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BURKE, Peter. Historiografia e Teoria Social. São Paulo: UNESP, 2002.

Capítulo 1

Teóricos e Historiadores

“Este livro é uma tentativa de responder a duas questões aparentemente simples: Qual é a utilidade
da teoria social para os historiadores e qual a utilidade da história para os teóricos sociais?” (p. 11)

“Relativamente poucos historiadores utilizam teoria no sentido estrito do termo, mas um número bem
maior emprega modelos, enquanto os conceitos são praticamente indispensáveis (Leys, 1959).” (p.
11)

“A distinção entre prática e teoria não é idêntica à diferença entre história e sociologia - ou outras
disciplinas como antropologia social, geografia, política ou economia. Alguns estudiosos dessas
disciplinas produzem estudos de caso em que a teoria desempenha um papel menor. Por outro lado,
alguns historiadores, em especial os marxistas, discutem questões teóricas com entusiasmo mesmo
quando reclamam - a exemplo de Edward Thompson (1978b), em famoso ensaio polêmico em que
se queixa da "pobreza da teoria".” (pp. 11-12)

“Afinal de contas, dois conceitos que vêm exercendo grande influência em sociologia, antropologia
e estudos políticos nos últimos anos foram originalmente lançados por historiadores marxistas
britânicos: a "economia moral", de Edward Thompson (1971), e a "invenção da tradição", de Eric
Hobsbawm (Hobsbawm & Ranger, 1983). Em linhas gerais, no entanto, os profissionais dessas outras
disciplinas utilizam conceitos e teorias com mais freqüência, de forma mais explícita, mais séria e
com mais orgulho do que os historiadores. Essa diferença de atitude perante a teoria é responsável
pela maioria dos conflitos e desentendimentos entre os historiadores e os demais.” (p. 12)

Um diálogo de surdos

“Sociologia pode ser definida como o estudo da sociedade humana com ênfase em generalizações
sobre sua estrutura e desenvolvimento. História é mais bem definida como o estudo de sociedades
humanas no plural, destacando as diferenças entre elas e as mudanças ocorridas em cada uma com
o passar do tempo. Por vezes, as duas abordagens têm sido consideradas contraditórias, porém é mais
útil tratá-las como complementares.” (pp. 12-13)

“Historiadores e teóricos sociais têm a oportunidade de se libertar de diferentes tipos de


paroquialismo. Os historiadores correm risco de paroquialismo no sentido quase literal do termo.
Ao se especializarem, como em geral o fazem, em uma região específica podem acabar considerando
sua "paróquia" completamente única, e não uma combinação única de elementos, que
individualmente têm paralelos em outros lugares. Os teóricos sociais demonstram paroquialismo em
um sentido mais metafórico, um paroquialismo mais vinculado a tempo do que a lugar, sempre que
generalizam sobre a "sociedade" com base apenas na experiência contemporânea ou discutem a
mudança social sem levar em consideração os processos de longo prazo.” (p. 13)

“Ao menos na Grã-Bretanha, muitos historiadores ainda consideram os sociólogos pessoas que
fazem afirmações sobre o óbvio em um jargão primitivo e abstrato, não têm nenhum sentido de lugar
nem de tempo, espremem, sem piedade, os indivíduos em categorias rígidas e, ainda por cima,
descrevem essas atividades como "científicas". Os sociólogos, por sua vez, há tempos consideram os
historiadores coletores de fatos, míopes e amadores, sem nenhum sistema ou método, sendo a
imprecisão de sua "base de dados" equiparada apenas à sua incapacidade de analisá-los.” (p. 13)

“Os sociólogos, por exemplo, são treinados para observar ou formular regras gerais e, muitas vezes,
analisar e rejeitar as exceções. Os historiadores aprendem a dar atenção a detalhes concretos em
detrimento de padrões gerais (Cohn, 1962; K. Erikson, 1970; Dening, 1971-1973).” (p. 14)

“Do ponto de vista histórico, fica evidente que ambas as partes cometem anacronismo. Até uma
época relativamente recente, muitos teóricos sociais achavam que os historiadores ainda estavam
interessados em pouco mais do que a narrativa de eventos políticos e que a abordagem associada ao
grande historiador do século XIX, Leopold von Ranke, ainda predominava. Da mesma forma, alguns
historiadores ainda falam de sociologia como se a disciplina estivesse parada na era de Augusto
Comte, na fase das grandes generalizações sem pesquisa empírica sistemática, vigente em meados
do século XIX.” (p. 14)

“Como e por que a oposição entre história e sociologia - ou, mais genericamente, entre história
e teoria- se desenvolveu? Como, por que e em que medida esse antagonismo foi superado? Essas
são questões históricas, e tentarei dar-lhes respostas históricas na seção seguinte, mediante o enfoque
de três momentos da história do pensamento ocidental sobre sociedade: meados do século XVIII e do
século XIX e em torno da década de 1920.” (p. 14)

