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DESENVOLVENDO A

COMPETÊNCIA
I
i
I
DOS PROFISSIONAIS
3"edição revista e ampliada

I Guy Le Boterf
~ a c t e u dr h t em Letras e Ciências Humanas. Diretor Geral de Le Boterf Conseils.
Especialista reconhecido em gerenciamento e desenvolvimento das competências,
também é autor de inúmeras obras e artigos. Recebeu a mençáo especial do
Prixdo livro de gerenciamento e estratégia.

L433d Le Boterf, Guy


Tradução:
Desenvolvendo a competência dos profissionais / Guy Le
Boterf; trad. Pam'cia Chittoni Ramos Reuillard. - Porto Alegre : Patrícia Chittoni Ramos Reuillard
Artrned, 2003.
Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição:
1. Educação - capacitação profissional. I. Título. I
Cláudia Bitencourt
I
Doutora e m Administraçáo pela UFRGS.
CDU 377.354 Membro do Grupo de Estudos e m Aprendizagem Organizacional na UFRGS.

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto - CRB 10/1023

ISBN 85-363-0129-5
3 . d ~
-4 ,)
Obra originalmente publicada sob o título
Compétence et navigation professionnelle

O Éditions d'organisation, 1997, 1999, 2000


ISBN 2-7081-2445-5

Design de capa
FZávio Wild
Assistente de design
Gustavo Demarchi
Ilsutração da capa
Atlas Slave 1519-1530,de Michelangelo,
Museu da Academia de Florença
Preparação do original
Maria Lúcia Barbará
Leitura Final
Osvaldo Arthur Menezes Vieira
Supervisão editorial
Mônica Ballejo Canto
Projeto e editoração
Armazém Digital Editoraçáo Eletrônica - Roberto Vieira

Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa, à


ARTMEDQEDITORA S.A. A memória
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SÃO PAULO
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IMPRESSO NO BRASIL
P R I N l W iN BRAZIL
Saber-fazer ou capacidades operacionais .......................................... 101 Implantar um dispositivo e regras de reconhecimento e
Os saber-fazer formalizados ................................................. ....... 101 de validação dos conhecimentos de .formaçãoadquiridos
Os saber-fazer empíricos ...............................................................102 e dos conhecimentos profissionais adquiridos .......................................208
Os saber-fazer cognitivos ...............................................................114 Aoministrar os instrumentos de representação. de comunicação
Modos de manifestação dos saberes ..................................................123 e de simulação das competências ..........................................................208
Aptidões ou qualidades pessoais ........................................................ 124
Recursos emocionais ..........................................................................126 Garantir a qualidade do dispositivo de profissionalizaçáo .........................213
Os recursos d o meio ..........................................................................127 Raciocinar em termos de utilidade antes de raciocinar
Três níveis a distinguir: recursos, competências, profissionalismo.........131 em termos de eficácia .................................................................. ........ 213
I Reconhecer que os efeitos em termos de profissionalismo .'
4 . A orientaçáo e as condiçóes de mobilizaçio dos recursos .........................133 são o resultado de uma co-produção .........i......;................................ 214
A construção das representações operatórias ........................................133 Velar pela qualidade dos.fatores que devem contribuir para
O papel da auto-imagem e os metaconhecimentos.................................149 i as dinâmicas de profissionalização .................................................... 216
O querer agir: uma necessidade de sentido ......................................... 153 Ad condições sob controle ...................................................................... 218
Rumo a uma abordagem confiável ........................................................ 155 1 A elaboração das metas de profissionalização ...................................218
A competência: uma resultante .............................................................158 A elaboração, o conteúdo e a condução dos projetos de percurso ..... 218
Os níveis do profissionalismo ................................................................161 Os dispositivos de reconhecimento e de validação
5. Rumo a navegaçáo profissional .............................................................. 165 dos conhecimentos adquiridos ........................................................... 219
O mapa das oportunidades ............................................................219
A evolução da formação continua ..........................................................165 A reunião das condições favoráveis
Rumo a um modelo de navegação profissional: i aos projetos de profissionalização. ..-..............;.................................... 219
apresentação sintética ...........................................................................168 I A qualidade do plano de formasão..................................................... 220
Os componentes do modelo .................................................................. 1.74 O dispositivo de avaliação dos efeitos
As metas de profissionalização: um rumo a perseguir ....................... 174 1 e dos custos da profissionalização i ....................................................222
Fazer avaliações: a prática dos balanços de posicionamento ............. 178
O mapa das oportunidades: o espaço de 8. DA competência individual a competência coletiva ...................................229
profissionalização representado ........................................................ 180 Uoia prioridade emergente ....................................................................229
A elaboração e a pilotagem dos projetos ........................................... 185 Uxpa preocupação crescente .................................................................. 231
Um itinerário negociado ....................................................................189 O conteúdo da competência coletiva ..................................................... 234
O diário de bordo: relatos e portfólio ................................................190 As condições de emergência da competência coletiva ........................... 242
As condições favoráveis de navegação: o esquema diretor I

para o ambiente das competências ................................................... 192 Investir em pesquisa: uma prioridade para agir .................................................255
6 . O gerenciamento do dispositivo de profissionalizaçáo ..............................201 Referências bibliográficas ................................................................................. 259
Garantir a formalização e a atualização dos referenciais
de competências ....................................................................................
201
Promover a reunião das condições favoráveis aos efeitos
de profissionalização das situações e enriquecer o mapa
das oportunidades ..............................................................................203
Elaborar e implementar um plano de formação capaz de contribuir
especificamente para os processos de profissionalização .......................204
Em 1994, propus um ensaio: "De la compétence. Essai sur un attracteur
' étrange". A grande difusão dessa obra, os múltiplos encontros e as várias con-
ferências-debates que ela originou, além dos projetos operacionais aos quais
conduziu, levaram-me a aprofundar e modificar o curso dessa reflexão e... a
corneçd a transformar o ensaio.
Esta nova obra define tal evolução. Ela mostra principalmente:
A necessidade de raciocinar não somente em termos de competências,
mas em termos de profissionalismo. Essa abordagem mais global per-
mite reencontrar o sujeito portador e produtor de competências. A
bconomia das competências não se reduz à economia dos saberes, e as
kompetências nada são sem as pessoas. A competência não tem exis-
tênc* material independente da pessoa que a coloca em ação.
b que o mercado de trabalho vai solicitar são profissionais que fazem
uso dos recursos de sua personalidade. O que buscam os assalariados
é uma nova identidade profissional, que dê sentido aos saberes e às
kompetências que adquirem e que aumente suas chances de
bmpregabilidade. A competência individual ou coletiva é uma abstra-
@O, certamente útil, mas uma abstração. Somente as pessoas exis-
!em. Refletir sobre o que deve caracterizar o profissional dos anos vin-
douros é não apenas considerar a necessidade de retorno do sujeito,
mas também contribuir para ela.
I

l0 interesse defazer a distinção entre a ação-competência e os recursos


pecessários para sua realização. O profissional reconhecido como com-
,petenteé aquele que sabe agir com competência. Há, portanto, interes-
se em distinguir o conjunto dos recursos e a ação que mobiliza tais
recursos. Esse conjunto é duplo: o conjunto incorporado à pessoa (co-
12 GUY LE BOTERF

nhecimentos, habilidades, qualidades, experiências, capacidades cog- aptidões, experiências, etc.); o profissiondismo é reconhecido por uma
nitivas, recursos emocionais, etc.) e o conjunto de seu meio (bancos combinação singular de competências; a competência coletiva de uma
de dados, redes de especialistas, redes documentares, etc.). equipe emerge da combinação das competências e do profissionalis-
As competências produzidas por meio dos recursos convertem-se em mo de seus membros; a competência-chave de uma empresa é O resul-
atividades e condutas profissionais adaptadas a contextos singulares. tado da combinação das competências dos indivíduos, de seu profis;
O saber agir deve ser distinguido do saber-fazer.' sionalismo e das competências coletivas das unidades e das equipes. E
A importância da abordagem combinatória. 'X' competência do pro- do êxito da combinafúo que depende a emergência de uma competên-
fissional está no saber combinatório. "As" ações competentes são o cia em um outro nível.
resultado disso. Cada ação competente é produto de uma combinação O saber combinatório está no centro de todas as competências. Se a com-
de recursos. Se é no saber combinar que residem a riqueza do profis- petência é reconhecida por uma arquitetura combinatória, ela não po-
sional e sua autonomia, também é isso que pode tornar-se o "ponto deria reduzir-se a um mero acúmulo de elementos constitutivos. Esse
cego" ou a "caixa-preta", pois o processo combinatório escapa à visibi- é o interesse dos sofhuares - tal como a árvore das competências de
lidade e não corresponde a uma programação seqüencial. O sistema trívio - que permitem fazer emergirem imagens e dar, assim, a possibi-
cognitivo não funciona como um computador numérico, e pensar não lidade de interpretar seu sentido. Quanto mais a imagem se reduz a
se reduz ao encadeamento de um conjunto de operações lógicas. A um acúmulo elementar de competências, menos pobre é a competên-
metáfora e a analogia também têm seu lugar, visto que o ser humano cia da comunidade humana representada; quanto mais diversificada
reage a sinais cuja significação não está definitivamente fixada apriori for a imagem, maior a riqueza de sua complexidade. Quanto mais a
e cujo número é ilimitado. pessoa ou a unidade sabe e pode combinar, mais aumenta sua compe-
Os computadores não podem funcionar senão em relação a símbolos, tência.
cuja significação é desprovida de ambigüidade e cujo número é finito. A perspectiva de uma gestão da profissionalização em termos de nave-
Eles reagem ao que foi fixado pelo programador e ao que podem ler gafão profissional. Um dos desafios maiores para a empresa será saber
no processador. conjugar seus projetos e suas imposições com os projetos dos profis-
Só pode-se agir sobre as condições que favorecem o saber combinar e sionais. Em contextos de instabilidade permanente, essa conjugação
seria ilusório querer controlá-lo. E é bom assim! O saber combinar é não pode mais depender da programação. Já que o planejamento das
inalienável, e a sombra que o protege é propícia à sua criatividade. As carreiras falhou, e a formação contínua mostrou sua importância, mas
competências reais dos profissionais não podem ser objeto senão de também seus limites, pode-se afirmar que a profissionalização não se
antecipações probabilísticas. Não há apenas uma única maneira de ser reduz à formação.
competente em relação a um problema ou a uma situação, nem há É preciso criar, portanto, um maior número de novos espafos de profis-
somente um comportamento observável correto. Várias condutas são sionalizafão e reunir as condições necessárias para que cada um possa
possíveis. neles navegar.
Poder-se-ia dizer que existe uma "assinatura fractal" da competência. O planejamento deve, então, dar lugar a um novo modelo. Um novo
Em 1969, o matemático Benoit Mandelbrot definira deste modo o ter- "saber viajar" deve ser inventado para que se saia dos itinerários pre-
mo fractal: "toda forma que permanece semelhante a si mesma, seja determinados sem, todavia, cair na errância, que leva a naufrágios e
qual for o nível do qual é observada". A competência é reconhecida margeia a exclusão. Torna-se urgente saber tomar direções, traçar per-
por uma estrutura de base análoga, mesmo quando observada no ní- cursos, fazer desvios, encontrar escalas, precisar a situação, tomar bi-
vel de uma competência individual, do profissionalismo de uma pes- furcações. Enfim, é necessária uma navegação profissional em que
soa, da competência de uma equipe, de uma competência-chave de estejam presentes tanto o prazer de aprender como a tenacidade.
determinada organização. Essa estruturafiactd comum é a combina- A pertinência de um novo tipo de gerenciamento. Se a profissionaliza-
fão: uma competência é uma combinação de recursos (saber-fazer,
ção não pode ser imposta e se a construção das competências está no
centro da subjetividade, é necessário guiar e não apenas controlar.
O gerenciamento da profissionalização é um gerenciamento que dá
'N. de R. As competências geralmente são reconhecidas por meio de saber (conhecimen- sentido e age por influência, auxilia a fixar uma meta aceita de co-
to), saber-fazer (habilidades) e saber ser (atitudes). mum acordo e cria as condições propícias aos percursos e às dinâmi-
cas de profissionalização. Esse é o gerenciamento que deve ser inven-
tado e experimentado para além dos modos e dos discursos en-
cantatórios. Devem ser criados instrumentos de orientação, e novas
regras do jogo devem ser experimentadas.
A prioridade a ser dada ao tratamento da competência coletiva. Esta
não é uma entidade, é uma propriedade que emerge da articulação e da
sinergia entre as competências individuais e as redes híbridas de com- I
petências (pessoas, equipamentos, sinais, etc.).
Mais uma vez, é no saber ou na arte combinatória reside o verda-
A Razão d e Ser do Profissionalismo
deiro valor da empresa. Não há substituibilidade da aprendizagem cob-
tiva. Tudo deve ser inventado nesse campo. O trabalho e a experimen-
tação devem prosseguir, pois algumas condições de emergência de tal
competência coletiva já se tornam evidentes.
Eis, então, algumas linhas mestras desta obra. A apresentação que
acaba de ser feita não é exaustiva. O leitor, de qualquer modo, saberá
traçar outras de acordo com suas preocupações e sua experiência.
Mesmo que esta obra não seja um hipertexto, pode-se nela naveg ar... Por que o apelo crescente à noção de profissionalismo? Quais as razões
. que levam, atualmente, os responsáveis das empresas e das organizações a
buscarem profissionais e a implementarem dispositivos de profissionaUzação?
Como explicar o desaparecimento progressivo da figura do operário qualifica-
do ou do homem de mão-de-obra em proveito do profissional? Essa mudança
de linguagem se deve a efeitos de moda passageiros ou responde a novas exi-
gências das situações e das organizações do trabalho?
Parece que essa mudança de termo não seja uma mera operação de lifting
nos discursos gerenciais. Tampouco se trata de um acontecimento imprevisto,
repentino e que provoque surpresa. A busca do profissionalismo confirma uma
longa evolução que marcou a história da formação contínua na França. O
questionamento progressivo da formação como gasto social e sua substituição
por uma abordagem em termos de investimento teve conseqüências. A lógica
dos processos de produção, de manutenção e de desenvolvimento das compe-
tências tendem a prevalecer sobre aqueles voltados à formação. Da competên-
cia profissional ao profissionalismo há apenas um passo, que, todavia, está
longe de ser insignificante. Os debates que o termo provoca sobre suas impli-
cações sociais e principalmente sobre o questionamento da noção de qualifica-
ção estão aí para lembrar isso, já que abre igualmente o campo para a defini-
ção necessária de novas identidades profissionais.
A noção de profissionalismo se desenvolveu na França em um contexto
de crise do desemprego e de busca crescente de competitividade. Tal noção
adquiriu importância sob o efeito de uma convergência de interesses: o dos
assalariados, tomando consciência de que têm interesse em revelar seu con-
junto de competências em um contexto de mobilidade profissional e de busca
de emprego, e o dos empregadores, dando-se conta do fator de competitivida-
de que a competência pode representar.
O conceito de competência, que acompanha o profissionalismo, só ga- O diferencial de competitividade não depende mais apenas da boa gestão
nhou importância no decorrer,dos anos 80. Na década de 70, era a noção de do capital financeiro ou tecnológico da empresa. O gerenciamento do capital
"qualificação" que dominava. E interessante constatar que o termo competên- dos recursos humanos assume nele um lugar preponderante. São os serviços e
cia não aparecia no Vocabulário de Psicologia, publicado por Pieron em 1973. a inteligência que fazem a diferença entre as empresas, as restrições de custo
As noções de competência e de profissionalismo parecem mais adaptadas à e as exigências de qualidade, tornando-se próximas sob o efeito da automati-
gestão da mobilidade profissional do que àquela de qualificação, mais apropri- zação. A capacidade de inovação não reside mais prioritariamente no potenci-
ada a um contexto de estabilidade das profissões. al industrial ou nas despesas de pesquisa-desenvolvimento, mas no investi-
Por outro lado, as trágicas vagas de demissões coletivas e os planos de mento nos recursos raros que são as competências. E preciso saber investir
aposentadoria antecipada confrontaram as empresas com o problema da per- eficientemente em inteligência. As empresas que apresentam um "saber-fa-
da do saber e do saber-fazer de sua memória profissional. Não é por acaso que zer" estático estão fadadas a desaparecer.
as normas ISO 9000 insistem sobre a formalização dos saberes da empresa. A evolução do contexto de trabalho (novas tecnologias, novas organiza-
A incerteza torna-se uma companheira fiel da economia e das empresas ções de trabalho, gestão dos fluxos, transversalidade, etc.) induz uma eleva-
francesas. O retorno a um contexto de crescimento constante e previsível é ção do nível de profissionalismo e uma recomposição das funções e dos ofícios.
pouco provável. Essa situação leva os diretores de empresa a apostar mais nas Na área industrial, as exigências de qualificação tornam-se prioritárias.
competências dos empregados, na sua capacidade de adaptação e de iniciativa De acordo com o recenseamento do INSEE', em 1982,50% dos operários qua-
e na sua capacidade de aprender do que em uma previsão fina das evoluções lificados na França tinham, no mínimo, os diplomas CEP ou BEPC:" esse nú-
do conteúdo dos empregos. O profissionalismo está mais ligado à capacidade mero é de apenas 10% na Alemanha. Se fizermos uma projeção para o início
de enfrentar a incerteza do que à definição estrita e totalizadora de um posto do século XXI, os trabalhos do BIPE***(1985) concluem que haverá um au-
de trabalho. Não pode haver flexibilidade e reatividade sem uma boa gestão mento das necessidades em pessoal- de vigilâncidmanutenção das máquinas
de um capital de competências. É preciso apostar mais nas inteligências e nas automáticas e uma diminuição das necessidades em pessoal de transformação
competências locais do que se fiar em um planejamento central. Em inúmeras direta dos materiais. Se os operários não-qualificados estão fadados a dimi-
empresas, os dispositivos sofisticados de gestão previsional e preventiva dos nuir, prevê-se, entretanto, nesse horizonte uma certa estabilidade no segmen-
empregos estão sendo deixados "de lado" ou em lista de espera. Outros, estão to de operários qualificados.
em tratamento de emagrecimento. Mais uma tendência: a necessidade de cons- A polivalência, a multifuncionalidade e a capacidade de cooperar adqui-
truir a empresa de amanhã com os homens de hoje. O recrutamento externo rem importância. O desenvolvimento dos processos de concepção ou de enge-
perde importância em relação à gestão da mobilidade interna. Conhecer e nharia simultânea - dos quais os projetos ~ a u r u sno
, grupo Ford, e Twingo, na
gerir de modo evolutivo as competências tornam-se um imperativo de primei- Renault, são aplicações significativas - supõe que se considere de modo coor-
ra linha. denado a gestão das competências em relação às outras dimensões (equipa-
A emergência da noção de profissionalismo não se deve, portanto, ao mento, marketing, seguros). O desempenho desses projetos provém, sobretu-
acaso, assim como não é produto de um fenômeno de moda. Vários fatores do, da gestão adequada das interfaces, da qualidade das interoperaçóes, da
socioeconÔmicos estão em sua origem. contribuição das unidades elementares à produtividade global. Essas exigên-
cias são, por vezes, vivenciadas de modo ameaçador e não são desprovidas de
riscos de reações de retorno ao que já existe. Agentes de manutenção poderão
temer "não estar mais à altura", ao perder sua atividade tradicional de reparo
e serem responsabilizados pela confiabilidade das instalações.
A produção não é mais ou não será mais o que era. Ela deverá incorporar Uma "economia da variedade" está desenvolvendo-se. Diante das exigên-
uma parcela crescente de inteligência para fazer frente às exigências de reno- cias incessantes de renovação e de adaptação dos produtos e dos serviços, e da
vação, de reatividade, de flexibilidade e de complexidade. Para ser competiti- necessidade de inovar, torna-se indispensável renovar os conhecimentos e as
vo, deve-se investir na inteligência. Cada vez mais, são os serviços e a inteligên- competências, colocando-se em situação de aprendizagem permanente.
cia que fazem a diferença entre as empresas. As normas de custo e de qualida-
de tornam-se comparáveis graças à automatização, e é o investimento nas
competências que permite manter uma vantagem competitiva duradoura. Em "N. de T. INSEE: Institut National de la Statistique et des Études Éconorniques.
1991, o Conselho Econômico e Social confiava a Hubert Bouchet um estudo "51.de ' ICertificados que sancionam estudos de primeiro ciclo dos estudos secundários.
sobre "as alavancas imateriais da atividade econômica". ***
N. de T. BIPE: Bureau d'Infomations et de Prévisions Econorniques.
O desenvolvimento de um novo significado para as atividades de concep- competências. A parcela do "duron*tende a decrescer relativamente nas des-
ção não se limita mais à área acadêmica, mas tende a implicar os atores dos pesas de investimento das empresas. Os conhecimentos e as habilidades são
processos de produção e os fornecedores. Essa nova concepção levanta ques- uma fonte de valor agregado.
tões sobre o desenvolvimento e o domínio das competências coletivas. Peter Drucker toma posição sem hesitar: "Hoje em dia, o saber é o único
As conseqüências das diminuições maciças de efetivos (demissões, apo- recurso que conta. Os fatores de produção tradicionais, a terra (isto é, os re-
sentarias, etc.) revelaram os efeitos negativos de uma perda de conhecimentos cursos naturais), o trabalho e o capital não desapareceram, mas passaram
e de competências, principalmente por ocasião de incidentes, de contingênci- para o segundo plano. Pode-se consegui-los, e facilmente, desde que se tenha i'
I
as ou de problemas que o pessoal em exercício não sabia mais tratar. As, vezes, o saber. E o saber, nesse novo sentido, tornou-se uma utilidade econômica
é preciso ir atrás dos aposentados para que venham ajudar na solução de proble- como meio de obter resultados nas áreas econômica e social".
mas complexos que ninguém mais sabe resolver!! Em sua criação, em 1992, no Quebec, a fábrica de alumínio Lauralco
A consideração das competências deve ser introduzida desde o início das contava com 560 empregados, dos quais apenas 5 tinham experiência em alu-
estratégias de mudança e dos projetos, isto é,. desde o momento em que são mínio. Seis anos mais tarde, essa empresa batia todos os recordes de rentabi-
feitas as principais escolhas tecnológicas, operacionais, econômicas ou comer- lidade do Grupo Alurnax: a produtividade por empregado era 30% superior à
ciais. Os projetos de automatização que não vierem acompanhados de uma média do grupo, a quantidade de eletricidade consumida por tonelada de alu-
mudança correspondente das estruturas das qualificações terão grandes per- mínio era a mais baixa do mundo, o índice de acidentes de trabalho era três
das de competitividade: atrasos, custos de investimentos em materiais ultra- vezes menor do que a média quebequense, e a empresa tinha o certificado ISO
passados, período mais longo de formação, aumento dos efetivos (apelo a 14001 pela gestão de seu ambiente. Todos esses desempenhos não se devem
operários ou a técnicos de conservação ou de manutenção), elevação dos tem- ao acaso. A empresa apostou na construção das competências de seus empre-
pos de interrupção das máquinas, aumento dos estoques em curso, dificulda- gados, graças, principalmente, a uma formação intensiva de 100 horas de for-
des crescentes para diminuir os refugos, etc. mação por empregado e por ano nos últimos cinco anos; uma responsabilida-
A valorização e o desenvolvimento dos recursos humanos constituem va- de dos empregados:"" cada operador de equipe assume durante um ano uma
riáveis estratégicas de desenvolvimento, e não apenas variáveis de ajuste. Em missão, um "mandato" além de seu trabalho diário; controle da aplicação das
relação a concorrentes, como o Japão ou a Alemanha, a França deve recuperar normas sobre o meio ambiente, controle de produção, etc.
um considerável atraso no tratamento da "dimensão de competências" de seus O exemplo da Chrysler é significativo. Quando estava em plena crise, no
investimentos. A herança da teoria neoclássica da empresa foi pesada: os re- final dos anos 80, a direção decidiu remobilizar a empresa, dando pleno poder
cursos humanos figuravam nela apenas'como um custo de produção. Conside- às equipes e aceitando que assumissem riscos. Foi aprendendo a confiar nas
rados como um ativo entre outros, nenhuma especificidade ou autonomia lhes equipes e congregando esforços em um conjunto de melhorias (reestruturação
era reconhecida; o único verdadeiro recurso humano que contava era o em- da distribuição, racionalização das fabricações, aperfeiçoamento dos produ-
presário. Somente ele não era substituível; a totalidade do pessoal podia ser tos, etc.) que uma recuperação espetacular pôde produzir-se, e o ciclo de fa-
substituída no mercado. bricação de um novo carro, que era de 55 meses, em 1987, pôde ser reduzido
Ainda existe uma grande contradição entre o discurso oficial dos dirigen- a 26 meses 1 0 anos depois.
tes de empresas e a realidade de sua gestão. Embora a maioria dos dirigentes O exemplo da Motorola lembra o da Chrysler. Mais apegada a questão do
de empresas e dos chefes de pessoal julgue que a contribuição dos assalaria- "saber-fazer" do que aos produtos, a firma de Chicago soube desenvolver perma-
dos à realização dos desempenhos é mais determinante do que os fatores ma- nentemente novas atividades. Em uma entrevista ao jornal Les Échos, em 1997,
teriais ou financeiros, quantos dentre eles incluem um segmento de recursos Bob Galvin, que dirigiu a empresa durante 30 anos, a f i a que "para conseguir
humanos na constituição de seus dossiês de investimento, acompanhado de
um plano de formação? Mesmo que a maioria dos dirigentes de empresas
estime que o desenvolvimento das competências é uma prioridade, quantos
julgam indispensável a implantação de um controle da gestão social? Apenas *N. de R. Recursos tangíveis ou fatores de produção tradicionais.
*'N.de R. A questão de responsabilidade dos empregados remete à noção do autodesen-
uma minoria harmoniza sua política com o discurso sobre a prioridade dos volvimento, ou seja, o desenvolvimento de competências deve ser responsabilidade do
recursos humanos. A verdade, porém, é que essa minoria pode ter um efeito I
próprio indivíduo e não exclusivamente da chefia ou da empresa. No Brasil, algumas orga-
motivador. O investimento material só pode funcionar se for acompanhado ou nizações começam a repensar as competências com base no autodesenvolvimento apesar
até mesmo precedido de sólidos investimentos imateriais, em particular nas das dificuldades em romper com a visão tradicional e paternalista que tende a gerenciar
ou controlar o desenvolvimento das pessoas.
20 GUY LE BOTERF DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS 21

inovar, é preciso considerar a tomada de risco e o direito ao erro". Deve-se apostar permanente. O desempenho de uma empresa, de uma de suas unidades ou de
nas competênciasdo pessoal. A Motorola criou, para isso, sua própria universidade. um projeto depende do conjunt0,das microdecisões de ação tomadas pela com-
Estamos entrando em uma economia que exige uma nova concepção da petência de seus profissionais. E preciso saber enfrentar situações profissio- *

produtividade. Tal concepção tende a assumir a significação de "desempenho nais evolutivas e pouco definidas. Isso leva, evidentemente, a interrogar a dis-
global". A produtividade da mão-de-obra deve dar lugar à "produtividade glo- tinção clássica operada entre as noções de qualificação, de profissão, de em-
bal". Nessa concepção ampliada, a produtividade não pode mais se referir prego e de profissionalismo.
apenas à redução de custos. Se a inovação se encontra no coração da compe- A noção de qualificação remete a um julgamento oficial e legitimado, que
titividade, convém tanto criar valor quanto reduzir os custos. Esse ponto de reconhece em uma ou em várias pessoas capacidades requeridas para exercer
vista leva a considerar a empresa não mais como uma simples carteira de uma profissão, um emprego ou uma função. A aceitação social dos critérios de
negócios a gerir, mas como uma carteira de competêncic~sa valorizar e a desen- qualificação resulta de uma negociação e depende das relações de força exis-
volver. A noção de competência profissional passa a ser mais pertinente para tentes entre os parceiros sociais. A qualificação se reveste de um caráter con-
tratar das questões de confiabilidade de um sistema sociotécnico de produção venaonal. Quando a qualificação se reduz a diplomas de formação inicial, isso
do que a de tarefa, que corresponde melhor à segrnentação tayloriana dos não significa que a pessoa saiba agir com competência. Significa, antes, que
processos de trabalho. A empresa deverá consagrar-se a desenvolver o profis- ela dispõe de certos recursos com os quais pode construir competências.
sionalismo de seus assalariados mais do que se desgastar querendo vigiar ou Entretanto, não se deve opor qualificação e competência nem querer subs-
controlar a execução de suas tarefas. tituir a qualificação pelas competências. O desenvolvimento dos "recursos-
Sinal dos tempos: o prêmio McKinsey Award recompensou, em 1988, a competência" deve permitir o enriquecimento da noção de qualificação mais
obra A Empresa Viva (The living company), do professor Arie de Geus, que do que suprimi-la. Por que as competências construídas em situação de traba-
concluiu que as empresas perenes são e serão aquelas que valorizam os ho- lho não se inscreveriam em uma qualificação considerada evolutiva? Não se
mens, e não aquelas que buscam valorizar a curto prazo seu capital financeiro. deve buscar conjugar a necessidade de dispor de pontos de referência coleti- r
Quatro critérios caracterizam as empresas duradouras:' controle dos ris- vos e o reconhecimento das competências individuais? A qualificação é uma
cos financeiros, forte identidade, forte abertura à novidade, prioridade ao ho- construção social e resulta de negociações que levam a convenções coletivas e
mem. A otimização do capital é considerada por elas como "uma necessidade a sistemas de classificação.
complementar à otimização das pessoas". E interessante constatar que os A noção de profissão tem sua origem nas ordens profissionais em que o
McKinsey recompensam "trabalhos excepcionais que deveriam ter uma influên- profissional presta juramento (profes) de respeitar um conjunto de regras, dentre
cia maior sobre as ações dos dirigentes7'.Peter Lorange, presidente do Institut as quais a do segredo profissional, ou seja, não revelar informações que ele
du Management, de Lausanne, comentava assim esse prêmio no jornal Le Mon- tem o direito de possuir sobre seus clientes. Tal noção se refere às figuras
de, de 1 7 de fevereiro de 1998: '%credito que vai haver uma tomada de cons- típicas do médico, do tabelião, do advogado. Essa definição dizia respeito, na
ciência das empresas. Entretanto, não sei quando isso acontecerá, nem qual a Idade Média, aos saberes intelectuais. Desde então, estendeu-se sobretudo às
extensão dessa mudança. Mas prevejo uma morte rápida a todas as sociedades profissões liberais. Existe tradicionalmente uma relação estreita, na profissão,
que buscarem apenas uma valorização de seu capital financeiro". entre a ética e os saberes. A profissão é uma comunhão de valores e de vida.
Em um contexto de incerteza e de inovação permanentes, o empregador Instâncias legitimadas estabelecem regras e são encarregadas de velar por sua
compra menos uma força de trabalho do que competências ou do que um boa aplicação: a ordem dos médicos ou a dos arquitetos é uma ilustração disso.
potencial de competências. O profissional é habilitado a exercer atividades que outros não podem pôr em
prática. Para isso, ele obtém uma licença.
Pode-se, igualmente, levantar a hipótese de que a noção de profissão ten-
PROFISSIONAIS PARA ADMINISTRAR A COMPLEXIDADE de a se distinguir daquela de ofício pela relação de negociação comercial que
Confrontadas com a complexidade e com a incerteza, organizadas em ela supõe com um cliente.
estruturas heterogêneas e flexíveis, as empresas e as organizações devem dis- Exercer uma profissão supõe uma relação de serviço. Exercer um ofício
por de homens e de mulheres capazes de enfrentar o inédito e a mudança faz mais referência à operacionalização de um "saber-fazer" ou de uma espe-
cialização. Se a profissão supõe o ofício, a relação inversa nem sempre pode
ser afirmada. As "ordens" dos profissionais (ordem dos advogados, ordem dos
'N. de R.T. Para Arie de Geus, a empresa duradoura é aquela que parece anular o fluxo de médicos, etc.) produzem regulamentos e normas. Uma de suas finalidades
um no e, por isso, denomina-se "empresa no".
22 GUY LE BOTERF

essenciais é exatamente dar confiança aos clientes, que podem, então, confiar- bém a uma ética. O profissional dá um sentido à sua ação confrontan-
se a profissionais. do seus valores com a realidade das situações nas quais intervém. Ele
Exatamente como a profissão, o ofício refere-se a regras profissionais, saberá questionar-se. A ética é uma busca: ela é ponto de partida e
mas ele não comporta ordem. Referente, na Idade Média, aos saberes ma- está sempre além de um regimento. O profissional é capaz de uma
nuais, ele se estendeu desde então aos diversos tipos de saberes. Aquele que reflexão ética. Os valores, os compromissos, os princípios diretivos são
domina um ofício possui um conjunto de conhecimentos e habilidades especí- apenas um pretexto para essa reflexão. A conduta do profissional não
ficos, provados pela experiência. O conjunto dos saberes funda a identidade é ditada de antemão: sua orientação na vida diária está sempre se
profissional, e o futuro de quem domina um ofício se inscreve na perspectiva definindo. Os valores permanecem abstratos e não têm caráter opera-
de uma orientação profissional à qual ele aspira progredir. tório. Definidos prévia e independentemente de toda ação concreta,
Enquanto o ofício é independente de uma organização particular, o em- eles não permitem escolher entre diferentes alternativas. Estas resul-
prego resulta da organização e da divisão do trabalho. Saberes e competências tarão, de modo provisório, do confronto dos valores e da situação.
requeridos referem-se a um emprego, mas esse emprego é específico a uma - O profissional não possui somente um ofício, mas um certo nível de
organização particular (empresa, administração, coletividade territorial, asso- excelência no exercício desse ofício. Ele ultrapassou o estágio do novi-
ciação, etc.). Um ofício se encarna em empregos distintos. Do ponto de vista ço ou do iniciante, atingiu um grau suficiente de autonomia na condu-
das políticas nacionais do emprego, a referência aos ofícios constitui um ponto ção de suas atividades profissionais e'na gestão de situações comple-
de referência, um "terreno" para formular hipóteses previsionais que seria xas. Procurar um profissional é procurar um sujeito que alcançou um
impossível avançar seriamente no nível dos empregos. certo domínio do ofício, é referir-se a uma escala de exigência. Fazer a
No âmbito de seu Observatório dos Ofícios, a Renault define o ofício como apreciação "este mecânico é um profissional" significa distinguir o ofí-
"um campo de competências que pode reagrupar vários empregos e que se cio (mecânico) e seu nível de domínio (profissionalismo).
articula em torno de um produto ou de um processo no âmbito de uma orga- - O profissional se encontra na situação de definir sua identidade não
nização definida do trabalho". somente em relação a um campo de competências, mas também pelo
Desde o início dos anos 90, arreferência ao profissionalismo e ao profis- que é capaz de realizar.
sional tende a assumir a dianteira. E significativo que certas grandes empresas
tenham manifestado sua vontade de passar do planejamento e gestão de em- A identidade do profissional é construída em relação a um projeto, a um
pregos ao planejamento e gestão de competências. produto, a um resultado esperado ou a um serviço para um cliente. O profissio-
Uma nova aceitação desse termo parece estar surgindo: nal é solicitado a contribuir para processos interofícios, a não mais se limitar a
um posto de trabalho, mas intervir em processos e ser eficiente em intero-
- O profissional não pode mais definir sua identidade referindo-se uni- perações. As etapas de sua carreira não são fixadas de antemão: resultam dos
camente ao "saber-fazer" de um ofício. Ele deve mobilizar o conjunto percursos a definir progressivamente, dentro ou fora da empresa. Um excelen-
dos recursos de sua personalidade para encontrar uma solução para o te profissional, mesmo que tenha "sido instruído" em uma determinada em-
problema de seu cliente. O profissional se compromete a tudo fazer presa, saberá "vender-se" no mercado de trabalho graças ao conjunto de com-
petências que possui.

