.
Embora tenha levado em consideração, naquele caso específico, fato-
res históricos para reconhecer que transporte ferroviário não represen-
tava uma função pública tradicional, concomitantemente rejeitou uma
visão histórica estática de funções estatais geral e absolutamente imu-
nes à regulações federais. Demonstrando, em Garcia v. San Antonio, a
inexeqibilidade da regra firmada em National League of Cities, assim se
manifestou o justice Blackmum:

“Em Long Island nós rejeitamos a possibilidade de repousar a


imunidade sobre um critério puramente histórico de ‘tradição’, e
rejeitamos corretamente. O principal defeito de uma abordagem

280
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

histórica para a imunidade estatal é que impede a corte de acomo-


dar mudanças nas históricas funções dos Estados, mudanças que
resultaram na assunção pelos Estados e suas subdivisões de fun-
ções originariamente privadas, como a educação.
Um critério não histórico para identificação de funções gover-
namentais imunes será provavelmente tão inexeqüível quanto um
critério histórico. A idéia de identificar funções ‘tipicamente’
governamentais, por exemplo, foi rejeitada pela corte na área de
responsabilidade civil do poder público, em parte porque a noção
de uma função tipicamente estatal é inexeqüível....outra possibili-
dade seria confinar a imunidade a serviços governamentais essen-
ciais, ou seja, serviços que seriam prestados insatisfatoriamente
ou nem seriam prestados, a menos que oferecidos pelo poder
público. O conjunto de serviços, porém, que se encaixa nessa cate-
goria é insignificante. O fato de que um mercado não regulado ofe-
reça um serviço em quantidade menor do que o Estado considera
desejável não significa que o próprio Estado deva fornecer o ser-
viço. Na maioria, senão que na totalidade dos casos, o Estado
pode contratar empresas privadas para prestar os serviços ou sim-
plesmente conceder subsídios aos atuais prestadores. Está tam-
bém aberta a questão de se as cortes estão bem equipadas para
fazer esse tipo de determinação quanto ao funcionamento de mer-
cados econômicos.”35

Como corretamente reconheceu a Suprema Corte Americana, qual-


quer dos critérios que porventura fosse adotado, seja histórico seja não
histórico, para definir quais são as “funções governamentais tradicio-
nais” levaria a resultados incoerentes ou inconsistentes. Adotado o cri-
tério de uma realidade histórica fixa, cuja maior vantagem seria sua ale-
gada objetividade, a aplicação da regra logo conduziria a uma falta de
coerência social, pois que muitas das atividades que tradicional e his-
toricamente foram consideradas como privadas, diante da mudança do
paradigma do Estado Liberal para o Estado do Bem Estar Social, foram
paulatinamente absorvidas pelo Poder Público e, apesar disso, não
poderiam ser alcançadas pela regra firmada. Como se sabe, o que carac-
teriza o Estado de Bem Estar Social é a ampliação não só dos destinatá-
rios, como também e principalmente, do rol de serviços a serem presta-
dos pelo Poder Público. Essas contínuas mudanças não podem ser ade-

281
Celso de Albuquerque Silva

quadamente tratadas dentro de uma moldura fixa de uma realidade his-


tórica tradicional. Daí a completa inadequação de um critério histórico.
Por outro lado, a adoção de um critério não histórico como o da fun-
ção tipicamente ou necessariamente estatal peca pela ausência de
objetividade. Esse defeito inevitavelmente conduziria a resultados
inconsistentes quanto à finalidade perseguida pela regra, em virtude
do alto grau de subjetividade exigido para sua aplicação. Essa, inclusi-
ve, a problemática enfrentada em Garcia v. San Antonio, onde uma
corte federal, na ausência de critérios objetivos, tinha concluído que a
exploração de um sistema de transporte de massa pelo município era
uma função governamental tradicional e, portanto, imune às obriga-
ções das leis trabalhistas quanto à salário mínimo e horas extras. Nada
obstante, enfrentando questões idênticas, três tribunais federais e um
tribunal de justiça estadual tinham chegado a uma conclusão diame-
tralmente oposta.36
Demais disso, como realçado pela Corte, a imunidade dos Estados
quanto à regulação federal trabalhista, quando se tratasse de “funções
governamentais tradicionais”, implicava no reconhecimento de um
atributo decorrente da soberania estadual, mas essa soberania é limi-
tada pela própria constituição.37 Como o critério “funções governamen-
tais tradicionais” não é hábil, por inexeqüível, para definir o âmbito
dessa soberania estadual, a regra firmada em National League of Cities
de conferir imunidade à regulação federal é inconsistente com os
demais princípios que decorrem do sistema federalista.38 De um lado,
o critério histórico conduz à incoerência social, de outro, os critérios
não históricos implicam em inconsistência sistêmica.
Se a adoção de qualquer um desses critérios conduz a resultados
incoerentes ou inconsistentes, então o problema não é do critério distin-
tivo, mas do princípio estabelecido que não possibilita uma regular exe-
cução. A falta de funcionalidade é da própria regra firmada que não pas-
sou pelo teste da experiência prática. Acresça-se que a manutenção da
regra não é melhor que sua revogação, pois, como ela própria não forne-
ce critérios firmes para extração de seu significado, não propicia orien-
tações seguras de conduta. Destarte, inexiste qualquer confiança justi-

282
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ficada que dela possa ser extraída. Nessas circunstâncias nada impede
a sua total revogação, face a sua absoluta inexeqüibilidade.
Por oportuno, impende assinalar que a invalidação só se legitima
em virtude da inexeqüibilidade da aplicação da regra firmada no pre-
cedente e não em razão de uma possível dificuldade. O princípio formu-
lado no precedente pode ser mais ou menos claro, mais ou menos aber-
to, flexível e/ou ambíguo. Quanto mais claro, mais fácil sua aplicação,
quanto mais ambíguo, mais difícil. Não é a dificuldade na aplicação que
implica em abandono do precedente, mas a impossibilidade de uma
regular, coerente e consistente aplicação. Assim, “se as dificuldades na
aplicação da regra forem previsíveis e compreendidas pela corte que
firmou o precedente, essas dificuldades não justificam o abandono do
precedente, porque a corte implicitamente rejeitou qualquer dessas
dificuldades quando prolatou sua primeira decisão”.39
Até o presente momento foram tratadas as hipóteses nas quais à
perda da congruência social e da consistência sistêmica da norma,
acresceu-se a ausência de justificada confiança na regra por parte de
seus destinatários. A conjugação desses fatores, que geralmente ocor-
re na maioria dessas hipóteses analisadas, autoriza o completo aban-
dono da doutrina anteriormente firmada. Em certas circunstâncias,
porém, ainda que a norma perca sua coerência social e/ou sua consis-
tência sistêmica, existe uma justificada confiança por parte de seus
destinatários na imposição, reconhecimento e aplicação dos efeitos
decorrentes do comando normativo. São áreas do agir humano em que
a certeza jurídica é considerada muito importante para o correto plane-
jamento e pleno desenvolvimento da vida das pessoas. Nessas circuns-
tâncias, a invalidação completa e retroativa do precedente pode ser
inadequada. Essas são as hipóteses em que a tensão entre rigidez e fle-
xibilidade se entremostra de forma mais vigorosa. O dilema central é a
escolha que deve ser feita entre privilegiar-se à confiança em detrimen-
to da remoção de uma regra obsoleta ou ultrapassada. Em outro dizer:
se se deve dar mais valor à segurança jurídica ou à correção de uma
injustiça ou um erro.
A solução salomônica encontrada pelas cortes judiciárias não foi
nem perpetuar a obsolescência, o erro ou a injustiça, nem desconside-

283
Celso de Albuquerque Silva

rar a justificada confiança que as pessoas depositavam na norma, mas


seguindo um meio termo, desenvolver técnicas que possibilitaram oti-
mizar os benefícios derivados das necessidades de mudanças com as
vantagens que defluem do valor segurança jurídica. Uma dessas técni-
cas é a invalidação do precedente com efeitos futuros (prospective over-
ruling); a outra é a técnica de sinalização/aviso ( signaling/caveat).
Ambas serão analisadas a seguir.

2.2. A invalidação da doutrina com efeitos futuros


(prospective overruling)

Classicamente, quando se invalida uma regra anteriormente fir-


mada ou se declara a inconstitucionalidade de uma norma, a essa
declaração são conferidos efeitos retroativos e prospectivos, ou seja, a
decisão se aplica tanto às situações ocorridas antes de sua prolação
que, não estando excluídas pela barreira da coisa julgada, ainda estão
sujeitas à discussão judicial, quanto às situações que surgirem após a
decisão ter sido proferida.
Quando, porém, a corte invalida com efeitos futuros uma regra ou
princípio anterior, ela diz que, no futuro, uma distinção será feita entre
eventos ou disputas que ocorreram antes da decisão e aqueloutros que
surgiram após a prolação da decisão que invalidou a doutrina anterior-
mente vinculante. Os eventos que ocorreram antes da decisão que in-
validou a regra serão decididos com base na regra invalidada e os
eventos que ocorreram após, pela nova regra firmada na decisão refor-
madora.40
Essa técnica desde logo levantou questionamentos constitucio-
nais. Alegou-se violação do devido processo legal das partes, quando
as Cortes ao mesmo tempo que invalidam uma regra, o fazem só para
o futuro, aplicando a regra invalidada no mesmo caso em que é decla-
rada a sua invalidade. Se a corte enuncia uma nova regra legal como a
correta ou justa, mas aplica aos litigantes a regra antiga que conside-
rou incorreta ou injusta, isso implica em tratamento arbitrário e negati-
va de respeito ao devido processo legal. Essa a problemática agitada
no caso Great Northern Railway v. Sunburst Oil and Refining Company.
Naquele caso, a Suprema Corte de Montana invalidou uma decisão pré-

284
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

via que garantia aos transportadores o direito de reaver pagamentos


em excesso com base em uma lei que regulava os custos dos fretes
dentro do Estado. A corte decidiu que a lei não outorgava aquele direi-
to, mas que a regra firmada no precedente deveria ser aplicada ao caso
Sunburst e aos outros contratos de transporte anteriores que tinham
sido firmados na confiança de aplicação dos efeitos decorrentes da
regra anterior. Julgando o recurso, a Suprema Corte Americana reco-
nheceu como legítima a técnica empregada pela Suprema Corte de
Montana. Justice Cardozo, expressou a opinião unânime da corte nas
seguintes palavras:

“...Alega-se que a aderência ao precedente como estabele-


cendo uma regulação para o passado com respeito ao sentido de
uma lei, implica em violação ao devido processo legal, quando
conjugada com a declaração de uma intenção de se recusar a ade-
rir a ela quando da adjudicação de quaisquer controvérsias decor-
rentes de transações futuras.
Nós não tivemos ocasião de considerar se essa divisão no
tempo, dos efeitos de uma decisão é uma correta ou incorreta apli-
cação da doutrina do stare decisis como conhecida na common
law.
Esse é um caso, onde uma corte recusou-se a dar efeito
retroativo a sua decisão, e alega-se que novo posicionamento
recusando essa retroação viola a constituição dos Estados Unidos.
Nós consideramos que a Constituição Federal não tem aplica-
ção sobre o assunto. Um Estado, ao definir os limites da aderência
ao precedente pode ele mesmo escolher entre uma aplicação futu-
ra e aquela de aplicação retroativa. Pode dizer que decisões de sua
corte superior, embora posteriormente invalidadas, são leis, entre-
tanto, para transações intermediárias.”41

Impende realçar que a concessão de efeitos retroativos ou pros-


pectivos à decisão judicial não é matéria tratada pela Constituição
Federal, mas se insere dentro do âmbito da discricionariedade da corte.
As cortes judiciais devem levar em consideração os efeitos de seus jul-
gamentos nos negócios e na vida dos destinatários de sua decisão.

285
Celso de Albuquerque Silva

Inicialmente, quando a observância estrita do princípio geral de retroa-


tividade da lei acarretava conseqüências socialmente inaceitáveis, as
cortes judiciais recorriam à ficção jurídica para dar uma aparência de
aplicação retroativa da decisão quando, em verdade, na prática outor-
gava efeitos prospectivos. Típico exemplo desse procedimento é o
recurso à ficção do “funcionário de fato”, onde se reconhece a validade
de fatos passados praticados por servidores ilegalmente investidos na
função pública, ao tempo em que se impede para o futuro que essa prá-
tica ilegal persista.42
Assim, se uma corte declara inconstitucional uma norma ou inva-
lida uma regra anteriormente firmada e verifica que essa declaração,
em razão do princípio da segurança jurídica, implicará em conseqüên-
cias inaceitáveis socialmente, ou se lhe reconhece o poder para limitar
os efeitos dessa declaração ou ela irá utilizar ficções jurídicas para
alcançar o mesmo resultado. O recurso à ficção, entretanto, embora por
vezes necessário, causa incômodo e deve ser afastado sempre que pos-
sível. O mal-estar criado pelo recurso à ficção jurisprudencial só pode
ser dissipado pela intervenção do legislador,43 o que no caso brasileiro
foi providenciado com a edição da Lei no 9.868/99, cujo artigo 27 auto-
riza ao Supremo Tribunal Federal, tendo em vista razões de segurança
jurídica ou de excepcional interesse social, restringir os efeitos da

286
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

declaração de inconstitucionalidade da lei ou decidir que ela só produ-


za efeitos para partir do trânsito em julgado da decisão ou ainda de
qualquer outro momento que venha a ser fixado.
O reconhecimento da constitucionalidade da atribuição de apenas
efeitos futuros à decisão que invalida uma regra precedente outorgou
às cortes judiciais um importante instrumento para assegurar as
mudanças e adaptações necessárias do ordenamento jurídico e prote-
ger as legítimas expectativas dos membros da coletividade. Nada obs-
tante, para que esse método seja um instrumental valioso para o
desenvolvimento do direito de criação judicial não pode ser banalizado
e sua aplicação deve ser precedida de uma cuidadosa análise e ponde-
ração dos vários valores envolvidos. Como foi ressaltado por
Friedmann,44 estabilidade, proteção da confiança, eficiência na admi-
nistração da justiça e igualdade, devem ser ponderados entre si. Por
essa razão, dois princípios devem ser formulados para assegurar a oti-
mização nessa ponderação.
Primeiramente, como o prospective overruling introduz um trata-
mento diferenciado entre eventos ocorridos antes e depois da decisão,
a data crítica que funciona como um divisor de águas para o tratamen-
to diferenciado, deve ser ou a data da decisão que invalidou o prece-
dente ou uma data posterior a essa decisão, porém nela fixada. O que
é importante verificar é se os eventos ocorreram enquanto a regra anti-
ga ainda não tinha sido invalidada e não se os litígios decorrentes des-
ses eventos foram adjudicados antes ou depois da decisão que invali-
dou a regra.
O segundo princípio é um natural consectário do primeiro. As par-
tes da lide na qual a regra antiga foi invalidada estarão, necessaria-
mente, litigando sobre fatos que ocorreram antes da decisão, logo a
regra antiga deve ser aplicada na decisão em que ela a final restou
invalidada. É o que se convencionou chamar de puro prospective over-
ruling onde se nega qualquer retroatividade à decisão. Isso pode pare-
cer injusto, pois aumenta a inconsistência de resultados ao permitir
tratamentos diferenciados, especialmente para a parte recorrente que
teve sua tese acolhida, mas não aplicada. Talvez por isso existam algu-
mas variantes dessa técnica que a tornam um pouco menos que com-
pletamente retroativa. A primeira e mais comum é retroagir a aplicação

287
Celso de Albuquerque Silva

da nova regra no caso em que a antiga foi invalidada, mas a nenhum


outro processo que se refira a fatos anteriores à decisão invalidatória,
tenham ou não já sido objeto de propositura de ação judicial.45 A exclu-
são da regra antiga, nessa hipótese, é vista como uma espécie de prê-
mio à parte recorrente, que, de um lado merece ver recompensado seu
esforço e, de outro, ficaria desencorajada de recorrer se os benefícios
decorrentes da invalidação da regra legal não lhes fossem estendidos.
Alega-se, ainda, que se a regra não fosse aplicada no caso seria mero
dictum.46 Uma outra variação manda aplicar a nova regra a todas as
ações que forem propostas após a decisão ou as ações propostas ante-
riormente, mas que foram reformadas em recurso de apelação por
outros motivos. Essa variante tem sido utilizada especialmente em
casos criminais, como uma forma de aplicar a nova regra ao maior
número de casos possíveis sem reabrir um substancial número de
casos em que houve condenações definitivas.47 As justificativas apre-
sentadas para estas variações não são suficientemente fortes, porém.
O argumento que parece soar mais forte se refere à injustiça de se
aplicar a regra antiga invalidada ao recorrente que teve vitoriosa sua
tese. Essa injustiça é, entretanto, aparente, senão vejamos: a principal
justificativa para conferir efeitos futuros à decisão invalidatória é a jus-
tificada confiança na regra antiga. Assim, a manutenção dessa regra
para o próprio caso em que ela foi invalidada é decorrência natural do
resultado da ponderação realizada que culminou por privilegiar o prin-
cípio da segurança jurídica, pois nenhuma circunstância relevante dife-
rencia este caso de todos os outros eventos que ocorreram quando a
antiga regra era ainda considerada válida. Demais disso, a aplicação
da regra nova ao caso em que foi fixada, com a exclusão de sua aplica-

288
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

ção a todos os outros eventos que ocorreram antes de sua fixação, pode
conduzir a situações de extrema injustiça, por aberrante exclusão arbi-
trária ao princípio da isonomia. Considere-se, como exemplo, o caso
Molitor v. Kaneland Community Unit District no 302.48
Nesse caso, a corte de Illinois abandonou a doutrina de imunida-
de civil das escolas municipais em uma lide envolvendo uma ação de
indenização proposta por Thomas Molitor, uma criança que, junto com
outros sete colegas, tinha sofrido danos em um acidente envolvendo
um ônibus escolar. A decisão conferiu efeitos futuros à nova regra que
admitia a responsabilidade do poder público, mas determinou que ela
fosse aplicada ao autor da ação. Isso foi duplamente injusto. Primeiro
foi injusto com a escola municipal cuja confiança na antiga regra de
imunidade foi considerada justificada pela corte, a ponto de limitar os
efeitos da invalidação da regra apenas para casos futuros. Foi também
injusto com os outros sete colegas de Thomas Molitor que também
estavam no mesmo ônibus, sofreram os mesmos danos, mas tiveram
negado, pela decisão, direito à reparação. A injustiça se tornou insu-
portável quando, posteriormente, se descobriu que, em face dos eleva-
dos custos do litígio e da existência de uma doutrina vinculante bem
estabelecida indicando um provável resultado desfavorável para o
autor, a ação proposta tinha sido um caso teste para as outras crianças,
três das quais eram parentes de Thomas, e que as demais crianças
tinham contribuído financeiramente para cobrir os custos do processo
de Thomas. A injustiça da decisão anterior foi tão grande, que em deci-
são subseqüente,49 a corte determinou que todas as crianças envolvi-
das no acidente de Thomas Molitor tinham direito à reparação.50
Essa reforma parcial da decisão originária em Molitor amenizou a
injustiça de tratamento arbitrariamente não isonômico, mas não a eli-
minou. Todos os outros membros da coletividade que sofreram danos
por negligência das escolas municipais antes da decisão prolatada em
Molitor continuaram sem direito à indenização e nenhuma circunstân-
cia relevante distinguia esses casos do de Molitor e de seus colegas. A
conduta da corte violou o princípio de justiça de que casos idênticos
devem receber o mesmo tratamento. É certo que eventos ocorridos