A diferenciação entre história e teoria

“Talvez fosse melhor descrever os quatro como teóricos sociais que discutiam o que era chamado de
"sociedade civil" na forma sistemática em que pensadores mais antigos, de Platão a Locke, haviam
debatido o Estado. Todas estas obras - O espírito das leis (1748), de Montesquieu, Essay on the
Historyof Civil Society [Ensaio sobre a história da sociedade civil] (1767), de Ferguson,
Observations on the Distinction of Ranks [Observações sobre a diferença entre as classes sociais]
(1771), de Millar, e A riqueza das nações (1776), de Smith - demonstravam interesse por teoria geral,
por "filosofia da sociedade", como Millar a chamava. Os autores discutiam sistemas econômicos e
sociais, como o "sistema feudal" na Europa medieval (uma "espécie de governo" caracterizado pela
descentralização) ou o "sistema mercantilista" (comparado com o "sistema agrícola") na obra de
Smith. Em geral, distinguiam quatro tipos de sociedade com base em seu modo principal de
subsistência: caça, criação de animais, agricultura e comércio. O mesmo conhecimento básico
pode ser encontrado no ensaio de Thomas Malthus, Essay on the Principie of Population [Ensaio
sobre o princípio da população] (1798), com sua famosa proposição de que a população tende a
aumentar até os limites dos meios de subsistência.” (p. 15)

“Nessa época, os estudiosos menos interessados em teoria também se voltavam da matéria tradicional
da história, política e guerra para o estudo da história social quanto a avanços do comércio, artes,
direito, costumes e "modos".” (p. 16)

“A capacidade de enxergar o geral no específico, de acordo com Gibbon, era uma característica do
trabalho de quem ele chamou de historiador "filosófico".” (p. 16)

“Cem anos mais tarde, a relação entre história e teoria social era bem menos simétrica do que fora
durante o Iluminismo. Os historiadores afastavam-se não só da teoria social como da história social.
No final do século XIX, o historiador mais respeitado no Ocidente era Leopold von Ranke. Ranke
não rejeitava a história social por completo; no entanto, em geral, seus livros concentravam-se no
Estado. Em sua época e na de seus seguidores, que eram mais extremistas que o mentor - como os
seguidores muitas vezes o são-, a história política recuperou a antiga posição de predominância
(Burke, 1988).” (pp. 16-17)

“Esse afastamento do social pode ser esclarecido de várias formas. Em primeiro lugar, foi nesse
período que os governos europeus passaram a considerar a história como um meio de promover a
unidade nacional, de educar para a cidadania ou, como um observador menos leniente poderia dizer,
um meio de fazer propaganda nacionalista. Em uma época em que os novos Estados da Alemanha e
da Itália e os Estados mais antigos, como a França e a Espanha, ainda se encontravam divididos por
tradições regionais, o ensino de história nacional nas escolas e universidades incentivava a
integração política. O tipo de história para cuja promoção os governos estavam preparados era,
naturalmente, a história do Estado. Os vínculos entre os historiadores e o governo eram bastante
fortes na Alemanha (Moses, 1975).” (p. 17)

“Uma segunda explicação para o retorno à política é de cunho intelectual. A revolução histórica
associada a Ranke era sobretudo uma revolução nas fontes e nos métodos, que deixavam de usar
as histórias mais antigas ou "crônicas", substituindo-as pelos registros oficiais dos governos. Os
historiadores começaram a trabalhar regularmente nos arquivos e elaboraram uma série de técnicas
cada vez mais sofisticadas para avaliar a confiabilidade desses documentos. Portanto, segundo eles,
a história que produziam era mais objetiva e mais "científica" que as de seus predecessores. A
difusão dos novos ideais intelectuais estava relacionada com a profissionalização da disciplina no
século XIX, quando foram fundados os primeiros institutos de pesquisa, revistas especializadas e
departamentos de universidades (Gilbert, 1965).” (p. 17)

“O trabalho dos historiadores sociais parecia não ser profissional quando comparado com o dos
historiadores rankeanos do Estado. "História social" é, na realidade, um termo muito preciso para
o que ainda era tratado na prática como uma categoria residual. A notória definição de história
social, de autoria de Trevelyan (1942, vii), como "a história de um povo excluindo-se a omissão da
política", nada mais fez que transformar um pressuposto implícito em uma declaração explícita. O
famoso capítulo sobre a sociedade no fim do século XVII, em History of England [História da
Inglaterra] (1848), de T. B. Macaulay, foi descrito por um crítico contemporâneo, de forma cruel,
mas não totalmente injusta, como uma "velha loja de curiosidades" porque os diferentes tópicos -
estradas, casamento, jornais, e assim por diante - seguiam-se uns aos outros sem ordem aparente.
De qualquer modo, a história política era considerada (ao menos, no âmbito da profissão) mais real
ou mais séria do que o estudo da sociedade ou cultura. Quando J. R. Green publicou Short History
of the English People [Breve história do povo inglês] (1874), livro que se concentrava na vida
cotidiana em detrimento de batalhas e tratados, segundo dizem, seu ex-professor E. A. Freeman
comentou que, se tivesse excluído toda aquela "tralha social”, Green poderia ter escrito uma boa
história da Inglaterra (cf. Burrow, 1981, p.179-80).” (p. 18)

“Tais preconceitos não pertenciam unicamente aos britânicos. No mundo de língua alemã, o ensaio
de Jacob Burckhardt, Cultura do Renascimento na Itália (1860), mais tarde reconhecido como um
clássico, não obteve sucesso na época da publicação provavelmente porque se baseava muito mais
em fontes literárias do que em registros oficiais.” (p. 18)

