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A FUNÇÃO DO NOME PRÓPRIO E DA LETRA NA OBRA DE VAN GOGH

. Sandra Dias

Van Gogh nasceu no mesmo dia e mês, um ano depois do primogênito do pastor

Theodorus e de Ana, falecido com 6 meses. Na paróquia do pai, seu registro de

nascimento tem o número 29, o mesmo numero do registro de nascimento do irmão

morto, lapso que aponta seu lugar no desejo do Outro: um objeto por outro (VAN

GOGH, 2002,422).

Se “nomear, dizer é um ato” ( LACAN, sem 22, lição 18/3/1975), o batismo é o

ato pelo qual se indica a entrada do sujeito no mundo pela atribuição de um nome,

nome que fixa sua referencia ao ser. O genial artista recebe o mesmo nome do irmão

morto - Vincent Willen Van Gogh.

Dar um nome à alguém implica numa descrição exitosa, pois o objeto passou a

ter um nome. Mas a descrição associada ao batismo pode ser falsa, por isso o Nome

próprio não é a a abreviatura, o acumulo de descrições mais ou menos verdadeiras do

objeto, mas sim é algo da ordem da nominação. Também podemos apontar que ter um

nome indica uma classe segundo uma lógica de classes pré-ordenadas. Levi- Strauss

explicita a função classificatória do nome e aponta o tabu que acompanha o nome : não

dar nome do morto a outro individuo (uma interdição cultural) e não pronunciar o nome

do morto (uma interdição pela homofonia), questão trabalhada por Freud em Totem e

Tabu, onde se elucida que isto se dá porque o primitivo toma nome próprio como

metonímia do sujeito.

Lacan irá abordar o Nome próprio ligado ao tema da identificação mais

especificamente em relação à estrutura do traço unário, fundamentalmente lacunar e

vazio. Ele indica que o Nome Próprio pode ser tomado como ponto de estofo, um
significante em estado puro. Ele explicita que “ não pode haver definição do nome

próprio senão na medida em que nós nos apercebemos da relação da emissão

nomeadora com algo, que em sua natureza radical, é da ordem da letra”. (LACAN,

1961-62, lição 20/12/61, pág. 89,). “Um nome próprio é algo que vale pela função

distintiva de seu material sonoro” (LACAN, 1961-62 , lição 10/01/62, pág. 95). A

característica do nome próprio esta em relação a esse traço de sua ligação com a escrita

pelo qual conserva sua estrutura sonora de uma língua a outra, “marca, com designação

direta do significante com o objeto e onde se insere a função do sujeito, sujeito no

sentido estrutural “(LACAN, 1961-62, lição 20/12/61, pág. 94)

Em síntese, a lógica do nome próprio indica que ele é uma espécie de traço

unário, na medida em que se situa como marca distintiva, sonora e não se traduz . O

traço unário se reduz ao traço sem qualidades, quanto mais ele é apagado mais funciona

como suporte de diferença. O nome próprio como traço distintivo é “ que permite situar

uma função do sujeito na linguagem,aquela de nomear por seu próprio nome” (LACAN,

1961-62, lição 20/12/61, pág. 94),sendo da função da escrita, função de signo, enquanto

ele mesmo se lê como um objeto.

Se o traço surge do apagamento do objeto, o nome próprio como significante

puro surge como algo que esta ali para ser lido, lido como linguagem quando ainda não

há escrita. No seminário da Identificação, o nome próprio é traço, que esta lá na origem,

antes que o sujeito se identifique numa nominação, “é essa marca aberta a leitura ... e aí

esta imprimido algo, talvez um sujeito que vai falar” (LACAN, 1961-62, lição 20/12/61,

pág. 94).

No seminário XII “Os problemas cruciais da psicanálise” Lacan retoma a

questão do Nome próprio a partir da definição de Kripke. Nomear não é atribuir

características, metáforas, descrições a algo; nomear é ser capaz de designar


rigidamente algo. Ou seja, é possível nomear alguém ainda que tenha perdido todas as

características, todas identificações associadas a ele. Ter um nome é ser passível de ser

nomeado sem que se conheça nada de verdadeiro do objeto, sem que fiquem aderidas ao

nome, certas metáforas que constituirão seu significado.

