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Universidade Federal Fluminense

Instituto de História
Curso de Graduação em História

DOUGLAS COUTINHO DIAS

O ABADE REVOLUCIONÁRIO:
INVESTIGAÇÃO DAS BASES E IMPACTOS DA OBRA DE
GUILLAUME RAYNAL

Niterói
2017
DOUGLAS COUTINHO DIAS

O ABADE REVOLUCIONÁRIO:
INVESTIGAÇÃO DAS BASES E IMPACTOS DA OBRA DE
GUILLAUME RAYNAL

Monografia apresentada ao Instituto de


História da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do título de Licenciado em
História.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Rodrigo Bentes Monteiro


1º Examinador – Orientador

Prof. Dr. Guilherme Pereira das Neves


2º Examinador – Leitor Crítico
RESUMO

DIAS, Douglas Coutinho. O abade revolucionário: investigação das bases e


impactos da obra de Guillaume Raynal. 2017. 99f. Monografia (Licenciatura em
História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ, 2017.

O presente trabalho tem como objetivo investigar as influências e diálogos que


marcaram a confecção da História das duas Índias, do abade Raynal, bem como
divisar um pouco mais sobre seus impactos, especialmente na América. A partir de
um estudo sobre as biografias do abade publicadas na França no final do século
XVIII e início do XIX, busca-se compreender um pouco mais sobre a trajetória
intelectual de autor tão referenciado, empregando especial atenção aos círculos de
convivência social e de produção intelectual, discussões sobre o que seria a autoria
em tal ínterim, e um questionamento sobre o papel de Raynal como influência não
apenas política, como filsófica.

Palavras-chave: Iluminismo; Raynal; Círculo Revolucionário; Autoria


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 3
CAPÍTULO 1 .............................................................................................................. 7
. O problema da biografia: Escola Metódica e “Positivismo”..................................... 9
. Raynal desmascarado – formidável correspondência........................................... 14
. Um elogio filosófico e político................................................................................ 18
. A história específica do abade Raynal................................................................... 20
. A visão biográfica de M. B. Lunet.......................................................................... 22
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................ 25
. Raynal e sua “máquina de guerra”........................................................................ 26
. Os impactos na América portuguesa..................................................................... 38
CAPÍTULO 3 ............................................................................................................ 47
. Thomas Paine revisitado – um teórico radical....................................................... 48
. O Senso Comum e a Carta a Raynal – contextos e significados.......................... 53
. O anti-colonialismo de Raynal na Histoire............................................................. 58
CAPÍTULO 4 ........................................................................................................... 64
. Os iluminismos de Jonathan Israel........................................................................ 66
. Spinoza: o anticristo inspirador.............................................................................. 71
. O círculo revolucionário......................................................................................... 76
CONCLUSÕES ........................................................................................................ 82
BIBLIOGRAFIA........................................................................................................ 88
AGRADECIMENTOS

O trabalho de pesquisa, tão solitário em sua natureza, oferece raros


momentos para a justa partilha das alegrias. Está página, por essa razão, adquire
importância salutar. Sem a intenção de estafar o leitor e mergulhá-lo em tédio
profundo, aproveitamos o momento para agradecer algumas pessoas vitais à nossa
ainda curta trajetória.
Agradeço primeiramente aos familiares mais próximos. Muitos auxiliaram-me
sem perceber, apenas pela presença amiga. Minha mãe, Lúcia, exemplo constante
de força e esperança; meu avô, Herval, a referência de luz para toda a família,
constantemente alegre e sereno, no auge dos 92 anos. Meu pai e irmãos, de cujas
amizades jamais abrirei mão. As tias, tios e primos, sempre prontos para animar os
espíritos com os almoços bem temperados e as famosas rodas de samba que me
formaram enquanto indivíduo.
Ao orientador do trabalho, Rodrigo Bentes Monteiro. Muito obrigado pelos
conselhos amigos que me acompanham desde o segundo período da graduação.
Agradeço também os puxões de orelha necessários e as correções atentas às
versões dos capítulos, sempre enviadas no auge das madrugadas.
Aos professores que marcaram minha trajetória na graduação. Guilherme
Pereira das Neves, com sua impressionante erudição, foi o primeiro professor que
me serviu de exemplo intelectual, mesmo que eu reconhecesse a distância
avassaladora entre nossos intelectos. Obrigado pela inspiração constante. Leonardo
Marques e Renato Júnio Franco, ambos dotados de generosidades e capacidades
intelectivas inegáveis. Obrigado por demonstrarem o quão alto se pode chegar com
tão pouca idade, sin perder la ternura. A Luciano Raposo Figueiredo, por ensinar-me
na prática que um currículo recheado não traz como resultado subsequente a
arrogância. Obrigado pela humildade, amizade e ensinamentos. Espero um dia ter
sua capacidade de escrita e conhecimentos sobre a América portuguesa. Marcelo
da Rocha Wanderley, por ter me introduzido à minha primeira paixão enquanto
estudante de História, ao apresentar a espetacular civilização inca. E finalmente, a
Marcos Alvito, que me ensinou melhor do que ninguém o quanto o ofício de
professor é gigantesco. Impossível estudar contigo e não ser marcado pela
experiência. Obrigado pelo aprendizado constante e pela sensibilidade rara.

1
Para o último parágrafo, o reconhecimento aos amigos. No mundo
espetacularizado do show business, deixa-se sempre o melhor para o fim. Aos
companheiros fiéis do primeiro período que se tornaram verdadeiros irmãos, à moda
carioca de se tratar as amizades: Felipe Besada, Ian de Sarges, Mateus Gusmão,
Matheus Viug e Pablo Afonso. Ao sempre carismático Luiz Cládio Santanna, figura
tão excêntrica quão genial. Obrigado pelas caronas e conversas filosóficas nas
madrugadas da vida. Agradeço também a Gabriel Santos, Tauan Cordeiro e
Marcello Jin, presenças valorosas e amigos que carregarei para jornadas futuras. A
Yasmin Alcântara, das mais belas almas que conheci. A pureza do seu canto e a
fluidez de seu francês acompanham a grandeza dos seus sentimentos. Finalmente,
aos amigos de infância e adolescência, especialmente a Adilson Marins, o “Pulga”,
Axel Ayres, Rodrigo Carvalho e Taiguara Carvalho.

2
INTRODUÇÃO

Guillaume-Thomas François Raynal, mais conhecido pela titulação de abade


seguida de seu último sobrenome, viveu entre 1713 e 1796. Escritor de reconhecida
fama, historiador, jornalista, filósofo... Raynal figurou de forma marcante entre os
autores mais lidos e comentados do iluminismo, legando à história uma obra vasta e
uma insólita frustração com a revolução resultante deste novo pensar, do qual foi
eminente protagonista. Ordenou-se padre no Colégio dos Jesuítas de Pezenas,
ingressando pouco depois na Companhia de Jesus1. Abandona a Companhia em
1748, passando a conviver com os círculos enciclopedistas pelos quais seduziu-se,
escrevendo para o Mercure de France. Passa a frequentar, já no início da década de
1750, os salões de Holbach e Helvétius. As conexões alcançadas pelo trabalho no
Mercure, mas principalmente pelas reuniões realizadas nos salões do barão
D’Holbach, possibilitaram as diversas parcerias que estabeleceria com outros
estimados membros da intelectualidade francesa. Denis Diderot se tornará presença
constante em sua trajetória. É à sua pena, afinal, que se creditarão as mais
apaixonadas passagens da obra máxima de Raynal, a Histoire de deux Indes.
Forçoso mencionar também a relação inicialmente amistosa com Jean-Jacques
Rousseau, posteriormente transformada em rivalidade alimentada por debates
ferrenhos. A querela não foi suficiente, no entanto, para que Rousseau deixasse de
reconhecer os méritos distintos do abade2.
Um trabalho focado em análise cuidadosa de figura tão interessante pode
sempre render frutos promissores. Mas quem é Raynal? Para além de mera
apresentação biográfica, convém questionar a história, buscando a percepção da
imagem do abade que sobrevive em meio aos embates da memória. A resposta
provavelmente teria como fio condutor o impacto de sua Histoire nos processos de
luta por emancipação inspirados pelo contexto das Luzes. Uma das inspirações da
Revolução na França, importante motivador de lutas na Inconfidência Mineira ou na
Conjuração Baiana, documento imprescindível para uma história intelectual da
independência dos Estados Unidos. Junto a tais importâncias fundamentais, na certa
alguns questionamentos acompanhariam as conclusões. Como explicar o

1
FIGUEIREDO, Luciano R.A.; MONTREAL FILHO, O.. “Prefácio”. In: RAYNAL, Guillaume-Thomas François. A
Revolução da América. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional/Banerj Cultural, 1993. p. 1-35. p. 1.
2
“Carta ao Sr. padre Raynal – Diretor do Mercure de France”. In: Jean-Jacques Rousseau. Coleção Os
Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 363-364.

3
reconhecimento apenas acadêmico de nossa personagem, longe dos louros
atribuídos a outros autores influentes de seu período, como o supracitado Rousseau
ou os sempre instigantes Voltaire e Montesquieu? O impacto político da Histoire é
relembrado em intensidade análoga ao aparente desprezo às capacidades
filosóficas de seu autor. Ora, a autoria mesmo é ressignificada, supostamente
diminuindo a originalidade e o papel intelectual do abade.
No primeiro capítulo, investigamos algumas das primeiras impressões sobre
a obra e a trajetória de Raynal. Trabalhando com biografias produzidas do final do
século XVIII até meados do XIX, na França, apontamos como os trabalhos basilares
sobre a figura do abade dão a tônica de algumas leituras subsequentes de seu
trabalho. Destacam-se neste ínterim as obras de Antoine Jay3 e M. B. Lunet4,
imortalizando a visão de um autor de salutar importância política, porém pouco
respeitado enquanto um clássico, um inovador filosófico. Após breve exortação
sobre o gênero biográfico e sua importância no período estudado, propomos um
questionamento das afirmações trazidas, de forma explícita ou não, pelas biografias
de Raynal, especialmente no tocante à separação entre os impactos políticos e
intelectuais. Será que não andavam de mãos dadas? Seria prudente remover de
Raynal a honraria de um autor clássico, ao mesmo tempo em que reconhecemos
sua obra como tal? A “moda biográfica” do século XIX trouxe valioso volume de
estudos voltados à grandes personagens da história. A preocupação com a
quantidade, no entanto, muitas vezes produziu trabalhos pouco críticos, bem como
outros falhos em seu estudo primordial: justificar ao leitor os méritos que legitimem
um ensaio sobre a vida e a obra do “homenageado” em questão.
O segundo capítulo introduz os elementos de “virada” no problema apontado
no capítulo anterior. Partindo do transformador livro de Anatole Feugère5, divisamos
uma miríade de leituras influenciadas pelo supracitado pesquisador francês, que
buscaram ressignificar o papel de Raynal para um posicionamento mais central no
processo histórico por ele influenciado e agora protagonizado. A partir de Feugère,
autores como Daniel Mornet6, Hans Wolpe7, Yves Benot8 e Michele Duchet9 lançam

3
JAY, Antoine. Précis historique sur la vie et les ouvrages de l’abbé Raynal. Paris: Anable, Coste et cie, 1820.
4
LUNET, M. B. Biographie de l'abbé Raynal. Vanves, Hachette Livre - Bnf, 2016. (1866).
5
FEUGÈRE, Anatole. Un précurseur de la Révolution: abbé Raynal. Angoulême: Ouvrière, 1922.
6
MORNET, Daniel. Les origines intellectuelles de la Révolution française: 1715-1787. Paris, Tallandier, collection
Texto, 2010 (1933).
7
WOLPE, Hans. Raynal et sa machine de guerre: l’Histoire des deux Indes et ses perfectionnements. Stanford,
CA: Stanford University Press, 1957.

4
novas luzes ao trabalho efetuado pelo abade, com destque ao termo “máquina de
guerra” cunhado por Wolpe para se referir às consequências da Histoire. Mesmo
conduzindo estudos sobre o papel central de outros autores na confecção do
projeto, quase à moda enciclopedista, os historiadores supracitados preferem tecer
reflexão crítica e minuciosa sobre o processo, examinando os contributos diversos,
do que diminuir a presença de Raynal por tais adições e auxílios. Desta tendência
nascerá a inspiração para os estudos da nossa historiografia, com destaque ao
pioneirismo de Katia Mattoso10 e a contributos de outros autores na construção do
debate necessário sobre as influências da Histoire na América portuguesa.
No terceiro capítulo embarcamos em direção à América inglesa, no afã de
investigar a força da presença de Raynal no referido processo emancipatório,
amealhando assim mais argumentos para entender melhor a extensão de seu
trabalho. Para tal, apontamos nosso foco à figura de Thomas Paine, ideólogo
importantíssimo e escritor de qualidades óbvias, motivador e propagador de diversos
ideais que animaram a revolução nas Treze Colônias. Paine acusa Raynal de
“plagiá-lo” em documento endereçado ao público, mesmo que abdique da
agressividade comumente utilizada em documentos de alcance análogo publicados
pelo britânico ao longo dos anos. Pesquisamos um pouco mais sobre a trajetória de
Paine com o auxílio de algumas obras e artigos de referência para não apenas
entender a acusação, mas também compará-la ao tom do autor em cartas públicas
pregressas. O quanto poderíamos inferir do papel de Raynal naquele processo a
partir das reclamações de Paine? Se os principais elementos que conjuminam a
Histoire de Raynal ao Senso Comum de Paine seriam, nas palavras deste, o
discurso anti-colonial, dedicamo-nos a demonstrar o teor do mesmo nas obras
estudadas, intentando divisar estratégias políticas adotadas por Raynal em sua
escrita, bem como a preocupação editorial do mesmo nas modificações impostas a
edições posteriores, variáveis de país a país.
Finalmente, concluimos a monografia com o quarto capítulo, no qual
investimos em estudo minucioso sobre a polêmica trajetória de Jonathan Israel e sua
tese dos dois iluminismos. Visivelmente problemática, porém riquíssima, a tese nos
serve de elemento para analisar afinal como poderíamos consolidar o abade como

8
BENOT, Yves. Diderot, de l’athéisme à l’anticolonialisme. Paris: Maspero, 1970.
9
DUCHET, Michèle. Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières, Paris: Maspero, 1971 & Diderot et
l‘Histoire des deux Indes ou l’écriture fragmentaire. Paris: Éditions A.-G Nizet, 1978.
10
MATTOSO, Katia. Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969.

5
figura histórica não apenas a partir dos impactos políticos mas também por seus
méritos filosófico-intelectuais. Apontamos as bases principais das ideias defendidas
pelo autor, problematizando-as com o cuidado de quem não adota acriticamente
inserções teóricas apenas por satisfazerem anseios pessoais da pesquisa,
direcionando parte significativa do estudo à demonstração de algumas ideias
daquele que seria para Israel a principal influência do grupo mais “radical” do
iluminismo francês: Baruch Spinoza. Com o cuidado de identificar o que há de tão
diferente nos escritos do filósofo holandês, abordamos também um pouco os
círculos revolucionários formados no século XVIII, com especial atenção ao formado
nos salões de D’Holbach.
Com debate necessário sobre a questão da autoria, exposto em nossas
conclusões, encerramos o trabalho sem pretensões de fechar assunto tão vasto e há
tanto tempo estudado por profissionais de respeito. Acreditamos, entretanto, na
qualidade aditiva de nossa pesquisa, buscando uma releitura do significado de
Raynal não mais apenas a partir do viés político, essencial porém plenamente
demonstrado. É possível que o abade filósofo, há tanto tempo menosprezado em
sua filosofia, possa oferecer mais à curiosidade do pesquisador do que supúnhamos
anteriormente.

6
CAPÍTULO 1

En ce temps où la biographie est à la mode, trop à la mode, où, sous de


titres variés, tant de collections évoquent les vies d'hommes illustres, - à des
degrés divers, - voilá une biographie qui n'est pas "romanceé", qui repose
sur le avoir le plus riche et le plus sûr,et qui dépasse, même en valeur
litteráire et en attrait, la plupart de ces récits, singulièrement dangereux pour
l'histoire, parce qu'ils n'en sont bien souvent que la contrefaçon.

BERR, Henri. “Luther et son milieu, à propos du Martin Luther de Lucien


Febvre”. Revue de Synthèse Historique, n. 22, p. 5-19, 1929.

Que ligação poderia haver entre uma resenha escrita pelo eminente filósofo
Henri Berr na revista que o mesmo fundara quase trinta anos antes, analisando a
leitura de Lucien Febvre1 sobre a vida e o “destino” de Martinho Lutero, e um
trabalho que se propõe a analisar as influências e impactos da bibliografia do abade
Raynal? Uma leitura mais apressada e descuidada de tão importante texto poderia
levar-nos a conclusões precipitadas, à presunção de que não se trata de nada além
de “mera” resenha acadêmica, análoga a tantas outras produzidas ao longo do
tempo em publicações distintas espalhadas ao redor do globo. Porém, não
precisaríamos nos entregar a uma descrição densa do texto, tomando emprestado o
famoso conceito de Clifford Geertz, para enxergar um pouco além do aparente. Berr,
que recebeu de Lucien Febvre e Fernand Braudel a alcunha de “predecessor dos
Annales”2, foi um dos primeiros intelectuais a reagir contra o predomínio de
determinada forma de se escrever História, típica da segunda metade do século XIX,
especificamente. Desde a escrita de sua tese de doutorado, L'Avenir de la
philosophie. Esquisse d'une synthèse des connaissances fondée sur l'histoire
(finalizada em 1898, mas republicada com modificações em 1899), o filósofo
entrega-se a reflexões de fulcral importância em relação ao papel do conhecimento
histórico, que não poderia e nem deveria ser exercício de erudição “inútil”, mas sim
pontuado pelo estudo das experiências humanas, formuladas pelo francês no
conceito de “psicologia histórica”. O destaque dado àquilo que Berr identifica como
“erudição” não produziria outra coisa senão obras que não passavam de estéreis

1
FEBVRE, Lucien. Martin Lutero: un destino. México, Fondo de Cultura Económica, 1998.
2
DUMOULIN, Olivier. “Henri Berr (1863-1954). In: BURGUIÈRE, André. Diccionario de ciencias históricas.
Madrid, Akal, 1991. p. 75-76

7
compilações de fatos e documentos, de leitura dificultada e aborrecida. Daí adviriam
as acusações numerosas em relação à História enquanto conhecimento
“excessivamente científico”, de pouco contato com a realidade3. A fundação da
revista citada no epílogo é pautada nas pretensões do autor em buscar um
tratamento desse conhecimento que fugisse à “história historizante”, para usar o
termo cunhado pelo próprio filósofo, buscando na síntese o elemento-chave para
produzir trabalhos diferenciados.
Ora, ainda permanecemos presos ao questionamento levantado na página
anterior. É preciso retornar ao texto, no afã de apontar conexões. Perceba, caro
leitor, que Berr, ao elogiar o trabalho do amigo e companheiro com todas as honras
possíveis, o evoca enquanto uma biografia diferenciada, em tempos nos quais a
“biografia era moda”4. E todos aqueles que já se entregaram à leitura do espetacular
livro resenhado lembrarão a insistência de Febvre em afirmar na introdução que sua
obra não se tratava de uma biografia5. Tais elucubrações apontam inevitavelmente à
existência de um problema identificado por ambos os autores em relação à questão
da biografia. Que problemas seriam esses? Que tipo de História é este, afinal, contra
o qual Berr se levanta e também mais tarde Febvre e Bloch, sistematizando “Escola”
nova pautada em um métier aparentemente completamente distinto? Este primeiro
capítulo é voltado ao estudo das primeiras biografias do abade Raynal, escritas
ainda no século XIX. Cabe, por uma questão de esmero e plenitude de nosso
trabalho, erigir o questionamento teórico e historiográfico antes de iniciar o debate
de tais obras. Qual o “lugar de produção”6 dos escritos que analisaremos a seguir?
Há correlação entre o que normalmente se diz dos prepostos básicos de tal campo
historiográfico e os exemplares dos quais dispomos? Não devemos perder mais
tempo com as questões. Sigamos adiante em busca das resoluções.

3
BERR, Henri. A síntese em História. São Paulo, Renascença, 1946. p. 5-9.
4
“En ce temps où la biographie est à la mode, trop à la mode...”
5
“Uma biografia de Lutero? Não. Uma opinião sobre Lutero, nada mais”. In: FEBVRE, Lucien. Martin Lutero: un
destino. Idem. p. 11 .
6
Conceito de Michel de Certeau, exposto no capítulo “A Operação Historiográfica”, retirado do livro A Escrita
da História. Aproprio-me em certo sentido, no entanto, uma vez que creio que a pressão institucional que seria
marco desse lugar de produção poderia aqui ser compreendida em ambiência ainda mais ampla, considerando
que a legitimidade dos trabalhos estaria ligada à presença de uma forma-método específica. A pressão
institucional transformaria-se então em espécie de “pressão científica”, demarcando qualitativamente os
trabalhos que seguissem tal forma-método ou não.

8
O problema da biografia: Escola Metódica e “Positivismo”

Arrisete C. L. Costa demonstra em prestimoso artigo as mudanças


historiográficas operadas a partir dos séculos XVI, XVII e XVIII, no que concerne à
questão biográfica. A escrita da história passa a ser marcada por uma espécie de
erudição metódica, observando o crescimento e predomínio de narrativas focadas
em uma história diplomática, com valorização do sentimento nacional “e a
acentuação do lado literário e retórico da história”7. Estudando os “motivos e paixões
que guiam as ações humanas”8, a história teria se encaminhado cada vez mais à
pecha de um conhecimento preocupado em apresentar os grandes feitos humanos,
personalizados na figuras de herois eleitos a partir das leituras dos eventos. Assim,
Gibbon teria assumido que o “objeto principal, e praticamente único, de suas
histórias é o homem e suas paixões [...]”, “[...] a tarefa suprema do historiador
consistia em devassar os atores históricos em suas profundezas”9. Gibbon, a quem
Peter Gay se refere como "um cínico moderno entre políticos antigos", apresenta de
fato em seu Declínio e queda do Império Romano trechos bastante similares aos
Anais de Tácito, sua grande referência filosófica. Não se trata de cópia mal
disfarçada, mas sim de evidência da paixão que o inglês sentia pelos clássicos,
especialmente evidenciada nos escritos de Tácito pela investigação incessante do
romano em buscar na história as motivações humanas com frieza e pessimismos
que aproximavam os dois historiadores, na acepção de Gay.
Tal conexão às causas humanas da história teria desembocado no século
XIX sob a expressão de uma verdadeira explosão no número de estudos biográficos,
especialmente na primeira metade do século, onde prevalecia, ainda de acordo com
Costa, uma “concepção de história como sendo uma biografia em escala mais
ampla”10. Exemplos não faltam. Seja o escocês Thomas Carlyle, afirmando que a
história do mundo é a biografia dos grandes homens, ideal seguido por ele em sua
obra mais conhecida, História da Revolução Francesa, mas talvez melhor
demonstrada em sua compilação de 21 volumes sobre a história de Frederico II da

7
COSTA, Arrisete C. L. “Biografias históricas e práxis historiográfica”. sÆculum - Revista de História, n. 23, João
Pessoa, jul./dez. 2010.
8
Idem. Ibidem. p. 21.
9
GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. Tradução de Denise Bottmann. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 37.
10
COSTA, Arrisete C. L. Idem. Ibidem.

9
Prússia, além de teorizada e exposta em sequência de palestras feitas por Carlyle a
partir de 1840 e que se tornaram livro, de título On heroes, hero-worship, and the
heroic in History. Curioso que, ao ler a supracitada obra sobre a Revolução
Francesa, percebemos a citação ao abade Raynal na seção VIII da segunda parte
do primeiro capítulo, no qual Carlyle enumera os “descontentes” e as obras que
exemplificariam tais descontentamentos, como a Histoire philosophique do “loquaz”
abade. A obra, que teria sido queimada por um reles carrasco, alcança exatamente
o que Raynal desejara, transformando o autor de obra tão “demovida de verdade,
fruto de grito eleuteromaníaco11 e barulhento” em mártir absoluto da causa, ainda
em vida. Mas poderíamos ainda citar um contemporâneo de Carlyle, Ralph Waldo
Emerson, que teria dito que “não há propriamente história, apenas biografia”. O
entrelaçamento de história e biografia, ainda permanecendo no estudo do artigo de
Arrisete Costa, revela-se na produção de historiadores e investigadores como
Leopold von Ranke, que inseria “esboços biográficos em suas volumosas histórias”;
Michelet, que "passou toda a sua carreira escrevendo a biografia coletiva do povo
francês", e Heinrich von Sybel, que descreveu a biografia “como um ramo da
história”12. Peter Gay demonstra que o fenômeno típico de leitura da história como
um ramo biográfico é o que vai concorrer para o aumento contínuo de obras
biográficas na segunda metade do século, demonstrando o apetite insaciável pelas
biografias a partir de exemplos como English men of letters; English leaders of
Religion; Who’s Who; Dictionary of Nacional biography13. Mesmo com os
questionamentos levantados pelos avanços metodológicos, a biografia enquanto
gênero popular de escrita histórica permaneceu como uma força indiscutível ao
longo do século XIX. Marly da Silva Motta14 demonstra como, ainda no final do
século, as biografias permaneciam como a plataforma mais adequada ao culto aos
herois, permanecendo como fontes valiosíssimas para o estudo e compreensão do
passado, daquilo que “de fato” aconteceu. É deveras interessante, inclusive, a forma
como a autora argumenta que a biografia, em si, conecta-se brilhantemente aos
meandres de uma história política (aos moldes do período, vale destacar),

11
Neologismo criado por quem vos escreve a partir do antigo termo inglês mas que também existe no
vocabulário catalão, significando algo como uma “mania incontrolável de liberdade”.
12
COSTA, Arrisete C. L. Idem. Ibidem.
13
GAY, Peter. O coração desvelado: a experiência burguesa da Rainha Vitória a Freud. Tradução de Sérgio Bath.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 207, 176, 208.
14
SILVA MOTTA, Marly da. “O Relato biográfico como fonte para a História”. Vidya, Santa Maria, v. 19, n. 34,
jul./ dez. 2000, p. 101-122.