“Em suma, a revolução histórica de Ranke teve uma consequência não intencional, mas de extrema
importância. Uma vez que a abordagem dos novos "documentos" funcionava melhor para a história
política tradicional, sua adoção tornou o trabalho dos historiadores do século XIX mais limitado e
até, em certo sentido, a escolha de assuntos mostrou-se mais antiquada do que a de seus
predecessores do século XVIII. Alguns deles rejeitaram a história social porque ela não poderia ser
estudada "cientificamente". Outros historiadores repudiaram a sociologia pelo motivo oposto,
porque era científica demais, no sentido de que era abstrata e genérica e não lograva levar em
consideração a peculiaridade de indivíduos e eventos.” (p. 19)
“Esse repúdio à sociologia mostrou-se mais articulado nos trabalhos de alguns dos filósofos do fim
do século XIX, principalmente Wilhelm Dilthey. Dilthey, que escreveu história cultural
(Geistesgeschichte), bem como filosofia, argumentou que a sociologia de Comte e Spencer (como a
psicologia experimental de Hermann Ebbinghaus) era pseudocientífica porque oferecia explicações
causais. Ele estabeleceu uma diferença famosa entre as ciências, cujo objetivo é explicar com base
na observação externa (erkliiren), e as humanidades, incluindo a história, cujo objetivo é entender
valendo-se da observação interna (verstehen). Os estudiosos de ciências naturais
(Naturwissenschaften) empregam o vocabulário da causalidade, porém os que se dedicam às
humanidades (Geisteswissenschaften) devem falar a linguagem da "experiência" (Dilthey, 1883).”
(p. 19)

“Os teóricos sociais, por sua vez, passaram a criticar cada vez mais os historiadores, embora
continuassem a estudar história. O antigo regime e a revolução (1856), de Alexis de Tocqueville,
foi um trabalho seminal de história com base em documentos originais, assim como um marco em
teoria social e política. O capital (1867), de Marx, a exemplo de A riqueza das nações, de Smith,
representa uma contribuição pioneira para a história e a teoria econômica, discutindo legislação
trabalhista, a mudança do artesanato para os produtos manufaturados, a expropriação da classe
camponesa etc. (Cohen, 1978). Embora relativamente tivesse atraído pouca atenção dos
historiadores no século XIX, o trabalho de Marx exerceu grande influência na prática da história
de nosso tempo.” (pp. 19-20)

“Tocqueville, Marx e Schmoller desenvolveram um trabalho relativamente raro ao combinar teoria


com interesse pelos detalhes das situações históricas concretas. Muito mais comum no fim do século
XIX, em várias disciplinas acadêmicas emergentes, era uma preocupação com as tendências
duradouras e, em especial, com o que os contemporâneos denominavam "evolução" social.” (p. 20)

“O modelo de leis da evolução estava relacionado com as diferentes disciplinas. Os economistas


descreveram a mudança de uma "economia natural" para uma economia monetária. Os advogados,
(...) discutiram a mudança de "status" para "contrato". Etnólogos, como Edward Tylor (...) ou Lewis
Henry Morgan, (...) apresentaram a mudança social como uma evolução da "selvageria" (também
conhecida como estado "selvagem" ou "natural" da humanidade) para a "civilização". O sociólogo
Herbert Spencer utilizou-se de exemplos históricos, do Egito antigo à Rússia de Pedro, o Grande,
para ilustrar o desenvolvimento de sociedades "militares" para "industriais", como o autor as
chamava (Peel, 1971).” (pp. 20-21)

“Os teóricos levavam o passado a sério, porém muitas vezes demonstravam pouco respeito pelos
historiadores. Comte (1864, conferência 52), por exemplo, referia-se com desprezo ao que chamava
de "detalhes sem importância recolhidos de forma tão infantil pela curiosidade irracional dos
compiladores míopes de casos estéreis". Spencer dizia que a sociologia estava para a história "como
um edifício enorme está para os montes de pedras e tijolos ao seu redor" e que "a função mais
elevada a ser desempenhada pelo historiador é a de narrar a vida das nações de modo a fornecer
material para uma sociologia comparativa". Na melhor das hipóteses, os historiadores eram
coletores da matéria-prima para os sociólogos. Na pior, eram totalmente irrelevantes porque nem
mesmo forneciam o tipo certo de material para os mestres da construção. Citando Spencer mais uma
vez, "as biografias dos monarcas (e nossas crianças aprendem pouco mais que isso) não conseguem
elucidar a ciência da sociedade" (Spencer, 1904, p.26-9; cf. Peel, 1971, p.158-63).” (p. 22)

“A mistura de um interesse por história com um repúdio ao conteúdo dos trabalhos da maioria dos
historiadores constituiu, entretanto, a característica da maior parte dos teóricos sociais no início do
século XX. Vários deles - o geógrafo francês Paul Vidal de la Biache, o sociólogo alemão Ferdinand
Tönnies e o antropólogo escocês James Prazer, por exemplo - haviam começado a carreira como
historiadores, principalmente como historiadores do mundo antigo. Outros tentaram combinar o
estudo do passado e do presente de uma cultura específica.” (p. 22)

“Os três sociólogos mais famosos desse período - Pareco, Durkheim e Weber - eram todos versados
em história. (...) O próprio Émile Durkheim, que se empenhava em conquistar território para a nova
disciplina da sociologia diferenciando-a de história, filosofia e psicologia, estudara história com
Fustel de Coulanges, a quem dedicou um de seus livros. Escreveu uma monografia sobre a história
da educação na França e adotou como política de sua revista Année Sociologique fazer críticas de
livros de história, desde que tratassem de algo menos "superficial" do que a história de eventos
(Bellah, 1959; Momigliano, 1970; Lukes, 1973, cap.2).” (p. 23)