Portanto nomear é uma coisa, descrever é outra. Van Gogh foi nomeado com

Vincent Willen. É também o nome de dois avos e do irmão morto. Qual a descrição de

Van Gogh ? Filho de Theo, Neto de Theo, irmão de Theo, sobrinho de Vincent, tio de

Vincent, neto de Vincent, neto de Willen, amigo de Gaguin, o holandês, o ruivo, o

louco, o evangelista, o pintor. Tudo isto poderia ser falso e ainda Vincent ser Vincent.

“Dizer que um nome próprio é sem significação, é alguma coisa de

grosseiramente errada” diz Lacan (1964-65, lição 06/01/65, pág 65). O “ nome próprio

é uma função volante,( ...), ele é feito para ir preencher os buracos para lhe dar sua

obturação, para lhe dar seu fechamento, para lhe dar falsa aparência de sutura (LACAN,

1964-65, lição 06//01/65, pg. 74) . O Nome próprio é um buraco destinado a preencher

outro buraco.

Lacan retoma o Nome próprio em sua função significante puro e que tem função

de designação para indicar que nele se insere uma função que é a do sujeito, como

testemunha do fato de nomear-se por seu nome próprio (LACAN, 1964-65, lição

09/12/64, pág 31). Se “Vincent é o nome do que se chama Vincent” isso constitui “uma

outra sutura, um ponto de amarração (LACAN, 1964-65, lição 16/12/64, pág. 55)

O nome próprio como significante puro, surgindo no lugar do apagamento do

objeto, inscreve no real do ser falante a diferença como tal. Se o traço apaga a Coisa

(das Ding) e deixa rastros desse apagamento, esses rastros são rastros de gozo o que tem

implicações clínicas, pois há que se considerar os diversos apagamentos , o que Lacan

chama modos de manifestação capitais do sujeito. O ato de nomear desencadeia


variantes que devem ser consideradas cruciais e nos levam a investigar as

particularidades deste na vivência subjetiva.

O nome próprio é tanto da ordem da fonação como da ordem da letra que se

inscreve neste lugar cavado pelo traço unário, que já está lá antes mesmo de ser lida.

Para funcionar como nome que diferencia o sujeito, isto para que funcione como

significante nome-próprio é preciso uma passagem, que a letra seja retomada e

transmitida pelo significante na fala, com seus efeitos de voz.

A função do nome transmitida pelos efeitos de fonação se diferencia da

transmitida pela escrita que está relacionada à função do pai, que abre uma via de acesso

do sujeito a uma identificação simbólica. O Nome-do-Pai, como instaurador da Lei

simbólica, sustenta a função de nomeação porque mais do que o nome do pai é pai que

nomeia. Lacan acrescenta que” ... enquanto o sujeito fala, ele só pode avançar sempre

mais adiante na cadeia, no desenrolar dos enunciados, mas que dirigindo-se a aos

enunciados por esse fato mesmo, na enunciação ele elide algo que é propriamente

falando, o que lê não pode saber, isto é o nome de que ele é enquanto sujeito da

enunciação(LACAN, 1961-62, lição 10/01/62, pág. 101).

Se a constituição do sujeito se inaugura por uma escrita , marca de antecipação

do sujeito, ligada ao traço unário, é a letra apaga a marca pela intervenção do Nome do

pai que permite a dedução de que havia ali um sujeito, essa leitura é a antecipação do

sujeito. O pai de Van Gogh não sustentou o lugar fálico para o filho, o que terá como

conseqüência sua instalação numa posição messiânica tratando de salvar e cuidar dos

miseráveis, suplência feita através do delírio de ser evangelizador, depois

evangelizador-pintor , criador do Atelier do Futuro, que o levará a morte.

O tumulo do irmão ficava no jardim da paróquia onde o pai pregava, e pelo

menos aos domingos ele passava enfrente para ir ao culto com a família. Que efeitos
essas letras impressas no túmulo evocavam nesse sujeito? Como a emissão de seu nome

lhe soava? Em uma carta diz que quer ter “ asas para pairar acima da vida” e “ asas para

pairar acima do tumulo e da morte” (apud CABANNE, carta 12/09/1875, pág. 17). Ele

escreve que uma noite, sobre seu túmulo, dois pensamentos lhe marcam: “ Deixar-se

morrer a si mesmo” e “ Quem nos libertará do cadáver dessa morte” ( VAN GOGH,

carta 91/ Nagera1980, 38)., período caracterizado por um fanatismo e obsessão “ ser

pintor e dar o sangue” (VAN GOGH, Carta 07/01/1882, 75).