10
destacando o exercício apologético dos heróis nacionais como um dos pilares do
complexo processo de construção da nação, filiado à concepção de história como
“mestra da vida”. A biografia é “utilizável”, no sentido de demonstrar modelos,
exemplos a serem seguidos.
Mas afinal que escrita histórica é esta que fazemos referência? Trata-se de
lugar comum perigoso nos debates historiográficos contemporâneos a ideia de um
fazer historiográfico “positivista” demarcando a produção do século XIX, atribuindo à
mesma as limitações exortadas pelas críticas de Lucien Febvre e Marc Bloch no
estabelecimento dos prepostos metodológicos dos Annales. Seria por demais
preguiçoso assumir que o que foi produzido durante o XIX nada mais foi que a
leitura naturalmente “pejorativa” encetada pelos brilhantes historiadores franceses,
desejosos de demarcar um programa não apenas metodológico, mas político,
construindo uma proposta diferenciada que se apresentava como solução aos
problemas enfrentados pela percepção de uma História fria, dissociada da realidade,
pouco sensível às movimentações contraditórias de grupos distintos. É necessário
consultar as fontes, ler os trabalhos, tentar perscrutar as características basilares de
tais produções, se tal tarefa é possível de fato. Somente assim poderemos ler as
biografias de Raynal com a crítica e o capital intelectual necessários, não apenas
para compreendermos os supracitados locais de produção de tais escritos, mas
também identificarmos as presenças e ausências, em tais produções, dos arquétipos
básicos identificados ao contexto metodológico-institucional do período.
Para demonstrar uma vez mais a importância de Marc Bloch para nossos
estudos – se tal empreitada se faz necessária -, evocaremos suas palavras para
buscar no século XVII as origens de um fazer historiográfico erudito, que nos servirá
de ponto de partida para a compreensão dos meandres específicos da Escola
Metódica que marcará a produção do século XIX, especialmente a partir da França.
Bloch identifica na publicação do livro De re diplomatica, de autoria de Dom
Mabillon, em 1681, “uma grande data na verdade na história do espírito humano”,
uma vez que a partir desta ocasião, “a crítica dos documentos de arquivos foi
devidamente fundada”15. A erudição inaugurada por esta obra no século XVI se
demonstraria de forma mais segura, apoiada em quantidade maior de textos, em uso
de dicionários, em um distanciamento mais preciso enfim do boato. Jean Bodin já se

15
BLOCH, Marc. Apologie pour l'histoire ou Métier d'historien. Paris, Armand Colin, 1964. p. 36

11
perguntaria acerca do ofício do historiador, e Lancelote de la Popelinière
argumentaria que um simples relato não teria força suficiente para substituir a
história realizada16. Fustel de Coulanges faz exercício análogo em brilhante artigo 17,
atribuindo à “erudição francesa de outrora” as bases da erudição de sua época, da
escrita da história pertencente ao métier do XIX.
Tal digressão é necessária para demonstrarmos nosso posicionamento em
concordância com Bloch, bem como com as análise de Bourdé e Martin, de que as
origens dos elementos que caracterizariam o método da escola francesa no século
XIX tem origens bem demarcáveis entre os eruditos do século XVIII em especial.
“Positivismo” é termo infelizmente solto, jogado à revelia em pretensa síntese de
todo uma época. Ora, é fato que os escritos de Comte servirão de inspiração para
diversas ideias ao longo de todo o século, em especial pelos elementos da filosofia
ilustrada com os quais dialogará e se reapropriará de forma conservadora18. A
pretensão científica de encontrar leis gerais e constantes válidas para a humanidade
como um todo, bem como a ideia de desenvolver uma “matemática social” visando à
aplicação do cálculo das probabilidades às ciências sociais, já estavam presentes
em Condorcet, por exemplo, no afã de libertar a França da ignorância vigente nas
fileiras culturais do Antigo Regime, derrubando a parcialidade do conhecimento que
se imiscuía em “argumentos de autoridade” pautados em privilégios de nascimento
ou elementos religiosos. O Positivismo ressignifica diversos elementos
“revolucionários” do Iluminismo com conceitos conservadores. O melhor exemplo
talvez seja a adição da ideia de Ordem a de Progresso, presente na bandeira de
nosso país. Os processos de crítica textual, e a prática da dúvida metódica no
exame dos testemunhos, entretanto, talvez tenham origem mais remota do que
simplesmente à atribuída ao “Positivismo” marcante da história política do século.
Tais origens, como demonstra Bloch19, talvez estejam na geração que veio à luz à
época da publicação do Discurso do Método, de René Descartes, muito embora não
seja cartesiana. Paperbroeck, Mabilon, Richard Simon, Espinoza...
Quanto à historiografia “positivista”, será sobretudo a partir de meados do
século XIX, com as obras de Hippolyte Taine, Ernest Renan e Henry Thomas Buckle

16
BOURDÉ, G. & MARTIN, H. Les écoles historiques. Paris, Seuil, 1983. p. 61
17
COULANGES, FUSTEL de. “De lá manière d’écrire l’histoire em France et Alemagne”. Revue de Deux Mondes,
Set. 1982, p. 241.
18
NISBET, Robert. “Conservatism and Sociology”. American Journal of Sociology. n. LVIII, 1952.
19
BLOCH, Marc. Idem. p. 91

12
que o Positivismo se afirmará enquanto paradigma20. No entanto, para nossos
estudos neste trabalho, é necessário dirigir o foco à resposta francesa ao
paradigma, especialmente na metade final do século, através da chamada “Escola
Metódica”. É em relação aos trabalhos de tais historiadores que a crítica de Berr se
constrói em oposição, diferenciando a moda biográfica, cheia de romantismo e
evocação de grandes feitos, da leitura biográfica crítica efetuada por Febvre à
trajetória de Lutero, esta sim positiva, pois verdadeira biografia “psicológica”. A
Escola Metódica francesa irá se estabelecer a partir da publicação do primeiro
número da Revue Historique, revista que trará em sua comissão editorial nomes
“clássicos” como Taine, Renan e Fustel de Coulanges, mas sob a liderança de
novos nomes como Ernest Lavisse e Gabriel Monod, autor do manifesto de
lançamento da revista. Os metódicos acompanham os positivistas no que concerne
ao entendimento da História como ciência, mas não estão empenhados na busca de
Leis Gerais, por exemplo, o que evidencia uma diferença fulcral. Estariam, como
argumenta Barros21, em uma espécie de meio caminho entre os positivistas da
primeira metade do século, que o influenciam, e os primeiros momentos do
Historicismo tal como seria praticado por historiadores da Escola Alemã, que
seguiam o modelo inspirado em Leopold von Ranke, mais conservador. Percebe o
leitor como confundimos e misturamos influências historiográficas e paradigmas,
atribuindo toda a historiografia do século XIX à influência rankiana e por sua vez, ao
eminente alemão, a etiqueta sintética de “positivista”? O fazer historiográfico do
século seria assim, quase que por definição, político, positivista, baseado na história
dos grandes homens e na paixão pelos documentos como garantia da cientificidade
da História. As contribuições foram mais vastas e ricas do que pressuporia tal
redução analítica.
Compreendendo assim - ainda que de forma breve, uma vez que não é o
foco do trabalho - as bases das escritas históricas produzidas ao longo do XIX,
podemos enfim mergulhar um pouco mais em reflexão necessária acerca da
questão das biografias. Até aqui percebemos que a própria concepção de história
andava “de mãos dadas” à ideia de uma biografia coletiva, bem como notamos a
centralidade de obras focadas nas trajetórias de grandes personagens.
Cuidadosamente percebemos também, no entanto, que as influências teóricas iam

20
BARROS, José D’Assunção. Teoria da História, vol. 2. Petrópolis, Rio de Janeiro, Vozes. 2011. p. 97
21
Idem. Ibidem. p. 98

13
muito além do simplismo da pecha de “positivistas”, como evidencia a existência de
uma escola metódica francesa, alvo das críticas de diversos autores do início do
século XX como o próprio Henri Berr, citado no início do capítulo. Não queremos
argumentar no sentido de demonstrar uma separação absoluta entre tais
paradigmas, ignorando as influências e continuidades. O próprio Monod, afinal, no
Manifesto de abertura dos trabalhos da Revista Histórica, em 1876, reconhece o
papel dos alemães que, de acordo com o próprio, teriam contribuído “com a mais
forte parte” para o trabalho histórico do século. Cita nominalmente as principais
influências, incluindo Ranke, que introduziram a crítica das fontes e a ideia de
publicação institucional dos textos históricos, por exemplo. Sem esquecer que a
própria revista, em suas intenções de publicação, se coloca enquanto instrumento
neutro e imparcial, voltada à “ciência positiva”. Há, obviamente, mais conexões e
continuidades que supostas rupturas. Cabe, no entanto, dar “nome aos bois”,
identificar paradigmas, para assim seguir adiante com mais segurança.
Uma vez compreendidas as bases da produção, podemos agora retornar
novamente à crítica de Berr. Se as biografias marcavam a “moda” da época, torna-
se nosso dever investigar as obras escritas ao longo do XIX que se voltaram à
exortação da figura do abade Raynal enquanto personagem marcante. Ao menos
marcante o suficiente para justificar uma obra a ele dedicada. Após leitura de valioso
compilado escrito por Joseph Marie Quérard22, pudemos apontar alguns dos
principais exemplares de tais trabalhos, nos quais agora mergulharemos. Será que
são eles exemplos fidedignos das leituras mais gerais que costumeiramente
realizamos? Apresentam diferenciais marcantes? Como a figura do abade é
transposta em tais exortações? Sei que a empolgação das possíveis descobertas já
lhe tomou o espírito curioso. Não precisa se conter. O capítulo tem em tal atividade
sua principal proposta...

Raynal desmascarado – Formidável correspondência

O primeiro relato de natureza biográfica sobre Guillaume Raynal é aquele


que talvez seja o de formato mais fascinante. Ainda pouquíssimo estudado23,
mesmo que encontrado com certa facilidade em sua completude nas plataformas

22
QUÉRARD, Joseph Marie. La France littéraire, ou Dictionnaire bibliographique des savants, historiens et gens
de lettres de la France. 1857.
23
Não encontrei até então nenhuma análise ou resenha da obra, seja em português, inglês ou francês. Apenas
leve menção de seu título.

14
virtuais24, inaugura nosso estudo biográfico o livro Raynal demasqué, ou Lettres sur
la vie et les ouvrages de cet écrivain. A obra, lançada de forma anônima em 1791
(ou seja, cinco anos antes da morte do próprio abade), propõe-se a apresentar,
como bem enunciado pelo título, aspectos da vida e obra de Raynal através da
disposição de cartas. O método, hoje já talvez batido e sem impactos, anuncia-se
aqui de forma particularmente sensacional. Não sabemos em nenhum momento
quem é o autor da compilação. Não sabemos enfim quem seriam os autores de tais
cartas. Seriam verdadeiras? Criadas pelo autor-anônimo? Seria o autor em questão
o próprio abade? As possibilidades são múltiplas, e a escrita fascinante.
Robert Darnton aponta25 com maestria o impacto que Jean-Jacques
Rousseau teria causado ao lançar seu Júlia, ou a Nova Heloísa, em 1761.
Inaugurando o formato do romance epistolar, Rousseau teria introduzido, de acordo
com o historiador estadunidense, uma nova maneira de relação leitor-autor. Ao ler
as cartas que protagonizam a supracitada obra, os franceses eram acometidos por
verdadeiras síncopes emocionais. Algumas senhoras tremiam incontrolavelmente.
Lágrimas eram derramadas pelos atores do infortúnio romântico, desmaios, urros de
alegria e satisfação. Não é possível que tais estórias tenham sido criadas pela
mente de um filósofo, diziam os arrebatados. É verdade, tem que ser verdade. Como
conceber uma reação emocional tão intensa a mero factoide, mera ilusão livresca
criada por alguém? Rousseau, coitado, teria recebido tantas cartas em sua
residência inquirindo sobre a veracidade da história que, imaginamos, tenha
passado a ignorá-las com o passar do tempo. Mas nosso querido Jean-Jacques não
era inocente nessa história. Sim, leitor, perdoe-me a informalidade mas a mesma se
faz necessária, e vocês entenderão as razões. No prefácio duplo à obra, Rousseau
não apenas “ensina” a melhor maneira de se ler o empolgante romance, como o
estabelece verdadeiramente como um “não-romance”. Não teria sido ele o autor dos
documentos, mas sim mero editor, compilador. Perceba como o brilhante savant
constroi as teias com as quais iria talvez se emaranhar depois. Se o caso ali
apresentado é verdadeiro ou falso? Depende do quanto você, leitor, deseja

24
O serviço Google Livros disponibiliza-o gratuitamente em:
https://books.google.com.br/books?id=N91BAAAAcAAJ&pg=PA21&lpg=PA21&dq=raynal+demasque&source=b
l&ots=fMe38H_9K3&sig=cuEa08aypiknFNLVA73zXMulQLA&hl=pt-
BR&sa=X&ved=0ahUKEwje_6yJkZTYAhUGvJAKHZINCWwQ6AEIQDAD#v=onepage&q&f=false. Acesso em: 21 de
jun. 2017.
25
DARNTON, Robert. The great cat massacre and other episodes in French Cultural History. New York, Basic
Books, 1984.

15
acreditar. O autor não se coloca como autor, enfim. As razões da informalidade,
você agora pergunta? Pois bem. Darnton evidencia a tese central do capítulo, qual
seja o impacto criado pelo rousseaísmo na conformação de uma nova maneira de se
ler e relacionar com a obra enquanto leitor, inaugurando um pouco daquilo que seria
a maneira tipicamente romântica do século XIX, através da correspondência de um
pequeno francês sob a alcunha de Jean Ranson26. Carismático como poucos,
Ranson troca cartas com o prestimoso amigo por anos, sempre se referindo a
Rousseau como “Jean-Jacques”. Sim, pelo primeiro nome. Sentia-se íntimo, afinal.
Era um amigo distante. Um amigo que nunca conhecera. Mas que um dia haveria de
fazê-lo, ah sim! Quão comovente e hilariante ler Ranson contar das novidades de
sua família, ao mesmo tempo em que tecia correlações de tais novidades a obras de
seu querido mestre. E quando sua esposa lhe dá o presente tão aguardado, o
nascimento de uma filhinha, a bela notícia é interrompida pelo pesar do falecimento
de l’ami Jean-Jacques27. Quer saber todos os detalhes da morte, empenha-se e
promete que irá ensinar à sua pequena todos os lindos detalhes da jornada de seu
ídolo, fará com que ela leia todas as obras e as discuta com o amado pai...
A belíssima obra que temos em mãos na certa não causou tanto furor
quanto Rousseau e seu romance epistolar. Mas não seria tão distante teorizar que o
impacto de tal obra pode ter servido como inspiração viva para a confecção desta.
As quatro cartas, que teriam sido escritas em momentos distintos da trajetória do
abade, representariam apenas exemplos do “grande grupo de admiradores e
apologistas de Raynal, que agora nos auxiliam a revelá-lo”28. Continua o documento
exaltando a presença marcante dos escritos do abade na capital, enquanto ministros
e magistrados fecham os olhos para seu sucesso, sem conseguir refreá-lo29. Além
de exaltado pelo sucesso à revelia dos poderosos, Raynal é pintado também como
uma espécie de mártir, enfrentando o exílio forçado e o medo constante dos
decretos e da Bastilha, censuras que ao mesmo tempo em que mantiveram seu
gênio escondido do grande público, aumentaram sua glória posterior, neste instante
onde ele é “revelado”, “desmascarado”30, no melhor sentido possível. Tendo seu
trabalho jogado ao fogo, Raynal é evocado em imagem de portador das

26
Idem. Ibidem. p. 301
27
Idem. Ibidem. p. 304
28
Raynal demasqué, ou Lettres sur la vie et les ouvrages de cet écrivai. 1791. p. 1
29
Idem. Ibidem. p. 2
30
Idem. Ibidem. p.4

16
perseguições de um período, arregimentando em torno de si toda os escritores que
partilhavam de seus ideais31. A Assembleia repara agora (no decorrer da Revolução,
pois o livro é lançado em 1791) as injustiças cometidas pelo “ancien
gouvernement”32.
As cartas seguem a tendência brilhante já prenunciada, apontando
elementos da vida de Raynal a partir da estrutura epistolar. Aqui, uma conversa
despretensiosa que começa discutindo a carta do poeta André Chesnier a Raynal,
repreendendo-o em seus ideias com fina e pungente ironia, aparentemente
descaracterizadas do espírito sempre “moderado” de Monsieur Chesnier.
Oferecendo valiosa fonte para aqueles que desejam mergulhar nas relações dentre
revolucionários em momentos de tensão e definições no processo, a carta primeira
cita Diderot, as opiniões de Raynal sobre a escravidão dos negros, as leituras
acerca da colonização portuguesa, o jacobino Anacharsis Cloots e tantas outras
pérolas, para no final minimizar os efeitos da aparente ofensa a Raynal, concluindo
que sua missiva à Assembleia em maio do mesmo ano, na qual o abade critica
ferozmente a Revolução, negando-a enquanto consequência natural do Iluminismo,
teria criado diversos inimigos e opositores para o autor nas ruas de Paris. É forçoso,
no entanto, reconhecer que, mesmo um documento biográfico que aparentava ser
tão romântico em sua lide com a figura do homenageado (como de costume na
escrita do XIX, em muito herdeira da erudição do XVII e XVIII, como vimos), parece
que no final da carta se encontra uma espécie de reconhecimento da velhice de
Raynal e do fato de que talvez algumas pessoas pudessem se aproveitar de tal
senilidade para inebriá-lo com ilusões acerca da realidade. Não fica claro se o autor
anônimo da carta se refere a Chenier e aos demais opositores de Raynal, ou ao
abade em si. Considerando que tanto Chenier quanto Cloots não pasavam dos 40
anos à época da publicação de nossa obra de estudo, ficamos com a segunda
hipótese. Ora, percebe-se que mesmo em uma biografia que possui, em tese, o
intuito de valorizar sua jornada, a figura do abade Raynal parece ainda demovida um
pouco de prestígio.

31
Há aqui talvez uma referência às autorias compartilhadas que perpassam a obra de Raynal, já há muito
conhecidas. Seria uma forma de romantizar os “auxílios” pelo abade recebidos na confecção de sua História
Filosófica, por exemplo? Cabe teorização posterior. Permanecerei nas leituras do documento para identificar a
validade ou não de tal ideia.
32
Raynal demasqué, ou Lettres sur la vie et les ouvrages de cet écrivai. Idem. p. 5

17
A resposta, também anônima, escrita por alguém que aparentemente
conheceria Raynal pessoalmente, inicia-se com o reconhecimento do aparente
absurdo de alguém que se intitula filósofo, tão famoso e reconhecido pela defesa da
liberdade, pudesse renegar de forma tão vergonhosa à própria história os caminhos
revolucionários. Tal pessoa misteriosa retorna inclusive à juventude de Raynal para
apontar que, enquanto padre, fez fortuna com seus talentos de pregador, somente
entregando-se às letras quando foi banido pelo arcebispo de Paris. Seus primeiros
trabalhos são inclusive chamados de “medíocres”33. A celebridade construída em
torno da figura do abade parece ser aos poucos descontruída, e o homem de ideais
parece ser transformado em mesquinho ofertador de serviços, uma presença dentre
os gênios das letras que parece deslocada. Aqui a ideia do Raynal “desmascarado”
toma o sentido pejorativo que nossa primeira leitura o daria. Quão curioso e
fascinante documento! Não há aqui quase nenhuma das tendências básicas
demonstradas em nossas análises ofertadas na primeira parte do capítulo. Uma
biografia, sim, mas que parece brincar com a memória do homenageado, ainda vivo
por sinal. Aqui, a exortação voraz. Ali, a descontrução crítica. Repetimos: tal obra
merece ser mais estudada, e temos total pretensão de fazê-lo no futuro próximo.

Um elogio filosófico e político

Escrito no ano de sua morte, vem à baila uma outra obra ainda pouco
estudada, mas de leitura um tanto mais óbvia, menos sutil, mas igualmente
agradável. O Éloge philosophique et politique de Guillaume-Thomas Raynal34 é,
como o próprio nome já diz, um grande elogio à figura do abade Raynal, com
enfoque na importância de suas obras, tanto de um ponto de vista político quanto
filosófico. Há aqui, de fato, um diferencial, em minha opinião. Raynal parece pouco
reconhecido em suas biografias, quando o assunto é a demonstração de seu valor
filosófico. Mesmo em relação aos impactos politicos, mais bem acentuados, fica a
sensação de que ele teria influenciado bastante mas não mais que seus
contemporâneos. Não queremos aqui reinventar a história e declamar Raynal como
o grande nome de seu tempo, acima de qualquer outro. Não é o caso. Mas não
deixa de ser notável que, mesmo em meio à uma perspectiva histórica de
valorização biográfica, e estudando as biografias do autor em questão, sua

33
Idem. ibidem. p. 15
34
CHERHAL de MONTREAL, Etienne. Éloge philosophique et politique de Guillaume-Thomas Raynal. 1796.

18
centralidade, seu protagonismo, pareçam candentes, foscos. Filosoficamente então,
nem se fala. Parece que, de fato, o que se escreveu de rico e importante nas obras
de Raynal foi fruto das colaborações de outrem, como Diderot. Esta obra aqui é
exceção feliz, no entanto, o que já a diferencia.
“Se o reconhecimento das pessoas é o prêmio por seus serviços prestados à
humanidade, que mortal seria mais digno de tal honra do que aquele cuja memória
agora celebro!”35. Um homem que viveu sua vida dedicando-se ao culto da justiça e
da liberdade. Compartilhando das misérias das sociedades humanas, trouxe junto
ao reino da filosofia a esperança através das Luzes. Devemos apontar duas
questões acerca de elogios tão vibrantes. Forçoso reconhecer que o tom de
homenagem é marcante por ser lançado no ano da morte do sujeito. Parece, de fato,
uma eulogia. Uma homenagem daquelas que deixaria o parente ou amigo mais
próximo envergonhado, de tão amorosa e apaixonada. Mas é também interessante
notar o ano, 1796. A Revolução Francesa já havia se despedido de suas fases mais
radicais, e o período do Diretório, marca da chamada Reação Termidoriana,
anunciava presságios mais “moderados” aos arbítrios da luta. Raynal, crucificado
pelo posicionamento contrário aos avanços jacobinos durante a Revolução, agora
passa a ser visto novamente como um guardião da liberdade, e não como o inimigo
revolucionário, como na certa ficou conhecido nos momentos mais ardentes do
conflito.
E foi Raynal, afinal, um grande bastião de defesa do que melhor representa
o ser humano. Uma geração bárbara que intentara aproveitar-se das conquistas da
humanidade desde as Grandes Navegações, foi julgada no tribunal dos justos por
sua geração posterior, triunfante na garantia de melhoria para cada cidadão após
um período de catástrofes36. Cuidado para não se emocionar, alerto! O tom é de
exaltação constante. Raynal é aqui herdeiro direto e dileto das tradições platônicas e
da grandeza dos gregos, dos avanços espetaculares promovidos por Roma. O
homem de gênio, solução contra a corrupção (escondam esse texto dos debates
políticos brasileiros...).
Como apontamos, uma obra que parece fora da curva, embora se encaixe
perfeitamente nos padrões do local de sua produção. Não precisamos pesquisar

35
Do original “Si la reconnaissance des peuple est le prix des services rendus à l'humanité, quel mortel en est
plus digne que celui dont je célèbre la mémoire”
36
CHERHAL de MONTREAL, Etienne. Idem. p. 2

19
muito o autor para saber que se trata de iluminista, ou pelo menos de entusiasta
sincero do movimento. Não precisamos ir muito longe para presumir a data do texto,
prefigurando os vértices mais agudos do amor biográfico que tomará em especial o
XIX, mas herdeiro de tradições que remontam ao XVII. Uma breve experiência em
funerais também conduziria o historiador-Zadig a inferir pela morte do
homenageado. A escolha de um estudo comparativo de biografias para este primeiro
capítulo vai dando assim os resultados que esperávamos, uma vez que já de início
põe em disputa leituras tão distintas e ao mesmo tempo tão próximas. Em apenas
cinco anos, quanta coisa mudou. Necessário ler criticamente os autores, o contexto
da produção... Percebemos aqui como uma leitura que se pretenda geral é tão útil
quão desafiadora. Precisa ser formulada sim, em nossa visão, mas merece ser posta
em prova, sempre. Não em sentido fútil de refutação, mas para enriquecer a própria
teoria.

A história específica do abade Raynal

Talvez a obra que mais prometa e menos entregue, se é que podemos ser
tão ácidos logo no início de uma mera monografia, é a biografia escrita pelo
acadêmico Antoine Jay, em 1820. Inaugurando as obras que tentarão ler Raynal em
sentido mais imparcial no século XIX, Jay oferece em seu Précis historique sur la vie
et les ouvrages de l’abbé Raynal muito mais uma pretensão que uma execução
respeitável. Sim, pois o francês inicia seus trabalhos anunciando que escreverá
sobre “um dos mais célebre filósofos de nossos tempos”37, para ao longo do estudo
concluir que sua influência não teria sido tão grande assim afinal: “que se recuse
admitir este escritor entre os autores clássicos, eu o consinto: ele tem seu lugar
reservado entre os homens de gênio e os defensores da humanidade”38. É um dos
mais célebres filósofos ou não se encontra entre os clássicos? Não podemos levar
as duas ideias adiante. O que seria um clássico? Por que Raynal não merecia um
lugar dentre estes, se tem lugar reservado entre os homens de gênio e defensores
da humanidade? Se eu estivesse com a intenção de ser um provocador barato,
perguntaria inclusive o significado do termo “defensor da humanidade” mas não o
farei. Defenderei-os, afinal, desta acidez desnecessária.

37
JAY, Antoine. Précis historique sur la vie et les ouvrages de l’abbé Raynal. p. 9
38
Idem. Ibidem. p. 257-258

20
O que Jay quer dizer é que a influência de Raynal seria muito mais política
que filosófica, tese que parece muito forte nas leituras das diversas biografias de
nossa personagem histórica. Defensor da humanidade, pois foi militante nas fileiras
das Luzes, perseguido por isso, exilado. Escreveu junto ao círculo de d’Holbach
(sobre o qual veremos no capítulo 4), abrindo espaço em suas obras para
intervenções de seus companheiros de trabalho, protegendo-os sob sua alcunha,
“por sua conta e risco”. Não se julga aqui se Jay estaria correto ou não em tal
análise, apenas se oferta uma leitura da mesma. É homem de gênio, porém não se
encontra entre os clássicos? Ora, o que falta? Falta uma filosofia original, sua, que
tivesse impactado o pensar filosófico. Não apenas Jay, mas a maioria de seus
biógrafos concorda neste ponto. Mesmo o elogio exagerado de Cherhal o eleva,
colocando-o como bastião de um pensar que, na prática, não é só dele, ou melhor
ainda, não foi por ele modificado sensivelmente ou inaugurado. Ele é parte de algo.
De algo gigantesco, importante, valoroso! Mas parte, não núcleo. Parte, não centro.
Porque fazer então uma biografia de alguém que parece não ter importância
central na história que se quer contar? No caso específico de Antoine Jay, é possível
supor que fazia parte de sua empreitada para ser eleito a posto na Academia
Francesa, o que ele conseguiria finalmente em 1832. Não havia uma biografia
“séria” sobre Raynal, e Jay já havia se dedicado a escrever outros estudos de
natureza biográfica, em especial seu trabalho sobre o Cardeal Richeliéu em suas
ações ministeriais, escrito em dois volumes cinco anos antes da obra aqui estudada.
Fato curioso e inútil: Jay teria votado contra o ingresso de Victor Hugo na Academia
em 1842, por odiar o Romantismo enquanto movimento39. Mas precisamos ir além,
afinal as digressões ao início do capítulo não foram em vão. Escreve-se uma
biografia de Raynal, pois escreve-se biografia de tudo. É a moda, como critica Henri
Berrr. É parte da concepção de História, como analisa Marly Motta. Precisa-se falar
de Raynal pois é necessário falar de Iluminismo, de História. Ele é parte fulcral do
movimento, mesmo que ainda “apenas” parte. Por isso Jay promete tanto e entrega
tão pouco. Parece refém de seu próprio local de produção, de suas próprias
perspectivas. Parece, enfim, um sofrido doutorando, precisando provar com unhas e
dentes a importância de seu objeto. Mas Jay não vai tão longe: sabe que não pode e
nem precisa fazê-lo. A importância se dá pela participação de Raynal, não pelo seu

39
DROSNAY, Arthur de. Les Petits Mystères de l'Académie française. Révélations d'un envieux, 1844, p. 33

21
ineditismo. Jay escreve História em 1820, por isso dedica-se à biografia de
respeitável figura. Mas falta algo. Quem poderia, enfim, oferecer estudo biográfico à
altura do homenageado, sem adulações ou críticas exageradas típicas do calor do
momento?