(I
para resolver um problema ou reagir a uma situação.
A esse respeito, gostaríamos de salientar que a economia das compe- O profissionalismo náo deve excluir a referência a um ofício de origem. O
tências não é a economia dos saberes nem a da informação. Cada indi- ofício é fonte de identidade. É uma comunidade de origem e de competências.
i víduo competente é único e não é intercambiável. Sua competência é O profissional se caracteriza por uma forte "empregabilidadey'.Possui a
! subjetiva e não pode ser informatizada. Ora, contrariamente às repre- dupla característica de dominar bem suas competências e de ter suficiente
sentações mais difundidas, não é na automatização que se dará a eco- recuo em relação a elas para poder adaptar-se a mudanças de empregos ou de
nomia de amanhã. Ela funcionará naquilo que Pierre Lévy chama de setores de atividade. Ele sabe "manter-se preparado" para estar pronto para
"o irredutível à automatização: ou seja, o laço social, o relacional", a mudar. A imagem dos esportistas, "mantém-se em forma para". Seu potencial
implicação subjetiva das pessoas. O profissionalismo e as competên- torna-o disponível para evoluir, para ser "reempregável" em outra empresa.
cias estão ligados às pessoas: jamais há total substituibilidade. A situação profissional constitui, portanto, o ponto de referência em rela-
- Diferentemente da noção teórica de profissão, o profissional não per- ção ao qual deve definir-se o profissionalismo. Mas o que se deve entender por
tence necessariamente a uma ordem. Entretanto, espera-se dele que situação profissional? E, mais especificamente, pela complexidade crescente
se refira não somente a uma moral (regras deontológicas), mas tam- que a caracteriza?
Uma situação profissional é constituída por um conjunto de missões, fun- Essas situações profissionais são situações profissionais "reais": corres-
ções e tarefas que o sujeito deve assegurar não somente em seu emprego, mas pendem a postos de trabalho efetivamente ocupados em um dado momento.
em relação com os outros atores, os outros empregos e a empresa ou organiza- É possível identificar, a partir da análise dessas situações profissionais re-
ção em seu conjunto. As tarefas profissionais requeridas não são necessaria- ais, uma cartografia de situações profissionais tipicas. Tais situações constituem
mente tarefas precisas, particulares, mas também papéis e funções almejados. famílias de situações profissionais reais próximas por suas missões e atividades
A adoção de uma abordagem sistêmica do ofício no grupo PECHINEY ("o ofí- e pelas competências que requerem. Essa cartografia permite determinar apriori
cio completo") possibilitou sair da lógica estreita de postos de trabalho. O as situações típicas no seio das quais uma pessoa pode exercer seu ofício.
operador deve ser capaz não apenas de efetuar as operações constitutivas de Um conjunto de situações profissionais típicas pode constituir um seg-
um posto, mas de intervir na gestão de processos recorrentes ou não-recorren- mento de evolução. A distinção das situações profissionais típicas deve favore-
tes (ou seja, projetos). Como o trabalho se reveste de um caráter cada vez mais cer as evoluções, e não levar à imobilização do indivíduo em uma divisão
coletivo, seu desempenho dependerá largamente de sua capacidade de se co- taylorista do trabalho.
municar e de cooperar. Sob o termo genérico de "requisito", serão designadas As situações profissionais típicas constituem "alvos" de competências re-
tanto as atividades prescritas quanto as atividades almejadas, mesmo não sen- queridos que as pessoas devem adquirir.
do designadas antecipadamente. As tarefas requeridas são as que devem ser Essa definição leva a distinguir o requesito e o prescrito: passou a ser
realizadas para que se alcance um objetivo, em condições dadas e com meios trivial a constatação de que o modelo de gestão taylorista tende a ser ultrapas-
determinados. O requisito se define como o que deve ser feito. sado, mesmo que numerosas empresas o conservem ou, às vezes, até mesmo
Uma situação profissional é um posto que estabelece correlações e é, tam- retornem a ele. Embora esse sistema tenha demonstrado sua eficácia no con-
bém, um posto em evolução: a situação profissional se modifica sob a infiuên- texto industrial do nascimento da grande indústria, revela-se inadaptado para
cia de fatores de evolução (tecnológicos, econômicos, organizacionais, evolu- ' o início do século XXI, visto que os critérios de desempenho e as condições de
ção das demandas dos clientes e parceiros, etc.). eficácia do trabalho mudaram.
Em uma empresa de química pesada, quando os procedimentos eram es-
O quadro a segiiir ilustra o conceito de situação profissional. sencialmente manuais, o operador devia efetuar operações correspondentes à
ordem das tarefas estabelecida pelo modo operacional. A experiência repetida
garantia sua competência. Aimplantação da automatização mudou radicalmente
Quadro 1.1 o que se espera do operador. Nessa nova situação, ele deve sobretudo tomar as
instalações fiáveis, evitar a deriva de um procedimento e realizar ações preven-
tivas. Sua competência supõe capacidade de análise e de diagnóstico, um bom
Seta simbolizando a
evolução do posto
conhecimento dos procedimentos e das aparelhagens, capacidades de interpre-
no tempo tação de informações e de tomada de decisões. Ele deve saber administrar uma
Seta simbolizando a evolução
situação complexa e agir conforme a situação. Os saberes a mobilizar são hete-
da carreira dos pesquisadores rogêneos: eletricidade, regulação, mecânica, sistema técnico utilizado.
engenheiros no tempo A escalada da complexidade dos problemas a tratar, o caráter incerto do
meio, as possibilidades oferecidas pelas novas tecnologias e pela organização
do trabalho, a evolução dos sistemas de valor e as aspirações dos indivíduos
levam ao questionamento da noção de posto de trabalho. A eficácia do traba-
lho supõe que o sujeito não se limite a executar as instruções transmitidas.
Espera-se que o trabalhador exerça sua qualificação para realizar um tra-
b A pessoa (o pesquisador-engenheiro)
balho; espera-se que o profissional operacionalize competências para adminis-
b O posto trar uma situação profissional.
b O meio (econ6mic0, social,
organizacional, etc.) com o qual
a pessoa e o posto se relacionam
O Le Boterf, Viallet A noção de "emprego-padrão" foi introduzida no início dos anos 1970
pelos pesquisadores do CEREQ (Centro de Estudos e de Pesquisas sobre as
Qualificações). Ela designa "o conjunto de situações de trabalho que apresen- pressos em diversas quantidades (quilogramas, toneladas, quilowatts,
tam suficientes características comuns para que um mesmo indivíduo delas se horas, etc.), efetivos, índices (de refugos, de acidentes de trabalho, de
ocupe". Essa definição revela um importante progresso em relação à noção de produtividade, de produtos de primeira qualidade, etc.,), prazos (de
posto de trabalho. Um emprego-padrão representa uma família de postos de entrega, de constituição de dossiês, de intervenção do serviço pós-
trabalho similares ou próximos por suas atividades ou pelas competências que venda, etc.). Poderão ser indicadores (exprimindo limiares) ou indí-
eles requerem. Tal definição tem seus limites justamente porque parte da no- cios de tendência (em alta, em estabilidade, em baixa).
Os critérios de êxito das atividades. Indica se a atividade foi correta-
ção de posto, mesmo que se trate de superá-la. Essa abordagem não responde
às necessidades das empresas que escolheram mudar radicalmente sua orga- mente realizada. Margens de tolerância poderão ser fixadas.
As condições nas quais devem ser alcançados os objetivos e realizadas as
nização de trabalho. Tomar como base de raciocínio o posto de trabalho é
reforçar a inércia da divisão do trabalho a ele associada. A busca de uma ade- atividades: condições organizacionais, técnicas, socioeconômicas,
quação estreita entre formação e posto de trabalho é superada em proveito de ambientais (ambiente sonoro, meios térmicos, restrições diversas, etc.),
uma identificação das competências operacionalizadas em ação. Esse é princi- temporais. Trata-se de condições que não concernem apenas ao posto
palmente o caso do novo ROME. de trabalho considerado isoladamente, mas que intervêm no conjunto
Podemos distinguir vários tipos de situações: da situação profissional ou em um processo.
Os meios ou recursos à disposição. Podem ser de ordens diferentes: ma-
As empresas ou os setores de empresa em que a divisão do trabalho teriais, humanos, financeiros, logísticos, temporais. O zelo exacerba-
permanece fortemente estruturada. Nesse caso, a noção clássica de do dos procedimentos pode ser paralisante. A autonomia e a margem
emprego-padrão (designando uma família de postos de trabalho) con- de manobra dos operadores tornam-se necessárias para que possam
tinua pertinente. A partir da análise dos postos, serão efetuados os completar, até mesmo corrigir, as obrigações prescritas. Dois níveis de-
. ' vem ser considerados no trabalho: o das obrigações explícitas e escri-
agrupamentos em famílias e, então, identificados os empregos-padrão.
As empresas ou os setpres de empresa cujas curvas de empregos estão tas e o das obrigações implícitas. Não pode haver exaustividade das
destinados a evoluir. E o caso das empresas de grande evolução e que tarefas prescritas. Os operadores devem verificar as informações rece-
fazem apelo a estruturas por projetos ou por missões. O emprego cor- bidas, avaliar os dados do contexto, reagir a eventualidades, reagir em
responde, então, mais a uma função ou a uma "situação profissional" situação perturbadora de trabalho, fazer diagnósticos, reagir às falhas
cujo conteúdo será ampla e progressivamente definido por seu titular, e às oscilações do processo de fabricação, tomar iniciativas, mudar
que pode ampliar as fronteiras de seu emprego e praticar novas ativi- procedimentos. Os métodos d e análise dos incidentes críticos
dades. Esses empregos "de geometria variável" se encontram nas or- (behavioral events) encontram aqui seu lugar: as competências serão
ganizações caracterizadas por sua flexibilidade. Há interação entre o identificadas em função dos incidentes aos quais o pessoal qualificado
homem e o emprego. O termo modelo "schumpeteriano" será às vezes da empresa terá ou não reagido.
utilizado em oposição ao modelo "taylorista", fazendo assim referên-
cia à capacidade do operador de modelar seu emprego. Serão então distinguidas:
As empresas ou os setores de empresa em que a organização dá lugar
a trabalhos coletivos e polivalentes que dispõem de uma margem apre- As tarefas explicitamente prescritivas, isto é, que correspondem às pres-
ciável de autonomia e têm a possibilidade de se auto-organizar. A situa- crições definidas por um grupo externo ao operador e que dizem res-
ção coletiva de trabalho não pode ser definida a partir de uma análise peito ao que deve ser feito. Elas figuram nos guias de utilização, nos
dos postos: estes não constituem mais uma unidade elementar de aná- manuais de instrução e nos manuais de procedimentos.
lise. Os membros do grupo revezam entre si um conjunto de missões, As tarefas esperadas, mas não explicitamente prescritas. Elas corres-
de atividades e de papéis. pondem a obrigações implícitas de produção e de resultado mais do
que a obrigações de procedimentos. Dizem mais respeito à definição
Se o requisito é definido como o que deve ser feito, é importante que das missões e dos papéis do que à das tarefas. Estão destinadas a assu-
sejam determinados: mir importância em contextos de trabalho em que é mais importante
saber tomar as iniciativas necessárias para assegurar a continuidade
Os critérios de desempenho do objetivo, da missão ou do papel almeja- da produção do que respeitar instruções.
dos. Parâmetros de exploração poderão ser utilizados. Eles serão ex-
Essa distinção é necessária pela complexidade crescente que caracteriza profissional. O grau de interdependência entre produtores e consumi-
as situações profissionais, marcadas pela irrupção do imprevisto e do factual, dores tende a crescer.
pela coexistência de lógicas de gestão diversas e às vezes contraditórias, pela
incerteza sobre seu futuro e pela instabilidade permanente que caracteriza O contexto das situações profissionais tende, pois, a se definir menos em
suas fronteiras. O operador deve realizar incessantemente atividades de equi- termos de conjuntura rotineira e mais em termos de conjunturafluida. Passa a
líbrio ou de arbitragem entre lógicas diferentes, decidir sobre sua compatibili- ser ilusão querer domesticar o imprevisível. As conjunturas fluidas se caracte-
dade e estabelecer acordos entre uma pluralidade de exigências ou de critérios rizam por situações complexas em que interferem múltiplas lógicas de atores,
(segurança das instalações, proteção das pessoas, produtividade, qualidade, em que se dá uma grande mobilidade do que está em jogo, nas quais os crité-
etc.). O saber agir reside na busca permanente de equilíbrio. A utilização com rios de definição dos problemas são instáveis e os confrontos atravessam as
engenhosidade dos recursos do entorno imediato e a experimentação não es- fronteiras habituais dos conflitos. Porém a complexidade se deve igualmente à
tão excluídos do agir profissional. flexibilidade permanente e à heterogeneidade da organização do trabalho. O
Quer trate-se da atividade prescritiva ou da competência requerida, ja- contexto das situações de trabalho continua evoluindo. As fusões em anda-
mais se poderá descrevê-la em termos exaustivos. Isso não seria, aliás, dese- mento, as liberações de atividades, as reorganizações, as redistribuições de
jável: a declinação analítica iria tornar-se logo inadministrável e poderia le- funções, as modelações das redes de exploração ou de distribuição influem
var à estagnação. permanentemente na configuração das situações profissionais. Estruturas pe-
Vários fatores contribuem para essa complexidade: riféricas flexíveis, sensíveis às oportunidades conjunturais, podem aproximar-
se dos "núcleos duros", que visam aos aumentos de produtividade por econo-
A intemacionalizaçáo crescente da economia. Afixação dos preços, a con- mia de escala. O gerenciamento comercial pode levar à necessidade da coexis-
corrência, as inovações, os processos de pesquisa-desenvolvimentonão tência de estruturas simples de comunicação formal com estruturas mais flexí-
podem mais ser apreendidos e tratados no universo protegido dos limi- veis, até mesmo efêmeras, cujas fronteiras são mais reativas aos acontecimen-
tes da empresa, do distrito empregador ou do horizonte nacional. tos. A organização de uma mesma empresa deve evoluir frequentemente a fim
O aparecimento de novas tecnologias da informação (informática, de se adaptar às mudanças de tecnologias e da koncorrência. As estruturas em
automação de escritórios). Elas contribuem para transformar os mo- pirâmides hierárquicas clássicas, em projetos transversais, em formas matriciais
dos de organização e de distribuição do trabalho. sucedem-se e às vezes coexistem.
O desenvolvimento de uma concorrência impiedosa e o aumento das Estruturas cruzadas correlacionam funções especializadas (marketing,
exigências do cliente. A evolução do quadro legislativo e regulamen- contabilidade, finanças, pesquisa-desenvolvimento) com grupos que têm pro-
tar (abertura bancária, desregulamentação, etc.), a tendência de au- jetos e atividades e cuja natureza e distribuição só podem ser transitórias. Essa
mento de oferta do mercado, a abertura do mercado europeu, a evo- complexidade e essas exigências permanentes de mudança tornam inelutáveis
lução da clientela, que dispõe de cada vez mais meios, e de uma e mesmo necessárias as margens de manobra entre o prescrito e a atividade
cultura que permite comparar os produtos e os serviços, concorrem real. A confiabilidade dos sistemas sociotécnicos supõe que o que é posto em
para um movimento acelerado de surgimento de novos produtos ou prática nem sempre corresponde ao que era preconizado.
Com efeito, pode-se constatar: ..
serviços que modificam os dados da concorrência; por isso a reati-
vidade das situações profissionais é mais solicitada. Aos produtos
padronizados e de longa duração sucedem produtos diversificados Variações da atividade real em relação à atividade requerida. O opera-
que se caracterizam por durações de vida curtas e componentes pa- dor raramente é passivo diante da atividade prescrita ou esperada.
dronizados. Colocar uma instalação em andamento quase nunca se reduz a pô-la
O desenvolvimento das interaçóes entre a empresa e seu entorno. A fron- em funcionamento. O mito do operador que apenas aperta um botão
teira que supostamente os distingue se torna vaga ou permeável. A está desaparecendo. Em um trabalho de digitação, as operadoras não
empresa precisa do desenvolvimento regional ou local e vice-versa. Os se limitam a copiar passivamente as informações dos documentos de
recursos mobilizáveis pela empresa não ficam circunscritos ao seu re- base. Competências são permanentemente acionadas para controlar e
cinto ou à organização que a delimita. Toda situação profissional sofre verificar a qualidade das informações, determinar e corrigir os erros
o contragolpe dessa evolução: as cadeias de atores aumentam, as coo- detectados, relacionar diversas informações, tomar decisões, tratar er-
perações põem em jogo ou em confronto lógicas que não são todas ros de compatibilidade lógica que o computador não detecta, etc.
vinculadas à empresa de origem e o cliente surge na própria situação
Essas "competências mascaradas" são operatórias, mas frequentemente prescrito e o real, também existem duas maneiras de reagir a isso. A variação
desconhecidas. Um trabalho monótono pode ser complexo. O trabalho de pura pode ser considerada negativamente: a avaliação levará, então, a medidas
execução não existe, visto que a variabilidade das situações acarreta, necessa- corretivas. É a filosofia da avaliação-controle. Ela também pode ser juigada
riamente, a superação da prescrição. Em graus diversos, o operador se apro- positivamepte: a avaliação consistirá em buscar o valor da interpretação do
pria das diretrizes e as interpreta. prescrito. E evidente que a segunda opção exige muito mais do que a primeira
Entre a atividade requerida e a atividade real instala-se a atividade re- em termos de gerenciamento, pois é mais simples controlar do que avaliar.
definida ... É a definição que o indivíduo estabelece para si no que tange à Com efeito, todo texto é suscetível de interpretação. Para Vincent
atividade a efetuar. Ela resulta de sua interpretação das missões e das ativida- Descombes, "nas ciências humanas, o dado se apresenta como um texto, e sua-
des em função de suas próprias representações. O preconizado (uma lista de aplicação como uma tradução ou uma interpretação no sentido exegético da
instruções, um programa informático, uma gama, um desenho técnico...) não é o palavra. Tendo o dado algo de textual, estamos em wha ciência hermenêutica".
utilizado. O trabalho redefinido é recomposto. Essa evolução da prescrição não deve levar ao. estabelecimento de um
Essa reapropriação do prescrito não significa, de saída, que se trate de quadro idealista das situações de trabalho emergentes. Do ponto de vista do
erros. A redefinição pode consistir em completar operações ou tarefas operador, elai certamente representam um "progresso", visto que ele pode
estabelecidas, em operacionalizar uma capacidade de iniciativa necessária para investir seus recursos mais na gestão de uma situação profissional do que na
afrontar os acontecimentos imprevisíveis. A margem de autonomia dos opera- execução limitada de um gesto ou de uma operação. Pode-se observar, simui-
-
dores permite encarar as incertezas. taneamente, a pressão crescente das restrições de tempo para fazer frente a
Em uma prescrição flexível, cabe ao operador construir seus próprios exigências, múltiplas e contraditórias. As tensões e os sofrimentos psíquicos
modos operatórios, que não são dados como em um dispositivo de procedi- não devem ser excluídos desse quadro.
mentos bem-padronizados.
Podem existir, então, variações da atividade redefinida em relação à ativi- O' Variações da atividade real em relação à atividade redefinida.
dade requerida. Pode ser uma variação compatível com os objetivos a atingir Elas não podem ser excluídas. Podem ser uma variação proveniente da
(Ooperador completa as atividades a realizar, toma as iniciativas pertinentes, irrupção de acontecimentos imprevistos, de uma diminuição da vigilância, de
escolhe uma estratégia apropriada às circunstâncias, etc.). Isso é frequente erros de interpretação ou de interações com o grupo de origem.
nas indústrias de transformação. A aplicação estrita dos procedimentos nem Em uma organização de geometria variável e centrada na qualidade total
sempre é eficaz. Um procedimento de formatação de um aparelho corre o a seMço do cliente, as competências não podem limitar-se à aplicação de
risco de sobrecarregar o usuário. A variação constatada pode ser inadequada instruç6es: a iniciativa e a responsabilidade são requeridas e caracterizam as
em relação aos resultados a alcançar (o operador deforma as instruções, inter- , novas exigências profissionais.
preta-as erroneamente, etc.) e pode também ultrapassar os limites de tolerân- A intervenção humana - saber agir e reagir - permanece essencial para
cia aceitáveis. Nesse caso, a deriva é fonte de disfunções. As diretrizes ou os encarar as eventualidades e as falhas. O mito da empresa em que apenas se
planos não são recebidos tais quais pelos operadores: são considerados como apertam botões, dispensando operários, parece ultrapassado. A "redundância-
um material a transformar e do qual são capazes de se apropriar mediante o humana" é necessária para enfrentar os defeitos e as contingências das insta-
exercício de uma análise crítica. Entre as atividades usuais e as prescrições há, lações, mesmo das mais aperfeiçoadas. A fragilidade dos sistemas técnicos é
com frequência, uma variação. O que é "recebido" é incorporado à estratégia tal que a falha de um elemento corre o risco de colocar em perigo a totalidade
dos atores que o modificam conforme sua interpretação. A empresa não pode do sistema, e a necessidade de reagir em tempo real põe em questão os proce-
funcionar sem esses ajustes, essas reordenações e essas improvisações. O re- dimentos tradicionais do controle hierárquico.
pertório das ações e das reações previsíveis estará sempre defasado em relação Apostar no profissionalismo se toma necessário para evitar perdas econô-
ao incerto e ao imprevisto. micas consideráveis: 10 minutos de interrupção na fábrica Gervais-Danone
Quanto mais detalhados são os procedimentos, menos capazes serão de em Saint-Just-Chaleyssin significam mil potes de iogurte perdidos; 1hora de
afrontar novos problemas. As margens de segurança que os operadores estabe- pausa em Sochaux são centenas de automóveis a menos. O crescimento da
lecem para si não devem ser interpretadas somente como a busca de tempo técnica aumenta a fragilidade do sistema socioeconômico. Tornando-se alta-
livre, mas como espaços potenciais de reação e de adaptação necessários. mente integrados, os sistemas técnicos passam a ser vulneráveis e, sendo mais
O prescrito é sempre lacunar. Jamais pode dar conta totalmente da reali- descentralizados, os sistemas organizacionais aumentam os riscos de disfunção
dade do trabalho. As atividades são sempre realizadas de maneira diferente do e de incoerência. A "transferência de poder" (empowerment) para os níveis
que haviam imaginado seus criadores. Se há sempre uma variação entre o
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS 33

periféricos da empresa supõe que a confiança seja amplamente considerada e funções indiretas (manutenção, conservação, qualidade, etc.) seja transfenda
garantida. A responsabilidade supõe o profissionalismo. Em L'impasse i n d u ~ ~ e l l e para os operários de produção.
(O Impasse Industrial), Granstedt escreve: "multiplicando as variáveis, tende- No caso de um projeto de automatização, várias relações podem ser evi-
se a acelerar o ritmo dos acontecimentos aos quais se deve responder... A par- denciadas entre a elevação necessária das competências e suas repercussões
tir de uma certa proposta de ferramentas integradas na aparelhagem total do sobre os modos operatórios, como por exemplo:
mundo, aparece um limiar além do qual as variáveis entram em sinergia e vão
aumentando de volume". Em junho de 1993, a pane dos circuitos informáticos
dos distribuidores bancários automáticos na França tornava inutilizáveis du-
rante 24 horas os 19 milhões de cartões de débito em uso, os cartões de crédi-
to. Se um robô pode ser considerado relativamente confiável, as dificuldades Quadro 1.2
aumentam com o acúmulo de vários robôs em uma linha de fabricação: a
ocorrência de uma disfunção é tanto mais frequente quanto maior for a linha. Conhecimento do -b Capacidade de -b Orientação mais rápida
Pode-se, aliás, observar um certo movimento de desrobotização. Na modo de ação das interpretar as panes. dos técnicos de
Renault, o índice de robotização, que atingia 98% para o automóvel R19 e máquinas. Redução do tempo manutenção.
para o Clio, passou a 82% para o Twingo e para 75% para o Laguna em San- de diagnóstico.
douvilie. Em contrapartida, assiste-se a um recurso crescente ao profissiona- Conhecimentos do -* Melhor domínio dos
lismo nessas linhas de produção. modo de transformação refugos na gestão
A automatização não significa a perda de competências. A era dos robôs , de materiais utilizados. (mais abstrata) da
não deve levar a crer que o desempenho não precisa das competências: os qualidade.
empregados devem compreender o funcionamento das novas máquinas para
Conhecimento do -b Ampliação da margem -b Diminuição dos
poder evitar as panes, diagnosticá-las e remediá-las. O profissionalismo é o conjunto do processo. de autonomia dos estoques de reserva.
melhor meio para evitar que as panes demorem muito tempo para ser resolvi- operadores sobre a
das. A confiabilidade dos robôs supõe uma profissionalização crescente dos cadeia: possibilidade
operadores, que se traduz por uma maior autonomia de sua parte. Suas capa- de decisão de
cidades de diagnóstico e de interpretação devem estar à altura das múltiplas interrupções parciais.
variáveis a seguir e da diversidade dos acontecimentos que podem sobrevir. O Le Boted
Com as tecnologias mais sofisticadas, os cosmonautas devem ser capazes de
intervir e de reagir com um altíssimo nível de competência.

A centralizafão de atividades metaoperacionais e meta$uncionais. Os efeitos econômicos do profissionalismo são, pois, consideráveis. Pode-
Esses tipos de atividades foram evidenciados pelos trabalhos de Falzon. se levantar a hipótese de que a empresa de sucesso será aquela que, na base de
As atividades metaoperacionais não visam à realização propriamente dita da seu projeto específico, souber atrair e desenvolver os melhores profissionais.
tarefa, mas contribuem para sua realização: deslocar-se ou falar com seus co- Em 1985, François Viallet, em um texto prospectivo, e com a compreensão das
laboradores pode auxiliar a reduzir o estresse ou a manter a vigilância, ou situações que o caracterizava, anunciou: "quando os negócios eram fáceis,
romper a monotonia darepetitividade, etc. As atividades metafuncionais con- quando a maioria dos bens faltava crucialmente, quando bastava produzir para
tribuem para conservar ou para desenvolver os saberes (confecção de cader- que a mercadoria fosse comprada, quando os estados podiam estabelecer
netas para registrar maneiras de fazer ou reescrever manuais de uso, reuniões monopólios quase inexpugnáveis, não se tinha compreendido a fragilidade
informaispara ampliar experiências, etc.). A perarnbulação observada por Taylor das empresas. Agora, está claro que uma empresa que não concentra o máxi-
nem sempre sena, portanto, uma atividade de vadiagem ... mo de seus investimentos nas pessoas que nela trabalham comete um grande
Quanto mais automatizada for a produção, maior a influência do investi- erro estratégico... Sem recorrer à inteligência de todos os membros da empre-
mento nos serviços e na inteligência sobre o valor agregado ao produto. Disso sa, sem desenvolver essa inteligência, a empresa ficará reduzida a utilizar ape-
resulta um aumento dos custos de produção e uma perda de competitividade nas aquela de seu escalão superior, que não bastará mais, que já não basta
nos mercados. A diminuição dos custos de produção supõe que uma parte das mais".
34 GUY LE BOTERF

O PROFISSIONALISMO COMO GARANTIA INDIVIDUAL profissional, aos trabalhos parcelares e não-qualificados. A organização do tra-
balho é indutora do grau de empregabilidade.
O profissional possui um wrpus de conhecimentos e habilidades reconhe- A ernpregabilidadenão passará de um termo na moda se um certo núme-
cido e valorizado no mercado de trabalho. Graças a esse reconhecimento, ele ro de condições não for reunido nas empresas. Desenvolver ou encorajar a
dispõe de uma vantagem para administrar a promoção interna ou sua mobili- ernpregabilidade supõe que se facilite a transversalidade, favorecendo a varie-
dade externa. Aquele que é ,reconhecido como um profissional competente dade das situações de aprendizagem, treinando para a reflexividade sobre as
possui uma identidade social que vai além do emprego que ocupa. práticas profissionais, recrutando não somente pela busca de competências
O emprego é, necessariamente, um "emprego doméstico". Está ligado similares, mas também pela capacidade de criar novas competências, tratando
às características específicas da empresa. Ele "vale" porque vale a empresa. a avaliação não como uma operação de controle, mas como uma oportunida-
Nem sempre ele solicita a totalidade dos corpora de saberes que o profissio- de para criar ciclos de aprendizagem. De uma maneira mais geral, o desenvol-
nal possui. vimento da ernpregabilidade supõe que as'questões de organização e de redu-
Em uma conjuntura econômica incerta e difícil, ser reconhecido pelo pro- ção do tempo de trabalho sejam tratadas simultaneamente.
fissionalismo se torna uma forma de garantia contra os riscos de mudança e, O tempo ganho com a redução do tempo de trabalho não deve ser consa-
um trunfo para administrar sua mobilidade social e, portanto, sua emprega- grado, ao menos em parte, ao desenvolvimento da ernpregabilidade?
bilidade. Encontra-se, aqui, uma outra razão para o apelo crescente à noção
de profissionalismo. De acordo com os trabalhos do INSEE sobre a mobilidade
profissional, um quarto dos 17 milhões de ativos na França tinha mudado, ao
menos uma vez, de empresa em cinco anos. No início dos anos 80, essa cifra
não passava de um quinto. Os jovens que ingressaram no mercado de trabalho
no final dos anos 90 provavelmente terão de mudar de ocupação de três a
cinco vezes ao longo de sua carreira. A responsabilidade de cada pessoa em
desenvolver sua ernpregabilidade se torna uma exigência crescente. A escala-
da do trabalho independente nas sociedades européias constitui uma explica-
ção para isso. Na Grã-Bretanha em 1998, 27% da população ativa estava sob
estatuto de self employment. Na Itália, ela é de 30%.
O que está em jogo é o que Francis Kramarz chama apropriadamente de
"espaço de validade das competências". Esse "espaço" varia ao longo da histó-
ria conforme os setores. Pode estar circunscrito ao uso de uma máquina ou de
um dispositivo técnico ("condutor de forno", "operário sobre máquina de co-
mando numérico", "secretária Word 3") ou a uma função ("agente comercial",
"responsável financeiro", etc.). Ele pode estar ligado a uma organização parti-
cular ("engenheiro da EDF [Eletricidade da França]", "empregado da Michelin") .
No caso do profissional, a competência faz parte de sua pessoa. O espaço de
validade tende a coincidir com o potencial profissional pessoal e a definir,
assim, a possibilidade de ernpregabilidade.
A ernpregabilidade não se reduz à adaptabilidade a um posto de traba-
lho. Ela se define menos em relação a um emprego determinado do que em
relação à capacidade interna que a pessoa tem para construir competências
pertinentes em relação a novos empregos. Isso não significa que a empregabi-
lidade seja responsabilidade apenas da pessoa. A organização na qual ela se situa
e age deve, igualmente, favorecer essa empregabilidade.
A baixa empregabilidade que caracteriza os empregados das empresas
tayloristas se deve, em grande parte, à execução repetitiva, à duração da vida
Saber Administrar uma Situação
Profissional Complexa

O que é um profissional? Por meio de que se reconhece o profissionalismo


de uma pessoa? De que ele é constituído? Existem traços comuns aos profis-
sionais das diversas especialidades? O que há de comparável entre o pro-
fissionalismo de um agente comercial e o de um fabricante?
Tentemos uma resposta comum a essas múltiplas questões: o profissional
é aquele que sabe administrar uma situação profissional complexa. A definição é
curta e merece ser desenvolvida. Em todo caso, está longe de ser neutra e
acarreta conseqüências práticas que não podem ser negligenciadas.
..
SABER ADMINISTRAR A COMPLEXIDADE

Diante do aumento da complexidade nas situações profissionais - que


acabamos de lembrar -, o que se pede ao profissional é que ele saiba adminis-
trar tal complexidade. Quantas vezes a expressão "cabe a mim, agora, admi-
nistrar essa situação" não é ouvida nas empresas! Não se pede mais ao opera-
dor que faça consertos, mas que saiba "administrar panes", acontecimentos,
contigências e processos. O operador não sabe de antemão o que é preciso
fazer e de que maneira fazer. Ele deve criar, reconstruir e inovar. Ele deve
compor na hora e no próprio local o que é preciso decidir, e não apelar para
uma combinação preestabelecida. Ele está centrado na "administração" das
operações e das interoperações. O trabalhador se definia em relação ao traba-
lho e às tarefas a realizar. O profissional se define mais pela atividade de "ad- negociar e arbitrar, fazer escolhas, assumir riscos, reagir a contingências, a
ministrar". panes ou a avarias, inovar no dia-a-dia e assumir responsabilidades. O saber
Com Amalberti, distinguiremos as noções de "complexidade" e de "difi- agir não consiste somente em saber tratar um incidente, mas, igualmente, em
culdade". A complexidade remete às características objetivas de uma situação saber antecipá-lo. O profissional sabe estimar a rapidez de deterioração de um