Em seu delírio identifica-se com Cristo , aquele que se sacrificou para salvar o

mundo, todas as decisões de vida e as rupturas se dão na data do nascimento do filho de

Deus. Na Academia de Pintura, diante da pergunta -“Quem é você?”, responde: “Sou,

Vincent , o holandês” (CABANNE, 1985, pág. 89) Nomeia-se num discurso, por um

nome e uma descrição que remete a pátria. Há outros dezesseis Vincent que o

antecederam na linhagem paterna entre pastores e comerciantes de artes.

Ele utiliza o Nome Próprio como descrição, traços que são representações,

sentidos que descrevem o objeto, metáforas que tentam identificá-lo. Descrever é

atribuir características enquanto nomear que implica em designar algo rigidamente,

diferença que não se coloca para Van Gogh. Quando o professor de gramática lhe

pergunta se Van Gogh é nominativo ou dativo, ao qual ele responde que para ele tanto

faz (carta 126 apud NAGERA, 1980, 47).

Eu sou Vincent o holandês, indica um locutor que sabe, que crê nos traços que

possui o referente.O conceito de Kripe interessa ai porque aponta que a referencia de

um nome não pode ser determinada por traços singularizantes e por propriedades

identificantes. Para ele cada nome expressa um sentido ( ou vários) e pelo sentido se

acede a referencia, isto é: ele ilumina pela descrição.


Ter certeza de seu nome “seria a definição própria da loucura”, afirma Lacan,no

seminario 21 “Len non dupes errent” (1973-74, p.165,) , uma vez que o sujeito é

dividido e não tem certeza de ser representado por um nome, mas sim no intervalo

entre os nomes. A certeza do nome próprio indica aquele que não duvida de uma

identidade em si ( entidade ideal), é um sujeito que trata o mundo como sendo sem

equívocos, mundo em que o nome não vem nem recobrir como véu da fantasia a

inconsistência do Outro. O nome é a encarnação do próprio real, aqui o real aponta para

a certeza do nome no sentido literal. Assim loucura é a crença que o sujeito tem em seu

nome próprio, se por nome próprio se define o que encarna o buraco.

Vincent rejeita o patronímico na assinatura das obras ( VAN GOGH’S

LETTERS, carta 24/03/1888) rejeição do Nome do Pai que não é sem conseqüências. A

função da metáfora é afastar o Nome Próprio das funções de gozo que lhe são

atribuídas, apagando sua dimensão sonora: no caso de Vincent substituir a criança

morrendo, apagando o gozo que lhe é fundamentalmente atado.

Na psicose se vê ressurgir de modo massivo a função do Nome Próprio. No

nome Vincent há algo que carrega muito sentido e sómente sentido, pois ele não joga

função de semblante do simbólico que consiste em irrealizar o mundo. O nome que o

nomeia toma sentido agarra-o no lugar, ao invés de nomeá-lo fazendo dele um Sem

nome no campo do Outro, um ninguém - posição que lhe permite escapar do horror de

ser gozado.A evocação de seu nome provoca efeito de gozo pois presa a um sentido em

excesso que pode-se constatar em sua frase “não viverei muito, uns seis ou sete anos”,

na data da morte marcada na soma dos ponteiros no quadro Os Comedores de batata e

na cifra que registra seu nascimento 29 de julho, todas indicando 37 anos. É assim que

ele se torna claramente esse objeto em agonia da morte onde o Outro goza
O nome próprio mostra que, antes de toda fonematização, a linguagem encerra a

letra como traço distintivo , portanto ele tem valor de assinatura, marca em que pode ser

lida alguma coisa a respeito da identidade do sujeito. As várias mudanças do nome na

assinatura até considerá-la desnecessária permitem elucidar a função do Nome próprio

na psicose em sua relação com a letra. Cada ato de assinatura do nome coloca em cena

seu estatuto de cifra –cifra da relação do sujeito com o Outro. Se a assinatura propõe-se

como uma cifra, sua leitura não tem, então, nada a ver com a significação, mas com a

letra, no sentido lacaniano do termo, apresentando-se, desse modo, para uma leitura

como deciframento (ALLOUCH, 1995, pág. 109-110)