A visão biográfica de M. B. Lunet

Saindo com um gosto ruim na boca, por assim, dizer, seguimos em nossas
leituras megulhando agora na biografia escrita por Lunet40, que teria sido começada
em 1837, mas só publicada em 1866. Quando lemos em Jay que Raynal não teria
sido um dos clássicos, mesmo concordando parcialmente, ficamos ainda com pouco
material para responder a J. Barre, comerciante de livros clandestinos em Nantes,
que escreveu: “Essa obra foi recebida com entusiasmo pelo público. O autor é
genial, tem indubitáveis conhecimentos e um coração virtuoso. Descreve vivamente
e lendo as suas produções nos sentimos inflamados. Retirou grande parte da venda
fatal que cobre o gênero humano e que impede este de ver a verdade” 41. Como
pode ter sua importância diminuída quando lemos um comerciante de livros
clandestinos, que lidava com tais obras diariamente, atribuir a ele a capacidade de
retirar parte da venda que impede o gênero humano de enxergar a verdade? Como
encarar os argumentos do próprio Darnton, ao qual voltaremos em capítulos
posteriores, enfatizando as obras do abade como vitais na popularização do
Iluminismo na França42?
Lunet também retorna a momento específico na vida do abade para
esclarecer um ponto que havia ficado dúbio. Nas anônimas cartas de 1791, a
transferência de Raynal de padre à homem das letras parece recheada de ironias e
desconfianças, pouco proveitosas para o estabelecimento de uma cronologia
segura. Aqui, Lunet esclarece que, sim, Raynal buscou “todos os meios” possíveis
para se integrar aos homens das letras assim que foi removido da Companhia de
Jesus. Mas, por capacidade e competência próprias, foi admitido em quase todos os
salões, como os Mme. Geoffrin, de Helvetius e do já mencionado Baron d ´Holbach.
As razões? Uma fala apaixonada, uma oratória ardente, uma retórica sedutora o

40
LUNET, M. B. Biographie de l´abbé Raynal (Guillaume-Thomas). 1866.
41
DARNTON, Robert. Edição e sedição: o universo da literatura clandestina no século XVIII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. p.124
42
Idem. Boemia literária e revolução: o submundo das letras no antigo regime. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987. p.141-143

22
suficiente para comprovar a todos os ilustrados as razões do sucesso de suas
primeiras obras e de suas falas públicas. Mas Raynal não foi apenas um sedutor que
conseguiu se colocar em meio aos que faziam de fato a diferença, como pode
sugerir uma leitura mais crítica da obra de Jay. Sua Histoire des deux Indes causou
o fim imediato do pagamento da pensão que recebia do governo (fato mencionado
na primeira carta anônima do livro de 1791), além da condenação oficial e
subsequente perseguição, com direito à queima de livros e exílio forçado. Lunet
enriquece ainda mais a questão. Demonstra que tais atitudes não foram apenas
medo das repercussões políticas dos escritos de Raynal. São também consequência
de uma “traição”43 de relação antiga entre o padre e a Monarquia, demonstrável por
obra escrita por Raynal a pedido direto do Rei, Mémoire pour servir à l´instruction
d´écoles militaires.
Como demonstrar, ou tentar identificar, nas palavras de Lunet a importância
filosófica do Raynal, para além da política. É aqui que as biografias analisada se
encontram em incômoda e uníssona voz. Raynal é retratado como um “homem de
seu tempo”44, espelho de um grandioso século. Lunet, ao contrário de Jay,
reconhece na prática sua importância, como demonstrado pelos exemplos do
impacto de sua obra, seja na população “em geral”, seja nos altares monárquicos.
Mas tal importância ainda parece política, e não filosófica, no sentido de performar
novidades mentais, criar categorias de pensamento novas e “revolucionárias” que
não houvessem sido propostas por outrem. Quanto a isso, há unanimidade. Mas,
questionamos nós, em que isso diminui a obra de Raynal? Quando estamos
debatendo os impactos políticos de um livro perseguido, lido por tantos e
compartilhado por quase todos os leitores, não estaríamos também inferindo um
inerente valor filosófico ao trabalho? Um clássico seria apenas um texto que propõe
novidades, ou não seria todo e qualquer trabalho que parece sempre novo, mesmo
que de fato não o seja? Uma obra que evoca novidades a cada leitura, encontrando
uma maneira insistente de permanecer relevante, como argumentaria Ítalo Calvino 45.
Há poucos exemplares mais relevantes para os leitores franceses da segunda
metade do século XVIII do que os escritos de Raynal, como demonstram Lunet e,

43
LUNET, M. B. Idem. p. 14
44
Idem. Ibidem. p. 4
45
CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

23
mais tarde, Darnton. Será que não poderíamos inferir daí também um não
reconhecido valor filosófico?
Ao final das breves 64 páginas, Lunet conclui que Raynal seria um raro
exemplar de escrita empolgada e emocionada, aliada a óbvias faculdades
intelectuais diferenciadas, que faziam com que suas obras encontrassem uma forma
de tocar os leitores de jeito especial. Há consenso nas biografias do XIX (e final do
XVIII) quanto à pouca inovação filosófica dos livros do abade. Há discordâncias
quanto à extensão de seus impactos. Mas permanece viva, em cada leitura, a
presença do clássico, que se recusa a sair de cena, mesmo que Antoine Jay se
recusasse a assim classificá-lo. O momento, de valorização do gênero biográfico,
parecia pedir volume de obras, mesmo que os autores não estivessem tão
preocupados em realizar um estudo concentrado em todos os aspectos possíveis da
obra de seus objetos. Isto ficará, como veremos, para mais tarde, especialmente a
partir do século XX. Deixemos para os capítulos posteriores.

24
CAPÍTULO 2

Foi mais perguntado se ele, Respondente, fez a alguém algum discurso


sobre as grandes comodidades e riquezas deste país, referindo quanto ele
seria delicioso se fora livre. Respondeu que: nunca fez semelhantes
discursos a pessoa alguma, e só sabe; isto mesmo ouviu ele ao dito Vigário
(Carlos Correia de Toledo), como declarado tem, e a um seu primo,
Domingos Vidal de Barbosa, de quem já falou nas primeiras respostas — o
qual lhe contou muitas cousas de que tratava um livro do Abade Raynal,
tanto assim que sabia de cor algumas passagens do mesmo livro.

Segunda Inquirição do Coronel de Cavalaria Francisco Antônio de Oliveira


Lopes, Autos de devassa da Inconfidência Mineira.

Um breve estudo nos autos da devassa da Inconfidência Mineira é suficiente


para demonstrar a riqueza oferecida pela compilação recentemente digitalizada. O
excerto apresentado como prêambulo deste capítulo demonstra a questão de forma
evidente, oferecendo um valoroso mergulho nos escritos lidos pelos conjurados e
seus possíveis usos e leituras, não apenas através da incidência de tais obras nas
coleções particulares, como também pelos relatos dos oficiais partícipes do
processo. O coronel de cavalaria Francisco Antônio de Oliveira Lopes faz menção à
figura de Domingos Vidal de Barbosa, inicialmente condenado à morte por sua
participação na querela mineira, tendo sua pena posteriormente transformada a
degredo em Cabo Verde, onde morreria dez anos depois do exílio de “impaludismo”
(malária)1. O inconfidente, conforme a leitura do militar, conhecia tanto os escritos do
abade que sabia de cor passagens de seu livro2. Ora, como conceber uma
impressão tão forte causada por obra de autor tão pouco reconhecido, mesmo entre
seus biógrafos? Concluimos no capítulo anterior que um aparente consenso entre os
leitores da trajetória biográfica e intelectual do abade seria o fato de tal personagem
tratar-se de vulto intelectual e politicamente importante, mas não a ponto de ser
considerado um clássico. Seria filosoficamente limitado, ou ao menos pouco
inovador. Cabe tentar perscrutar a validade de tais diagnósticos. Se Raynal não
oferecia nada de tão “radical” em relação a outros pensadores iluministas mais
famosos do século XVIII, na certa não encontraremos suas “pegadas” alhures.
Afinal, por que ler um autor tão pouco reconhecido quando se pode debater Voltaire,

1
“Domingos Vidal de Barbosa Lage”. Grande Enciclopédia Universal, Amazonas, 1980. p. 226.
2
Provavelmente referindo-se ao Histoire philosophique et politique des deux Indes.

25
Monstequieu, Rousseau...? Os próximos capítulos da monografia talvez demonstrem
realidade distinta da prefaciada pelos biógrafos franceses da primeira geração3.

Raynal e sua “máquina de guerra”

Impossível realizar pesquisa de valor sobre os escritos de Raynal sem


consultar as análises precisas e eruditas de Anatole Feugère, talvez seu melhor
biógrafo. É de 1922 o livro que marcaria, a nosso ver, a grande ruptura com a forma
de se ler Raynal majoritária até então, e desvelada no primeiro capítulo. Ao escrever
Un précurseur de la Révolution: abbé Raynal4 no mesmo ano em que lançaria o
excelente compilado Bibliographie critique de l'abbé Raynal5, Feugère demonstraria,
como o próprio título da primeira obra anuncia, a leitura de um Raynal muito mais
central nos processos históricos revolucionários que os estudos do século XIX
teriam dado conta. Também foi Feugère o primeiro a apontar que talvez nem todos
os volumes da Histoire tivessem sido de fato escritos pelo abade, tendência que
será mais estudada e comprovada por outros autores franceses por ele inspirados,
como Hans Wolpe6, Yves Benot7 e Michele Duchet8, evidenciando em especial a
pena inspirada de Denis Diderot em diversas passagens da obra. O que poderia
servir como fator de diminuição de sua grandeza, em Feugère possui valor contrário.
Oriundo de ambiência religiosa e ex-funcionário da monarquia, Raynal representa
uma ambivalência espetacular ao tornar-se figura fulcral da República das Letras,
dialogando com particular intensidade por personificar uma contradição bastante
típica da França oitocentista9.

3
Classificação arbitrária e ousadamente feita pelo autor da monografia.
4
Angoulême: Ouvrière, 1922.
5
Reprod. en fac-sim. de l'éd. d'Angoulême, Impr. ouvrière, 1922. Detalhes de edição e impressão disponíveis
em: http://catalogue.bnf.fr/ark:/12148/cb35366863c. Consulta: 29 jun. 2017.
6
WOLPE, Hans. Raynal et sa machine de guerre: l’Histoire des deux Indes et ses perfectionnements. Stanford,
CA: Stanford University Press, 1957.
7
BENOT, Yves. Diderot, de l’athéisme à l’anticolonialisme. Paris: Maspero, 1970.
8
DUCHET, Michèle. Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières, Paris: Maspero, 1971 & Diderot et l
‘Histoire des Deux Indes ou l’écriture fragmentaire. Paris: Éditions A.-G Nizet, 1978.
9
CHENEY, Paul. Revolutionary Commerce: Globalization and the French Monarchy. Harvard Historical Studies,
volume 168. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2010. p. 28-34. Daniel Gordon também parece autor de
importante citação, pois demonstra em Citizens without sovereignty (1994) que autores como Raynal abriram
espaço novo e popular, colocando-se em meio às querelas politicas e sociais em espécie de meio-termo: nem
abolutistas, nem democráticos. A tese não é de aceitação geral, e nós demonstraremos no quarto capítulo uma
visão completamente distinta de um grupo de autores que enxerga na obra de Raynal a assinatura típica do
“círculo revolucionário” que reunía-se no salão do barão D’Holbach.

26
Mesmo com a aparente contribuição decisiva de outras mentes, Raynal
desponta nas páginas de Feugère pela primeira vez como ator de importância
salutar nos meandres históricos. Sim, é verdade que em algumas obras estudadas
anteriormente percebemos comentários de exaltação quase romantizados acerca da
figura em voga, porém até os elogios pareciam carecer de demonstrações claras e
evidentes do impacto. Feugère, ao dar a alcunha de “precursor da Revolução” a
Raynal, reconhece no abade uma singularidade que o coloca em posição de
centralidade, negligenciada por outras leituras. Raynal seria assim um homem típico
do seu tempo, ao mesmo tempo que valia-se dessa identificação para propor com
mais forças as mudanças singulares “necessárias” a seu tempo. Não por acaso as
obras assinadas por Raynal se tornariam tão populares, como demonstra Robert
Darnton ao incluí-la nos best-sellers da França pré-revolucionária10.
A tradição iniciada por Feugère seria seguida de perto por Hans Wolpe, que
imortalizaria a leitura da obra-mestra de Raynal com a alcunha de uma “máquina de
guerra” do iluminismo contra o colonialismo, a tirania, a ignorância e a superstição.
Wolpe, ao contrário de Feugère, não pretende realizar uma leitura completa da
bibliografia e da trajetória de Raynal, mas “apenas” um estudo dirigido e erudito
sobre sua principal obra, a supracitada Histoire de deux Indes. Tal fato pode
desvelar-se como uma breve decepção para o pesquisador mais ávido de
informações, uma vez que Wolpe faz pouco no sentido de contextualizar o
pensamento de Raynal em lógica mais ampla, o que faria ainda mais no sentido de
alcançar o objetivo central do autor em sua obra: apontar a centralidade da Histoire
enquanto carro-chefe de uma luta ideológica iluminista. Mas a ideia de ler Raynal
como grande popularizador das Luzes, insulflando o público “ainda ignorante” no afã
de combater e finalmente destruir a lógica política antiquada e tradicional do Antigo
Regime, é de grande valor e eficiência notável, em nossa visão. É bem verdade que
tal ideia não tinha nada de muito original. Além de Feugère, pouco lido e citado, J.
Morley (que escreveria valorosa biografia de Diderot no final do século XIX) 11 e o
grande intelectual Daniel Mornet12 (historiador da literatura francesa), já haviam

10
DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 69. Ver também, do mesmo autor, Boemia literária e revolução: o submundo das letras no Antigo
Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p.141-143, já citado no capítulo anterior.
11
Diderot and the Enciclopaedists, 2 vols. Basingstoke: Macmillan & Co., 1886.
12
MORNET, Daniel. Les origines intellectuelles de la Révolution Française: 1715-1787. Paris, Tallandier,
collection Texto, 2010 (1933). p. 96.

27
demonstrado de uma forma ou outra quão popular havia sido a obra de Raynal, e
seu impacto no desenvolvimento do ideal revolucionário, especialmente no que
concerne ao alcance do chamado grande público. Wolpe diferencia-se, no entanto,
ao demonstrar com mais clareza que seus antecessores não apenas as “estratégias”
de propaganda utilizadas por Raynal para valorizar seus escritos (a lembrança da
queima de seus livros para suscitar o sentimento de rebeldia sendo apenas uma
delas), como também é talvez o primeiro a ler o abade em aspectos filosóficos com o
respeito que o autor sem dúvidas merece.
A leitura de Wolpe indica o quão completa era a obra, que especialmente em
suas duas primeiras edições (1770 e 1774), trazia em si uma lógica “amarrada”,
plena, legitimada por argumentos demonstrando conhecimentos plenos em história,
geografia, política, religião, moral... Da terceira edição (1781), a adição de uma
retórica inflamada, eloquente, provocativa, pautada por ataques diretos à tirania dos
reis e ao “obscurantismo” de um clero passivo ou cínico, acompanhados de
comentários sempre vivos de oposição à escravidão, ao mercantilismo ou à
metafísica. Uma escrita que se propunha verdadeiramente enciclopédica,
filosoficamente ambiciosa, contrariando as críticas anteriores à suposta limitação do
abade em tal elemento. Os capítulos, ainda conforme Wolpe, teriam sido escritos em
estilo característico, podendo ser recortados em qualquer parte e utilizados
imediatamente como panfletos políticos, propositadamente pensados por Raynal.
Não deixa de ser empolgante e divertido notar a empolgação de Wolpe com seu
objeto, cometendo exageros típicos de um vendedor que pretende convencer os
clientes a esvaziar suas carteiras com o brilhoso produto de mil e uma utilidades
exposto em sua vitrine. O vendedor Wolpe tenta nos convencer que o produto
Raynal, de brilhantismo ímpar, seria em verdade “um dos primeiros historiadores
científicos de nossos tempos, pelos seus esforços em retratar a realidade com
exatidão e seu desejo em demonstrá-la em dados e números, inaugurando assim
um novo método de escrever História”13. Pedimos calma e parcimônia ao valoroso
Wolpe, mesmo partilhando de seu interesse pela figura de Raynal. Não iremos nem
questionar a validade dos dados apresentados, uma vez que sabemos que o livro,
tendo intenção política evidente, na certa exagerou ou mascarou elementos
estatísticos. Fazemos isso ainda hoje, quiçá no século XVIII em meio a processo

13
WOLPE, Hans. Idem. p. 74

28
revolucionário tão singelo! Mas atribuir a Raynal uma espécie de primazia no uso de
dados e estatísticas enquanto elementos de comprovação histórica parece um tanto
excessivo. Tucídides já o intentava fazê-lo muito tempo antes, abandonando a lenda
e a “ficção” e buscando focar em sua narrativa os acontecimentos humanos
enquanto fruto de ações humanas e não divinas. Carecendo de uma bibliografia, o
que parece-nos equívoco que jamais poderia ser cometido na contemporaneidade,
Raynal et sa machine de guerre conclui-se como um grande elogio a Raynal,
quando em apêndice específico, Wolpe argumenta que, mesmo admitindo a autoria
de Diderot em diversas passagens da Histoire, especialmente as mais inflamadas,
tal fato não só não diminui o impacto do abade como o engrandece. É ele afinal
quem assina a obra, evidenciando a centralidade de sua presença, o respeito que
esta evocava, e a capacidade de compilar, editar, modificar e apresentar ao público
um escrito de impacto inominável.
A linha interpretativa iniciada por Anatole Feugère e complementada com
eificência por Hans Wolpe trouxe frutos à produção acadêmica francesa, como
notavelmente demonstrável a partir das influentes leituras de Michèle Duchet nos
anos 1970. Fortalecendo o conceito de “máquina de guerra” como característico da
obra máxima de Raynal, ao mesmo tempo demonstrando com mais fontes a
presença inegável de Diderot na confecção do texto, Duchet apresenta com louvor
em Anthropologie et histoire au siècle des Lumières (1971) os desenvolvimentos de
uma nova forma de escrever história, cada vez mais presente no métier francês e
posteriormente ocidental: as relações possíveis entre história e antropologia. O
objetivo da autora seria, através de uma metodologia tributária das duas áreas,
perscrutar as formas de pensar de um grupo de autores iluministas, especialmente
sobre o mundo não-europeu, com ênfase na problemática da colonização e da
escravidão. Investigando Buffon, Voltaire, Rousseau, Helvétius e Diderot, Duchet
demonstra que os philosophes, em geral, tendiam a concordar com a ideia geral da
necessidade de “civilizar” os selvagens. O pensamento iluminista, segundo ela, não
consegue ver o indígena e o escravo senão como objetos, jamais como sujeitos 14.
No entanto, em diversas de suas obras, sobrevive um tom de denúncia quanto a
essas questões, tratadas como abusos típicos de um poder despótico. A análise do
pensamento de Diderot tem como uma das bases a terceira edição da Histoire de

14
FALCON, Francisco José Calazans. “Da Ilustração à Revolução – percursos ao longo do espaço-tempo
setecentista”. Acervo - Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro. v. 4, n.1, jan-jun, 1989. p. 53-89. p. 76

29
Raynal, incluída no conjunto de livros exemplificados pela autora. A resposta para
esta aparente contradição parece simples, de acordo com Duchet. A exaltação da
figura do “bom selvagem” teria função declaradamente política: além de servir
melhor ao propósito de retratar as atrocidades cometidas no além-mar como um
“espelho” do cometido no continente europeu, “projeta a imagem do tipo de
humanidade concebida em termos ideais, não pervertidos”15. Os filósofos estudados
saberiam bem das “mazelas” e atrasos de tais povos; porém teriam escrito no afã de
demonstrar uma sociedade que devesse combinar os melhores elementos dos dois
mundos. Quanto ao aspecto antropológico, Duchet afirma que os philosophes
franceses do XVIII, ao realizarem tais elucubrações políticas, acabaram se tornando
os primeiros a tecer considerações essenciais acerca da relação entre história e
cultura, mesmo que a base de tais reflexões fosse, naturalmente, eurocêntrica.
Muitas obras poderiam ser citadas para exemplificar o diálogo entre as
referidas disciplinas. Especialmente os trabalhos de Carlo Ginzburg e Robert
Darnton poderiam ser singularizados e analisados. Marshall Sahlins também pode
ser fonte fecunda, pois seus modelos teóricos possibilitam perceber com didatismo a
questão. O principal ponto de encontro entre historiadores e antropólogos tem se
dado basicamente no campo da história cultural e da cultura entendida em
perspectiva histórica. A prática de procurar compreender o significado de objetos,
comportamentos e mentalidades levando em conta as diferenças culturais entre os
agentes em contato foi uma contribuição essencial da antropologia para a história.
Ela marcou importantes estudos das décadas de 1970 e 1980, o que nos auxilia a
compreender a perspectiva trazida por Duchet e sua tese, de que os iluministas do
XVIII teriam sido os primeiros a abrilhantar as reflexões históricas com o diálogo
cultural, forçando-se a encontrar soluções para as diferenças, aqui motivados por
sentido político.
Ronaldo Vainfas credita à história cultural desenvolvida a partir das
supracitadas décadas a pecha de “o grande refúgio da história das mentalidades” 16.
O que autor pretende com tal afirmação é a demarcação desta perspectiva nova,
oriunda de diálogos interdisciplinares fecundos, como campo teórico mais seguro
para o florescimento de estudos ligados a temas relacionados ao “mental”. As

15
Idem. Ibidem.
16
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p.
50.

30
imperfeições teóricas da dita “história das mentalidades”, tão atacada por autores
marxistas e estruturalistas, seriam agora aperfeiçoadas em campo conceitual
aparantemente mais sólido. Lynn Hunt organizou coletânea de ensaios voltada
especificamente à compreensão mais alargada da abordagem17. Assim como
proposto por Vainfas, basta uma leitura da primeira parte da obra para comprovar a
pluralidade característica da nova história cultural. Os autores identificam quatro
modelos possíveis de abordagem dentro da corrente metodológica, sendo eles a
história da cultura “à moda de Foucault”18; a história da cultura dos “historiadores”,
sumarizada no artigo através da comparação entre as idéias de E. P. Thompson e
de Natalie Davis19; a história da cultura de inspiração nitidamente antropológica - a
que nos interessa sobremaneira – representada por uma comparação entre Geertz e
Sahlins20; e, por fim, a história cultural relacionada à crítica literária e à discussão
das relações entre história e literatura, representada no capítulo por uma leitura de
Hayden White e Dominick Lacapra21.
Vainfas reconhece ainda, no afã de demonstrar as distinções da corrente
“das mentalidades”, três tipos variados de história cultural, que poderiam servir de
método analítico da perspectiva22: a história da cultura praticada pelo italiano Carlo
Ginzburg, no qual as noções de cultura popular e circularidade cultural constituem
elementos de vital importância; a história cultural de Roger Chartier, particularmente
por seus conceitos de representação e apropriação; e a história da cultura produzida
por Thompson, supracitado, especialmente no que concerne a seus estudos sobre a
formação das classes sociais e o cotidiano das camadas mais populares na
Inglaterra do século XVIII. Para este capítulo, reconhecer o contributo de Ginzburg,
bem como os diálogos entre historiadores e antropólogos representados por
Thompson, Davis, Darnton, Geertz e Sahlins é o suficiente.
Carlo Ginzburg é um dos mais influentes historiadores da abordagem
estudada, e um dos grandes precursores dos caminhos teóricos nos quais

17
HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural. São Paulo, Martins fontes, 1992.
18
O’BRIEN, Patricia. “A história da cultura de Michel Foucault”. In: HUNT, Lynn (org.). A Nova História Cultural.
Idem Ibidem. p. 33-62.
19
DESAN, Suzanne. “Massas, comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis. In: HUNT, Lynn
(org.). Idem. Ibidem. p. 63-96.
20
BIERSACK, Aletta. “Saber local, história local: Geertz e além”. In: HUNT, Lynn (org.). Idem. Ibidem. p. 97-130.
21
KRAMER, Lloyd S. “Literatura, crítica e imaginação histórica: o desafio literário de Hayden White e Dominick
LaCapra”. In: HUNT, Lynn (org.). Idem. Ibidem. p. 131-173.
22
VAINFAS, Ronaldo. Os protagonistas anônimos da História: micro-história. Rio de Janeiro: Campus, 2002. p.
53.

31
identificamos a obra de Duchet. Em O queijo e os vermes23, o autor põe em prática o
conceito de “cultura popular”, abandonando o conceito de “mentalidades” que foi
carro-chefe de seu estudo anterior24. O autor já havia demonstrado resistência ao
conceito anteriormente utilizado no pósfácio escrito para a versão de 1972 (o livro foi
originalmente publicado em 1966), afirmando que o mesmo induzia à negligência
aos “contrastes entre as mentalidades das várias classes, dos vários grupos sociais,
mergulhando tudo numa mentalidade coletiva indiferenciada e interclassista” 25.
Através do conceito de “cultura popular”, Ginzburg inspira-se na antropologia
cultural26 para defini-lo não como mera imposição das classes dirigentes ou
dominantes, e nem como uma vitória revolucionária de uma resistência ao
aculturamento imposto pelas elites. Tal cultura se definiria pela sua oposição à
cultura letrada, mas também pelas relações que mantém com a mesma, “filtrada” e
ressignificada pelas classes subalternas através de suas condições próprias de vida
e valores. “Circularidade cultural” é o nome dado ao processo, no qual não apenas a
cultura produzida pelas classes subalternas comunica-se e ressignifica elementos da
cultura letrada ou erudita, como também esta o faz em relação àquela. É isto que
representa o estudo dos depoimentos do moleiro Menocchio: uma demonstração
empírica da circularidade evidenciada na forma com a qual a personagem “filtrava”
os textos produzidos no âmbito das classes dominantes através de valores de sua
cultura camponesa, produzindo assim sua leitura de mundo.
É possível evocar também o contributo posterior de Robert Darnton. O
estadunidense partiria em sua mais famosa obra27 da premissa de que "a expressão
geral sempre ocorre dentro de um idioma geral”, o que permitiria ao historiador, “por
meio de um esforço de decodificação e contextualização dos documentos”,
apreender “a dimensão social do pensamento”28. Esta apreensão possível da
dimensão social do pensamento é um dos pilares de sustentação da argumentação
do historiador em seu O grande massacre de gatos. O livro tem como pretensão
(despretensiosa, se nos deixarmos levar pela apresentação quase em tom de

23
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
24
Idem. Os andarilhos do bem: feitiçaria a cultos agrários nos séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das
Letras, 1988.
25
Idem. Ibidem. p. 16.
26
VAINFAS, Ronaldo. Idem. p. 54.
27
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história francesa. Rio de Janeiro: Graal,
1986.
28
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011. p.15-17

32
desculpas do autor, que já imaginava a torrente de críticas que viria junto à
popularidade de obra tão singular) analisar as maneiras de pensar na França do
século XVIII. Não apenas “o que”, mas sim “como”. A ideia dessa história de
tendência etnográfica é estudar a forma como as pessoas comuns entendiam,
significavam seu mundo. Como organizavam a realidade na mente e a expressavam
em seu comportamento.
Esta ideia, é bom frisar, parte do pressuposto de que seria possível “ler” uma
realidade, um comportamento, uma ação. O significado de um gesto ou ritual que se
perdeu no tempo é fonte rica de possibilidades de revelações variadas. Relembra
um pouco o próprio “paradigma conjectural” de Morelli, que Ginzburg brilhantemente
explanou em famoso artigo29 e que daria as bases para o método de investigação
que ele viria a chamar de “paradigma indiciário”. O paradigma se referia à proposta
de criação de um método interpretativo no qual detalhes aparentemente marginais e
irrelevantes seriam formas essenciais de acesso a uma determinada realidade; são
tais detalhes que podem dar a chave para redes de significados sociais e
psicológicos mais profundos, inacessíveis por outros métodos.
A perspectiva de uma cultura que pode ser “lida”, evidenciada com
desenvoltura por Darnton, dialoga diretamente com o antropólogo Clifford Geertz,
em especial suas formulações do conceito de cultura tiradas de sua mais famosa
obra30. O problema motivador, o “mal de origem” por assim dizer, é identificado de
prontidão pelo antropólogo. O conceito de cultura fazia parte de um verdadeiro
pantanal conceitual, assumindo mais de dez definições distintas em um único livro,
incorporando o tal do “todo mais complexo” afirmado por E. B. Tylor. Era necessário
reduzir o conceito, torná-lo mais poderoso teoricamente falando. E o conceito trazido
por Geertz é essencialmente semiótico. O homem seria um emaranhado de teias de
significação tecidas por ele mesmo. A “cultura” seria representada por essas teias.
Ora, como podemos observar ou aplicar isso na prática? Para entender o
funcionamento de uma ciência, deve-se observar o que os praticantes dela fazem.
Em Antropologia Social, praticantes fazem etnografia. Compreendendo a etnografia,
sua prática, pode-se começar a entender o que representa a análise antropológica
como forma de conhecimento. Não é mera questão de métodos de trabalho; o que

29
GINZBURG, Carlo. “Morelli, Freud and Sherlock Holmes: clues and scientific method”. History Workshop
Journal. n. 9, 1980, p. 7-36.
30
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC. 1989.