I ou de um problema. O nível de complexidade se impõe aos sujeitos. A dificul-


dade se refere às capacidades do sujeito para enfrentar uma situação, que
estará relacionada com os recursos de que dispõe um sujeito e com sua capa-
cidade de mobilizá-los em ações pertinentes.
A emergência e a difusão desse vocabulário são significativas. Não se
conjunto de indicadores e prever suas conseqüências. Pede-se que tenha as
competências outrora reservadas ao empresário. O profissional não é aquele
que sabe empreender?
Essa capacidade de adaptação a situações inconstantes e complexas, a
meios turbulentos e ao inédito resgata o que os gregos chamam de métis. Marcel
trata, é claro, de gestão administrativa ou financeira. O termo se refere mais à Detieme e Jean-Pierre Vernant analisaram isso muito bem em sua obra Les
pilotagem ou à navegação. Pede-se ao profissional que saiba navegar na comple- ruses de l'intelligence, la métis des grecs (As artimanhas da inteligência, métis
xidade. Estando estabelecida uma "meta" (missão, resultado almejado, objeti- dos gregos). Essa inteligência utiliza mais a artimanha do que a força. A ima-
VOS,etc.) e "regras de navegação" (eficiência, qualidade total, desempenho gem do piloto que guia sua embarcação na tempestade, a métis sabe que o
global, etc.), resta-lhe saber "navegar de um a outro" (elaborar e conduzir um caminho mais curto frequentemente é o desvio, e não a linha reta. Caracteri-
projeto), levando em conta o campo de forças e as imposições diversas e, às za-se pela vivacidade e pela acuidade. A escuta, sabe detectar a tempo os si-
vezes, opostas que constituem a complexidade. O profissional sabe navegar nais precursores e reagir a eles na hora certa sem se deixar levar, entretanto,
mais em função de balizas do que executar um plano preestabelecido. De nada pelas facilidades da impulsividade. Além disso, é guiada pela precisão da ob-
adianta obstinar-se em uma linha reta, enfrentando ventos contrários. O pro- semação (eustochia).
fissional é um bom navegador. Essa pilotagem ou "administração" deve inven- A métis sabe adaptar-se permanentemente, modificar seus modos de agir,
tar o caminho a traçar e a seguir. Cada etapa cria uma nova situação, que mover-se em função dos movimentos e dos contextos. Ela sabe aproveitar as
requer uma avaliação para que se comece um novo percurso. Se algumas se- ocasiões. Segundo a tradição grega, três tipos de homem devem saber encarnar
quências podem ser deixadas ao piloto automático, outias necessitam a reto- essa inteligência prática e astuciosa: o piloto, o médico e o sofista. Os três
mada dos comandos e a iniciativa. devem brilhar na arte de conjecturar (tekrnairesthai), isto é, saber adivinhar e
I
Esse saber administrar pode ser declinado como segue: abrir um caminho por meio de balizas, mantendo, ao mesmo tempo, os olhos
fixados no objetivo a alcançar. Esse "conhecimento oblíquo", esse "saber
saber agir com pertinência; conjecturai" convém tanto ao piloto, que segura o leme de direção, ao médico,
saber mobilizar saberes e conhecimentos em um contexto profissional; que ausculta sintomas proteiformes, como ao sofista, mergulhado no fervor da
saber integrar ou combinar saberes múltiplos e heterogêneos; discussão.
saber transpor; O e "o homem d a situação". Ele sabe não apenas escolher,
saber aprender e aprender a aprender; mas sabe escolher na urgência, na instabilidade e na efemeridade. Esse enfrenta-
saber envolver-se. .. mento das situações imprevistas e indeterminadas supõe a regularidade. O
profissionalismo se prova na operacionalização regular e não-acidental. O
mesmo acontece com a incompetência. Não é porque uma pessoa fracassa
excepcionalmente que pode ser taxada de incompetente.
Assim como as demandas são necessárias, o requerente pode ser nefasto.
O saber agir não se reduz ao savoir-faire ou ao saber operar. O profissio- Quantas empresas começam a afrouxar a qualidade depois de receberem um
nal deve não somente saber executar o que é prescrito, mas deve saber ir além certificado! Os procedimentos não podem prever todas as variedades das situ-
do prescrito. Se a competência se revela mais no saber agir do que no "saber- ações de trabalho. A complexidade crescente dos sistemas integrados torna
fazer", é porque ela existe verdadeiramente quando sabe encarar o aconteci- ilusórias as "panes zero", quando se deveria esperar por uma multiplicação
mento, o imprevisto. Em última análise, não é necessário ser competente maior destas. Yves Lasfargues resumiu isso muito bem: "passamos de uma
para executar o que é prescrito, para aplicar o que é conhecido. O "saber- civilização da pena à civilização da pane". O profissional deve saber enfrentar
fazer" referente à execução não é senão o grau mais elementar da competên- a vulnerabilidade e a fragilidade. A fiabilidade ou a qualidade dependem for-
cia. Diante dos imprevistos e das contingências, diante da complexidade dos temente das competências do profissional, de sua capacidade para operacio-
sistemas e das lógicas de ação, o profissional sabe tomar iniciativas e decisões, nalizar objetivos e de sua faculdade de antecipação e de reação. Elas podem
definir "papéis" ou fixar limites, mas não poderiam inventariar com precisão Em um canteiro de obras, o profissional da construção civil sabe ad-
todas as precauções a prever todas as possibilidades de acontecimentos. O ministrar permanentemente eventualidades. Quanto mais as adminis-
prescrito é preenchido por enunciados lacunares. A análise dos procedimentos tra, mais é valorizado. Um canteiro de obras onde nada acontece é um
mostra que eles levam pouco em consideração as especificidades "humanas" canteiro sombrio.
(clima social, relações de confiança, temores, suspeitas, etc.) que são o dia-a- Após ter examinado um indivíduo de acordo com vános registros de
dia do trabalho. Se o procedimento pode reduzir a incerteza, não poderia su- exploração, o médico deve saber concluir seu diagnóstico assumindo
primi-la. A variabilidade das instalações industriais torna dificilmente previsí- o risco de um julgamento. Mesmo que possa apoiar-se em um sistema
veis a frequência de aparecimento e a forma de um evento. Este depende de de balizas codificadas (protocolos, pistas epidemiológicas, itens de
microvariações (desgaste de instrumentos, obstrução, desregulação das má- exame médico, quadros clínicos, quadros nosográficos, etc.), ele deve
quinas, microfugas, higrometria, contingências climáticas, índice de absen- envolver-se de modo pessoal.
teísmo, atraso das equipes notumas, etc.) que fazem a singularidade da situa- Em uma oficina de carroceria de automóveis, a automatização de ope-
ção. É mais o saber inovar do que o saber que se tornou rotina que caracteriza o rações cognitivas complexas vai multiplicar as causas de disfunções,
profissional. Não se pede a ele que se limite a executar modos operatórios que as panes e as contingências. A parcela de tarefas prescritas tende a
correspondem às gamas de métodos. Ele deve saber tomar iniciativas para diminuir em proveito do engajamento subjetivo dos operadores, que
antecipar e resolver disfunções, e isso em tempo oportuno para evitar a sus- ' deverão arbitrar e decidir.
pensão das instalações. Pede-se a ele que participe da documentação O piloto de avião se acha confrontado com situações que apresentam
concernente às panes ou aos incidentes para torná-los fiáveis. Adam Smith, graus diversos de complexidade. Em regime de cruzeiro, ele se limi-
que enumera as 18 operações necessárias para fazer um alfinete, provavel- ta ao controle dos parâmetros de v60 (velocidade, altura, direção,
mente não representa o futuro dos sistemas sociotécnicos! etc.), cuja variação geralmente é pequena. A administração do v60
O profissional sabe administrar uma situação profissional não somente se efetua por meio de check-Zist. Em situação de aproximação, a par-
em contexto normal, mas também em contexto excepcional, deteriorado e de cela de saber agir e reagir aumenta. A medida que o avião se aproxi-
crise. Saber agir é saber interpretar. As atividades do profissional não poderiam ma, o piloto deve agir sobre os parâmetros que evoluem rapidamen-
ser automatizadas, pois sua competência é reconhecida por sua inteligência te e se comunicar imediata e rapidamente com os controladores. Es-
prática das situações, por sua capacidade não somente de fazer, mas de com- ses dois tipos de situações são comparáveis aos contextos de situa-
preender. ção de controle dos processos e das mudanças rápidas em uma uni-
O saber agir é o "saber o quefazer''. Em situaçõesinauditas, no decorrer de dade de produção.
atividades de concepção nas quais o resultado esperado não é conhecido de Uma cirurgia tão delicada quanto a cardíaca vai supor uma operacio-
antemão e o caminho a seguir não é predefinido, o profissional sabe reconhe- nalização de procedimentos dos modos operatórios. A equipe cirúrgi-
cer o que é preciso fazer, para onde deve dirigir sua ação. Ele sabe desenvolver ca deverá, entretanto, estar pronta para enfrentar o inesperado que o
atos pertinentes, isto é, atos capazes de influenciar a resolução dos problemas "caso" particular de um paciente sempre representa. Essa formalização
a tratar ou a realização da atividade a executar: atos que fazem sentido. visa, na verdade, a gerar tempo livre, a criar margens de manobra
Essa singularidade da resposta é característica do ser vivo. Deve-se reler para enfrentar o imprevisto. A padronização busca, aqui, a produção
Ganguilhem: "o homem pode dar várias soluções a um problema criado pelo de disponibilidade para intervir.
meio. O meio propõe sem jamais impor uma solução". Na Renault, o plano de profissionalização "optim'hommes" ["optimy-
A competência é uma disposição para agir de modo pertinente em rela- homens"], lançado no âmbito do acordo social assinado em 1989 pela
ção a uma situação específica. direção e pelos sindicatos, levou os operadores a se tornarem capazes
Tomemos alguns exemplos precisos que revelam a administração da com- de tomar a iniciativa de chamar seus fornecedores quando faltava uma
plexidade: peça em um posto, em vez de fazer as encomendas de escalão em
escalão.
O cobrador da rede ferroviária, se for um bom profissional, deve Um agente de serviço administrativo deverá, com bastante frequên-
saber arbitrar entre uma lógica repressiva e uma lógica comercial. cia, arbitrar entre as Iógicas regulamentares, as Iógicas de produtivi-
Ele deve envolver-se em escolhas a fazer. Pede-se a ele que saiba dade (número de relatórios a processar) e as lógicas de qualidade de
julgar como passar de um registro a outro e qual o momento oportu- serviço aos clientes.
no para fazê-lo.
Em uma linha de embalagem, as contingências são permanentes, e os Os critérios de "especificafóes".São as características das atividades e dos
incidentes ditos "normais" ocorrem com freqiiênaa. Os operadores de- produtos que são esperadas pelos clientes (especificidades técnicas do
vem tomar decisões de regulação, de religação e de apoio. Devem fazer produto, especificidades relacionais, garantia de qualidade, etc.).
escolhas e proceder a ajustes. Nessa linha, o profissionalismo dos opera-
dores vai bem além do domínio operatório das máquinas. O condutor Inspirando-nos nos trabalhos de Nicolet (1990) sobre a confiabilidade
de uma instalação robotizada é levado a exercer compromissos, arbi- dos sistemas complexos, teremos o quadro seguinte:
trando entre os imperativos de produção, as exigências de qualidade e
as normas de segurança. Ele deve navegar entre os critérios de reatividade
(reduzir os lotes para responder à demanda) e os de produtividade (es- Quadro 2.1
tender os lotes para reduzir o tempo de carregamento).
Para enfrentar as múltiplas eventualidades possíveis - não-qualida-
Domlnio das
de dos metais, desgaste das ferramentas, anomalias de temperatura, especificações
falha dos captadores, quebra de ferramentas, obstrução da circula- Domínio
ção... -, os operadores ou reguladores devem corrigir permanente- do prescrito
mente o algoritmo teórico. Eles apelam para procedimentos mais fle-
xíveis, menos restritivos, mas mais eficazes. Isso não poder ser uma
mera vigilância passiva.
A profissão de professor evolui para uma profissionalização certa. A
lei de orientação do sistema educacional francês, de julho de 1989,
buscou implantar uma verdadeira formação profissional do ensino por
meio dos Institutos Universitários de Formação dos Professores. O re-
latório Bancel, do mesmo ano, preconiza claramente uma "profissio-
nalização" do professor, que não se define mais em relação a uma
simples difusão do conhecimento, mas como tendo de administrar si-
Fonte: segundo Nicolet (1990)
tuações complexas de aprendizagem: o professor deve tornar-se um O Le Boterf
profissional capaz de refletir sobre suas práticas, de resolver proble-
mas, de escolher e de elaborar estratégias pedagógicas.

De uma maneira mais geral, o profissional deve saber administrar dois


tipos de critérios para operacionalizar práticas profissionais aceitáveis: As variações aceitáveis das atividades e dos produtos ficarão situadas na
zona comum de interseção do prescrito e do especificado. Os desempenhos
O critério das ~rescrifões"que dizem respeito ao referencialprofissional que correspondem ao domínio presente, mas não-especificado, são aqueles
da ocupafão. Ele delimita o domínio dentro do qual a realização das que satisfazem às normas intrínsecas da profissão ou às exigências do instru-
atividades e dos desempenhos é aceitável do ponto de vista da espe- mento, mas que "esquecem" o cliente. Qualquer um de nós encontra facilrnen-
cialização da ocupação: normas de segurança, respeito às exigências te exemplos de belos objetos técnicos que são subutilizados ou não-utilizados
profissionais da ocupação, exigência do instrumento. O prestador de por falta de uma adaptação à demanda da clientela potencial. Os desempe-
serviços pode beneficiar-se de uma "renda informacional" diante do nhos que satisfizerem as especificações, mas que se situarem fora das normas
comprador. E o caso do advogado ou do pesquisador, cujas atividades prescritas, farão os clientes correr, por vezes, riscos graves. Os clientes podem
podem ser totalmente observadas pelo cliente. Os critérios de qualida- considerar como apropriado um produto, um serviço ou um equipamento,
de da prestação são variáveis, e seu grau de previsibilidade depende mas correm o risco de sofrer seus inconvenientes ou seus perigo. A zona de
daquele contexto: não se pode especificar de antemão tudo o que o aceitabilidade nem sempre é fácil de delimitar e de'adrninistrar. E o caso das
advogado deverá fazer. situações de prestações de serviços caracterizadas por uma "assimetria de in-
formação" (advogado, conselho, etc.) .
44 GUY LE BOTERF

Os casos anteriormente apresentados apelam para um certo número de rentemente do leigo ou do novato, que se reportaria às referências mais co-
componentes essenciais do saber agir com pertinência. Eis os principais: muns, o perito saberá navegar entre a lógica do dispositivo de investigação e
Saber agir com pertinência supõe "saber julgar". Fazer um julgamento de aquela que tange à configuração ou à topologia própria do objeto ou do terre-
uma situação, um objeto ou uma pessoa depende da iniciativa e, portanto, do no. É nesse entremeio que se exprime e se reconhece a perícia.
risco. O julgamento raramente está na ponta do algoritmo. Ele supõe u m salto Realizar atos pertinentes é realizar atos que tenham um sentido em rela-
na interpretação. O caso dos peritos que têm de fazer julgamentos de autenti- ção àquele que os projeta e que sejam suscetíveis de ter efeitos sobre o contex-
cidade é particularmente interessante de estudar. Quer trate-se dos leiloeiros, to que convém modificar. A pertinência se traduz, aqui, em saber o que fazer.
dos historiadores da arte, dos arqueólogos ou dos agentes de alfândega, todos Um ato não é uma simples operação. O computador opera, mas não age. Todo
têm de decidir entre o verdadeiro e o falso. Christian Bessy e Francis Chateau- ato supõe um objetivo, que não existe como tal senão por meio do sentido que
raynaud desenvolveram um modelo muito esclarecedor sobre o processo de íhe dá o sujeito agente. Existem atos gratuitos fora dos personagens dos ro-
perícia desses profissionais. Como fazem para autenticar um objeto com O mances de Gide? Realizar um ato é dar provas de intencionalidade. Por essa
máximo de certeza possível? Como agem diante de falsários ou falsificadores razão, seria necessário distinguir o ato das diversas "sequências de atos" que
a quem se deve reconhecer o título de... profissionais? constituem sua textura. Recarregar uma bateria de acumuladores, mudar uma
A analogia entre o alpinista e o perito é esclarecedora. Diante de uma peça, colar um selo em uma carta ou fechar uma comporta são "átomos de
parede determinada, o alpinista deve saber efetuar as preensões apropriadas. atos" que só assumem sentido na série à qual estão integrados.
Estas não preexistem em suas representações (cada fachada é singular) e não Retomemos o quadro proposto por A. Moles e R. Rohmer:
aparecem assim na parede, que não contém senão saliências, asperezas que
constituem dobras ou recantos e podem ou não dar lugar a preensões e a seu
encadeamento. A preensão emerge do comprometimento pessoal do alpinista Quadro 2.2
que confronta seus pontos de referência ou suas representações às dobras con-
cretas da parede a escalar. A preensão é uma resultante: não está nem total-
mente do lado do sistema de representação do alpinista (lá onde preexistiria),
nem exclusivamente do lado da parede (onde suas escolhas sucessivas seriam
traçadas de antemão).
Exatamente como o alpinista, o leiloeiro elabora preensões. Estes consti-
tuem uma articulação entre pontos de referência previamente existentes e
"dobras" que percorrem os materiais ou os objetos. A competência do leiloeiro
é a do "saber tomar", do saber "apreender". E interessante observar que, em
Drouot, bem como nos serviços da alfândega, o perito não pode contentar-se
com referências fornecidas pelos corpora de conhecimentos formais (defini-
ções convencionais, marcas, etiquetas, milésimos, etc.). Não íhe bastam as
coleções de objetos preexistentes, nem as redes de compradores que permitem
resgatar o traçado ou as origens de um objeto, nem as medidas provenientes
da instrumentação cada vez mais sofisticada dos testes físicos (carbono 14,
microscópio eletrônico, etc.).
A prova sensorial, a do "corpo a cypo", do comprometimento pessoal é Macroação Receber o Fazer uma Construir u m Fazer u m
decisiva no confronto com o falsário. E ela que torna possível a "postura de Presidente da contabilidade carro quadro
compreens?~"que permitirá ao perito desempenhar plenamente seu papel de Nação para
mediação. E reunindo, recortando e combinando essas fontes múltiplas de jantar
informações que o perito fará emergir as preensões sobre as quais se baseará o
julgamento de perícia. Ojulgamento do perito é uma "arte da preensão". Dife- Fonte: Moles e Rohmer 1977 O Le Boterf
Essa categorização das ações é interessante, pois levanta a questão: o que tência se expresse em um continuum de atos. Sua compreensão supõe superar
é "fazer um ato significativo?". Da microação ("dar uma volta em um parafu- a digitalização de suas sequências ou de seus elementos constitutivos.
so,') à macroação ("construir um carro"), o ato é significante quando se insere A ação é, portanto, diferente do comportamento pelo fato de que ela tem
em uma estrutura (um projeto, um objetivo, etc.) que lhe dá sentido. Com uma significação para o sujeito. O comportamento se reduz a uma série de
certeza, é importante fixar um limite para a decomposição das ações para movimentos observáveis, de atos motores. A competência é uma ação ou um
evitar o risco de entrar no domínio da física ou da biologia ("deglutir" é O conjunto de ações finalizado sobre uma utilidade, sobre uma finalidade que
limite extremo). tem um sentido para o profissional. Há várias condutas possíveis para resolver
Talvez a ação-limite seja aquela abaixo da qual o sujeito não pode mais com competência um problema,,e não u m único comportamento observável de-
descrever como faz para realizá-la. Estudando o trabalho de escritório, Sebillote signado como objetivo unívoco. E uma totalidade dinâmica (um continuum que
identificou assim ações tais como: datilografar, buscar, guardar, etc., que po- . só é perceptível por um observador externo), um "curso de ação" que pode,
dem ser consideradas como "primitivas". São ações cuja realização é composta segundo Pinsky, "ser contado e comentado pelo operadory',isto é, "significativo"
de movimentos e de micromovimentos que não podem ser comandados sepa- para ele. Tomemos o caso de um padioleiro em um hospital. Uma de suas
radamente: o conjunto da ação é considerado uma unidade. tarefas é transferir o paciente para o bloco operatório. Mas ele vai reinterpretar
O ato mínimo é um gesto significativo, e não um simples movimento. isso dando-lhe um sentido: fazer com que o paciente sorria e não fique angus-
Fazer sem agir é operacionalizar uma técnica, ou realizar um movimento sem tiado. Isso dá um valor, um sentido ao que ele faz. '
projetar seu sentido e os encadeamentos que ele supõe. "Encaixar a ferramen- Notemos que o saber agir significa às vezes não agir. Talvez fosse melhor
ta na broca" só tem sentido para construir um carro, o que supõe que haja falar de saber reagir. Uma boa reação pode ser, algumas vezes, a não-interven-
coordenação com o ato de "Fazer um furo rosqueado", o que só faz sentido ção. E o caso do não-desencadeamento de um procedimento de recuperação,
para montar um motor. se a causa do desvio constatado é diagnosticada apenas como transitória. Por-
O agir profissional estabelece uma coordenação de atos interdependen- tadora de significações, a ação abre o caminho ao virtual, e não somente ao
tes uns dos outros. A competência exige saber coordenar operações, e não so- possível. Contrariamente ao possível que é dedutivel, o virtual não pode ser
mente aplicá-las isoladamente. Sabe-seque alguns doentes mentais com apraxia previsto: só é identificável a posteriori. As melhores hipóteses são as menos
são capazes de realizar atos isolados sem poder coordená-los. O profissional prováveis.
competente não poderia sofrer de apraxia: ele sabe coordenar sequências de Uma atividade que não tivesse sentido induziria provavelmente um "cus-
atos com vistas a um objetivo que tenha sentido. Saber fazer não é um sinôni- to subjetivo" muito grande para que o sujeito a operacionalizasse. A desarticu-
mo de saber agir. lação entre o objetivo perseguido e as variáveis que motivam o sujeito é uma
Encontra-se essa abordagem da competência como coordenação em Yvon fonte geradora de estresse, de incômodo, de cansaço e de problemas compor-
Minvielle quando ele a assemelha a um "gesto profissional", entendido como tamentais diversos. O agir profissional supõe uma certa vontade.
uma coordenação de sequências de atividades. Intermediário entre os saberes Nem todas as situações de decisão são situações de resolução de proble-
e os resultados, o gesto profissional "medeia a competência e lhe permite che- mas. Portanto, o profissional deve não resolver, mas decidir, e isso em função
gar ao desempenho7'.Esse ponto de vista é igualmente próximo daquele de G. de múltiplos imponderáveis, inexprimíveis, intenções ou pulsões, etc. Isso, o
Vergnaud, para quem a competência é uma "totalidade dinâmica funcional" computador não sabe fazer.
.
que articulavários elementos (objetivos, regras de ação, invariantes operatóri- A competência se personificará, então, em práticas profissionais que te-
as, inferênci? em situação) finalizados em uma classe dada de situações ou de rão um impacto sobre os desempenhos realizados.
problemas. E "uma organização invariante da conduta para uma classe dada Na linha dos trabalhos de Hoc (1987) e de Richard (1990), distinguir-se-
de situação". ão dois grandes tipos de práticas profissionais:
A competência supõe a apreensão de um continuum que dá um sentido à As práticas profissionais de execução. Consistem em operacionalizar di-
sucessão dos atos. Yves Barel evidenciou como a "digitalização" de um retamente procedimentos particulares que foram memorizados e que se apli-
continuum faz desaparecer seu conteúdo. Ele toma o exemplo de um desfile cam sem modificação a um contexto d e trabalho específico (que poderão ser
passando diante de nossa janela. Nosso olho digitaliza o desfile. Para que o designados como práticas de execução automatizadas ou rotineiras), ou em
sentido dessas imagens fragmentadas - ou seja, a mensagem de um desfile - adotar procedimentos existentes (vamos chamá-los de práticas de execução
se manifeste, é necessário que intervenha uma metamensagem que indique: não-automatizadas). As atividades rotineiras não são reflexos inatos, mas são
"Isso não é o que parece ser". Isso supõe um "integrador" superior que dá um adquiridas ao termo de uma longa aprendizagem. São executadas mais por
sentido, que permite ver uma parte como uma totalidade para que a compe-
peritos do que por iniciantes. As atividades de execução não-automatizadas (saberes, habilidade) e um recurso objetivado (máquinas, documentos, ban-
são dirigidas por regras. Supõem a mediação de uma representação cognitiva cos de dados). São esses recursos que o profissional mobiliza.
e implicam um processo de operacionalização dos conhecimentos memoriza- Não é porque se passou em um teste de soldagem que se sabe soldar. Há
dos. Elas apelam para regras operatórias que podem ser ou heuristicas (regras um limite para a noção de aptidão. Certas pessoas podem saber mobilizar
gerais que podem aplicar-se a vários tipos de situações), ou esquemas proce- conhecimentos em um contexto que lhes é familiar, no qual se sentem segu-
dimentais (que se aplicam a contextos específicos). ras; elas não poderão fazê-lo em um contexto de estresse. Um estudo realiza-
do com jovens brasileiros evidenciou que 98% deles resolviam seus problemas
As práticas profissionais de resolupío de problemas. Elas não podem ape- de matemática em um contexto familiar e que somente 37% resolviam em um
lar a procedimentos memorizados capazes de ser aplicados ou adaptados. Es- contexto escolar (Carramer, 1985).
tes ou não existem. ou fracassaram e se revelam inoberantes no caso encontra- Todo dia, a experiência mostra que pessoas que possuem conhecimentos
do. Elas visam a elaborar novos procedimentos a partir da construção adequa- ou capacidades não sabem mobilizá-los de modo pertinente e no momento opor-
da de uma representação operatória da situação-problema. Essa problema- tuno em uma situação de trabalho. A atualização daquilo que se sabe em um
tização será frequentemente progressiva. Ela passará por reestruturações su- contexto singular (marcado por relações de trabalho, cultura institucional, con-
cessivas no decorrer do processo de resolução. O operador deve construir um tingências, restrições temporais dos recursos, etc.) é reveladpra da "passagem" à
"espaço de pesquisa" no seio do qual conceberá um encaminhamento possível 'competência. Esta se realiza na ação. Não preexiste a ela. E um pouco como o
de soluções apropriadas e de suas etapas intermediárias. As práticas de resolu- pensamento que não preexiste à linguagem, mas que se realiza e se transforma
ção de problemas poderão consistir em particularizar um esquema geral, isto com ela. Um bom profissional sabe não somente dominar uma técnica, mas
é, em adaptá-lo a um contexto particular e em precisar suas condições de também executá-la em um contexto de competitividade e de estresse.
aplicação, o u em elaborar um novo procedimento por meio de tentativa e de Descrever a competência não pode limitar-se ao estabelecimento de uma
erro, recorrendo a conhecimentos variados que concemem ou não ao domínio lista de conhecimentos ou de habilidades nem mesmo à constatação de sua
de aplicação. Há elaboração de estratégia de resolução de problemas. As estra- aplicação. A competência pode ser comparada a um ato de enunciafão que não
tégias escolhidas dependerão dos tipos de problemas a tratar. O perito deve pode ser compreendido sem referência ao sujeito que o emite ou ao contexto
ser capaz de caracterizar o nível do problema que se relaciona com o que ele no qual ele se situa. Utilizando o neologismo proposto por Varela e Maturana
deve afrontar. em suas pesquisas em neurociências, parece importante apreender ao mesmo
A distinção entre esses dois tipos de práticas - de execução e de resolução tempo o ator e a ação, isto é, a énaction [enação] (do termo inglês to enact,
de problemas - não diz respeito a uma diferença objetiva devido apenas às "fazer emergir"). A competência é sempre competência - de um ator - em situa-
características da situacão encontrada. De acordo com as hivóteses ante- @o. ?a "emerge" mais do que precede.
riormente enunciadas, a relação operador-situação é um todo cujos pólos não Aimagem do pensamento, que não se exprime, mas se realiza na palavra,
podem ser dissociados. O que causa problema para um operador pode não a competência não se exprime pela ação, mas se realiza na ação.
passar de uma prática de execução para outro. E vice-versa. O operador é Não há competência senão em ato. A competência não pode funcionar "a
sempre um sujeito em situação, e a situação só intervém enquanto ela é perce- vácuo", fora de qualquer ato que não se limita a expressá-la, mas que a faz
bida pelo sujeito. ..
existir. Cousinet já dizia: "saber não é possuir, é utilizar". Há sempre um contexto
de uso da comp~tênciczAssim como ;ma cóleção de bolas nãõ constitui uma
Saber mobilizar em um contexto partida de bocha, k n conjunto de saberes ou de habilidades não forma uma
competência. O profissionalismo se desenvolve em uma prática de trabalho. A
O profissional não é aquele que possui conhecimentos ou habilidades, competência emerge na junção de um saber e de um contexto. A mobilização
mas aquele que sabe mobilizá-los em um contexto profissional. A companhia -das competências deve exercer-se sob dupla imposição: a imposição objetiva,
Air France define a competência como um "saber agir em situação". Possuir externa, do contexto, e a imposição subjetiva que o sujeito atribui para si. Com
saberes ou capacidades não significa ser um profissional competente. Pode-se efeito, é em função da percepção que o sujeito tem das imposições existentes
conhecer técnicas ou regras de gestão contábil e não saber aplicá-las no mo- que julgará se pode ou não ativar a operacionalização do que ele sabe.
mento oportuno. Pode-se conhecer direito comercial e redigir mal os contra- No dispositivo de formação por alternância implantado pela EDFGDF
tos. A competência é sempre "competência para". (Eletricidade de FrançdGás de França) para formar os aprendizes que dis-
A competência requer uma instrumentalizafão em saberes e capacidades, põem de um contrato de aprendizagem, a avaliação é feita sobre o agir. As
mas não se reduz a essa instrumentaliza~iío.Pode ser um recurso incorporado avaliações de competências são efetuadas a partir das atividades dos referen-
ciais de trabalho. Os formadores propõem aos tutores fichas de avaliação, que Observemos o caráter particular dessa mobilização. Ela não é da ordem
poderão ser utilizadas nas situações reais de trabalho. da simples aplicação, mas daquela da construção. Assim como o diagnóstico do
Chris Argyris exprime essa característica da competência dizendo que se médico não é a mera aplicação das teorias biológicas, a simples engenharia de
trata de passar do "saber aplicável" ao "saber acionável". No primeiro deles, O uma ação de formação não é a aplicação das teorias da aprendizagem ou da
sujeito conhece as conseqüências prováveis de seus atos; no segundo, não psicologia cognitiva. A passagem do saber à ação é uma reconstrução: é um
somente possui esse conhecimento, mas também sabe como se servir do saber processo de valor agregado. Não pode ser a aplicação de teorias ou de elemen-
aplicável na vida real, na prática cotidiana. tos de teorias elaborados em um outro contexto, de modo analítico. Oprofissio-
O profissionalismo se constrói na articulação de três lLdomínios",que po-
na1 é,um produtor de competências.
O profissio?alismo designa uma realidade dinâmica, mais u m processo do
dem ser visualizados no esquema apresentado no Quadro 2.3, que mostra
toda a ambigüidade de expressões como, por exemplo, "mobilizar suas com- que u m estado. E aplicando suas competências que um indivíduo se torna um
petências". A competência profissional não reside nos recursos (conhecimen- bom profissional. Nesse sentido, foi feito o acordo ACAP 2000, em 1990, entre
tos, capacidades, etc.) a mobilizar, mas na própria mobilização desses recursos. o GESIM (Grupo das Indústrias Siderúrgicas e Mineiras) e organizações sindi-
Ela é da ordem do "saber mobilizar". Para que haja competência, é preciso que cais. Nele, a competência é definida como "um saber-fazer operacional valida-
haja colocação em jogo de um repertório de recursos (conhecimentos, capaci- do". O termo validação salienta bem a necessidade de que os conhecimentos
dades cognitivas, capacidpdes relacionais, etc.). Esse equipamento é a condi- ou a experiência do empregado sejam confirmados no domínio de funções
ção do profission$smo. E o ponto de partida que torna possível a competên- efetivamente exercidas. Sem esse reconhecimento da execução, não poderiam
existir competências.
cia profissional. E preciso que haja operacionalização e transformação para
que a instrumentalização aceda ao estatuto de competência. Os saberes-recur- O profissional demonstra suas capacidades na ação. É necessário que o
profissionalismo se exerça regularmente para que se constitua e se mantenha.
sos não constituem a competência, mas aumentam ou diminuem as chances
As panes, os incidentes, os problemas ou os projetos são oportunidades necessá-
de ser competente.
rias à sua manutenção e ao seu desenvolvimento. Ao contrário da pilha, a com-
petência só gasta se não nos servimos dela. A busca da dificuldade é uma oca-
sião para aprender: ela pode até mesmo garantir um "lucro a partir da situação",
que diminuirá a permutabilidade e que será negociável: "não há, então, nada de
Quadro 2.3 surpreendente no fato de que operários de manutenção sejam mais fáceis de
"motivar" para uma atividade de conserto pontual do que para uma atividade de
A Mobilizaçáo Profissional prevenção que procura fazer desaparecer a pane e que, além disso, obriga-os a
colocar na mesa seu saber e sua habilidade". Freidberg (1993) acrescenta: "de
um certo modo, não somos todos, cada um em sua área, operários de manuten-
ção que guardam seus "truques" para si e valorizam os momentos em que são
vistos como L'reparadores",isto é, como os salvadores?".
As situações Buscando o reconhecimento dos outros, nem mesmo podendo ficar sem
isso, o profissional gosta da complexidade e da incerteza. Um problema ou um
caso novo a tratar é a ocasião para aperfeiçoar um novo método de abordagem
e para inscrevê-lo em seu repertório profissional. Estruturando progressiva-
mente seu saber e sua experiência, os profissionais constituem um grupo exi-
gente, que dispõe com frequência de um poder importante e com o qual o
gerenciamento da empresa deverá compor.
Profissionalismo