Van Gogh assina algumas telas e em sua maioria deixa sem assinatura. As obras

assinadas na infância trazem o nome com o patronímico enquanto que as posteriores só

o nome Vincent. Na véspera do Natal, após discussão com Gauguin, o pai do Ateliê do

Futuro, Van Gogh o segue na rua com uma navalha aberta pronta para atacar. Ao ser

surpreendido com o olhar feroz do amigo, retorna à casa amarela e corta a orelha na

linha da cabeça. Limpa-a, coloca-a num envelope e a deixa para ser entregue para a

prostituta que dias antes respondera brincando a seu convite para posar como modelo:

mais vale suas orelhas. Aí algo se impõe a Van Gogh, um sentido, ele é gozado. A

mensagem não retorna invertida do Outro, o sujeito não se reconhece no enunciado,

pois a nomeação não pode ser autenticada porque uma letra porta excesso de sentido.

Nesse mesmo dia escreve nas paredes da casa Sou o Espírito Santo. Sou são

Espírito. Identificação com cristo revelada, filho sacrificado ao Deus-pai, conjugação de

Nascimento morte. Após esse episódio de auto-mutilação sua assinatura se altera. Antes

assina suas pinturas com o nome Vincent onde o V inicial era escrito com um ângulo

muito agudo, depois se transforma em um V arredondado desaparecendo por completo a


angulosidade (Nagera, 1980, 157) , extremamente visível no quadro que representa sua

cadeira vazia.

A assinatura é a marca do sujeito, sua identidade, inscrição do nome próprio,

atesta a singularidade, traço inventado a partir do apagamento da coisa. A letra V é a

primeira letra do Nome Vincent e sem dúvida um traço, traço único que faz parte da

rasura da verdade do sujeito que fala. Van Gogh em seu delírio mostra o caráter litoral

da letra, ele é o próprio litoral, mostra a letra em sua face real.

Na tarde de 27/07/1890 ele dá um tiro de pistola no peito, ficando em agonia de

morte até dia 29, cifra marcada no seu registro de nascimento. Pintava a soturna

paisagem Trigal com corvos e carregava uma carta no bolso do qual se destacam as

frases: “no momento em que as coisas, entre marchands de quadros de artistas mortos e

de artistas vivos “, “em meu próprio trabalho arrisco a vida e nele minha razão arruinou-

se. .. Mas o que é que você quer?”(carta 652)

Bibliografia:

ALLLOUCH, Jean. Letra a letra: Transcrever, Traduzir, Transliterar. RJ: Campo

Matemico, 1995

CABANE, Pierre.Van Gogh. SP: Ed. Verbo, 1985

Dor (1991), em seu artigo Aproximação psicanalítica da função do nome

JULIEN, Philippe Le nom propre et La lettre. In Littoral 7/8 “L’instance de la lettre”.

Paris:Eres , 1983

LACAN, Jacques Seminário XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. RJ:

Jorge Zahar Ed, 1985


Seminário XII: Os problemas cruciais da psicanálise, publicação interna

CEF, 2008 (Lacan, sem 22, lição 18/3/1975),(LACAN, 1964-65, lição 09/12/64, pág

31).Lacan, 1961-62, pág. 89, lição 20/12/61)

Le Séminaire Livre XXI: Les non dupes errent . Seminário inédito. 1973-
1974, Pag 165

NAGERA, Humberto .Vincent Van Gogh: um estúdio psicológico. Barcelona:Ed.

Blume, 1980

VAN GOGH, Vincent Cartas a Théo. Porto Alegre: L&PM, 2002

VAN GOGH’S LETTERS Cartas de Vincent Van Gogh a Theo Van Gogh, carta de

24/03/1888) extraído em 30/03/2009, 1312 hs do site www.webeexhibits.org

WALTHER, I.F. e METZGER, R. Van Gogh.La obra completa: pintura. Madrid:

Taschen, 2001

SOBRE O AUTOR

Sandra Dias. Psicanalista, Doutora em Psicologia Clinica PUCSP, Professora Titular e

Coordenadora do curso pós-graduação lato senso “Psicanálise e Linguagem: uma outra

psicopatologia da PUCSP, Membro fundador do Espaço Psicanálise e da OSCIP Gestae:

Instituto de Pesquisa, Ensino e Ações, em Saúde Mental, autora do livro “ Paixões do

ser: pulsão e objeto na psicose” editado pela Companhia de Freud

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