289
Celso de Albuquerque Silva

após a decisão invalidatória da antiga regra serão tratados diferente-


mente daqueles ocorridos antes da decisão, mas aqui não há que se
falar em exclusão arbitrária do princípio isonômico. A própria decisão
invalidatória é um evento relevante apto a tornar razoável o tratamen-
to diferenciado. Antes da invalidação com efeitos futuros a confiança
na antiga regra era justificada, porém, após a decisão, não mais. Essa
significante circunstância legitima distintas soluções para situações
fáticas semelhantes. Relembre-se que, como visto no capítulo 1 da
parte I, igualdades fáticas parciais admitem tratamento diferenciado
desde que o critério discriminatório decorra da natureza das coisas ou
possa ser racionalmente justificado.
A outra crítica é de que a atribuição de efeitos futuros desestimu-
laria as partes de recorrer depois que a corte prolatou a sua decisão.
Essa crítica não se sustenta empiricamente. A realidade demonstra
que, embora tendo contra si decisões contrárias dos tribunais superio-
res, as partes vencidas insistem em recorrer na tentativa de modificar
o entendimento firmado. Da mesma forma que uma doutrina bem esta-
belecida foi invalidada, a decisão que a invalidou também pode ser
objeto de alguma modificação. Isso leva a outra crítica muito próxima a
esta que se refere ao fato de que a regra firmada com efeitos meramen-
te futuros, por não ser necessária para a resolução da controvérsia é,
em certo sentido meramente um dictum e, portanto, não vinculante.
Não estando vinculado à nova regra, o juízo vinculado poderia, então,
decidir seguir a antiga regra, o que geraria incerteza jurídica que o
prospective overruling alegadamente visa evitar.
Inicialmente impende ressaltar que essa crítica é mais prática do
que teórica. Doutrinariamente, o dictum tem sido diferenciado do hol-
ding pelo fato de ser aquele desnecessário para a decisão e, portanto,
não ter o tribunal analisado em profundidade todas as conseqüências
referentes àquelas afirmações feitas de passagem pela corte. Mas será
que na hipótese do prospective overruling a nova regra era desneces-
sária para a solução da lide e, portanto, não foi plenamente analisada?
Em um sentido meramente formal sim, pois que a regra não foi aplica-
da ao caso, mas em termos substanciais, entendo que não. A corte
investigou profundamente todos os aspectos envolvidos na lide e deci-
diu, após essa cuidadosa análise, pela invalidação da regra antiga.
Apenas, em virtude do princípio da certeza jurídica que na ponderação
prevaleceu sobre os demais valores, deixou de aplicar a regra ao caso
que lhe fora posto para adjudicação. As conseqüências da nova regra

290
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

foram exaustivamente previstas, razão porque não vejo qualquer impe-


dimento teórico para se considerar a nova regra como vinculante.
Nada obstante, na prática é possível que as cortes inferiores não
se julguem vinculadas pela nova regra por entenderem ser um dictum.
Embora se reconheça essa possibilidade, esse circunstancial estado de
incerteza tende a ser rapidamente superado. A crítica só seria proce-
dente se as partes envolvidas não recorressem do julgado, o que não é
razoável supor. De um lado, a corte vinculante que exarou o dicta está
ansiosa para decidir um caso no qual possa firmar a nova regra como
holding da decisão, tornando-a vinculante. De outro, todos aqueles que
são diretamente afetados pelo dicta no caso precedente, estão ansio-
sos para obter uma nova decisão que, ao invés de invalidar a antiga
regra apenas para o futuro, invalide-a de modo totalmente retroativo. A
questão da retroatividade ou não dos efeitos da decisão passa a ser
necessária para a solução da lide, tornando-se vinculante. Assim, essa
ânsia das partes em obter um completo overruling é que encorajará e
fomentará o surgimento de novas causas, o que “permitirá a corte ele-
var a regra do nível de dicta para o nível de holding vinculante”.51
A outra variante da técnica que manda aplicar a nova regra a
todos os processos que se iniciaram após a decisão, ou que mesmo
tendo sido iniciados antes ainda estão pendentes de julgamento defi-
nitivo, nada mais é do que uma aplicação mais ampla da primeira varia-
ção e, por isso mesmo, padece dos mesmos defeitos quanto à inconsis-
tência de resultados ofensivos ao princípio de justiça de que casos
iguais devem ter tratamento idêntico. A arbitrária data de propositura
da ação ou a maior ou menor agilidade de resposta jurisdicional às
demandas dos jurisdicionados não podem ser consideradas como fator
relevante para distinção de casos intrinsecamente idênticos, pois tudo
o que o princípio da isonomia busca é exatamente afastar um tratamen-
to discriminatório por razões ou características decorrentes da loteria
natural ou sorte.
Por outro lado, se as alegadas desvantagens do método não são
fatais para sua regular aplicação, especialmente quando se adota o
puro prospective overruling que afasta a inconsistência nos resultados
em virtude da adoção da regra de semelhança consubstanciada na
decisão invalidatória, as vantagens da técnica são evidentes. Assim,

291
Celso de Albuquerque Silva

diante de uma hipótese em que a regra antiga falha em satisfazer os


padrões de coerência social e consistência sistêmica, mas que existe
uma justificada confiança na regra a ponto do valor segurança jurídica
superar o valor de tornar a regra socialmente congruente e sistemati-
camente consistente, a invalidação retroativa da regra seria inapropria-
da. Em tais casos, a corte pode, utilizando-se da invalidação para o
futuro, superar a barreira imposta pelo princípio da segurança jurídica
e, desse modo, tornar o direito mais socialmente congruente e sistema-
ticamente consistente do que poderia fazê-lo por qualquer outro modo.
A principal vantagem do prospective overruling é que essa técnica
“permite às cortes fazerem as necessárias mudanças exigidas pelo
desenvolvimento do direito, sem impor indevido e injusto ônus àqueles
que justificadamente confiaram na regra legal e nela basearam suas
condutas, planejaram e conduziram suas vidas”.52
Uma outra grande vantagem do prospective overruling é capacitar
as cortes a evitar o surgimento de inúmeras distinções arbitrárias e a
disseminação de ficções legais em áreas onde o direito tem perdido a
sua congruência social. Como se sabe, a ficção jurídica é uma qualifi-
cação dos fatos sempre contrária à realidade jurídica. “Aquele que
recorre à ficção jurídica manifesta uma revolta contra a realidade jurí-
dica, a revolta de quem acredita não ter condição para modificá-la, mas
recusa-se a se submeter a ela, porque o obrigaria a tomar uma decisão
que julga injusta, inadequada ou insensata”.53 Da mesma forma age
aquele que, para alcançar um resultado eqüitativo, força uma distinção
entre casos onde inexistem diferenças relevantes. Em ambas as hipó-
teses, a corte quer evitar, ao menos naquele caso concreto, uma deci-
são que considera injusta. Certamente que é mais fácil resolver uma
injustiça individual recorrendo a uma específica ficção legal ou se
valendo de tecnicidades para afastar a regra considerada insensata.
Essas soluções pontuais, entretanto, além de não resolverem o real pro-
blema ainda criam outros mais sérios, pois que cada caso julgado ad
hoc pode ser um potencial precedente para futuros casos. Um resulta-
do assim alcançado, embora possa servir a um determinado indivíduo,
é freqüentemente a origem de uma outra inerentemente má regra, que
no futuro deverá ser evitada pelas cortes através do recurso a outras
distinções arbitrárias ou outras ficções jurídicas, tornando o direito

292
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

incerto e injusto. Embora aqui ocorra um lento e gradual processo de


erosão da regra que acabará por ser completamente abandonada em
algum momento futuro, até que o seja, muitas injustiças terão sido cria-
das e alimentadas. O prospective overruling, quando presentes as con-
dições para sua aplicação, evita a passagem por esse longo e tormen-
toso sofrimento jurídico.
Essa técnica nem mesmo tem sabor de novidade no direito brasi-
leiro. Em agosto de 1999, no julgamento do inquérito no 687-454 o
Supremo Tribunal Federal cancelou sua súmula 394 que estendia o foro
de prerrogativa de função após a cessação de seu exercício desde que
o crime tivesse sido cometido durante o seu exercício, emprestando
efeitos futuros a sua decisão. Preocupado com a alteração de uma
orientação firmemente e por longo tempo consolidada no seio do Tri-
bunal e de suas conseqüências funestas caso à invalidação fosse atri-
buído efeitos ex tunc e, colimando tornar explícita a atribuição de efei-
tos ex nunc à decisão, assim se manifestou Ministro Néri da Silveira:

“É certo que o Supremo Tribunal Federal pode, como guardião


da Constituição, guarda da ordem jurídica, adotar uma decisão a
respeito dos casos concretos que estão em tramitação na Corte e,
com reflexo dessa decisão, relativamente a matérias similares em
que aplicável a súmula 394, em outras Cortes. ...Embora reconhe-
cendo que não subsiste a competência por prerrogativa de função,
após cessado o exercício do mandato ou de função, o Tribunal
firma, no tempo, essa decisão, segundo a qual, cuidando-se de
revogação de súmula, cumpre considerar como válidos os atos e
processos contra acusados por prática de crimes sujeitos ao foro
por prerrogativa de função, iniciados após a cessação do exercício,
não sendo, pois, nulos ab initio, eis que se trata, como disse aqui,
de interpretação de dispositivos da Constituição...
Embora, tecnicamente, tenha presente essa conseqüência,
penso que, diante do pronunciamento da maioria do Tribunal, já
constituída, a solução, que é antes de política judiciária, a Corte a
adota com a autoridade que tem, afirmando que a revogação opera
ex nunc e que a competência, inexistente segundo a Constituição,
há de ser considerada como subsistente até esta data, porque a
nossa interpretação é nesse sentido. Cessado o exercício do man-

293
Celso de Albuquerque Silva

dato ou do cargo, de acordo com a Constituição, não subsiste com-


petência da Corte por prerrogativa de função, para processar e jul-
gar esses titulares, por delitos praticados no exercício do cargo ou
mandato”.

Recentemente, o Ministro Gilmar Mendes ao declarar a inconstitu-


cionalidade do artigo 9o da Lei no 9.034/9555 e 594 do Código de
Processo Penal,56 que impedem o conhecimento do recurso de apelação
se o réu não se recolher à prisão, forte no artigo 27 da Lei no 9.868/99 e
tendo em vista razões de segurança jurídica, emprestou efeito ex nunc
a sua decisão, pois se estaria revisando jurisprudência firmada pelo
STF, amplamente divulgada e com inegáveis repercussões no plano
material e processual.
Este último caso, tanto quanto o referente ao cancelamento da
súmula no 394, são exemplos emblemáticos em que as exigências da
segurança jurídica e da justificada confiança indicam a necessidade de
uma aplicação prospectiva da nova regra jurídica firmada. Por mais de
três décadas a Suprema Corte reconheceu sem maiores divergências a
constitucionalidade da norma que exigia o prévio recolhimento à prisão
como condição recursal para o conhecimento do recurso de apelação.
Confiando nessa regra, os oficiais públicos encarregados da execução
da lei penal não conheceram dos recursos de apelação de réus foragi-
dos. Centenas, milhares de processos condenatórios transitaram em
julgado, resultando na prisão de um vasto número de criminosos.
Aplicar retroativamente a nova regra implicaria na imediata soltura de
dezenas de milhares de meliantes, reabertura de outra centena de
milhares de processos já definitivamente decididos, levantamento de
novos problemas, como por exemplo, o dever do Estado de indenizar
aqueles que eventualmente se sentirem prejudicados pelo não conhe-
cimento de seu recurso à época oportuna etc.; tudo em manifesto e evi-
dente prejuízo ao Estado e à Sociedade, cujos representantes legitima-
mente confiaram na aplicação dos efeitos da regra invalidada. Isso
também é manifestamente injusto.
Remarquem-se, ainda, os efeitos deletérios futuros para o ordena-
mento jurídico de uma aplicação retroativa nessas hipóteses. Os ofi-
ciais públicos, agora confrontados com a possibilidade de que leis con-

294
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

dicionando e limitando os direitos dos indivíduos para conformá-los


com o interesse público, embora mansa e pacificamente aplicadas pos-
sam ser declaradas retroativamente inválidas muitas décadas após,
anulando-se todos os processos judiciais nos quais foram aplicadas,
poderão tender a desafiar a todo instante a validade desses atos nor-
mativos, dando um valor quase absoluto aos direitos individuais em
prejuízo do interesse público. Por outro lado, um outro problema não
menos aflitivo se dá na hipótese oposta. Exatamente para evitar essa
circunstância de uma contínua e espraiada desconfiança sobre a vali-
dade dessas normas, com o caos e desagregação social que podem
decorrer desse estado de permanente incerteza, as cortes superiores,
preocupadas com a repercussão de suas decisões no seio da coletivida-
de podem optar por restringir o significado das garantias constitucio-
nais dos indivíduos que, em outras circunstâncias, tenderiam a
ampliar. O prospective overruling é instrumento adequado para obviar
esses inconvenientes gerados pela adoção pura e simples da invalida-
ção da regra antiga.
Em conclusão, pode-se afirmar que a técnica de prospective over-
ruling se presta tanto para mudanças atuais quanto futuras. Na verda-
de é uma técnica que cresce de importância à medida que as socieda-
des se tornam mais complexas e os problemas aumentam quantitativa
e qualitativamente. Ninguém precisa possuir o dom da profecia para
prever que mudanças ocorrerão em um futuro próximo. Qualquer solu-
ção legal adequada para lidar com a tendência do direito se tornar defa-
sado e obsoleto deve ser uma solução que possa funcionar adequada-
mente não só no presente quanto no futuro e o prospective overruling se
apresenta com credenciais para ser essa solução. Isso se torna eviden-
te, quando se reconhece que as cortes judiciais, para além da função de
resolver disputas, exercem de forma autônoma uma outra função social
não menos importante: a de criação e desenvolvimento do direito.

2.3. A técnica de sinalização/aviso (signaling/caveat)

Como uma espécie de refinamento da técnica do prospective over-


ruling, as cortes americanas desenvolveram um outro instrumental de
grande valia na árdua tarefa de, no desenvolvimento de criação judi-
cial, colimando obter o melhor dos dois mundos propiciados pelos
ideais da segurança jurídica e da justiça que em certas circunstâncias
podem ser antagônicos. É a técnica de sinalização ou aviso.

295
Celso de Albuquerque Silva

Essa técnica geralmente envolve uma decisão pela corte no caso


que lhe é posto concretamente para adjudicação com base na antiga
regra. Entretanto, após decidir o caso seguindo rígida e expressamen-
te o precedente, segue-se uma seção nos votos, na qual os juízes ex-
pressam sua opinião sobre a necessidade de se reexaminar a orienta-
ção seguida pela corte, quando o assunto for novamente trazido a sua
apreciação. Essa manifestação feita pela corte “não difere em forma ou
substância de uma regular decisão judicial”57e demonstra a prontidão
da corte para mudar sua opinião sobre a questão.
O “aviso”, portanto, é uma técnica pela qual a corte segue um pre-
cedente, ao mesmo tempo em que coloca a comunidade jurídica em
alerta sobre o fato de que aquele precedente já não é mais confiável.
Pelo uso da sinalização, a corte “pavimenta o caminho para invalidar
uma doutrina que, de outro modo, teria que ser preservada em razão de
uma justificada confiança nela depositada”.58 Após o aviso, porém, ne-
nhuma confiança, ao menos justificada, pode ser utilizada como argu-
mento para manutenção da doutrina, tanto que, muitas vezes, quando
a antiga regra é invalidada, não é incomum que as cortes façam retroa-
gir sua decisão até a data em que houve a sinalização, pois a partir daí,
não se justificaria mais a confiança na regra.
Essa técnica permite às cortes afastar o natural incômodo de inva-
lidar no caso concreto a regra antiga a ainda assim reputá-la válida
para o caso, sem que as vantagens do puro prospective overruling
sejam afetadas. Na verdade, a sinalização em parte se assemelha ao
prospective overruling no qual se fixa uma data futura para que a regra
antiga perca validade em favor da estabelecida na decisão invalidató-
ria. Dele se difere apenas porque no aviso a data futura depende de
uma condição, uma outra ação judicial que discuta o mesmo assunto,
cuja data não pode ser precisada, como ocorre na fixação, na decisão,
de um termo no qual se extinguirá a validade da regra antiga.

2.4. Invalidação parcial da regra (Overriding)

O overriding ocorre quando a corte reduz o âmbito de uma doutri-


na anteriormente estabelecida em favor de uma regra ou princípio legal
que surgiu depois que a antiga doutrina foi estabelecida.59 Até agosto

296
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

de 1999, o Supremo Tribunal Federal se considerava competente para


processar as autoridades destinatárias do foro especial de prerrogativa
de função, no exercício dessa função ou mesmo que já cessado o exer-
cício funcional desde que o crime em questão tivesse sido praticado
durante o exercício funcional. No inquérito 687-4, o STF limitou essa
regra e se considerou competente para processar apenas os exercentes
de cargo ou função pública em razão dos quais se lhes confere o foro
especial, limitando sua centenária interpretação ampliativa de sua
competência constitucional. A modificação da vetusta orientação
decorreu do fato de que “a tese consubstanciada na súmula 394 não se
refletiu na Constituição de 1988”,60 pois “as prerrogativas de foro, pelo
privilégio que de certa forma conferem, não devem ser interpretadas
ampliativamente numa Constituição que pretenda tratar igualmente os
cidadãos comuns e não se coadunam com os princípios republicanos e
democráticos”.61 Em síntese, a limitação da anterior doutrina ampliati-
va decorreu do desenvolvimento dos princípios jurídicos existentes há
época de seu estabelecimento, em virtude da promulgação da Consti-
tuição Federal de 1988, alcunhada pelo saudoso Ulisses Guimarães de
“Constituição Cidadã”.
Na teoria, o overriding nada mais seria do que um caso de uma revo-
gação parcial de uma doutrina precedente geral, em virtude de uma
norma especial superveniente que afastaria de forma limitada, através
de uma distinção consistente, o âmbito de aplicação da doutrina vincu-
lante. Nessa hipótese, a corte lida com um tipo de situação que não esta-
va envolvida nos precedentes que estabeleceram a doutrina anterior e,
assim, conclui que dado o desenvolvimento ulterior do ordenamento jurí-
dico que justificava a doutrina anterior, a situação sob análise deve ser
separada para um tratamento diferenciado sob a nova regra. Na prática,
porém, quando a corte revoga parcialmente uma doutrina precedente,
freqüentemente lida com os mesmos tipos de situações que estavam en-
volvidas nos precedentes.62 A questão sobre o poder investigatório dos
membros do Ministério Público atualmente em franca discussão no seio
do Supremo Tribunal Federal, bem poderia exemplificar essa hipótese.
No RE 233.072-4/RJ,63 a segunda turma do STF decidiu por maio-
ria de votos que o Ministério Público não tem, sob o argumento de pos-

297
Celso de Albuquerque Silva

suir atribuição para expedir notificações nos seus procedimentos admi-


nistrativos, competência para promover inquérito penal. No recurso
ordinário em habeas corpus no 81.326-7/DF64 a segunda turma explici-
tou melhor a questão. Cuidava a hipótese de habeas corpus impetrado
contra membro do Ministério Público Federal que, para instrução de
“procedimento administrativo investigatório supletivo” que tinha por
finalidade apurar fato não esclarecido que, em tese, configuraria crime,
notificara Delegado de Polícia a fim de prestar esclarecimentos. A
Turma, à unanimidade, decidiu que o Ministério Público não tem legi-
timidade para realizar diretamente diligências investigatórias aos
seguintes fundamentos: a)a legitimidade histórica para condução do
inquérito policial e realização de diligências investigatórias é de atri-
buição exclusiva da polícia; b) a questão foi novamente debatida na
Constituinte de 1988; c) a Constituição dotou o Ministério Público do
poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de
inquérito policial, mas a norma constitucional do artigo 129, VIII, não
contemplou a possibilidade do parquet realizar e presidir inquérito
policial; d) não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente
pessoas suspeitas de autoria de crimes. A regra, portanto, extraída da
fundamentação do acórdão é que, por determinação constitucional, a
legitimidade para a realização de diligências investigatórias relativas a
crimes é exclusiva da polícia judiciária.
No julgamento do HC no 83.157-5,65 a mesma Turma estabeleceu
uma distinção, limitando a regra anterior para considerar legítima a
oitiva de testemunha diretamente pelo membro ministerial. O ministro
Carlos Velloso consignou seu entendimento sobre a legalidade de cer-
tos procedimentos investigatórios serem realizados pelo membro do
ministério público. Assim se expressou o eminente ministro:

“...quero deixar expresso no sentido de que não considero ile-


gal o fato de a testemunha ter prestado seu depoimento perante o
Procurador da República, perante o Membro do Ministério Público.
Aliás, é do Ministro Sepúlveda Pertence este exemplo dado a
pouco, quando comentávamos a questão: se o agente do Ministé-
rio Público recebe uma carta relatando fatos delituosos relativa-
mente a uma certa pessoa, é claro que essa carta vai valer. Agora,

298
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

por que não vale o depoimento prestado a ele, agente do Ministé-


rio Público? Quero fazer uma ressalva, porque sou um dos que, na
Segunda Turma, sustenta, não obstante as altas funções do Minis-
tério Público, a sua importância no contexto social, que as investi-
gações correm por conta da polícia. É o que está na Constituição,
art. 144, § 1o, I, § 4o, art. 129, VIII. Não chego a impedir, entretan-
to, que o Ministério Público, em certos casos como este, tome o
depoimento de alguém, enfim, oriente as provas em que ele vai se
basear para oferecer a denúncia, instaurar a ação penal da qual ele
é o titular.”(g.n.)