“Quando passou a concentrar a atenção em teoria social, Weber não abandonou o estudo do passado.
Recorreu à história à procura de material, como também a historiadores em busca de conceitos.”
(p. 24)

“O que Weber fez foi secularizar o conceito para dar-lhe uma aplicação mais genérica. Foi bastante
apropriado que o mais interessado em história entre os grandes sociólogos do século XX tenha vindo
de uma vertente cultural que, na época, era a mais voltada para a história na Europa. Weber, na
verdade, não se imaginava um sociólogo. No final de sua vida, quando aceitou uma cadeira da
matéria em Munique, fez este comentário indiferente: "Eu agora, por acaso, sou sociólogo de acordo
com os papéis de minha nomeação". Weber considerava-se um economista político ou um historiador
da área de história comparativa (Bendix, 1960; Mommsen, 1974; Roth, 1976).” (p. 24)
O abandono do passado

“Durkheim faleceu em 1917 e Weber, em 1920. Por várias razões, a geração seguinte de teóricos
sociais afastou-se do passado.” (p. 24)

“Os economistas foram atraídos para duas direções opostas. Alguns deles (...) coletaram dados
estatísticos sobre o passado para estudar desenvolvimento econômico, especialmente ciclos
comerciais. Esse interesse pelo passado era, às vezes, acompanhado do desprezo por historiadores
do tipo já apontado no caso de Herbert Spencer. François Simiand (1903), por exemplo, publicou
um famoso artigo polêmico contra o que chamou de os três "ídolos" da tribo de historiadores - o
ídolo da política, o ídolo do indivíduo e o ídolo da cronologia -, rejeitando o que ele foi o primeiro
a chamar de "história centrada em eventos" (histoire événementielle) e deplorando a tendência de
tentar enquadrar estudos de economia em uma estrutura política, como é o caso de um estudo da
indústria francesa durante o reinado de Henrique IV.” (p. 24)

“Outros economistas se afastaram cada vez mais do passado em direção a uma teoria econômica
"pura", calcada no modelo da matemática pura. Os teóricos da utilidade marginal e do equilíbrio
econômico tinham cada vez menos tempo para a abordagem histórica de Gustav Schmoller e sua
escola. Um famoso "conflito acerca de métodos" (Methodenstreit) polarizou a profissão em torno de
historicistas e teóricos.” (p. 25)

“Psicólogos (Piaget e Köhler) (...) voltavam-se para métodos experimentais que não poderiam ser
aplicados ao passado. Trocaram a biblioteca pelo laboratório. Do mesmo modo, antropólogos
sociais descobriram o valor do "trabalho de campo" em outras culturas no lugar da leitura de relatos
de viajantes, missionários e historiadores. (...) Foi Malinowski que insistiu com mais firmeza ser o
trabalho de campo um método antropológico por excelência. "O antropólogo", afirmou ele, "deve
renunciar à sua posição confortável na espreguiçadeira da varanda do complexo missionário, do
posto de observação do governo ou do bangalô do colonizador." Apenas se fosse para as aldeias,
para o "campo", conseguiria o antropólogo "entender o ponto de vista do nativo". Na esteira do
exemplo de Malinowski, o trabalho de campo tornou-se estágio necessário na formação de todos os
antropólogos (cf. Jarvie, 1964, p.2; cf. Stocking, 1983).” (p. 25)

“Os sociólogos também abandonaram a poltrona durante o estudo (em vez da espreguiçadeira na
varanda) e começaram a extrair cada vez mais dados da sociedade contemporânea. Pode-se tomar
como um exemplo drástico da mudança para o presente - "o recuo da sociologia para o presente",
nas palavras de Norbert Elias (1987) - o primeiro departamento de sociologia nos Estados Unidos,
fundado na Universidade de Chicago em 1892. (...) Nos anos 20, (...) os sociólogos de Chicago
voltaram-se para o estudo da sociedade contemporânea, em especial da sua cidade com favelas,
guetos, imigrantes, gangues, vagabundos etc. "Os mesmos métodos de paciente observação que
antropólogos como Boas e Lowie haviam adotado no estudo da vida e dos modos do índio norte-
americano poderiam ser empregados de forma ainda mais frutífera na investigação dos costumes,
crenças, práticas sociais e concepções gerais de vida predominantes nos bairros de Little Italy ou
tower North Side in Chicago" (Park, 1916, p.15; cf. Mathews, 1977). Uma estratégia alternativa era
fundamentar as análises sociais nas respostas a questionários e nas entrevistas com pessoas
selecionadas. A pesquisa baseada em levantamentos tornou-se o suporte principal da sociologia
norte-americana. Os sociólogos geravam os próprios dados e tratavam o passado como algo
"bastante irrelevante para o entendimento de como as pessoas acabavam agindo da forma que
agiam" (Hawthorn, 1976, p.209).” (p. 26)