m
0i A competência em situação
E As situações
,O deformação Não há competência senão posta em ato, a competência só pode ser com-
O Le Boterf
petência em situação. Ela não preexiste ao acontecimento ou à situação. Ela se
exerce em um contexto particular. É contingente. Sempre há "competência - atividades de rotina, fundadas em hábitos (comportamento baseado
de'' ou "competência para", o que significa dizer que toda competência éfinali- em habilidades);
zada (ou funcional) e contextualizada. Etimologicamente, o termo competên- - atividades regidas por regras e que exigem, conseqüentemente, um con-
cia vem do latim competens: "o que vai com, o que é adaptado a". trole permanente de seu respeito (comportamento baseado em regras);
Esse caráter o aproxima da capacidade de análise e de resolução de pro- - atividades que devem basear-se nos conhecimentos e nos esquemas
blemas em um ambiente particular. Saber agir em um contexto de trabalho é possuídos pelo objeto (comportamento baseado em conhecimento).
avaliá-lo e adaptar-se a ele. A plasticidade está no coração da competência.
Ela é mediada por um conjunto de imposições e de recursos. A competência Os três tipos de atividades representam uma ordem crescente no custo de
não é uma constante. Ela pode e deve variar em função da evolução da situa- mobilização dos recursos. Quanto mais um sujeito desenvolve seu nível de
ção em que intervém. Supondo a colocação à prova da realidade, a mobiliza- profissionalismo - e, portanto, quanto mais especialista se torna - menor será
ção pertinente dos saberes e de habilidades é progressivamente aprendida. seu custo cognitivo, dispondo e executando esquemas operatórios que guiarão
Somente ao final de um certo período de tempo o indivíduo poderá ser reco- de modo econômico as combinações de recursos a realizar. Isso custará mais
nhecido como competente em seu contexto de trabalho. para o iniciante.
Os atores são sempre "situados". Estão inseridos em um contexto de ação
que constitui seu entorno de trabalho imediato, o que Thomson chama de seu
"ambiente de trabalho". As competências que eles põem em ação serão condi- Mobilizar os recursos de uma rede
cionadas pelo duplo efeito descrito por Bourdon: um "efeito de posição" (que
depende da posição do ator em um contexto particular e condiciona seu aces- O profissional não pode saber tudo. Ele deve saber mobilizar na hora certa
so às informações pertinentes) e um "efeito de disposição" (que depende de não somente seus próprios conhecimentos e habilidades, mas também os de
suas capacidades mentais, cognitivas, afetivas e que o levará a uma interpreta- suas redes profissionais. O saber e o saber-fazer de um profissional não se si-
ção diferente da mesma realidade). tuam apenas em sua pessoa. Estão ligados a toda uma rede de relações pessoais,
Os trabalhos de Louis Queré esclareceram de modo notável o caráter de pessoas-recursos, de bancos de dados, de cadernetas de anotações, de livros
situado de toda ação. A ação situada se inventa em sua realização. Ela se ao alcance da mão, do que às vezes é chamado de "o quarto cérebro". Ele deve
assemelha mais a uma intriga que se relaciona à execução de um plano dar conta da natureza distribuída do saber e de sua aquisição. O profissional não
preestabelecido. Ela aproveita oportunidades, reage aos acontecimentos e às é competente sozinho. Uma das questões mais importantes na engenharia das
circunstâncias, auto-organiza-se e se auto-orienta. Dito isso, a ação situada competências é saber com quem e com o que uma pessoa é competente.
não é cega. Ela se apóia em esquemas operatórios e se orienta em função de A competência está cadavez mais distante do modelo da raiz única, apro-
um objetivo. ximando-se mais do de rizoma, que se desenvolve buscando as outras raízes
Harold Garfinkel tentou apreender como a ação vai constituir-se progres- para se unir a elas.
sivamente, assumindo a singularidade dos acontecimentos que se apresen- A competência do profissional depende da rede (ou das redes) de saber à
tam. O desenrolar da ação pode ser comparado frequentemente ao de uma qual ele pertence. Estamos próximos da noção de "escola invisível" à qual se
conversa, que não responde a um plano previsto de antemão, mas os protago- referem os anglo-saxões. A capacidade do profissional é função de seu poder
nistas nela descobrem uma estrutura em relação à qual eles podem intervir. de acesso e de sua capacidade de tratamento relativo a uma rede de conheci-
Agir não é delegar e depois decidir, é se comprometer na condução de um mentos. A especialização de um perito é tanto social quanto individual. Sua
curso de ações que deverá ajustar-se à singularidade dos acontecimentos, das memória é uma memória de rede. Ela representa o que ele é capaz de mobili-
circunstâncias, dos atores e das condições de tempo e de lugar. A ação que se zar como conhecimentos, onde eles se encontram. Isso pôde ser constatado,
reduz à execução não passa de um caso entre outros. na França, quando algumas instituições públicas de conselho e de estudos
A mobilização dos recursos representa um certo custo que os ergônomos foram "deslocalizadas" e perderam um grande número de consultores ou de
qualificaram de "custo cognitivo". Baseando-se na classificação das ações pro- pesquisadores. O déficit em competências não se revelou apenas um déficit de
postas por Rasmussen (1976), pode-se considerar que esse custo é mais ou pessoas, mas também uma perda de redes de saber com as quais elas se relacio-
menos elevado, conforme se trate, para o sujeito, de mobilizar recursos para navam. O recurso imaterial da inteligência não depende unicamente dos
realizar:
54 GUY LE BOTERF

neurônios dos cérebros, mas de múltiplas sinapses sociais. A "fuga dos cére- parte. Para cada sujeito, existe um "campo de possibilidades", que constitui o
bros" é também uma perda de redes. objetivo que procura superar sua situação objetiva. Esse campo é, por sua vez,
As competências são sempre contextualizadas. O saber e o saber-fazer determinado por sua condição histórica e social. Reagimos a uma situação-
não adquirem o estatuto de competência senão quando comunicados e per- problema ou elaboramos um projeto em funqão de nossa cultura de pertença,
mutados. Tal comu+cação é necessária para fornecer o conhecimento contex- quer esta diga respeito a nosso meio social, à organização na qual trabalhamos
tual indispensável. E exatamente esse o limite do saber-fazer elucidado pelos ou à profissão à qual nos referimos.
cognitivistas com vistas a uma codificação nos sistemas especialistas. As com- De um modo geral, pensamos com as metáforas as análises e as imagens
petências não são redutíveis ao saber-fazer individual. O perito constrói seus de nosso meio. Pierre Lévy (1991) evoca isso muito bem quando constata:
conhecimentos das trocas que efetua com seus colaboradores, e a competên- "Não pensamos nada de impalpável, não compreendemos nada de abstrato a
cia é criada pela situação comunicacional. A competência do perito é sempre não ser nos termos do concreto, do sensível, da imagem familiar. É também
fruto de uma combinação nova obtida por confronto com outros saber-fazer nesse sentido que o mundo, o mundo sentido e vivido, pensa em nós [...I. O
individuais compartilhados. Não pode haver competência onde não há transaçáo. pensamento de um caçador paleolítico ou de um camponês francês do século
A competência é individual e social ao mesmo tempo. E até mesmo social XVI não é o mesmo de um parisiense do final do século XX.". Desse modo, as
antes de ser individual. Seu recorte individual - a competência desejada no metáforas de tipos cibernéticos e informáticos são importantes na biologia
indivíduo - depende do sistema de papéis estabelecido entre os atores. A dis- contemporânea. Não somente pensamos com objetos significantes, portadores
tribuição das competências requeridas não concerne a indivíduos isolados, de representação, mas os objetos e os signos continuam a pensar em nós mes-
mas a parceiros de um mesmo sistema. E, como analisou muito bem V. mos quando não estão mais presentes fisicamente. O mapa continua a organi-
Descombres: "os parceiros têm coisas diferentes a realizar, mas são coisas com- z i nossa apreensão do território quando não o temos mais sob nossos olhos.
plementares". No que tange às tentativas de compreensão do cérebro, Searle nos lembra
A competência não é uma questão privada. Os modos de raciocínio, as .divertidamente que todos os modelos explicativos foram historicamente de-
representações, os sistemas de classificação, as significações dadas a?s proje- pendentes das tecnologias existentes: Freud compara o cérebro a um sistema
tos ou aos problemas encontrados têm uma dimensão sociocultural. E a cultu- hidráulico; Sherrington, a uma instalação de telégrafo; Leibniz, a um moinho;
ra que fornece ao profissional a "caixa de ferramentas simbólicas" com a qual sem contar os gregos, que o assimilavam a uma catapulta... Razão para ser
ele executará os processos cognitivos pertinentes ou modelará seus esquemas modesto sobre as analogias atuais com o computador digital! Essa inserção
de comportamentos adaptativos, chamados por Bourdieu de habitus. cultural ampla explica por que muitas descobertas científicas foram efetuadas
O profissional sabe tirar partido dos recursos que lhe oferecem sua ou independentemente umas das outras e simultaneamente em vários lugares do
suas culturas. Ele saberá buscar nessa(s) cultura(s) as ferramentas simbólicas planeta. Se Newton não tivesse existido, é muito provável que Bernoulli,
(modelos, representações, analogias, etc.) graças às quais colocará em ação Maupertuis, d'Alembert ou Euler tivessem to-mado seu lugar.
processos cognitivos pertinentes.
O profissional que age, que está envolvido em um procedimento de co-
Saber. combinar
.
nhecimento ou de compreensão, é guiado por sistemas de valores e de signifi-
cações, por modelos (de opiniões, de crenças, de comportamentos) que são
Integrar saberes múitiplos
socialmente partilhados. Já em 1934, Vygotsky observava que "a linguagem
do entorno com suas significações estáveis, constantes, predetermina as vias
que segue o desenvolvimento das generalizações na criança. Ela liga a ativida- Os saberes e saber-fazer são diversos, heterogêneos e múltiplos. Montmollin
de própria da criança, canalizando-a em um sentido determinado, rigorosa- inclui, na definição das competências, elementos tão diversos quantos saberes e
mente definido. Mas, enquanto segue essa via determinada, preestabelecida, saber-fazer, condutas típicas, procedimentos-padrão e tipos de raciocínio... O
a criança pensa de acordo com o modo próprio a seu estágio de desenvolvi- profissional deve saber selecionar os elementos necessários no repertório dos
recursos, organizá-los e empregá-los para realizar uma atividade profissional,
mento intelectual. Os adultos, na relação verbal com ela, podem determinar o
curso do desenvolvimento das generalizações e seu fim, mas não podem lhe resolver um problema ou realizar um projeto. Diante de um problema a resolver
transmitir seu modo de pensamento. A criança assimila as significações das ou de um projeto a realizar, ele constrói , p a arquitetura cognitiva particular da
palavras que lhe vêm dos adultos sob uma forma já elaborada". A construção competência, uma combinatóna pertinente de múltiplos ingredientes que terão
das representações, a imagem de si e o sentido dado aos projetos de ação são sido selecionados conscientemente. Ele não se limita a uma simples adiqão de
fortemente influenciados pelo sistema social e cultural do qual o sujeito faz saberes parciais. A competência "em migalhas" não é mais a competência. A
competência profissional tange à gestalt. Um exemplo simples ilustra essa Os conteúdos pedagógicos se apresentam sob a forma de relatório de
combinatória: saber andar de bicicleta supõe saber frear, saber pedalar, saber autoformação elaborados em função das ocupações da empresa e articulados
acelerar... É possível decompor o saber-fazer elementar, mas a competência glo- às capacidades correspondentes aos diplomas associados a essas ocupações. O
bal não se reduz a essa adição. Existe uma dinâmica interacional entre esses dispositivo é fundado no voluntariado.
diversos componentes. Um estudo de impacto realizado após mais de três anos de funcionamen-
As dificuldades encontradas nos trabalhos sobre inteligência artificial to revelava os efeitos dessa formação: melhora da auto-imagem, desenvolvi-
mostraram que o cérebro, em situação real de trabalho, não trabalha seguindo mento da capacidade de comunicação, melhor compreensão das situações de
uma lógica sequencial. Ele integra simultaneamente os dados provenientes trabalho e fortalecimento das capacidades de análise dos riscos.
dos diversos sentidos, processando essas informações e efetuando inferências Essa experiência ilustra como a construção das competências apela para
a partir da lembrança de situações análogas. Ele trabalha "em paralelo", não uma combinatória complexa de recursos em que estão estreitamente mescla-
"em série". dos os conhecimentos gerais e os conhecimentos profissionais. Os conheci-
Dizer que uma competência tange a uma combinatória de recursos é con- mentos gerais aparecem como tendo um efeito sobre as condições de opera-
siderar sua organização em sistema. Estamos próximos da definição de Gillet, cionalização das competências e sobre o desenvolvimento da vontade e da
para quem a competência é "um sistema de conhecimentos conceituais e capacidade de aprender.
procedimentais, organizados em esquemas operatórios e que permitem, den- Essa integração de saberes múltiplos existe em atividades aparentemente
tro de uma famíiia de situações, a identificação de uma tarefa-problema". A consideradas não-complexas. E o caso do corte das árvores em uma empresa
competência deve ser pensada em termos de conexão, e não de disjunção, de florestal. Não se trata apenas de saber manejar uma serra elétrica: "trata-se
parcelamento ou de fragmentação de ingredientes. Uma competência não pode igualmente de organizar o espaço de corte, antecipar as etapas posteriores do
ser apreendida ou compreendida ao termo de um recorte dos recursos que a canteiro em uma perspectiva de intervenção contínua sobre a floresta, diag-
constituem. A competência não está no final da dissecação. nosticar o estado fitossanitário da árvore e a incidência das condições climáti-
Por analogia com a química,.diremos que a competência é mais da ordem cas e geográficas para modular a técnica de corte. Aprender o corte é trabalhar
da combinação do que da mistura. O bom gestor não é aquele que aplica em durante várias estações sobre espécies diferentes, associar conhecimentos téc-
qualquer circunstância o mesmo comportamento: ele sabe modular sua estra- nicos e contextualizações" (Savereux, 1994). Os profissionais sabem tratar a
tégia de gerenciamento em função das situações que encontra. O profissiona- complexidade do ordinário.
lismo do agente comercial será reconhecido pelo fato de que sabe combinar Os quadros seguintes ilustram a mobilização integradora de saberes he-
um certo conhecimento dos produtos, uma capacidade de conduzir e de con- terogêneos para a competência de conserto e de colocação em funcionamento
cluir uma entrevista de venda, uma aptidão para se identificar por empatia de uma instalação por um condutor de máquina, para a competência de um
com o cliente e com seu universo cultural e por um saber-fazer "estratégico" pesquisador em seleção de plantas e para a competência de engenharia de um
que lhe permite perceber as oportunidades comerciais. O cobrador, em um responsável de formação.
trem, saberá correlacionar uma certa experiência dos comportamentos, um Nem tudo o que o profissional sabe é útil a todo momento. Tudo o que é
conhecimento dos capítulos pertinentes da regulamentaç$o e uma apreciação armazenado na "memória longa" deve ser seleaonado e tratado na memória
das circunstâncias particulares relativas ao cliente ou ao contexto social. curta. Por vezes, esta foi comparada a um "pressuposto" cuja capacidade de
A partir de 1992, após um relatório sobre a "melhoria da segurança nu- recepção e de tratamento seria limitada. E nesse nível que o serviço útil será
clear em exploração", a EDF implantou um dispositivo de formações individua- construído e integrado. Há estruturação e reestruturação de saberes e dos sa-
lizadas com certificação (FIC) para os agentes das centrais nucleares de pro- ber-fazer. Há síntese, e não mera justaposição; recomposição permanente, e não
dução de eletricidade (CNPE). Em colaboração com a rede dos GRETA* da mera adição. Esse saber combinar está próximo daquele do estrategista que
Educação Nacional, o dispositivo visa à aquisição dos conhecimentos gerais sabe recompor permanentemente suas variáveis de ação em função do projeto
(matemática, ciências, expressão...) que entrarão em sinergia com os saberes que persegue e do movimento do contexto. O saber combinatório é a arte do
e o saber-fazer profissionais. kairos segundo os gregos, é a escolha de uma estratégia apropriada.
Tangendo à razão prática, a competência é a capacidade de integrar sabe-
res diversos e heterogêneos para finalizá-los na realização de atividades. A .
lógica de integração dos saberes, dos saber-fazer e dos comportamentos se
"N.de T. O Greta é um grupo de estabelecimentos públicos locais de ensino que reúnem estabelece em função das exigências da situação de trabalho. No exercício das
seus recursos humanos e materiais para organizar ações de formação contínua para adultos.
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS 59
Quadro 2.5
Quadro 2.4

Selecionador
Condutor de máquina automatizada

Recursos pessoais a combinar


Exemplos Recursos incorporados

Saberes:
Saberes em genética
Saberes sobre a planta (biologia, genética)
Conhecimento da
instalação Habilidades "ser capaz de"

Conhecimento das etapas Cultivar a planta


de fabricação dos produtos Montar' u m banco de dados em recursos
genéticos
Conhecimentos Conhecimento dos processos . Aplicar a biologia molecular à caracterização
de transformação da matéria da diversidade genética
Conhecimento em mecânica
Saberes sobre o contexto do centro de pesquisa
Conhecimento em eletromecânica
Política do centro de pesquisa sobre a
uma coleção
'utilização dos recursos genéticos
Acordos feitos
"Consertar
Corrigir os parâmetros Capacidades cognitivas "ser capaz de":
e colocar em realizar com
de produção funcionamento
Operacionalizar u m raciocínio biométrico competência)
uma instalação"
Verificar a conformidade das Qualidades pessoais
aparelhagens Meticulosidade
(Atividade a
realizar com
competência)
Redes de recursos
Redes das outras coleções
Saber determinar sinais Redes temáticas (agrofisio, pato...)
.. Investidores
Saber apreender relações
Capacidades

Saber abstrair dados


O Le Botetf

BI-- Rntprf
P --.v.,
Quadro 2.7 livros contábeis. Essas capacidades operacionais são apenas recursos para cons-
truir a competência.
A competência real é descrita em termos de conduta operacionalizada.
Competência lingülstica e competência profissional
Diante da exigência de uma atividade a realizar ou de um problema a resolver,

-
o profissional deverá elaborar uma estratégia de resposta. Várias condutaspo-
dem ser pertinentes para enfrentar o requisito, pois várias conjugaqões de recur-
O léxico Enunciados sos podem ser efetuadas. Portanto, ser competente não significa adotar um
desempenho único comportamento observável. Releiamos as declaraqões de Alain sobre a
lingüístico educaqão: "o método comum não tem o fim de tomar os alunos semelhantes,
As regras de mas, ao contrário, torná-los ainda mais diferentes; pois, entre dois homens
gramática que sabem tocar violino, uma nova diferenqa se desenvolveu, que é o som
- próprio a cada um" ...
saber falar No jornal Le Monde de 19 de novembro de 1996, o Grupo ISEG* das
Grandes Écoles construía seu encarte publicitário sobre o tema: "o talento é a
melhor expressão de si".
Conhecimentos Práticas
O Quadro 2.8, a seguir, mostra que, entre o equipamento em recursos e a
profissionais competência operacionalizada, se desenvolve o campo das conjugaqões, no
e seus qual se insere a subjetividade do profissional. É o terreno do saber agir. Em
desempenhos face das exigências em competências requeridas, o sujeito põe em andamento
profissionais coordenaqões de ações e interpretações do que é esperado. A competência real
comporta, então, inevitavelmente essa parcela de imponderável que não pode
-
- ser prevista. A competência reside na engenhosidade do sujeito, e não em sua
saber agir capacidade para produzir cópias conformes. Há ineditismo e particularidade na
competência. Querer controlar isso mecanicamente seria cair, de novo, nas
O Le Boterf
ilusões behavioristas. O texto musical não exclui a riqueza das interpretações.
Escutemos sucessivamenteos impromptus de Schubert interpretados por Edwin
Fisher e, depois, por Murray Perahia. Um deles dará uma interpretaqão bri-
lhante e poderosa do piano; o outro acentuará mais a cor e o detaihe, e ambas
Uma combinatória individualizada as interpretaqões são excelentes.
Mesmo que para os pilotos de avião não existam vários modos de seguir
A competência requerida e a competência real:devem ser distinguidas. A uma rota e de se apresentar em um ângulo de descida na aterrissagem, pode-
competência requerida é aquela esperada pela orghizaqão ou pelo cliente. E se neles reconhecer diferentes estilos de pilotagem: utilizaqão do piloto auto-
possível descrevê-la em termos de atividade requerida. Uma unidade de pes- mático, relaqões com os controladores de voo, relaqões com o pessoal comer-
quisa espera que um técnico de laboratório seja capaz de realizar manipula- cial, cooperaqão no cockpit, etc.
qões e apresentar seus resultados formalizados. O responsável de um serviqo A improvisaqão musical supõe um trabalho de preparaqão. Dentro do
de produqão pode esperar de sua secretária que seja capaz de efetuar um mo- espaqo sonoro, há um encadeamento escolhido: contrapontos, pequenos te-
vimento contábil do orqamento de seu serviqo. Esses dois exemplos indicam mas, efeitos de ressonância, fórmulas rítmicas, fragmentos harmônicos, acor-
que a melhor definiqão da competência é bastante ampla. Para operacionalizar des, timbres, etc. E possível praticar exercícios sistematicamente para se des-
tal competência, o sujeito deverá apelar para diversos recursos que poderão fazer dos hábitos e se arriscar em novas propostas musicais. A improvisação é
ser identificados. O técnico de laboratório deve ser capaz de cronometrar as favorecida pela repetiqão. Um aluno de violino no conservatório se exercitará
manipulaqões, de redigir fichas de síntese e de apresentar resultados norma- na prática do spiccato na aula de técnica musical para utilizá-la em improvisa-
lizado~.A secretária deverá ser capaz de preparar previsões orqamentárias, de
seguir os compromissos assumidos das despesas e das receitas e de manter
"N.de R. ISEG: Institut Supénor Européen de Gestion.
Isso revela toda a importância da escolha da malha para descrever a com- produz, na escuta real de um todo sem jamais ouvir as pautas sucessivamente
petência. Uma malha fraca demais (por exemplo, redigir uma ficha técnica, (Gleich alL zusammmen). Produz-se nele uma espécie de gestalt auditiva a
informar um indicador de painel de bordo, preparar uma amostra, etc.) a re- partir da qual ele poderá, então, transpor em notas musicais.
duz a capacidades operacionais que servem para construir a competência, mas Uma analogia do domínio lingiiísticopode ajydar-nos a compreender me-
que não são da competência. A figura do tango ou o gesto do alpinista não é o lhor a especificidade da competência profissional. E do linguista Noam Chomsky
saber coordenar. Um recorte excessivo leva ao risco de administrar "compe- (1971-1973) a introdução da noção de competência em linguística. Para ele, a
tências em migalhas", de uma taylorização das competências. Optar por uma competência lingiiística é o que permite a um sujeito produzir e compreender
malha demasiado ampla (conservação, gestão financeira) é deixar o nível das um número infinito de enunciados gramaticalmente bem-construídos (são "de-
práticas para derivar para abstrações inadministráveis. Quanto mais a compe- sempenhos") a partir de um vocabulário de base e de um número determina-
tência consistir em saber operaaonalizar sequências operatórias cada vez mais do de regras. A competência lingiiística não se reduz ao conhecimento das
longas, mais se distinguirá dos saber-fazer pontuais. regras e das palavras, ainda que os suponha. O conhecimento das regras de
A coerência dessa disposição é função não da situação dada, mas também gramática não é suficiente para falar bem. O domínio das regras nem sempre
de sua representação que o profissional constrói. Em um mesmo emprego, a é consciente: falamos nossa língua materna sem nos darmos conta das regras
combinação dos saberes e do saber-fazer poderá ser diferente conforme as que estamos usando. Se as frases produzidas são imprevisíveis, elas são, no
representações funcionais que tiverem os profissionais. De Bonnafos (1990) entanto, coerentes em relação às regras da Iíngua.
defende a hipótese "de um papel ativo dos indivíduos na aprendizagem de seu Esse desvio pela analogia lingüística pode ser muito esclarecedor, pois ela
saber e a ausência de homogeneidade dos indivíduos que supostamente ocu- mostra que a competência não é assimilável aos conhecimentos nem aos pro-
pam um 'mesmo' emprego. Em função do emprego no qual eles projetam, cedimentos ou às regras nem ao desempenho. Ela está nesse saber integrar
acentuam pontos particulares. Por essa razão, não operacionalizam, nem de- que os ultrapassa "em relação ao desempenho que é um fazer produtor de
senvolvem totalmente os mesmos saberes". As representações e os "estilos enunciados, a competência é um saber-fazer, 'esse algo' que toma possível
cognitivos" não são idênticos conforme as pessoas. Essa combinatória é de fazer [...In. Se retomamos essa citação um tanto longa (Greimas, Courtes, 1979)
uma complexidade inaudita. E uma síntese cumulativa: a falha de um elemen- foi porque exprime surpreendentemente bem a especificidade da competên-
to pode colocar em perigo a qualidade do conjunto da competência. O que se cia, mas também a grande dificuldade em apreendê-la. Ela é exatamente "esse
passa "na cabeça" do perito em ação parece não ser delimitável: conhecimen- algo" que não cessa de desafiar a engenharia da profissionalização.
tos e tipos de raciocínios heterogêneos são operacionaiizados simultaneamen- A combinatória tem a ver com o talento artístico: "as combinações úteis
te ou se cruzam, atalhos são tomados nas cadeias inferenciais, metáforas ou são precisamente as mais belas", dizia Poincaré apropósito da invenção mate-
analogias intervêm ao longo do processo, induqões margeiam raciocínios mática. Não se fala também de "soluções elegantes"?
probabilísticos, algoritmos entram em competição com lógicas heterodoxas O Quadro 2.7, a seguir, possibilita - de maneira certamente muito sim-
(Iógicas vagas, modais, não-monótonas, etc.). plificada - visualizar a analogia que acaba de ser proposta.
Os cognitivistas não podem senão caricaturar esse processo de raciocínio Saber combinar é também saber improvisar diante do imprevisto. A im-
descrito por Pierre Lévy (1992) como "uma multidão de argumentos, de pe- provisação musical não depende do puro acaso e supõe uma rigorosa prepara-
quenas cadeias inferenciais, de imagens, de preceitos que se combatem e se ção:Segundo o pianista Martial Solal, é uma "composição instantânea". Ouça-
aliam entre si até que um campo vença os outros7'. Ele compara essa mos Louis Armstrong: ele improvisa sobre harmonias de base e se apóia em
combinatória a um processo de escritura em ação: "pode-se certamente acon- acompanhamentos. O mesmo acontece com o saber improvisar do profissio-
selhar um aprendiz de escritor (faqa um plano, organize transições, releia vá- nal: é a partir da aprendizagem e do esforço repetido que podem surgir aqões
rias vezes...), mas quem conhece o método no sentido forte, o algoritmo que ou reações justas e não-premeditadas. O improvisador encontra fazendo. E no
garante que se obtenha, no final das contas, um bom texto?". desenrolar da ação que ele encontrará sua inspiração.
Não existe algoritmo para escrever um romance ou uma partitura. O tra- Para Schumpeter, o empreendedor que inova é aquele que, diante da in-
balho de disposição que dará lugar ao saber agir e que se dá sobre o "estabele- certeza, sabe elaborar e criar novas combinações entre os diversos recursos da
cido" da memória curta se assemelha mais a uma aventura do que a uma empresa.
viagem organizada.0 encadeamento lógico só é dado a posteriori. O relato de Ele funciona "na forma progressiva", e não no simples presente. Ele sabe
uma história passada não preexiste à sua invenção. A competência é mais da apreender os acontecimentos contingentes, não-buscados, para transformá-
ordem da composição musical do que da compilação. Em uma carta de 1789, 10s em oportunidades criadoras.
Mozart descreveu sua estratégia de composição: nela, insiste no insight que se
ção na classe de expressão. É a partir do domínio desses recursos que a impro-
visação se criará em um movimento incessante de combinatórias.
A competência emerge de uma combinatória. A imagem da física quântica,
que não pode determinar o ponto exato de um elétron, mas apenas a região da
onda em que ele se situa, as competências que serão eietivamente construídas
por uma pessoa não podem ser estritamente antecipadas. Sua aproximação
apenas será possível a partir de certos pontos de referência constituídos por
referenciais de competências. A competência real dos indivíduos é julgada em
termos de probabilidades.
Os trabalhos de Alain Berthoz (1997) mostram que nosso cérebro não se
comporta como um computador que calcula antes de decidir. Seu método con-
siste mais em "avançar antecipando". Ele procura ganhar tempo procedendo
por inferência, isto é, decidindo sem dispor da totalidade das informações que
seriam necessárias. Ele faz um "preenchimento": reconstrói formas e configu-
rações a partir de alguns indícios ou de fragmentos de informações. Dispomos,
na memória, de uma "biblioteca" de esquemas, que utilizamos para antecipar
e avançar. Há uma confrontação de nossas previsões com as informações trans-
mitidas por nossos captores sensoriais. O cérebro emite hipóteses testadas por
nós por meio de nossas atividades.
A percepção é, portanto, uma "ação simulada e projetada sobre o mun-
do". O cérebro procede à maneira de um simulador (um simulador de voo)
para "interpretar" diversas sequências. Não "representamos" somente uma cena
para nós, mas a "interpretamos". Alain Berthoz cita o exemplo do campeão de
esqui que deve "fazer a corrida em sua mente, prever as etapas e os estados
dos captores sensoriais, entrever as soluções possíveis de cada erro, fazer apostas
e tomar decisões antes que o gesto seja feito". Portanto, para ele, não se trata
somente de processar informações recebidas por seus captores sensoriais e
corrigir sua trajetória em função delas. A antecipaqão é tomada possível pela
simulação interna do movimento.
A utilização de nossa memória de respostas, contudo, pode ter efeitos
negativos com a repetição de respostas estereotipadas que não são adaptadas
aos contextos que se apresentam. Em outros termos, mais próximos do domí-
nio das competências, poderíamos dizer que a repetição, nesse caso, toma o
lugar da transposição.
Utilizamos uma "biblioteca" de protótipos, de formas, de movimentos e de
esquemas que combinamos para construir uma resposta pertinente. A riqueza
se encontra frequentemente na combinatória. Alain Berthoz cita o caso da pri-
meira bailarina, que utiliza um repertório motor pobre, mas cuja riqueza de
expressão provém da combinação das coordenações no tempo e no espaço.
Seguindo os trabalhos de Varela, poderíamos dizer que a competência
emerge de um conjunto de interações efemadas entre recursos. Ela não é a con-
clusão de um tratamento sequencial.
A riqueza combinatória pode buscar sua fonte não somente na varieda-
de dos recursos, mas também em sua diversidade. Definindo a invenção ma-
temática, Henri Poincaré reconhecia que "dentre as combinações que se es- e não da realização. Ela não preexiste, mas é construída por um sujeito. Não é
colherá, as mais fecundas frequentemente serão aqvelas que são formadas predefmida: é um acontecimento ou um processo. O profissional constrói sua
de elementos tomados de áreas muito distantes". E o que Arthur I. Miller competência ou suas competências a partir de recursos possíveis (capacidades,
chama de "pensamento em rede". Este intervém combinando conceitos pro- conhecimentos, habilidades, etc.), mas sua competência não se reduz apenas à
venientes de áreas muito distantes umas das outras e integrando-os em ima- aplicação desses possíveis. O saber mobilizar passa pelo saber combinar e pelo
gens mentais ou metáforas que vão cristalizar a emergência da criatividade. saber transformar.
A competência é descrita em termos de atividades. Estas são divididas de A competência se atualiza em contextos diferentes. Ela não é a simples
acordo com uma malha bastante ampla que apela para diversas disposições de realização dos recursos possíveis; ela vai além da reprodução ou da duplica-
ações ou de saber-fazer. Os saber-fazer são descritos com uma malha mais ção. Essa abordagem em termos de atualização reencontra a de Chomsky no
estreita. "Descrever de modo operatório um objetivo" é um saber-fazer, mas campo lingüístico: a competência linguística é o que permite produzir, de
"guiar a engenharia de um plano de formaçãoJ'é uma atividade. Saber-fazer e maneira ilimitada, enunciados que não preexistem em uma lista de possibili-
atividades são descritos em termos de "ser capaz de", mas não devem ser con- dades prévias, em um repertório de frases pré-programadas. Há operacionali-
fundidos. A distinção nem sempre é fácil e deve ser sempre retomada confor- zação,sistêmica e inventiva a partir de um código. L