Em outra oportunidade, a segunda turma, à unanimidade, reco-


nheceu no HC 82.865-GO (14.10.2003),66 a legalidade de denúncia ofe-
recida pelo Ministério Público pela prática de crimes de abuso sexual
contra menores, fundada exclusivamente em sindicância instaurada
pelo órgão ministerial com base no artigo 201, VII, do Estatuto da
Criança e do Adolescente, que autoriza ao membro do Ministério
Público instaurar sindicâncias, requisitar diligências investigatórias e
determinar a instauração de inquérito policial para apuração de crimes
contra menores e, assim, indeferiu a ordem que pretendia o trancamen-
to de duas ações penais instauradas contra o diretor de entidade de
amparo a menores, sob a alegação de usurpação, pelo Ministério
Público, de atribuições da polícia judiciária. Consta da ementa:

“HABEAS CORPUS. ABUSO SEXUAL CONTRA MENOR.


LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO PARA INSTAURAR
SINDICÂNCIA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
(ECA).
O Ministério Público tem legitimidade para instaurar sindi-
cância para a apuração de crimes previstos no Estatuto da Criança
e do Adolescente (art. 201, inciso VII, da Lei 8.069/90).
Além da competência que lhe atribui o ECA, é pacífico o
entendimento desta Corte de que o Ministério Público não neces-
sita de inquérito policial para instaurar ação penal.
Caso que não se confunde com o RHC 81.326 que tratava de
falta de legitimidade do Parquet para presidir ou desenvolver dili-
gências pertinentes a inquérito policial.

299
Celso de Albuquerque Silva

A questão relativa à infância e à juventude é regulada por lei


especial que tem previsão específica (Lei 8.069/90)
Habeas corpus indeferido.”

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu


que, quando exigido por interesses públicos ou sociais, tais como
quando seja necessário investigar a prática de crimes praticados por
autoridade policial no exercício de sua função, notadamente quando
atentatórios à dignidade da pessoa e aos direitos humanos, deve ser
reconhecida a legitimidade do Ministério Público para proceder direta-
mente diligências investigatórias para apuração dessas condutas.67
Em todas essas exceções, que de um modo ou de outro limitam e
restringem a doutrina geral que considera interdito a investigação dire-
ta por parte do Ministério Público, as questões nelas tratadas já tinham
sido objeto de apreciação pela corte quando estabeleceu a doutrina
anterior, agora objeto de parcial revogação (overriding). A impossibili-
dade de oitiva direta de testemunha ou suspeito por membro do
Ministério Público foi expressamente tratada tanto no RE 233.072-4/RJ,
quanto no recurso ordinário em habeas corpus no 81.326-7/DF. A distin-
ção feita no HC no 83.157-5, reconhecendo a legitimidade dessa condu-
ta é inconsistente, pois não existiam diferenças relevantes entre os
casos e não decorreu de nenhum desenvolvimento do direito posterior.
A decisão proferida no HC 82.865-GO é emblemática. Cuidava a
hipótese de sindicância instaurada pelo Ministério Público para apurar
a possível prática de crime de abuso sexual contra menor. O próprio
Ministério Público realizou as diligências investigatórias pertinentes,
instruiu o procedimento administrativo e, na esfera penal, denunciou o
acusado como incurso nas penas dos artigos 214 c/c 224, “a”, do CP e
artigos 232 e 243 do ECA. A denúncia foi recebida, tendo sido impetra-
do HC perante o Tribunal de Justiça, a final indeferido. Inconformado,
o paciente impetrou novo HC agora perante o Supremo Tribunal
Federal. A 2a Turma indeferiu a ordem aos seguintes fundamentos: a) a
hipótese não se confunde com o precedente do RHC 81.326 trazido
como paradigma; b) a questão é relativa à infância e juventude regula-
da por lei especial; c) a sindicância resistida na impetração é prevista
no ECA e o Ministério Público tem legitimidade para instaurá-la (art.
201, VII). A distinção, portanto, seria a existência de uma lei especial,
excluindo a hipótese da regra geral firmada no precedente citado.

300
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Ocorre que o artigo 201, VII, do Estatuto da Criança e do Adoles-


cente é uma réplica quase fiel do artigo 129, VI e VIII da Constituição
Federal, expressamente analisado nos precedentes contrários. Enquan-
to o ECA autoriza o Ministério Público a instaurar sindicâncias, requi-
sitar diligências investigatórias e determinar a instauração de inquéri-
to policial para a apuração de ilícitos contra menores, a Constituição
autoriza expedir notificações nos procedimentos de sua competência,
requisitar informações e documentos para instruí-los, requisitar dili-
gências investigatórias e a instauração de inquérito policial.
Ademais, o ECA é anterior à decisão que estabeleceu a doutrina,
também não representando nenhuma inovação jurídica que justificas-
se a aplicação do overriding em seu sentido clássico. Por último, ainda
que o ECA fosse posterior, a doutrina, ao menos como estabelecida no
HC no 81.326-7, possuiria raízes constitucionais não podendo ser revo-
gada, mesmo que parcialmente, por lei ordinária.
Por outro lado, não se pode distinguir esse caso com base na cir-
cunstância de que o Ministério Público teria competência para instau-
rar sindicâncias ou procedimentos administrativos apenas para apurar
infrações civis e administrativas e, em assim agindo, ao se defrontar
com elementos indiciários de crimes, poderia oferecer denúncia, pois
não está adstrito à existência de inquérito policial. Primeiro, a exceção
do HC 82.865-GO lida com sindicância para apuração de crimes e não
de ilícitos administrativos. Segundo, se essa tese fosse acolhida, a dou-
trina firmada no precedente seria inexeqüível e por isso deveria ser
abandonada. De fato, em praticamente todas as hipóteses de crimes
contra a Administração Pública, o Ministério Público poderia licitamen-
te promover diligências investigatórias na seara administrativa, onde
inevitavelmente, dada a unicidade dos fatos delituosos, obteria, via
investigação administrativa direta e legal, os elementos necessários
para a denúncia criminal, restando impossível de ser praticamente exe-
cutada a regra que afirma a inidoneidade dessas investigações quan-
do feitas diretamente por membro do Parquet.
Semelhantemente, todas essas observações se aplicam integral-
mente à decisão que excepciona da doutrina anterior os crimes prati-
cados por policiais ou contra os direitos humanos, na medida em que,
se a legitimidade para realizar diligências investigatórias é exclusiva
da polícia judiciária por determinação constitucional e não houve, em
se tratando de crimes contra os direitos humanos ou àqueles pratica-
dos por agentes policiais, qualquer alteração jurídica subseqüente que
introduzisse um novo regramento legal quanto ao tema, essa parcial

301
Celso de Albuquerque Silva

revogação da doutrina retoma novamente o aspecto subjacente à pri-


meira decisão sobre a conveniência social de se interpretar a
Constituição como tendo ou não outorgado esses poderes instrumen-
tais ao Ministério Público para que ele possa bem cumprir com suas
funções constitucionais de defesa dos interesses da sociedade .
Na verdade, o overriding é muitas vezes utilizado como um lento e
gradual processo de abandono da doutrina através da elaboração de
uma série de distinções arbitrárias, ou seja, distinções que são incon-
sistentes com a doutrina formulada dadas as proposições sociais que
deram origem à regra distinguida. Esse processo de declínio da regra
pode, por vezes, se iniciar imediatamente após sua proclamação e
entre o seu estabelecimento e seu completo abandono, uma plêiade de
casos intermediários contribui, cada um de um pequeno modo, para a
completa desintegração da antiga regra.68
É certo que essas exceções implicam em uma inconsistência sis-
têmica da regra, o que não é um atributo desejável do princípio da rule
of law. Em termos teóricos, portanto, essa não seria a melhor forma de
promover o desenvolvimento do direito. Entretanto, muitas vezes a
corte cria uma regra judicial e posteriormente verifica que essa regra
não possui congruência social. Essa percepção, porém, não é absoluta
e indisputável a ponto da corte decidir pelo imediato abandono da
norma. Nessas circunstâncias, a corte acredita que a norma parece não
responder aos anseios da sociedade, mas não está plenamente confian-
te de que essa crença está correta. Como um completo abandono é uma
decisão final e definitiva, se a corte invalidar totalmente a doutrina e
depois verificar que sua sensibilidade quanto à falta de congruência
social da norma estava incorreta, isso implicaria em um grave prejuízo
para princípio da estabilidade da doutrina judicial e aparência do direi-
to, fonte da qual muito se nutre a legitimidade das decisões desse
poder. Nessas circunstâncias, a corte pode corretamente formular
diversas distinções inconsistentes e assim permitir um amplo debate
sobre a correção da regra. As discussões doutrinárias que necessaria-
mente decorrerão desse processo transitório inicialmente confuso e
inconsistente ajudarão a clarificar a provisória visão da corte sobre a
regra, possibilitando, no decorrer do tempo, um paulatino ajustamento
da regra até capacitá-la a de forma segura promover sua completa

302
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

invalidação.69 Esse é um custo que, em algumas situações, tem que ser


suportado como contrapartida dos inegáveis e imprescindíveis benefí-
cios gerados pelo reconhecimento das cortes judiciárias como fontes
de produção normativa.

3. Anotações sobre a compatibilidade do overruling e


overriding e a doutrina do efeito vinculante

Em virtude do reconhecimento das cortes como fonte de produção


normativa e da superação da visão clássica de que elas apenas desco-
brem o direito, foi possível afastar a visão de que qualquer modificação
na doutrina vinculante representava um abrupto rompimento com a
idéia pretérita sobre o que o direito significava, sendo o abandono da
doutrina reputado como uma revolucionária mudança de curso no pre-
sente com a finalidade de corrigir um erro cometido no passado, mo-
delo no qual, tanto o overruling quanto o overriding eram vistos como
antitéticos a uma doutrina de eficácia vinculante.
Modernamente, a modificação da doutrina vinculante é vista como
um aprimoramento do pensamento jurídico passado para adequá-lo ao
desenvolvimento social. Dentro dessa ótica, a invalidação parcial ou
total de uma doutrina vinculante é considerada como um instrumental
intrasistêmico para assegurar a necessária flexibilidade ao ordenamen-
to jurídico. Overruling e overriding entendidos como soluções sistêmi-
cas para evitar a petrificação do direito, fazem parte e complementam
a idéia de uma doutrina vinculante.
Nesse sentido, como processo decisório, tanto o overruling quanto
o overriding não se distinguem em essência das demais decisões judi-
ciais. A uma, porque envolvem uma relação móvel entre os padrões de
coerência social do direito, consistência sistêmica do ordenamento jurí-
dico e estabilidade nas decisões judiciais. A duas, porque esse proces-
so de mudança também é regido por princípios institucionais, a saber:
i) A doutrina vinculante deve ser invalidada se não satisfaz mais as exi-
gências de congruência social e consistência sistêmica e os valores que
legitimam o efeito vinculante, tais como proteção de justificável confian-
ça, defesa contra injusta surpresa, previsibilidade, isonomia, etc., não
são melhor servidos pela sua preservação do que pela sua invalidação;
ii) quando a doutrina perder sua coerência social e consistência sistêmi-

303
Celso de Albuquerque Silva

ca, mas existir uma justificada confiança na aplicação de seus efeitos, a


doutrina só deve ser abandonada se, e somente se, as vantagens de tor-
nar a regra socialmente coerente e sistematicamente consistente, supe-
rarem o desvalor moral de não se observarem os valores que legitimam
a estabilidade das decisões judiciais e o efeito vinculante.
Adotados e observados esses princípios institucionais que regem
as decisões que abandonam ou modificam a doutrina vinculante, tanto
o overruling quanto o overriding podem servir os valores que subjazem
os padrões da estabilidade doutrinária e o princípio do stare decisis tão
bem ou melhor que a sua preservação. Nesse sentido, os princípios do
overruling e stare decisis não são inerentemente opostos.70

304
Considerações Finais

À guisa de uma preliminar conclusão, permitimo-nos levantar algu-


mas teses relacionadas ao tema “efeito vinculante” e que sintetizam as
idéias essenciais enunciadas no presente trabalho, com o único escopo
de fomentar uma discussão mais aprofundada sobre seu conteúdo.
Em termos axiológicos, o efeito vinculante é legitimado pelos prin-
cípios constitucionais da igualdade, da legalidade e da democracia;
O princípio da isonomia, ao concretizar a regra de justiça de que
casos iguais devem ser destinatários de tratamento idêntico, aponta
para uma necessidade de coerência do sistema jurídico, coerência essa
que se estende também às decisões judiciais. Essa exigência de coe-
rência se manifesta bifronte abrangendo tanto decisões concomitantes
quanto decisões separadas por lapso temporal. Essa segunda exigên-
cia de coerência – entre decisões pretéritas e futuras – é a base legiti-
madora do efeito vinculante.
O princípio da legalidade enuncia a opção coletiva de substituição
do governo dos homens (rule of men) pelo governo das leis (rule of law)
que impõe integral obediência de todos os poderes do Estado ao direi-
to. Os valores da obediência a regras legais podem assim ser sintetiza-
dos: maximiza a liberdade ao tornar previsíveis as conseqüências
legais na sua aplicação aos comportamentos dos cidadãos, permitindo-
lhes planejar seu futuro; maximiza a justiça substancial por não frustrar
a confiança dos cidadãos na história institucional pretérita e possibili-
ta um ganho de igualdade ao conferir o mesmo resultado a questões
envolvendo um grande número. Previsibilidade, cálculo dos efeitos,
segurança jurídica e uniformidade são classicamente vantagens decor-
rentes do respeito ao princípio da legalidade que justificam a adoção
do efeito vinculante.
O direito é uma empresa eminentemente interpretativa. Por esse
motivo, força é concluir que as Cortes Judiciárias exercem dois papéis
fundamentais nas modernas sociedades: o de resolver litígios concre-
tos que se volta para as partes e para o passado e o de complementar
e desenvolver o direito legislado que se volta para a coletividade e para
o futuro, o que impõe o reconhecimento do Poder Judiciário como uma
fonte de produção normativa.

305
Celso de Albuquerque Silva

O reconhecimento dessa função criativa do Poder Judiciário traz


um correlato dever de pretensão de correção das decisões judiciais
que, por tal razão, devem ser justificadas de forma argumentativa e
racional. Essa característica permite afirmar que, embora não seja pos-
sível estabelecer-se um procedimento que assegure de forma absoluta,
verdadeira e inconteste a existência de uma única decisão correta, o
sistema aponta para uma idéia regulativa da existência de uma única
decisão correta, a fim de assegurar consistência à ordem jurídica.
A idéia regulativa da única decisão correta além de ser inferida da
exigência de pretensão de correção dos discursos jurídicos é facilmen-
te assimilável quando se reconhece o poder normativo dos tribunais. É
que, se o direito é algo imutável, verdadeiro e externo a sua interpreta-
ção, qualquer corte, inclusive, uma superior pode errar ao tentar “des-
cobrir” esse direito, porém, se o direito é uma empresa interpretativa e
criadora, nenhuma corte pode errar em criar o direito. Como o sistema
coloca em sua cúspide as cortes superiores, ao poder de criação do
direito a elas conferido deve ser reconhecida uma maior autoridade e,
portanto, o poder de vincular as cortes inferiores. Sendo reconhecido,
dentro dos limites do sistema jurídico, poder normativo às cortes, cur-
ial a conclusão de que as cortes superiores podem legislar para as cor-
tes inferiores através do “efeito vinculante”.
Em termos regulativos, as decisões da cortes superiores devem
ser consideradas como se fossem as únicas corretas. Como conseqüên-
cia, decisão de corte inferior transitada em julgado que contrarie enten-
dimento pacificado no seio dos Tribunais Superiores deve se sujeitar ao
juízo revisional, como já acontece com relação às decisões do Supremo
Tribunal Federal.
O princípio democrático importa no reconhecimento da suprema-
cia do Poder Legislativo para a elaboração das diretrizes políticas a
serem desenvolvidas e implementadas com o objetivo de assegurar a
boa vida dos cidadãos, através de uma melhoria nas condições econô-
micas, sociais ou mesmo políticas da comunidade, em razão do princí-
pio da maioria decorrente da forma representativa de sua estruturação.
A adoção do efeito vinculante presta respeito ao princípio da maioria,
ao capacitar o judiciário a resistir à tentação de repetidamente “legis-
lar” ainda que para o caso concreto, quanto a questões em que existem
sérias divergências na comunidade sobre o que é melhor para ela. O
judiciário vinculando-se a uma determinada interpretação sobre tais
temais, de um lado impede que o Legislativo se demita dessa sua fun-
ção essencial e, de outro, possibilita à coletividade que inste os seus