“Várias explicações diferentes poderiam ser dadas a essa mudança para o estudo do presente em
detrimento do passado. O próprio centro de gravidade da sociologia estava se deslocando da
Europa para os Estados Unidos e, no caso norte-americano (mais especificamente o de Chicago), o
passado era menos importante e menos visível na vida diária do que na Europa. Um sociólogo
poderia alegar que a rejeição do passado está relacionada com a crescente independência e a
profissionalização cada vez maior da economia, antropologia, geografia, psicologia e sociologia.
A exemplo dos historiadores, nessa época, as pessoas que atuavam nesses campos fundavam suas
associações profissionais e revistas especializadas. Era necessário tornarem-se independentes da
história e dos historiadores para a formação das novas identidades disciplinares.” (pp. 26-27)

“Um historiador de ideias, por outro lado, talvez destacasse uma tendência intelectual, o
surgimento do "funcionalismo". Nos séculos XVIII e XIX, as explicações dos costumes ou
instituições sociais, em geral, eram dadas em termos históricos com o emprego de conceitos como
"difusão", "imitação" ou "evolução". Grande parte da história era especulativa ou "conjetural".
Que alternativa existia?” (p. 27)

“A alternativa, inspirada pela física e pela biologia, era explanar esses costumes e instituições pela
sua função social no presente, pela contribuição de cada elemento para a manutenção de toda a
estrutura. No modelo do universo físico ou do corpo humano, a sociedade era percebida como um
sistema em equilíbrio (termo preferido de Pareto). Em antropologia, essa posição funcionalista foi
adotada por Radcliffe-Brown e por Malinowski (1945, p.31), que descartaram o passado como
"morto e enterrado", não pertinente ao real funcionamento das sociedades. É difícil dizer se foi a
difusão do trabalho de campo que levou ao surgimento do funcionalismo ou vice-versa. Estudando
a linguagem dos próprios funcionalistas, poder-se-ia dizer que a nova explanação e o novo método
de pesquisa "se ajustavam". Infelizmente, eles reforçavam a tendência dos teóricos sociais de
perderem o interesse pelo passado.” (p. 27)
“Minha intenção certamente não é negar as esplêndidas conquistas intelectuais representadas pela
antropologia funcionalista, pela psicologia experimental ou pela economia matemática. É bem
provável que tais desdobramentos no estudo do comportamento humano tenham sido necessários em
sua época. Constituíam reações contra as falhas genuínas das teorias e dos métodos anteriores. O
trabalho de campo, por exemplo, fornecia uma base factual bem mais confiável para o estudo das
sociedades tribais contemporâneas do que a história evolucionária especulativa que o precedera.”
(p. 27)

“O que realmente quero aventar, entretanto, é que todos esses avanços - como o estilo da história
associado a Ranke – tiveram seu preço. Os métodos dos historiadores neo-rankeanos e dos
antropólogos funcionalistas eram mais rigorosos que os de seus predecessores, mas esses
profissionais também trabalhavam em um terreno mais restrito. Omitiam, ou melhor, excluíam
deliberadamente de sua obra tudo o que não conseguiam tratar de forma compatível com os novos
padrões profissionais. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, deveria haver o que um psicanalista
chamaria de um "retorno do que havia sido reprimido".” (p. 28)

O surgimento da história social

“Ironicamente, antropólogos sociais e sociólogos perdiam o interesse pelo passado bem na época
em que os historiadores começavam a produzir algo como uma resposta à demanda de Spencer
por uma "história natural da sociedade". No fim do século XIX, alguns historiadores profissionais
mostravam-se cada vez mais insatisfeitos com a história neo-rankeana. Um dos críticos mais
veementes era Karl Lamprecht, que denunciou o establishment em razão de sua ênfase em história
política e nos grandes homens (Steinberg, 1971). Em substituição a essa abordagem, clamava por
uma "história coletiva" que consultasse outras disciplinas para formar seus conceitos. Essas outras
disciplinas incluíam a psicologia social de Wilhelm Wundt e a "geografia humana" de Friedrich
Ratzel, ambos colegas de Lamprecht na Universidade de Leipzig. "História", afirmava Lamprecht
com sua ousadia característica, "é basicamente uma ciência sociopsicológica." Ele pôs em prática
essa abordagem sociopsicológica nos vários volumes de sua obra History of Germany [História da
Alemanha] (1891-1909) - estudo merecedor de crítica favorável na revista Année Sociologique, de
Durkheim-, porém foi mais ridicularizado do que criticado pelos historiadores alemães mais
ortodoxos, não apenas pelas imprecisões (que, de fato, eram numerosas) como por seus chamados
"materialismo" e "reducionismo".” (pp. 28-29)

“A violência da "polêmica sobre Lamprecht", como passou a ser chamada, sugere, contudo, que
seu verdadeiro pecado foi ter questionado a ortodoxia rankeana ou neo-rankeana. Otto Hintze, que
depois se transformou em seguidor de Max Weber, foi um dos poucos historiadores a tratar do tipo
de história defendido por Lamprecht como "um avanço além de Ranke" e do interesse de Ranke
pelos personagens situados no cimo da montanha da história, os grandes homens. "Queremos",
escreveu Hintze, "conhecer não apenas as cadeias de montanhas e seus cumes, mas também o sopé
dessas montanhas; não meramente as alturas e as profundidades da superfície, mas toda a massa
continental" (cf. Gilbert, 1975, p.9).” (p. 29)