33
define é o tipo de esforço intelectual que tal trabalho representa. A referência aqui é
feita ao “risco elaborado”31 para uma descrição densa, noção fulcral do conceito
trazido por Geertz, apesar de emprestado de Gilbert Ryle. A explicação da situação
das piscadelas não é o referencial universal didático do que seria uma descrição
densa à toa, uma vez que a recobre perfeitamente. Os movimentos mecânicos do
ato são os mesmos, mas a diferença reside na intenção, na mensagem que está
sendo transmitida (ou não) de acordo com o código socialmente estabelecido.
Observar o movimento é descrever o ato superficialmente. Buscar apreender as
estruturas significantes em termos dos quais os atos e gestos são produzidos e se
dispõem a ser interpretados é fazer uma descrição densa. Fica óbvio, portanto, a
razão da cultura ser sempre pública, uma vez que a mensagem só possui sentido se
passível de leitura, o que nos traz a inferência do partilhamento daquele tal código
socialmente estabelecido pelos partícipes do ato em questão.
Não acumulamos referências teóricas a título de preenchimento inútil de
páginas. As discussões aqui levantadas fazem parte de uma transformação, se não
paradigmática, ao menos de abordagem do fazer historiográfico. Os diálogos entre
os saberes assumem importância singular à luz dos estudos citados. Ainda mais
quando evocamos a figura de Edward Palmer Thompson, tão citado e lido em nossa
produção nacional. Representante de tradição marxista, Thompson propõe
verdadeira renovação indiscutível nas searas do materialismo histórico, ao valorizar
a importância dos elementos culturais para a compreensão social. Flexibilizando o
esquema de leitura que dividia a sociedade em infra-estrutura e superestrutura
(relegando ao segundo campo o papel da cultura, subordinada às relações
socioeconômicas), Thompson aponta interação e retro-alimentação entre questões
culturais e as estruturas econômico-sociais de uma sociedade. Exemplo importante
se dá em sua leitura da formação da classe operária, que se torna uma “classe para
si”, e não apenas “em si”, “quando atinge plena consciência de sua exploração no
processo capitalista de produção, passando então a questionar o sistema com
perspectivas revolucionárias e socialistas”32. É na luta que se forjam as identidades,
aponta o britânico, lançando-se ao estudo das resistências das classes subalternas
no afã de valorizar atitudes e comportamentos reveladores de uma identidade social

31
Idem Ibidem. p. 4.
32
VAINFAS, Ronaldo. Idem. Ibidem. p. 60-61.

34
em construção. A leitura dos três volumes da Formação da classe operária inglesa33
é uma aula de história cultural, mas a referência obrigatória do autor neste sentido
se encontra no famoso artigo “Folclore, antropologia e história social”34. O autor
demonstra a importância do diálogo com a antropologia, já visto aqui também por
outros historiadores do período, e afirma com coragem que, se “sem produção não
há história”, “sem cultura, não há produção”35.
Impossível, enfim, não relacionar as ideias trazidas por Duchet com conceito
bastante importante, o de estrutura da conjuntura, de autoria do antropólogo
Marshall Sahlins. Seria um “conjunto de relações históricas que enquanto
reproduzem as categorias culturais, lhes dão novos valores retirados do contexo
pragmático”36. Vamos quebrar a definição para entendê-la melhor. Em contexto de
estudo da chegada da comitiva do capitão James Cook ao Havaí, as relações
históricas seriam o conjunto da chegada e interesses dos ingleses, de um lado, e a
recepção e interesses dos havaianos, de outro. A reprodução de categorias culturais
se dá na medida em que cada povo relacionou-se (e relaciona-se) com base em
seus prepostos culturais. E o contexto pragmático seria o fato histórico que
impulsiona a ressignificação, a reavaliação funcional das categorias culturais. Em
outras palavras: o encontro entre ingleses e havaianos foi marcado pelas leituras
distintas do evento, baseadas nas ordens culturais respectivas. Cada povo buscou
compreender e reagir à insólita colisão com base em suas visões de mundo,
buscando adequar os fatos às suas “realidades” estruturais.
No entanto, o elemento externo não reagiu conforme as expectativas
oriundas dessas estruturas, o que forçou as mesmas a ressignificarem-se,
reavaliarem-se funcionalmente. Para utilizar ainda outra explanação generosa do
conceito, oferecida pelo autor: “é um conjunto situacional de relações, cristalizadas a
partir das categorias culturais operantes e do interesse dos atores.” 37. Ou seja,
estamos falando de relações mantidas em uma determinada situação – ressaltamos
o exemplo do navio de Cook costeando a ilha exatamente como a descrição do mito
de chegada do deus, além de seu desembarque na praia exata indicada no mito

33
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. v.3.
34
Idem. “Folclore, Antropologia e História Social” In: As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. São Paulo:
Unicamp, 2001.
35
Idem. Ibidem. p. 258-259.
36
SAHLINS, Marshall. Ilhas de história. Rio de Janeiro: Zahar. 1990. p. 160.
37
Idem. Ibidem. p. 171.

35
supracitado -, cristalizadas pelas visões culturais próprias de cada povo, e do
interesse dos atores. A estrutura da conjuntura é, não só o contexto no qual se
operam as reavaliações funcionais das categorias, como também a propulsora de tal
fenômeno. Percebe-se aqui também a explicação da razão do pensamento de
Sahlins, quando ele afirma que os esquemas culturais são ordenados
historicamente. O são, pois seus significados são reavaliados na prática, em
estruturas de conjuntura específicas. Quando Duchet afirma que o pensamento
ilustrado ressignifica suas próprias bases para atribuir uma relação de identificação
com a figura do “bom selvagem”, força-se, de certa forma, a reavaliar seus prepostos
de “progresso”, mesmo que perca pouco de suas bases para fazê-lo: ao contrário de
Sahlins, Duchet estuda escritos políticos que se utilizam de outras realidades, e não
um encontro histórico “físico”, com reavaliação funcional pelo contato. Há ainda,
óbvio, uma evidente reavaliação. Só que tal conceito, se quiséssemos aplicá-lo à
leitura de Duchet, obedeceria a uma espécie de “controle” maior, uma vez que
operado por um grupo de pensadores que intentavam retratar uma realidade
específica aos seus propósitos políticos.
Estabelecer uma fusão dialética entre História e Antropologia é toda a base
da proposta de Marshall Sahlins. O autor demonstrou através de seus conceitos,
dentre os quais singularizamos o de “estrutura da conjuntura”, o quanto a história é
ordenada culturalmente e os esquemas culturais são ordenados historicamente.
Logo, os contrastes binários entre cultura e história, passado e presente, estático e
dinâmico, sistema e evento, história e antropologia, enfim, seriam falhos, errôneos.
“Não apenas fenomenologicamente enganadoras, mas também analiticamente
debilitantes”38. Não seria a própria cultura uma síntese de estabilidade e mudança,
de passado e presente? O autor é brilhante ao afirmar que “a cultura é justamente a
organização da situação atual em termos do passado”39. Logo, seria impossível
dissociar o estudo da estrutura e dos eventos, a antropologia da história. O que
Duchet realiza em seu trabalho, ao propor que alguns dos filósofos iluministas do
século XVIII já teriam feito tal diálogo, tal “conexão”, auxilia-nos em nossos objetivos
de demonstrar um pouco das leituras que consideram o trabalho de Raynal como de
impacto e presença evidentes. A “máquina de guerra” da qual Diderot e outros

38
SAHLINS, Marshall. Op. Cit. p. 18-19.
39
Idem. Ibidem. p. 192.

36
colegas do círculo de D’Holbach se utilizaram, tem influência e destaques tanto na
Europa quanto na América trajando em sua capa o nome do nosso querido abade.
A aproximação realizada por Duchet entre os discursos anti-colonialistas e
uma espécie de “antropologia anterior a seu tempo” pode parecer um tanto forçada
inicialmente, porém é bem fundamentada na disposição de sua obra mais citada 40. A
autora foge de romantismos ou percepções idealizadas dos philosophes, como
demonstrado pela aproximação que realiza entre as visões que estes tinham sobre o
estado de natureza do homem e as dos teólogos mais proeminentes do século
estudado. Em ambos, com exceção óbvia a Rousseau, predominava a visão do
estado de natureza não como uma virtude primitiva, mas como divergência da
norma. René Hubert, citado por Duchet, conclui em sentido análogo ao analisar
descrições de homens “primitivos” retirados de relatos de viagem e citados direta ou
indiretamente em trabalhos da maioria dos autores ilustrados do século XVIII41.
Duchet também contribui largamente ao questionar estas fontes primordiais das
reflexões realizadas pelos supracitados philosophes, apontando que ainda mais
populares do que relatos de viagens eram as memórias e ensinamentos dos
jesuítas. O aparente paradoxo se resolve pelo reconhecimento da experiência
destes atores no contato com o misterioso “outro”. Não era raro que um jesuíta
permanecesse em continente distante por anos em trabalho missionário, o que
transformava seus escritos em fonte valiosa para todos os interessados no problema
das qualidades do “homem selvagem”, mesmo aqueles que se opunham
ferrenhamente às conclusões propostas pelos religiosos42. Não podemos nos
esquecer de citar também os escritos dos naturalistas, que teriam sido fulcrais na
recolha dos materiais, por assim dizer, para a conformação desta nova ciência do
homem43. Raynal é prova cabal desta afirmação de Duchet, uma vez que se utiliza
largamente dos estudos desenvolvidos pelo botânico Philibert Commerson em sua
experiência em Madagascar. Yves Benot complementa o mapeamento das fontes
apontando as trocas de favores protagonizadas especialmente por Raynal e Diderot
em relação a administradores coloniais, em geral amigos ou conhecidos

40
DUCHET, Michèle. Anthropologie et Histoire au siècle des Lumières. Paris: Maspero, 1971.
41
HUBERT, René. Les sciences sociales dans l’Encyclopédie, Paris: Slatkine, 1970 (1922). p. 577.
42
DUCHET, Michèle. Op. cit. p. 76.
43
Idem. Ibidem. p. 78.

37
(principalmente do abade)44. O autor vai mais longe, inclusive, acreditando que a
simbiose entre autor-colonizador – também defendida por Duchet, porém com
menos “cinismo” em nossa visão – era tamanha, que a Histoire possuiria um sentido
de lições para o melhor colonizar, aproveitando o ensejo para inserir uma proposta
geral de reformulação da França e da Europa45.
Já que falamos da América, pedimos licença para sair um pouco das leituras
em francês. Nada contra a prestimosa língua, símbolo do romance. Mas é o
momento de tropicalizar um pouco nosso trabalho. Viajaremos ao Brasil...

Os impactos na América portuguesa

Em 1836 John Armitage lançava seu opulento e ambicioso História do


Brasil46, inicialmente publicado em inglês porém traduzido em seus dois volumes
para o português no ano seguinte. Comerciante de ofício e orgulho, Armitage
constrói uma história brasileira como a trajetória “de um país oprimido pela mãe
pátria invejosa do filho próspero”47 e, sob tal ótica, comenta logo nas primeiras
páginas o problema da educação e instrução, aqui ainda “sem muitos progressos”48.
Apenas algumas obras conseguiram escapar da vigilância das autoridades e davam
a tônica da “ciência política” e da instrução dos colonos: as histórias de Grécia e
Roma49, O contrato social de Rousseau, e volumes das obras de Voltaire e Raynal.
Após o decreto de liberdade de imprensa assinado por D. João VI, em 1821, “houve
proliferação inédita de impressos em terras brasileiras, sobretudo na capital”, de
acordo com Armitage. Porém, anterior a tal proliferação, observemos as obras
citadas pelo inglês como presenças certas nas prateleiras dos estudiosos na
América portuguesa. Raynal encontra-se ali, junto a Rousseau e Voltaire, talvez os
dois nomes mais populares dentre os autores iluministas. Ora, como pode ser? Não

44
BENOT, Yves. “Avertissement”. In: RAYNAL, Guillaume-Thomas. Histoire philosophique et politique des deux
Indes. Paris: Maspero, 1981. p. 7.
45
BENOT, Yves. “Raynal”. In: CHATELET, François et al (org.). Dictionaire des ouevres politiques. Paris: Presses
Universitaires de France, 1989. p. 845.
46
ARMITAGE, John. História do Brasil. 3ª ed. Org. de Eugênio Egas e Garcia Jr. Rio de Janeiro: Edições de Ouro,
1965 (1836).
47
VARELLA, Flávia Florentino. “O comércio civiliza, Portugal oprime: a História do Brasil de John Armitage e a
linguagem do humanismo comercial”. Varia hist., Belo Horizonte , v. 29, n. 50, p. 477-490, agosto de 2013.
48
ARMITAGE, John. Op. cit. p. 5
49
O autor não especifica qual ou quais obras.

38
era Raynal um autor de capacidades limitadas, pouca originalidade, um “não-
clássico”?
Roberto Ventura apresenta um pouco os impactos das leituras de Raynal no
Brasil com erudição invejável em artigo50 publicado nos fins dos anos 1980. Citando
capítulo presente em obra alemã escrita nos anos 1970 por Werner Krauss, voltada
para o estudo do Iluminismo na Espanha, Portugal e América Latina 51, Ventura
conduz a discussão comentando que:

As diferentes leituras da Histoire des Deux Indes na América Latina se


inserem nas condições de recepção e reinterpretação dos modelos da
Ilustração nas colônias portuguesas e espanholas. As "idéias francesas",
como se dizia então, se difundiram entre a elite colonial, que apresentava,
como marca de distinção, tanto a passagem pelo sistema de educação,
quanto a pertença ou o acesso ao círculo dos funcionários, comerciantes e
proprietários. As Luzes se propagaram como debate e discussão de idéias e
princípios no seio das camadas letradas, excluindo a maioria da população,
formada de indígenas, negros, mestiços e indivíduos sem propriedade52

A oralidade, típica marca de comunicação nas sociedades ibero-americanas


nos finais do XVIII, aos poucos vai sendo impactada por aquilo que Carlos
Guilherme Motta chama de “revolução bibliográfica”53, trazida com a divulgação das
obras de Volney, Raynal, Mably, Rousseau, Voltaire, Montesquieu, Diderot e
D'Alembert. “Essa revolução das formas de consciência e de representação se
realizou através da mediação tradutora e interpretativa dos grupos letrados,
detentores da linguagem escrita”54. Ao contrário da América hispânica, dispondo de
centros de ensino superior desde o século XVI, no Brasil as possibilidades de
formação se encontravam restritas aos colégios secundários, controlados pelos
jesuítas até sua expulsão em 1759, limitando-se a alfabetização aos setores sociais
dominantes. A aquisição de educação superior, no caso do nosso país, seria
dependente de estadia nos grandes centros europeus, de acesso restrito a parte de
nossas elites. “Tal fato provocou uma extrema restrição dos círculos letrados e da
difusão das Luzes na colônia portuguesa”55. Ainda segundo Ventura, “As idéias

50
VENTURA, Roberto. Leituras de Raynal e a ilustração na América Latina. Estud. av., São Paulo , v. 2, n. 3, p.
40-51, dezembro de 1988.
51
RINCÓN, C. Die Aufklaerung im spanischen Amerika. In: KRAUSS, W. Die Aufklaerung in Spanien, Portugal und
Lateinamerika. Muenchen, W. Fink, 1973. p. 236.
52
VENTURA, Roberto. Op. cit. p. 40.
53
MOTA, Carlos Guilherme. Nordeste 1817. Estrutura e argumentos. São Paulo, Perspectiva, 1972. p. 31.
54
VENTURA, Roberto. Op. cit. p. 41.
55
Idem. ibidem.

39
ilustradas viajavam de navio, chegando ao Novo Mundo através das estadias de
americanos na Europa, da passagem de europeus nas colônias ou por meio da
importação ou contrabando de livros, opúsculos e periódicos”56. Obras centrais para
a difusão dos princípios das Luzes como a Histoire des deux Indes, o Contrat Social
de Rousseau, Des droits et des devoirs du citoyen de Mably, a Encyclopédie de
Diderot e D'Alembert, The history of America de Robertson, encontram-se presentes
em muitas bibliotecas do período colonial, apesar de sua proibição pela censura
ibérica. A lista de filósofos proibidos no caso português era plena de autores
franceses. Raynal, D'Alembert, Buffon, Condorcet, Condillac, Diderot, Mably,
Montesquieu, Rousseau, Voltaire… Pope, Swift, Sterne, Goethe, Robertson, Hume,
Hobbes e Locke, traduzidos na perigosa língua francesa, só podiam ser adquiridos
com apresentação de licença. The wealth of the nations de A. Smith e a tradução
francesa de Rights of man de Thomas Paine também estavam proibidos.
Tais restrições não impediram a circulação das obras, no entanto, como já
era de se imaginar. A Histoire des deux Indes, cuja primeira edição data de 1772,
era discutida entre os inconfidentes mineiros de 1789. Des droits et des devoirs du
citoyen de Mably, publicado em 1789, é objeto de interrogatórios na devassa de
1794 contra a Sociedade Literária do Rio de Janeiro. O próprio futuro marquês de
Pombal, que unificaria em 1768 os órgãos de controle e censura com a criação da
Real Mesa Censoria, organismo substituído em 1787 pela Comissão Geral para o
Exame e a Censura dos Livros57, possuía em seu acervo particular diversas obras
proibidas como Two treatises of government de Locke, Les lettres Persones de
Montesquieu, Utopia de T. Morus. Aproveitamos para reconhecer o belíssimo gosto
do marquês, uma vez que Utopia é, para nós, uma das mais belas e importantes
obras já escritas pelas brilhantes mentes de nossa história. Locke e Montesquieu
também tem seu valor, claro...
Um dos acusados da Inconfidência Mineira, José Pereira, possuía a História
das duas índias e uma coleção das leis constitutivas dos Estados Unidos, que
figuraram como peças de acusação no processo. Podemos perscrutar um pouco do
impacto de Raynal e seu papel subversivo estudando os depoimentos:

56
Idem. Ibidem.
57
MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil colonial. Rio de Janeiro/São Paulo, Livros Técnicos e
Científicos, Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia, 1979. p. 51-7.

40
ouviu dizer (...) que havia um livro de um Autor Francez, que estava na mão
de um Doutor (...) o qual no fim trazia o modo de se fazerem os levantes
que era cortando a cabeça ao Governador e fazendo uma fala ao Povo e
repetida por um sujeito erudito, e que este livro tinha sido mandado queimar
por Sua Magestade58

Segundo Ventura, “o potencial subversivo do texto de Raynal se realizaria,


conforme esse testemunho, na passagem à ação política, legitimada por uma ‘fala
ao Povo’ e ratificada por um letrado”59. Como se percebe pelas reflexões acima, as
ideias de Raynal (e seus colegas de círculo) não se restringiram aos ouvidos da elite
que tinha condições de estudar alhures. Encontra o povo também, e daí parte seu
potencial perigoso. Perceba, leitor, como Raynal torna-se, aos poucos, cada vez
mais importante. Nos registros da Conjuração Baiana de 1798, por exemplo, que
assumiu contornos bem mais sociais que sua contraparte mineira de 1789,
encontramos
propagados slogans da Revolução Francesa em manifestos que revelam a
aspiração a uma sociedade igualitária, em que as diferenças raciais não
representem barreiras aos cargos e à mobilidade social. Foram
encontrados, com seus participantes, cadernos com transcrições de textos
de Rousseau e uma tradução manuscrita da obra de Volney, com o título de
Revolução dos séculos passados. Os envolvidos são acusados de fazer
avançar o ‘Monstro da projetada Revolução’ pela propagação das
‘imaginárias vantagens do governo da igualdade’60

Não podemos tratar das influências intelectuais da Conjuração Baiana sem


citar Katia Mattoso e seu valoroso Presença francesa no movimento democrático
baiano de 179861. A autora, nascida Kyriacoula Katia Demetre Mytilineou, junta-se a
outros autores que, a partir do século XX, passaram a ler o episódio pela sua ótica
social, como Braz do Amaral, Caio Prado Júnior e Affonso Ruy de Souza. Mattoso,
no entanto, vai além dos debates que perpassavam as análises mais macroscópicas
e estruturais, propondo uma leitura mais antropológica, em espécie de nova história
cultural. O leitor que porventura acreditava ter lido algumas reflexões deslocadas do
centro do capítulo com o debate mais teórico sobre os diálogos entre história e
antropologia, agora se depara com Mattoso antes de Duchet, embora abordando
realidade histórica distinta, no desafio de acompanhar uma leitura histórica do
período com contornos antropológicos. Mattoso propõe-se a estudar exatamente a

58
ADIM. Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro, Bibl. Nacional, 1936. v. 4, p. 180
59
VENTURA, Roberto. Op. cit. p. 46
60
Idem. Ibidem. ABN. A Inconfidência da Bahia em 1798. Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, 1922. v.
45, p. 24.
61
MATTOSO, Kátia. Presença francesa no movimento democrático baiano de 1798. Salvador: Itapuã, 1969.

41
influência dos ideais de liberdade na conjuração em momento em que a sanha
revolucionária banhava tanto a América quanto a Europa. Ressaltando que a Bahia
do final do século enquanto palco de um “profundo mal estar social”, a autora
investiga os jornais e panfletos sediciosos para apontar as bases do projeto político
que “não logrou êxito”. Mattoso destaca-se imediatamente ao desvelar que os
partícipes da revolta, embora reconhecendo que inseridos nas camadas médias e
baixas da sociedade baiana, representavam no conjunto de dominados categorias
de certa forma privilegiadas.
A autora deixa claro que a intenção desses homens que tomavam a frente
do movimento era, desde há muito, propor uma aliança política com a elite local62,
rompendo com as análises mais estruturais tributárias de Prado Júnior, e que seriam
intensificadas pela “escola” da Crise do Antigo Sistema Colonial. Por isso os
pasquins sediciosos apontavam, ao mesmo tempo que desenhando brilhante e
esperançoso futuro de liberdade econômica e política, que “uma eventual
aquiescência ao seu projeto político, não contribuía para o abalo das estruturas
profundas da sociedade”63. Segundo a autora, tais alertas seriam direcionados aos
membros das elites, necessários ao sucesso do processo, que poderiam ter dúvidas
acerca de seus perigos. As influências intelectuais, dentre as quais Raynal, seriam
utilizadas em seus questionamentos da relação entre colonos e reinóis, apontando
os absurdos de uma relação abusiva, porém lidos com muito mais cuidado quando o
assunto voltava-se ao questionamento das estruturas sociais, como a escravidão.
Polêmica, Mattoso conclui que “a projetada revolta nasceu, viveu e morreu no
primeiro ato da palavra. E, esta palavra nunca pretendeu se dirigir nem em favor dos
escravos, nem contra eles. Foi uma palavra que os ignorou. Simplesmente”64.
Kátia Mattoso trilha, no entanto, caminho distinto de um grupo de
pesquisadores brasileiros que também se debruçam no estudo do sensível período
de revoluções atlânticas do final do XVIII no Brasil. Como comentamos, a leitura
estrutural de Caio Prado daria frutos permamentes à historiografia nacional, como
bem demonstrado pelo seu principal discípulo, Fernando Novais. Em célebre obra65,
Novais interpreta o período final da experiência colonial brasileira, identificável pelo

62
Idem. Ibidem. p. 344.
63
Idem. Ibidem. p. 349.
64
Idem. Ibidem. p. 350.
65
NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo:
Hucitec, 1995.

42
recorte apontado no seu título, como parte de um fenômeno derivado da expansão
do capitalismo industrial. Para Novais, o Antigo Sistema Colonial, organizado como
uma espécie de mecanismo de aceleração da acumulação primitiva de capitais
através da exploração sistemática, ao mesmo tempo que constituiu fator vital para a
passagem do capitalismo comercial para o industrial, fomentou a emergência de
padrões incompatíveis com tal sistema de colonização tipicamente mercantilista. De
um esmero teórico-metodológico invejável, a tese de Novais traz uma explicação de
Brasil a partir de um contexto “global”; neste ínterim histórico específico, europeu.
Dessa forma, as revoltas coloniais do final do século XVIII foram lidas, na mesma
natureza abrangente de análise, como exemplos evidentes e flagrantes dessa
incompatibilidade típica do período de Crise do Sistema. Para permanecer na Bahia
de 1798, apenas para firmar o diálogo, Novais afirma explicitamente que “a
contestação do colonialismo do Antigo Regime envolveu efetivamente os estratos
mais subalternos da ordem social e radicalizou no limite as propostas de
transformação política”66. A transformação que acarretaria a mudança do estatuto
jurídico do Brasil em 1822 teria então seu embrião neste momento de crise, do qual
as revoltas são comprovação e exemplo salutar.
Carlos Guilherme Mota segue a mesma tendência em sua dissertação de
mestrado67, interpretando as inconfidências através das formas de pensamento que
indicariam uma espécie de tomada de consciência do processo histórico, articulando
a Crise do Antigo Sistema Colonial às ideias derivadas do contexto. O conceito de
propriedade assume validade basilar para o pensamento de Mota, ao exemplificar as
contradições do período: quanto mais desenvolve-se o capitalismo, mais importante
torna-se a questão da propriedade; mas como falar em propriedade privada quando
se vive em território que pertence a outrem? É possível entender a presença
marcante de Raynal dentre os revoltosos tanto a partir da leitura de Mattoso quanto
de Mota. O questionamento da colonização poderia ser “útil” se quiséssemos ler a
realidade colonial a partir das modificações mentais oriundas de um período de crise
do sistema, ou tendo em referência o projeto político de modificação “conciliada”.
István Jancsó, de escrita sempre brilhante, também nos auxilia no debate,
demonstrando que, a seu ver, o processo baiano foi sim um grande exemplo das

66
Idem. “Prefácio”. In: JANCSÓ, István. Na Bahia contra o Império: história do ensaio de sedição de 1798. São
Paulo: Hucitec, 1996. p. 9-10.
67
MOTA, Carlos Guilherme. Ideia de revolução no Brasil (1789-1801). São Paulo: Ática, 1996.

43
modificações estruturais impostas pela crise do Sistema, bem como uma evidência
da participação das classes mais baixas no processo de questionamento e
subversão. Jancsó considera os discursos dos pasquins exortando uma discussão
além das representadas nas reuniões de letrados, mas evidenciando que a
participação dessas camadas mais baixas fazia parte de uma mudança de estratégia
das próprias elites letradas68. Mas não se trata aqui de uma aliança de classes,
como a leitura de Mattoso poderia sugerir. Nem perto disso. Jancsó demonstra que
a adesão de segmentos sociais tidos e mantidos à margem da vida política era
incompatível com os interesses de qualquer setor da elite, muito embora
necessárias ao sucesso da luta. As ideias libertárias trazidas da Europa, como a
obra de Raynal, tiveram papel fulcral nesta questão. A sedição, que nunca
consagrou-se verdadeiramente em motim pelas próprias contradições internas e
sociais da mesma, foi construindo-se aos poucos a partir das leituras e
ressignificações de obras de valor inestimável como a do nosso abade, identificáveis
nas leituras dos autos do processo de investigação do episódio e nos inventários
produzidos a partir da devassa dos bens dos conspiradores.
É em Minas, entretanto, como já enunciamos, que os impactos da obra de
Raynal são mais sentidos e observados. A circulação dos livros era intensa, como os
trechos que selecionamos a partir dos autos da davassa indicam com clareza.
Kenneth Maxwell aponta que esta importância deveu-se à parte específica de sua
obra: o “livro” sobre o Brasil, depreciativo a Portugal e em tom acusatório à influência
inglesa na colônia, indicando a necessidade de abertura dos portos brasileiros ao
comércio verdadeiramente livre e global69. Paulo Gomes Leite70 completa o esforço
hercúleo de resgate das bibliotecas dos inconfidentes, inspirado em outros
contributos pregressos71 que em muito contribuíram para as conclusões necessárias

68
JANCSÓ, István. Op. cit. p. 204
69
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira, Brasil-Portugal, 1750-1808. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1978. p. 102.
70
LEITE, Paulo Gomes. “A cultura do Tijuco no resgate do Iluminismo em Minas”. In: Revista Minas Gerais, Belo
Horizonte, n. 14, 1989. p. 22-26 & “Contestação e revolução na biblioteca de Vieira Couto”. In: Revista Minas
Gerais, Belo Horizonte, n. 27, 1990. p. 23-29.
71
BOSCHI, Caio César. “O clero e a Inconfidência Mineira”. In: IX Anuário do Museu da Inconfidência. Ouro
Preto: Ministério da Cultura/IBPC, 1993. p. 111-120; JOBIM, Leopoldo Collor. “O Santo Ofício da Inquisição no
Brasil setecentista: estudo de uma denúncia”. In: Estudos Íbero-americanos, v. XIII, n. 2, 1987. p. 195-213;
BURNS, Brandford E. “O iluminismo em duas bibliotecas do Brasil Colônia”. In: Universitas, Salvador, n. 8/9,
ago/set., 1971; LESSA, Clado Ribeiro. “As bibliotecas brasileiras dos tempos coloniais – apontamentos para um
estudo histórico”. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 191, 1946, p. 339-
345.