me os contextos. ,r- E nessa perspectiva que convém retomar a análise da transferência das
aquisições de formação (conhecimentos, capacidades, etc.) à situação de tra- '
balho. Esse processo da transferência foi muitas vezes compreendido em ter-
Um saber atualizar mais do que um saber aplicar mos de processos de comunicação ou de aplicação. Entre as aquisições de '
formação e as competências operacionalizadas há transformação. A compe-
Em sua obra, Qu'est-ce que le virtuel (O que é o virtual), Pierre Lévy distin- tência é construída pelo profissional. Há descontinuidade sob o efeito de uma
gue quatro modos de ser (o atual, o virtual, o possível, o real) dos fenômenos atividade cognitiva de um sujeito. A competência não é a simples "cópia" dos
e quatro movimentos que estão sempre presentes: recursos possíveis com os quais ela se constrói. A atualização que a caracterizp
é uma construção cognitiva. I
a realização: ela dá matéria a um possível já constituído, a uma forma .--- A construção da competência diz mais respeito à metáfora da biologia
predefinida. Nesse movimento, o real produzido se assemelha ao pos- genética do que ao esquema emissor-receptor de Shannon. A partir de recur-
sível. Há mais aplicação e operacionalização do que criação; sos diversos, pode haver variação e, mesmo, mutação. A competência não é
a virtualização: não é uma "desrealização", mas a transposição de um um sistema dependente, do qual bastaria regular os parâmetros. O entorno
problema particular a um "campo problemático" mais geral. Pela (social, profissional, pessoal) pode ser mais ou menos favorável a essa emer-
virtualização, há desligamento do particular, do contexto singular, para gência da competência. Ele pode encorajar ou não, facilitar ou não essa inter-
voltar às questões gerais às quais ele se relaciona. É a passagem do venção ou essa composição.
texto ao hipertexto. O fenômeno, a situação, o objeto se coloca "fora Também é possível jogar com apotenn'alização.A educação, a formação e .
dali", deslocaliza-se, dessincroniza-se. Existe, conforme a expressão a experiência agem sobre as possibilidades. Disso pode resultar um aumento .. .
de Pierre Lévy, "heterogênese". O projeto virtual é mais um sistema de do potencial. A educação permanente remonta à entropia.
rede do que um lugar particular. A virtualização permite inventar pro- A r$alização das possibilidades representa, talvez, o grau fraco da compe-
blemas. Esse movimento vai de uma solução a uma nova problema- tência. E o saber-fazer do executante, embora ele sempre avance mais do que
tização; a aplicação. A organização taylorista age em todo caso "como se" a competên-
a potencialização: ela consiste em criar novos recursos. Indo contra a cia se reduzisse a reproduzir, em situação de trabalho, a divisão dos recursos
entropia, ela cria reservas. E um movimento de criação de potencial, possíveis. A abordagem taylorista classifica e seleciona. O saber agir das orga-
de enriquecimento do campo das possibilidades; nizações pós-tayloristas só pode ser compreendido em um movimento de atua-
a atualização: é a invenção de uma nova forma. Ela cria soluções e lização.
tange à interpretação. Diferentemente da realização, ela não se limita A gestão das competências pode ser considerada sob o ângulo da virma-
a atualizar um possível: ela leva a uma nova construção. lização: são as tentativas, as experimentações e os projetos de representações
coletivas das "competências". Tangendo à atualização, a competência só pode
Esse desvio teórico é interessante para melhor discernir o movimento que ser pessoal. Ela se incorpora ao profissional. Não existe competência que não
caracteriza a competência profissional.A competência é da ordem da atualização, seja singular. A gestão das competências busca remontar competências indivi-
dualizadas ou de um campo de competência mais geral. Como imaginar o As empresas denominam, frequentemente, de competências transferíveis
universo das competências da empresa ou da organização? Essa é a questão aqueIas encontradas em ocupações ou contextos diversos. Duas empresas tão
subjacente aos problemas de gestão "antecipada" ou "previsional" dos empre- distintas em suas atividades e seus produtos quanto Danone (agroalimentar) e
gos e das competências. As "árvores de conhecimento" desenvolvidaspor Pierre Casino (distribuição intensiva) puderam assim constatar, em 1996, no decor-
Lévy e Michel Authier buscam essas representações dinâmicas e esses instru- rer de uma operação de formação de jovens sem qualificação, que algumas
mentos de navegação. Elas querem contribuir para a possibilidade de uma "competências comportamentais" requeridas nas duas empresas eram as mes-
melhor gestão "global" de competências, e não se limitar à gestão particular mas: capacidade de iniciativa, resolução de problemas em comum, capacida-
de um indivíduo. Os "átomos de informação" que entram nesses instrumentos de de comunicaqão, etc. A Renault fez parte do processo de criaqão, em 1994,
tomam distância. Pierre Lévy diria "tomam a tangente" em relação a seu con- de um Certificado de Aptidão Profissional de exploraqão de instalaqões indus-
texto específico de atualização. Essa descontextualização permite atingir uma triais inter-ramos, que vale tanto para as atividades de corte de frangos quanto
problemática coletiva de gestão das competências, uma nova abordagem da para a fabricaqão de automóveis.
inteligência coletiva. O desenvolvimento das noções de "emprego tipo", de "ocupação" ou de
"papel" revela essa preocupaqão com a transversalidade das competências.
Operadores que, em um determinado momento, executam bem seu trabalho,
Saber transpor mas serão incapazes de mudar de postos, poderiam ainda ser qualificados de.
competentes? Não é certo que um bom executante possa sempre ser qualifica-
O profissional não poderia limitar-se à execução idêntica de tarefas úni- do de competente. O Groupe Lyonnais de Sociologie Industrielle (GLYSS) [Gni-
cas e repetitivas. Ele sabe transpor. Isso supõe que tenha a capacidade de apren- po Lionês de Sociologia Industrial] realizou, em 1984, uma experiência inte-
der e de se adaptar. Ele deve ter condições de resolver problemas ou de enfren- ressante. Os pesquisadores solicitaram a operários de uma empresa que dese-
tar situações, e não um problema ou uma situação. Em um novo ambiente, ele nhassem sua máquina, explicando como ela funcionava. A conclusão do estu-
sabe utilizar conhecimentos ou habilidades que adquiriu e executou em con- do é clara: quanto mais os operários se beneficiam de uma formação inicial -
textos distintos. Pode ser transferência lateral (por generalização a categorias a obtenião do certificado de aptidão profissional - melhor conseguem descre-
de problemas ou de situações do mesmo tipo) ou transferência vertical (por ver o funcionamento de sua máquina e do homem no trabalho. Como sempre
transposição sobre casos de complexidade superior). O profissional não se li- defendeu vigorosamente Bertrand S c h q z , a formação geral é um componen-
mita a saber repetir. São conhecidas as dificuIdades experimentadas pelas po- te essencial da formação profissional. E ela que permite que as competências
pulações com nível de qualificação pouco elevado para transpor, para situa- evoluam e se adaptem às mudanças e às mutações das situações de trabalho.
ções novas, operaqões que dominam em contextos familiares. Essa é a razão do aumento de interesse pelo desenvolvimento de competências
Uma competência profissional é um roteiro que serve para agir em uma que podem aplicar-se a situações variadas, mais a "empregos" do que a postos,
família de contextos e que receberá ajustes cada vez que for solicitada. que permitem passar de um universo sociotécnico ou social a outro. Convém
Espera-se que as competências sejam cada vez mais transponíveis. Elas igualmente destacar a superaqão progressiva da polivalência em proveito da
não poderiam permanecer inertes diante da variabilidade dos contextos. Este multifuncionalidade. Surgem os "profissionais de exploraqão" assim como sur-
é provavelmente o sentido da revalorização das situações de trabalho em ter- giram, nos anos 80, os profissionais de manutenção e de instrumentação.
mos de "ocupação". Nos trabalhos de gestão previsional dos empregos e das Ainda que a demanda de transferibilidade seja muito grande, pode-se
competências conduzidos no Crédit Agricole pelo IFCAM,' as "competências questionar a noqão de "competência transferível". Uma competência poderia,
funcionais" válidas para um grupo de empregos são destacadas. Na Renault, a aliás, ser transferível se, por definição, ela se constrói em vista de um contexto
identidade profissional tende a se redefinir em torno de um "campo de compe- singular? As capacidades ou os saber-fazer são independentes de seu campo
tências" exercido por um grupo de operadores. A abordagem-competência de aplicaqão? Saber dirigir uma reunião na área do estudo dos fenômenos
supera progressivamente o peso dos postos. Os próprios sistemas de classifica- químicos não é algo transponível para a área da análise das situações financei-
$50 estão evoluindo nesse sentido. Exemplo disso é o acordo ACAP 2000, na ras. Um médico pode saber resumir um texto quando se trata de um documen-
siderurgia francesa, que reconhece a possibilidade de distinguir a classificação to médico e não saber fazê-lo quando disser respeito à legislaqão européia.
do emprego e a qualificaqão de seu titular. Uma pessoa pode saber ler um esquema de engenharia de formaqão e não
saber ler um de física quântica.
As competências ou os recursos para as competências parecem, portanto,
'N. d e R. IFCAM: Institut d e Fromation d u Crédit Agricole Mutuel. dificilmente transponíveis em si mesmos. Não haveria, por natureza, competên-
cias ou capacidades transponíveis e outras que não o fossem. Também, aqui, a O Quadro 2.9 mostra a relação possível entre a capacidade para formali-
transposição exige a combinação e a construção combinatória. zar; arfim de se comunicar, e a capacidade para transpor.
Saber resolver equações diferenciais pode-se aplicar tanto à mecânica E a partir de uma reflexão sobre suas práticas reais que o profissional,
quanto à química. Se você é engenheiro-mecânico, porém, terá dificuldades graças a um trabalho de abstração e de conceitualização, poderá reinvestir sua
em usá-las em química! Isso só não ocorrerá se você combinar o saber-fazer experiência em práticas e em situações profissionais diversas. Para passar da
matemático com conhecimento de química. máquina de fresagem ou do torno a uma máquina de comando numérico, o
O caráter de transferibilidade ou de transponibilidade não deve ser busca- profissional deve poder explicitar os deslocamentos recíprocos da peça e do
do nas competências ou nas capacidades, mas na competência do profissional. instrumento. Anel ou espiral de aprendizagem, o processo é conhecido por
--- --
Essa faculdade para transpor permite ao profissional reconhecer isomorfismos inspirar as práticas de formação por alternância.
nas estruturas dos problemas a tratar ou das situações sobre as quaisdeve inter- Essa atividade de explicitação, de formalização e de capitalização das
vir. A transferibilidade supõe que a nova situação seja primeiramente percebida práticas levanta várias dificuldades. Em primeiro lugar, questiona o estatuto
em seu conjunto como passível de ser objeto de transferibilidade. E essa percep- tradicional da fala e da linguagem na organização do trabalho. O taylorismo
ção que permitirá a determinação das semelhanças e das proximidades entre os renegara o papel da comunicação na eficácia produtiva. Comunicar-se era si-
estímulos. Releiamos Merleau-Ponty em Phénoménologie de la perception nônirno de conversar: aquele que fala não trabalha. Essa herança, que não
(Fenomenologia da percepção): "É por perceber um conjunto como coisa que a reconhece uma fala eficaz aos executantes, não facilita a colocação da ativida-
atitude analítica pode nele discernir, a seguir, semelhanças ou contigüidades". de em palavras. Gastar um tempo discutindo ainda pode ser percebido como
Ou ainda: "a contigüidade e a semelhança dos estímulos não são anteriores à tempo perdido. Em segundo lugar, não é fácil para ninguém descrever como
constituição do conjunto". Concordamos com a posição de B. Rey quando aiir- age. É próprio dos saber-fazer relativos à experiência estarem tão inscritos no
ma que essa faculdade provém da riqueza da experiência e da intenção. A facul- corpo que se tornam inexprimíveis. Oriundos da acumulação de experiências,
dade para transpor provém de pelo menos três fatores: esses 'saber-fazer são dificilmente expressáveis e formalizáveis. Serão qualifi-
cados de "tácitos". Colocá-los em palavras é difícil. Este é o paradoxo do peri-
a capacidade de distanciamento e de análiie de seus próprios procedi- to: ele terá mais dificuldade para explicitar seus modos de proceder do que o
mentos; principiante. Em terceiro lugar, pode-se constatar grandes déficits no domínio
a riqueza da experiência, do percurso profissional e extraprofissional. da expressão escrita ou oral. Redigir uma síntese ou modelizar uma situação
Aquele que é capaz de transpor é aquele que, segundo Cauzinille- ou uma prática não está ao alcance de todo mundo. Inúmeros "bloqueios"
Marmeche e Mathieu (1981), dispõe, em seu equipamento de recur- existem, e não é provavelmente um acaso que a luta contra o iletrismo tenha
sos, de um grande número de "procedimentos de respostas específi-
cas". É a experiência acumulada do perito que lhe permite reconhecer
identidades de estrutura;
a intenção de abordar e de tratar novas situações de tal forma que elas A
revelem características que permitirão aplicar o que já é conhecido. e Nível e qualidade
da formalizaçáo Competência
dominado. É isso que B. Rey chama de "intenção transversal".

O profissional busca isolar, dentre todas as variáveis da situação normal, -------------


aquelas que lhe permitiriam transferir. A identidade da estrutura se encontra
no final de uma elaboração e, portanto, de uma vontade.
Acrescentaremos que essa intenção consiste provavelmente em querer
utilizar esquemas que vão servir de instrumentos de transferibilidade. Trans-
por não é descrever uma situação com o auxílio de esquemas e tomá-la, assim,
objeto de transposição? A faculdade para transpor é função da riqueza do , Capacidade
para transpor
equipamento cognitivo concebido como uma instrumentação. A transposição
tange a um procedimento construtivista. E "a" competência do profissional
que constitui, à imagem da competência linguística de Chomsky, uma capaci- O Le Boterf
dade geradora de novas competências.
74 GUY LE BOTERF DESENVOLVENDO A CQMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS 75

assumido importância desde os anos 80. Em quarto lugar, enfim, explicitar o Quadro 2.10
que se sabe ou o que se sabe fazer é, frequentemente, vivenciado como uma
ameaça de despojamento. Em uma sociedade fortemente marcada pela com- Modelizar para transferir
petição, não é evidente entregar um saber que será retomado por outros. A
economia do saber, que funciona sobre a partilha, ainda não foi majoritaria- Modelo
mente assumida pelas representações. (esquema,
Convém, então, não minimizar as dificuldades para desenvolver a representação
reflexividade e a formalização. Esse trabalho permanente de construção dos
saberes e do profissionalismo não pode resultar da espontaneidade. Ele exige Desvio por
um ato de mediação que deverá fazer parte, cada vez mais, do papel dos for- formalização ou
/

madores. por generalização /


Transferência
É aprendendo a reconhecer os problemas e a classificá-los em relação a Analogia
contextos que o profissional se tornará capaz não somente de aprender, mas /
\
/ \
de aprender a aprender.*Assim, ele saberá não somente resolver um determi- /
/ \
nado problema, mas várias categorias de problemas. Deverá aprender a reco-
nhecer o que Bateson chama de "indicadores de contexto". Será, então, colo-
cado na via de transferências, 'de analogias possíveis por meio de uma genera-
lização ou de uma mode1ização:A capacidade de se distanciar faz parte do Experiência A Experiência B
profissionalismo. O profissional não pode evitar a experiência para aprender a (problema, (problema,
reconhecer suas similaridades. Kuhn mostrou bem que, para pesquisadores procedimento ...) procedimento ) ...
científicos, a possibilidade de reconhecer que uma situação se assemelha a Transferência direta
muito difícil
uma outra encontrada posteriormente não se deve a um processo explícito ou impossível
que apela à aplicação de regras e de critérios, mas à assiduidade ao laboratório
e à experiência adquirida durante a multiplicação das experimentações. Contexto Contexto
O Quadro 2.10 mostra como é possível descobrir e tratar analogias entre particular particular
experiências realizadas em ambientes distintos.
O profissional sabe que esse desvio vai levá-lo a abandonar algvns deta- O Le Boterf
lhes das experiências e a aceitar uma certa perda de informações. E preciso
abstrair e se abstrair para raciocinar com variáveis não-específicas. Trata-se de
uma arte, visto que é preciso, a cada vez, encontrar o nível certo de abstração:
se ele for insuficiente, o peso dos contextos limitará a comparação; se for ele-
vado demais, a utilidade operatória poderá ser afetada. Paradoxalmente, a Essas invariantes devem ser consideradas como esquemasflexíveis, pois raras
analogia modalizante não busca reproduzir o idêntico, mas produzir algo dife- vezes as situações são totalmente semelhantes.
rente, apoiando-se no mesmo. O modelo pode ser mais uma fonte de criativi- A competência só existe se perdurar, e sua existência não pode ser efêmera.
dade do que uma facilidade de reprodução. Relatar uma prática não é apenas Ela deve exercer-se sempre que surgir a mesma atividade a realizar ou que
descrevê-la. O relato é criador do esquema operatório que a subentende. apareça o mesmo problema a tratar. O esquema operatório que constitui a
O profissional sabe extrair "invariantes" que permitirão aplicar a uma competência real deve, pois, caracterizar-sepor uma certa invariância. A esta-
nova situação o saber-fazer aplicado em uma situação conhecida ou familiar. bilidade do esquema é uma garantia de competência.
A capacidade para transpor depende largamente de uma certa capacida-
de cognitiva do profissional: diante de situações ou de problemas distintos, ele
*N. de R. Aprender a aprender implica a apropriação do conhecimento às práticas organi- saberá pôr em execução estratégias cognitivas apropriadas. A abstração refle-
zacionais em diferentes situações, estimulando o processo de reflexão acerca de sua efeti- xiva, o raciocínio por analogia e a transdução serão "ferramentas" muito apro-
vidade. Portanto, requer um tipo especial de autoconhecimento, conhecer a forma com priadas. A capacidade de memorizar esquemas de raciocínio e de mobilizá-los
que se aprende (metacognição). conscientemente é essencial. A aptidão - até mesmo o Wtuosismo -para fazer
e definir representações, ou seja, tanto para lhes dar importância quanto para meio de um longo processo de objetivação que cada um dos participantes
relativizá-las, fazê-las evoluir ou para abandoná-las é um sinal manifesto do explicita progressivamente seus modelos ou suas teorias de ação tais como são
profissionalismo. Essa faculdade de apreender o potencial de transferibilidade realmente colocados em prática, e não como são imaginados ou almejados. O
tange, no profissional experiente, ao insight, à capacidade de reconhecimento método de trabalho segue o ciclo de aprendizagem de Kolb.*
imediato das formas. A acuidade é uma das competências distintivas do profis- Os orientadores fornecerão algo novo ao exercerem uma função de
sional experiente. "reenquadramento". Essa função consiste, dentro de uma nova explicitação da
Aquele que sabe transpor melhor não é, necessariamente, o generalista situação vivenciada, em enriquecer pontos de vista, propondo um novo ângu-
ou aquele que tem conhecimentos gerais sobre tudo. Frequentemente, é aque- lo de análise que abra novos caminhos de reflexão e de aprendizagem.
le que sabe, em determinada área, elevar seu nível de conhecimento a um
ponto tal que sua formalização possibilita a transposição para áreas distintas.
Saber aprender e saber aprender a aprender
Esse desvio permite passar do conhecimento ao saber que permitirá o retorno
a outras situações ou contextos. O profissional sabe tirar as lições da experiência. Ele sabe transformar
Mesmo sendo sempre contextualizada, nem sempre a competência é ne- sua ação em experiência e não se contenta em fazer e agir. Faz de sua prática
cessariamente submetida a um contexto. Distanciar-se do contexto, saber profissional uma oportunidade de criação de saber. Sabe administrar seu tem-
nomeá-lo e descrevê-lo não significa apagá-lo e ignorá-lo, mas avaliar o cam- po não somente em função de imposições a serem respeitadas, mas também
po de transferibilidade e os campos de pertinência da competência. A contex- para fazer dele um tempo de aprendizagem e de auto-realização. O profissio-
tualização não é a cegueira em relação ao contexto. nalismo é um produto da história do profissional e de seu percurso biográfico,
O Quadro 2.11, a seguir, ilustra esse procedimento. quer trate-se de sua vida pessoal, social ou profissional. Esta é uma das impor-
tantes fontes da confiança que lhe é concedida. O cliente do profissional se fia

~ Quadro 2.11

Saber objetivado
Transposição possível
mais na sua experiência do que em seus diplomas. Não se trata, porém, so-
mente de experiências passadas, mas, principalmente, de experiência e de re-
flexão sobre a ação.
Saber agir com pertinência é saber tirar as lições da ação. É isso que
Argyris chama de "saber acionável" (actionable knowledge). É o saber que pode

1
ser aplicado, que é não somente prático, mas que permite obter os efeitos
esperados porque é fundamentado em uma validação das teorias que o suben-
tendem. O saber acionável permite verificar a validação das teorias de ação
que o orientam.
Com Argyris, pode-se, de fato, distinguir dois ciclos de aprendizagem:
---- ------------------ Outro contexto;
a aprendizagem de circuito simples (single loop learning): o sujeita se
-. Transposição difícil outra área
Conhecimentos conduzirá ou agirá de modo diferente, mas sem mudar fundamental-
saber incorporado mente suas representações ou as teorias de ação (valores, princípios
diretores, hipóteses, etc.) subjacentes;
O Le Boterf a aprendizagem de circuito duplo (double loop leaming): o sujeito mo-
difica sua representação em termos de ação para agir diferentemente.
Ele corrige não somente a ação, mas a teoria, a lógica subjacente que
seMu de fundamento à ação.
l
i No Quebec, grupos de co-desenvolvimento profissional, dirigidos por con-

I sultores externos e compostos por profissionais de diversas empresas se reú-


nem para auxiliar os participantes a compreender melhor como eles agem e
para melhorar, conseqüentemente, suas práticas profissionais. Todos g q h a m
em eficácia graças a uma melhor compreensão do modo como agem. E por
*N. de R. O ciclo de aprendizagem se centraliza nas experiência; vivenciadas. Propicia a
visão processual no que se refere à aprendizagem e a formação de competência destacan-
do a importância da ação e reflexão em um processo contínuo que visa a equilibrar as
aqões e abstrações caracterizadas neste ciclo.
/1
80 GUY LE BOTERF

i/ Esse "trabalho reflexivo e retroativo" (Piaget, 1970) é o que permite ela- irnponderáveis, inexprimíveis, intenções ou impulsos, e em função de um sis-
borar modelos operatórios que poderão ser posteriormente investidos na ação. tema de valores ... Isso, o computador não sabe fazer. Essa forte integração
Segundo Bourdieu (1984), entende-se por modelo "todo sistema de relações "biográfica7'que caracteriza o profissionalismo o distingue do saber propria-
entre propriedades selecionadas, abstratas e simplificadas, construído cons- mente dito: a competência é um "atributo do sujeito". Os saberes podem ser
cientemente com fins de descrição, de explicação ou de previsão, e, por isso armazenados em bancos de dados, mas os profissionais não podem incorporar
mesmo, plenamente controlável". competências... A menos que seja nos campi universitários dos "vales", das
Essa representação simplificada da realidade será provisória e forçada a "tecnópoles" e dos "parques" de matéria cinza! O banco das competências
I evoluir. profissionais não é para amanhã! Os bancos de saberes, estes, já existem. Não

'
I
Todas essas operações de elaboração de novos conhecimentos supõem a
execução de inferências variadas (indução, dedução, abdução, construção e
validação de hipóteses, generalização, etc.).
Em Connaitrepar l'action (Conhecer pela ação) (1992), Yves Saint-Arnaud
se poderia confundir a economia dos saberes com a economia das competências.
Esse envolvimento cria a confianfa: o profissional é aquele com quem se
pode contar. Ele não passa cheques sem fundos de seu capital de saber-fazer e
de confiança. Sua competência leva os outros a suporem que ele se compro-
propõe um esquema interessante que evidencia como o grau de questiona- mete a velar por essa área e a tomar as medidas necessárias para isso.
mento dos modelos de intervenção pode depender do grau de especialização Essa noção de envolvimentocoincide com a distinçãofeita por Philippe Zarifian
profissional. O limite dos modelos conhecidos marca o limiar de criatividade entre a competência e as'competências.A competência remete à responsabilização
do profissional-pesquisador. de um sujeito que assegura a imputabilidade das conseqüências de suas decisões
ou de seus atos. Ele se compromete com uma área de responsabilidade em que é
I confiável e assume riscos, que podem existir, segundo Philippe Lorino, em dois
T níveis: "risco cognitivo" de se enganar sobre a representação do problema ou da
1,
Saber envolver-se
!I! situação, "risco operatório" na execução do que estava previsto. E dentro desses
I
:!
Todas as características do profissional que acabam de ser apresentadas limites que se reconhece que ele "tem autoridade para".
supõem seu envolvimento. Capaz de tomar iniciativas e de fazer propostas, ele Algumas empresas, como Spie Batignolles, inspirando-se no conceito anglo-
não poderia esconder-se atrás das instruções e dos procedimentos. E exata- saxão de empowerrnent, visam a facilitar a responsabilização de seus emprega-
mente essa a diferença entre o especialista e o sistema especialista./A compe- dos. Na empresa Spie Trindel, um método "autodiagnóstico-proposição-opera-
tência do profissional não é mais apenas uma questão de inteligência: toda cionalização" foi objeto de uma formação sistemática em 1996.
sua personalidade e sua ética estão em jogo. 1 "A empregabilidade" é a reunião das condições necessárias (formação, atri-
Em muitas profissões, está-se delineando uma importante evolução. Não buições, equipamento, recursos, direito à experimentação, direito ao erro...)
se trata mais de perder a personalidade para se conformar a instruções. As "nor- para que o operador disponha realmente do poder de ação e de iniciativa.
mas" de realização das atividades profissionais se tomam referências em rela- O envolvimento é acompanhado do reconhecimento do direito ao erro.
ção quais cada profissional deverá expressar sua subjetividade. O profissiona- Em certas empresas, o erro é admitido desde que seja imediatamente informa-
lismo não consiste em deixar a personalidade no vestiário antes de se confront* do. O direito ao erro não admite o direito ao atraso de informação.
com uma situação de trabalho. As modalidades de exercício de uma atividade O "saber envolver-se" requerido pela competência não é evidente. Ele
profissional requeridas serão cada vez menos fatores de despersonalização, mas levanta questões difíceis, particularmente no estabelecimento dos contratos
se tomarão ocasiões para afirmar a subjetividade e para fazer reconhecer a de trabalho. Como determinar de antemão o nível requerido de implicação
pertkência de uma resposta singular a um imperativo profissional. quando a capacidade de antecipação dos acontecimentos e da evolução do
E preciso querer agir para poder e saber agir. Há envolvimento tanto da ambiente é limitada?
subjetividade quanto de objetividade. O profissional "habita" sua área de com- É impossível fazer uma lista exaustiva dos níveis de implicação. De um
petência e a incorpora. outro ponto de vista, o profissional não pode, na empresa, fixar seu nível de
O envolvimento do profissional depende de sua "implicação afetiva" na envolvimento independentemente daquele de seus colegas. Ele correria o ris-
situação. Ele a avaliará de modo diferente em função da "coragem" que tem co do isolamento ou da exclusão. Diante dessas incertezas, o empregado assa-
para confrontá-la e, por conseguinte, dos recursos pessoais que está pronto lariado pode referir-se ao que Pierre-Yves Gomez chama de "convenção de
para nela investir. esforço" da organização. Essa convenção, mais ou menos explícita, indica as
Nem todas as decisões são situações de resolução de problemas. O profis- regras comumente admitidas e em função das quais o empregado pode fixar,
sional deve, então, não resolver, mas decidir, e isso em função de múltiplos de maneira autônoma, seu nível de implicação. A convenção de esforço é:
uma estrutura de coordenacão dos agentes que trabalham em uma organiza- essa é uma tendência que se observa atualmente - tentar construir os sistemas
cão. Ela não só estabelece o nível de esforco comumente admitido como normal de classificação sobre critérios de competências. A negociação entre as partes
como também oferece um procedimento de resolucão recorrente dos problemas envolvidas e o acordo ao qual chegam vai fundamentar-se, então, mais na
de determinacão da qualidade do trabalho, emitindo uma informacão sobre as lógica de valorização das competências do que no peso dos postos de trabalho.
regras que estabelecem a implicacão do agente no grupo. (Gomez, 1996) A qualificação supõe que o reconhecimento das competências faça referência
a um sistema de valores. Qualificar é atribuir um valor. Se a qualificação é
É, portanto, em relação a um nível de implicação médio que os ernprega- uma "habilitação7', a competência atribuída habilita a agir com competência.
dos definem sua própria implicação. Saber expressar-se não diz respeito, pois a Se há reconhecimento público de competência, sobre que critérios o julga-
um indivíduo isolado. O envolvimento individual na construção da competência mento será fundamentado? Pelo que se reconhecerá que a atividade é exercida
só tem sentido e pertinência em relação ao envolvimento coletivo. A construção com competência? Merchiers e Pharo propuseram um "modelo de critérios"
das competências também tange à economia das convenções. O envolvimento de reconhecimento.
individual, para se determinar, supõe a referência a um quadro coletivo que não Eles distinguem três tipos de casos:
seja efêmero e se caracterize por uma certa regularidade.
Os casos em que se sabe de antemão, antes do início da atividade,
quais são os critérios que permitem decidir sobre o sucesso da ativida-
de. Pode tratar-se de um resultado pré-descrito ("competência jurídi-
ca"). O oficial do registro civil que celebra um casamento será compe-
O profissional exerce atividades ou resolve problemas com competência, tente se souber respeitar os procedimentos jurídicos e não ... se o casa-
mas quem reconhece a existência do profissionalismo ou da competência? mento der certo no futuro. O eletricista será competente se recolocar
Avancemos mais: tem sentido se autodeclarar competente? La Rochefoucauld em funcionamento e em "estado" de segurança um circuito em pane
já dizia: "não se julga um homem por suas qualidades, mas pelo uso que faz (a corrente elétrica circula).
delas". Não basta se julgar competente para sê-10. Toda competência, para exis- Os casos em que os critérios de sucesso não ppdem ser definidos senão
tir socialmente, supõe a intervenção do julgamento de terceiros. durante a atividade ("competência tática"). E a competência do políti-
Aquele que declara suas competências se compromete: assume o risco co que marca pontos em um debate na televisão.
que se dirija a ele para que as coloque em execução. A falsa declaração pode Os casos em que os critérios de êxito não podem ser descritos "senão
levar à desconsideração. posteriormente". Há um julgamento posterior de conformidade a um
A ação é uma prova. É a razão de ser dos procedimentos e dos dispositi- "ideal", por definição sempre "aberto" e jamais definitivamente atingi-
vos de "validação das competências". Ainda que a expressão possa causar con- do ("competência estética" ou "ética"). Os exemplos do pintor ou do
fusão, não se trata, com efeito, de validar competências preexistentes: é a intérprete de uma obra musical são ilustrativos dessa situação. Esse
validação que caracteriza como competência uma maneira de agir. Julgamen- modelo é interessante porque relaciona critérios de êxito a possibili-
to de competência ou de incompetência, o olhar de terceiros se torna normativo. dades de julgamentos, além de ser um aporte capital à exploração do
A competência não é soment'e um "constructo operatório", é também um conceito de competências e às abordagens operatórias que poderão
--
''constmcto social".
---. - ..--_-,,--
Isso mostra toda a importância que deve ser dada ao dis-
positivo de validação. Uma validação feita por um colegiado minimizará pela
advir disso. Nas práticas de avaliação dos efeitos da formação, a avalia-
ção das competências aplicadas em situação de trabalho não se efetua
intersubjetividade os riscos da subjetividade. a partir do reconhecimento de atividades bem-sucedidas? O modelo
Merchiers e Pharo (1990, 1992) evidenciaram esta dupla dimensão da de Merchiers e Pharo poderia indicar determinações mais acuradas
competência: uma dimensão cognitivo-prática e uma dimensão normativa. Para dos critérios ,utilizados para inferir e reconhecer as competências.
esses pesquisadores, o "sucesso público" é uma condição essencial da compe-
tência, pois supõe um julgamento de validade: "o sucesso em uma atividade Distinguir-se-ão, portanto, .três tipos de julgamento:
supõe alcançar o. objetivo e, simultaneamente, fazer com que terceiros reco- -..-- ..
nheçam essa realização ou essa execução". Sempre há condições para dar pro- -.O .julgamento
L . . , .. . d. & K á G reconhece que a atividade foi realjzada com
vas de competência. Só há êxito quando duas condições estão reunidas: o competência porque permitiu alcançar os resultados esperados. E o desvio
alcance do objetivo buscado e o reconhecimento desse alcance por terceiros. O pelo cle_sIxnh$. Avaliando os desempenhos, infere-se que há competência.
reconhecimento das competências pode levar à qualificação. E possível - e Esse tipo de julgamento tem a vantagem de poder referir-se a critérios de
resultados mais facilmente objetiváveis. Tem, entretanto, o inconveniente de - Ojulgamento de beleza: refere-se às regras da arte. É, evidentemente, o
supor uma relação bastante direta entre a atividade e o desempenho. A expe- mais difícil de fazer e o mais contestável. Esse tipo de julgamento é requerido
riência cotidiana mostra amplamente que múltiplos fatores, além do profissio- nas situações profissionais em que os critérios de resultado ou de realização
nalismo ou da competência, podem intervir no desempenho. O estado dos são dificilmente objetiváveis e tangem mais, às vezes, ao talento do que à
equipamentos, o gerenciamento, os acasos da conjuntura, os fornecimentos competência propriamente dita. O talento de Mozart não se reduzia à sua
interferem muito. competência. O profissionalismo de um arquiteto não se limita a suas habili-
ISSOposto, pode ser pertinente associar alguns indicadores sensíveis (ín- dades técnicas.
dices de retorno de clientes, número de anomalias, prazo de encaminhamento Quanto maior a dimensão "talento" em relação à dimensão "competên-
de produtos, etc.) a um conjunto de atividades e, portanto, de competências cia" nas profissões, mais necessidade há de "julgamentos de beleza".
(regulagem de parâmetros, montagem e desmontagem de ferramentas, etc.). O Quadro 2.13 mostra três tipos de profissões:
Nesse tipo de julgamento, a instância de reconhecimento pode ser com-
posta de responsáveis operacionais, de colaboradores ou de clientes capazes as profissões com dominância de "competência": engenheiro, condu-
de reconhecer e de atestar que houve um resultado. O julgamento de eficácia tor de máquina, enfermeiro, operador de manutenção, conselheiro de
pode ser complementado por um julgamento de utilidade exercido do ponto de clientela, etc.;
vista dos clientes ou dos beneficiários. as profissões com dominância de "talento": ator, músico, poeta, etc.;
- O julgamento de conformidade: também procede por inferência. A com- as profissões "mistas": arquiteto, jornalista, decorador, paisagista, com-
petência foi supostamente operacionalizada se a atividade se realizou de acor- positor, etc.
do com certos critérios de realização. Se, em uma sequência de implantação
de um processo de controle estatístico da qu-alidade, os responsáveis de linha
constroem mapas de controle escolhendo critérios pertinentes e respeitando o
Quadro 2.13
padrão estabelecido, então será possível inferir que são capazes de identificar
parâmetros para estabilizar o processo. Se, em uma oficina, os operadores
efetuam medidas granulométricas em conformidade com critérios, tais como Três tipos de profissões: competências e talentos
levar à imersão no lugar certo ou elevar o peso na precisão exigida, será possí-
vel inferir que souberam aplicar a competência para aferir, calibrar e colocar
em ação ferramentas de medida. Quando se observa que um responsável de
projeto adota procedimentos multicritérios, administra seu projeto como um Engenheiro, condutor
processo iterativo, e não em uma abordagem linear sequencial e combina de de máquina, conselheiro
de clientela, enfermeiro
maneira pertinente recursos variados (técnicos, financeiros, humanos), então
pode-se supor que ele sabe conduzir um projeto em um ambiente complexo e
incerto.
Para poder fazer tal julgamento, a instância de validação é frequentemente
levada a complementar o olhar do responsável hierárquico por meio do ponto
de vista dos "peritos", cujo profissionalismo é reconhecido na área em questão. Profissóes com dominância Profissóes Profissóes com dominância
A maneira de proceder é tão importante quanto o resultado a atingir. de "competência" mistas de "talento"
Essa abordagem permite separar melhor o que diz respeito à pessoa (ela
soube aplicar certos procedimentos, certos gestos profissionais?...) e o que diz O Le Boterf
respeito a seu ambiente.
Os dois tipos de profissões com dominância de competência e talento quecirnento dos bastidores. A obra de arte é imprevisível. Ela é irrupção mais
podem caracterizar-se e distinguir-se da seguinte maneira: do que emergência. Ela deve surpreender, e não cair no academismo, que pode
ser considerado como a garantia total contra os efeitos esperados.
As profissões "mistas" se situam na intersecção das duas anteriores. São
Quadro 2.14 '1'
caracterizadas por encomendas precisas de "produção" (um prédio, um artigo,
uma atuação televisiva, um cenário, etc.) que se espera marcadas, transforma-
Profissáo/Cornpetência Profissões/Talento das pelo talento pessoal. O.estilo
. deve ser tão importante quanto o respeito à
gramática,
.-
Finalização em uma produção Finalização em uma obra ou uma O talento faz parte da competência profissional. É conveniente que o pré-
(bens, serviços) com função de uso. interpretação com função dio agrade, expresse a assinatura do arquiteto, seja bem orientado e resista às
exclusivamente simbólica.
intempéries. As regras de construção, as condições térmicas, a conformidade
A produção esperada pode fazer parte A obra ou a interpretação não são administrativa, o domínio das abordagens topológicas, projetivas ou euclidianas
de u m cronograma de tarefas. redutíveis a u m cronograma de tarefas. são necessários. A qualidade arquitetural, porém, resulta de uma superação
das prescrições funcionais para produzir uma obra que as transcenda e que
O desempenho se caracteriza por uma O desempenho caracteriza o próprio lhes dê um sentido. Uma arquitetura bem-sucedida é uma arquitetura que
produção exterior ao sujeito. sujeito por meio de sua obra.
"convida" a morar, que sugere o deslocamento ou o estacionamento, que esti-
A competência é u m saber agir sobre O talento supõe, mas ultrapassa, mula aquele que a pratica.
uma situaçáo externa ao sujeito. o saber e o saber-fazer: Diferentemente das prescrições, a beleza não se deixa encerrar em uma
ele é a capacidade da pessoa para... definição. Já em 1825, em seu Précis de leçons d'architecture à l'école royale
d'architecture (Compêndio de Lições de Arquitetura na Escola Real de Arqui-
O Le Boterf
tetura), J.N.L. Durand escrevia: 'Rarquitetura é simultaneamente uma ciên-
cia e uma arte: como ciência, ela requer conhecimentos, como arte, ela exige
talentos".
Isso explica muitas dificuldades encontradas nos procedimentos de ava-
Diferentemente do operador profissional, o trabalho do artista não se liação das competências dos empregos de jornalista ou de arquiteto, as quais
conclui por uma produção, mas por uma criação. A obra de arte não diz respei- engendram resistências compreensíveis dos titulares: "nossa competência tam-
to ao utilitarismo. Kant definiu apropriadamente a obra de arte como "uma bém é feita de talento, não se esqueçam disso", expressam. Com que medida
finalidade sem fim". O artista é "um doador de formas". O poema, a sonata, a se vai avaliar o componente talento da competência?
estátua ou o quadro são formas que expressam a personalidade do artista. "A; Ojulgamento de beleza não pode provir senão de uma instância compos-
algo de próprio pode encontrar solução e forma", dizia Rainer Maria Rilke. E ta de pares, de peritos reconhecidos, credíveis e legitimados. Eles serão inves-
visar à emoção, pois criar é, o artista, criar-se e expressar-se. Em sua tidos de um capital de confiança para apreciar tanto o valor de uma obra
Introduction à la méthode de Leonard de Vinci (1895), Paul Valéry observava quanto as regras da arte com as quais ela foi produzida. Esse julgamento é
que "o píntor dispõe sobre um plano pastas coloridas cujas linhas de demarca- delicado: não se refere a um padrão. Deve poder reconhecer a originalidade, a
ção, espessuras, fusões e choques devem servir-lhe para expressar-se". criatividade e, portanto, a superação do que habitualmente se pratica. Esse
E claro que uma criação nesses parâmetros não exclui o saber-fazer. Ela julgamento se apóia mais no reconhecimento de um avanço do que na apreensão
supõe até mesmo que se tenha um domínio extremo dele. O ensino das y t e s de um desvio. Ele deverá, entretanto, saber evidenciar e explicitar os limites
deve levar isso em conta. É preciso, diz Yves Michaud (1993), Diretor da Ecole fora dos quais a obra ou a produção transgridem as regras da arte e não po-
Nationale Supérieure des Beaux Arts (ENSAB), evitar "a ilusão vanguardista: dem ser aceitas. Algumas extensões são significativas: "isso não é mai: jorna-
eliminam-se, assim, os conhecimentos e o saber-fazer em proveito de uma lismo, é engenharia"; "isso não é obra de arte, é mera provocação" ... E verda-
criatividade e de uma espontaneidade que não se ensinam tão facilmente". de, todavia, que essas apreciações não resultam de uma metrologia indiscutí-
Não há arte sem regras. Mas o artista toca, emociona, fascina quando seu vel. Provavelmente, é por essa razão que se apela mais a júris, isto é, a julga-
saber-fazer é tal que acaba por ser esquecido. A magia do teatro supõe o es- mentos cruzados e confrontados, do que a peritos isolados.
As características desses três julgamentos podem ser sintetizadas no Qua- das regras da arte, mas também à aplicasão das qualidades específicas ao su-
dro 2.15. jeito: criatividade, engenhosidade, originalidade, etc. Esse segundo julgamen-
to só pode advir dos pares, e não da hierarquia.
A competência não pode ser definida unicamente como a capacidade para
Quadro 2.15 resolver um problema. Médicos se confrontam com pacientes que não podem
Instâncias
curar, pesquisadores encontram problemas de investigasão, mas nem por isso
Modo de legítimas e Profissões são considerados incompetentes. Há um julgamento da profissão que reconhe-
Área raciocínio credíveis envolvidas ce a competência apesar da incapacidade circunstancial para resolver esta ou
aquela categoria de problema. A competência individual encontra seus limi-
Julgamento feito sobre os inferência - responsáveis Profissões com tes, mas não sua negasão no nível dos saberes alcansado pela sociedade ou
de eficácia resultados e os operacionais dominância de
desempenhos .- clientes competência
por profissão de pertensa a uma determinada época.
O julgamento de reconhecimento representa, certamente, o ponto mais
Julgamento de feito sobre as inferência - responsáveis Profissões com delicado e potencialmente conflitante na gestão das competências. Por detrás
conformidade condições de operacionais dominância de do reconhecimento das competências, perfila-se a questão do reconhecimento
realização e as , - pares e peritos competência e
maneiras de agir profissões
mistas
(competência,
Quadro 2.16
talento)