306
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

representantes legitimamente eleitos a corrigir qualquer interpretação


judicial porventura incorreta ou inconveniente. O efeito vinculante, por-
tanto, atua como um autocontrole da função normativa dos tribunais
(judicial self-restraint) e reduz o impacto de uma possível arbitrarieda-
de judicial no manejo desse poder criativo que deve se submeter, tanto
qualitativa quanto quantitativamente, ao poder normativo do Poder
Legislativo.
O efeito vinculante não ofende a independência judicial, represen-
tando apenas um limite substancial quanto ao conteúdo possível do
provimento jurisdicional das cortes superiores, limite esse compatível
com a democracia quando imposto pelo legislador democrático.
O modelo de vinculação a que as cortes devem se submeter é o
modelo normativo. Esse é um modelo formal que parte da premissa de
que os tribunais ao decidirem uma causa, não se limitam a proteger os
interesses subjetivos das partes, mas também estabelecem pautas
gerais e abstratas de condutas para que os membros da coletividade
tenham liberdade e segurança para organizar sua vida em sociedade e
postular os direitos que o ordenamento jurídico lhes confere.
No modelo normativo os tribunais quando decidem uma questão
buscam estabelecer uma regra geral e abstrata que abarque uma clas-
se completa de assuntos, da qual os fatos do caso concreto representam
apenas uma das hipóteses possíveis. Assim, o holding da decisão que
irá vincular as cortes subseqüentes é extraído não só do dispositivo da
decisão precedente, mas também dos seus fundamentos justificantes.
A adoção do modelo normativo de vinculação impõe o dever de
todos os órgãos sujeitos ao poder vinculante do tribunal de observar e
executar o julgado tenham ou não integrado o processo no qual foi pro-
ferida a decisão, além de estarem vinculados, em suas condutas futu-
ras, pela orientação estabelecida pelo Tribunal nas razões por ele ofe-
recidas para justificar sua decisão.
Em sede de controle de constitucionalidade, dada a insustentável
tensão de resultados contraditórios que podem vir a surgir de uma apli-
cação concomitante dos sistemas concentrado e difuso de controle da
constitucionalidade, havendo manifestação do STF pelo deferimento ou
indeferimento de medida cautelar em processo concentrado, devem ser
suspensos todos os demais processos que, em controle difuso, depen-
dam da declaração da constitucionalidade ou inconstitucionalidade da
norma objeto de aferição objetiva.
No que se refere ao Poder Judiciário, o modelo normativo se sub-
divide em normativo forte e normativo fraco. O modelo normativo for-

307
Celso de Albuquerque Silva

te se aplica no âmbito dos tribunais inferiores e o modelo normativo


fraco se aplica no âmbito dos tribunais superiores.
No modelo normativo forte os órgãos vinculados não podem limi-
tar, restringir ou revogar o princípio formulado no caso precedente, ao
qual devem estrita e rigorosa obediência, ressalvadas raras hipóteses
em que podem se valer da técnica da distinção (distinguish).
As exceções em que, atuando sob o modelo normativo forte, a cor-
te vinculada pode fazer distinções, temperando e flexibilizando a apli-
cação da regra estabelecida no precedente vinculante são as seguin-
tes: a) quando houver concorrência com outras regras derivadas de
outros precedentes vinculantes ainda válidos; b) quando a regra se ba-
seou em um claro e inadvertido erro; c) quando a corte vinculada se
defrontar com situações com a corte vinculante claramente não queria
abranger quando estabeleceu a regra; d) quando houver desenvolvi-
mento posterior do direito. Essas exceções são compatíveis com o
modelo normativo forte porque são razões que permitem ao juiz se
afastar da literalidade de um texto legislativo sem incidir em violação
de seu conteúdo.
O modelo normativo fraco, que se aplica no âmbito dos tribunais
superiores, permite que essas cortes modifiquem ou revoguem seus
precedentes se razões suficientemente fortes demonstrarem a necessi-
dade dessas decisões serem adequadas à realidade social que subjaz
ao direito, desobrigando essas cortes que são as definidoras da doutri-
na vinculante de sustentarem teses que julga errôneas ou obsoletas. A
vinculação no modelo fraco estabelece uma obrigação condicional das
cortes superiores seguirem seus próprios precedentes, sempre que não
existam razões substantivas fortes que superem, em um delicado exer-
cício de ponderação, aos valores da segurança jurídica e isonomia.
Em virtude da vinculação das cortes aos seus próprios preceden-
tes, a mudança na doutrina vinculante é governada por dois princípios
institucionais: a) a doutrina deve ser invalidada se não satisfaz as exi-
gências de congruência social e consistência sistêmica e os valores que
legitimam o efeito vinculante, tais como proteção de justiçada confian-
ça, defesa contra injusta surpresa, previsibilidade, isonomia etc., não
são melhor servidos pela sua preservação do que pela sua invalidação;
b) quando a doutrina perder sua coerência social e sua consistência sis-
têmica, mas existir uma justificada confiança na aplicação de seus efei-
tos, a doutrina só deve ser abandonada se, e somente se, as vantagens
de tornar a regra socialmente coerente e sistematicamente consistente,

308
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

superarem o desvalor moral de não se observarem os valores que legiti-


mam a estabilidade das decisões judiciais e o efeito vinculante.
Aplicando-se esses princípios pode-se afirmar que a simples
mudança da composição da corte não é razão suficiente forte para se
abandonar a doutrina vinculante. Por outro lado, são razões que autori-
zam o abandono: a) doutrina é obsoleta e está desfigurada por arbitrá-
rias distinções; b) a doutrina é considerada atualmente como plena e
substancialmente injusta e/ou incorreta; c) a doutrina é inexeqüível em
sua aplicação prática.
Na hipótese de perda de coerência social e consistência sistêmica
da doutrina, mas existir ainda justificada confiança na aplicação de
seus efeitos, as cortes podem se valer da invalidação para o futuro
(prospective overruling) ou da técnica de sinalização, que informa a
comunidade jurídica acerca da intenção da corte de mudar sua doutri-
na, o que afasta, a partir do aviso, a justificada confiança na sua apli-
cação, abrindo caminho para seu abandono.
O prospective overruling deve ser governado por dois princípios
básicos: a) como ele introduz um tratamento diferenciado entre os
eventos ocorridos antes ou depois da decisão, a data crítica para o tra-
tamento diferenciado deve ser a data da decisão que invalidou o prece-
dente ou uma data posterior a essa decisão, b) as partes da lide na qual
a regra antiga foi invalidada estão litigando sobre fatos que ocorreram
antes da decisão, logo a regra antiga deve ser aplicada a eles. Em sín-
tese, a nova regra só deve ser aplicada a fatos que ocorreram após a
invalidação da regra antiga.
A regra pode ser invalidada parcialmente em virtude de uma
norma especial superveniente que afasta de forma limitada a doutrina
geral através de uma distinção consistente. É o chamado overriding.
Na prática, porém, o overriding tem sido utilizado como um lento e gra-
dual abandono da doutrina vinculante através da elaboração de inúme-
ras distinções arbitrárias que culminam por tornar completamente des-
figurada a doutrina original, pavimentando o caminho para o seu com-
pleto abandono.
Em síntese, adotadas as premissas acima deduzidas, pode-se
inferir que o efeito vinculante, se corretamente compreendido e aplica-
do, pode se revelar um eficaz instrumento de desenvolvimento de
nosso ordenamento jurídico e aprimoramento do exercício da função
jurisdicional.

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2 Dworkin, Ronald.“Los Derechos en Sério”. Editora Ariel S.A., 1989, p. 215.
3 Rawls, John. “O Liberalismo Político”, editora Ática, 2000, p. 179.
4 Rawls, John. “Uma Teoria...”, cit., p. 29.
5 Apud Finley, M.I. “O Legado da Grécia – Uma Nova Avaliação”. Editora UNB, 1998, p. 31.
6 Para um breve resumo dos diversos standards defendidos como adequados para fins de
concepção de igualdade assim expõe Norberto Bobbio: “...As perguntas às quais é pre-
ciso oferecer uma resposta exata se não quisermos que a invocação da igualdade seja
um flatus vocis, são as duas seguintes: a) igualdade entre quem? b) igualdade com rela-
ção a que coisas? Uma vez feitas essas duas perguntas, e limitando a especificação... ao
par todo-parte, são possíveis quatro respostas: 1) Igualdade de alguns em alguma coisa
2) Igualdade de alguns em tudo 3) Igualdade de todos em alguma coisa 4) Igualdade de
todos em tudo”(Teoria Geral da Política, Ed. Campus, 2000, p. 298).
7 Cf. Alexy, Robert. “Teoria de Los Derechos Fundamentales”. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 384.
8 Cf. Rawls, John. “Uma Teoria...”, cit. especialmente pp. 77 e 84 e ss.
9 Alexy, Robert. “Teoria de Los Derechos Fundamentales”. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1997, p. 387.
10 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, pp. 94-95.
11 Alexy, Robert. “Teoria de Los Derechos....”, cit., p. 391.
12 Silva, Celso de Albuquerque, “Interpretação Constitucional ...”, cit., p. 95.
13 Alexy, Robert. “Teoria de Los Derechos....”, p. 388.
14 Western, Peter. “Speaking of Equality”. New Jersey: Princeton University Press, 1990, p. 181.
15 Vide súmula 339 do STF.
16 Mendes, Gilmar Ferreira. “Jurisdição Constitucional”. Saraiva, 1996, p. 207.
17 Aristóteles. “Ética a Nicômaco”, vol. V, 1131a 10-25, Ed. Martin Claret, 2001.
18 Rawls, John. “Uma teoria da Justiça”, cit., pp. 66 e 191 e ss.
19 Vásquez, Adolfo Sanchez. “Ética”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 20a ed., 2000,
pp. 246-248.
20 Idem, pp. 248 e 253 e ss.
21 Rawls, “Uma teoria da Justiça...”, cit., pp. 52 e ss; Nino, Carlos Santiago. “Ética y De-
rechos Humanos”. Buenos Aires: Editorial Astrea, 1989, pp. 91-128.
22 Rawls, John, “Uma teoria ...”, cit., p. 38.
23 Rawls, John, “Uma teoria ...”, cit., p. 121.
24 Rawls, “Uma teoria ...”, cit., p. 112.
25 Rawls, “Uma teoria ...”, cit., p. 76.
26 Rawls, “Uma teoria ...”, cit., p. 78.
27 Rawls, “Uma teoria ...”, cit., p. 38.
28 A teoria emotivista sustenta que nos juízos morais nada se afirma sobre fatos, qualida-
des ou propriedades objetivas, mas apenas se expressa uma atitude emocional do sujei-
to com relação ao objeto. É, portanto, uma teoria subjetivista. Sobre a teoria emotivista
e seus principais defensores veja-se Adolfo Sanches Vázquez, “Ética”, Civilização Brasi-
leira, 2000, pp. 242-245.
29 Vázquez, Adolfo Sanchez, “Ética”, Civilização Brasileira, 2000, pp. 143-144.
30 Dworkin, Ronald. “Los Derechos ...”, cit., p. 247.
31 Rawls, “Uma teoria...”, pp. 54-55.

320
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

32 Berlin. Isaiah. “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”. Brasília: Editora Universidade de


Brasília, 1981, p. 142.
33 Rawls, “Uma teoria...”, p. 168.
34 Dworkin, “Los Derechos...”, p. 270.
35 Rawls, John. “O Liberalismo Político”. São Paulo: Editora Ática, 2000, p. 345.
36 Rawls, “Uma teoria...”, cit., p. 38.
37 Nino, Carlos Santiago. “Ética y Derechos Humanos”. Buenos Aires: Editora Astrea, 1989,
p. 106.
38 Nino, “Ética...”, p. 106.
39 Dworkin, Ronald, “Los Derechos em Sério ...”, cit., p. 250.
40 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”, cit., p. 40.
41 Larenz, Karl. “Metodologia da Ciência do Direito”. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 1997, p. 166.
42 Atienza, Manuel. “As Razões do Direito – Teorias da Argumentação Jurídica”. São Paulo:
Landy Livraria e Editora, 2000, pp. 81 a 213; Larenz, ob. cit., pp. 167 e ss.
43 Coelho, Inocêncio Mártires. “Interpretação Constitucional”. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris Editor, 1997, p. 49.
44 CPC arts. 102 a 106.
45 Dworkin, Ronald. “O Império do Direito”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 163-164.
46 Evidentemente, que o requisito de simultaneidade temporal e pessoal não é necessário.
Aqui se utiliza desse expediente para deixar mais claro o raciocínio.
47 Pawlowski, H. M. apud Larenz, “Metodologia ...”, cit., p. 223.
48 Alexy, Robert. “Teoria da Argumentação Jurídica”. Landy Editora, 2001, p. 21.
49 Larenz, Karl, “Metodologia da Ciência do Direito”, Fundação Calouste Gulbekian,
1997, p. 165.
50 Vázques, Adolfo Sanchez, “Ética ...”, cit., pp. 249-250.
51 Perelman, Chaïm. “Lógica Jurídica”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 137.
52 Larenz, Karl, “Metodologia...”, cit., p. 167.
53 Dworkin, “Los Derechos...”, cit., p. 256.
54 Alexy, Robert. “La Idea de Una Teoria Procesal de La Argumentação Jurídica”, in:
Derecho Y razón Prática, Distribuiciones Fontamara S.A., México, 1993, p. 60.
55 Idem, p. 60.
56 Idem, p. 67.
57 Perelman, Chaïm. “Tratado de Argumentação Jurídica”. Martins Fontes, 2000, pp. 34-39.
58 Perelman. “Lógica Jurídica”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 223.
59 Sobre uma formulação de regras do discurso jurídico, veja-se Robert Alexy, “Teoria da
Argumentação Jurídica”, cit., pp. 179-240.
60 Alexy, Robert. “La Idea de Una Teoria Procesal de La Argumentação Jurídica”, in: Derecho
y razón Prática, Distribuiciones Fontamara S.A., México, 1993, pp. 67-68.
61 Dworkin, “Los Derechos...”, p. 185.
62 Perelman, Chaïm, “Tratado da Argumentação...”, cit., p. 248.
63 Macey R. Jonathan. “The internal and External Costs and Benefits of Stare Decisis”, in:
Chicago Law Review, vol. 65:93 – 1989.
64 Gomes, Luiz Flávio. “Súmulas Vincunlantes e Independência Judicial”, in: Revista dos
Tribunais, 739, maio de 1997, p. 25.
65 Garcia, Henrique Alonso. “La Interpretacion de La Constitucion”. Centro de Estudios
Constitucionales, Madrid, 1984, p. 188.

321
Celso de Albuquerque Silva

66 Dworkin, “Los Derechos en Sério”, cit., pp. 145 e ss, especialmente p. 278; “O Império do
Direito”, Martins Fontes, São Paulo, 1999, pp. 271 e ss. Contra, Jerzy Wróblewski,
“Constitutución y teoria general de la interpretación jurídica”, Cuadernos Cívitas, 1988,
pp. 81-93.
67 Alexy, Robert, “Teoria da Argumentação ...”, cit., p. 212.
68 Cf. Item 2.6. Vide Alexy, Robert, “Teoria da Argumentação...”, cit., pp. 213 e ss.
69 Alexy, Robert, “Teoria da Argumentação ...”, cit., p. 213.
70 Como observa Alexy, “Um outro aspecto do vínculo inextrincável está na exigência de cor-
reção que também é construtiva da argumentação jurídica. Ao contrário do caso do dis-
curso prático geral, essa exigência não se relaciona com o fato de a afirmação normativa
em questão ser ou não absolutamente racional, mas antes, poder ser racionalmente justi-
ficada no contexto da ordem jurídica em vigor” (in Teoria da Argumentação... , cit., p. 269).
71 Larenz, Karl, “Metodologia...”, cit., p. 273.
72 Art. 93, IX, da Constituição de 1988.
73 Arts. 5o e 37 da Constituição de 1988.
74 RTJ 89/878.
75 RE 89.108, RTJ 101/207.
76 RE (AgR) 328.812-AM, in: Informativo do STF, no 300, 19 de março de 2003.
77 Neste sentido, a título de exemplo, reportamo-nos ao Resp 5.936-PR, 4a T. DJU de 07/10/91.
78 Teixeira, Sálvio de Figueiredo. “A Criação e Realização do Direito na Decisão Judicial”.
Forense, 2003, p. 247.
79 Acórdão publicado no DJU de 20.10.97.
80 Acórdão publicado no DJU de 06/10/97.
81 Alexi, Robert. “Teoria...”, cit., p. 537.
82 Confira-se a esse respeito o artigo 102, caput e inciso I, a, e III, a, b, c, e 105 III, a, b, c,
da Constituição Federal.
83 Smend, Rudolf, “Constitucion y Derecho Constitucional”. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1985, pp. 70 e ss.
84 Idem, p. 71.
85 Idem, pp. 73-74.
86 Idem, p. 75.
87 Idem, p. 149.
88 Burnet v. Coronado Oil & Gas, 285 US 393, 406 (1932), apud Camp, Bryan T. “Bound by
the BAP: The Stare Decisis Effects of BAP Decisons”, San Diego Law Review, vol. 34: 1643
(1997).
89 Smend, ob. cit., p. 146.
90 Smend, ob. cit., p. 147.
1 Aristóteles. “Ética a Nicômaco, 1129a”, apud Hans Kelsen, “O que é Justiça?”, Martins
Fontes, 2001, p. 124.
2 Kelsen, Hans, “O que é Justiça?”. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 127.
3 Aristóteles. “Ética a Nicômaco, 1132a”, apud Hans Kelsen, “O que é Justiça?”, Martins
Fontes, 2001, p. 127.
4 Com o título “ausência de um judiciário democrático”, João Goulart Quirino fez a seguin-
te observação: “A cidadania aguarda a reforma do Poder Judiciário em curso no
Parlamento – em trâmite no Senado Federal – como uma opção de ouro para sua real
democratização vez que, tanto na anatomia como na fisiologia, a Instituição ainda conti-
nua engessada pela ‘reforma’ concebida e imposta pela Emenda Constitucional no 7/77,
que ficou conhecida como ‘pacote de abril de 77’. A reforma autoritária referida acabou

322
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

regulamentada pela também draconiana Lei Orgânica Nacional da Magistratura


Nacional, Lei Complementar no 35, de 14 de março de 1979 – LOMN –, que, não obstan-
te de discutível recepção (acolhida) pela Constituição Federal de 1988 – sobretudo à vista
do artigo 93 desta –, na prática continua sendo observada pela maioria dos Tribunais do
País. Certo é que o Constituinte de 1988 ousou muito pouco na organização do Poder
Judiciário, dando margem à subsistência do arsenal autoritário que o oprimiu e compri-
miu – durante os anos de chumbo patrocinado pelo regime de força, instaurado em março
de 1964”. (Gazeta Mercantil, de 30 de novembro de 2001, seção Opinião, p. 2)
5 Sobre o tema veja-se, Sutil, Jorge Correa, “Reformas Judiciárias na América Latina: Boas
notícias para os não-privilegiados”; Garro, Alejandro M. “Acesso à justiça para os pobres
na América Latina”, in: Democracia, Violência e Injustiça na América Latina, Juan E.
Méndez, Guillermo O’Donnell, Paulo Sérgio Pinheiro, organizadores, Paz e Terra, 2000.
6 Garro, Alejandro M., “Acesso à Justiça... ”, cit., p. 308.
7 O jornal Gazeta Mercantil, de 03 de outubro de 2003, sob o título “Juizados Especiais
Federais” traz a seguinte notícia: “O primeiro aniversário da Turma Nacional de
Uniformização da Jurisprudência do Juizados Especiais Federais (JEFs), foi uma oportu-
nidade para fazer um balanço da situação dos Juizados no país. Desde sua criação, em
janeiro de 2002, até agosto deste ano, os JEFs já enfrentam a mesma pressão processual
de uma vara federal comum. Nesse período, os juizados de todo o país receberam mais
de 830 mil ações e conseguiram julgar pouco mais de 350 mil dessas ações (cerca de
42%). A coordenadora dos JEFs da Primeira Região, Selene Maria de Almeida, ressaltou
que, ao se analisarem as estatísticas dos juizados, os quais na Primeira Região – que
abrange 14 Estados do Norte, Centro-Oeste e Nordeste – receberam apenas 183 mil pro-
cessos, enquanto os da Quarta Região – que abrange três Estados do Sul – receberam
338 mil, percebe-se que ‘alguma coisa deve estar errada’. ‘Isso significa que grande
parte dos jurisdicionados da Primeira Região ainda não têm acesso à Justiça’, esclarece
a desembargadora”.
8 Embora tenha havido uma dinamização no processo judicial, o número de processo julgado
pelos Tribunais Superiores só tem aumentado. Segundo nos relata Sálvio de Figueiredo, os
processos julgados pelo STF saltaram de 30.829 em 1996 para 83.097 em 2002. O caso do
STJ é ainda mais alarmante, tendo sido julgados em 1989 3.711 e em 2002 149.722 proces-
sos. (A criação e Realização do Direito na Decisão Judicial, Forense, 2003, pp. 240-242)
9 Abranches, Sérgio. “O Estado”, in: Sociedade, Estado e Partidos na Atualidade Brasileira,
Paz e Terra, 1992, pp. 119-121.
10 A exemplo do que pretendeu o constituinte no artigo 37 da Constituição, ao estabelecer
os princípios gerais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
11 Jaguaribe, Hélio. “O Sistema Público Brasileiro”, in: Sociedade, Estado e Partidos na
Atualidade Brasileira, Paz e Terra, 1992, p. 215.
12 Idem, p. 205.
13 O’Donnell, Guillermo. “Poliarquias e a Inefetividade da lei na América Latina: Uma
Conclusão Parcial”, in: Revista Novos Estudos Cebrap, 51, 1998, pp. 37-61.
14 Rawls, John. “Uma Teoria de Justiça”. Lisboa: Editorial Presença, 1993, pp. 191-193.
15 Sobre esse ponto veja-se Canotilho, J. J. Gomes, “Direito Constitucional”, Almedina –
Coimbra, 1993 pp. 348 e ss; Silva, José Afonso da, “Curso de Direito Constitucional
Positivo”, RT, 7a ed., 1991, pp. 99 e ss.
16 Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. “Fundamentos da Constituição”. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991, p. 82.