44
acerca da importância de Raynal nas lutas emancipatórias do final do século das
Luzes em nossas terras tropicais. Eduardo Frieiro72 analisa a partir dos autos da
devassa a vasta biblioteca do cônego Luis Vieira da Silva, evidenciando através dos
livros proibidos guardados pela figura tão erudita um pouco dos principais agentes
de inspiração do pensamento republicano. A livraria do clérigo, conforme avalia
Frieiro, era frequentada pelo diabo, metáfora dos ares libertários oriundos do
Iluminismo francês. Segundo ele, o diabo dentro da biblioteca insinuava-se "sob o
melhor disfarce, a letra da imprensa, para perturbar e perder o bom clérigo”73.
Complementa o autor que na “coleção de livros do cônego "havia livros perigosos e
incendiários. O espírito da Revolta – o espírito de Satã – penetrara nela,
cavilosamente escondido nas obras dos escritores e filósofos”74.
Raynal é figura central em todos os levantamentos efetuados, recebendo
também destaque central na pesquisa de Luis Carlos Villalta75, importante fonte
sobre as influências políticas do pensamento ilustrado na América portuguesa,
mesmo que mais em relação aos dados quantitativos do que da riqueza das análises
de cada impacto em si. João Pinto Furtado76, por fim, reforça as conclusões
elencadas por Maxwell, Frieiro e Villalta acerca do papel de Raynal na Inconfidência,
discordando porém da linha interpretativa seguida pelo primeiro em relação à
influência do exemplo norte-americano. Para Furtado, as inspirações teriam sido
apenas em sentido político, “prático”, não em viés intelectual-filosófico, como quis
Maxwell. Discutiremos um pouco tais aspectos no capítulo seguinte, muito embora
sem pretensões de resolver tal querela. É forçoso reconhecer, no entanto, que ao
menos no que concerne à relação entre Paine e Raynal, a discussão assume
contornos de natureza intelectual, embora obviamente não possamos “bater o
martelo” sobre as motivações da breve discordância que estudaremos a seguir. É
possível que se tratasse de uma disputa por primazia e protagonismo no processo
de mudança histórica, mas não possuímos ainda os recursos para apontar uma
razão como fundamental sobre a outra.

72
FRIEIRO, Eduardo. O diabo na livraria do cônego: como era Gonzaga? e outros temas mineiros. São Paulo:
Itatiaia; Ed. da Universidade de São Paulo, 1981.
73
Idem. Ibidem. p. 22.
74
Idem. Ibidem.
75
VILLALTA, Luís C. Reformismo ilustrado, censura e práticas de Leitura: usos do livro na América portuguesa.
São Paulo: FFLCH/USP, 1999. (Tese de Doutoramento). Ver também Usos do livro no mundo luso-brasileiro sob
as Luzes: reformas, censura e contestações. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.
76
FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da Inconfidência Mineira de 1788-9.
São Paulo: Companhia das Letras. 2002.

45
Demonstra-se assim um pouco das transformações suscitadas pela nova
leitura do trabalho de Raynal a partir do século XX. Como pudemos perceber, a
demonstração de seus impactos obedeceu a perspectivas distintas, além de
perpassar movimentos variados na América portuguesa em especial. Não nos
debruçamos na sedição frustrada do Rio de Janeiro (1794), mas cabe mencionar
que também em solo fluminense os ideais defendidos pela obra assinada pelo
abade incomodaram o poder77. O viés inaugurado por Feugère e brilhantemente
defendido por Hans Wolpe avançou ferozmente na historiografia brasileira, e não
sem motivos. O contato com as fontes demonstrou, com pouco espaço para
discordâncias, o quão central foi a Histoire no processo histórico desta região que
posteriormente formaria-se como nação. Cabe avançar em exercício necessário de
aumento do escopo investigativo. Não podemos ignorar as reflexões que apontaram
a inspiração evocada pela luta nas colônias britânicas. É preciso compreender
melhor este outro processo, para que possamos contribuir ainda mais na direção de
nossa proposta de trabalho.

77
JOBIM, Leopoldo Collor. “Diderot et le Brésil”. In: CHOUILLET, A.M. (org.). Colloque International Diderot.
Paris: Aux Amateurs du Livre, 1985. p. 406 apud VENTURA, Roberto. Op. cit. p. 44.

46
CAPÍTULO 3

I observe the Abbe has made a sort of epitome of a considerable part of the
pamphlet "Common Sense," and introduced it in that form into his
publication. But there are other places where the Abbe has borrowed freely
from the said pamphlet without acknowledging it. The difference between
society and government, with which the pamphlet opens, is taken from it,
and in some expressions almost literally, into the Abbe's work, as if originally
his own; and through the whole of the Abbe's remarks on this head, the idea
in "Common Sense" is so closely copied and pursued, that the difference is
only in words, and in the arrangement of the thoughts, and not in the
thoughts themselves.

PAINE, Thomas. A letter addressed to the abbe Raynal on the affairs of


North America. Echo Library: 2006. [1782]

A citação com a qual iniciamos este capítulo pode parecer contraditória à


primeira leitura, considerando os propósitos do trabalho. É perceptível no excerto
uma ironia fina, acompanhando crítica contumaz e valorosa de um trabalho
(Revolução na América) de Raynal, basicamente acusado de plágio por Thomas
Paine, ou ao menos de pouca originalidade em seus pensamentos, se quiséssemos
nos ater aos eufemismos seguros. Faz-se necessário, no entanto, ter a capacidade
de ir um pouco além das primeiras impressões, questionando o texto de forma mais
plena. O pedaço final do trecho é aquele que chama mais a atenção. Nele, Paine
declara que a obra de Raynal diferencia-se de seu Senso Comum apenas pelo uso
das palavras e pela forma como as ideias foram arranjadas e remanejadas; os
pensamentos, em si, seriam os mesmos. O que faria um autor escrever extenso
panfleto acusatório acerca da obra de outro escritor contemporâneo se a referida
obra não tivesse, de fato, alcançado algum impacto? A primeira pista que o texto nos
dá aponta para a validade de algumas de nossas ideias sobre a importância de
Raynal. Mas ainda não seria suficiente. Afinal, o que muito se questiona é a
originalidade do abade, ou mesmo sua capacidade em distinguir-se, e não o alcance
político de suas obras. O capítulo anterior já apontou que, ao menos neste ponto, é
difícil duvidar da presença histórica de Raynal, especialmente nos movimentos
contestatórios e emancipatórios na América portuguesa. Porém Paine, ao assumir
semelhança entre seus pensamentos e os de Raynal, de certa forma age em sentido
de “igualar-se”. Ora, o que motivaria um intelectual tão publicado e reconhecido a

47
apontar similaridades entre um trabalho seu e outro escrito por alguém considerado
“menor”? É claro que Paine usa o seu trabalho como referência, evidenciando que o
“igualar-se” que apontamos não se refere a uma suposta inferioridade de Paine em
relação ao francês. É exatamente por sempre lermos um número de referências tão
maior ao britânico que evocamos tal passagem como notável. Alguém mais lido,
referenciado e reconhecido, não se daria ao trabalho de apontar suas similaridades
com outro trabalho se o considerasse tão menor assim, ousamos supor. O plágio
apontado só justifica-se a partir do sucesso da obra resultante de tal crime,
outrossim signficaria nada mais do que simples “tiro no pé”, para usar expressão não
tão acadêmica, atraindo olhares curiosos para um trabalho que teria usurpado
elementos significativos do seu. O argumento ainda parece insuficiente. Precisamos
buscar um pouco mais. Somente poderemos encetar pensamentos mais rebuscados
sobre a relação entre os autores se investigarmos a fundo a mesma. Faz-se mister
discutir o papel de Thomas Paine no contexto específico do final do século XVIII, em
especial a partir de suas ações durante a Revolução Americana, bem como
compreender melhor que relações existiriam entre Paine e Raynal, diretas ou
indiretas.

Thomas Paine revisitado1 – um teórico radical

Nascido em Norfolk em 1737, Paine tem poucos momentos memoráveis em


sua jornada antes de desembarcar na América, em 1774, munido de uma carta de
apresentação assinada por Benjamin Franklin2. Mas bastaram apenas dois anos
para que o apaixonado pelos ideais iluministas escrevesse um panfleto que teria
impacto inominável na formação intelectual dos colonos revoltosos que naquele
mesmo ano declarariam de forma unilateral a separação que os britânicos lutariam
por sete anos para, sem sucesso, tentar reverter. O Senso Comum chegou a
vender, nos primeiros doze meses, “150 mil exemplares... para um país com 2,5
milhões de habitantes”3. O sucesso retumbante não apenas ecoou nas mentes dos
legisladores que dariam os rumos políticos da nação, mas também dentre a
população “comum”. Durante o período da Guerra de Independência, Paine foi autor

1
Referência direta ao artigo de Modesto Florenzano, “Thomas Paine revisitado”, Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo. Disponível em:
<http://200.144.182.46/publicacoes/textos/florenzanothomaspaine.pdf>. Acesso em: 09 ago. 2017.
2
ALDRIDGE, A. Owen. Man of Reason: The Life of Thomas Paine. Lippincott, 1959.
3
FLORENZANO, Modesto. Idem. Ibidem. p. 1

48
de uma série de artigos intitulados “American Crisis”. Um deles, que nos chamou
bastante a atenção, teria sido lido para as tropas de George Washington antes da
primeira grande vitória na Batalha de Trenton. No texto, o autor argumenta que
estariam eles em uma época de teste às almas dos homens. Em meio à crise, o
summer soldier e o sunshine patriot4 apequenam-se no serviço ao país. Mas aquele
que resiste hoje, merece o amor e a gratidão de qualquer homem ou mulher5. Tal
capacidade retórica e literária fez com que Thomas Jefferson, antigo amigo e por
vezes aliado político, comentasse que nenhum autor teria sido melhor que Paine em
familiaridade e estilo de escrita, em perspicácia de expressões, felicidade de
elucidações, ou em simplicidade e riqueza descompromissadas de linguagem 6.
Jefferson não está sozinho em suas observações. De fato, diversos especialistas
apontaram a capacidade que Paine possuía em conquistar pela escrita, tão
apaixonante pela simplicidade mas ao mesmo tempo pela lógica intrínseca. Eric
Foner sintetiza um pouco essas observações, apontando que Paine teria “inovado
em uma nova forma de escrita política”, “criando um estilo literário feito
especificamente para alcançar o grande público”7.
Paine teria uma trajetória notavelmente instável. Retornaria à Inglaterra em
1787, e ao perceber que seu Os Direitos do Homem seria alvo de um julgamento
que o colocaria no seio de uma acusação de libelo sedicioso, como queria Edmund
Burke, seu antigo opositor, fugiu para a França. Uma vez em território francês, não
apenas recebeu cidadania local como chegou a ganhar uma cadeira na Convenção
Nacional, até indispor-se com Marat acerca da execução de Luis XVI, o que lhe
rendeu dez meses de prisão. Alguns biógrafos argumentam que Paine não foi
executado por um equívoco, pois a marca de giz que apontava a cela do próximo
executado teria sido deixada na porta da cela vizinha à sua8. O retorno aos Estados
Unidos, que só se daria em 1802, foi mais amargo do que adocicado. Ignorado e
vilanizado pela sua postura anti-cristã, demonstrada em The Age of Reason, Paine
4
Summer Soldiers, que seria traduzido literalmente por “soldados de verão”, é uma referência aos fazendeiros
que uniam-se ao Exército Continental durante o Verão para lutar, porém retornavam para casa durante o
Inverno para ajudar na colheita e nos cuidados com suas fazendas. Outros eram chamados desta forma apenas
pela “fama” de fugirem em momentos de maiores dificuldades, nos “invernos” das lutas. Sunshine Patriots, da
mesma forma, faz referência aos patriotas de ocasião, que apoiam a causa durante os momentos de vitória e
alegria (Sunshine = luz do Sol), mas que omitiam-se em meio às derrotas duras.
5
PAINE, Thomas. Thomas Paine Reader. Ed. Michael Foot e Isaac Kramnick. London: Penguin, 1987. p. 116
6
Jefferson to Francis Eppes. January 19, 1821. Thomas Jefferson: Writings, Ed. Merrill D. Peterson. New York:
Library of America, 1984, p. 1451.
7
FONER, Eric. Tom Paine and Revolutionary America. Oxford University Press. New York, 1976. p. 14.
8
ALDRIGE, A. Owen. Idem. Ibidem.

49
morreu pobre e na obscuridade cinco anos após o retorno, obscuridade esta que
Florenzano acredita ainda persistir de certa forma, muito embora a importância de
suas ideias para a Revolução tida como berço identitário da nação seja inegável até
para seus detratores.
Este elemento pessoal da trajetória de Paine pode parecer sem utilidade,
porém faz-se fulcral na compreensão de diversos pontos dissonantes de sua vida. O
estilo de escrita tão elogiado por Jefferson era herdeiro de uma personalidade que
não apenas se recusava a fugir de um bom embate público, mas em verdade o
procurava. A rusga com Raynal faz parte de uma série de outras discussões
políticas abertas que Paine abraçou. E é curioso confrontar tal aspecto com as
características basicamente opostas de seu mentor e amigo Benjamin Franklin 9.
Franklin reforça em sua autobiografia10 que pautava-se no método socrático para
desenvolver uma retórica fundamentada na crença de que os indivíduos não
possuem acesso a uma verdade essencializada. Franklin costumava sempre deixar
claro que suas visões eram “opiniões”. O conhecimento é produto do diálogo, porém
como o diálogo é sempre fluido e intermitente, pelo menos em suas possibilidades, o
conhecimento será sempre temporário, contigente11. Paine, por outro lado,
acreditava, e comportava-se de acordo com a crença, na ideia de que havia sim uma
verdade, tão possível quanto obrigatória de ser alcançada. Sua escrita, tão viva e
segura (por vezes arrogante, como o excerto demonstra), é a representação fiel de
tal ideia. Mas a verdade poderia ser alcançada por qualquer um, afinal. Basta
separar-se de seus preconceitos, de suas visões pré-concebidas de mundo. O
primeiro parágrafo de Senso Comum demonstra isto: “Talvez os sentimentos
contidos nas páginas seguintes ainda não estejam suficientemente em moda para
granjear-lhes os favores gerais; o hábito antigo de não considerar uma coisa errada
empresta-lhe uma aparência superficial de estar certa, e dá origem, de início, a um
descomunal grito em defesa do costume. No entanto, o tumulto logo diminui de

9
Paine escreve uma carta a Franklin assim que chega na Filadélfia, em 1774. No conteúdo da mesma, explica
ao mentor que não teria tido tempo de produzir uma cópia do documento pois ainda precisava escrever ao pai
para avisar que chegara bem ao destino. Ou seja, Paine escreve a Franklin antes mesmo de corresponder-se
com seu pai.
10
FRANKLIN, Benjamin. The Autobiography of Benjamin Franklin. Houghton, Mifflin and Company, 1888.
11
WARNER, Michael. The Letters of the Republic: Publication and the Public Sphere in Eighteenth-Century
America. Cambridge: Harvard University Press, 1990. p. 81.

50
intensidade. O tempo faz mais convertidos do que a razão.12” O “talvez” que abre a
passagem parece nos levar a uma neutralidade que imediatamente se dissipa. Paine
evidencia a confiança em seus argumentos enquanto verdade revelada, e a
resistência à mesma como sendo mero fruto do hábito, que impôs o erro enquanto
verdade por tempo suficiente a ponto de fazer acreditar as mentes do povo. O
tumulto da resistência diminui, no entanto, e a verdade revela-se sedutora e
irresistível. Franklin, seguindo a leitura de Warner, põe o ônus no autor. Paine, no
leitor. Da mesma forma que podemos facilmente perceber um dos elementos que
fez de Paine uma figura tão polêmica, conseguimos apreender a extensão de seu
sucesso enquanto autor de panfletos políticos. O brilhantismo da retórica convence,
faz movimentar, empolga. A historiadora Dena Goodman aponta, em excelente
obra13, que durante a segunda metade do século XVIII fortaleceu-se a noção de
separação entre as ideias e os indivíduos que as propunham, ao menos dentro do
âmbito das discussões públicas. Paine caminhava em linha tênue no assunto em
questão. A carta ao abade Raynal poderia ser usada como um exemplo de uma obra
que propõe combater apenas as ideias, porém acaba desembocando por vezes em
críticas de cunho mais personalista. A figura pública de Paine sofreu, como já
comentamos, alguns impactos oriundos de tais querelas sucessivas. Um dos autores
que melhor exemplifica o referido aspecto da escrita de Paine é sem dúvidas
Edward Larkin, que produziu um dos livros mais referenciados sobre o assunto14.
Conta Larkin, após analisar algumas cartas trocadas entre Benjamin Franklin e sua
filha, Sarah Franklin Bache, que Paine tendeu a abraçar cada vez mais a persona
pública de combatente, de “brigador”, especialmente após a Declaração de
Independência do recém-nascido Estados Unidos da América. De fato, uma das
disputas mais conhecidas se deu entre o revolucionário e Silas Deane, diplomata
que foi um dos grandes nomes das reuniões do Congresso Continental, como
representante de Connecticut. Em 1781, Paine e Deane se viram no epicentro de
famosa briga, na qual Paine atiçou os ânimos gerais ao fortalecer as acusações de
corrupção por parte do diplomata em seus serviços na França, parcialmente agindo

12
PAINE, Thomas. O Senso Comum. In: Coleção Os Pensadores. Jefferson-Federalistas-Paine-Tocqueville. São
Paulo: Abril Cultural, 1979.
13
GOODMAN, Dena. The Republic of Letters: A Cultural History of the French Enlightenment. Nova York: Cornell
University Press, 1994. p. 96.
14
LARKIN, Edward. Thomas Paine and the Literature of Revolution. Nova York: Cambridge University Press,
2005.

51
em defesa de um amigo pessoal seu, Richard Henry Lee, que havia sido
questionado por Deane acerca de sua devoção à causa da Revolução. Paine
selecionou como método de embate, como de costume, a confecção de uma carta
aberta, publicada em edição de dezembro do jornal Pennsylvania Packet, tornando
pública uma investigação até então secreta, pela seriedade das alegações contra
um diplomata oficial. Larkin, devemos alertar, não é historiador, e por isso devota
seus estudos a análises literárias, que por vezes parecem talvez “psicologizantes”
demais. Preferimos uma abordagem mais cuidadosa e receosa acerca da leitura de
intenções de um autor. Porém é válido demonstrar que Paine empenha-se em
agredir a credibilidade de Deane a todo instante, questionando inclusive sua posição
enquanto “gentleman”15. Deane e Raynal não foram as únicas figuras públicas
“atacadas” por Paine em sua empolgação radical. O próprio George Washington lhe
foi alvo, naquele episódio que tenha marcado talvez sua derrocada enquanto figura
respeitável dentre a população estadunidense16.
No entanto, seria injusto abordar a trajetória de Paine apenas a partir dos
elementos que tornaram o final de sua vida tão melancólico. Se o inglês acusa
Raynal de plágio, o faz, como já dissemos, por acreditar na aproximação dos ideais.
E que ideais seriam esses? De acordo com Florenzano, os de um democrata nada
moderado, mas sim “puro”, radical17. Em Os Direitos do Homem, Parte Um, Paine
dedica-se a responder às ideias de seu desafeto Burke, demonstrando no processo
um pouco de suas crenças políticas e sociais. Parte do princípio que o homem é
naturalmente social, o que é filosoficamente rico (há uma referência à Aristóteles,
que curiosamente não defendia a democracia enquanto melhor forma de governo) e
ao mesmo tempo politicamente otimista, se é que podemos nos expressar assim. De
acordo com o autor, por sermos naturalmente sociáveis, a resolução de conflitos e
problemas gerais seria sempre facilitada, se não vivêssemos iludidos pelas
superstições diversas e intimidados por governantes abusivos e impositivos. Como
ele próprio diz em O Senso Comum, “society stems from our wants and governments
from our wickedness”. Reunir-se em uma lógica social é, assim, natural, uma vez

15
O artigo se encontra na edição de 15 de dezembro de 1778, que pode ser encontrada nos arquivos públicos
disponibilizados por site especializado em busca de árvores genealógicas. Como não dispomos de acesso aos
arquivos materiais do jornal, nos utilizamos de tal técnica insólita para encontrar o texto. Disponível em:
https://www.genealogybank.com/explore/newspapers/all/usa/pennsylvania/philadelphia/pennsylvania-
packet. Acesso em 12 ago. 2017.
16
Ideia defendida por Larkin no segundo capítulo da obra supracitada.
17
FLORENZANO, Modesto. Idem. Ibidem. p. 7

52
que originária da vontade. Os governos, porém, a ideia de comandantes e
comandados, são ambos frutos nada mais que da maldade construída, da
perversidade. Na Parte Dois do mesmo livro, Paine vai além. Constrói basicamente
uma teoria de “welfare state”, como Florenzano demonstra concordar 18, apontando a
necessidade de uma pensão garantida pelo Estado aos soldados e marinheiros que
ficariam desempregados ao fim dos conflitos, exemplificando seu ideal acerca da
existência da estrutura estatal: a garantia do básico para salvaguardar comércio e
indústria, e a oferta de sustentação àqueles que não teriam condições de assim
fazê-lo pelas próprias forças. Os Direitos do Homem, que nasceu como uma
resposta bem elaborada à crítica de Edmund Burke aos meandres da Revolução
Francesa, tornou-se assim um tratado de governo riquíssimo, com um programa de
natureza republicana e um ideal de democracia como nortes de uma sociedade
ideal.

O Senso Comum e a Carta a Raynal – contextos e significados

Pouco após a Guerra de Independência, Paine tentou conseguir junto ao


Congresso uma pensão por recompensa aos seus serviços dedicados à causa
revolucionária. O Congresso, tendo que lidar com a confusão financeira que
acompanha períodos de guerra, e ainda em dívida com alguns dos soldados, nega o
pedido do pensador, porém oferecendo-lhe alternativa: a posição de historiógrafo
oficial dos Estados Unidos, com direito a um salário digno do cargo. Um dos
biógrafos mais citados de Paine19 é quem conta esta passagem, destacando o
quanto o britãnico teria ficado triste e aborrecido com a resposta dos representantes
do povo. Keane argumenta que uma das razões de tal desapontamento estaria no
fato de Paine ser um autor político, dado a elucubrações do presente e do futuro.
Mas tal raciocínio pode e deve ser problematizado. Larkin relembra 20, por exemplo,
que Paine foi quem ofereceu tal ideia ao Congresso quatro anos antes, em meio à
disputa aberta com o diplomata Deane, no afã de limpar seu nome e desculpar-se
oficialmente. Mas poderíamos ir até um pouco além. As cartas trocadas com
Franklin, que já citamos, são cheias de referência à esta intenção que movia Paine:
“I intend next winter to begin on the first volume of the Revolution of America, when I

18
Op. cit. Idem. Ibidem. p. 17
19
KEANE, John. Tom Paine: A Political Life. Boston: Little, Brown & Co., 1995. p. 245
20
LARKIN, Edward. Idem. Ibidem. p. 87

53
mentioned it to you the winter before last you was so kind as to offer me such
materials in your possession as might be necessary for that purpose”21. Esta
passagem é datada de 1777, apenas um ano após a Declaração de Independência.
E podemos perceber a referência feita ao “inverno passado”, o que nos permite
inferir que a ideia de se empenhar em tal tarefa já havia sido aventada por Paine
desde o ano anterior.
Há, em O Senso Comum, duas grandes seções históricas que precedem as
partes mais famosas da obra, focadas em um elemento mais teórico, filosófico. “Da
origem e do plano de governo em geral, com concisas observações sobre a
Constituição inglesa” e “Da monarquia e da sucessão hereditária” trazem inserções
políticas construídas por Paine a partir de suas conclusões históricas, especialmente
focado em compreender as origens das estruturas que pretende criticar ao longo do
trabalho. Podemos perceber tal objetivo logo no início do primeiro capítulo: "Alguns
escritores de tal modo confundiram sociedade e governo que entre os dois deixaram
pouca ou nenhuma distinção, apesar de, além de diferentes, possuírem origens
diversas”22. Para resolver a confusão enunciada, o autor dedica-se nas páginas
seguintes a demonstrar as origens distintas entre governo e sociedade, retornando à
colonização da América do Norte, aqui apresentada enquanto situação hipotética,
em recurso retórico extremamente eficiente na conexão do leitor ao argumento.
Importante notar que Paine relaciona diretamente a luta pela liberdade à formação
inicial do povo, recurso que até os dias atuais permanece utilizado em livros
didáticos oficiais e ensinado em sala de aula. Cria-se também uma história de
origem própria, diferenciada, ideal na construção de uma identidade nacional em
momento tão sensível, considerando que a maioria dos colonos ainda se via
enquanto britânicos, exigindo tratamento análogo aos metropolitanos nos assuntos
fiscais e tributários. A segunda seção permanece empregando a história para
fortalecer os argumentos políticos encetados no panfleto. Paine deixa claro em seus
comentários sobre a monarquia que os abusos atuais não se tratavam de mera
incompetência pontual ou característica do momento histórico específico de pós-
guerra enfrentado pelos britãnicos. O problema se encontra na monarquia enquanto
instituição, desde suas origens. “Nos primeiros tempos do mundo, de acordo com a

21
PAINE, Thomas, Complete Works, Vol. 2. p. 1133.
22
PAINE, Thomas. O Senso Comum. In: Coleção Os Pensadores. Jefferson-Federalistas-Paine-Tocqueville. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 45.

54
cronologia da Escritura, não houve reis e, por conseguinte, não houve guerras” 23. O
elemento mais fascinante da leitura, talvez, se encontra no exercício de
desconstrução que Paine realiza, não apenas removendo da monarquia seu
elemento de legitimidade religiosa, como fazendo um exercício em sentido oposto:
reconta sua história utilizando a Bíblia para argumentar que a monarquia era, na
verdade, uma estrutura trazida pelos pagãos, “um pecado”, “uma maldição” para os
judeus.
Tais seções do famoso panfleto nos servem para contextualizar um pouco a
maneira como Paine utilizava-se da história na construção de seus argumentos
políticos. A demonstração não nos serve apenas pela citação direta que Paine fez
do suposto plágio cometido por Raynal em relação ao seu livro mais famoso. Serve
para compreender um pouco dos objetivos da própria Letter por ele endereçada ao
francês, bem como a importância intrínseca que a figura do abade assume perante
autor tão vital para os caminhos revolucionários letrados do final do século XVIII. Ao
recusar o posto comissionado oferecido pelo Congresso, Paine argumenta com
fluidez e coesão as razões do ato: não se pode relacionar uma atividade tão
importante como a escrita da história a questões monetárias24. Realizamos breve
pausa neste momento para concluir com felicidade pela pouca leitura de tal
documento. Imaginem os amigos os estragos que sofreríamos se tal argumento
tomasse a esfera pública em tempos tão sombrios... Retornemos ao trabalho, que
pede formalidade. Paine acreditava que a imparcialidade necessária ao trabalho não
poderia ser violada, o que ocorreria com a presença de recompensas financeiras ao
autor25. Mesmo que não tivesse aceitado a posição de historiógrafo oficial, o
pensador britânico valeu-se de diversos documentos políticos, como o supracitado
Senso Comum, para abordar a história do novo país, em especial as questões
relativas à revolução. A carta ao abade Raynal encaixa-se perfeitamente em tal
propósito. Como bem evidenciado pela correspondência intercambiada com George
Washington26, o público alvo do documento era o europeu, que precisava aprender
“de verdade” o ocorrido no continente americano, ao invés dos relatos supostamente
equivocados de Raynal.

23
PAINE, Thomas. O Senso Comum. Idem. p. 49.
24
Idem. “Letter to the Continental Congress”. In: Complete Works. Op cit.
25
KEANE, John. Tom Paine: A Political Life. Boston: Little, Brown & Co., 1995. p. 187.
26
PAINE, Thomas. Complete Works, Vol. 2. p. 1204.