Julgamento feito sobre a interpretação - pares e Profissões


de beleza obra e as regras "julgamento de peritos mistas e
da arte excedente" (1) profissóes com
dominância
de "talento"

O Le Boterf

(1) Selon Dejours, 1995

Julgamento
de eficácia, de
Na "lógica da honra", d'Iribarne mostrou a que ponto, na França, esse utilidade ou de
reconhecimento da competência podia questionar o sentido da honra próprio conformidade
a cada grupo profissional. Por tradisão, o que cada grupo considera como "hon-
roso" não pode ser fixado por um só indivíduo, nem pela lei, nem pela razão.
E o julgamento dos pares, do grupo profissional, que pode fixar os deveres e
julgar. Isso explica muitas das dificuldades encontradas na implantasão de
dispositivos de avaliasão das competências, sobretudo quando se trata de pro- ideal profissional
fissões caracterizadasde "nobres7'(jornalistas, pesquisadores, engenheiros, etc.) não-identificávelpor
Em sua obra sobre a "identidade no trabalho", Renaud Sainsaulieu observava uma lista estanque
que os operários profissionais que são, na verdade, mestres profissionais, só
admitiam a autoridade decorrente da competência e do reconhecimento dos
companheiros. O julgamento de competência pode ser feito tanto sobre o re-
sultado quanto sobre as maneiras de fazer ou agir. E o que Dejours, em suas
pesquisas de psicodinâmica do trabalho, chama de "julgamento de utilidade" (1) Selon Dejours
e "julgamento de beleza". O primeiro trata dos resultados, dos desempenhos, Fonte: Adaptação do modelo de Merchiers e Pharo (1990) e de Dejours (1994)
da contribuição do sujeito; o segundo se consagra não somente à aplicasão
da incompetência. E ela é temível. Em uma sociedade do saber, o julgamento Quadro 2.17
de incompetência equivale a uma ameaça de exclusão. Existe uma certa vio-
lência do julgamento de competência, uma espécie de ultimato: "Você deve Modelo "A" Modelo "B" , -
provar que é competente, senão será qualificado de incompetente e sofrerá as (Concepçáo taylorista e fordista) (Perspectiva da economia do saber)
conseqüências disso!"
Para existir socialmente, a competência precisa ser reconhecida. Não ser Operador ------------b Ator
reconhecido como competente é não ser reconhecido como útil. Autodeclarar- 1 - - - - - - - - - - - -b I
Executar o prescrito Ir além do prescrito
se competente sem o reconhecimento de terceiros se torna logo insuportável.
I I
A autodesvalorização e a superestimação manifestarão a patologia resultante. Executar operaçóes - - - - - - - - - - - -b Executar açóes e
Isso mostra a importância que se deve dar à escolha das instâncias de

1
reagir a acontecimentos
avaliação, à co-avaliação, ao cruzamento dos pontos de vista e dos olhares, à
consideração dos elementos do contexto (organização do trabalho, delegação
de poder, gerenciamento, equipamento, infração disponível, etc.), aos proce- Saber-fazer ------------b I
Saber agir
dimentos de recursos e de arbitragem, etc. A questão central não deveria ser: 1 1
por que houve ou não criação de competências? Adotar um comportamento - - - - - - - - - - - -b Escolher uma conduta
1 ------------ b 1
Malha estrita para Malha larga para
identificar a competência identificar a competência
1 ------------ b 1
O Quadro 2.17 mostra os dois "modelos" da competência que interferem Gerenciamento Gerenciamento
atualmente nas práticas de gestão. Se a emergência de uma economia do sa- pelo controle pela condução
ber tende a favorecer a passagem do modelo 'R"ao modelo "B", a observação 1 I
cotidiana revela que eles coexistem nas organizações. Finalização sobre ------------b Finalização sobre
No modelo 'X', herdado das concepções tayloristas e fordistas, o sujeito é o emprego a empregabilidade
considerado como um operador cuja competência se limita a saber executar
operações de acordo com a prescrição. A competência se limita a um saber- O Le Boterí
fazer descntivel em termos de comportamento esperado e observável. Uma
competência se descreve com uma malha estrita e coerente com o parcelamento
do saber-fazer. Nesse modelo, a competência é objeto de um gerenciamento
pelo controle.
No modelo "B", prefigurando, talvez, o que se instala com a escalada da
economia de serviço, o sujeito é considerado mais como um ator do que como profissionalismo é um gerenciamento pela condução: o gerenciador procura
um operador. O profissional competente é aquele que sabe ir além do prescri- agir mais sobre o contexto favorável à emergência da competência do que
to, que sabe agir e, portanto, tomar iniciativas. Diante de ações requeridas, sobre a própria competência.
considera-se que existem várias maneiras de ser competente e que diversas
condutas podem ser pertinentes. A conduta não se reduz a um comportamen-
to. A malha escolhida para descrever a competência é bastante ampla: ela
reconhece a faculdade, no sujeito, de desencadear e de conjugar recursos e
ações. Ela não confunde a competência e os recursos (saber, saber-fazer, etc.) O Quadro 2.18 propõe um resumo das principais características espera-
a serem mobilizados para construí-la. O gerenciamento da competência ou do das do profissional.
92 GUY LE BOTERF

Quadro 2.18

-3 saber agir e reagir


com pertinência

Q-
-
-
-
-
saber o que fazer;
saber ir alBm do prescrito;
saber escolher na urgência:
saber arbitrar, negociar,
decidir;
saber encadear ações
de acordo com uma
finalidade.

-3 saber combinar
recursos e
mobilizá-los em
um contexto

Q-
-
saber construir compethcias
a partir de recursos;
saber tirar partido não
somente de seus recursos
incorporados (saberes,
saber-fazer, qualidades),
mas tambBm dos recursos
de seu meio.
uma Dupla Instrumentalização

if
- saber memorizar múltiplas
situações e soluções-tipos:
- saber distanciar-se, funcionar
O profissional: "em dupla direção";
aquele
- saber utilizar seus UMA DUPLA INSTRUMENTALIZAÇAO
metaconhecimentos
que sabe para modelizar;
administrar -3 saber transpor - saber determinar e Se a competência consiste em saber mobilizar e combinar recursos, quais
uma situação interpretar indicadores
profissional de contexto: seriam estes?
complexa. - saber criar as condições Propomos considerar que o profissional dispõe de uma dupla instrumenta-
de transponibilidade com
o auxllio de esquemas lizafão, a qual domina:
transferlveis.
- a instrumentalização de recursos pessoais;
- saber tirar as liçóes da
- a instrumentalização de recursos de seu meio.
experiência; saber
-3 saber aprender transformar sua ação
e aprender a em experiência:
aprender
- saber descrever como A instrumentalização de recursos pessoais é incorporada: é constituída
se aprende:
- saber agir em circuito duplo por saberes, saber-fazer, aptidões ou qualidades e por experiências acumuladas.
de aprendizagem. A instrumentalização de recursos do meio é objetivada: é constituída por
máquinas, instalações materiais, informações e redes relacionais.
- saber envolver sua A competência se baseia nessa dupla instrumentalização, mas não se con-
subjetividade;
-3 saber envolver-se - saber assumir riscos;
funde com ela. A competência é a faculdade de usar essa instrumentaliza~cíode
- saber empreender; maneira pertinente.
- Btica profissional.
Usando uma analogia lin@'stica, poderíamos abordar a definição da com-
- petência utilizando dois eixos:

O Le Boteri - O eixo paradigmático: é o eixo do repertório, do léxico. Poderíamos


acrescentar: o eixo do equipamento, dos recursos.
- O eixo sintagmático: é o eixo que permite articular os elementos do
paradigma para produzir sintagmas, isto é, frases ou discursos.
94 GUY LE BOTERF
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS 95
Distinguiremos mais particularmente dentre esses recursos:
O eixo sintagmático é o eixo da combinação: é nesse eixo que é exercida a
compe;ência lin@ística, permitindo produzir novos enunciados, sem interrup-
ções. E o eixo da competência do profissional, que se caracteriza pela capacida- saberes teóricos;
de de exercer novas atividades ou competências, construir competências adap- - os saberes saber do meio;
tadas, enfrentar acontecimentos, saber agir e reagir em contextos variados. saberes procedimentais.
Esse eixo da combinação desempenha um papel de "diretor" do equipa-
mento. O Quadro 3.1 resume essa analogia. os saber-fazer formalizados;
- os saber-fazer os saber-fazer empíricos;
os saber-fazer relacionais;
os saber-fazer cognitivos.
Quadro 3.1 - as aptidões ou qualidades;
- os recursos fisiológicos;
- os recursos emocionais.
Eixo do paradigma ou
do equipamento
(relação de recursos) O Conselho Europeu de Profissionais em Informática elaborou um refe-
A rencial de competências para os profissionais de informática. Seus tópicos são
significativos. Aqui, distinguem-se efetivamente:

- o know-how: as habilidades, as astúcias, o saber-fazer experiencial;


- o know what: a percepção do problema, a compreensão de suas di-
mensões, de sua estrutura;
- o know whom: o saber de rede, o conhecimento de quem possui os
conhecimentos ou as competências;
Eixo sintagmático ou
- o know how much: o senso dos limites, da medida;
eixo da combinação, - o know why: o conhecimento das razões de agir;
' para produzir enunciados
ou competências
- o know when: o senso da oportunidade do timing.

O Le Boterf Os saberes

Os saberes teóricos

Estes servem para entender: um fenômeno, um objeto, uma situação, uma


OS RECURSOS INCORPORADOS AO PROFISSIONAL organização ou um processo. Visam a descrever e a explicar seus componentes
ou sua estrutura, a depreender suas leis de funcionamento ou de transforma-
A elaboração de representações operatórias e a imagem que tem de si ção, a entender seu sentido, sua razão principal. Trata-se mais de um "saber
mesmo permitem ao profissional desejar e saber mobilizar de maneira perti- que" (knowing-that) do que um "saber como" (knowing-how). Referem-se mais
nente um conjunto de saberes, saber-fazer, aptidões, qualidades pessoais e aos procedimentos do que aos processos. São saberes de inteligibilidade. Pede-
experiências. Esses recursos incorporados, ou seja, inseparáveis de sua perso- se ao profissional não apenasfazer bem, mas entender aquilo que faz. O saber
nalidade, são heterogêneos, irregulares. Uma das características essenciais da teórico é necessário para explicar as anomalias e orientar as decisões de inter-
competência consiste em escolhê-los e combiná-los em relação a objetivos vi- venção, as iniciativas a serem tomadas. Respondem mais à peqgunta "Como
sados (problemas a resolver, projetos a conduzir, atividades a realizar, etc.). funciona?" do que a "Como se faz funcionar?". Neles podemos encontrar con-
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS 97

ceitos, conhecimentos disciplinares, conhecimentos organizacionais e conhe- exercício de atividades profissionais, mas atingir níveis de conhecimentos em
cimentos racionais. São teoremas fundamentais, os princípios da eletricidade, diversas disciplinas. Os conhecimentos disciplinares são adquiridos "com dis-
a teoria cinética dos gases, a dinâmica dos fluidos, a legislação européia, as ciplina". Sua lógica de aquisição corresponde a métodos precisos. Se a lógica
noções-chave da economia monetária, etc. disciplinar deve ser distinguida da lógica profissional, o fato é que ela contém
Examinemos alguns deles: seu próprio rigor e sua pertinência, especialmente no âmbito da formação
inicial.
Os conceitos: existem frequentemente em forma de cadeias conceituais Por estarem fora da pessoa, às vezes os qualificamosde saberes "exógenos".
que os definem uns em relação aos outros. As vezes, são designados O profissional, para ser eficaz em sua prática, terá, muitas vezes, de mobilizá-
pelo termo de "redes semânticas". Neles encontramos o vocabulário 10s e combiná-los. O manejo de um explosivo em uma mina supõe que o capa-
técnico de base de uma disciplina ou de um campo de ação. taz convoque seus conhecimentos teóricos sobre os explosivos. Ele deve evo-
Os saberes disciplinares: contêm teorias, leis ou regularidades quanti- car a mecânica racional, que lhe indica que uma rocha não se quebra com a
ficáveis, conceitos e parâmetros, hipóteses explicativas relacionadas a compressão, mas com a tração. Esse tipo de conhecimento é pertinente no
uma disciplina particular (física, química orgânica, mecânica dos flui- contexto tecnológico contemporâneo, mas não o era no tempo em que o traba-
dos, transmissão de calor, eletromagnetismo, sociologia das organiza- lho era feito com a picareta. Da mesma forma, será preciso que o profissional
ções, direito comercial, legislação do trabalho, etc.). Estão organiza- de manutenção tenha conhecimentos teóricos de eletricidade, hidráulica e ele-
dos em corpora estruturados. São considerados independentes daque- trônica para poder efetuar consertos.
les que falam deles ou os utilizam.

Esses saberes teóricos não têm finalidade própria. Não procuram indicar
o que é preciso ser feito. Não vêm acompanhados por nenhum manual de
instruções. Sua razão principal não é dar lugar a aplicações, mas podem servir Saberes teóricos
a múltiplas ações diferentes. (exemplos)
Isso significa que eles não têm utilidade? Claro que não! Esses saberes
desempenham um papel heurístico: permitem orientar a ação, facilitar a cons- O Teoremas fundamentais O Noções-chave de economia monetária
trução de representações operatórias, tornar possível a formulação de hipóte- O Princípios de eletricidade O Sociologia das organizações
ses. T~ata-se,porém, mais de efeitos induzidos do que de objetivos imediatos. O Teoria cinética dos gases O Direito comercial
E um saber não-ativo. Gérard Malglaive observa, com razão, que a rela-
ção que tal saber mantém com a prática. é uma relação de intervenção, e não O Dinâmica dos fluidos O Agronomia vegetal
uma relação de aplicação. O saber teórico não está desvinculado da prática, O Legislação européia O Nutrição animal
mas se desenvolve segundo suas próprias leis. Não existe subordinafão mútua,
O Le Boterf
m:a sim questionamento m'tico. O saber teórico é um saber relativamente está-
vel, de lenta evolução. As mudanças de paradigmas não são cotidianas. Após
períodos de transição mais ou menos longos, podem ser operadas reconstru-
ções importantes em um campo de competências. A mudança de paradigma,
para uma teoria, pode, então, constituir uma revolução científica.
Esses saberes teóricos são objeto de uma formalização. Podem ser expres- OSsaberes do ambiente
sos em uma linguagem natural ou simbólica. Essa explicação permite sua trans-
missão e superação, além de favorecer sua memorização. Podemos comparar Com esse termo, propomos designar o conjunto dos saberes que se refe-
esses saberes às bases de conhecimentos que figuram nos sistemas especialistas. rem ao contexto no qual o profissional intervém. Ele compreende componen-
Elas reagrupam o conjunto dos saberes de um campo e constituem uma me- tes diversos: equipamento, sistema de gestão, regras e tipos de gerenciamen-
mória a longo prazo. . a
to, cultura organiz?cional, códigos sociais, características dos clientes, produ-
Esse saber geral é difundido, n a maioria das vezes, pela escola e pela tos e serviços, etc. E o saber que trata dos dispositivos sociotécnicos nos quais
formação. E o ensino geral, cuja finalidade não é preparar diretamente para o o profissional age.
98 GUY LE BOTERF

Podemos distinguir primeiramente: Quadro 3.3


Saberes do ambiente (exemplos)
Os saberes sobre osprocessos. Descrevem o funcionamento, as etapas, o
encadeamento dos processos. Entre aqueles que são necessários a ope- O Conhecimento das máquinas O Características dos clientes
radores ou condutores de instalações, podemos apontar: a representa- O Saberes sobre as características O Sistema de gest5o
ção coerente da lógica do processo, o domínio intelectual do processo dos produtos/serviços
de transformação da matéria, o conhecimento das etapas de fabrica- O Regras e tipos de gerenciamento O Cultura de empresa
ção de um produto, a compreensão dos procedimentos de fabricação O Le Boterf
dos componentes, etc.
Os saberes sobre os materiais e os produtos. Referem-se às instalações
ou às máquinas, produtos fabricados, componentes e apetrechos, etc.
Os saberes organizacionais. Aqui, encontram-se os organogramas e fun-
ções da empresa, a descrição de uma rede comercial, a organização do Os saberes procedimentais
trabalho, etc. E um "saber de exploração".
Os saberes sociais. Podem englobar: a estrutura de clientes, o resultado Visam a descrever "como deve ser feito", "como proceder para". Permi-
de uma pesquisa social, as conclusões de estudos de mercado. tem dispor de regras para agir. Ao contrário dos saberes teóricos, que são ex-
pressos independentemente das ações que poderiam utilizá-los, esses saberes
Se a competência profissional só existe quando posta em ação em um con- são descritos com vistas a um? ação a ser realizada. Sua formulação é inseparável
texto de trabalho, esse saber sobre o contexto é essencial, pois permite que o de seu.modo de emprego. E a distinção entre o saber "como funciona" e o
profissional se adapte à contingência das situações, "sinta" o terreno, considere saber "como fazer funcionar".
o possível e o aceitável, compreenda as linhas de força e as potencialidades, Para fazer uma analogia, o mapa geográfico está para o saber compreen-
ajuste as decisões a serem tomadas ou as atividades a serem realizadas, antecipe sivo assim como o itinerário recomendado está para o saber operatório. Ao
as reações dos dispositivos e das pessoas. E o saber que toma possível o ajuste mesmo tempo em que o.mapa é utilizável para múltiplos percursos, o itinerá-
sob medida, que intervém quando aquele que tem uma profissão a exerce em rio recomendado é um procedimento a ser seguido.
um emprego específico em uma organização. Os saberes do ambiente dão ao O saber procedimental propõe uin guia de instruções para um sujeito
profissional a possibilidade de interferir em uma situação particular, de adotar individual ou coletivo.
condutas pertinentes em relação a um contexto, e não apenas em relação a uma Para efetuar um levantamento de uma fazenda, um agrimensor diria
profissão, de aumentar a funcionalidade das representações que servem para (Lehabar, 1983):
guiá-lo. Eles lhe dão a faculdade de conhecer não só métodos e técnicas, mas o
âmbito no qual se inserem. Um método de engenharia deverá submeter-se a
Determinarei primeiro as dimensões das diagonais, o que evitará que eu calcule
adaptações distintas, conforme se tratar do contexto de um projeto de pesquisa, os ângulos dessa construção no terreno, pois obterei o mesmo resultado com
de um plano de formação, da fabricação de um produto ou de uma obra indus- uma simples corrente de agrimensor, que me dará a dimensão de cada lado e,
trial. conseqüentemente, poderei constr& graficamente minhas superfícies na esca-
Os saberes contábeis não serão exatamente os mesmos em uma empresa la, os ângulos serão deduzidos disso por si próprios. Preciso tomar a direção dos
siderúrgica e em uma empresa de consultoria: nem todos os coeficientes e diferentes pontos cardinais com uma bússola para anotar a orientação do plano
parâmetros serão uniformemente pertinentes. Não se administra uma empre- da construção. Minha informação estará, então, definitivamente estabelecida.
sa de consultoria da mesma maneira que uma empresa têxtil. ,
Esses saberes de contextualização podem ser mais ou menos formaliza- Esses saberes operatórios descrevem procedimentos, métodos, modos ope-
dos, conforme seu objeto. A descrição de uma aparelhagem ou de um sistema ratórios, isto é, encadeamentos explícitos de operações ou séries ordenadas de
de gestão pode ser objetivada por escrito e posta em um dispositivo documen- ações orientadas para a realização de um objetivo determinado. São conjuntos
tal. O mesmo, porém, não ocorrerá com o conhecimento da cultura de uma de instruções a serem realizadas em uma ordem estabelecida. Podem apresen-
empresa ou de um meio profissional: alguns traços poderão ser facilmente tar-se sob a forma de um gráfico orientado, comportando diversos encaminha-
explicitados; outros estarão relacionados a uma intuição ou a uma sensibilida-
de menos formalizável.
100 GUY LE BOTERF DESENVOLVENDOA COMPETÊNCIADOS PROFISSIONAIS 101

mentos possíveis em funqão dos resultados obtidos nas etapas de execuqão. Saber-fazer ou capacidades operacionais
São finalizáveis e aplicáveis a um campo específico e determinam as condiqões
de aplicaqão das operaqões a serem seg~ucl~is. Os procedimentos podem ser Os saber-fazer formalizados
decompostos em microprocedimentos (pressionar a tecla "entra", selecionar
graqas ao botão giratório, etc.). Podem ser da ordem da execuqão (referindo- São constituídos por condutas, métodos ou instrumentos cuja aplicaqão
se a algoritmos) ou da elaboraqão de novos procedimentos (ligados às condu- prática o profissional domina.
tas heurísticas). Nesse segundo caso, os saberes procedimentais do tipo "mé- Saber ler um mapa, conduzir e concluir uma negociaqão comercial,
todos de resoluqão de problema" permitem selecionar e produzir outros tipos posicionar uma peqa em relaqão a uma soldagem, etc., são habilidades, capa-
de conhecimentos. cidades para realizar operaqões. Não são saberes procedurais, mas saber-fazer
Os saberes procedurais são formulados do ponto de vista de seu usuário, procedurais. Aqui, não se trata de "saber descrever" um procedimento (de
que pode, assim, seguir as etapas que lhe são propostas. E o saber dos manuais, resoluqão de uma equaqão de segundo grau, de recuperaqão de acidente, de
dos guias práticos e dos modos de uso. reparaqão eletrônica, de elaboraqão de um plano de formaqão, etc.), mas de
Entre os saberes procedurais formalizados, encontraremos as estratégias ou dominar a sua aplicaqão. Como escreveu Jean-Marie Barbier: "o saber do sa-
os métodos de resoluqão dos problemas, os esquemas de busca de informaqões ou ber-fazer não basta".
aqões, os modelos de análise, as regras operatórias e as regras de aqão, os prina- Analisando o caso de uma catástrofe aérea ocomda em janeiro de 1982, em
pios diretores de intervenqão, as condiqões a serem reunidas para obter determi- Washington, com um Boeing da Air Florida, Amalberti evidenciou e distinguiu:
nado efeito ou resultado. Esses saberes podem ser enriquecidos pela aqão, mas
são adquiridos por meio de sistemas formais de educaqão e de formaqão. . - os conhecimentos teóricos e procedurais que os pilotos possuíam so-
O Quadro 3.4 fornece alguns exemplos de saberes procedurais extraídos bre o sistema antigelo;
de diversas fichas descritivas de empregos e competências. - a ausência de experiência dos pilotos a respeito da aplicaqão de co-
O operador pode muito bem dominar conhecimentos procedurais sem nhecimentos procedurais em circunstâncias particulares.
possuir os conhecimentos teóricos correspondentes. Ele poderá fazer uma
máquina funcionar ou consertá-la sem conliecer seu funcionamento. Podemos O quadro a seguir, propõe alguns exemplos diversificados de saber-fazer
conhecer um algoritmo sem possuir a estrutura conceitual que o constitui. formalizados.