“As tentativas, por parte de Lamprecht, de quebrar o monopólio da história política fracassaram.
Nos Estados Unidos e na França, em especial, a campanha pela história social obteve, entretanto,
respostas mais favoráveis. Na década iniciada em 1890, o historiador norte-americano Frederick
Jackson Turner lançou um ataque à história tradicional semelhante ao de Lamprecht. "Todas as
esferas da atividade humana devem ser consideradas", ele escreveu. "Nenhum setor da vida social
pode ser entendido isoladamente dos outros." Tal como Lamprecht, Turner impressionou-se com a
geografia histórica de Ratzel. Seu ensaio, "The Significance of the Frontier in American History"
[''A importânciada fronteira na história norte-americana"], constituiu uma interpretação polêmica,
mas que marcou época, das instituições norte-americanas como resposta a um meio ambiente social
e geográfico especifico. Em outro trabalho (1893/1976), o autor discutiu a importância na história
norte-americana daquilo que ele denominou "seções", ou seja, regiões, como a Nova Inglaterra ou
o Médio Oeste, que tinham interesses econômicos e recursos próprios. Um contemporâneo de Turner,
James Harvey Robinson (1912), era outro pregador eloquente do que ele chamou de "a nova
história", uma história que estaria interessada em todas as atividades humanas e trabalharia com
as ideias da antropologia, da economia, da psicologia e da sociologia.” (pp. 29-30)

“Na França, os anos 20 testemunharam um movimento rumo a um "novo tipo de história", conduzido
por dois professores da Universidade de Estrasburgo, Marc Bloch e Lucien Febvre. A revista
fundada por eles, Annales d'Histoire Économique et Sociale, fez críticas implacáveis a
historiadores tradicionais. A exemplo de Lamprecht, Turner e Robinson, Febvre e Bloch
opunham-se ao predomínio da história política. Ambicionavam substituí-la por algo a que se
referiam como uma "história mais ampla e mais humana", que abrangeria todas as atividades
humanas e estaria menos preocupada com a narrativa de eventos do que com a análise das
"estruturas", termo que desde então se tornou o preferido dos historiadores franceses da
chamada "escola dos Annales" (Burke, 1990).” (p. 30)

“(...) Febvre sobreviveu à Segunda Guerra Mundial para assumir o comando do establishment
histórico francês. Na verdade, como diretor da reconstruída Escola de Estudos Avançados em
Ciências Sociais, conseguiu não só incentivar a cooperação interdisciplinar como dar à história
uma posição de hegemonia entre as ciências sociais. As políticas de Febvre tiveram continuidade
com seu sucessor Fernand Braudel. Além de ter escrito um livro com grande possibilidade de ser
considerado o mais importante trabalho histórico do século XX (cf. p.211-2), Braudel era versado
em economia e geografia e acreditava firmemente em um mercado comum das ciências sociais. Em
sua opinião, a história e a sociologia deveriam ficar bastante próximas porque os praticantes de
ambas as disciplinas tentam, ou deveriam tentar, ver a experiência humana como um todo (Braudel,
1958).” (p. 31)

“A França e os Estados Unidos são dois países em que a história social vem sendo levada a sério há
um período relativamente longo, e as relações entre a história social e a teoria social têm sido bem
estreitas. Com isso, não se quer dizer que não estivesse ocorrendo nada semelhante em outros lugares
na primeira metade do século XX.” (p. 31)

“Gilberto Freyre foi um dos primeiros a discutir temas como a história do idioma, a história da
comida, a história do corpo, a história da infância e a história da habitação como partes da análise
integrada de uma sociedade passada. Também foi pioneiro na utilização de fontes, valendo-se de
jornais para escrever história social e adaptando a pesquisa social a seus objetivos históricos.” (p.
32)

A convergência da teoria com a história

“Não houve nenhum período em que os historiadores e os teóricos sociais perdessem o contato
por completo, como se verá mediante alguns exemplos. Em 1919, o grande historiador holandês
Johan Huizinga publicou Declínio da Idade Média, um estudo da cultura dos séculos XIV e XV que
faz uso das ideias de antropólogos sociais (Bulhof, 1975). Em 1929, a nova revista Annales d'histoire
économique et sociale incluiu o geógrafo político André Siegfried e o sociólogo Maurice Halbwachs
em seu conselho editorial, ao lado dos historiadores.” (pp. 32-33)

“As expressões "sociologia histórica", "antropologia histórica", "geografia histórica" e (bem


menos frequentemente) "economia histórica" passaram a ser utilizadas para descrever tanto a
incorporação da história nessas disciplinas como a incorporação destas na história (Ohnuki-
Tierney, l 990, p.1-25; Smith, l 991; Baker e Gregory, 1984; Kindleberger, 1990). A convergência
para o mesmo território intelectual leva, eventualmente, a disputas de territórios (por exemplo, onde
a geografia histórica termina e a história social se inicia?) e, às vezes, à criação de termos diferentes
para descrever os mesmos fenômenos; no entanto, também permite que diferentes conhecimentos
e pontos de vista sejam explorados em uma iniciativa comum.” (pp. 33-34)
“Há motivos óbvios para uma relação cada vez mais estreita entre a história e a teoria social. A
mudança social acelerada praticamente se impôs à atenção dos sociólogos e antropólogos (alguns
dos quais se voltaram para as áreas de seu trabalho de campo original, encontrando-as
transformadas pela inserção em um sistema econômico mundial). Demógrafos, ao estudar a explosão
demográfica mundial, e economistas ou sociólogos, ao analisar as condições de desenvolvimento
agrícola e industrial dos chamados países "subdesenvolvidos", viram-se examinando as mudanças
ao longo do tempo, ou seja, a história, e alguns deles – o demógrafo francês Louis Henry (1956),
por exemplo, ou o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein (1974) - foram tentados a
estender suas investigações ao passado mais remoto.” (p. 34)

