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GRESPAN, Jorge. ​Considerações sobre o método​. In: ___. PINSKY, Carla Bassanezi, ​et al​.

Fontes históricas. 2.ed. São Paulo: Contexto, 2006.

Geovane de Carvalho Melado

Entre o fim do século XVIII e início do XIX, a História desenvolve critérios e


procedimentos de crítica e análise de fontes para reivindicar estatuto de cientificidade e obter
autonomia da filosofia e das ciências humanas. Assim, o método delimitou o território do
historiador e promoveu este à condição de cientista.
Graças ao emprego de instrumentos específicos de trabalho com a História, o
historiador pensava se afastar de "incômodas" interferências. O amante das artes, que
confundia história e ficção, fantasiando os fatos; o filósofo, cujo pressupostos metafísicos
sobre o destino da humanidade passavam por cima do individual, tema por excelência da
História; e o teórico de outras ciências humanas, que considerava o elemento individual
apenas exemplo de leis sociais.
Evitando tais interferências, o historiador deveria "partir de documentos
autênticos da época estudada, de cuja análise rigorosa obteria informações verdadeiras sobre o
acontecido, considerado na sua singularidade absoluta" (GRESPAN, 2008, p.292). Isso seria a
culminação de um longo processo de desenvolvimento dos procedimentos para o estudo dos
vestígios de épocas antigas, que iniciara na Renascença, mas foi surgir oficialmente com a
Escola Histórica alemã de Savigny, Niebuhr e Ranke, graças, em grande parte, ao sucesso
alcançado pelas ciências naturais e seu método experimental.
O historiador passou a ter meios para ordenar seu disperso material, datando-o e
periodizando-o. Assim, apesar de lidar com o individual, irredutível a leis gerais, ele também
poderia afirmar a verdade em seu campo de estudo e atingi-la com um grau de certeza
razoável. A confiança nas potencialidades do método repousava na ideia da verdade como
propósito a distinguir a História da ficção e do romance histórico. Estes, não pretendiam o
relato de fatos verdadeiramente ocorridos, sendo o passado mero contexto de uma ação
imaginada de personagens imaginados, sem a necessidade de o argumento corresponder a
nada de real. Já na História, seria imprescindível tal correspondência. Na verdade, essa
correspondência constitui o elemento-chave na definição de semelhante conceito de verdade.
Conceito este emprestado das ciências naturais, que seria "a adequação entre as proposições
cientificamente formuladas e apresentadas pelo sujeito do conhecimento e o objeto real
descoberto pela pesquisa empírica" (GRESPAN, idem, p. 292). O fato seria a instância
decisiva dos valores da verdade.
Tal definição de verdade pressupõe a diferença fundamental entre sujeito e objeto,
pois o acordo deles só ocorreria numa correspondência proporcionada em certos casos e
justamente pelo método. A autenticidade das fontes, sua análise correta, a seleção dos fatos
individuais e relevantes, tarefas do método que revelam uma ideia de verdade que não está
garantida de antemão, pois a verdade mesma é resultado de operações e atitudes específicas
do historiador, tendo que obtê-las quase que arrancando dos dados uma confissão. A estrutura
do real teria de ser descoberta pelo cientista, por isso, o método é muito mais a forma de
proceder adequada a um conteúdo, é concebido como instrumento de trabalho, como
ferramenta que pode ser bem ou mal utilizada e, por isso, se deve aprender a utilizar. O
método tem mais a ver com o sujeito do que com o objeto de pesquisa, e o sujeito deve
acostumar-se a ele, adestrá-lo, desenvolvê-lo e treiná-lo.
Não se deve exagerar a importância atribuída ao sujeito. A história não é uma
matéria disforme a ser elaborada ou construída pelo método do historiador. A forma não se
apresenta de antemão, mas ela existe e organiza o conteúdo histórico, cabendo ao historiador
a descobrir e representar adequadamente o conteúdo. Neste ponto, a Escola Histórica
compartilha uma das regras do Positivismo, seu contemporâneo, que prega a neutralidade do
saber como esvaziamento da subjetividade do cientista, permitindo dizer adequadamente o
objeto, refletir sua realidade e contar a história "como ela aconteceu", conforme afirmava
Ranke. Ou seja, o sujeito do conhecimento deve empregar o método para descobrir o
conteúdo verdadeira e a forma em que este se articula na realidade, e não para impor a sua
visão de como deveria ser ou se articular o seu objeto. A neutralização da subjetividade
possibilitaria um conhecimento verdadeiro como conhecimento objetivo.
Assim, deveria se evitar qualquer hipótese formulada previamente sobre o tema e
expectativas sobre os resultados, pois poderiam influenciar e distorcer seus resultados. Até
conhecimentos anteriormente acumulados e teorias pré-existentes à pesquisa deveriam ser
evitadas, pois impediriam o historiador de perceber a diferença específica ou a novidade do
objeto que se desvela na pesquisa atual.
A reivindicação de autonomia da História dirigiu-se também às Ciências Sociais,
que vinha se afirmando paralelamente durante o século XIX. Rickert defendia que, embora
estudassem a mesma matéria, o cientista social considera o fato como instância, exemplo de
lei ou regra geral que é seu verdadeiro objeto e objetivo; o historiador considera o mesmo
fato, mas em seu caráter único, irreproduzível e em sua singularidade absoluta. O primeiro
integra mais facilmente sua pesquisa empírica com a teorização prévia e posterior, já o
segundo não pode e não deve fazê-lo, pois distorceria, teorizaria e inscreveria seu objeto num
sistema geral de leis e estas não seriam suas finalidades. O historiador deveria ser neutro e
partir de suas fontes que ele não constrói.
Essa formulações desenvolveram-se até o começo do século XX. Após chegar a
um nível exagerado em suas pretensões de objetividade, a História foi se desvencilhando de