323
Celso de Albuquerque Silva

17 Bandeira de Mello, Celso Antonio. “Curso de Direito Administrativo”. São Paulo:


Malheiros, 10a ed., 1998, p. 59.
18 Caetano, Marcello. “Manual de Direito Administrativo”, vol. I, Almedina – Coimbra, 1997,
p. 31.
19 Meirelles, Hely Lopes. “Direito Administrativo Brasileiro”. RT, 16a ed., 1991, p. 78.
20 Bobbio, Norberto. “O Futuro da Democracia – Uma defesa das regras do jogo”, Paz e Terra,
1986, p. 156.
21 Tocqueville, Alexis de. “De la démocratie en Amérique”, vol. II. Paris: Ed. Gallimard, 1951,
p. 331.
22 Constituição Federal – Artigo 1o.
23 Veja-se Berger, Raoul. “Government by judiciary. The transformation of the fourteenth
Amendment”, Harvard University Press, 1977
24 Enterria, Eduardo Garcia de. “La Constitución como Norma Y El Tribunal Constitucional”,
Editorial Civitas S.A, 1994, p. 175.
25 Pertile, A. “Control Judicial de la actividad administrativa”. Córdoba: Ed. Arpón, 1988, p. 7.
26 Sarria, F. “Teoria del Recurso Contencioso-Administrativo”, 1a ed., Ed. Peuser S.A,
Córdoba, 136, p. 5.
27 Canotilho. “Direito Constitucional”, cit., p. 357.
28 Silva, José Afonso da, “Curso de Direito Constitucional...”, cit., p. 101.
29 Para uma visão da doutrina clássica do positivismo jurídico, confira-se Bobbio, Noberto.
“O Positivismo Jurídico – lições de filosofia do direito”. Ícone Editora, 1995.
30 Hart, Herbert L.A. “O Conceito do Direito”. 2a ed., Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian,
1994, pp. 10 e ss.
31 Hart, ob. cit., p. 25.
32 Hart, ob. cit., p. 35.
33 Idem, p. 35.
34 Hart, ob. cit., p. 59.
35 Hart, ob. cit., p. 64.
36 Idem, ibidem.
37 Idem, ibidem.
38 Idem, p. 65.
39 Idem, p. 65.
40 Idem, p. 65.
41 Hart, ob. cit., pp. 89-109.
42 Inicialmente, ao formular sua teoria, Hart tratou apenas do consenso de convenção, mas
após crítica de Dworkin reconheceu também a possibilidade de consenso por convicção.
Em seu pós escrito esclareceu: “As regras são práticas sociais convencionais, se a confor-
midade geral de um grupo em relação a elas constituir parte das razões que os seus
membros individuais têm para a respectiva aceitação; por contraste, as práticas mera-
mente convergentes, tal como a moral partilhada de um grupo, são constituídas não por
convenção, mas pelo fato de os membros do grupo terem as mesmas razões, embora
independentes, para se comportarem de certos modos específicos e, efetivamente, se
comportam com base em tais razões” (O Conceito do Direito, pp. 317-8).
43 Hart, ob. cit., p. 104. Essas regras de reconhecimento em um sistema desenvolvido refe-
rem-se normalmente a características gerais possuídas pelas regras primárias, v.g.,
terem sido emanadas de um órgão constitucionalmente competente; decorrerem de uma
longa prática consuetudinária ou mesmo de decisões judiciais.
44 Hart, ob. cit., p. 107.

324
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

45 Dworkin, Ronald. “O Império do Direito”. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 8.


46 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 21.
47 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 22.
48 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 109.
49 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 116.
50 Idem, p. 231.
51 Idem, p. 118.
52 Idem, p. 119.
53 Idem, p. 120.
54 Idem, p. 120.
55 Dworkin, “O Império...”, cit., pp. 216 e ss.
56 Idem, p. 219.
57 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 223.
58 Idem, p. 225.
59 Idem, p. 228.
60 Idem, p. 255.
61 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 261.
62 Idem, p. 261.
63 Idem, p. 263.
64 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 272.
65 Idem, p. 274.
66 Por caso difícil se entende aquela questão objeto de adjudicação judicial para a qual
nenhuma regra do sistema jurídico oferece pautas claras e seguras para solução.
67 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 275.
68 Coelho, Inocêncio Mártires. “Interpretação Constitucional”. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris, 1997, p. 49.
69 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 139.
70 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 286.
71 Idem, p. 287.
72 Idem, p. 294.
73 Siqueira Castro, Carlos Roberto. “O princípio da isonomia e a igualdade da mulher no
direito constitucional”. Rio de Janeiro: Forense, 1983, pp. 11-12.
74 Hart, “O conceito...”, cit., p. 310.
75 Canotilho, ob. cit., p. 373.
76 Apud Goodhart, A. L. “Precedent in English and Constitucional Law”, The Law Quartely
Review, no CXCVII, 1934, p. 58.
77 Teixeira, Salvio de Figueiredo. “A Criação e a Realização do Direito na Decisão Judicial”.
Forense, 2003, p. 106.
78 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 147.
79 Hart, “O conceito...”, cit., pp. 127-28.
80 Veja-se a esse respeito, Capítulo 1, item 7.
81 Dworkin, “O Império...”, cit., p. 285.
82 STF, Agr. no recurso extraordinário 261.324-0, Rel. Min. Celso de Mello, in Dj de
01/12/2000, p. 85.
83 Birmingham, Robert L. “The neutrality of adherence to precedent”. Duke Law Journal,
1971, pp. 541 e ss.
84 Kelsen, Hans, “O que é justiça?”, cit., p. 133.

325
Celso de Albuquerque Silva

85 O’Donell, “Poliarquias...”, cit., p. 343.


86 Rawls, John, “Uma Teoria ...”, cit., p. 196.
87 O’Donnell, Guillermo. “Poliarquias e a Inefetividade da lei na América Latina...”, cit.,
pp. 45-46.
88 Males que também atingem o Poder Judiciário. Em sua obra “A Criação e Realização do
Direito na Decisão Judicial”, ao tratar do contexto em que surgiu o Superior Tribunal de
Justiça, o Min. Sálvio de Figueiredo, embora an passant, reconhece essas vicissitudes, ao
escrever a fls 243: “De outro lado, apregoava-se, quando da sua criação, que o Superior
Tribunal de Justiça se prestaria, também, indiretamente, para inibir a atuação de deter-
minados tribunais, que estariam a funcionar sem a desejável eficiência e, o que é pior,
com sérias restrições”. (g.n)
89 Gomes, Luiz Flávio. “Súmulas Vinculantes...”, cit., pp. 20-22.
90 Gomes, Luiz Flávio. “Súmulas Vinculantes...”, cit., p. 23.
91 Streck, Lenio Luiz. “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do
Direito”, cit., p. 491.
92 Sobre a discussão da compatibilidade do efeito vinculante no sistema da civil law reme-
te-se o leitor para o Capítulo 5 da parte II do trabalho.
93 Carvalho, Paulo de Barros. “Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência”.
Saraiva, 1998, pp. 15 e ss.
94 Pierdoná, Zélia Luiza, “Pressupostos Constitucionais Aplicáveis às Contribuições para
Seguridade Social”, mimeo.
95 Castanheira Neves, A. “Metodologia Jurídica: problemas fundamentais”. Coimbra:
Coimbra Editora, 1993, p. 25.
96 Perelman ressalta que para as instâncias internacionais, como a Corte Permanente de
Justiça Internacional ou a Corte de Justiça das Comunidades Européias, o que conta é o
direito efetivamente aplicado, les jus quod est, mesmo se está em oposição aos textos
promulgados (in: Lógica Jurídica, Martins Fontes, 2000, p. 187).
97 Kelsen, Hans. “Teoria Pura do Direito” São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 300-301.
98 Para uma análise mais aprofundada sobre o assunto remete-se o leitor ao item 7.3 do
Capítulo 1.
99 Veja-se sobre o tema, Hesse. Konrad, “Elementos de Direito Constitucional da República
Federal da Alemanha”. Tradução de Luís Afonso Heck, Sérgio Antonio Fabris Editora,
1998, pp. 53-75.
100 Fala-se inconscientemente porque por vezes os defensores dessa tese apresentam afir-
mações contraditórias. Luiz Flavio Gomes, v.g., afirma: “A súmula vinculante, em derra-
deira instância, na medida em que impõe coercitivamente ao juiz inferior o seguimento
estrito de uma determinada interpretação do texto legal elaborada por um juiz superior,
faz tábula rasa da histórica advertência de Montesquieu e viola flagrantemente o dispos-
to no artigo 2o da CF, que contempla um dos princípios fundamentais do Estado
Brasileiro, que é a independência dos poderes”. A seguir continua: “No constitucionalis-
mo moderno ninguém mais nega que o juiz é também, um centro de produção normati-
va. É um verdadeiro lawmaker”. (súmula vinculante..., cit., pp. 20-21). Ora, se se reconhe-
ce poder normativo ao juiz, não se entende como se pode afirmar, dentro do princípio da
legalidade – decorrência da adoção do princípio de separação de poderes – violação ao
artigo 2o da CF/88. Se o tribunal é fonte normativa, nada impede e tudo recomenda que
os tribunais superiores legislem para os inferiores.
101 Montoro, André Franco. “O Problema das fontes do Direito”, apud Sálvio de Figueiredo
Teixeira. “A Criação e Realização do Direito na Decisão Judicial”, cit., p. 12.

326
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

102 ADI (EI) 1.289-DF, in: Informativo STF 306/2003.


103 ADI (EI) 1.289-DF, in: Informativo STF 306/2003.
104 In: Informativo STF 240/2001.
105 Sobre o princípio da concordância prática veja-se Konrad Hesse, “Elementos de Direito
Constitucional...”, cit., especialmente pp. 67 e ss; sobre o princípio da razoabilidade veja-
se Suzana de Barros Toledo, “O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Cons-
titucionalidade das leis Restritivas de Direito”, Brasília Jurídica, 1996, pp. 33 e ss; Celso
de Albuquerque Silva, “Interpretação Constitucional Operativa”, Lumen Juris, 2001, pp.
77-110; sobre o princípio da ponderação, Daniel Sarmento, “A Ponderação de Interesses
na Constituição”, Lumen Juris, 2001.
106 Verbis: “A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a
interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade
sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos
do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal”.
107 Mendes, Gilmar Ferreira. “Jurisdição Constitucional”. São Paulo: Saraiva 1996, p. 222.
108 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 70.
109 Embora haja divergência doutrinária quanto à equiparação ou não da interpretação con-
forme a constituição e a declaração de nulidade sem redução de texto, todos concordam
tratarem-se de decisões que agregam sentido ao texto interpretado. Para uma visualiza-
ção das divergências sobre a similitude ou não entre os dois tipos de decisão, veja-se
Streck, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do Direito”, Livraria
do Advogado Editora, 2002, pp. 476-78.
110 Streck, Lenio Luiz, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do
Direito”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 479.
111 Streck, Lenio Luiz. “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma nova crítica do
Direito”. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 444.
112 Streck, Lenio Luiz, “Jurisdição Constitucional...”, cit., p. 445.
113 Perelman, Chaïm. Lógica Jurídica”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 185.
114 Teixeira, Sálvio de Figueiredo. “A Criação e a Realização do Direito na Decisão Judicial”.
Forense, 2003, p. 14.
115 Perelman, Chaïm, Lógica Jurídica”, cit., p. 220.
116 Teixeira, Sálvio de Figueiredo, “A Criação e Realização do Direito na Decisão Judicial”, cit.,
pp. 9-10.
1 Nun, José. “Democracia – Governo do Povo ou Governo dos Políticos”. 1a ed. Buenos Aires:
Fondo de Cultura de Argentina, 2000, p. 11.
2 Dahl, Robert A. “Sobre a Democracia”, tradução Beatriz Sidou, Editora UNB, 2001, p. 22.
3 Conforme seção frases 2000 da revista Veja, edição 1.681, de 27 de dezembro de 2000, p. 17.
4 Bobbio, Norberto. “Teoria Geral da Política”. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 375.
5 Vizcaíno, Catalina Garcia. “Derecho Tributário”. Buenos Aires: Ediciones Depalma, 1998,
p. 272.
6 Dahl, Robert A. “Sobre a Democracia”, tradução Beatriz Sidou, Editora UNB, 2001, p. 31.
7 Destutt de Tracy. “A Commentary and Review of Monstesquieu’s Spirit of laws”, Filadélfia,
Willian Duane, 1811, p. 19, apud Robert Dahl, “Sobre a Democracia”, cit., p. 120.
8 Finley, M. I. “O Legado da Grécia – uma nova avaliação”. Editora UNB, 1998, p. 37.
9 Rousseau, Jean-Jacqques. “Do Contrato Social III”, Coleção Os pensadores, Ed. Victor
Civitas, 1a edição, 1973, p. 91.
10 Bobbio, Norberto. “Teoria Geral da Política”. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 381-2.

327
Celso de Albuquerque Silva

11 Confira-se sobre esses modelos, Macpherson, C.B. “A Democracia Liberal – Origens e


Evolução”. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978.
12 Dahl, Robert A. “Sobre a Democracia”, cit., p. 50.
13 Canotilho, Gomes J. J. e Moreira Vital. “Fundamentos da Constituição”. Coimbra:
Coimbra Editora, 1991, p. 80.
14 Silva, José Afonso da. “Curso de Direito Constitucional Positivo”, RT, 1991, p. 117.
15 Habermas, Jürgen. “Direito e Democracia entre faticidade e validade – vol. I”. Ed. Tempo
Brasileiro, Rio de Janeiro, 1997, p. 220.
16 Kelsen, Hans. “Teoria Geral do Direito e Do Estado”. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 281.
17 Nun, José. “Democracia...”, cit., p. 9.
18 Dworkin, Ronald. “Sovereign Virtue The Theory and Practice of Equality”. Harvard
University Press, 2000, p. 126.
19 Held, David. “Models of Democracy”. Hartnolls Ltd, Grã-Bretanha, 1996, p. 301.
20 Petti, Philip. “Republic Political Theory”. Cambridge University Press, 2000, pp. 112 e ss.
21 Rousseau, Jean-Jacqques. “Do Contrato Social III”, Coleção Os Pensadores, Ed. Victor
Civitas, 1a edição, 1973, p. 115.
22 Berlin, Isaiah. “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”. Editora Universidade de Brasília,
1981, p. 142.
23 Rousseau, Jean-Jacqques. “Do Contrato Social III”, Coleção Os Pensadores, Ed. Victor
Civitas, 1a edição, 1973, p. 43.
24 Canotilho, J. J. Gomes e Moreira, Vital. “Fundamentos da Constituição”. Coimbra:
Coimbra editora, 1991, p. 85.
25 Stern, Klaus. “Derecho Del Estado de La República Federal Alemana”. Madri: Centro de
Estudios Constitucionales, 1987, pp. 237-238.
26 Silva, José Afonso da, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, cit., p. 208.
27 Bobbio, Norberto. “O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo”. Paz e Terra,
1992, p. 19.
28 Kelsen, Hans. “Teoria Geral do Direito e Do Estado”. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 280.
29 Cappelletti, Mauro. “Juízes Irresponsáveis”, trad. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira,
Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1989, p. 22.
30 Marshall, Laurence C. “Let Congress Do it: The case for an absolute rule of statutory Stare
Decisis”, Michigan Law Review, 1989, p. 177.
31 Eskridge Jr., William N. “Overruling Statutory Precedents”, The Georgetown Law
Journal, vol. 76, 1988, pp. 1.366-1.367.
32 Maltz, Earl. “The Nature of Precedent”, in: North Carolina Law Review, vol. 66, 1988,
p. 389.
33 RE 197917/SP, Rel. Min. Maurício Correa, in Informativo STF no 341, de 22 a 26 de março
de 2004.
34 Trata-se da PEC 55A/2001 em trâmite no Senado. Apenas para exemplificar referida PEC
estava parada na subsecretaria de expediente desde 20/11/2002.. A decisão do STF foi
em 24/03/2004. Em 27/05/2004 a PEC foi reativada , tendo sido encerrada a votação em
primeiro turno no dia 08/06/2004. No dia seguinte, 09/06/2004, iniciou-se a votação em
segundo turno que se encerrou em 29/06/2004, com a rejeição da proposta. Veja-se,
ainda, a EC no 20/1998, que alterou o inciso I do artigo 195 da CF/88 por discordar da
interpretação dada pelo STF à expressão folha de salário e faturamento; a EC no 29/2000,
que modificou a interpretação do STF quanto à impossibilidade de progressividade do
IPTU; a EC no 39/2002, que acresceu o artigo 149-A, instituindo a contribuição para cus-