55
It is yet too soon to write the history of the Revolution, and whoever attempts
it precipitately, will unavoidably mistake characters and circumstances, and
involve himself in error and difficulty. Things, like men, are seldom
understood rightly at first sight. But the Abbé is wrong even in the foundation
of his work; that is, he has misconceived and mis-stated the causes which
produced the rupture between England and her then colonies, and which led
on, step by step, unstudied and uncontrived on the part of America, to a
revolution, which has engaged the attention, and affected the interest of
Europe27.

Escolhemos este parágrafo por demonstrar tão bem alguns dos propósitos
do documento endereçado a Raynal. É necessário, de acordo com Paine, recordar a
compreensão dos princípios que moveram a Revolução. O formato de carta é aqui
ideal, pois apresenta a possibilidade de se contar uma história oficial com narrativa
diferenciada. Evoca-se o teor pessoal marcante dos seus trabalhos, atraindo
atenções, e ao mesmo tempo permite uma exortação histórica mais preocupada
com os princípios do processo, suas causas e aprendizados possíveis, do que o
detalhe factual das batalhas e acontecimentos que marcariam uma história oficial de
um período de guerras. A carta foca cinco pontos centrais que formariam o epicentro
dos equívocos do abade: as causas da Revolução, a narrativa das primeiras
batalhas em Nova York e Nova Jersey, o uso do dinheiro de papel, a constituição
específica dos estados em 1778 e a questão da aliança com a França. Não se trata
de uma correção factual: cada uma delas vem acompanhada de uma conclusão
específica de Paine sobre as consequências e o que se aprendeu com cada
episódio.
Chamou-nos a atenção, no entanto, enquanto líamos o documento, como
Paine parece ter a figura de Raynal em estima mais elevada que a maioria de seus
“alvos” de embates públicos anteriores. Parece controverso afirmar isso após iniciar
o capítulo com uma acusação aberta de plágio, mas podemos demonstrar:
To an author of such distinguished reputation as the Abbé Raynal, it might
very well become me to apologize for the present undertaking; but as to be
right is the first wish of philosophy, and the first principle of history, he will, I
presume, accept from me a declaration of my motives, which are those of
doing justice, in preference to any complimental apology I might otherwise
make28.

Mesmo que o tom de humildade pareça um tanto forçado, quase “político”,


não podemos ignorar o quanto Paine valoriza a figura de Raynal, elogiando sua
reputação e quase subordinando-se respeitosamente a ele. Não é sem motivos que
27
PAINE, Thomas. Letter to the Abbe Raynal. Disponível em: http://www.thomaspaine.org/major-works/letter-
to-the-abbe-raynal.html. Acesso em: 15 ago. 2017.
28
Idem. Ibidem.

56
Paine quase nunca se refere a Raynal na segunda pessoa, mas sim na terceira: o
documento não é dedicado a leitura íntima do abade, mas apenas utiliza seus
escritos como pretexto para escrever uma nova história da revolução, agora mais
correta que a do francês. Importante ressaltar que, mesmo apontando os erros,
Paine faz questão de justificar Raynal: após refletir que a distância do abade em
relação aos acontecimentos tenha sido a principal razão dos problemas da obra, o
autor relembra do episódio de roubo de alguns dos manuscritos do francês, o que na
certa deveria ter atrapalhado sua revisão final. Mas as justificativas cessam quando
a acusação de plágio referenciada no início do capítulo se faz presente na
introdução da carta, inaugurando momento fulcral do texto: o julgamento das
habilidades de Raynal que Paine se dedica a fazer. Contribuindo para o debate
lançado no primeiro capítulo, Paine reconhece em Raynal “powers of genius”,
chamando-o de grande mestre da escrita e da linguagem. Critica, no entanto, sua
capacidade enquanto historiador, pelos erros factuais cometidos, e pelo estilo de
narrativa por ele utilizado, pecando na criação de um interesse mínimo ao leitor. O
abade parece apressar-se em sua narrativa, prossegue o autor, dando a impressão
de que estaria “fugindo” dos fatos, sem interesse pelos impactos dos mesmos. Não
sabe se permanece como narrador ou mero observador.
As críticas severas acompanhadas de um reconhecimento salutar nos
auxiliam a construir um pouco mais da trajetória de Raynal e perceber como suas
obras foram lidas e o quanto impactaram as experiências americanas no final do
XVIII. A carta de Paine representa um impulso em sua trajetória, na qual o autor
dedica-se a apresentar-se como teórico político do mundo, não apenas dos Estados
Unidos. Não é sem razões que Paine pede aos tradutores do Senso Comum para
que “corrijam” nas versões em francês seus apontamentos sobre a democracia
como única forma de governo benfazeja. Desejava diminuir um pouco o impacto de
suas ideias para ter aceitação maior em mercado novo, empreitada só alcançada
graças à força do nome de Raynal. Por isso Paine referia-se a si mesmo, enquanto
na Europa, como o autor de Senso Comum e da carta ao abade Raynal29.

29
FONER, Eric. Tom Paine and Revolutionary America. New York: Oxford University Press, 1976.

57
O anti-colonialismo de Raynal na Histoire

De todos os grandes temas que perpassam a Histoire, talvez a postura anti-


colonial seja o que mais mereça um enfoque neste capítulo, considerada a sua
conexão com a breve análise de Paine realizada. Os elementos “plagiados”, afinal,
caso sigamos a crítica do autor britânico, fazem referência à postura crítica que
ambos dividiam sobre questões de governo e sociedade, aqui instrinsecamente
relacionadas ao domínio britânico e sua natureza negativa, ignominiosa. Anthony
Pagden é um dos acadêmicos que aponta a Histoire como o primeiro texto a
oferecer uma espécie de teoria do imperialismo30, e muito embora pudéssemos
apontar um salutar exagero do autor, não precisaríamos fazer um esforço intelectual
tão hercúleo assim para compreender seu argumento. A ambiciosa obra partilhava
de intenção tão sonhadora quanto, porém condizente com a visão de História 31
compartilhada por alguns dos philosophes do século XVIII, qual seja o de evocar
pelos ensinamentos do passado uma lição. Não uma ideia de História mestra da
vida32, ensinando o “como fazer”, mas talvez um “como não fazer”. Curioso que
Pagden defende que a obra magna de Raynal não teria sido apenas a primeira,
como também a última de seu tipo33. É óbvio que outras obras se preocuparam em
realizar estudos comparados como Raynal o fez, no afã de investigar similitudes e
discrepâncias nas origens de formações econômicas, políticas, ou mesmo as
estruturas institucionais dos impérios europeus da época Moderna. Mas, defende
Pagden, contam-se nos dedos das mãos os esforços empreendidos no sentido de
apreender os significados, os propósitos, a natureza dos impérios modernos. O
esforço parece ser ambicioso em demasia, grande demais. Os acadêmicos,
amedrontados em publicar uma síntese tão complexa, preferem o conforto de suas
especialidades, o calor e o aconchego de um recorte espaço-temporal mais bem
delineado. Mas como podemos trabalhar um autor como Raynal, Paine, Diderot,
Condorcet, ou qualquer outro teórico do XVIII sem considerar a natureza global de

30
PAGDEN, Anthony. Lords of All the World: Ideologies of Empire in Spain, Britain and. France, c. 1500-C.1800.
New Haven,. Conn.: Yale University Press, 1995. p. 3.
31
Pretendemos abordar um pouco mais tal questão no próximo capítulo, porém resguardando a ideia de que o
debate necessita de um trabalho de Teoria e Filosofia da História voltado somente a ele, o que também
pretendemos escrever um dia...
32
KOSELLECK, Reinhart. “Historia Magistra Vitae. Sobre a dissolução do topos na história moderna em
movimento”. In: Futuro passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto,
Ed. PUC-RIO, 2006, p. 41-60.
33
PAGDEN, Anthony. Idem. Ibidem.

58
suas discussões? As críticas são, em suas próprias propostas-base, globais por
excelência. Daí nossa intenção de também navegar pelo globo nesta monografia.
Mesmo que de forma tímida, o trabalho busca, de forma metalinguística, fazer uma
referência aos caminhos empreendidos por Raynal em sua Histoire. Se ele lá tece
críticas globais, nós aqui as analisamos em escala parecida.
Quanto ao colonialismo típico dos impérios modernos, Raynal tem muito a
dizer. Gilbert Chinard aponta em texto clássico34 que os conteúdos da obra assinada
pelo abade eram tão diversos e volumosos quanto os de uma enciclopédia, porém
sem a organização salvadora típica de uma obra de tal tipo35. Tal afirmação ilustra
bem a dificuldade que qualquer analista teria (ou terá) ao decidir entregar-se à tarefa
de sistematizar os conteúdos da Histoire para analisá-los de perto. Alguns temas,
entretanto, pululam aos olhares mais atentos, especialmente ao percebermos os
impactos que tais elucubrações tiveram dentre os leitores americanos, seja na
América portuguesa (como ilustramos no capítulo anterior), seja na inglesa. E é fato
que o assunto da colonização é um deles. Em geral, Raynal indica o episódio de
descoberta e conquista do Novo Mundo como uma tragédia sem precedentes.
Genocídio, escravidão, opressão. Os comentários sobre escravidão, inclusive, que
são em nossa opinião alguns dos pontos altos da obra, não foram singularizados
para análise pois teriam sido originários de Diderot, de acordo com a leitura de
Michele Duhet e outros especialistas. Vale a leitura, até para evidenciar os talentos
de Denis Diderot para além de seu trabalho com a Enciclopédia, esforço pelo qual o
francês é mais comumente rememorado. Mas os argumentos sobre a colonização
não ficam muito atrás quanto à paixão demonstrada, e o “descobridor” europeu é
ilustrado basicamente como um demônio chegando e devassando, de forma
inesperada e malquista, um paraíso pertencente ao nobre selvagem. Não devemos
nos assustar com a imagem de força religiosa. Não apenas era Raynal jesuíta de
formação, como fazia-se necessário dialogar com os elementos culturais
predominantes e hegemônicos para alcançar maior choque. E o europeu consigo
trouxe apenas morte, vício, doença, escravização. "Quelle obligation vous aura le
sauvage, lorsque vous lui aurez porté des arts sans lesquels il est satisfait, des

34
CHINARD, Gilbert. L'Amérique et le rêve exotique dans la littérature française au XVIIe et au XVIIIe siècle.
Paris, Hachette et cie, 1913. Disponível em: https://archive.org/details/lamriqueetler00chin. Acesso em: 14 de
set. de 2017.
35
"II est impossible d'en faire l'analyse, pas plus qu'on ne peut analyser le Dictionnaire de Bayle ou
l'Encyclopédie”. p. 390.

59
industries qui ne feroient que multiplier ses besoins et ses travaux, des loix dont il ne
peut se promettre plus de sécurité que vous n'en avez?" 36. Aqui Raynal evidencia
bem o que apontamos: não há nada de positivo trazido pelo europeu. A civilização e
o cristianismo teriam sido apenas argumentos falaciosos e hipócritas, para obnubilar
suas verdadeiras intenções: pilhar, roubar, exterminar, escravizar. A conquista
espanhola é muito bem explorada pelo abade na demonstração das crueldades. A
primeira batalha campal entre colonizadores espanhois e indígenas teria ocorrido em
1495, poucos anos após a chegada inicial de Colombo na região. Raynal utiliza
“suas fontes” (nunca identificadas ou citadas em nota) para denunciar a morte de
“trezentos mil” nativos “inocentes e pouco armados” apenas no primeiro dia de
batalha. Os sobreviventes? Prontamente escravizados e enviados a ex-condenados
expulsos de sua pátria-mãe, que agora lhes serviriam como novos mestres37. As
anedotas e acusações à conquista espanhola não param por aí. Talvez a mais
espirituosa seja a do nativo cubano Hatuey, que teria declarado a um padre
espanhol que lhe ministrava as últimas palavras e desejos, exigindo seu
arrependimento e conversão, que não se importava em ficar de fora do paraíso
cristão, uma vez que se veria livre dos espanhois que o habitavam 38. Não é sem
razões que Raynal utiliza-se do termo "les devasteurs du nouveau-monde" para se
referir aos espanhois. De forma um tanto quanto dramática, o abade volta-se a Deus
após enumerar as atrocidades espanholas e se pergunta: “O Dieu! Pourquoi as-tu
creé l'homme?”39.
Paine talvez tenha tido ressalvas ao trabalho de Raynal pela comparação
entre conquistadores europeus que claramente coloca o inglês como um dos povos
mais “brandos” em suas ações de conquista (negativas por natureza). Ou quem
sabe não teria sido pelos comentários elogiosos de seu rival Edmund Burke, que
elogiara o abade como “um dos melhores de sua geração”40 ao ler a história que
Raynal escrevera sobre o parlamento britânico? Mas mesmo os melhores
colonizadores ainda eram ruins na leitura do francês. Mesmo os holandeses, que em

36
RAYNAL, Guillaume. Histoire philosophique et politique des établissmens et du commerce des Européens dans
les deux Indes. Genève: Jean Leonard Pellet, 1780, Vol. I, p. 205.
37
Idem. Ibidem. p. 19.
38
Idem. Ibidem. Vol. III. p. 249.
39
Idem. Ibidem. p. 124.
40
Referência que encontramos em uma obra de terceiros. Como não lemos a citação original, fazemos a
referência ao livro do qual retiramos a informação: Muthu, Sankar. Enlightenment Against Empire. Princeton,
N.J.: Princeton University Press, 2003. p. 72.

60
determinada passagem41 são destacados como uma espécie de punição da
Providência aos maldosos portugueses, únicos que se comparavam aos cruéis
espanhois. O sistema colonial britânico era, ele também, pautado em injustiças e
atrocidades. Para exemplificar, Raynal descreve a famosa onda de fome que
assolou Bengala, na Índia, em 1770. Rios entupidos de cadáveres, estradas
bloqueadas por mortos e moribundos, moscas, animais alimentando-se de restos.
Enquanto três milhões de nativos pereciam, os ingleses permaneceram
enriquecendo e engordando suas carteiras com seus negócios privados nas cidades
muradas que construíram. Raynal, em recurso narrativo que poucos estudiosos de
sua obra preocuparam-se em apontar para o grande público, coloca-se no lugar de
um hindu, romantizando uma conversa fictícia entre ele e seu mestre britânico. A
poderosa fala, que iremos transcrever para que o leitor compartilhe da leitura, é mais
uma acusação de efeito ao colonialismo europeu, mais especificamente ao britânico.
Talvez Paine tenha mantido um pouco do respeito que guardava peloo abade por
passagens como esta:
Ce n'est donc que pour nous opprimer que vous êtes féconds en moyens?
Les trésors immenses qu'une longue suite de siècles avoient accumulés
dans cette contrée, vous en avez fait votre proie. Vous les avez transportés
dans votre patrie; Vous avez augmenté les tributs, vous les faites percevoir
par vos agens; Vous êtes les maîtres de notre commerce du dehors. Vos
nombreux vaisseaux chargés des productions de notre industrie et de notre
sol, vont enrichir vos comptoirs et vos colonies. Toutes ces choses, vous les
ordonnez,.vous les exécutez pour votre seule avantage. Mais qu'avez-vous
fait pour notre conservation? Quelles mesures avez-vous prises, pour
éloigner de nous le fléau qui nous menacoit. Privés de tout autorité,
dépouilles de nos biens, accablés sous un pouvoir terrible, nous n'avons pu
que lever les mains vers vous, pour implorer votre assistance. Vous avez
entendu nos gémissemens, vous avez vu la famine s'avancer à grands pas;
alors, vous vous êtes éveillés. Vous avez moissoné'le peu de subsistance
échappées à la stérilité; vous en avez rempli vos magasins; vous les avez
distribuées a vos soldats. Et nous, tristes jouets de votre cupidité,
malheureux tour à tour, et parvotre tyrannie, et par votre indifférence; vous
nous traitez comme des esclaves, tant que vous nous supposez des
richesses; et quand nous n'avons plus que des besoins, vous ne nous
regardez pas même comme des hommes. De quoi nous sert-il que l
'administration des forces publiques soit toute entière dans vos mains? Où
sont ces loix et ces moeurs dont vous êtes si fiers? Quel est donc ce
gouvernement dont vous vous vantez la sagesse?.... Ah! Pourquoi le ciel a-
t-il permis que vous ayez brisé la chaîne qui nous attachoit à nos anciens
souverains? Moins avides et plus humains que vous, ils auroient
appelé'l'abondance de toutes les parties de l'Asie; ils auroient facilité les
communications; ils auroient prodigué leur trésor; ils auroient cru s'enrichir
en conservant leurs sujets.42

41
"Le terns arrive enfin, on les Portugais expieront leurs perfidies, leurs brigandages et leurs cruautés.” In:
RAYNAL, Guillaume. Idem. Ibidem. p. 161.
42
Idem. Ibidem. p. 388.

61
Esta longa e impactante passagem serve de acusação grave aos abusos
cometidos por uma mente colonizadora, mesmo que britânica, povo que Raynal
tanto admirava pelo pensar livre e pela tolerância demonstrada. Tais momentos de
arroubo emocional não são raros na escrita do abade, o que nos fez questionar se
seriam mesmo de sua autoria ou de alguns dos outros autores que lhe
acompanharam na empreitada, pois a emoção demonstrada não condiz com a frieza
de alguns de seus leitores e biógrafos, seja no século XIX ou XX. Percebe-se aqui
um pouco do argumento de Hans Wolpe, estudado em capítulo anterior, quando o
chama, junto de sua obra principal, como “máquinas de guerra”. Em outra
passagem, que não citaremos diretamente, Raynal coloca-se novamente no lugar de
um nativo explorado, agora um dos já extintos “Hottentots” (Khoikhoi), incentivando
seu povo a mudar o curso da história e enfrentar os monstros holandeses,
impedindo-os de conquistar a região sul-africana que lhes servia de moradia43. Tais
passagens não são apenas de óbvia riqueza literária, mas também são elementos
de acirramento e evocação política notáveis. Apontando os conquistadores como
monstros, bárbaros, Raynal reforça um ideal revolucionário de luta, resistência,
superação. É possível que algumas dessas passagens tenham sido escritas ou
sugeridas por Diderot, mas tal fato não remove a grandeza da obra. Pelo contrário, a
intensifica, uma vez que fruto de esforço coletivo capitaneado pela assinatura do
abade. Mesmo que, de acordo com Pierre-Victor Malouet, ex-governador da Guiana,
o abade tenha ficado extremamente irritado com algumas das inserções trazidas por
Diderot a sua obra, considerando-as uma traição a sua confiança, por modificar
completamente o livro ao invés de apenas temperá-lo, corrigí-lo, como havia pedido
Raynal ao amigo e aliado44. Tais modificações, no entanto, estariam relacionadas ao
problema da escravidão especificamente, e não à crítica ao colonialismo.
Quais seriam as razões de tanta crueldade partindo de um povo tão
admirado por Raynal? O abade se pergunta exatamente isto, no afã de compreender
melhor o processo criticado. Talvez os motivos estariam conectados ao fato de que
homens criados em sociedades civilizadas seriam constrangidos desde cedo a
domesticar suas paixões e apetites, e a aventura de se lançar em terra nova, onde
tais constrangimentos e controle não estivessem presentes, fizessem com que os

43
Idem. ibidem. p. 206.
44
MALOUET, Pierre-Victor. Memoires de Malouet et publics par sou petit-fils le baron Malouet , 2 vols, Paris:
Plon, 1868. p. 180.

62
mesmos se deixassem levar pelos instintos mais selvagens e criminosos, tornando-
se mais bárbaros e sanguinários do que qualquer selvagem poderia ser. Ou talvez o
problema fosse de amostragem, afinal os conquistadores poderiam não ser
representativos da totalidade ou mesmo da maioria dos britânicos que ficaram em
sua terra natal, caracterizando-se aqueles por serem um grupo mais dado à
aventura por ter menos a perder. Questões retóricas. Vale mais, na opinião do
abade, identificar o princípio motriz que causou tanta estupidez. O princípio sob o
qual toda a colonização foi baseada, "cet atroce motif", a ideia de ganho material a
qualquer custo, da forma mais rápida possível, o mais fácil quanto der. Nenhum
conquistador ou explorador olhou as novas terras como uma colônia com potencial
de desenvolvimento voltado ao bem-estar das populações que nela viviam e
viveriam. Todos olharam para a terra como um predador o faz em relação a sua
presa, desejando devorá-la imediatamente para sorver o sabor quente de suas
entranhas. Ouro e prata foram escavados e desenterrados com uma paixão insana.
Mesmo após seus esgotamentos, comércio, agricultura, indústrias, enfim, tudo foi
desenvolvido com um único propósito: propiciar enriquecimento rápido e volumoso
ao conquistador, mesmo que tal objetivo exaurisse a terra e vitimasse seus
habitantes originais. Raynal faz questão de evidenciar que a história não precisava
seguir esses rumos na colonização dos povos recém-descobertos. Tribos ou nações
mais organizadas, como astecas e incas, poderiam ter sido subjugados
politicamente, sem a necessidade da violência e da dominação demonstradas. A
violência foi resultado do fanatismo, da ganância. A história não caminhou por senda
inevitável, mas foi sim fruto de escolhas, de uma crueldade que poderia ter sido
prevenida. Se poderia ter sido diferente, o que impediria o colono de fazer de outro
modo a partir de agora? Percebemos aqui, uma vez mais, o potencial revolucionário
da “máquina de guerra” de Raynal, bem como um pouco das razões de Paine ter se
preocupado em escrever ao abade uma carta aberta, acusando-o de plágio ao
mesmo tempo em que reconhecia a importância de seus escritos.

63
CAPÍTULO 4

As ideias filosóficas de Spinoza eram tais que não deixavam espaço para a
religião a não ser em plano claramente diferente do da filosofia (ou seja, da
verdade), que se desdobra exclusivamente aos niveis do segundo e do
terceiro gêneros de conhecimento (ou seja, ao nivel de razão e de intelecto).
Ao contrário, segundo Spinoza, a religião permanece no nivel do primeiro
gênero de conhecimento, em que predomina a imaginação. Os profetas,
autores dos textos bíblicos, não se destacam pelo vigor do intelecto, mas
pelo poder da fantasia e da imaginação, ao passo que o conteúdo de seus
escritos não é feito de conceitos racionais, mas de imagens vívidas. Além
disso, a religião visa a obter a obediência, ao passo que a filosofia (e
somente ela) visa a verdade. Tanto isso é verdade que os regimes tirânicos
valem-se abundantemente da religião para atingir seus objetivos 1.

O excerto acima destacado não se trata de ponto final ou consenso admitido


na leitura da obra do filósofo Baruch Spinoza. Retirado de uma das grandes
coleções sintéticas acerca da história da filosofia produzidas no século XX, o trecho
aponta apenas para uma das leituras possíveis acerca da visão spinoziana sobre a
religião e seu papel, dialogando com a questão da busca da verdade, supostamente
restrita ao âmbito filosófico. Uma breve busca nas obras do eminente autor, no
entanto, revela a validade de tal posicionamento interpretativo, especialmente
quando nos deparamos com afirmações como a de que o Deus da religião (não o
verdadeiro, que para Spinoza representa a substância do qual tudo procede, tendo
sua existência reconhecida enquanto forçosa verdade filosófica) representaria
apenas uma relíquia das antigas amarras do homem2. Qual seria, porém, nossa
intenção ao citar elementos do pensamento do supracitado autor em uma
monografia dedicada a estudar o abade Raynal e os impactos de sua obra? A
resposta para tal pergunta é a chave-mestra com a qual construímos este último
capítulo. Jonathan I. Israel, professor emérito da Universidade de Princeton,
inaugurou fustigante polêmica nos princípios desta centúria, quando da publicação
de seu Radical Enlightenment3, no qual defendeu a tese da existência de dois
iluminismos: um de orientação mais “moderada”, limitando o escopo da filosofia em

1
REALE, Giovani & ANTISERI, Dario. História da Filosofia v. 4 – De Spinoza a Kant. São Paulo: Paulus. 2005. p.
28-29.
2
Traduzido de “the relics of man’s ancient bondage”. In: SPINOZA, Baruch. Theological-Political Treatise. trad.
Samuel Shirley, 2ª ed. Indianapolis:Hackett Publishing Company, 2001, p. 3.
3
ISRAEL, Jonathan. Radical Enlightenment: Philosophy and the Making of Modernity 1650-1750. Oxford: Oxford
University Press, 2001.

64
uma tentativa de conjuminar razão à fé e à tradição, e uma corrente mais “radical”, à
qual ele dedica o livro. Inspirados no pensamento de Spinoza, tais philosophes
construiriam suas linhas argumentativas e críticas partindo do pressuposto do
primado da razão acima de qualquer outro elemento de análise do mundo na vida
humana. É claro que a construção de Israel tem problemas óbvios, com os quais
pretendemos dialogar ao longo do capítulo, porém faz-se mister reconhecer não
apenas o impacto de seu trabalho com a riqueza de algumas reflexões por ele
propostas. Em especial, uma subversão das leituras mais comuns do período em
questão, elevando à categoria de protagonistas os indivíduos que se reuniam no
círculo letrado organizado na residência do barão d’Holbach, dentre os quais Diderot
e nosso personagem central, Raynal. Mesmo as eventuais críticas do abade à
Revolução Francesa, relativizadas e/ou ignoradas por alguns de seus biógrafos,
poderiam ser lidas agora sob outro prisma, uma vez que Israel defende que Marat e
Robespierre teriam, de fato, repudiado os verdadeiros valores do iluminismo radical,
propondo sob a égide do jacobinismo nascente uma leitura “puritana” de inspiração
em Rousseau, muito mais pautada em um culto ao autoritarismo e ao anti-
intelectualismo do que aos verdadeiros propósitos de livre-pensar e defesa dos
direitos humanos propostos pela corrente radical4.
Para não atropelar, precisamos seguir o trabalho com cautela. Neste
capítulo, apresentamos as principais ideias defendidas por Jonathan Israel para
inserir Raynal em seu lugar social5 de produção intelectual. No afã de introduzir uma
breve perspectiva crítica, buscamos entender também um pouco mais do
pensamento de Spinoza, bem como investigar com afinco o que foram os círculos
letrados iluministas, em especial o organizado pelo barão d’Holbach. Desta forma,
acreditamos que as conclusões suscitadas pelo capítulo auxiliarão no propósito
inicial deste trabalho, qual seja o de investigar um pouco mais sobre as obras do
abade Raynal e seus impactos na época moderna, para além das contribuições
políticas já abordadas alhures. Se os dois capítulos anteriores ajudam a demonstrar
a importância do trabalho do abade em terras americanas, seja na América

4
Idem. Revolutionary ideas: An intellectual history of the French Revolution from The Rights of Man to
Robespierre. Princeton, New Jersey: Princeton University Press. 2014, p. 521.
5
Conceito popularizado por Michel de Certeau no capítulo “A operação Historiográfica” em seu já clássico A
escrita da História (Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.). No entanto, outras utilizações interessantes
do conceito podem ser observadas no debate linguístico entre Michel Pêcheux (1969 e 1982) e François
Flahault (1978).

65
portuguesa ou na inglesa, intentaremos refletir um pouco agora sobre as riquezas
filosóficas dos escritos de Raynal (e seus co-autores, como já brevemente discutido
no capítulo 3) em suas elaborações e criações a partir de seus espaços de
sociabilidade construídos na Europa, especialmente na França, o berço não do
nascedouro mas da explosão intelectual do movimento ilustrado.

Os iluminismos de Jonathan Israel

Não vamos apontar uma definição simples do que seria “Iluminismo”


enquanto processo histórico. Tal tarefa exigiria um levantamento historiográfico
conciso que poderia por si só produzir uma tese com número exagerado de páginas.
É seguro, no entanto, recorrer a alguns clássicos para traçar um diálogo inicial e
perceber os diferenciais trazidos pela obra de Jonathan Israel à produção intelectual
da historiografia em questão. Immanuel Kant é citação obrigatória quando a
problemática da definição aparece, e sua riqueza de pensamentos torna tal trabalho
de surpreendente satisfação. Aponta o alemão que:

O iluminismo representa a saída dos seres humanos de uma tutelagem que


estes mesmos se impuseram a si. Tutelados são aqueles que se encontram
incapazes de fazer uso da própria razão independentemente da direção de
outrem. É-se culpado da própria tutelagem quando esta resulta não de uma
deficiência do entendimento mas da falta de resolução e coragem para se
fazer uso do entendimento independentemente da direção de
outrem. Sapere aude! Tem coragem para fazer uso da tua própria razão! -
esse é o lema do iluminismo6.