suas convicções cientificistas. Historiadores passaram a reconhecer ser impossível a
neutralidade diante do objeto e perceberam que formar expectativas em relação aos resultados
a serem encontrados é inevitável e desejável, pois são as conjecturas que orientam a pesquisa.
Toda a experiência é construída pela atividade do sujeito que a realiza.
O método não pode se limitar a conferir a autenticidade das fontes e descobrir a
ordem dos eventos que se dão à primeira vista de forma confusa. É preciso que ele componha
sequências de ordens possíveis na realidade, conduza a hipóteses comprováveis e as vá
reformulando no decorrer do processo inteiro. Não há método geral que seja válido para
vários campos objetivos, muito menos qualquer objeto. Ele não é uma ferramenta que pode
receber diversos empregos, mas se constitui na relação entre sujeito e objeto. A teoria e o
método desenvolvem-se em reciprocidade.
Os historiadores passaram a dialogar com seus colegas das Ciências Sociais e a
interdisciplinaridade tornou-se palavra de ordem, uma vantagem reivindicada por cada
pesquisa e cada nova área que surge. Porém, com essa interdisciplinaridade, surgiram
problemas. Se o historiador passa a usar de ferramentas de outros campos das Ciências
Sociais, inspirando-se, aplicando ou empregando conceitos destes, usando-os como meras
ferramentas, apropriando-se delas mas não as produzindo ou aperfeiçoando, onde iniciaria a
tarefa de um e acabaria a de outro? Quais seriam os limites diferenciadores dos "territórios"
de historiadores e cientistas sociais?
O problema é praticamente insolúvel. O importante, porém, é questionar a
integridade do sujeito e do objeto. A interdisciplinaridade impõe a redefinição completa e
profunda dos campos de saber delimitados ainda no século XIX, é a redistribuição do trabalho
intelectual. Um sintoma dessa nova divisão é a contínua multiplicação dos objetos históricos e
das formas de estudá-los. Com a interdisciplinaridade, se mantida concepção presente do
método, encontraríamos graves problemas. Afinal, a interdisciplinaridade, em seu repúdio à
pretensão de neutralidade metodológica, pedia uma forma de pesquisa que se adequasse ao
seu objeto e que, assim, elaborasse a pesquisa ao mesmo tempo em que se formulassem as
questões e selecionasse as fontes. Porém, levar isso às suas últimas consequências, implicaria
em inscrever o método de tal maneira no bojo da teoria ao ponto em que os objetos
descobertos por ele não pudessem se afastar daquilo que era teoricamente previsto. Não
poderia ser descoberto nada realmente novo, surpreendente e que contrariasse a teoria. Cada
teoria seria sempre verdadeira para si mesma, impossível de ser refutada com os únicos meios
que ela aceita como válidos para o teste empírico. Seria uma auto-confirmação. Seria o
extremo oposto da forma tradicional, criando dois extremos: neutralidade inexistente vs
confirmação de uma teoria, levando a resultados nada inéditos.
A admissão de que o método não é neutro, que o sujeito constrói o conhecimento
de que não há uma objetividade pura levou à revalorização da subjetividade. Nem tudo na
pesquisa é estritamente racional, o historiador muitas vezes deve apelar para a sua intuição e
imaginação. A partir dos anos 1970, autores criticaram o saber objetivo, fechado num
domínio unilateral e propuseram considerar predominante a dimensão estética da História - a
narrativa como arte, o ponto de vista como estilo.
Não há, após os críticos da Escola Histórica no século XX, nitidez sobre a
diferença entre o que é ou foi verdadeiro e o que somente se imaginou como tal ou
interpretou-se subjetivamente como tal. Não há mais verdade fora do circuito fechado do
discurso histórico-literário. Em cada teoria ou visão histórica é que se encontram as normas
que atribuem sentido a suas proposições.
Não há verdades absolutas e afirmamos apenas as relativas, entretanto "relativas"
a quem ou a quê? Pode-se dizer que é às distintas visões de mundo, que devem ser respeitadas
em sua diferença por se organizarem em códigos mutuamente incompreensíveis, então temos
aí um problema de incomparabilidade das teorias, que leva aos impasses do relativismo. Sem
ser absoluta, a verdade não pode simplesmente ser relativa. Porém, tanto na forma absoluta
como na relativa a verdade está definida nos termos da polaridade sujeito-objeto.
Há muito de subjetivo no objeto, que de forma alguma é "puro". E há muito de
objetivo no sujeito do conhecimento, que não pode ser considerado neutro. É esse diálogo dos
dois pólos da relação que repõe a diferença pela própria relação. Desta forma é que se
redefine hoje o conceito de verdade em vários campos das ciências humanas, incluso história.
Destarte, não existe objetividade pura, mas apenas a perpassada pelas incontáveis
subjetividades que coexistem no mundo. Assim, não há por que destacar a ideia mesma de
verdade, que poderia ser definida como o acordo das subjetividades. Porém, assim, o método
tem uma função crucial definido por um critério de objetividade: ele não pode estar
totalmente determinado no âmbito de cada teoria, de cada visão subjetiva de mundo, pois é
justamente um dos fatores que permite colocá-las de acordo. A intersubjetividade implica em
regras e normas claras e imitáveis que podem ser realizadas por alguém e que possa ser
repetida por ele mesmo ou por outro.
O pesquisador deve se limitar a afirmações que encontre contrapartida em
material acessível a todos e que possa ser verificado, que seja de domínio público de alguma
forma. A intuição e a imaginação não podem ser critérios de divulgação de generalização dos
conhecimentos, depois de obtidos. Elas são faculdades cuja operação não segue regras de
procedimento, pois são íntimas, individuais e subjetivas.

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