Quadro 3.4
Quadro 3.5
Saberes procedimentais
(exemplos diversos) Saber-fazer formalizados
(exemplos diversos)
Método de resolução de uma equação de segundo grau ..
Procedimento de diagnóstico de uma avaria Saber usar terminais informatizados
a Procedimento de correção de erro em u m programa Saber ler e entender u m mapa
Procedimento de controle de u m processo industrial Saber desenhar u m mapa cotado a partir de u m gráfico
Procedimento de conserto de u m circuito eletrônico Saber usar u m software CAD
Método de elaboração de u m plano de formação Saber aplicar uma conduta preventiva contra avarias
Procedimento de tratamento de inconformidades Saber conceber u m programa autômato
Técnica de conduta de uma avaliação de desempenho Saber redigir procedimentos
Método de análise do valor Saber construir u m diagrama de Gantt
Procedimento de atualização dos estoques Saber conduzir uma reunião para estudo de problemas
~ ..
Método de elaboração do diagrama de ~ a r e t ò Saber posicionar a peça em relação à soldagem, etc.
As regras e as formas de segurança, etc. O Le Boterf
O Le Boterf
102 GUY LE BOTERF

Os saber-fazer empíricos A inteligência prática é uma inteligência do corpo. É a desestabilização


do corpo, alertado por sinais (visuais, auditivos, etc.), que suscita e acompa-
É o saber oriundo da ação. Compreende as lições tiradas da experiência nha a inteligência prática. Ela não passa pela problematização formal. Esse
prática. É o saber do ator, aquele que só pode ser produzido se houver uma saber sabe estimar, de imediato, uma situação, "tomar atalhos", interpretar
ação. De maneira divertida, Paul Romer distinguiu: o hardware (o material), o inconscientemente a informação útil ou dispensar o encadeamento de opera-
software (os programas, o saber) e o wetware (o elemento úmido, vivo). Este ções mentais.
último se refere ao saber-fazer experiencial, ao talento do artista, ao conheci- O biológico, o cognitivo e o afetivo não formam comportamentos estan-
mento tácito. ques. Não esqueçamos a lição de Merleau-Ponty que previne contra as aborda-
Fazendo referência às três categorias de saber identificadas por Machlup, gens ou as explicações que "destroem a mistura da qual somos feitos e nos
uma equipe de pesquisadores da Universidade de Ottawa evidenciou e cha- tornam incompreensíveis a nós mesmos". Eis a experiência do marceneiro:
mou a atenção para o que denominou conhecimento do tipo delta (delta "Eu a ouvia [minha máquina]. O menor barulho era uma indicação. Olha lá,
knowledge). Machlup distingue três tipos de conhecimentos: os conhecimen- eu me dizia, é a correia enfraquecendo. Logo, terei de lubrificar a polia ..."
tos aIfa (conhecimentos humanistas referentes a valores, crenças, julgamen- (Caceres, 1984). E também a experiência dos ajustadores mecânicos, confron-
tos); os conhecimentos beta (conhecimentos científicos formados por dedu- tados com a prática da ranhura no aplainamento de um bloco de aço doce: é
ções, axiomas, definições, modelos aplicáveis às ciências exatas); os conheci- preciso "ehcontrar uma posição estável nas pernas, manter os braços correta-
mentos gama (referentes às ciências sociais). Tal classificação não é exaustiva: mente e deslocá-los juntos horizontalmente, sem imprimir na lima o movi-
tem o inconveniente de minimizar e deixar de lado o saber oriundo da prática. mento basculante que deixa a superfície côncava7' (Langlois, 1983). Um orga-
Isso é particularmente observável no ensino universitário. nizador experiente das linhas de trens em uma estação da rede ferroviária
Por essas razões, mas também por razões de busca de financiamento para pode apontar, em um piscar de olhos, as anomalias que aparecem no diagrama
formações em administração que não dizem respeito às disciplinas universitá- dos acessos às plataformas ou em um quadro de sucessão de trens. O controlador
rias preestabelecidas, Gilles e Paquet criaram a noção de "conhecimento delta". de v60 entende, de imediato, as configurações dos diversos traçados de v60
O conhecimento do tipo delta é osaber que se adquire "durante a ação", em sua tela.
por intermédio da experiência, da prática repetida do tratamento "na hora" Entre os controladores de vôo, a voz e o ouvido desempenham um papel
dos problemas profissionais, de aproximações reali~adasaos poucos, por meio importante. Não se trata somente de perceber com perspicácia uma tela de
da recorrência de situações similares ou próximas. E um saber contextualizado radar, mas de estar atento à voz do piloto para reconhecer o estado psicológico
e contingente, que leva em conta aquilo que a teoria negligencia. Permite per- em que ele se encontra, qual é seu nível de domínio do inglês, qual é seu
ceber os "sinais fracos", apontar os "indícios" que levarão ao caminho certo do estado emocional, etc. O controlador de v60 sabe reconhecer a "cor da voz" do
diagnóstico e da ação. piloto. Ele deve saber trabalhar uma "atenção flutuante'' aberta ao imprevisto
Para não ser pego desprevenido, o saber-fazer experiencial multiplica as e ao inédito.
experiências para aprender a reconhecer os sinais anunciadoses. O ver pre- Outro exemplo: o "senso clínico" do médico que sabe escolher as pistas
valece sobre o prever. O saber "dar uma olhada" não se origina da observa- clínicas mais pertinentes e reconhecer dentre todos os sinais levantados aque-
ção de séries estatísticas. É um saber que requer, frequentemente, uma les que podem ser considerados como sintomas.
mobilização dos saberes do corpo e dos sentidos (visão, postura, reflexos,
sensibilidade, etc.) . O profissionalismo também éfeito de perspicácia.
É o "olhar" do fomeiro que sabe estimar a temperatura em função da cor Esse saber-fazer empírico, inseparável do fazer, é validado mais por sua
da matéria em fusão. É o "ouvido" do fundidor de sinos ou do sineiro que asse- eficácia pragmática e imediata do que por sua coerência interna.
gura a sonoridade do sino. É o "nariz" do perfumista que sabe caracterizar o A experiência é que permite fazer o que não aprendemos a fazer. O "saber
odor sutil de um perfume. É a "intuição" da enfermeira que sabe apontar, mais local" presente na experiência se constitui em complemento ou em confirma-
rápido do que o residente, o doente que vai apresentar complicações nos minu- ção com o saber daqueles que o concebem.
tos seguintes. É o "olhar" do radiologista que interpreta uma chapa fotográfica. Esse saber-fazer é adquirido pela experiência da implantação de máqui-
E o gesto seguro do pedreiro ao lançar o cimento com a sua pá. Segundo nas novas, pela reorganização da função do serviço de atendimento ao consu-
Schumpeter, o olhar e as intuições também são necessários ao saber inovar. midor, pela instalação de um novo processo de fabricação, pelo tratamento de
uma avaria ou deficiência, pelo acompanhamento dos ensaios efetuados pelos o local onde vai a porta e explica que se deve deixar uma folga de, no mínimo,
construtores, pela organização e pelo tratamento sistemático dos resultados um cent,ímetro por toda a volta. Faz-se isso porque é preciso ajustar a porta
de experiências (muito desenvolvido,por exemplo, na indústria nuclear). Sendo depois. E preciso que a porta siga os padrões do aparador. Em segujda, o artesão
um saber não-escolarizável, resulta da formação "no local de trabalho", do passa à colagem e mostra aos aprendizes como se deve colar. E preciso que
trabalho "de revezamento" ou de uma relação de cooperativismo, cuja peda- saibam por que esta ou aquela operação é necessária.
gogia muitas vezes não é explicitada por parte daquele que guia ou acompa-
nha a aprendizagem: o sujeito aprende pela impregnação lenta e progressiva Explicação dafunção das ferramentas
da profissão. . Quando a colagem estiver terminada, é preciso que o orientador mostre como
Saber este adquirido por meio da "pedagogia da disfunção", teorizada deixar o aparador secar. E obrigatório recorrer a um nível de bolha. Deve-se,
por Bertrand Schwartz. então, passar ao aplainamento e mostrar como evitar os empenos. Depois, é a
Portanto, se esses problemas não forem mais considerados como falhas, vez do lixamento. Deve-se mostrar como se utilizam as folhas de lixa.
mas como oportunidades de reflexão, os jovens em formação aprenderão a
entender melhor os processos de produção. Apresentação dos procedimentos errados
Tive a oportunidade, no outono de 1983, de estudar com o BIT (Bureau
Agora, passa-se à furacão. É raro os aprendizes colocarem as fechaduras. É pre-
Internacional do Trabalho) os processos de formação dos "aprendizes" no se- ciso que o aprendiz o faça sob o controle do artesão. Um parafuso não foi feito
tor da economia informal de Bamako, em Mali. A partir de um trabalho de para ser martelado, mas para ser parafusado. Passa-se ao verniz, agora. É raro
observação e da expressão dos artesãos e aprendizes, alguns elementos cons- encontrar aqui um trabalhador que saiba envernizar. Ele acredita que passar o
titutivos desses processos puderam ser evidenciados. verniz apenas como uma pintura será suficiente. É preciso saber misturar o
Eis alguns exemplos: verniz e saber como espalhá-lo. Deve-se saber passar em pinceladas paralelas
ou cruzadas. Depois, é preciso polir. Em seguida, deve-se passar a terceira de-
Situação de descoberta de. um problema - Exploração pedagógica mão. Depois, é preciso nivelar.

O orientador manda as crianças escolherem a madeira. Elas vão escolher a ma- Vamos deter-nos, agora, em um segundo caso, o da formação de um apren-
deira que não está boa. Ele as deixa fazê-lo. Em seguida, o orientador lhes explica
por que é preciso escolher tal madeira. Ele as coloca diante da escolha das madeiras.
diz no próprio local do trabalho, tal como a concebe um mestre-de-obras na
construção civil:
Demonstração e explicação Acompanhamento - observação - prova-teste - demonstração - aplicação
Na hora de cortar a madeira, elas a trazem. O orientador vai cortá-la em 3,5m. controlada - correçóes
Ele explica por que se deve cortar em 3,5m e não em 3m, pois, se houver uma Um aprendiz vem ao canteiro de obras, você lhe dá uma pá de pedreiro, um
falha, pode-se, então, comgi-Ia facilmente. Em seguida, ele chega ao aplai- martelo, um fio de prumo, um cinzel. Ele está com você no canteiro. Agora,
namento e explica qual é o melhor método para aplainar. antes de começar, se você fez uma escavação, você lhe dá a pá de pedreiro. O
peão faz a mistura e começa a colocar na escavação. O aprendiz observa e de-
Demonstração e aplicação pois faz. Depois da escavação, começa-se a fazer a fundação. Logo, começa-se a
colocar a argamassa. Então, você chama o aprendiz e, com o fio de prumo,
Chegamos, então, ao desenho dos elementos. Nesse momento, o orientador pede-lhe "nivele para mim". Você observa como ele nivela. Se estiver bom, você
chama os aprendizes: o aparador tem 60cm de altura, o pé tem 15cm, restam diz que é preciso observar, que é assim que se nivela. Se não estiver, é preciso
45cm para a fachada do aparador. O artesão desenha de um lado. Ele manda o explicar como se nivela. Em seguida, passa-se a linha de pedreiro. Você o man-
aprendiz repetir os desenhos nos outros lados. Ele deve explicar os encaixes e da assentar os tijolos. Você o deixa fazer e o manda endireitar. Se não estiver
por que eles existem. O rapaz aprende as diferentes maneiras do desenho. Ele bom, é preciso fazê-lo endireitar. Depois, é preciso situá-lo. É preciso lhe mos-
lhe mostra, então, como ajustar um graminho. Depois, ele mostra como cortar trar um pouco como fazer e observar. Então, se ele souber fazer, você o deixa
para dar.forma ao encaixe. trabalhar.

Explicação dos motivos d a operação e demonstração Vamos estudar um último exemplo, o de um artesão em construção metá-
Chegou a vez de montar o madeiramento. Falta desenhar as portas. O orientador lica contando algumas sequências de formação de um de seus aprendizes:
lhes mostra como desenhar uma moldura de portas. Ele lhes faz medir primeiro
Observação - prova-teste - observaçáo/demonstração - correçáo neralização. Essas referências variam com as situações, são contingentes. En-
Quando um aprendiz vem, ele me observa quando estou trabalhando. Ele ob- quanto a ciência objetiva postula que se pode isolar o saber daquele com quem
serva tudo o que faço. Durante um mês, ele observa como é, de que maneira se se fala, o saber do salineiro é inseparável dele mesmo: "o saber-fazer se enun-
faz. Depois, para serrar, dou-lhe um serrote que não se quebre tão rápido. Se for cia como um saber-viver". Ao contrário do saber teórico científico, o saber-
um aprendiz que está na escola e que sabe medir, dou-lhe dimensões para cor- fazer experiencial não é essencialmente quantitativo. O quantitativo é traduzi-
tar. Frequentemente, ele sabe medir, mas não sabe cortar. Depois, conduzo-o à do por qualitativo. Para avaliar o grau de salinidade da água, uns irão apoiar-
bancada. Ele já me terá visto cortar durante, no mínimo, um mês. Ele começa a se em sua composição: taxa de concentração em sais deduzidos do grau de
serrar, e eu o comjo. Não posso deixá-lo fazer todo o trabalho. acidez da água e de sua temperatura, esta interpretada a partir de leis referen-
tes às teorias da física dos corpos. O salineiro tradicional vai tomar como refe-
Exercícios - Prog~essáo rência a altura da água nas diferentes bacias de sua salina; como indício de
que "está esquentando", a água ganha "grau" ou "força", ou, ao contrário, "há
Para aprender a soldar; o aprendiz com a máscara obsenra como eu soldo. Um
dia, eu lhe dou pedaços de ferro para praticar. Depois, dou-lhe um trabalho quatro dedos na salina, o sal não virá antes de uma semana"; sua cor: "está
mais complicado. ficando avermelhada", é porque "o sal está por vir", "se à noite, embranquece,
no dia seguinte você colhe"; em seu aspecto: "as salinas brilham ao sol, à luz
O que é preciso tirar desses exemplos - além do caráter completo ou in- rasante"; sua viscosidade: "há placas oleosas", [...I; a fauna e a flora aquáti-
completo das operações que descrevem - é a natureza do processo de transmis- cas: "o lodo, as algas se decompõem mais ou menos, à medida que a água
são de conhecimentos. Determinamos os seguintes elementos constitutivos: ganha força; ao contrário, ele se desenvolve rápido quando a água está calma
demais, a presença de halófitas - plantas que crescem em ambiente salobro -
é também indício de uma água calma demais...".
- a decomposição em sequências lógicas e cronológicas de operações;
Esse saber-fazer empírico pode chegar a hipóteses de ação e sua probabi-
- a demonstração seguida de trabalho de aplicação; lidade de encontro em certos contextos. Elas são elaboradas pelas.pessoas no
- a explicação da razão dos gestos profissionais; decorrer de sua existência e são fruto da experiência.
- a explicação da função das ferramentas; Alguns pesquisadores do INRA* (Nathalie, 1994) as designam com o ter-
- a situação de teste do aprendiz para revelar seu comportamento es-
mo ''referências reativas". Elas contêm regras de modificação de ações em
pontâneo e seus erros; situações consideradas previsíveis. Na exploração de sistemas forrageiros, es-
- o acompanhamento de uma operação com correção simultânea e pro-
sas referências poderão ser do tipo "se a estação for ruim, não ceifarei o lote
gressiva; duas vezes", ou ainda: "se eu não tiver colhido a metade do alqueive até o dia
- o apelo a uma atitude de observação contínua da parte do aprendiz;
de São João, aumentarei a superfície ceifada por operação".
- ' O acompanhamento "passo a passo" pelo aprendiz de todos os gestos e
É o saber-fazer do operador capaz de reconhecer, de imediato, a confiabi-
atos realizados pelo artesão no decorrer de uma jornada de trabalho; lidade de um ponto de soldagem ou a do controlador de qualidade que pode
- o estímulo de exercícios ou trabalhos "livres" sem controle do artesão.
detectar visualmente os defeitos de fabricação de um monitor de televisão. E o
operário que sabe, por experiência própria, como abordar uma peça a ser in-
Em seu estudo realizado em 1983 sobre o saber intelectual e prático dos dustrializada. Sem esquecer outros casos como o do agente de recuperação de
salineiros nas salinas da costa do Atlântico, Geneviève Delbos evidencia a dife- crédito, que sente em qual momento o contato de negociação comercial corre
rença existente entre o saber científico e o saber empírico na "profissão do o risco de vacilar.
sal". Enquanto o cientista isola um número limitado de parâmetros mensuráveis, Esses saber-fazer empíricos são frequentemente indispensáveis ao bom uso
chegando, assim, a uma "leitura estilizada" do real, o salineiro, por razões de dos conhecimentos procedurais: a medição da temperatura de um forno com a
eficácia prática, deverá levar em conta uma multiplicidade de indícios ou si- ajuda de um termopar supõe que o condutor do fomo tenha um conhecimento
nais (direção do vento, altura da água, luminosidade, traços de vegetação, deste, de modo que saiba onde e em qual momento ele deve efetuar a medição.
etc.). Estes, oriundos da diversidade das experiências práticas de toda uma Sem esse conhecimento, que só pode ser um saber-fazer oriundo da prática, a
profissão e do indivíduo, são contextualizados em relação à variedade das medição feita pode ser verdadeira, mas não pertinente. A termodinâmica é com-
situações que podem apresentar-se. Eles resistem a qualquer tentativa de ge-

*N. de R. INRA: Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica.


DESENVOLVENDOA COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS 109

plexa: o condutor deve levar em conta variáveis diversas como qualidade das ele está limitado a situações particulares e, portanto, é pouco generalizável. É
fontes de energia, homogeneidade das matérias-primas, propriedades físicas ligado à pessoa, e não universal.
particulares do fomo, etc. O saber-fazer experiencial não suprime a capacidade A transferibilidade desses saberes locais é fraca. Trata-se mais de "saber
analítica de julgamento, mas lhe dá uma base mais confiável. As máquinas nun- fazer lá" do que de saber-fazer. Encontramos a riqueza do "tato", mas também
ca se comportam da maneira como os engenheiros ou criadores prevêem: sem- OS limites dos "truques" e das "astúcias". Esse saber está muito ligado a um
pre existe aprendizagem no estabelecimento das relações entre o homem e as "efeito de empresa": depende de suas tecnologias, seu modo de organização,
máquinas, e não a simples execução de gestos pré-programados. sua concepção do trabalho, a cultura da comunidade à qual pertence. Tem a
O saber-fazer experiencial é a habilidade adquirida através do tempo. particul&idade do hic et nunc. Está limitado a uma certa gama de experiên-
Robert Linhart o evoca muito bem em Greve na fábrica (1978), com o exemplo cias. E o caso do conhecimento adquirido das máquinas por seu uso diário, das
do retocador de portas na oficina de soldagem de automóveis: capacidades de detecção de suas avarias na circunstância do tratamento de
casualidades ou de reparação de incidentes, dos saber-fazer relacionais esta-
Esse retocador de portas é um francês. Um homem de cabelos brancos, meticu- belecidos com uma rede familiar de colaboradores ou de contatos.
loso, cujos gestos hábeis observo com admiração. Diriam que é um pequeno Os "saber-fazer rotineiros" fazem parte desses conhecimentos empíricos.
artesão, e ele parece quase deslocado, esquecido como um vestígio de uma São adquiridos pela experiência e aplicados de maneira autônoma. Os hábitos
outra época no encadeamento repetido dos movimentos da oficina. Ele tem são desencadeados de forma não-controlada no momento da percepção de '

várias ferramentas à sua disposição - instrumentos de lirnagem, martelagem, uma situação particular. Eles podem estar intimamente ligados a um contexto
polimento, ferros para soldar, estanho, maçarico, misturados em uma espécie ou funcionar em relação a um conjunto de situações semelhantes ou próxi-
de brique familiar onde ele se acha sem hesitar - e cada retoque trabalha uma mas. Os saber-fazer rotineiros são de grande utilidade pelo princípio de eco-
operação particular, quase nunca idêntica à anterior. São os acasos do choque, nomia que realizam. A conduta automática permite liberar a atenção para
dos transportes, dos solavancos e das colisões, das peças que caíram no chão ou exercer outras atividades ou cuidados. Ela favorece a habilidade e a segurança
levaram uma pancada de alguma empilhadeira que determinam o que deve ser do gesto, Os anglo-saxões se referem a isso como skills (habilidades). Em
endireitado, tapado, soldado, polido, retificado. A cada vez, ele pega a porta
defeituosa, olha-a atentamente, passa um dedo nas irregularidades (ausculta
contrapartida, podem conduzir a fracassos pela junção de ações inapropriadas
também, concentrado como um cirurgião antes da operação), encosta-a, toma atribuídas a uma deficiência da representação da situação ou do objeto.
sua decisão, dispõe algumas ferramentas que lhe serão necessárias e se põe a O profissional consolidado e o especialista sabem aplicar em si "regras de
trabalhar. Ele trabalha curvado, a 10 ou 20 cm do metal, preciso na limagem ou interrupção". Elas consistem em saber quando interromper uma busca de in-
na martelagem, recuando apenas para evitar o feixe de faíscas da soldagem ou formação, quando pôr fim a uma enumeração, quando parar o levantamento
o v60 das aparas metálicas da limagem. Um artesão, quase um artista. dos detalhes ou quando terminar uma pesquisa de causas.
A exaustividade, na verdade, não é sempre necessária. Ela pode $é ser
É a experiência do profissional veterano. contraproducente. A experiência profissional permite adquirir essas regras,
Esse domínio do saber-fazer experiencial pode, assim, chegar à virtuo- que fazem parte dos saber-fazer experienciais.
sidade, em que a excelência se torna próxima da inocência: o virtuoso muitas Dificilmente exprimíveis e formalizáveis, tomados na opacidade da ex-
vezes não sabe como descrever sua virtuosidade. Esta é efetivamente vivida periência, esses saber-fazer são, As vezes, chamados de conhecimentos "táci-
no instante, na capacidade de reatualizar, na instantaneidade, seus atos em tos". Sua descrição é difícil. E o que Schon explica ao distinguir o conheci-
função da situação. Como o equilibrista em uma corda bamba que, segundo mento em ação (knowing-in-action),que o operador não pode explicitar quan-
Michel de Certeau, sabe "a todo momento, manter um equilíbrio ao recriá-lo do se trata do conhecimento sobre a ação (knowing-on-action), no qual so-
a cada passo, graças a novas intervenções". A virtuosidade é uma segunda mente depois de ter agido é que o operador pode tentar reconstruir e forma-
natureza. lizar seu saber-fazer. No segundo caso, o saber experiencial se tornará uma
Esse saber empírico, às vezes caracterizado como endógeno, é operatório "prática refletida".
e precário. Proveniente da resolução de problemas profissionais singulares,
110 GUY LE BOTERF DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS 111

O saber empírico resulta da aplicação do ciclo de aprendizagem conheci- Essa dificuldade a ser formalizada não deve conduzir à rejeição de todo
do como "modelo de Kolb", que podemos esquematizar assim: esforço de expressão! A busca de uma linguagem apropriada permite progre-
dir no saber experiencial. E o caso dos enólogos, que sabem desenvolver seu
talento encontrando as palavras exatas para apreciar e fazer apreciar os pro-
dutos da videira.
Quadro 3.6
Simondon comparou o processo de um artesão oleiro de faiança e de um
engenheiro que concebe uma máquina de moldes. Enquanto o segundo neces-
Experiência concreta
sita de uma explicação de todos os dados do problema, de uma representação

/-\
ou de um modelo prévio à realização, o primeiro age na incerteza, não conhe-
cendo o mecanismo íntimo da operação:

A condiqão para tomar firma é o sistema constituído pelo molde e pela argila
pressionada; é a argila que toma forma de acordo com o molde, não o trabalha-

1 Experimentação ativa Reflexão


dor que l h dá
~ forma [...], a representação da operação técnica não aparece no
trabalho: E o essencial que falta, o centro ativo da operação que fica, é isso.

O desconhecido é superado em um processo heurístico de produção.

Conceitualização
Abstraçáo / O Le Boterf
O saber-fazer experiencial é importante na batalha da competitividade,
pois é a partir de sua combinação com outros tipos de conhecimentos, jogando
com sua complementaridade, e não com sua eliminação, que a empresa pode-
rá enSontrar novas fontes de melhoramento de seus desempenhos.
E preciso reconhecer que, sendo muito mais desenvolvido e reconhecido
nas culturas germânicas e japonesas, esse saber sofre de uma marginalização
nas culturas latinas. Uma das forças do sistema dual certamente é transmitir
saberes do tipo delta. Na França, a vontade de desenvolvimento da formação
por alternância está indo agora nesse sentido. A empresa de formação profis-
É a partir da reflexão sobre a experiência concreta que um trabalho de sional (CEGOS) organizou, em Paris, em 1992, um colóquio sobre o conheci-
abstração e de conceitualização poderá ser realizado para ser reinvestido em mento delta, que resultou em um acontecimento significativo.
uma experimentação que dê lugar a uma nova experiência profissional. Como Esses saber-fazer empíricos não se tornam necessariamente obsoletos
ciclo ou espiral de aprendizagem, o processo é conhecido por inspirar as.práti- com a modernização das instalações ou das tecnologias de trabalho automa-
cas de formação por alternância. tizado. Eles tornam um operador capaz de intervir em vários níveis. Um bom
Aprendendo a reconhecer os problemas e a classificá-los em reláção a número desses saber-fazer são "saber-fazer recorrentes". Em uma indústria
contextos, o sujeito se tornará capaz de aprender a aprender. Ele também sa- de processos, eles permitirão aos operadores retomar "de forma manual"
berá não apenas resolver um problema em particular, mas várias categorias de uma instalação automatizada, efetuar interrupções, proceder durante uma
problemas. Ele reconhecerá o que Bateson chama de "indicadores de contex- inspeção de rotina, retirar amostras. São úteis para atenuar as deficiências
to". dos subsistemas técnicos. O operador responsável por máquinas na indústria
Posta de lado essa prática refletida e tematizada, o saber experiencial mecânica sempre necessita, mas de maneira episódica, de habilidades tradi-
dificilmente é verbalizável. Existe uma certa "impenetrabilidade cognitiva" dos cionais referentes à fabricação das peças, especialmente quando se trata de
gestos da profissão. Aquilo que é verbalizável constitui apenas uma parte do cuidados e manutenção.
saber-fazer experiencial. O implícito e o subentendido prevalecem sobre aqui- Na indústria química, a conduta automatizada não suprime o recurso aos
lo que pode ser dito. Nesse "saber inconsciente", a não-visibilidade, o indizível saber-fazer de experiência. O monitor e o teclado não reduzem a competência
é muito frequentemente a "arte" da profissão. Os "saberes atuados" não são dos operadores a capacidades de abstração e de trabalho em representações
completamente traduzíveis por "saberes produzidos". Eles se revelam refratá- simbólicas.
rios a toda formalização. O profissional competente sabe sentir e pressentir os incidentes.
112 GUY LE BOTERF

O saber-fazer experiencial não deve ser negligenciado nem depreciado segundo tempo, um documento de síntese foi estabelecido. Os mais velhos
como frequentemente tem ocorrido. Michel Serres (1985) nos lembra que, foram levados a recuar em relação à sua atividade, de maneira a poder des-
antes dos mapas marítimos e dos instrumentos de navegação, os pescadores crever a forma como procediam, as informações que consideravam, os inter-
de alto-mar sabiam notavelmente navegar e se situar: os mestres da escrita locutores que solicitavam, as cooperações que punham em prática, os con-
fizeram desaparecer o saber dos sentidos: troles aos quais procediam.
Quando a Céramique de France decidiu, em 1991, ampliar sua produção à
Assim, os fabricantes de mapas puderam dizer que tinham descoberto a Améri- fabricação de placas decorativas à base de porcelana, ela recorreu à missão
ca, fazer acreditar nisso e levar a glória, enquanto que cem pescadores, seguin- Nouvelles Qualifications (Novas Qualificações) para recrutar jovens e levá-los a
do os traçados dos reflexos ondeados, haviam tocado nela sem clamar aos quatros uma ação de inserção qualificadora. O conjunto das observações e sugestões
ventos. O triunfo do verbo escrito produziu uma catástrofe perceptiva. A idade de melhoramentos, recolhidas na ocasião das discussões entre o quadro de
da ciência refez iconoclastas no nível dos sentidos e destruiu, de cabo a rabo, pessoal e os operadores, foi então reunido e descrito em fichas intituladas
saberes prodigiosos nas proximidades do percebido. "saber-fazer particulares". Elas permitiram chegar a normas e procedimentos
amplamente aceitos e apropriados.
Não esqueçamos, de fato, que a detecção dos incidentes exige frequente- A experiência, porém, sabe guardar suas incógnitas e seus segredos. Ela
mente raciocínios que se orientem em função dos indicadores (controle'visual, pode ser fonte de um certo poder ou, pelo menos, a organização de zonas
detecção tátil, etc.). protegidas. Já Diderot, na época da redação da Enciclopédia, defrontou-se
Na Bronze Acior, uma operação de transferência de saber-fazer expe- com a resistência dos artesãos em explicitar seu saber-fazer. Não esqueçamos
rienciais foi instalada. Seu diretor-presidente assim a descreveu: de que, em latim, tacitum também quer dizer segredo, mistério.
Tomemos o exemplo de um operário da Fiat que soube criar intervalos de
Grupos de voluntários com experiência se reuniram. Fomeiros de cadinho, ope- tempo disponíveis. Ele descobriu como era melhor pisar alternadamente um
radores de vazamento, operadores de máquinas CNC, especialistas em pé após o outro no pedal de uma prensa do que usar o pé direito:
eletroerosão e em afiação se reuniram por competências e conceberam e deram
forma a verdadeiros manuais de formação. Foi um trabalho longo, mas extre- Os outros, em geral, pisam no pedal com o pé direito. Mas essa maneira de
mamente produtivo. A experiência, porém, não parou nessa etapa. Os próprios proceder exige uma tensão maior, pois devemos esperar tirar a mão antes de
criadores se tomaram usuários de seus manuais e formadores dos novos contra- pisar, senão corremos o risco de ter o braço preso entre as duas partes da grade
tados ou antigos colaboradores que praticam a mobilidade interfuncional. As- de proteção. Meu método reduziu todo o movimento a uma simples operação
sim, antigos colaboradores, às vezes bem próximos da aposentadoria, puderam mecânica. Quando a grade está se fechando, minha mão está se retirando. As-
realizar duas tarefas que, a priori, consideravam inacessíveis: registrar seus sim, reduzimos o tempo de trabalho de forma considerável. E não podem me
saber-fazer em manuais pedagógicos e se tomarem eles próprios formadores! tirar esse método, porque quando o cronometrador está lá, eu trabalho como
Devemos sorrir quando um desses colaboradores que vai aposentar-se pergunta todo mundo. No que tange ao trabalho, me considero um bom operário, já que
se pode levar consigo um exemplar do manual que contém toda a experiência consigo ganhar vários minutos nos tempos impostos pela divisão de métodos. E,
de sua vida profissi~nal?Ou quando uma mulher ainda jovem que mostra triun- para mim, ganhar tempo sempre quer dizer ganhar a possibilidade de conver-
falmente o exemplar do manual que ela contribuiu para criar exclama: "E como sar com os colegas (Oddone, 1981).
se eu tivesse um diploma!"? E não existe, em contrapartida, uma profunda tris-
teza ao constatar, em algumas grandes empresas, a saída forçada para a pré-
aposentadoria de colaboradores ricos de insubstituível experiência, sob o único Os s a b e r ~ empíricos
s nem sempre podem ser colocados em programas de
pretexto de que passaram da idade? informática. E o caso da operação de um alto-forno graças à observação da
chama e do soprador de vidro que sabe conseguir formas e colorações particu-
Na ocasião de um plano social lançado em 1995, a Refinaria BP de lares. Não esqueçamos a etimologia da palavra expert (do latim: experiri, ex-
Lavera, em Bouches-du-Rhône, questionou-se sobre como fixar a memória primir). O expert faz corpo com sua especialidade. Esta permanece, muitas
de seus conhecimentos e práticas profissionais consideradas essenciais. Uma vezes, dificilmente formalizável. Há um limite intrínseco ao próprio trabalho
operação, significativamente chamada de TSF (Transmissão de saber-fazer), de explicitação da experiência, na tentação de transparência. Michel de Certeau,
foi aplicada. Ela consistiu em ajudar os antigos, profissionais veteranos, a apoiando-se no exemplo do encaminhamento, distingue o traço da prática em
formalizar e transmitir seus saberes e saber-fazer aos mais jovens. A transfe- todas as atividades enunciadoras (falar, escrever, pintar, etc.): "Os registros de
rência foi efetuada de pessoa a pessoa, de maneira vívida. Apenas em um percurso perdem aquilo que já foi: o próprio ato de passar". O movimento de
DESENVOLVENDO A COMPETÊNCIA DOS PROFISSIONAIS 115