328
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

teio dos serviços de iluminação pública, como forma de superar a interpretação do STF
que julgou inconstitucional a cobrança de taxas sobre esses serviços.
35 Canotilho, J.J. Gomes e Moreira Vital. “Os Fundamentos da Constituição”, cit., p. 79.
36 Greenwalt, Kent. “Discretion and Judicial Decision: The Elusive Quest for the Fetters that
Bind Judges”, in: Columbia Law Review, 1975, p. 359.
37 Gomes, Luiz Flávio. “Súmulas Vinculantes e Independência Judicial”, RT 739, p. 18.
38 Streck, Lenio Luiz. “Súmulas no Direito Brasileiro. Eficácia, Poder e Função”. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 1998, p. 275.
39 Gomes, Luiz Flávio. “Súmulas Vinculantes e Independência Judicial”, RT 739, p. 20.
40 Pelayo, Manoel Garcia. “Derecho Constitucional Comparado”. Madri: Alianza Editorial
S.A., 1993, p. 155.
41 Aristóteles. “Ética a Nicômaco”, cit., 1181a e 1181b. Cf. também a propósito, Norberto
Bobbio, “Teoria Geral da Política”. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 201 e ss, especial-
mente, pp. 210-212.
42 Barile, Paolo. “Il dovere di Imparzialitá della Pubblica Amministrazione”, in: Scritti
Giuridici. Memoria di Piero Calamandrei, vol. IV, Padova, 1956, p. 37.
43 Nesse sentido, o princípio da imparcialidade se confunde com o princípio da legalidade
(rule of law) a demandar a regular e imparcial da lei a todos (igualdade perante a lei) que
já foi tratada no Capítulo 2 ao qual remetemos o leitor.
44 Nigro, Mario. “La Funzione d´Organizzazione ed i Principi di Efficienza e d´Imparzialitá”,
in: Studi sulla Funzione Organizzatrice della Pubblica Amministrazione, Milão, 1966, p. 79.
45 STF, Agr. no recurso extraordinário 261.324-0, Rel. Min. Celso de Mello, in Dj de
01/12/2000, p. 85.
46 Habermas, Jürgen. “Direito e Democracia entre faticidade e validade”. Ed. Tempo
Brasileiro, vol. I, Rio de Janeiro, 1997, p. 232.
47 Tzu, Hun. “Equity in Chinese Customary Law”, in: Essays in Jurisprudence in honor of
Roscoe Pound 21, 23 no 4, R. Newman Ed., 1962.
48 Pound, Roscoe. “What of Stare Decisis”, in: Fordham Law Review, vol. X, 1941, p. 1.
49 AI (AgR) no 272.328/RJ, Rel. Min. Moreira Alves, DJ no 170-E, de 01/09/2000.
50 Agravo Regimental no 158.689-DF, da 6a T. do STJ, relator Min. Vicente Chernichiaro, DJ
de 19/12/97, p. 67.601.
51 Barros, Marco Antonio de. “Anotações sobre o efeito vinculante”, in: RT-735, janeiro de
1997, p. 106.
52 Schauer, Frederick, “Playing by the Rules”, cit., pp. 171-172.
53 RTJ 113/459.
54 Sobre a similitude entre república e democracia, veja-se Robert A. Dahl, “Sobre a
Democracia”, cit., pp. 26-27.
55 Cf. Capítulo 2.
56 Cf. Capítulo 3.
57 Recurso em Mandado de Segurança no 8.793/PB, DJ, de 02/03/1998.
1 Nitidamente assumo, em razão da argumentação que adiante será deduzida, que todos
os defensores do efeito vinculante reconhecem a jurisprudência como fonte formal do
direito. Nesse diapasão, dentre outras, podem se alinhar as opiniões de Miguel Reale,
Carlos Mário da Silva Velloso, Sálvio de Figueiredo Teixeira, José Augusto Delgado,
Walter Nunes da Silva Júnior, Carreira Alvim, Calmon de Passos, Edgard Silveira Bueno
Filho, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Fernando da Costa Tourinho Neto, Ivan Lira de
Carvalho e Saulo Ramos, conforme nos relata Edílson Pereira Nobre Júnior in “O Direito

329
Celso de Albuquerque Silva

Processual Brasileiro e o Efeito vinculante das Decisões dos Tribunais Superiores”, Revista
de Processo, RT, vol. 105, p. 84.
2 Para observações sobre a vinculação no direito Italiano, Português e Espanhol, veja-se,
Nobre Júnior, Edilson Pereira, “O Direito Processual Brasileiro e o Efeito vinculante das
Decisões dos Tribunais Superiores”, in: Revista de Processo, RT, vol. 105, pp. 72-75.
3 Fagundes, M. Seabra. “O Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário”.
Forense, 5a ed., 1979, p. 2.
4 Bastos, Celso Ribeiro. “Curso de Direito Constitucional”. Saraiva, 13a ed., 1990, p. 299.
5 O artigo 989 do CPC autoriza o juiz a abrir de ofício o inventário se nenhum dos legitima-
dos o promover.
6 Art. 2o do código de processo civil: nenhum juiz prestará a tutela jurisdicional senão
quando a parte ou o interessado a requerer, nos casos e formas legais.
7 Art. 128 do código de processo civil: o juiz decidirá a lide nos limites em que foi propos-
ta, sendo-lhe defeso conhecer de questões não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a
iniciativa da parte.
8 Art. 5o, XXXV, da CF/88: a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário, lesão ou
ameaça a direito. Vide também artigo 282, III do código de processo civil.
9 Fagundes, M. Seabra, “ O controle dos atos administrativos...”, cit., pp. 158-161.
10 Nicol. Andrew G.L. “Prospective Overruling: A New Device for English Courts?”, in: The
Modern Law Reviem, vol. 39, Set. 1976, p. 542.
11 BverfGE (34) 269 at 287, apud Carls Mischke, The inseparability of powers: judge-made
law in the German legal system, SA Publiekreg/Public Law, 1992, p. 255.
12 Sobre os limites da criação judicial, remete-se o leitor para o item 4.2 do Capítulo 2 da
parte I.
13 Sobre a função normativa da interpretação judicial, remete-se o leitor para o item 4.2.1
do Capítulo 2 da parte I.
14 Cardozo, Benjamin N. “The Nature of the Judicial Process”. New Haven and London Yale
University Press, 1977, p. 166.
15 Friedmann, Wolfang. “Limits of Judicial Making”, in: The Modern Law Review, vol 29,
1966 pp. 603-604.
16 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”. Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts London, England, 1991, p. 6.
17 Hardisty, James. “ Reflexions on Stare Decisis” in: Indiana Law Journal, vol. 55, 1979, pp.
42-43
18 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”. Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts London, England, 1991, pp. 6-7.
19 O autor cita duas decisões em abono de sua tese: a) em Hamberger x Eastman (106 N.H.
107,206 A. 2d 239-1964) a questão era se uma instalação clandestina de um aparelho de
escuta no quarto de um indivíduo constituiria um ato lesivo. A corte se valeu da ocasião
para acolher a ampla regra de que os indivíduos têm direito à privacidade e este é viola-
do por uma intrusão em sua solidão física e mental, pela divulgação pública de fatos par-
ticulares, pela publicidade que os colocasse em uma posição desfavorável e pela apropria-
ção de seu nome ou sua imagem em benefício do réu; b) em Rowland x Christian (69 Cal.
2d 108, 443 P.2d 561, 70 Cal. Rptr 97 – 1968), um convidado alegou que tinha sido prejudi-
cado em virtude da negligência do anfitrião. A corte aproveitou a ocasião para substituir
o anterior e complexo sistema de direito comunitário, que regulava o dever de cuidado do
proprietário, que impunha diferentes deveres quando se tratasse de invasores, inquilinos
e convidados, e substituiu aquele sistema com o padrão geral de razoabilidade.

330
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

20 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”. Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts London, England, 1991, p. 7. Veja-se, ainda, G. Spann.
“Expository Justice”, in: University of Pennsylvania Law Review, vol. 131, 1983, pp. 585
e ss. Segundo o autor o modelo de resolução de disputa dá ênfase na função de resolver
disputas, enquanto que o modelo de enriquecimento (expository model of adjudication)
dá mais ênfase à função de prover regras. O autor analisa ambos os modelos e argumen-
ta em favor do segundo.
21 Exemplo emblemático dessa afirmação, é o poder discricionário de que se investe a
Suprema Corte Americana para decidir que causas irá julgar e que causas não serão jul-
gadas, sem necessidade de qualquer fundamentação da decisão que inadmite a causa
para julgamento.
22 Benditt, Theodore M. “ The Rule of Precedent”, in: Precedent in Law. Ed. Laurence
Goldstein, Clarendon Press, Oxford, 1987, p. 95.
23 Cf. mais explicitado no Capítulo 6 da parte II.
24 Mendes, Gilmar Ferreira. ”Jurisdição Constitucional”. Saraiva, 1996, p. 129.
25 Clève, Clèmerson Merlin. “A Fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito
Brasileiro”. RT, 1995, p. 113.
26 Idem, pp. 188-189.
27 No caso de declaração de inconstitucionalidade com efeito erga omnes é comum na lin-
guagem doutrinária e jurisprudencial se falar em atuação do tribunal como legislador
negativo.
28 O termo é uma abreviação da máxima stare decisis et non quita movere que poderia ser
livremente traduzida assim: mantenha a decisão e não perturbe o que está estabelecido.
29 Cf. Peters, Christopher J. “Foolish Consistency: on Equality, Integrity, and Justice in Stare
Decisis”, in: The Yale Law Journal, vol. 105, 1996, pp. 2040-2041.
30 Apud Goodhart, Arthur L. “Precedent in English and Continental Law”, in: The Law
Quartely Review, no CXCVII, jan. 1934, p. 41.
31 Borchard, Edwin M. “Some Lessons from the Civil Law”, in: University of Pennsylvania
Law Review, vol. 64, 1916, p. 571.
32 Sobre a evolução da doutrina do stare decisis no direito inglês, confira-se Carleton Kemp
Allen, “Law in the Making”, Oxford At The Clarendon Press, 1930, especialmente pp.128-
156; Jim Evans, “Precedent in the Nineteenth Century”, in: Precedent in Law, Clarendon
Press – Oxford, 1987, pp. 35-72; T. Ellis Lewis, “The History of Judicial Precedent”, in: The
Law Quartely Review, vol. 40, abril 1930, pp. 207-224.
33 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”. Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts London, England, 1991, p. 49.
34 Lobingier, C. Sumner. “Precedent in past and present legal systems”, in: Michigan Law
Review, vol. 44, 1946, p. 955.
35 Se costuma afirmar habitualmente que a regra do caso precedente é unicamente anglo-
saxã, porém existem evidências de seu uso nos tribunais da antiga Roma e no século XIV
nos tribunais europeus antes da revolução francesa. Esta, sem embargo, rejeitou o uso
da jurisprudência como fonte formal do direito, mais como um ato de desconfiança para
com o antigo regime. Cf. Merryman, John H; Clark, David S; e Haley, John O., The Civil
Law Tradition: Europe, Latin America and East Asia. The Michie Company, Virginia,
1994, p. 947.
36 Cf. Capítulo I, item 4.2.1.
37 Jolowicz. “Precedent in Greek and Roman Law”, apud C. Sumner Lobingier, “Precedent
in past and present legal systems”, in: Michigan Law Review, vol. 44, 1946, p. 957.

331
Celso de Albuquerque Silva

38 Gray, John Chipman. “Judicial Precedents – A Short Study in Comparative Jurispruden-


ce”. Harvad Law Review, vol. IX, april 25, 1895 pp. 27-29.
39 Lobingier, C. Sumner. “Precedent in past and present legal systems”, in: Michigan Law
Review, vol. 44, 1946, p. 957.
40 Cappelleti, Mauro. “O controle judicial de Constitucionalidade das leis no Direito Com-
parado”. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1992, pp. 82-83.
41 O artigo 140/7 da constituição da Áustria dispõe: “Anulada una ley como inconstitucio-
nal o pronunciada sentencia por el Tribunal Constitucional, conforme el párrafo 4, em el
sentido de que uma ley es inconstitucional, quedarán vinculados a dicho fallo cualquie-
ra tribunales y órganos administrativos”, in: Constituições Estrangeiras, vol. 5, Brasília,
Senado Federal, subsecretaria de edições técnicas, p. 89.
42 BverfGE (34) 269 at 287, apud Carls Mischke, The inseparability of powers: judge-made
law in the German legal system, SA Publiekreg/Public Law, 1992, p. 255.
43 BverfGE (65) 182, apud Carls Mischke, The inseparability of powers: judge-made law in
the German legal system, SA Publiekreg/Public Law, 1992, p. 256.
44 Parágrafo 31, “As decisões da Corte Constitucional Federal vinculam todos os órgãos cons-
titucionais no nível federal e estadual, como também as cortes e os órgãos do executivo”.
45 Kissel. “Arbeitsgerichte zwischen Recht und Politik” apud Carls Mischke, The inseparabi-
lity of powers: judge-made law in the German legal system, SA Publiekreg/Public Law,
1992, p. 260.
46 Mischke, Carls, The inseparability of powers: judge-made law in the German legal
system, SA Publiekreg/Public Law, 1992, p. 260.
47 Fiedmann, Wolfang, Stare Decisis at Common Law and under the Civil Code of Quebec,
The Canadian Bar Review, vol. XXXI, ago./set. 1953, p. 725.
48 Idem, p. 741.
49 Idem, p. 746.
50 Ireland, Gordon, Precedent´s Place in Latin Law, West Virginia Law Quartely and the Bar,
vol. XL, Fev., 1934, p. 122.
51 Isso explica também a impossibilidade do Poder Judiciário exercer o controle das leis.
Tratando sobre o tema averbou Poletti, “Os de tradição Francesa regem-se, com ênfase,
pelo princípio da divisão de poderes. Um Poder não interfere sobre o outro. Logo o con-
trole do ato legislativo não pode caber senão ao próprio Legislativo. Está, então, invia-
bilizado o controle pelo judiciário. O país que oferece exemplos mais típicos e numerosos
de um controle político, de caráter não judiciário, é a França. Nas diversas constituições
francesas, a exclusão de um controle judiciário é sempre reiterada. As razões dessa cons-
tante histórica são óbvias, como já assinalado acima. E não apenas pelos aspectos ideo-
lógicos ali apontados: a idéia de separação de poderes e a manifestação da vontade
nacional pelo Parlamento, como também por motivos de ordem estritamente histórica.
No ancien regime, posto abaixo pela Revolução, a jurisdição era exercida como um direi-
to patrimonial pelos juízes, possuído de igual maneira como os bens objeto do direito de
propriedade, com todos os seus atributos e decorrências. Essas duas ordens de motivos,
a ideológica e a histórica, explicam o afastamento de qualquer controle judiciário, bem
como a própria existência da jurisdição administrativa na França”, in: Controle da
Constitucionalidade das leis, Ed. Forense, 2a ed., 1995, pp. 56-57.
52 Cornu, G. “Droit Civil”, 6a ed., Montchrestien, 1993, p. 100.
53 Bobbio, Norberto. “O Positivismo Jurídico”. Ícone Editora, 1995, pp. 71-72.
54 Cornu, G., “Droit Civil”, 6a ed., Montchrestien, 1993, p. 103.
55 Goodhart, A. L. “Precedent in English and Continental Law”, in: The Law Quartely
Review, vol. 50, jan. 1934, p. 42.

332
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

56 Salès, Jacques. “Why Judicial Precedent is a Source of Law in France”, in: International
Business Laywer, vol. 25, jan. 1997, p. 35.
57 Hardisty, James. “Reflexions on Stare Decisis”, in: Indiana Law Journal, vol. 55, 1979, p. 56.
58 Baudry-Lancatinerie. “Traite Theor. Prat. Dr. Civ.”, 2a edição, 1902, §§ 233-250, apud
Gordon Ireland, “Precedent’s place in latin law, West Virginia Law Quartely and the Bar,
vol. XL, fev. 1934, p. 121.
59 Exceção feita aos países que adotaram a forma extremada de separação de poderes, dos
quais a França é exemplo exponencial com visto no item anterior.
60 Rodrigues, Leda Boechat. “A Corte Suprema e o Direito Constitucional Americano”. 2a ed.
Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1992, p. 12.
61 Art. 91, IV, atual art. 52, X, da Constituição Federal de 1988.
62 Poletti, Ronaldo. “Controle da Constitucionalidade das leis”. 2a ed. Forense, 1995, p. 62.
63 Sobre essa evolução constitucional no controle de constitucionalidade das leis, v.
Clèmerson Merlin Clève, A fiscalização Abstrata de Constitucionalidade no Direito...cit.
pp. 63-73, Gilmar Ferreira Mendes, “Jurisdição Constitucional... cit. pp. 60-83; e Bianca
Stamato Fernandes, “Ação Direta de Inconstitucionalidade e seu efeito vinculante: Uma
análise dos limites objetivo e subjetivo da vinculação”, in: Temas de Constitucionalismo
e Democracia, Ed. Renovar, 2003, pp. 175-188.
64 Art. 103. Podem propor a ação de inconstitucionalidade: I – o Presidente da República;
II – a Mesa do Senado Federal; III – a Mesa da Câmara dos Deputados; IV – a Mesa de
Assembléia Legislativa, V – o Governador do Estado; VI – o Procurador-Geral da
República; VII – o Conselho Federal da ordem dos Advogados do Brasil; VIII – partido
político com representação no Congresso Nacional; IX – confederação sindical ou entida-
de de classe de âmbito nacional.
65 Em entrevista ao jornal Valor Econômico, em 01/12/2003, o Ministro do Supremo Tribunal
Federal, Gilmar Mendes, realçou exatamente que, naquele ano, o STF encerraria suas ati-
vidades com um novo perfil, em virtude da tomada de várias decisões “que reforçam o con-
trole concentrado” perante as demais instâncias do judiciário. Segundo o Ministro, isto “ É
uma revolução. O STF não será mais visto apenas como a última instância do Judiciário,
onde todos os processos terminam – o que já lhe garante fundamental importância. Mais
do que isso, passa a exercer poder direito sobre os processos que correm nas instâncias
inferiores”. O ministro se referia as decisões que reconheceram a constitucionalidade da
atribuição, por lei, do efeito vinculante de suas decisões proferidas também em sede de
ação direta de inconstitucionalidade. Ainda segundo o Ministro, esse novo perfil propicia-
rá “maior segurança jurídica”, na medida em que as cortes inferiores estarão vinculadas
pelas decisões do STF proferidas no controle abstrato de constitucionalidade, além de per-
mitir maior celeridade na apreciação e solução das questões, pela possibilidade do mane-
jo da reclamação diretamente ao STF, por qualquer pessoa para reformar posições de cor-
tes inferiores em desconformidade com o entendimento esposado pelo STF.
66 Costa, Sílvio Nazareno, “Súmula Vinculante e Reforma do Judiciário”, cit., p. 168.
67 Parte da doutrina considera que referido artigo 38 da Lei no 8.038/90, instituiu efeito vin-
culante às súmulas do STJ e STF.Assim Silvio Nazareno Costa ao analisar referido dispo-
sitivo, considera que referido artigo apresenta eficácia e natureza normativas, caracte-
rística que conferiria efeito vinculante às súmulas do STJ e STF (Súmula Vinculante e
Reforma do Judiciário, Ed. Forense, 2002, pp. 116-117). Discordamos desse entendimen-
to. Parece-nos que essa disposição representa uma fase intermédia entre uma absoluta
liberdade do juiz para desconsiderar a força do precedente judicial e uma compulsorie-
dade em segui-lo decorrente do efeito vinculante. Note-se que o dispositivo impõe, é

333
Celso de Albuquerque Silva

certo, que o relator não conheça de recurso que se volte contra uma decisão judicial pro-
ferida em respeito à súmula do STJ ou STF, no que confere certa obrigatoriedade de
manutenção da interpretação já cristalizada no seio daqueles tribunais, mas nada impe-
de que conheça, mas negue provimento, a recurso que arroste decisão contrária à súmu-
la dos tribunais superiores. Ora, se o tribunal pode manter uma decisão de primeira ins-
tância que contrariou a súmula, não se pode afirmar que ele está absolutamente vincula-
do pelo enunciado sumular. É como se disse, uma obrigatoriedade parcial. Uma posição
intermédia. Se a decisão recorrida privilegiou a súmula, o tribunal está obrigado a mantê-
la e a se submeter ao enunciado sumular. Caso contrário, por mais paradoxal que possa
parecer, se a decisão recorrida contrariou a súmula, o Tribunal, nos termos da lei, embora
esteja obrigado a conhecer do recurso, não está obrigado a lhe dar provimento. É, portan-
to, livre para se submeter ou não ao enunciado sumular. Na primeira hipótese, conhece do
recurso e lhe dá provimento, adequando a decisão recorrida à súmula contrariada. Na
segunda hipótese, conhece do recurso, mas lhe nega provimento, mantendo a decisão
que contrariou a súmula e, ipso facto, contrariando-a também, pois o acórdão substitui a
sentença. O art. 557 e seu § 1o-A, do Código de Processo Civil, amplia o alcance dos obje-
tivos colimados no artigo 38 da lei no 8.038/90, pois se refere, também, à sumulas do pró-
prio tribunal onde o recurso foi interposto e se refere também à jurisprudência dominan-
te, mesmo que ainda não sumulada. A seu turno, o § 1o-A, faculta ao relator, desde logo
dar provimento a recurso que estiver em confronto com súmula do STJ ou STF. É um avan-
ço em relação ao disposto na Lei no 8.038/90, mas não lhe altera em essência, na medida
em que apenas permite (O relator poderá), seja dado desde logo provimento ao recurso
por decisão singular. Tivesse o legislador utilizado o verbo em sua forma imperativa –
dará – e então estaríamos diante da adoção do instituto da súmula vinculante.
68 Sobre prévias experiências de vinculação a precedentes judiciais, confira-se Sílvio Nazareno
Costa, “Súmula Vinculante e Reforma do Judiciário”, cit. especialmente pp. 105-111.
69 Essas determinações legais estão previstas também na PEC 29/2000, que trata da refor-
ma do Judiciário.
70 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante
decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria,
aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculan-
te em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e
indireta nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou
cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1o A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas deter-
minadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses
e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multipli-
cação de processos sobre questão idêntica.
§ 2o Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancela-
mento de súmula, poderá ser provocada por aqueles que podem propor a ação direta de
inconstitucionalidade.
§ 3o Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que
indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-
a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e
determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o
caso.