As clássicas palavras de Kant, que nortearam e ainda norteiam diversos


estudos da área, bem como uma definição basilar utilizada em sala de aula por um
sem-número de docentes, servem de base para o dicionário online mais famoso em
língua inglesa, o Merriam-Webster, que define o movimento como ““Enlightenment: A
philosophic movement of the 18th century marked by a rejection of traditional, social,
religious, and political ideas and an emphasis on rationalism”7. A primeira
discordância levantada por Israel seria acerca da linha do tempo basilar com a qual
tais definições de baseiam. De acordo com o autor, o iluminismo enquanto
movimento não tem suas raízes no mesmo século no qual irromperram as barreiras

6
“Resposta à Pergunta: ‘O Que é Esclarecimento?’” In: KANT, I. Textos seletos. CARNEIRO LEÃO, E. (Org.).
Petrópolis: Vozes, 1974. [Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? 1784].
7
Merriam-Webster’s Online Dictionary. Disponível em:
http://www.merriamwebster.com/dictionary/enlightenment. Acesso em: 27 de nov. de 2017.

66
das limitações políticas e sociais, ou seja, o século XVIII. Argumenta o autor que
suas raízes encontram-se no século anterior, como demonstra pelo uso dos ideais
de Spinoza e seus supostos impactos nos críticos da corrente radical ilustrada. O
uso do termo “radical”, como já enunciamos, aponta a outra discordância de Israel
que faz com que sua contribuição seja extremamente original. Sai de cena a leitura
clássica de um Peter Gay8, trabalho valoroso e premiado em meados dos anos
1960, para uma releitura polêmica segundo a qual, em verdade, sempre houve dois
iluminismos históricos. Talvez o grande mérito da obra de Gay tenha sido a
consagração de uma leitura da Ilustração a partir de uma concepção anti-religiosa,
leitura que rendeu frutos e permanece como uma das chaves explicativas mais
comuns sobre o período. Gay inspirou-se bastante em outro historiador clássico,
Robin George Collingwood, que muito embora não tenha escrito nenhum livro
específico sobre o iluminismo, já havia prefaciado a linha argumentativa de Gay em
seu The idea of history9, quando atribui ao período a característica de secularização
de todos os elementos da vida cotidiana e do pensamento humano, revoltando-se
não apenas contra a religião institucionalizada mas à ideia de religião em si. Ora,
como conceber então a participação de um abade Raynal sob tal ótica? Ou mesmo
de outros abades que também contribuíram intelectualmente para o novo pensar?
Descartes, Leibniz, Mersenne, Malebranche, Locke, Newton... Todos pensadores
que comumente são alinhados à mudança de perspectiva que inaugurou e inspirou o
futuro movimento iluminista francês, e todos de uma forma ou outra cristãos. A
resposta de Israel a tal embate parece solucionar a contradição incômoda: a
definição do anti-cristianismo e da secularização total somente poderiam ser
empregados para os membros da ala radical do pensamento iluminista, mesmo que
possamos reconhecer que autores como Descartes (que na concepção de Israel
também é iluminista, aplicando sua definição mais alargada do período do ponto de
vista temporal) tenham contribuído para uma crescente secularização das posturas e
pensamentos, mesmo que sem a intenção aberta de tal empreitada.
Talvez possamos mergulhar um pouco mais nos argumentos de Israel para
contrapor outros diálogos possíveis. Aponta o autor que o iluminismo, para além de
sua natureza sempre dual, interna, só pode ser lido em toda a sua riqueza caso

8
The Enlightenment: An interpretation: The rise of modern paganism, publicada originalmente em 1966, porém
consultada em sua versão de 1996, publicada pela Peter Smith Pub Inc.
9
COLLINGWOOD, R. G. The idea of history. Oxford: Oxford University Press, 1993 [1946], p. 76.

67
considerarmos o fato de que tal processo histórico deu-se numa espécie de “guerra
tripartite”10. Uma batalha triangular de ideias, na qual enfrentavam-se não apenas as
duas correntes rivais de iluminismo, mas também, contra ambas, um contra-
iluminismo, incomodado com as transformações e desejoso de uma restauração
tradicional. Curioso que o autor demonstra que esse movimento reacionário
contrário às transformações do pensar que explodiam durante o século XVIII acabou
ajudando mais a vertente radical, uma vez que preocupava-se tanto em direcionar
suas críticas aos filósofos mais “famosos” (em geral partícipes da ala moderada) que
abria espaços para as mentes mais profundamente modificadas pela nova era da
razão, que não estavam dispostos a voltar atrás e restaurar valores tradicionais, a
abraçar a corrente mais radical, menos exposta aos ataques e demonstração de
suas contradições internas do que a outra11.
Voltando à citação de Kant, podemos notar no entanto que o alemão aborda
ainda alguns conceitos mais ricos do que as definições com as quais nos deparamos
na leitura de Jonathan Israel. Kant parece falar de uma questão mais profunda que
secularização ou religião institucionalizada. É claro que a conexão entre sua fala e
tais elementos se dá com certa facilidade, mas cabe ir um pouco além. O
conhecimento, para Kant, sai do campo da revelação e do espírito iluminado, para a
construção, digamos assim, deste tal espírito a partir de um pensar pleno, filosófico,
político, social. Não soa mais como um conhecimento revelado, é o que intentamos
dizer, mas sim construído, independentemente elaborado. Fazemos esta
intervenção pois é necessário entender a distinção. O uso do elemento da luz, ou da
iluminação, associados ao conhecimento, não é uma novidade. Paulo, por exemplo,
o grande divulgador do cristianismo, utiliza tal analogia exatamente da forma oposta,
aquela apontada como herdeira da revelação. Em sua epístola aos efésios, o
pregador anuncia que:

Para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê em
seu conhecimento o espírito de sabedoria e de revelação; Tendo iluminados
os olhos do vosso entendimento, para que saibais qual seja a esperança da
sua vocação, e quais as riquezas da glória da sua herança nos santos; 12

10
ISRAEL, Jonathan. Enlightenment contested. Philosophy, modernity, and the emancipation of man 1670-1752.
Oxford: Oxford University Press. 2006. p. 10-11.
11
Idem. Radical Enlightenment... p. 6-12.
12
Efésios 1:17,18.

68
Conhecimento associado à iluminação, porém resultado de uma inspiração,
algo dado por Deus, não construído exclusivamente pelo homem. Poderíamos fazer
outras centenas de citações para comprovar o ponto, mas não dispomos do tempo
nem da crueldade necessários para tal. A definição de Kant em nada restringe o
iluminismo a seu momento histórico, percebam. Seja o século XVIII ou retornando
um pouco mais, para o XVII. Iluminismo é uma atitude, uma filosofia. Sapere aude!
Sem tutelagem, entendimento independente... Esta oposição deflagrada expõe com
clareza algumas das inspirações do movimento radical iluminista. Se lermos A crítica
da Razão Pura, um dos três grandes livros da filosofia criticista kantiana,
perceberemos como o autor acredita que, literalmente, na era do criticismo, tudo à
crítica deve se submeter. A religião, pelo argumento da santidade, poderia propor-se
isenta de tal inquérito, prossegue Kant, porém só poderá livrar-se das suspeitas que
sobre o conhecimento por ela produzido recaem, caso submeta-se também ao
exame aberto e livre de seus prepostos e dogmas. Iluminismo, como podemos
perceber, tem significados múltiplos em um período no qual correntes rivais valem-
se dos mesmos termos, com significados distintos. Um dos principais especialistas
em Leibniz, Mogens Laerke, auxilia-nos ao dedicar-se exatamente a compreender o
significado do iluminismo evocado por Kant, um radical na leitura de Israel,
concordando que seu uso era também um elemento de ironia, uma vez que o
pensamento religioso classificaria de iluminado o oposto daquilo que os radicais
concebiam como tal, e vice-versa13. Desta forma, a concepção de uma postura
antirreligiosa como elemento fulcral do pensar é característica indispensável do
iluminismo radical. A diferença básica é aqui reforçada. Aqueles pensadores que
não concebiam uma ruptura total com os elementos religiosos seriam então
categorizados em outro grupo, o grupo dos moderados, que até por saberem
conjugar razão e elementos pertencentes à religião, tornaram-se mais reconhecidos
e lidos que os outros, mais requisitados em tempos de excitação dos ânimos. Claro
que discordamos de alguns aspectos de tal análise, especialmente a diminuição da
grandeza dos escritos de diversos destes autores que aqui foram reduzidos em sua
glória apenas pela suposta capacidade de diálogo com elementos religiosos.
Rousseau é um fenômeno também pela sua sensibilidade social e por inaugurar

13
LAERKE, Mogens. “Leibniz’s Enlightenment”. In: H. Rudolph & H. Poser (Orgs.), Leibniz und die Ökumene,
Studia Leibnitiana Sonderheft. Stuttgart: Franz Steiner Verlag. 2013.

69
uma nova relação entre escritor e leitor14. Voltaire é de uma intelectualidade
brilhante, e não é sem razão que Diderot, um dos radicais, assume-se fã do velho
filósofo ao concluir que doaria toda a sua obra pela chance de ter escrito o Tratado
sobre a tolerância15. Os argumentos, no entanto, aguçam a curiosidade intelectual
por questionarem de forma tão erudita conhecimentos que nos pareciam muito bem
demarcados.
Compreendendo as diferenças propostas por Israel, cabe-nos agora
entender o que de fato ele especificamente considera como iluminismo radical. O
livro homônimo, de monumentais 800 páginas, é muito bem sumarizado em seus
prefácio e introdução, que já evidenciam intenções e lançam as principais hipóteses.
Porém, talvez o melhor trabalho de sumarização seja feito pelo próprio autor nas
páginas finais do subsequente Enlightenment contested, no qual Israel considera as
oito perspectivas principais do que seria o iluminismo radical. Antes de mais nada, a
adoção da razão matemático-filosófica como o único critério do que é verdadeiro ou
falso; a rejeição de qualquer agência sobrenatural, mágica, ação de espíritos
desencarnados ou providência divina; a ideia de igualdade de toda a espécie
humana, independente de raça ou sexo; um “universalismo” secular no campo da
ética, ancorado nos princípios de igualdade, justiça e caridade; tolerância e liberdade
de pensamento baseados em pensamento crítico independente; liberdade pessoal
na conduta de vida ou sexual entre adultos em consentimento, salvaguardando a
dignidade e liberdade dos solteiros e homossexuais; liberdade de expressão, de
crítica política e de imprensa, na esfera pública; e um republicanismo democrático
(outra polêmica interessante) como a forma mais legítima de política 16. Todos os
pontos são importantes, e poderíamos discorrer bastante sobre cada um deles. Mas
não é o propósito deste trabalho. Para nosso objetivo, qual seja o de identificar as
ideias principais e traçar o diálogo com Spinoza, buscaremos o segundo ponto,
referente à negação de agência sobrenatural, espíritos e providência divina. Aqui,
Israel demonstra com firmeza as razões de sua escolha para o grande inspirador da
corrente radical. Spinoza teria sido o arquiteto do movimento, exatamente por seu
trabalho ter baseado-se, em diversos aspectos, na crítica e rejeição das revelações,

14
Ver Capítulo 1.
15
Ver DIDEROT, Denis. O Sobrinho de Rameau. Coleção “Grandes Obras do Pensamento Universal”, n. 40.
Trad.: Antonio Geral da Silva. São Paulo: Escala, 2008.
16
ISRAEL, Jonathan. Radical Enlightenment… p. 866.

70
milagres, profecias, autoridade eclesiástica e mesmo nas crenças de punição e
recompensa do pós-vida17.

Spinoza: o anticristo inspirador

O título da seção, que aparenta tratar-se de mera informalidade divertida


com referência óbvia à obra homônima do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, trata-
se na verdade de alusão fiel a apenas um dos termos com os quais Baruch Spinoza
era agraciado pelos seus opositores filosóficos e críticos cristãos e/ou judeus
conservadores18. A obra do filósofo é vasta e impactante. Nosso foco aqui, no
entanto, será estudar um pouco mais suas percepções acerca do embate entre a
filosofia, a razão, e a fé, buscando investigar a validade dos argumentos centrais de
Israel para fundamentar sua tese da dupla corrente do iluminismo. E, de fato, não
precisamos de um mergulho tão intenso na obra do filósofo para divisar algumas
reflexões polêmicas sobre a religião. No prefácio de seu Tratado Teológico-Político
ou mesmo no apêndice da parte I da sua Ética, Spinoza não apenas evidencia sua
filosofia da religião em oposição ao cristianismo e ao judaísmo, como chega a
formular uma teoria geral sobre as origens e o desenvolvimento da religião,
apontando que o medo seria o fator primordial que levaria o homem a abraçar
superstições19.
Este posicionamento crítico em relação aos elementos religiosos não foi
inaugurado por Spinoza na modernidade, é forçoso admitir. Muito antes dele, Lutero
já havia questionado com fervor as bases doutrinárias com as quais a Igreja
conduzia sua trajetória, mesmo que para alguns seu questionamento não intentasse
a ruprtura subsequente. Mas mesmo no campo da filosofia dita racionalista, da qual

17
As referências que nos utilizamos para o estudo de Spinoza, além de leituras pontuais de seu Tratado
Teológico-Político, foram Spinoza’s Theological-Political Treatise – A Critical Guide (Yitzhak Y. Melamed &
Michael A. Rosenthal, Cambridge University Press, 2010), Introdução à filosofia de Spinoza (Amauri Ferreira,
2009), The Cambridge Companion to Spinoza (Don Garrett, Cambridge University Press, 1996) e The Cambridge
Companion to ]spinoza’s Ethics (Olli Koinstinen, Cambridge University Press, 2010).
18
YOVEL, Yirmiyahu. Spinoza and other heretics, Volume 1 - The marrano of Reason. Princeton: Princeton
University Press, 1989.
19
Numerous examples of [his theory that fear and hope are the springs of all religion] can be cited, illustrating
quite clearly the fact that only while fear persists do men fall prey to superstition, that all the objects of
spurious reverence have been no more than phantoms, the delusions springing from despondency and
timidity…. This being the origin of superstition… like all other instances of hallucination and frenzy, is bound to
assume very varied and unstable forms, and that, finally, it is sustained by only by hope, hatred, anger, and
deceit. For it arises not from reason but from emotion…” Ver In: SPINOZA, Baruch. Theological-Political
Treatise. trad. Samuel Shirley, 2ª ed. Indianapolis:Hackett Publishing Company, 2001, p. 1-2.

71
Descartes seja talvez o grande precursor. Israel20 reconhece que os cartesianos
foram vitais na sustentação de um novo criticismo científica e filosoficamente
orientado, que dará a tônica de muitos trabalhos no século XVII. Não é o professor
de Princeton a única fonte que corrobora tal afirmação, no entanto. Richard Popkin,
um dos grandes nomes da história da filosofia no século passado, fundamenta as
bases sobre as quais Israel desenvolve o argumento em tela, quando aponta para o
século XVII a consagração de dois grandes desenvolvimentos intelectuais: o
lançamento daquilo que ele chama de “nova filosofia” (na qual Descartes e seu
racionalismo serão o carro-chefe), e o desvelar de consequências teológicas de
abordagens cada vez mais críticas e históricas à Bíblia 21. É importante frisar o papel
que Popkin atribui ao texto bíblico, pois o autor considera que o mesmo é central na
construção de grande parte dos pensamentos de diversos dos filósofos que
despontam no referido século. A metodologia cartesiana e o princípio da dúvida
metodológica foram alguns dos principais fatores, se não o principal, como defende
Popkin, no desenvolvimento daquilo que o autor alcunha de “irreligião moderna”22.
Identifica Popkin que tais métodos propuseram uma reavaliação racional do
conhecimento religioso, abrindo os caminhos para um eventual mundo “despojado
da divindade bíblica”23. Realizando trabalho de invejável erudição, prossegue o autor
em valioso mapeamento dos principais pensadores que teriam sido protagonistas
deste movimento crítico, apresentando-nos figuras como La Peyrere, John Toland,
Pierre Jurieu, Pierre Bayle e outros, que compuseram o arcabouço filosófico do qual
Spinoza se influenciará profundamente. Infelizmente não podemos comprovar a
afirmação do autor de que Spinoza teria inclusive escrito uma defesa a La Peyrere
pouco antes da excomunhão do teólogo francês, uma vez que tal documento só
pode ter sua existência inferida por relatos secundários, considerando o triste
sumiço de seus originais. Não precisaríamos no entanto enumerar todas as
influências e buscar suas comprovações – trabalho na certa interessantíssimo,
especialmente por levarmos em conta que o trabalho de Popkin foi publicado há
considerável tempo – pois a própria bibliografia de Spinoza evidencia suas

20
Israel. Jonathan. Enlightenment contested… p. 420-421.
21
POPKIN, Richard. The history of Scepticism from Erasmus to Spinoza. California: University of California Press,
1979. Ver também Idem. “Cartesianism and Biblical criticism”. In: Problems of Cartesianism, LENNON, Thomas
M. & NICHOLAS, John M. & DAVIS, John W. (Orgs.). Montreal: McGill-Queen’s University Press, 1982. p. 61-82.
22
Idem. Ibidem. p. 63.
23
Idem. Ibidem. p. 64.

72
influências basilares. Não à toa, o filósofo publica em 1666 uma obra inteira
dedicada ao estudo dos princípios da filosofia cartesiana24. O encontro dos tais
desenvolvimentos intelectuais típicos do século XVII, apontados por Popkin,
materializam-se assim no trabalho de Spinoza. A utilização crítica da metodologia
cartesiana em uma aplicação destinada à compreensão do que seria Deus, o papel
do homem no universo, a religião, o texto dito sagrado. É importante frisar que nem
Descartes nem muitos de seus seguidores eram “ateístas”25, ou mesmo anticristãos.
Pelo contrário. Acreditavam que a utilização da metodologia racionalista seria um
meio de legitimar ainda mais os conhecimentos adquiridos, elevando o cristianismo
a patamar de defesa bem mais sólida de seus princípios, caso sobrevivessem à
prova metodológica, do que a Escolástica de Aquino jamais conseguira com sua
ressignificação de Aristóteles. Antoine Arnauld é exemplo evidente de tal tendência,
unindo suas bases cartesianas ao trabalho de teólogo jansenista 26. Desta forma,
Spinoza tem significância revolucionária, tanto para Popkin quanto para Israel, uma
vez que impulsiona a análise de fragmentos bíblicos de forma crítica, quase
prenunciando as bases do trabalho com documentos que seriam a pedra angular da
metodologia histórica a partir do século XX e das contribuições da Escola dos
Annales.
Tudo isto, é necessário recordar, em um século no qual ainda observamos
pessoas serem mortas na fogueira caso não conseguissem propor defesa
convincente contra acusações de natureza teológica. No mesmo ano em que o
Tratado foi publicado (1670), um homem teria sido queimado por defender uma
teologia “heterodoxa”27. Um século onde bruxas, como as de Salem (1692), ainda
representam um medo do cotidiano, vitimando mulheres em julgamentos e
execuções carregados de misticismo e daquilo que Spinoza identificaria como
superstição. Conceber o questionamento do texto bíblico, tido por muitos como
sagrado até os dias atuais, em pleno século XVII, quando a atividade religiosa
pautava comportamentos e diversas leituras hegemônicas de mundo, é em si um
fato de potencial revolucionário flagrante. Uma cultura que se concebeu cristã desde

24
SPINOZA, Baruch. Princípios da filosofia cartesiana e pensamentos metafísicos. Trad. Homero Santiago e Luís
César Oliva. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
25
A obra clássica do mestre Lucien Febvre, O problema da incredulidade no século XVI, pode ser boa e segura
fonte para as discussões conceituais que se desvelariam do uso de tal termo.
26
Arnauld que teria inclusive dado a Spinoza a alcunha de “homem mais perigoso do século”. Ver: NADLER,
Steven. Spinoza: A life. Cambridge: Cambridge University Press, p. 336-337.
27
YOVEL, Yirmiyahu. Idem.

73
o alvorecer do período medieval, e que desde o século anterior sofria rachaduras
incômodas em seu núcleo, não poderia mergulhar em outro estado a não ser o de
confusão e desespero em face de desafios e questionamentos tão intensos. O
trabalho seminal de Paul Hazard28 é fonte obrigatória para a compreensão alargada
do processo de mudanças e abalos pelo qual o Velho Mundo enfrenta com
pouquíssima parcimônia, evidentemente. A morte de Deus, como anunciaria dois
séculos depois a voz de Zaratustra, sob a pena de Nietzsche? O que nos importa é
compreender que, na leitura de Israel, o porta-voz de tal abalo, o mais excepcional
interlocutor de tais mudanças, teria sido Baruch Spinoza. Algumas das críticas mais
severas29 direcionadas ao trabalho do estadunidense, inclusive, são provenientes da
aparente redução proposta por ele, que para alguns chega a se assemelhar a uma
idolatria absurda. Como concordar com uma leitura que elege um filósofo apenas
como uma espécie de demiurgo de toda a modernidade? O grande libelo do
radicalismo? E sim, muito embora diversas das críticas tenham sido
desconsideradas com certa razão por Israel, que nelas viu pouco de conteúdo a ser
acrescentado ao corpo de seu trabalho, outras tem correspondência nos prepostos
trazidos pelo autor. Não é justo dizer que Israel enxerga apenas Spinoza dentre os
influenciadores do iluminismo em sua vertente radical, pois o autor dedica parte de
suas reflexões a demonstração de Thomas Hobbes como alguém que foi muito além
de “mera” reflexão política30. Faz-se mister admitir, no entanto, que Israel
desenvolve pouco o impacto de pensadores que não sejam Spinoza, limitando-se
em geral a fazer breves citações, o que consideramos um crime, especialmente pela
extensão de seus livros, nunca menos extensos do que 600-800 páginas. Há uma
razão para tal “obsessão”, que nada tem que ver com uma espécie de adoração
mística ao Spinoza pai da modernidade. Concordamos com a crítica: é de

28
HAZARD, Paul. A crise da consciência europeia: 1680-1715. Lisboa: Edições Cosmos, 1948.
29
Alguns dos trabalhos em que nos baseamos para levantar os argumentos de crítica: RÉE, Jonathan. “The
Brothers Koerbagh,” London Review of Books, 14 Jan. 2002, p. 21-24; JACOB, Margaret, “Review of radical
Enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750,” Journal of Modern History 75 (2003): p.
387-389; ; SHANK, J. B., Review of radical Enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750,
H-France Review Vol. 2 (February, 2002), No. 26. Disponível em: http://www.h-
france.net/vol2reviews/vol2no26shank.pdf. Acesso: 27 de nov. 2017; e LA VOLPA, Anthony, “Review of radical
Enlightenment: philosophy and the making of modernity, 1650-1750,” Journal of Modern History 75 (2003): p.
389-393.
30
Citamos também o ensaio “How Much of Hobbes Might Spinoza Have Read?”, publicado em LLOYD,
Genevieve. Spinoza: Critical Assessments, Vol. 1. Routledge, 2001, escrito por William Sacksteder. Nele,
Sacksteder reforça que o Leviatã dedica diversas referências em suas páginas a reflexões também de natureza
teológica e crítica.

74
elasticidade retórica imensa o apontamento do filósofo holandês como o grande
influenciador do mundo científico-filosófico moderno. A questão, no entanto, não é
de adoração biográfica, mas sim de escolha metodológica. O que Israel pretende
demonstrar com a alusão repetida à importância de Baruch é o fato com o qual
escolhemos guiar esta seção do capítulo: Spinoza destaca-se por ser a melhor
representação do pensar racional concomitante à crítica do texto que serviu de base
de leitura do mundo por longas centúrias. Hobbes questionou, mas dedicou-se
pouco à crítica dos milagres, das explicações “mágicas”. Por isso não pode ser
citado com a mesma ênfase de Spinoza. A crítica à visão religiosa de mundo é um
dos pilares dos radicais protagonistas da leitura de Israel. Reforçamos que a leitura
do historiador de Princeton não é unânime, e mesmo sua conclusão acerca das
limitações da exposição de Hobbes contra os milagres é discutível 31.
Para sintetizar, o que Israel identifica em Spinoza é um tratado de
questionamento crítico que nenhum outro autor foi capaz de fazer com tanta
eficiência e com timing tão perfeito. Em seu Tratado, o filósofo adota um método de
exegese das Escrituras que as descortinam como uma narrativa de eventos
históricos, demovidas de qualquer conteúdo mágico ou miraculoso 32. Trata-se de um
documento humano, e desta forma deve ser lido. Para se compreender
verdadeiramente a Bíblia, deve-se interpretá-la através da utilização da linguística,
da história. Não se baseia em revelação divina guiada pelas palavras do papa, ou
mesmo das palavras de carismáticos reformadores. As contradições do documento,
outrora ignoradas ou desprezadas, explodem em demonstrações de falha que
seriam incompatíveis com a Palavra Divina. A relação que Spinoza propõe entre
razão e revelação é, por assim dizer, radical. A forma com a qual se critica é distinta,
pelo uso dos princípios cartesianos. Aqui talvez os críticos tenham alguma razão
quando Israel, apaixonado pela teoria que defende, pinta um Spinoza heroico,
enfrentando com dedo em riste a ignorância e a resistência da superstição. Não
precisamos nos empolgar tanto, sabemos que é leitura exagerada. Mas
concordamos com o autor, mesmo com carga de leitura ainda limitada, que poucos
pensadores do século XVII ou XVI contribuiram tanto para a conformação de uma
modernidade com um pensar anti-religioso, ou anti-tradicional, quanto Spinoza. Os
argumentos contrários às ideias de revelação, inspiração, profecia, milagres,

31
JESSEPH, Douglas. “Hobbes’s Atheism”. In: Midwest Studies in Philosophy, XXVI (2002), 140-141.
32
ISRAEL, Jonathan. Radical Enlightenment... p. 448.

75
sonhos, a figura de Moisés, dos profetas, apóstolos ou mesmo a do Cristo, são vivos
e diretos no Tratado spinoziano de uma forma assustadoramente seca,
especialmente em comparação a críticas mais veladas tecidas por outros autores do
mesmo período. É por isto que alguns dirão que a publicação da obra terá o efeito
de um raio sobre o continente europeu33. E da mesma forma, o próprio Hobbes
declará sobre o livro que: “it cut through him a bar’s length, for he durst not write so
boldly34”. Radical é um termo que só parece mal colocado, em nossa leitura, antes
da investigação fecunda sobre o que Spinoza declara. É bom lembrar que ele
escreve muito antes de Diderot, Voltaire, Holbrach, Darwin, Nietzsche, Marx, Freud,
etc. Richard Dawkins, de quem assumidamente sou pouco fã, demonstra surpresa e
admiração com a existência de qualquer um que ousasse questionar a existência de
Deus antes da publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, em 185935.
Dawkins não cita Spinoza em nenhum ponto da obra, pelo que pudemos perscrutar
em rápido exame, o que demonstra ainda mais a radicalidade de suas propostas
para o momento no qual escreve.

O círculo revolucionário

Quem seriam então esses autores identificados enquanto membros de uma


corrente mais radical, revolucionária do pensar iluminista e em que instância Raynal
se enquadra neste grupo? Israel identifica, como já apontamos, que o grupo que se
reunia no salão do barão D’Holbach merece o título de protagonismo nesta história
de radicalismo peculiar. Não é Israel, no entanto, o autor de tal formulação. Pelo
contrário. A mística envolvendo a coterie holbachique é discutida e estudada há
tempos, não apenas na França mas também nos EUA, antes do trabalho do
professor supracitado. Talvez a obra que tenha tido mais impacto historiográgico em
tal ínterim seja o excelente trabalho de Alan Charles Kors36. Realizando extenso
levantamento empírico, resultado de suas idas a Paris durante a década de 1960,
Kors sumariza em sua obra as principais características do fustigante círculo de
sociabilidade constituído naquele espaço, do qual se fundamentará enquanto lugar

33
Cambridge Companion to Spinoza. Op. cit. p. 409.
34
NADLER, Stephen. Spinoza’s Ethics: An introduction, op. cit., p. 20.
35
DAWKINS, Richard. O relojoeiro cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
36
KORS, Alan Charles. D’Holbach’s Coterie. An Enlightenment in Paris. Princeton: Princeton University Press,
1976.