“Nesse ínterim, houve uma transferência de interesse por parte dos historiadores em todo o
mundo, deslocando-se da história política tradicional (a narrativa das ações e das políticas do
dirigentes) para a história social. (...) Para se orientarem em um período de rápida mudança social,
muitas pessoas sentem a necessidade crescente de encontrar suas raízes e de renovar os laços com o
passado (...)” (p. 34)

“A meu ver, a "virada teórica" por parte de alguns historiadores sociais e a "virada histórica" de
alguns teóricos são muito bem-vindas. Em um trecho famoso, Francis Bacon formulou críticas
igualmente incisivas aos empiristas, que, como formigas, simplesmente coletavam dados, e aos
teóricos puros – aranhas cujas teias se originavam de seu próprio interior. Bacon recomendava o
exemplo da abelha, que não se limita a procurar matéria-prima; também a transforma. A parábola
aplica-se tanto à história da pesquisa social e histórica quanto à história das ciências naturais.
Sem combinar a história com a teoria, é provável que não consigamos entender nem o passado
nem o presente.” (p. 35)

“Há, claro, mais do que um modo de aliar a história à teoria. Alguns historiadores aceitaram uma
teoria específica e tentaram adotá-la em seu trabalho, como é o caso de muitos marxistas. (...) Outros
historiadores estão mais interessados em teorias do que compromissados com elas. Valem-se
delas para tomar conhecimento dos problemas, em outras palavras, para encontrar as perguntas, e
não para respondê-las. A leitura de Malthus, por exemplo, estimulou alguns historiadores contrários
a seus pontos de vista a examinar a relação em constante mudança entre a população e os meios de
subsistência. Esse tipo de interesse na teoria vem enriquecendo a prática da história, sobretudo no
decorrer da última geração.” (p. 35)

“Apesar disso, é justo acrescentar que não estamos vivendo em uma era intelectual dourada. Como
costuma acontecer na história do esforço intelectual, têm surgido problemas novos com as tentativas
de solucionar os antigos. De fato, já se argumentou que "convergência" é a palavra errada para
expressar a relação em constante mudança entre a história e a sociologia; que ela é "simples
demais e muito leve para fazer justiça a uma relação tão difícil e inextricável" (Abrams, 1980, p.4).
A essa objeção, poder-se-ia responder: convergência é, realmente, um termo bastante modesto
que sugere apenas a aproximação das duas partes. Não nos diz nada sobre encontro, muito
menos sobre acordo.” (pp. 35-36)

“Às vezes, na verdade, a aproximação leva ao conflito. (...) Edward Thompson (1963, p.10). Este
denunciou a incapacidade da "sociologia" de compreender que "classe" é um termo referente a
processo, e não a estrutura (cf. Smith, 1991, p.14-6, 162).” (p. 36)

“Para complicar ainda mais a situação, hoje há muito mais tipos de teoria do que antes disputando a
atenção dos intelectuais. Os historiadores sociais, por exemplo, não têm condições de se ater
somente à sociologia e à antropologia social. Precisam, ao menos, considerar a possibilidade de que
outras formas de teoria sejam pertinentes a seu trabalho. Com a geografia, velha aliada, mas também
uma disciplina que vem mudando rapidamente nos últimos anos, os historiadores podem aprender a
considerar a teoria do lugar central, a teoria da difusão espacial de inovações ou a teoria do
"espaço social" (Christaller, 1933; Hagerstrand, 1953; Buttimer, 1969). A teoria literária agora se
impõe aos historiadores, bem como aos sociólogos e antropólogos sociais, estando todos cada vez
mais cientes da existência de convenções literárias em seus textos, regras por eles seguidas mesmo
sem perceberem (Brown, 1977; White, 1976; Clifford & Marcus, 1986).” (pp. 36-37)

“Vivemos em uma era de linhas indefinidas e fronteiras intelectuais abertas, uma era instigante
e, ao mesmo tempo, confusa. Podem-se encontrar referências a Mikhail Bakhtin, Pierre Bourdieu,
Fernand Braudel, Norbert Elias, Michel Foucault e Clifford Geertz nos trabalhos de arqueólogos,
geógrafos e críticos literários, assim como de sociólogos e historiadores. O surgimento do discurso
compartilhado entre alguns historiadores e sociólogos, alguns arqueólogos e antropólogos, e assim
por diante, coincide com um declínio do discurso comum no âmbito das ciências sociais e
humanidades e, a bem da verdade, dentro de cada disciplina. Mesmo uma subdisciplina como a
história social agora está correndo o risco de dividir-se em dois grupos, um deles preocupado com
as principais tendências, o outro com estudos de caso de pequena magnitude. Na Alemanha, em
especial, os dois grupos estão em conflito, com os chamados "historiadores societais"
(Gesellschaftshistoriker) de um lado e os praticantes de "micro-história", de outro (Kocka, 1984;
Medick, 1987).” (p. 37)
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo
Horizonte: Autêntica, 2013.