334
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

Art. 8o. As atuais súmulas do Supremo Tribunal Federal somente produzirão efeito vincu-
lante após sua confirmação por dois terços de seus integrantes e publicação na impren-
sa oficial.
71 Art. 105-A O Superior Tribunal de Justiça poderá, de ofício ou por provocação, mediante
decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria,
aprovar súmula que, a partir de sua publicação, constituir-se-á em impedimento à inter-
posição de quaisquer recursos contra decisão que a houver aplicado, bem como proce-
der à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1o A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas deter-
minadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses
e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multipli-
cação de processos sobre questão idêntica.
§ 2o Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancela-
mento de súmula poderá ser provocada originariamente perante o Superior Tribunal de
Justiça por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3o São insuscetíveis de recurso e de quaisquer meios de impugnação e incidentes as
decisões judiciais, em qualquer instância, que dêem a tratado ou lei federal a interpreta-
ção determinada pela súmula impeditiva de recurso.
Art. 111-B. O Tribunal Superior do Trabalho poderá, de ofício ou por provocação, median-
te decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria,
aprovar súmula que, a partir de sua publicação, constituir-se-á em impedimento à inter-
posição de quaisquer recursos contra decisão que a houver aplicado, bem como proce-
der à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei.
§ 1o A súmula terá por objetivo, a validade, a interpretação e a eficácia de normas deter-
minadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses
e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multipli-
cação de processos sobre questão idêntica.
§ 2o Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a aprovação, revisão ou cancela-
mento de súmula poderá ser provocada originariamente perante o Tribunal Superior do
Trabalho por aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
§ 3o São insuscetíveis de recurso e de quaisquer meios de impugnação e incidentes as
decisões judiciais, em qualquer instância, que dêem à legislação trabalhista a interpre-
tação determinada pela súmula impeditiva de recurso.
72 Para uma ampla visão comparativa sobre os diversos sistemas jurídicos, veja-se David,
René, “Os Grandes Sistemas do Direito Contemporâneo”, Ed. Martins Fontes, 1998.
73 Essa obrigatoriedade não é absoluta. A doutrina prevalente do stare decisis tem flexibi-
lizado essa compulsoriedade quando presentes certas condições. O assunto será trata-
do com mais profundidade nos capítulos seguintes.
74 Lobingier, C. Sumner. “Precedent in Past and Present Legal Systems”, in: Michigam Law
Review, vol. 44, 1946, p. 960.
75 Gray, John Chipman. “Judicial Precedents – A short Study in Comparative
Jurisprudence”, in: Harvard Law Review, vol. IX, abril 25, 1895, p. 40.
76 Costa, Sílvio Nazareno. “Súmula Vinculante e Reforma do Judiciário”. Ed. Forense, 2002,
pp. 9-10.
77 Confira-se a esse respeito, o título 28 do código dos Estados Unidos, que constitui o com-
pêndio legislativo de toda a organização judicial federal nos Estados Unidos, onde se
regula desde o número de juízes da Corte (§ 1o) e seus salários (§ 5o), até a forma em que
devem ser impressos e distribuídos os volumes das decisões dos tribunais.

335
Celso de Albuquerque Silva

78 Water act de 6 de julhk de 1989 e water industry act, de 25 de julho de 1991.


79 Gás act, de 25 de julho de 1986.
80 Electricity Act, de 27 de julho de 1989.
81 Telecommunications Act, de 12 de abril de 1984.
82 Environmental Act, de 12 de julho de 1995.
83 Desregulation and Contracting Out Act, de 03 de novembro de 1994.
84 MacCormick, Neil. “Why Cases Have Rationes and What These Are”, in: Precedent in
Law, Clarendon Press-Oxford, 1987, p. 155.
85 Sobre a função criativa do juiz remete-se o leitor ao Capítulo 2 da parte I desta obra.
86 Cappalli, Richard B. “The American Common Law Method”. Transnational Publishers,
Inc., New York, 1997, p. 56. Veja ainda, Benjamin Cardozo, “The Nature of the Judicial
Process”, New Haven and London University Press, 1921, p. 148.
87 Heck, Luís Afonso. “O Tribunal Constitucional Federal e o Desenvolvimento dos Princípios
Constitucionais – contributo para uma compreensão da jurisdição constitucional federal
alemã”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 161.
88 Idem, pp. 167-168.
89 Hardisty, James. “Reflections on Stare Decisis”, in: Indiana Law Journal, vol. 55, 1979,
p. 56.
90 Esses inconvenientes intrínsecos ao sistema, que se ampliaram com o fortalecimento do
poder judiciário operado pela Constituição de 1988, foram um dos principais motivos
para a introdução da ação declaratória de constitucionalidade no direito brasileiro e do
efeito vinculante das decisões nela proferidas, a fim de conferir ao sistema um instru-
mento célere para superar tais inconvenientes, como, ao apontar as razões para sua ins-
tituição, bem esclarece Clèmerson Clève: “Afirme-se que a Constituição de 1988 presti-
giou o Poder Judiciário e, mais do que isso, ofereceu a ele meios para, de modo eficaz,
fiscalizar a atuação dos demais Poderes do Estado e dar vazão ao exercício da cidadania.
Todavia, um dos aspectos que mais tem preocupado o país, pelo prisma da nova ordem
constitucional, é a valorização dos juizados de 1a instância – louvável conquista da cida-
dania – sem a contrapartida de um instrumento processual de uniformização célere,
omissão incompreensível do constituinte na conformação do controle difuso e concentra-
do de constitucionalidade. A força outorgada aos juízes de 1a instância, sem um instru-
mental adequado de ação para os tribunais superiores, subverte a hierarquia necessária
– e mais do que isso – a tranqüilidade para a preservação da ordem jurídica, pois qual-
quer questão constitucional da maior relevância pode ser decidida de forma satisfativa,
desde que o tribunal imediatamente superior não suspenda a eficácia de decisões que
garantam benefícios ou direitos... As decisões desencontradas do judiciário em questões
que aguçam a sensibilidade dos jurisdicionados, a curiosidade da mídia e a preocupação
governamental, sobre trazerem a intranqüilidade à população, o descrédito da função
jurisdicional e a quebra do significado da Constituição, favorecem também a emergência
de importante lesão ao princípio da isonomia, na medida em que ensejam tratamento
desigual de situações iguais” (A fiscalização abstrata..., cit., pp. 183-184).
91 Sobre a argumentação no processo judicial remete-se o leitor para o item 6 e 7.1.1 do
Capítulo 1 da parte I.
92 Kerpel, Ana Laura Magaloni. “El Precedente constitucional en el sistema judicial nortea-
mericano”. Madri: McGraw Hill, 2001, pp. 169-170.
93 Cf. a esse respeito, item 7.3 do Capítulo 1 da parte I.
94 STF, medida cautelar em recurso extraordinário no 376.852-2, rel, Min Gilmar Ferreira
Mendes, DJ de 13/06/2003.

336
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

95 Costa, Sílvio Nazareno. “Súmula Vinculante e Reforma do Judiciário”. Forense, 2002,


p. 200.
96 Costa Neto, Nicolau Dino da Costa. “A Reforma do Judiciário – o Retorno”, in: Jornal da
Associação Nacional dos Procuradores da República, março de 2004, p. 3.
97 Capítulo 3, parte I, item 5.2.
98 Vide nota 71 supra.
1 Sobre precedentes persuasivos, veja-se, Bronaugh, Richard, “Persuasive Precedent”, in:
Precedent in Law, Clarendon Press, Oxford, 1987, pp. 217-247.
2 Stone, Julius. “The Ratio of The Ratio Decidendi”, in: The Modern Law Review, vol 22,
1959, p. 600.
3 MacCormick, Neil. “Why Cases have Rationes and What These Are”, in: Precedent in Law,
Clarendon Press – Oxford, 1987, p. 170.
4 Salmond. “Jurisprudence”, 2a edição, London, 1907, p. 174 apud Ugo Mattei, “Stare
Decisis”, Giufrè Editore, Milano, 1988, p. 203.
5 Maltz, Earl. “The Nature of Precedent”, in: North Carolina Law Review, vol. 66, 1988,
p. 372.
6 MacCormick, Neil. “Why Cases Have Rationes and What These Are”, in: Precedent in
Law, pp. 158-159.
7 Cappalli, Richard B. “The American Common Law Method”, Transnational Publishers
Inc., New York, 1997, p. 39.
8 Lile, W. M. “Some Views on the Rule of Stare Decisis”, in: Virgínia Law Review, vol. IV,
1916, p. 98.
9 6 Wheat 264, 399, apud, Lile, W. M. “Some Views on the Rule of Stare Decisis”, in: Virgínia
Law Review, vol. IV, 1916, p. 98.
10 Súmula 64 do STJ. “Não constitui constrangimento ilegal o excesso de prazo na instru-
ção, provocado pela defesa.”
11 Recurso ordinário no habeas corpus no 13.894-PI, relator Ministro Jorge Scartezzini.
12 Maltz, Earl. “The Nature Of Precedent”, in: North Carolina Law Review, vol. 66, 1988. p. 379.
13 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, pp. 61-62.
14 Idem, p. 64.
15 Idem, p. 65.
16 Idem, pp. 65-66.
17 Cf. item 2 do Capítulo 4 da parte II deste trabalho.
18 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”, in: Harvard University Press,
Cambridge, Massachusetts, London, England, 1988, p. 52. Na verdade, o autor utiliza o
termo enrichment model para o terceiro modelo, que aqui foi substituído pelo vocábulo
“normativo”.
19 Moore, Michael. “Precedent, Induction, and Ethical Generalization”, in: Precedent in Law,
p. 190.
20 Moore, Michael. “Precedent, Induction, and Ethical Generalization”, in: Precedent in Law,
p. 197.
21 Idem, pp. 200-205.
22 Cf. Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, pp. 571 e 592-593.
23 Hardist, James. “Reflections on Stare Decisis”, in: Indiana Law Journal, vol. 55, 1979, p. 56.
24 Nesse sentido, pode-se citar o pensamento de Julius Stone, quando criticando a teoria
de Arthur Goodhart, afirma que o juiz, ao decidir uma causa, não se limita a mecânica e
automaticamente selecionar os fatos materiais do caso precedente e deles extrair a regra

337
Celso de Albuquerque Silva

ou principio geral (ratio decidendi) que irá governar o caso subseqüente. Ao contrário, ao
decidir, realça o papel que todos os precedentes, todos os argumentos e todos os princí-
pios devem servir ao mister de fazer justiça entre as partes litigantes, e se a justiça não
pode ser alcançada através dos precedentes, os juízes em última instância devem recor-
rer aos princípios da razão, da moralidade e utilidade, aos princípios éticos gerais, com
os quais decisões expressas raramente conflitam. Isso tudo não significa dizer que as
cortes não seguem precedentes, não extraem rationes decidendi de casos e não decidem
casos subseqüentes com base em tais rationes. Elas fazem isso, dizendo que alguns
fatos são materiais ou importantes e outros são imateriais ou desimportantes. Essa dife-
renciação não é lógica, mas ética. Mas, então, a “rule of law” assim definida pelo prece-
dente estará sujeita em sua futura aplicação a uma contínua revisão, não simplesmente
na base de analogias lógicas e diferenças de fatos e conceitos envolvidos no novo caso,
mas em termos da importância e significado que essas analogias e diferenças possuem
com relação ao que é justo para o caso em julgamento (The Province and Function of
Law, Wm.S.Hein & Co., 1946, pp. 189-190). Veja-se também Edward Hirsch Levi, “An In-
troduction to Legal Reasoning”, in: Jurisprudence, Text and Readings on the Philosophy
of Law, West Publishing Co., St. Paul Minn., 1973, pp. 962-967, e Stone, “The Ratio of The
Ratio Decidendi”, in: The Modern Law Review, vol. 22, 1959, pp. 597-620.
25 Veja MacCormick, Neil. “Why Cases Have Rationes and What These Are”, in: Precedent
in Law, Clarendon Press, Oxford, 1987, pp. 158 e 162-165.
26 Veja Postema, Gerald J. “Some Roots of our Notion of Precedent”, in: Precedent in Law,
Clarendon Press – Oxford, 1987, pp. 13-15.
27 Assim, por exemplo, R. Cross, para quem “A ratio decidendi de um caso é qualquer regra
legal expressa ou implicitamente considerada pelo juiz como um passo necessário para
chegar a sua conclusão, levando em consideração a linha de argumentação adotada por
ele”. In: Precedent in English, 3a ed., Oxford, 1977, p. 76.
28 MacCormick Neil, “Why Cases Have Rationes...”, cit., p. 171.
29 Smith, Peter Wesley. “Adjudication, and Status of Stare Decisis”, in: Precedent in Law, pp.
73-74.
30 Veja, Smith, Peter Wesley. “Adjudication, and Status of Stare Decisis”, in: Precedent in
Law, cit., p. 75.
31 Veja Postema, Gerald J. “Some Roots of our Notion of Precedent”, in: Precedent in Law,
pp. 11-12.
32 O item 2 do Capítulo 4 da parte II e item 4.2.1 e ss., do Capítulo 2 da parte I trataram da
questão em termos ideológicos, ou seja, com relação à tensão entre legislação e jurisdi-
ção. Adicionalmente se enfrentará a questão em termos lógica, acerca da possibilidade,
logicamente falando, da universalização de uma regra particular.
33 Lafer, Celso. “A reconstrução dos Direitos Humanos”. São Paulo: Cia das Letras, 1988, p. 74.
34 Perelman, Chaïm. “Lógica Jurídica”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 156.
35 Nesse sentido os capítulos 1 e 2 da parte I.
36 Smith, Peter Wesley. “Adjudication, and Status of Stare Decisis”, in: Precedent in Law,
p. 81.
37 Smith, Peter Wesley. “Adjudication, and Status of Stare Decisis”, in: Precedent in Law,
pp. 81-82.
38 Hart, Herbert L. A. “O Conceito de Direito”. Fundação Calouste Gulbenkian, 1994, p. 155.
39 Postema, Gerald J. “Some Roots of our Notion of Precedent”, in: Precedent in Law, p. 15.

338
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

40 Moore, Michael S. “Precedent...”, cit., p. 187. Sobre essa capacidade das cortes, veja Neil
MacCormick, “Why Cases have Rationes and What These Are”, in: Precedent in Law,
pp. 162-169.
41 Schauer, Frederick. “Playing by The Rules”, Clarendon Press-Oxford, 2002, p. 185.
42 Goodhart, A. L. “Precedent in English and Continental Law”, in: The Law Quartely
Review, no CXCVII, jan. 1934, p. 59.
43 Cardozo, Benjamim N. “The Nature of the Judicial Process”, New Haven And London Yale
University Press, 1977, p. 166.
44 Benditt, Theodore M. “The Rule of Precedent”, in: Precedent in Law, p. 92.
45 Bobbio, Norberto. “Locke e o Direito Natural”. Brasília: UNB, 2a ed., 1992, p. 58.
46 Larenz, Karl. “Derecho Justo Fundamentos de Etica Juridica”. Editorial Civitas S.A.,
1993, p. 21.
47 Idem, p. 22.
48 Idem, p. 28.
49 Idem, p. 29.
50 Idem, p. 30.
51 Idem, p. 32.
52 Idem, p. 38.
53 Idem, p. 41.
54 Idem, p. 44.
55 Idem, pp. 47-50.
56 Idem, p. 51.
57 Idem, p. 52.
58 Perelman, Chaïm. “Lógica Jurídica”. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 142-143.
59 Idem, p. 156.
60 Essa é a hipótese da coisa julgada, ou ainda, de um resultado originariamente injusto se
tornar justo para casos subseqüentes, em função dos valores da segurança jurídica e iso-
nomia, que decorrem da tão só injusta decisão anteriormente prolatada, quando isso é o
moralmente correto a ser feito.
61 Larenz, Karl. “Derecho Justo Fundamentos de Etica Juridica”. Editorial Civitas S.A., 1993,
p. 52.
62 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. “Introdução ao Estudo do Direito”. São Paulo: Atlas, 1994,
p. 50.
63 Smith, Peter Wesley. “Adjudication...”, cit., in: Precedent in Law, pp. 75-76.
64 Idem, p. 83.
65 Cf. Llewellyn, K.N. “The Brumble Bush”, Oceana Publications, Inc., Dobbs Ferry, New
York, 1969, p. 69.
66 Goodhart, Arthur, L. “Determining The Ratio Decidendi of a Case”, in: Jurisprudence by
George C. Christie, West Publishing Co., St. Paul, Minn, 1973, p. 936.
67 Idem, p. 924.
68 Idem, pp. 932-933.
69 Idem, p. 925.
70 Idem, p. 928.
71 Idem, p. 929.
72 Idem, pp. 932-935.
73 Idem, p. 936.
74 Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, fev. 1987, pp. 573-574.
75 Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, fev. 1987, pp. 574-575.