76
social um diálogo inevitável com as publicações de todos os seus membros. As
caracterizações da coterie supracitada em geral seguem três grandes leituras
hegemônicas, como aponta Kors em sua introdução: primeiramente a visão de um
círculo uniforme de ideias, no qual predominava uma leitura de mundo pautada em
um materialismo ateísta; a percepção de que em tal grupo predominava um ideal de
colaboração mútua, cujos objetivos seguiam muito além dos confins dos salões do
barão, e que tiveram frutos fastidiosos, como comprova a Histoire de Raynal, que
contou com a participação anônima de diversos companheiros de círculo, dentre os
quais destacadamente Diderot; e finalmente, até pela presença ilustre do mesmo,
que o grupo tinha ligações diretas com a formulação da Enciclopédia, projeto
capitaneado por Diderot mas apoiado e construido pelos membros do círculo
estudado. O principal problema no estudo de nossa coterie é derrotar o estigma que
foi desenvolvido ao longo de século XIX e que sobreviveu por grande parte do XX,
qual seja, a leitura de um grupo de fanáticos revolucionários, respirando
antirreligiosidade e ódio ao Antigo Regime37. Já demonstramos um pouco ao longo
de nosso trabalho como a figura de Raynal destaca-se pela sua singularidade, mas
não duvidamos que um estudo minucioso de cada um desses atores mostraria
características parecidas, ao menos em uma comparação de riquezas e
complexidades nos seus contributos intelectivos. Raynal era um paradoxo
ambulante, um religioso frequentando um grupo de radicais. Mas não era o único, e
nem sempre era tão radical assim38. Mas quem seriam os membros do grupo afinal?
Mais confusão. Alguns defendem a existência de um grupo secreto e dileto dentro
do grupo maior, que se reunia às quintas enquanto os “não-iniciados” só tinham
acesso aos encontros de domingo39. Não há nenhuma evidência que corrobore tal
tendência historiográfica, no entanto...
O termo coterie que utilizamos à exaustão, teria uma tradução um tanto
quanto atropelada para “círculo social”, por força de expressão, uma vez que tal
termo foi cunhado por Jean-Jacques Rousseau em sentido plenamente pejorativo.
Em suas Confissões, o eminente filósofo aponta Grimm, Diderot e d’Holbach, bem

37
Alexis de Tocqueville reforça tal ideal durante o XIX, mas Peter Gay, já por nós citado, reforça essa leitura
pouco sensível ao longo do XX.
38
Ver Capítulos 2 e 3.
39
AVEZAC-LAVIGNE, Charles. Diderot et la societé du Baron d'Holbach. 1875. Disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Diderot_et_la_Soci%C3%A9t%C3%A9_du_baron_d%E2%80%99Holbach. Acesso:
28 nov. 2017. p. 44-45.

77
como seus “amigos sociais”, como a coterie holbachique40, que, segundo Rousseau,
seriam responsáveis por uma conspiração armada contra ele por motivações
patéticas como a inveja. O nome ficou e acabou sendo utilizado e incorporado à
língua francesa para sintetizar tais grupos que se encontravam em relações de
“mutualismo”, encetando debates acalorados e propondo ações políticas. E, mesmo
que não acreditemos piamente nos relatos do grande Jean-Jacques sobre a
perseguição sofrida, é fato que havia encontros realizados nos salões do
supracitado barão, toda quinta e domingo, mas que de fechados tinham muito
pouco. Diplomatas, convidados, políticos, estrangeiros, até críticos abertos dos
philosophes já passaram por tais jantares e na certa saborearam um fumo após a
refeição enquanto compartilhavam saberes e ignomínias. As presenças mais
constantes, no entanto, em pouco tempo passaram a desenvolver uma espécie de
identidade coletiva, manifestada em auto-referências insólitas, como “o clube”, “a
sinagoga”, “a confeitaria”, ou mesmo “os amigos da rue Royale” 41. Do que era
apenas um encontro de amigos em 1749-51, a coterie cresceu cada vez mais de
importância e fama, ao ponto de, em meados da década de 1760, o bom anfitrião
d’Holbach se visse obrigado a impedir a entrada de qualquer um e selecionasse com
mais afinco aqueles que mereciam ali estar42.
Dentre os membros assíduos e partícipes do círculo de fato, Kors identifica
alguns nomes que se repetem em demasia e que eram presença certa nos
encontros mais restritos: Barão d'Holbach, Denis Diderot, Friedrich-Melchior Grimm,
Charles-Georges Le Roy, Jean-François Marmontel, Guillaume-Thomas-François
Raynal, Augustin Roux, Jean-François de Saint-Lambert, Jean-Baptiste-Antoine
Suard. O barão, como o próprio título ostentado anuncia, era herdeiro de larga
fortuna, e homem dado a festividades e grandes recepções. Retorna dos estudos na
Universidade de Leyden a Paris em 1749, e imediatamente busca remontar e
construir laços de proximidade através dos encontros marcados em seus salões.
Todas as fontes, incluindo Rousseau, que frequentou os encontros no início, são
unânimes nos elogios à estrutura montada pelo host. Chefs contratados, muitos

40
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Confissões. Coleções Edipro, 2008. p. 439.
41
KORS, Alan Charles. “The myth of the coterie holbachique”. French Historical Studies. Vol. 9, No. 4, Out.
1976, p. 573-595.
42
Quem nos informa de tal fato é o próprio Diderot em correspondência trocada com Sophie Volland, na qual o
espirituoso autor informa que o barão se cansou de receber trinta pessoas para um jantar no qual esperava
menos da metade deste número. KORS, Alan Charles. D’Holbach’s Coterie… p. 10.

78
servos, comidas “abundantes e memoráveis”, uma coleção de vinhos antigos em
sua adega pessoal. Para além disso, uma sala dedicada a mini-museu de história
natural, uma biblioteca com mais de 3.000 livros e quadros dos maiores artistas
franceses espalhados pela residência. O barão também era conhecido por auxiliar
financeiramente artistas e intelectuais mais desprovidos, incluindo o próprio
Rousseau por certo tempo43. Diderot, outro dos destaques necessários, é conhecido
pelo grande público pelo seu trabalho magistral junto à Enciclopédia, mas destaca-
se, em nossa opinião, por muito mais. Já era conhecido pelos seus amigos de
coterie como “le Philosophe”, o que dá a dimensão do respeito que gozava perante
seus colegas de reflexão intelectual. Irônico, retumbante, cínico quando necessário,
sonhador quando parecia conveniente, Diderot representa um pouco da grandeza
intelectual do pensar ilustrado, seja por sua escrita fácil, arguta e venenosa, seja
pela paixão evocada junto à razão que lhe era carro-chefe dos pensamentos. A
correspondência de Diderot é, até hoje, a principal fonte sobre a coterie que temos,
o que auxilia na construção de uma visão “mística” do grupo, interpretado pelos
arroubos poéticos e quase sempre irônicos de seu membro mais brilhante. Desde os
primeiros encontros até o fim de sua vida, Diderot era o amigo mais próximo e
confidente do barão, que o considerava um associado intelectual acima de tudo.
Morellet comenta em suas memórias que na única oportunidade em que Diderot
precisou se ausentar por mais de uma vez, D’Holbach exigiu pedido formal de
desculpas e explicações pela mágoa causada44. Curioso que o próprio Diderot
comenta em algumas cartas o quanto odiava ocasiões sociais, evitando ao máximo
o encontro com várias pessoas ao mesmo tempo pelo desprezo que sentia em
relação às mini-hipocrisias exibidas em tais situações. Mas às reuniões do círculo
não poderia faltar. A coterie foi parte importantíssima da vida de Diderot, e ele soube
retribuir da maneira que melhor lhe convinha: através do intelecto. Com vivacidade,
o grande filósofo impressionava os amigos com sua oratória e paixão, e comumente
era o mais ouvido do grupo. Morellet completa, em suas memórias, com a lembrança
de um dia no qual Diderot teria sido questionado por um rapaz sobre filosofia e artes,
e sua exposição exalou tanta fecundidade e riqueza, que o grupo só percebeu que

43
ROUSSEAU. Idem. p. 396.
44
MORELLET, André. Mémoires de l'abbé Morellet, de l'Académie française, sur le dix-huitième siècle et sur la
Révolution. 1821. Réédition: Paris, Mercure de France, 1988. Disponível em:
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k64768q. Acesso: 29 nov. 2017.

79
havia passado mais de uma hora ouvindo o companheiro quando ele terminou sua
fala45.
E, por fim, chegamos ao abade novamente. Como anunciamos no capítulo
inicial, ele viu sua obra perder valor ao longo do tempo e, como demonstramos,
sempre teve seu trabalho diminuído, ao menos no sentido filosófico. Contudo, à
época do estourar da Revolução, apenas Voltaire e Rousseau eram mais lidos que
Raynal, que era de longe o membro de maior sucesso do grupo, embora nesta
época já não estivesse mais na França. Seu contato com o grupo deu-se pouco
após o abandono da vida clerical, quando o abade se vê “obrigado” a frequentar os
salões parisienses para melhor exercer seus serviços administrativos e diplomáticos.
Torna-se amigo de Rousseau, de acordo com o próprio, em 1748. Quando as
reuniões dos salões de D’Holbach se iniciam, já é convidado especial, amigo íntimo
que era do barão, Diderot e Grimm. Morellet imortaliza em suas memórias algumas
passagens sobre nossa personagem que acabaram definindo a imagem que dele
permaneceu no imaginário histórico. Sempre calado e restrito, Raynal a tudo
anotava, e estava sempre trabalhando em seus livros em meio às reuniões da
sociedade dos amigos46. O fato de estar sempre escrevendo e trabalhando em seus
livros em meio ás reuniões motiva inclusive a suspeita de que sua obra magna, a
Histoire, não tivesse sido de fato por ele escrita. Raynal não escondia que aprendia
com todos, e que estava sempre disposto a fazê-lo. A questão aqui talvez seja
maior. Como definir o problema da autoria no século XVIII? Como lidar com o
conceito de plágio? Abordamos um pouco dessa questão no capítulo anterior, porém
acreditamos que tal exercício teórico mereça um capítulo à parte, em uma pesquisa
que ofereça maior tempo. Pretendemos incorporar tais elucubrações em futuro
próximo.
Raynal é também uma figura riquíssima para desfazer alguns dos equívocos
interpretativos acerca da coterie. É fato que Israel o considera um dos membros do
grupo radical, em muito inspirado por Spinoza. No entanto, precisamos concluir,
Raynal, bem como Diderot, Suard, Marmontel, eram muito mais próximos de crenças
deístas do que de fato ateístas. Diderot é um caso à parte, que modifica muito de
tais crenças ao longo das décadas que nos utilizamos enquanto recorte, mas os
outros nomes aparentam perspectiva distinta daquela radical-revolucionária

45
Idem. Ibidem. p. 128-130.
46
Idem. Ibidem. p. 214-215.

80
defendida por Israel. Se estudarmos a Histoire com cuidado, observaremos críticas à
religião constituída e ao papel político do clero, mas em nenhum momento a figura
divina que rege as leis da vida é atacada. Concorda com Spinoza quando argumenta
que a autoridade vem do homem, mas acalenta os corações religiosos ao contrapor
que a liberdade vem de Deus47. É claro que sua análise histórica demonstra
desconfiança profunda de qualquer perspectiva que pareça metafísica, comumente
apontando nas doutrinas religiosas a base da superstição (como Spinoza) e da
intolerância e violência. Mas Voltaire fez algo de diferente neste sentido? E não era
Voltaire parte do círculo moderado? Raynal, de certa forma, incorpora elementos
que poderiam pertencer a ambos os grupos separados por Israel. Mas ao mesmo
tempo, representa com intensidade a imagem simbólica do que supostamente
defendia a coterie. Falta de originalidade e mera cópia? Alguém que não tinha
opiniões próprias e por isso incorporava tendências como quem troca de vestuário?
Difícil chegar a conclusões tão simplórias após tantas páginas de estudo. Raynal
poderia ser lido de forma diferente, caso percebêssemos, por exemplo, o quão
filosoficamente rico é o debate que ele erige sobre a China. Foge da leitura de
progresso e superstição constrastadas na crítica contraditória de Voltaire, mas ao
mesmo tempo não embarca em esperada leitura ateísta de consagração dos
elementos não-supersticiosos do confucionismo como provas do atraso que a
religião e a crença num Deus trariam, para focar na base teísta do pensamento de
Confúcio. Não há superstição na China, garante, pois o código de condutas ali
vigente nada mais seria que uma versão da lei natural, que deveria ser a base de
todas as religiões do mundo, a fundação de cada sociedade, a regra de todos os
governos. Razão, como diria Confúcio, é uma emanação da Divindade; a lei
suprema nada mais é do que o acordo entre natureza e razão. Toda religião que
contradiz tal máxima, não advém do paraíso48. Atentem para esta reflexão. Não há
aqui uma categorização simples de pensamento. Raynal, nesta passagem
reproduzida por nossas palavras, tem um pouco de Voltaire e um pouco de Diderot.
É radical mas moderadamente. Fala em paraíso mas critica a religião. Exorta a
razão mas de acordo com Deus, representado pela natureza. Se os primeiros
biógrafos não conseguiram enxergar riqueza filosófica no autor, lamentamos e
pedimos aos de hoje, ao menos, que o leiam novamente...

47
RAYNAL. Histoire... p. 103.
48
Idem. Ibidem. p. 178-179.

81
CONCLUSÕES

Ainda há muito o que se dizer sobre Guillaume Raynal. Talvez seja forçoso
reconhecer que todo trabalho de conclusão de uma graduação tenha uma natureza
preliminar. Posiciona-se, não raro, mais como propulsor de possíveis voos mais altos
que como encerramento absoluto de pesquisa. Podemos, no entanto, apontar
algumas conclusões do estudo e divisar um pouco do diferencial buscado pela
proposta inicial. Apontamos na Introdução a popularidade do autor. Sua Histoire foi
lida em todo o continente europeu mas “entrou para a história”, utlizando conhecido
clichê, pelos impactos que proporcionou nos movimentos de emancipação na
América, tanto inglesa quanto portuguesa. Poderíamos dedicar um outro capítulo às
leituras de Raynal na América espanhola, a partir de inspiração legada por Ovidio
García Regueiro1 em sua análise sobre a “versão castelhana” da obra e seus
impactos na monarquia em questão. Não há dúvidas que o reconhecimento é justo e
vistoso. Nosso incômodo, contudo, propunha reflexões maiores. Será que Raynal
não merece espaço mais alargado como pensador, para além do título de
propagador eficiente?
A escolha da discussão filosófica envolvendo a cotérie holbachique e as
influências de Spinoza, proposta por Israel, para finalizar a monografia tem razão
evidente. Uma primeira leitura pode causar desconforto. Reproduzimos os ideiais
por concordar plenamente com eles? Esquecemos de Raynal e perdemos o foco na
empolgação da investigação filosófica? Au contraire. Mesmo que tenhamos
divergências pontuais com alguns dos exageros cometidos pelo autor
estadunidense, evocamo-lo por considerar que seu trabalho é o que mais se
aproxima de uma perspectiva diferenciada de leitura do papel do abade. Israel não
aponta ineditismos filosóficos em Raynal, não atribui a ele uma revolução do pensar.
Nós também não temos esta intenção. Mas quando o professor reconhece na
Histoire o impacto de “um livro que fez uma revolução mundial”2, para logo após
concordar com Duchet e sua leitura da obra como um trabalho de metologia

1
REGUEIRO, Ovidio García. “Illustración” e intereses estamentales. Madrid: Editorial de la Universidad
Complutense, 1982.
2
ISRAEL, Jonathan. Democratic Enlightenment: Philosophy, Revolution, and Human Rights 1750-1790. Nova
York: Oxford University Press USA, 2011. p. 413.

82
encyclopédiste3, identifica sua grandeza como resultado de um trabalho coletivo,
oriundo de um círculo de construção e circulação de saberes moldado por seus
membros e ao mesmo tempo a eles moldando. Não é pelo contributo apaixonado de
Diderot que a obra faz sucesso, unicamente. Não foi também pelo título de abade
ostentado por Raynal, o que não lhe era exclusividade no período. A discussão por
nós recuperada para encerrar esse estudo aponta para um dos caminhos passíveis
da demonstração de um Raynal ainda maior, pois símbolo máximo de uma corrente
tão impactante dentro do movimento ilustrado. Não pretendemos diminuir o papel de
Denis Diderot, de quem somos admiradores confessos e sobre quem desejamos um
dia dedicar estudo mais complexo e volumoso. É necessário apenas evidenciar que
as leituras basilares sobre Raynal, desde seus biógrafos do século XIX, mesmo
quando o enaltecem parecem “limitá-lo”. O próprio Israel, supracitado, toma a
insólita atitude de escrever o nome do francês entre aspas quando refere-se ao
autor da Histoire. Raynal parece um fantoche, uma imagem. Poderosa propaganda
política, mas nada além disto. Talvez o fato da leitura das passagens que tem sua
autoria comprovada se demonstrarem tão secas em relação às adições de seus
companheiros tenha tido impacto nesta conclusões precipitadas. Seria
irresponsável, no entanto, ou talvez anacrônico, compreender a noção de autoria
para uma obra do século XVIII da mesma forma que o fazemos em relação a uma
mais contemporânea. Não há como prosseguir neste debate sem estudo minucioso
da questão, que merece espaço maior do que o oferecido pelo campo de nossas
conclusões preliminares. Faz-se mister, contudo, apresentar um pouco da
discussão.
Joachin Azevedo Neto4 conduz com segurança parte do debate da autoria
em Ciências Humanas, elencando três autores-chave em sua concepção: Roland
Barthes, Michel Foucault e Giorgio Agamben. Citamos o artigo por concordamos
plenamente com a seleção, especialmente pela adição do italiano à companhia dos
franceses, estes de citação quase obrigatória. Barthes, inicialmente ligado ao
pensamento estruturalista por inspiração em Saussure, destaca-se em sua trajetória
ao rebelar-se contra os prepostos da linha intelectual que professava. Sua crítica à
“ânsia estruturalista, do começo do século XX, em homogeneizar todas as coisas em

3
DUCHET, Michèle. Diderot et l’Histoire de deux Indes ou l’Ecriture fragmentaire. Paris: A. G. Nizet, 1978. p. 31-
32; p. 50..
4
AZEVEDO NETO, Joachin . “A noção de autor em Barthes, Foucault e Agamben”. Floema , v. 10, p. 153-164,
2014.

83
categorias, inclusive os textos”5 acompanha o posicionamento igualmente crítico que
o autor assume em relação à teoria literária de meados do século anterior,
“exaltadora da biografia e historicidade da obra”6, como demonstramos em nosso
primeiro capítulo. Recontextualizando sua obra em perspectiva agora pós-
estruturalista, Barthes lança um conjunto de ensaios provocativos e
transformadores, reunidos no livro O rumor da língua7. Da obra, o artigo “A morte do
autor” é até hoje o mais rememorado e debatido, ponto central para o que
intentamos discutir. Citando a novela Serrazine, de Balzac, Barthes propõe o
pensamento da escrita como um campo da performance. O autor é uma construção
moderna “e o positivismo foi a corrente intelectual que conferiu maior importância a
autoria, em um momento de supervalorização do prestigio individual” 8. Não é o autor
quem fala, mas sim a linguagem. O livro não é gestado antes da sua escrita.
Escrever, enquanto ato de performance, é algo que reside no espaço do aqui e
agora. “O autor é responsável por misturar as escritas, fazendo uma bricolagem de
textos diferentes. Deste modo, um escrito remete a outro, em uma intertextualidade
infinita”9. Constatando inexistência de nexos entre a escrita e a vida, Barthes afirma
que
[...] o escritor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais original; seu
único poder está em mesclar as escrituras, em fazê- las contrariar-se umas
pelas outras, de modo a nunca se apoiar em apenas uma delas [...] o
escritor não possui mais em si paixões, humores,sentimentos, impressões,
mas esse imenso dicionário de onde retira uma escritura que não pode ter
parada: a vida nunca faz outra coisa senão imitar o livro, e esse mesmo livro
não é mais que um tecido de signos, imitação perdida, infinitamente
recuada.10

A morte do autor é uma ideia de substituição de protagonismos, por assim


dizer. Apaga-se o autor para dar visibilidade ao leitor. O autor, em Barthes, não
mantém uma relação paterna com o texto. O impactante ensaio do francês (ou
deveríamos dizer “da linguagem”?) poderia ser instrumentalizado a nosso favor.
Discutir o autor da Histoire, dentro deste cabedal teórico, pareceria exercício inútil,
uma vez que a autoria não possui mais sentido. O escritor, ou os escritores, não são
pais de sua obra. Temos dificuldades, contudo, em abraçar tal leitura.

5
Idem. Ibidem. p. 154.
6
Idem. Ibidem. p. 155.
7
BARTHES, Roland. O rumor da língua. Tradução de Mário Laranjeira. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
8
AZEVEDO NETO, Joachin. Op. cit. p. 154.
9
Idem. Ibidem. p. 155.
10
BARTHES, Roland. Op. cit. p. 69.

84
Compreendemos o que Barthes que dizer quando afirma que o texto não é
reprodução de paixões de seu escritor, mas insistimos que o leitor-protagonista só
responde com fervor aos clamores da leitura pois identifica-se nas palavras. É claro
que o francês poderia reafirmar suas ideias com nosso argumento, demonstrando
que estes sentimentos, humores, expectativas, etc. fazem parte do “dicionário” de
onde o escritor inspira-se para reorganizar as palavras. Mas será válido assumir que
esta atividade não carece de características específicas que os diferenciem?
Qualquer um poderia assumir o posto de escritor-operário da linguagem e produzir
resultados análogos aos de obras de impactos tão profundos? Barthes nos auxilia a
questionar, mas ainda posa problemas profundos.
Michel Foucault apresenta reflexões importantes em conferência realizada
na Sociedade Francesa de Filosofia, em 1969. O estudo, desenvolvido como
resposta às críticas sofridas após a publicação de As palavras e as coisas11 tornaria-
se um dos textos12 mais influentes do filósofo francês. Acusado de não fazer jus aos
textos de Marx que criticou, além de comparar de forma problemática autores em
contextos distintos, Foucault “se defende dizendo que não buscou reproduzir o
pensamento dos autores que citou e nem enquadrá-los em uma família, em um
conceito. A ideia era compreender suas práticas discursivas”13. O objetivo de
Foucault era se ater a relação entre texto e autor. Qual a importância do autor, antes
de mais nada? O filósofo aponta como a própria pergunta evoca a conclusão de que
a escrita vale por si mesma, desdobrando-se “infinitamente até levar ao
desaparecimento do sujeito”14. Adicionando uma contextualização histórica talvez
mais completa do que a trazida por Barthes, mesmo que ainda problemática,
Foucault cita autores como Flaubert e Kafka para demonstrar como, na
modernidade, o autor faz papel de morto no jogo da escrita. “[...] O sujeito que
escreve despista todos os signos de sua individualidade particular”15. Outro mérito
de Foucault em relação a Barthes dá-se no reconhecimento da obra como trabalho
de edição e compilação, reforçando os argumentos que indicavam a necessidade de
uma ressignificação do conceito de autoria. Seria o editor tão autor quanto o

11
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. trad. S. T. Muchail, São Paulo: Martins Fontes, 2002.
12
FOUCAULT, Michel.. “O que é um autor?”. In: ______. Ditos e escritos III: Estética: literatura e pintura, música
e cinema. Tradução de Inês Barbosa. Rio de Janeiro: Forense, 2011.
13
AZEVEDO NETO, Joachin. Op. cit. p. 157.
14
Idem. Ibidem.
15
FOUCAULT, Michel. “O que é um autor?”. Op. cit. p. 269.

85
indivíduo que escreveu o “texto-base”? O nome do autor carrega consigo um
conjunto de obras, aciona “um tipo de discurso que concebe um certo status a
palavra de quem é instituído como tal”16. O contexto histórico no qual a função-autor,
como explanada anteriormente, é gestada? O final do século XVIII, em contexto no
qual os signos da propriedade privada englobavam cada vez mais o campo da
literatura, bem como a associação dos discursos transgressores eram cada vez mais
associadas aos indivíduos que a elaboraram. Foucault fortalece nosso argumento
em relação a Raynal. Se o autor não pode ser resumido àquele que elaborou o
texto, faz-se cada vez mais flagrante a percepção do papel de Raynal para além do
elemento político-propagandista que seu nome supostamente evocava. Tem
importância intelectual-filosófica também, mesmo que talvez não possa ter a ele
atribuída a noção de autor transdiscursivo.
Concluimos nossas breves conclusões com a adição de outro pensador, que
provavelmente pode nos oferecer elementos ainda mais fulcrais para o
prosseguimento do debate sadio. Giorgio Agamben propõe-se ir além do discutido
por Foucault e Barthes sobre a questão da autoria, preocupando-se em buscar as
definições dos lugares e momentos nos quais as ideias específicas foram gestadas.
Como já refletíamos enquanto discutíamos Barthes, Agamben aponta que há um
instante no qual a fala do autor confunde-se com a de seu intérprete. Segundo o
italiano, a geração de acadêmicos que está crescendo em meio aos ditames do
século XXI tem como principal tarefa “arrancar dos dispositivos – de todo dispositivo
– a possibilidade de uso que os mesmos capturaram. A profanação do improfanável
é a tarefa política da geração que vem”17. Que figura imagética interessante. A ideia
de autor como gesto é a base do pensamento de Agamben sobre a questão da
autoria. Azevedo Neto cita Karl Schollhammer, grande teórico da literatura, que teria
definido o conceito de “gesto” da forma mais didática, imprescindível ao
entendimento do que Agambem procura expor:
O gesto é aqui definido como o que sobra da ação de escrever, da obra e
da intenção comunicativa e transitiva, pois o gesto é indeterminado e
inesgotável, a soma das razões, pulsões e indolências que envolvem a
atmosfera da ação. Simultaneamente, o gesto abole a distinção entre causa
e efeito, motivação e alvo, expressão e persuasão, mas também confunde a
relação entre o gesto do artista e o artista do gesto. 18

16
AZEVEDO NETO, Joachin. Op. cit. p. 158.
17
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Tradução de Selvino Assmann. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 79.
18
SCHOLLHAMMER, Karl. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007. p. 106.

86
Agamben foca o conceito de gesto com inspiração relacionada ás posturas
transgressoras das fronteiras que separam a escrita da imagem. A paródia, por
exemplo, seria um modelo estilístico profanador por excelência. Agamben cita A
divina comédia dentro deste ínterim, como um arremedo das Sagradas Escrituras.
Na literatura satírica se encontra o melhor exemplo “de como a postura burlesca do
autor pode ser interpretada como um gesto profanador”19. Complementando
Foucault, desta forma, o italiano atribui à função de autor mais do que as funções de
organizadores de disciplinas e criadores de discursividades. É o autor, também, e
principalmente, aquele que pode transitar entre a ética e a trapaça a partir de um
gesto. Não se trata de uma recuperação mal disfarçada do protagonismo roubado.
Agamben conclui que “o autor nada pode fazer além de continuar, na obra, o não
realizado e não dito. Ele é o ilegível que torna possível a leitura, o vazio lendário de
que procedem a escritura e o discurso”20. Não há razões para a singularização do
autor, de sua personalidade, para a compreensão de sua obra. Deve ser usado
“para a compreensão dos gestos pelos quais os indivíduos se valem da linguagem,
enquanto dispositivo, para burlar a própria lógica dessa linguagem”21.
O valor de Agamben para nosso debate faz-se, assim, grandioso, bem como
as inserções de Barthes e Foucault. Não é profícuo, para nosso propósito, o debate
sobre quem escreveu qual parte da Histoire. Se queremos apontar a centralidade
intelectual de Raynal e sua importância filosófica, além do supracitado valor político,
precisamos investigar os gestos evocados pela magnífica obra que comoveram
tantos em tantos lugares distintos, como nossa monografia recordou. De certa
forma, ao diminuir a centralidade da autoria, retornamos ao ponto-motriz do trabalho
com maior amadurecimento, mas também com alargada confiança na proposta
inicial. Pedindo licença para uma vez mais mandar as formalidades acadêmicas às
favas, concluimos: ainda há muito o que se profanar sobre Guillaume Raynal, e
seguiremos empenhados em profaná-lo...

19
AZEVEDO NETO, Joachin. Op. cit. p. 162.
20
AGAMBEN, Giorgio. Op. cit. p. 61.
21
AZEVEDO NETO, Joachin. Op. cit. p. 163.

87
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