aplicação dos saber-fazer experienciais não poderia ser confundido com a Essas operações dependem tanto das funções do lado esquerdo do cére-
detecção a posteriori de seu desenrolar. Isso vale para os conhecimentos "táci- bro (lógica, análise, etc.) quanto daquelas do lado direito (síntese, julgamen-
tos". Tentando analisá-los, explicitá-los, não estaremos arriscando em perder to, intuição, etc.).
aquilo que constitui sua verdade? Existe um limite para fazer falar o silêncio Tais capacidades e processos cognitivos são produtores de inferências,
das competências tácitas: não é ilusório querer explicitar o que tem justamen- isto é, de novas informações criadas a partir de um conjunto de informações
te como característica funcionar sem explicitação? iniciais. Alguns trabalhos de pesquisa em psicologia cognitiva distinguem o
Encapsulados na ação, esses saber-fazer empíricos servem sem que saiba- processo ou "cadeia inferencial", que constitui o raciocínio, e o resultado do
mos como. Existe uma automaticidade do desenrolar. E o caso do uso que processo, que é a inferência final na qual ele culmina.
fazemos da gramática de nossa língua materna: a utilizarmos sem estarmos As inferências podem levar a novas informações, mais gerais do que as
conscientes dela e podemos ensinar a outras pessoas aspectos gramaticais que premissas iniciais: são os raciocínios indutivos. Outras podem levar a informa-
jamais empregamos. ções mais específicas do que aquelas dadas de início: trata-se dos raciocínios
dedutivos. Outras distinções importantes: conforme os contextos das situa-
ções de trabalho encontradas, certas informações poderão ser mobilizadas de
Os saber-fazer cognitivos modo automático e com rapidez: serão designadas de inferências "imediatas".
Elas recuperam diretamente esquemas memorizados de ação. Outras apenas
Eles correspondem a operações intelectuais necessárias à formulação, à poderão ser produzidas por intermédio de raciocínios explícitos efetuados na
análise e à resolução de problemas, à concepção e à realização de projetos, à memória: são os processos controlados de produção de inferências. Estas se-
tomada de decisão, à criação ou à invenção. rão postas em ação para realizar objetivos operacionais que podem ser de
Essas capacidades cognitivas são postas em execução e organizadas entre compreensão (um esquema, uma instrução, um modo de uso, um procedi-
si por um sujeito em interação com seu meio. O sujeito pode ser considerado mento, etc.), de execução de um procedimento aplicável a uma situação
como um sistema aberto suscetível de organizar e de reorganizar suas capaci- identificada em uma tipologia, ou de resolução de problema. Nesse último
dades cognitivas em função das características particulares do meio com o caso, o operador deverá efetuar um desvio por meio da construção de uma
qual ele se relaciona. representação adequada.
Operacionalizadas sob forma de operafóes intelectuais, essas capacidades Os tipos de raciocínio desenvolvidos são estreitamente ligados aos con-
podem consistir: textos que os solicitam e os condicionam. Dependem, ao mesmo tempo, das
características da situação encontrada e daquilo que está armazenado e dispo-
seja na realização de ações interiorizadas relativamente simples: enu- nível na memória do operador. Conforme o caso, a memória de trabalho será
merar$classificar, distinguir, comparar, descrever, definir, explicar, de- mais ou menos solicitada para construir os raciocínios.
terminar contradições, identificar aspectos, etc. Métodos de educa-
bilidade cognitiva, tal como o treinamento mental, visam a desenvol- A produçáo de inferências
ver e a articular essas capacidades. Em uma outra época, a aprendiza-
gem do latim tinha essa reputação de treinar para a lógica; Dentre os principais procedimentos de produção de inferências existem:
seja em operações mais complexas dentre as quais se encontram: a
A indução, que consiste em generalizar a partir de observações efetuadas:
generalização indutiva (passar de "alguns" a "todos", de "até agora" ocorre na formação e na verificação de hipóteses, na passagem dos fatos às
a "sempre"), a generalização construtiva (produção de novas for- noções e das observações aos conceitos. O pensamento indutivo, sustentado
mas, de novos conteúdos), o raciocínio analógico (a exploração por pela abstração empírica, extrai as informações dos objetos ou das situações.
metáforas, o pensamento antecipatório, o pensamento hipotético, as Ele procede a uma triagem do que ela seleciona e exclui. Por meio da genera-
capacidades de síntese, o raciocínio por recorrência, o raciocínio por lização indutiva, o sujeito passa, segundo Piaget, "de alguns a todos, de até
transitividade).
agora a sempre". Esse tipo de abstração recorre a quadros assimiladores pro-
venientes dos esquemas de pensamento construídos anteriormente. E a partir '
Em todos os casos, trata-se exatamente de ações interiorizadas: "deduzir da diversidade das experiências e das observações particulares que a inferên-
é construir", dizia Goblot em seu Traité de logique. cia indutiva vai apreender e construir uma enunciação global. A partir de uma
fonte restrita de informações, várias conclusões são possíveis.
Em sua análise "do modo de existência dos objetos técnicos", Simondon A dedução, que produz novos conhecimentos a partir de premissas (leis,
mostrou o quanto esse pensamento indutor se desenvolvera historicamente princípios, fatos, postulados, etc.). Diferentemente da indução, que generali-
nas situações de trabalho a partir da fragmentação das técnicas e do fracasso za, que passa do um ao múltiplo, a dedução diz respeito a um processo de
da ação técnica direta, parcelar e fragmentada. O que ele busca é a "realidade particularização: as conclusões são mais específicas do que as premissas. Os
de fundo" que foi ocultada pela "realidade figurar, que resulta do recorte da raciocínios por exclusão (demonstra-se a verdade de uma proposição demons-
abordagem técnica. É essa reflexão teórica que vai permitir que se encontre a trando a falsidade de todas as outras alternativas); os silogismos constituem
totalidade e a coerência das condições que explicam um fenômeno e nas quais boas ilustrações disso.
se realiza uma operação técnica. E preciso que a hidrostática venha em auxilio A dedução por entimema, que se caracteriza por um raciocínio que leva
do saber técnico do encanador e de sua bomba aspirante quando a água não a uma conclusão considerada apenas como verossímil. Esse procedimento é
sobe além de uma certa altura. Da observação, será necessário recorrer a um utilizado com frequência pelos peritos, que devem fazer um trabalho de apre-
sistema homogêneo de explicação construído em torno da noção de pressão. ciação e racionar em termos de probabilidade.
A abstração reflexiva, que permite a formalização e a tematização dos A abdução, que consiste em determinar, em campos diferentes, traços
saberes. Diferentemente da abstração empírica que incide sobre objetos, fenô- comuns. Trata-se, segundo Grégory Bateson, de "procurar novas similitudes,
menos ou situações, a abstração reflexiva incide sobre os esquemas operacio- depois de ter constatado uma primeira semelhança entre A e B". Essa forma de
nalizados pelo sujeito, para deles extrair as principais características e aplicá- raciocínio chama atualmente a atenção de certos p&squisadores; na Itália, a
las a novas situações. As operações cognitivas se tornam objetos de pensamen- Associação ARIELLE (Analyse, Réalité, Emotion, Loi, Esthétique [Análise, Reali-
to. Um duplo movimento se exerce: a reflexividade (que culmina na concei- dade, Emoção, Lei, Estética]) - que agrupa artistas, semiólogos, filósofos -
tualização oriunda de A) e a reflexão (que constrói novas formas e reorganiza considera esse procedimento intelectual como o centro do pensamento cria-
esquemas) a aplicar a B. É a reflexividade que permite ao sujeito se dotar de dor. Na área da anatomia, pode tratar-se da "semelhança formal entre dois
uma representação da ação, representação a partir da qual ele poderá fazer org&ismos tal que relações existentes entre certas partes de um são seme-
sua reflexão. lhantes às relações existentes entre as partes correspondentes do outro"
(Bateson). A partir da anatomia de uma rã, é possível buscar na natureza
outros seres vivos caracterizados pelo mesmo tipo de relações abstratas.
Quadro 3.7 A abdução é útil para formular hipóteses diante de fenômenos estranhos
ou inexplicáveis. É, segundo Umberto Eco, "a arte da conjectura". Em seus
"textos anticartesianos", Peirce define a abdução como uma "inferência pela
qual se passa de um fato surpreendente e inexplicável pelos conhecimentos
Conceitualizaçáo atuais admitidos a uma hipótese nova capaz de dar conta disso. Ao contrário
Reflexividade
da dedução, não há, na abdução, métodos rigorosos que permitam passar à
hipótese. Segundo Peirce, os argumentos abdutivos são fracos, mas válidos:
"um argumento pode ser perfeitamente válido e, ainda, excessivamente fraco".
O raciocínio abdutivo é aquele aplicado pelo detetive: ele sabe recons-
truir uma história a partir de seus indícios ou fragmentos.
Açáo A 4 Açáo B
Reinvestirnento
A transdução, que consiste em "construir um objeto possível [...I a par-
tir de informações sobre a realidade assim como de uma problemática basea-
O Le Boteti da nessa realidade" (Lefebvre, 1961). O possível é considerado como algo que
faz parte do real a ser estudado.
A metáfora e a analogia, que são ferramentas de pensamento muito
úteis tanto para a transdução quanto para a abdução. Elas podem constituir
Esse movimento contínuo de "generalização construtiva" é essencial nos atos criativos. A metáfora permite estabelecer pontes, graças ao que Descartes
processos de aprendizagem contínua. denominava "a força da imagem". O pensamento metafórico consiste em pro-
A generalização, que consiste em estender a uma categoria inteira ca- por analogias entre o contexto habitual de um fenômeno e um contexto novo
racterísticas que pertencem a alguns casos singulares dessa categoria. no qual ele é arbitrariamente introduzido. Tal aproximação pode ter um efeito
DESENVO~VENDOA COMPETENCIA DOS PROFISSIONAIS 119

esclarecedor ou ilustrativo, podendo induzir hipóteses inovadoras. Entretan- plos de situações em que a expressão é bloqueada porque cojsas demais se apre-
to, é preciso conhecer seus limites científicos. Diferentemente de um modelo, sentam, desordenadamente e ao mesmo tempo, à mente. E nesse caso que re-
a metáfora não poderá ser explorada sistematicamente, nem substituir a ver- correr a estruturas simples ou, se preferirem, a pequenos modelos, pode auxi-
dade científica. Seu efeito criativo não deve levar ao que Bachelard chama de liar. Todos nós utilizamos inconscientemente um pequeno número deles. Se to-
"fugas de pensamento" e que deformariam um procedimento científico. Deter- marmos o cuidado de identificá-los, será possível apelar para eles quando se
minados esses limites, não esqueçamos a observação de Thom: "Dispor de fizer necessário, seja para buscar informações externas, analisando por referên-
uma metáfora onde não se tinha nada já é um sólido progresso!". cia o que é dado a ver ou a ouvir, seja para buscar um pouco sistematicamente o
A metonímia, que consiste em representar o conjunto de uma coisa por que está no interior de si e poder dizer, então, o que lá se encontrou".
uma de suas partes (por exemplo, uma 'tela" designará um barco). O pensa- Os esquemas seguintes são exemplos dados por François Viallet de sua
mento metonímico aparece na linguagem icônica presente nos softwares e nos "caixa de ferramentas".
computadores.
Metonímia, analogia, metáfora ... O pensamento não se efetua unicamen-
te por raciocínios lógicos. Ao contrário do indivíduo, a pessoa também pensa
por imagens, com representações arbitrárias, reagindo a sinais arbitrários. A
riqueza imaginária é um recurso para a competência.
O modelo cronológico

Os esquemas assimiladores
Antes Hoje Depois
A produção de inferências é facilitada pela memorização e pela utilização
de esquemas assimiladores. Um esquema é uma estrutura composta de enti-
dades entre as quais existem relações. Ele comporta variáveis que ainda não
estão particularizadas para uma utilização em um contexto específico. O es-
quema permanece impreciso quanto a seu modo de emprego e à consideração
das restrições de ordem. Ele contém regras gerais que não são acompanhadas
de instruções ou de conselhos que permitam sua operacionalização efetiva. O modelo dos "aspectos"
Esses esquemas são guias ou modelos que orientarão o sujeito em sua
busca e compreensão das informações e servem para enfrentar a complexida-
de das situações encontradas. Podem constituir tanto meios de leitura quanto
ferramentas de ação e fornecerão hipóteses para aceder aos conhecimentos
pertinentes, assimilar novos dados, interpretar uma situação., inferir novas in-
formações, além mesmo das constatações. Podem tomar a forma de "quadros"
ou de "roteiros típicos" que permitirão antecipar acontecimentos e efetuar
inferências. Eles poderiam apresentar-se sob forma de patterns, de sintomas
ou de indícios facilitando os diagnósticos. Fazem parte dessas estruturas
assimiladoras que permitem, segundo Piaget, ordenar as informações extraí-
das do exterior e torná-las compreensíveis. Podem-se distinguir esquemas "re-
cipientes" (que marcam uma fronteira entre o exterior e o interior), esquemas
"fonte - caminho - alvo", esquemas "centro - periferia", etc.
Os esquemas operatórios assim construídos vão seMr para a orientação
das futuras combinações de recursos a serem realizadas em situações profis-
sionais nas quais eles se revelarem pertinentes.
São ferramentas para a expressão; François Viallet (1978) deu alguns exem- Fonte: F. Viallet, 1978
plos disso em um artigo notável e pouco conhecido: "De fato, não faltam exem-
120 GUY LE BOTERF

O último modelo - extraído de Conty - mostra "um ator (quem), um


O modelo demonstrador objeto (o quê), resultados esperados da ação (sinais lineares). A seta que vai do
ator ao objeto simboliza a estratégia da açáo, que requer, ela mesma, a utiliza-
Se: ção de meios (os pequenos círculos). No pontilhado, figuram os resultados ob-
tidos, sempre diferentes daqueles que se esperava. O quadrado C ilustra o
órgão de controle que analisa as variações entre os resultados esperados e os
resultados obtidos, e que assinala ao ator que será necessário corrigir o alvo se
ele quiser reduzir as variações. Pode-se enriquecer o modelo à vontade, fazen-
Então
do figurar o contexto no qual se encontra a ação...". Tal modelo, diferentemen-
te do anterior, facilita a descrição de um processo e a antecipação das variáveis
que caracterizam seu desenrolar. Os esquemas são desencadeados a partir de
indícios que o sujeito percebe em uma situação e que lhe permitem resgafar o
Portanto vestígio de uma configuração (de um tipo de problema, por exemplo). E o a
Fonte: F. Viallet, 1978 ,
priori que guia a busca. Em seu "Esquisse d'une sémiophysique" (Esboço de
uma semiofísica), Thom estudou essa busca das formas significantes. Verifica-
se que somente certas configurações fazem sentido: são as formas "salientes7',
isto é, "toda forma vivida que se separa nitidamente do fundo contínuo sobre
O modelo de classificação
o qual ela se destaca". Os esquemas são de grande utilidade para resolver
problemas por transferência ou analogia. Um problema ou um procedimento
qualquer sempre será tomado na espessura de seu contexto. O mesmo ocorre
com a experiência concreta, que é singular e não poderia ser repetida da mes-
ma forma. Os dados de uma situação profissional são sempre únicos. O traba-
lho de consultoria em uma empresa toma possível encontrar sempre essa situa-
ção: "Minha empresa é totalmente distinta das outras", "O modo como os
problemas se apresentam nas minhas oficinas não tem nada a ver com a ofici-
na vizinha...", ouve-se regularmente. Isso é verdade, e, no entanto, transferên-
cias e analogias são possíveis por meio de uma generalização por modelação.
Esses esquemas, também chamados de "estruturas prototípicas", possibi-
litam a inferência de novas informações além daquelas fornecidas pela obser-
vação e pelo levantamento de hipóteses. Eles permitem que o especialista,
Fonte: F. Viallet, 1978
diferentemente do principiante, organize o saber em torno de modelos, e não
somente em função do enunciado dos problemas. É o caso do consultor expe-
riente, cuja capacidade de escuta não se limita a reproduzir o que diz seu
O modelo de processo cliente, mas a acrescentar algo a isso, propondo uma reformulação que leva a
um avanço na problematização. Esse ganho em reformulação só será possível
Quem 4 se o consultor dispuser de esquemas assimiladores que permitirão produzir
I uma nova significação, esclarecer uma situação, enriquecer pontos de vista e
extrair hipóteses de explicação e de solução.

*
C
O
O
O
O Os esquemas se caracterizam por sua estabilidade relativa. Eles evoluem,
O
v mas lentamente, sob o jogo combinado dos processos de assimilação e de aco-
modação. Os indivíduos que têm tendência a autojustificar seus esquemas,
O quê são submetidos ao que Fiske e Taylor denominam "o efeito de perseverança".
H Fonte: F. Viallet, 1978
122 GUY LE BOTERF

Saber-fazer cognitivos e resoluçáo de problemas dos e para as capacidades cognitivas que os subentendem, em particu-
lar o segundo? As capacidades cognitivas constituem uma espécie de
Os saber-fazer cognitivos operam na resolução de problemas. Com Landa "caixa de ferramentas" a partir das quais várias combinações são pos-
e Briand, podem-se distinguir quatro procedimentos de resolução de problemas: síveis para se adaptar permanentemente às características e à evolu-
ção das situações profissionais. E necessário um "projeto de sentido"
O algoritmo simples: é a aplicação sistemática de um procedimento de para estruturar as diversas operações mentais. Não esqueçamos que,
encadeamento de operações elementares. etimologicamente, compreender é "apreender em conjunto". Os sa-
O algoritmo de tentativa: é um procedimento por tentativa a partir da ber-fazer cognitivos se inserem no procedimento permanente de
mobilização de diversos algoritmos já memorizados. equilibração descrito por Piaget entre as estruturas de assimilação (os
A heurística por associação de idéias: é um procedimento de resolução fenômenos são integrados a estruturas intelectuais anteriores) e as
por analogia. Elementos de solução são extraídos de diversos sistemas. estruturas de acomodação (as estruturas ou os esquemas devem adap-
A heurística por descoberta verdadeira: é a descoberta por exploração tar-se às situações particulares externas). Esse reajuste perpétuo entre
ativa. É a operacionalizaqão do que se chama, às vezes, de "pensamen- incorporação e acomodação é a base do movimento de adaptação do
to divergente". O sujeito chegará a uma criação nova por correlação sujeito à realidade.
de elementos que não devem, a priori, ter nenhuma relação uns com
os outros. Desse encontro inesperado, pode surgir a novidade. Ela su-
põe saber organizar a contingência e o encontro de materiais díspares. M o d o s d e manifestaçáo dos saberes

Cada um desses processos apelará para encadeamentos de saber-fazer É muito difícil, até mesmo impossível, seguir, em psicologia, o conteúdo
cognitivos. Salientemos, de passagem, que o funcionamento intelectual pode ou a representação dos saberes. A ambição científica se torna pretensão quan-
também se arriscar além do pensamento racional. Em um rico ensaio, Hofs- do crê alcançar a transparência total dos processos cognitivos. Em contrapar-
tadter (1985) distingue três modos de funcionamento psíquico: tida, pensamos que é possível e operacional caracterizar o "modo de manifes-
tação" de um saber.
O modo mecânico (modo "M"), que corresponde a um funcionamento O "modo declarativo" exprime os saberes em termos de conhecimentos
automático, não-reflexivo. O sujeito segue regras sem se interrogar "proposicionais", de enunciados "sobre" alguma coisa: tanto uma lei química
s o b ~ oe que faz, sem "sair" de seu sistema de ação para poder modificá- ou física quanto um método ou um procedimento. O conhecimento dos dife-
10. E o universo do repetitivo. rentes tipos de soldagem, das regras de posicionamento de uma peça ou do
O modo inteligente (modo "I"), que é o do exercício do pensamento método a seguir para elaborar um plano de formação tange ao modo declara-
racional e reflexivo próprio ao homem. tivo. A expressão declarativa de um procedimento ainda não é um saber-fazer
O modo paradoxal (modo "V',como Ummon, o mestre Zen). Ele é, procedural. O modo declarativo descreve saberes separados de seu modo de
antes, um "des-modo", que,consiste em se libertar de todas as premis- uso. Ele não diz como, onde ou quando utilizá-los. ~ r ê s ~ r o ~ r i e d a dsegundo
es,
sas dos modos anteriores. E o funcionamento do pensamento criador Jacques Pitret, caracterizam esse modo: a generalidade (os saberes descritos
que supera o confronto com os paradoxos e ocorre nos momentos de podem ser utilizados para múltiplas aplicações), a legibilidade, a modalização
mudanças do p e n s p e n t o durante revoluções científicas que adotam (os saberes são relativamente independentes de outros saberes declarativos).
novos paradigmas. E, porém, um modo arriscado, no qual a transgres- O "modo procedural" é integrado nos comportamentos. Com esse modo
são do racional pode levar à fronteira do patogênico: Bateson mostrou de expressão, os saberes se expressam mais na atividade do que na linguagem
que ultrapassar essa fronteira era mais uma questão, de grau do que de natural ou simbólica. Esse modo é o do saber encapsulado na manifestação
natureza. Verlet (1993) comentou tal abordagem: "E violando, de tem- comportamental.
pos em tempos, as regras lógicas às quais a razão os convida a se O modo declarativo serve para descrever, e o modo procedural serve para
submeter que os seres humanos aprendem a falar, a manipular abstra- prescrever.
ções, a buscar sempre além do racional". Esse modo de funcionamen- Certos saberes se expressam de um modo, outros, em duplo registro. A
to é difícil de descrever, já que, segundo Hofstadter, "não se pode pensá- gramática materna se encontra nesse último caso. Pode-se ensinar a um es-
10, mas se pode pensar com ele". Por que não afirmar que o sujeito trangeiro construções de frases que não se utiliza nunca, mas que se aprendeu
competente é também aquele que sabe apelar para os diferentes mo- de maneira declarativa.
O quadro seguinte propõe uma recapitulação sintética dos diversos tipos necessidade, será descrever essas qualidades de modo a poder reconhecê-las
de saberes e de saber-fazer mobilizáveis, suas funções e dos tipos de aquisição e apreciá-las.
correspondentes, assim como algumas hipóteses sobre seus modos de mani- A descrição de tais qualidades permitirá expressar sua tradução em um
festação. contexto particular. Tratar-se-á, pois, de identificar qualidades contextualiza-
das. Uma pessoa pode ser rigorosa ou pontual em uma situação de trabalho e
pouco rigorosa ou pontual na organização de sua vida familiar. As descrições
permitem, então, expressar a atualização dessa qualidade em uma situaçso
Quadro 3.8
profissional particular.
Não se trata, aqui, de querer estimar o "saber ser7'de uma pessoa, o que
seria ilusório e, ao mesmo tempo, abusivo. Quem poderia apreciar de modo
global o saber ser de um indivíduo? Cada indivíduo se comporta diferente-
mente de acordo com as situações e desempenha vários papéis nos múltiplos
contextos de sua vida pessoal. Avaliar o saber-ser seria invadir o que Hubert
Boucher chama, de maneira um tanto provocante, mas expressiva, de "direito
à opacidade".
Em compensação, parece-nos lógico evidenciar certas qualidades espera-
das em uma situação profissional e que deveriam ser descritas em função desta.
O rigor será descrito em termos de respeito aos procedimentos ou de controle
dos resultados; a curiosidade, em termos de busca de informações; a antecipa-
ção, em termos de elaboração de projetos e de detecção de incidentes.
Pode-se compreender a importância dada à noção do saber ser, mas isso
tambcm pode revelar-se perigoso.
E evidente que o que se chama, às vezes, de "competências comporta-
mentais" assume cada vez mais importância no exercício de uma profissão: a
capacidade de escuta, as atitudes de acolhida, a capacidade de iniciativa, a
tenacidade e a autoconfiança são qualidades cada vez mais requeridas nas
Saber-fazer sociais Saber cooperar Experiência social Procedural situações profissionais. As exigências de qualidade de serviço e de cooperação,
ou relacionais Saber conduzir-se e profissional
a complexidade dos problemas a resolver, as arbitragens ou os acontecimentos
aleatórios que se deve enfrentar são, dentre outros, fatores largamente
Saber-fazer Saber tratar Educação formal Procedural
cognitivos a informação Formação inicial e
explicativos. Isso vale não somente para os funcionários mais graduados de
Saber raciocinar contínua experiência uma organização, mas também para todos os empregados. E normal, portan-
social e profissional to, que a gestão ou que uma política de recursos humanos procure obter "com-
analisada portamentos profissionais" desejados. O profissionalismo não é somente uma
O Le Boterí questão de saber-fazer: ele também tange ao saber ser.
A noção de saber ser é uma noção de risco, pois induz um julgamento
sobre a personalidade e, por conseqüência, a seleção das personalidades. Se é
verdade que alguns tipos de personalidade convêm mais a certos tipos de pro-
fissão, pode-se considerar que diversas personalidades podem muito bem exer- i'
Aptidões ou qualidades pessoais
cer a mesma profissão. Como Sandra Bellier mostrou muito bem em sua pes-
São os recursos mais difíceis de expressar e de descrever, no entanto, não quisa sobre "O saber ser na empresa", o saber ser não deve ser considerado
devem ser negligenciados, já que no mercado de trabalho essas qualidades como algo que os indivíduos "detêm", mas como um resultado proveniente de
pessoais são cada vez mais procuradas. uma situação dada. O saber ser resulta da interação entre uma personalidade
Dentre essas qualidades, poderemos encontrar: rigor, força de convic- e uma situação específica. Existem várias maneiras singulares de agir com
ção, curiosidade de espírito, reatividade, etc. A dificuldade, mas também a pertinência e competência em um contexto particular.
Convém ser muito vigilante sobre os riscos de perfil comportamental úni- Em seus trabalhos sobre a invenção, Henri Poincaré determinara bem o
co, pois a empresa não se beneficiará com a clonagem de personalidades. Ao papel central do saber combinatório. Para ele, as invenções eram as que provi-
querer considerar o saber ser como um dos atributos da personalidade, corre- nham de uma combinação entre elementos extraídos de áreas muito distantes.
se risco de procurar o homem ideal, o "jovem executivo dinâmico", a persona- O inventor é aquele que sabe trabalhar com combinaqões prováveis já pré-
lidade preciosa ou a mais conforme possível. Os referenciais de competências selecionadas. Ele age, como dizia Poincaré, como "um examinador do segun-
listarão tais qualidades, mas essas enumerações serão bem pouco utilizadas. do grau, que só interrogaria os candidatos declarados admissíveis após uma
Além disso, as reações de defesa e de rejeição não deixarão de se manifestar, primeira prova". Segundo Damasio, essa pré-seleção se parece muito com aquela
sobretudo nas culturas latinas, marcadas pela herança do direito romano, pelo efetuada pelos marcadores somáticos. Pelo menos, essa é uma hipótese que
qual a esfera do privado é rigorosamente defendida como um domínio reser- ele julga suficientemente fundamentada para conduzir suas pesquisas.
e
vado preservado.
E, pois, preferível abandonar os raciocínios em termos de saber ser ou,

,
mais precisamente, converter o saber ser em exigências de saber agir. O que
importa descrever e avaliar é a maneira como uma atividade deve ser realiza-
I OS RECURSOS ,DO MEIO

O equipamento a ser mobilizado pelo profissional para construir suas


da, os critérios almejados do modo de proceder em uma situação dada. São as competências não é unicamente constituído de recursos incorporados à sua
características esperadas da atividade de acolhida ou da relação comercial que pessoa. Também comporta recursos externos, situados em seu entorno. Esses
devem ser precisadas, não o perfil de personalidade da recepcionista ou do recursos são objetivados, isto é, exteriores a ele mesmo. Dentre eles, pode-se
agente comercial. O que será avaliado ou, antes, co-avaliado, não será a pes- citar os equipamentos, as máquinas, os meios de trabalho, as informações e as
soa, mas seu agir profissional em um determinado contexto. As empresas fran- redes relacionais.
cesas Air France, EDF e La Poste se comprometeram com a elaboração desses Na empresa SOLLAC, uma base de conhecimentos foi implantada desde
scripts ou "modelos de interação". 1992. Ela contém fichas de tratamento dos problemas com as coordenadas
dos especialistas, os quais podem ser consultados acerca dos defeitos encon-
Recursos emocionais trados na fabricação do aço. O Centro de Recursos Tecnológicos da Renault
criou no sistema informático interno de comunicação - intranet - um catálogo
Não basta dispor de conhecimentos e de habilidades para agir com com- dos saberes e das vistorias. Uma regra incitativa está associada a ele: somente
petência ou para elaborar estratégias eficazes de ação. Os trabalhos do profes- as pessoas registradas têm o direito de pesquisar sobre os conhecimentos dos
sor Antonio D. Damasio em neurologia (1995) mostram que o raciocínio só executivos e dos empregados e técnicos que querem contatar. Ainda na Renault,
pode ser verdadeiramente pertinente quando informado pelas emoções: "o as informações relativas à concorrência são, agora, acessíveis na base Baccara
organismo tem certas razões que a razão deve absolutamente levar em conta7'. do Centro de Análise da Concorrência. Na empresa Cofinoga, os conhecimen-
Se as reações emocionais podem constituir riscos e obstáculos, também po- tos dos encarregados por estudos especializados na aceitação dos créditos fo-
dem ser uma vantagem e uma ajuda. Conhecer sem sentir pode levar ao erro e ram modelados e capitalizados em um dispositivo informático.
ao comportamento irracional. O próprio cérebro n8a pode sobreviver sem es- Na Volvo Cars Europe Industry (Indústria Européia de Carros), a cada dois
tar ligado às funções vitais do corpo. Mais precisamente, as capacidades emo- meses, 1 0 pessoas oriundas de 10 grupos se reúnem em uma "plataforma de
cionais permitem reduzir o campo das alternativas e, portanto, poder tomar discussões" durante a qual cada grupo deve descrever seus trabalhos e suas
decisões em um tempo restrito. A improvisação e a intuição encontram aqui, realizações aos outros grupos.
pelo menos em parte, uma explicação. Diante de uma situação ou de um pro- A qualidade das competências dependerá, em parte, da qualidade do ajuste
blema a resolver, o organismo emite sinais emocionais que Damasio chama de entre os recursos incorporados mobilizados e os recursos do meio utilizados.
L ' m a r ~ a d o rsomáticos",
e~ que desempenham o papel de sinal de alarme ou de Nesse, sentido, pode-se falar de "cognição distribuída".
sinal de encorajamento. Não substituem os processos lógicos de raciocínio, O profissional não pode mais ser competente sozinho e de maneira isola-
mas reduzem a gama das opções sobre as quais deverão aplicar-se. Eles forne- da. Em 1993, a Renault inaugurava, em sua fábrica na cidade de Douai, um
cem indicações de orientações que permitirão fazer a triagem entre diversas "centro de recursos técnicos". Aberto permanentemente aos engenheiros, téc-
variantes. Provenientes da educação e da experiência - e, portanto, da apren- nicos e agentes de manutenção, ele constitui um dispositivo permanente e
dizagem -, esses marcadores somáticos constituem verdadeiros recursos emo- individualizado de formação. Os programas de formação são elaborados con-
cionais. Perceber esses marcadores é essencial na arte de bem-raciocinar. O forme a necessidade. Todos podem deles participar de maneira autônoma e
corpo e suas emoções não são passivos na emergência da ação competente. buscar a informaqão técnica que precisarem.
Segundo uma pesquisa realizada em setembro de 1999 por Arthur cia, em que, segundo William Turner, um conjunto de homens e de máquinas
Andersen Management junto a 1.500 empresas, 80% dos dirigentes franceses cooperam juntos em uma rede de informática.
consideram que a gestão dos conhecimentos constitui um projeto global im- A correlação das competências e a correlação dos artefatos (sofwares, supor-
portante para a empresa, mas dois terços dessas empresas não contam com tes documentares, redes ...) não obedecem às mesmas regras. A primeira delas
responsáveis pela gestão dos conhecimentos, equivalentes aos gerentes do se organiza em torno de significações comuns; a segunda, em torno de exigências
conhecimento norte-americanos. de compatibilidade. 'A unidade dos sistemas físicos é uma unidade de correla-
Na empresa Gemini, cada gerente de conhecimento é responsável pela ção; a dos organismos, uma unidade de significação", escrevia Merleau-Ponty
gestão do saber para um grupo de cerca de 250 pessoas. Em 1995, a empresa AXA Corretores se comprometeu a implantar uma
Na já citada Arthur Andersen, cada centro de competências dispõe de um estrutura de acompanhamento das competências, correlacionando os quatro
gerente de conhecimento. elementos seguintes:
A instituição financeira Cofinoga dispõe de um gerente de conhecimento
encarregado de facilitar a gestão, a capitalização e a circulação dos saberes 1. As profissões: descrição de suas exigências e das competências
dentro da empresa. requeridas.
Será preciso articular a economia das competências e a economia dos 2. O indivíduo: identificação das competências que ele possui.
saberes. A competência deve ser repensada no âmbito de "conjuntos 3. A apreciação: determinação das variações entre as competências
compósitos", pois o profissional não é competente sozinho. Ele é competente requeridas e as competências reais.
com seus bancos de dados, suas ferramentas de trabalho, seus colegas, os 4. A formação: decisão dos meios necessários ao desenvolvimento das
especialistas que pode consultar, suas redes de recursos, seus equipamentos, a competências,
rede de clientela que constituiu para si, seus suportes institucionais. Uma ques-
tão passa a ser essencial: "Com quem e com o que o profissional é competente?". Desde 1996, essa estrutura foi reforçada pelo dispositivo "competências
Na área médica, o trabalho em rede tende a se tornar um componente do 2001". Esse dispositivo é uma rede pedagógica que compreende:
profissionalismo. Diante de um incidente cirúrgico ou de uma situação atípica
encontrada, o cirurgião ou o médico não pode mais se contentar em declarar - centros de recursos descentralizados;
que pessoalmente jamais encontrou esse caso. O paciente ou sua família farão - pessoas-recursos que podem intervir no acompanhamento individua-
cada vez mais pressão para que ele consulte os bancos de dados existentes e lizado dos aprendizes;
- uma plataforma tecnológica intranet, que pode fornecer meios peda-
utilize motores de busca para achar um caso semelhante, inclusive em lugares
do mundo muito distantes de seu local de atuação. Na área do estudo da gógicos em situações de trabalho, e uma plataforma extranet - siste-
epilepsia, toda uma rede de especialistas se constituiu assim para discutir os ma externo de comunicação, estendendo a rede a parceiros comer-
casos encontrados, as decisões tomadas, os registros implantados (eletroen- ciais e a organismos externos de formação.
cefalograma, vídeo, ressonância magnética, etc.).
A acessibilidade às redes de saberes se torna capital na elaboração das Prevê-se que a rede "competências 2001" alcance um efetivo de 3 mil
respostas competentes: existência de um portal de acesso único, possibilidade pessoas a partir de 1998. Essa rede permite aos aprendizes:
de entrada em linguagem livre, sistemas amigáveis, respeito aos idiomas que
- conhecer as competências esperadas de uma profissão;
correspondem às tecnologias e às culturas locais.
- auto-avaliar suas competências (questionários auto-administrados);
As redes de saberes precisam das competências humanas para garantir
- autoformar-se em algumas das competências (softwares didáticos);
sua pertinência e seu desenvolvimento. Sem essa necessária atualização, elas
- apelar a recursos internos ou externos para desenvolver suas combi-
vão perdendo importância, tornando-se inúteis e inutilizáveis.
A pilotagem de um avião depende não apenas da competência individual nações;
do piloto, mas da competência compartilhada entre o piloto, o co-piloto, o
- consultar a oferta de formação.
navegador e os controladores de v60 em terra. A competência se situa cada
Os responsáveis de formação dos Bancos Populares têm à sua disposição
vez mais no que Jacques Girin chama de ordenamentos operacionais, nos quais
um intranet chamado Cyber NEE Esse intranet coloca à sua disposição um
estão associados elementos heterogêneos tais como pessoas, equipamentos,
conjunto de recursos que Ihes podem ser necessários para exercer seu ofício:
objetos, espaços ... Essa cognifáo distribuída apela para recursos diversos: sim-
informações sobre as obrigações legais e a convenção coletiva, uma base de
bólicos, materiais e humanos. É a competência das redes híbridas de inteligên-
dados sobre os recursos pedagógicos em bancassurance* ("media-banque"),
um observatório das profissões bancárias compreendendo as 277 ocupações
do grupo e um dicionário das 80 atividades e das 600 competências requeridas,
um repertório de fotografias de identidade que per,mite entrar em relação com No campo do profissionalismo e da profissionalização, três noções são
colegas de trabalho, uma biblioteca de imagens ... E significativo que a metáfo- frequentemente confundidas: os recursos (saberes, saber-fazer, aptidões...), as
ra da "navegação" esteja amplamente presente nessa ferramenta: "longo al- competências e o profissionalismo. Convém distingui-las, pois designam três
cance", "sextante", "bóia", etc., todos esses instrumentos náuticos que simbo- níveis diferentes de realidade. O Quadro 3.10 posiciona os elementos que as
lizam a vigília, o posicionamento, a busca de ajuda, etc. Aqui, o tema da "na- caracterizam.
vegação profissional" se expressa bem.
Os recursos do meio intervêm, pois, na competência. Separar uma pessoa
de seu meio, de suas redes de recursos, equivale a mexer em sua competência, a Quadro 3.10
menos que a pessoa possa ou saiba reconstituir um ambiente propício à constru-
ção de suas competências. Esse é um dos aspectos do drama do desemprego de
longa duração: devido à ruptura com a situação de trabalho, desaparece toda
uma parte do equipamento para construir as competências, que estão relaciona-
das à riqueza do tecido social, material, humano e simbólico ao qual pertence O
indivíduo. Manter ou desenvolver a competênciaé também contribuir ativamente
para criar um meio favorável para si: criação de redes, aquisição de ferramentas,
busca de informações, escolha do local de hábitat e tratamento do espaço...
Os saberes e as informações formalizados e estocados são inúmeros. São de apropriação ou
até mesmo excedentes e acarretam riscos de saturação. O que falta é a capaci-
dade de utilização desses saberes para incorporá-los a competências que serão
operacionalizadas e inseridas em combinatórias, que são as respostas perti-
nentes aos problemas profissionais que deverão ser tratados.

Quadro 3.9

Os recursos do meio para agir com competência

Redes de especializaçáo
Bancos e redes de dados
Redes documentares
Banco de projetos
Redes e associações profissionais
Redes de cooperação científica
Observatórios
0 Bases d e casos
Sistema informatizado de ajuda
Redes de clientela
Banco de amostras
Coleções
Dicionários de dados normalizados O Le Boterf

'N. de T. Trata-se de um novo mercado criado, na França. após a introdução do euro,


aliando o setor bancário e o setor de seguros.

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