339
Celso de Albuquerque Silva

76 Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, fev. 1987, p. 589.
77 Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, fev. 1987, p. 577.
78 Schauer, Frederick. “Precedent”, in: Stanford Law Review, vol. 39, fev. 1987, p. 579.
79 Idem p. 581.
80 Veja-se Larenz, Karl. “Metodologia da Ciência do Direito”. Fundação Calouste Gulbekian,
1997, p. 506, para quem a meta da interpretação das resoluções judiciais só pode ser pre-
cisamente averiguar a concepção do tribunal, quer dizer, a opinião jurídica do juiz.
81 Stone, Julius. “The Ratio of The Ratio Decidendi”, in: The Modern Law Review, vol. 22,
nov, 1959, p. 603.
82 Idem, p. 603.
83 O próprio Goodhart reconhece esse defeito de seu modelo, mas entende que essa possi-
bilidade não interfere com a validade de seu modelo, porque, a seu sentir, as cortes ingle-
sas não agem dessa forma. Essa defesa é totalmente inaceitável, mas ainda que fosse
verdadeira para a Inglaterra, com certeza não é válida para a realidade brasileira, que é
a que no fim das contas interessa.
84 Voto condutor do Min. Néri da Silveira, no RE no 228.977-2/SP, DJ de 12/04/2002.
85 Min. Moreira Alves no voto preliminar sobre a constitucionalidade da ação declaratória,
proferido na ação declaratória no 1, in: “Ação Declaratória de Constitucionalidade”,
Coordenação Ives Gandra da Silva Martins e Gilmar Ferreira Mendes, Saraiva, Saraiva,
1994, p. 198.
86 Veja-se Dinamarco, Cândido Rangel: “Somente o preceito concreto contido na parte dis-
positiva das sentenças de mérito fica protegido pela autoridade da coisa julgada mate-
rial, não os fundamentos em que ele se apóia. Essa regra é enunciada por exclusão nos
três incisos do art. 469 do Código de Processo Civil, segundo os quais não fazem coisa
julgada os fundamentos postos na motivação da sentença, nem a verdade dos fatos
tomada como fundamento da decisão, nem a solução dada incidentalmente e eventuais
questões prejudiciais (incs. I-III). Ainda que nada dispusesse a lei de modo explícito, o
confinamento da autoridade da coisa julgada à parte dispositiva da sentença é inerente
à própria natureza do instituto e à sua finalidade de evitar conflitos práticos de julgados,
não meros conflitos teóricos (Liebman)” (Instituições de Direito Processual Civil, vol. III.
2a ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002, pp. 312-313) e Pontes de Miranda: “A ver-
dade dos fatos em que se funda a sentença não faz coisa julgada, porque o juiz pode ter
tido como verdadeiro o fato que não era. Disse, com acerto, Celso Neves (Contribuição ao
Estado da Coisa Julgada Civil, 505), a respeito do alcance da coisa julgada, que se “limi-
ta, objetiva e subjetivamente, à relação jurídica deduzida em juízo e o objeto do decisum,
sem cobrir o sistema lógico da sentença, nem à verdade aí atribuída aos fatos” (Co-
mentários ao Código de Processo Civil, tomo V, arts. 444 a 475. 3a ed. rev. e atual.; atuali-
zador: Sérgio Bermudes; Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 137).
87 Mendes, Gilmar Ferreira. “A ação declaratória de Constitucionalidade: a inovação da
Emenda Constitucional no 3, de 1993”, in: Ação Declaratória de Constitucionalidade,
Saraiva, 1994, p. 102.
88 Mendes, Gilmar Ferreira, ob. cit., p. 104.
89 DJ de 19.09.2003, rel. Ministro Maurício Correa.
90 In: Informativo STF no 323, 29/09 a 03/10/2003.
91 DJ, de 23/05/2003.
92 A norma da constituição do Rio Grande do Sul possuía a seguinte dicção: Art. 95. Ao
Tribunal de Justiça além do que lhe for atribuído nesta Constituição e na lei, compete:
XII – processar e julgar: d – a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normati-

340
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

vo estadual perante esta Constituição, e municipal perante esta e a Constituição Federal,


inclusive por omissão.
93 DJ, de 26/04/2002.
94 Ambas publicadas no DJ de 01/03/2002.
95 DJ, de 21/05/1999.
96 Min. Sepúlveda Pertence na ADC no 04-DF, DJ, de 21/05/1999.
97 Mendes, Gilmar Ferreira. “A Ação Declaratória de Constitucionalidade: A Inovação da
Emenda Constitucional no 3, de 1993”, in: Ação Declaratória..., cit., p. 56.
98 STF na Reclamação no 1.880/SP, DJ, de 19 de março de 2004.
99 Min. Sepúlveda Pertence, na ADI 1244-4/SP (QO), 28/08/1997, rel. Min. Neri da Silveira,
in Informativo STF no 81, 25 a 29/08/1997, p. 1.
100 Informativo STF no 321, 23/09/2003.
101 ADI/MC no 596/RJ, DJ, de 22/11/1991.
102 Rp no 1356, DJ, de 14/11/1986, RTJ 120/64.
103 Informativo STF no 321, 23/09/2003, p. 11.
104 Recurso Extraordinário no 167.277-9/RS, DJ, de 29/05/1998, Reclamação 935-0/DF, DJ, de
17/10/2003.
105 ADPC 33 MC/PA, Informativo do STF no 327, de 27 a 31/10/2003.
106 No julgamento da Reclamação 1.880-6/SP, o pleno do Supremo Tribunal Federal, por maio-
ria, julgou constitucional o artigo 28 da Lei no 9.868/99, que conferiu eficácia vinculante
aos julgamentos definitivos de mérito proferidos pelo STF nas ações diretas de inconsti-
tucionalidade.
107 ADC 4-6/DF, relator Ministro Sydney Sanches, DJ, de 21/05/1999.
108 Idem.
109 Ministra Ellen Gracie, na reclamação 2.063-1/RJ, DJ, de 05/09/2003, voto vencido.
110 STF 1a Turma, 220271-8/RS, 221756-1/RN, DJ, 03/04/1998.
111 Reclamação 2.063-1/RJ (QO), DJ, de 05/09/2003.
112 Ob. cit., p. 165.
113 Beltrán de Felipe, Miguel, " Originalismo e Interpretación". Madrid: Ed. civitas, 1989, p. 67.
114 Martins, Ives Gandra da Silva. “Ação Declaratória de Constitucionalidade”. Saraiva, 1995,
p. 132.
115 Vide item 6.3 adiante.
116 O Supremo Tribunal Federal, no agravo regimental na reclamação no 1880-6/SP, DJ, de
19/03/2004, fixou uma exegese mais restrita, permitindo acesso à reclamação destinada
a assegurar a autoridade de decisão vinculante da Corte, apenas àqueles que demons-
trarem regular interesse de agir.
117 Apud Gilmar Ferreira Mendes, ob. cit., p. 105.
118 Ávila, Humberto. “Teoria dos Princípios”. São Paulo: Malheiros Editores, 2003, pp. 26-30.
119 Idem, pp. 30-31. Itálicos do autor.
120 Ávila, Humberto, “Teoria dos Princípios”, Malheiros Editores, 2003, p. 44.
121 Sobre a relação entre coerência, igualdade e legalidade, remete-se o leitor ao item 6 do
Capítulo 1 e item 3.2.2 do Capítulo 2, ambos da parte I.
122 Ávila, Humberto. “Teoria dos Princípios”, Malheiros Editores, 2003, p. 35.
123 Silva, Celso de Albuquerque. “Interpretação Constitucional Operativa”. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2001, p. 79.
124 O exemplo é uma adaptação do oferecido. Humberto Ávila, “Teoria...”, cit., p. 38.
125 Cappalli, Richard B. “The American Common Law Method”. Transnational Publishers,
Inc. , New York, 1996, p. 25.

341
Celso de Albuquerque Silva

126 Cf. item 6.1.4. supra.


127 Ávila, Humberto, “Teoria dos Princípios”, cit., pp. 40-41.
128 De fato, modificar uma regra é gênero de que ampliar e restringir são espécies.
Entretanto, modificar ampliando parece ser mais defensável do que modificar restringin-
do. Isso porque, de regra, em nossa vida comum nós não nos expressamos com base
em afirmações exaustivas e únicas. Exceto, diante de certas condições especiais, não é
considerada uma regra de discurso que quando fazemos uma afirmação, significa que
dissemos tudo o que nós temos que dizer. Por outro lado, é regra de discurso, concreti-
zada no princípio da não contradição, que uma vez que dissemos algo, não podemos,
injustificadamente, recuar no que foi dito. Fora do nosso agir comum, entretanto, em cer-
tas áreas como na legislação e nas decisões judiciais nós consideramos que o que é dito
simultaneamente diz algo e marca os limites de algum domínio. Nesse sentido, o que foi
dito pressupõe a existência de dois grupos: o grupo realmente especificado e um grupo
mais geral que poderia ter sido especificado, mas não foi. A questão a decidir, dada a
ausência de especificação é qual é esse grupo mais geral. E isso é em larga medida uma
função de se o grupo mais geral poderia ter sido especificado. Se ele poderia, mas não
foi, ampliar a norma se mostra inconsistente. Por outro lado, se temos razões para consi-
derar que ele não poderia ter sido especificado ao tempo em que proferida a decisão vin-
culante, nada impede, embora também não obrigue que se proceda a extensão do pre-
cedente ao caso posterior.
129 DJ, de 06/06/2003
1 Pound, Roscoe. “What of Stare Decisis”, in: Fordham Law Review, vol. 10, 1941, p. 13.
2 Schauer, Frederick. “Playing By The Rules”. Clarendon Press-Oxford, 2002, p. 182.
3 Prott, Lyndel V. “When will a Superiour Court Overrule Its Own Decision?”, in: The
Australian Law Journal, vol. 52, jun./1978, pp. 314-315. Veja também, Karl Llewellyn que
lista de forma incompleta, como o próprio autor reconhece, cerca de trinta e duas técnicas
utilizadas pelas cortes para seguir o precedente e dezesseis técnicas para evitar o prece-
dente, seja, limitando-o ou abandonando-o completamente (The Common Law Tradition –
Deciding Appeals, Little, Brown and Company, Boston-Toronto, 1960, pp. 77-87).
4 O poder público na realidade brasileira.
5 Cardozo, Benjamin N. “The Nature of the Judicial Process”. Yale University Press, New
Haven and London, 1977, p. 150.
6 Cappalli, Richard B. “The American Common Law Method”. Transnational Publishers,
Inc., New York, 1996, p. 89.
7 (1977) 3 All ER 996 at 999, apud Theodore M. Benditt, “The Rule of Precedent”, in:
Precedent in Law, Clarendon Press, Oxford, 1987, p. 93.
8 Benditt, Theodore M. “The Rule of Precedent”, in: Precedent in Law, Clarendon Press,
Oxford, 1987, p. 102.
9 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”. Harvard University Press,
pp. 104-105.
10 Cf. Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law”, cit., p. 106.
11 Idem, pp. 107-108.
12 Idem, pp. 108-109.
13 Capítulo 5 da parte II.
14 Pound, Roscoe. “What of Stare Decisis”, in: Fordham Law Review, vol. 10, 1941, p. 12.
15 Heimanson, Rudolf, H. “Overruling – An Instrument of Social Change? New York Law
Forum, vol 7, 1961, p. 174.
16 Cardozo, Benjamin N., “The Nature of Judicial Process...”, cit., p. 66.

342
Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

17 Hesse, Konrad. “Escritos de Derecho Constitucional”. Centro de Estudios Constitu-


cionales, 1992, p. 18.
18 Lawrence v. Texas 41 S. W. 3d 349, cuja íntegra foi obtida no sítio <http://supct.law.cor-
nell.edu/supct/html/02-102.ZO.html>.
19 Lawrence v. Texas, p. 8.
20 Idem, p. 10.
21 Idem, p. 13.
22 Idem, p. 16.
23 Idem, pp. 14-15.
24 Idem, p. 13.
25 Idem, p. 18.
26 Como acuradamente apontou o Justice Scalia em voto dissidente, a corte “Nem uma vez
descreve a sodomia homossexual com um ‘direito fundamental’ ou como ‘uma liberdade
fundamental’, nem submete a lei do Texas ao controle judicial mais rigoroso. Ao invés,
tendo falhado em estabelecer que o direito à sodomia homossexual está ‘profundamen-
te enraizado na tradição e história da nação, conclui que a aplicação do da lei do Texas
à conduta dos apelantes, não passa pelo controle judicial moderado, pois não persegue
um interesse público legítimo e invalida o holding de Bowers que diz o contrário”.
27 Cf. Cohen William, et alii, “Constitucional Law Cases and Materials”, The Foundation
University Press, New York, 1997, pp. 915-919.
28 Sullivan, William Clearly. “What is a Precedent”, in: Georgetown Law Journal, Jan. 1923,
vol. XI, p. 2.
29 Cappalli, Richard B. “The American Common Law Method”. Transnational Publishers,
Inc. New York, 1997, p. 87, Black, H. Campbell, “The Principle of Stare Decisis”, in: Ame-
rican Law Register, vol. 34 old series, 1886, p. 749; Cardozo, Benjamin N., “The Nature of
the Judicial Process”...cit. p. 151.
30 Em Planned Parenthood v. Casey, onde a Suprema Corte Americana reafirmou o holding
essencial de Roe v. Wade, que reconhecia à mulher o direito ao aborto como fundamen-
tal, uma das principais razões para não invalidar a regra precedente foi a justificada con-
fiança social dela decorrente. Sobre esse aspecto, a corte assim se expressou: “por duas
décadas de desenvolvimento econômico e social, as pessoas têm organizado relaciona-
mentos íntimos e feito escolhas que definem a sua própria visão de si mesmos e de seus
lugares na sociedade, confiando na possibilidade de fazerem abortos na eventualidade
dos métodos contraceptivos falharem. A capacidade das mulheres de participar igual-
mente na vida econômica e social da nação foi facilitada pela sua capacidade de contro-
lar suas vidas reprodutivas” (in Cohen Willian et alii, Constitucional Law Cases And
Materials, The Foundational Press, Inc., New York , 1997, p. 619). A seguir a corte reco-
nheceu que o seu poder repousa na legitimidade de suas decisões serem baseadas em
princípios objetivos e não em compromissos com pressões sociais e políticas, para con-
cluir que “a decisão de invalidar o holding essencial de Roe sobre tais circunstâncias, se
erro houve, também representaria um erro, ao custo de um profundo e desnecessário
dano à legitimidade da corte e ao compromisso da nação com a rule of law. É assim impe-
rativo aderir à essência da decisão original de Roe e assim nós fazemos hoje” (in
Constitucional Law..., cit., p. 622).
31 Lawrence v. Texas, p. 17.
32 Cohen William, et alii. “Constitucional Law Cases and Materials”. The Foundation
University Press, New York, 1997, p. 376.
33 Idem, p. 376.

343
Celso de Albuquerque Silva

34 Idem, p. 377.
35 Idem, pp. 378-379.
36 Idem, p. 377.
37 Idem, p. 380.
38 Idem, pp. 380-382.
39 Paden, Amy, L. “Overruling Decisions in the Supreme Court: The Role of a Decision’s Vote,
AGE, and Subject Matter in the Aplication of Stare Decisis After Payne v. Tenessee”, in:
The Georgetown Law Journal, vol. 82. 1994, p. 1.695.
40 Newton, William F. “Prospective Overruling – ‘Sunburst’ Theory”, in: Baylor Law Review,
vol. XVIII, p. 608.
41 Apud Newton, William F. “Prospective Overruling – ‘Sunburst’ Theory”, in: Baylor Law
Review, vol. XVIII, p. 610.
42 Chaïm Perelman nos brinda com o seguinte exemplo: O artigo 191 do Código Civil per-
mite ao Ministério Público impugnar todo casamento “que não foi celebrado diante do
oficial público competente”, Casamayor descreve os fatos de modo pitoresco: Por volta
de 1900, na mairie de Montrouge, o oficial de Estado civil que havia, na ausência do
maire, celebrado uma série de casamentos era deveras um adjunto, mas, infelizmente,
não era o adjunto mais próximo na ordem do quadro dos adjuntos presentes. Ora, a lei
municipal de 1884 estabelece que, embora o maire possa delegar expressamente seus
poderes a um adjunto ou a um conselheiro municipal de sua escolha, sem levar em conta
o famoso quadro, na falta de delegação especial, é, ao contrário, a ordem do quadro que
define a competência. Achando-se o maire impedido, é o primeiro adjunto que celebra os
casamentos, achando-se impedido o primeiro adjunto, cabe ao segundo adjunto etc. Os
esposos haviam sido unidos pelo terceiro adjunto, por exemplo, em vez de sê-lo pelo
segundo. Drama! O promotor denunciou a nulidade dos casamentos. O tempo passa, os
esposos se tornam concubinos, os filhos se tornam bastardos, mas, impávido e sereno, o
processo continua a se arrastar até a Corte de Cassação que, acertadamente, declarou a
lide sem interesse, considerou não ser necessária nenhuma providência. Assim, por obra
do Espírito Santo jurídico, os bastardos voltaram a ser legítimos, os cônjuges voltaram a
ser esposos. A realidade prevaleceu sobre a ficção. Se a Corte de Cassação pôde evitar
as conseqüências deploráveis de um erro ridículo, para voltar à “realidade”, foi recorren-
do a uma ficção jurídica, a do “funcionário de fato” (Lógica Jurídica... cit.”, pp. 230-231).
43 Idem, pp. 191-192.
44 Friedmann, Wolfang. “Limits of Judicial Lawmaking and Prospective overruling”, in: The
Modern Law Review, vol. 29, 1966, p. 604.
45 Algumas vezes a restrição temporal dos efeitos da decisão não é feita no próprio caso em
que a regra antiga foi invalidada, mas em um caso posterior. Assim, por exemplo, em
Linkleter v. Walker, (381, US 618 – 1965) a Suprema Corte Americana aplicou apenas pros-
pectivamente novas regras processuais criminais, para evitar uma libertação em massa
de prisioneiros, ao decidir que a regra fixada em Mapp v. Ohio (367 US 643 – 1961) que
estabeleceu a exclusão de evidência colhidas de forma ilegal, não se aplicava a conde-
nações concomitantes, mas apenas aos processos iniciados após a decisão. Essa forma
de restringir os efeitos da nova regra produz efeitos deletérios sobre a confiança das pes-
soas que ficarão em dúvidas a cada decisão invalidatória qual regra se a nova ou a anti-
ga será aplicada aos casos anteriores à decisão. O ideal é que a corte defina os limites
temporais da decisão na própria decisão que criou a nova regra.
46 Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law...”, cit., pp-127-129.

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Do Efeito Vinculante: sua Legitimação e Aplicação

47 Nicol, Andrew G. L. “Prospective Overruling: A New Device For English Courts?”, in: The

Modern Law Review, vol. 39, 1976, pp. 547-548.

48 163 N.E.2d 89, 98 (1959) I11.

49 163 N.W. 2d 145 (1962) I11.

50 Cf. Nicol, Andrew G. L. “Prospective Overruling: A New Device For English Courts?”, The

Modern Law Review, vol. 39, 1976, p. 547, e Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the

Common Law”, cit., p. 128.

51 Newton, William F. “Prospective Overruling – ‘Sunburst’ Theory”, in: Baylor Law Review,

vol. XVIII, p. 616.

52 Idem, p. 611.

53 Perelman, Chaïm. “Lógica Jurídica”, cit., p. 89.

54 DJ, de 09/11/2001.

55 Reclamação no 2391 MC/PR, in Informativo STF 334, 15 a 19/12/2003.

56 RHC 83810/RJ, in Informativo do STF 334, 15 a 19 de 2003.

57 Newton, William F. “Prospective Overruling”, in: Baylor Law Review, vol. XVIII, 1966, p. 611.

58 Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law...”, cit., p. 122.

59 Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law..., cit., p. 135.
60 Min. Sydnei Sanches no Inquérito 687-4, DJ, de 09/11/2001.
61 Min. Carlos Velloso no Inquérito 687-4, DJ, de 09/11/2001.
62 Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law...”, cit., p. 135.
63 DJ, de 03/05/2002.

64 DJ, de 01/08/2003.

65 DJ, de 05/09/2003.

66 Informativo STF no 325, de 13 a 17 de outubro de 2003.

67 STJ, 6a Turma, HC no 32.586-MG, Informativo STJ no 202, de 15 a 19 de março de 2004.

68 Heimanson, Rudolf H. “Overruling – An Instrument Of Social Change?”, in: New York Law

Forum, vol. 7, 1961, p. 169.

69 Eisenberg, Melvin Aron, “The Nature of the Common Law...”, cit., pp. 136-140.

70 Eisenberg, Melvin Aron. “The Nature of the Common Law”, cit., p. 126.

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