INTRODUÇÃO - Ordens do tempo, regimes de historicidade

“Na palavra ordem, compreende-se imediatamente a sucessão e o comando: os tempos, no plural,


querem ou não querem; eles se vingam também, restabelecem uma ordem que foi perturbada. Jazem
às vezes de justiça. Ordem do tempo vem assim de imediato esclarecer uma expressão, talvez de
início um tanto enigmática, regimes de historicidade.” (p. 17)

“Investigando, de alguma forma, os momentos da vingança divina, o historiador é aquele que, graças
a seu saber, pode reunir e desvendar as duas extremidades da cadeia.” (p. 17)

“Em seguida, a ordem do tempo lembra A ordem do discurso, de Michel Foucault, breve texto
programático que leva à aula inaugural ministrada por ele no College de France, em 1971, e que se
revela um convite à reflexão, à continuidade do trabalho, fora dali, de outra forma, com outras
questões. Fazer com o tempo o que Foucault havia feito anteriormente com o discurso, nisso
buscando pelo menos uma inspiração. Por fim, A Ordem do tempo é o próprio título do livro
substancial que o historiador Krzysztof Pornian dedicou ao tempo: uma história do "próprio
tempo", precisava o autor, "abordado em uma perspectiva enciclopédica", ou ainda uma
história "filosófica" do tempo.” (p. 18)

“Colocando "em contato direto a experiência temporal e a operação narrativa", Tempo e


narrativa, frisa Ricoeur, "não leva em conta a memória". Era exatamente essa lacuna que ele
pretendia preencher com esse segundo livro, explorando "os níveis médios" entre tempo e narrativa.
Da questão da verdade da história à da fidelidade da memória, sem renunciar a nenhuma
delas.” (p. 19)

“(...) Michel de Certeau já lembrara com uma frase, em passant, que "sem dúvida a objetivação do
passado, nos últimos três séculos, fizera do tempo o elemento impensado de uma disciplina que
não deixava de utilizá-lo como um instrumento taxinômico". A observação convidava. à reflexão.
Estas páginas servem para me experimentar nesse campo, partindo de uma interrogação sobre
nosso presente.” (p. 19)

As brechas
“A ordem do tempo foi posta em questão, tanto no Oriente quanto no Ocidente. Como mistos de
arcaísmo e de modernidade, os fenômenos fundamentalistas são influenciados, em parte, por uma
crise do futuro, enquanto as tradições, às quais se voltam para responder às infelicidades do
presente, são, na impossibilidade de traçarem uma perspectiva do porvir, amplamente
"inventadas". Como articular, nessas condições, o passado, o presente e o futuro? A história,
escrevia François Furet em 1995, voltou a ser “esse túnel no qual o homem entra na escuridão,
sem saber aonde suas ações o conduzirão, incerto de seu destino, desprovido da segurança
ilusória de uma ciência do que ele faz. Privado de Deus, o indivíduo democrático vê tremer em
suas bases, no fim do século XX, a divindade história: angústia que ele vai ter de conjurar. A
essa ameaça da incerteza se une, no seu espírito, o escândalo de um futuro fechado”.” (pp. 19-
20)

“Um tempo desorientado, portanto, situado entre dois abismos ou entre duas eras, o qual o autor
de Regards sur le monde actuel experienciara e continuava retomando. Franz Rosenzweig, Walter
Benjamin e Gershom Sholem também poderiam evocar uma experiência análoga na Alemanha
dos anos 1920, eles que procuram uma nova visão da história, repudiando a continuidade e o
progresso em proveito das descontinuidades e rupturas.” (pp. 20-21)

“Mas já em 1946, por meio de um editorial com título sugestivo, "Face ao Vento", Lucien Febvre
convidava todos os leitores dos Annales a "fazer história", sabendo que se entrara a partir de
então em um mundo "em estado de instabilidade definitiva", onde as ruínas eram imensas; mas
no qual havia "muito mais do que ruínas, e mais grave ainda: esta prodigiosa aceleração da
velocidade que, fazendo colidirem os continentes, abolindo os oceanos, suprimindo os desertos,
coloca em contato brusco grupos humanos carregados de eletricidades contrárias". A urgência,
sob pena de não se compreender mais nada do mundo mundializado de amanhã, já de hoje, era olhar,
não para trás, em direção ao que acabava de acontecer, mas diante de si, para frente. "Acabou
o mundo de ontem. Acabou para sempre. Se nós, franceses, temos uma chance de sair disso - é
compreendendo, mais rápido e melhor do que outros, essa verdade óbvia. À deriva,
abandonando o navio, eu lhes digo, nadem com vontade". Explicar" o mundo ao mundo",
responder as questões do homem de hoje, tal é, pois, a tarefa do historiador que enfrenta o
vento. Não se trata de fazer do passado tábula rasa, mas de "compreender bem em que ele se
diferencia do presente". Em que ele é passado. Conteúdo, tom, ritmo, tudo nas poucas páginas
desse manifesto sugere ao leitor que o tempo urge e que o presente manda.” (p. 21)

“Ora, do ponto de vista do tempo, o testamento, na medida em que diz "ao herdeiro o que será
legitimamente seu, atribui um passado ao futuro".” (p. 22)
“(...) Arendt introduzia o conceito de "brecha (gap) entre o passado e o futuro" em torno do qual
se organizava o livro, como "estranho entremeio no tempo histórico, onde se toma consciência
de um intervalo no tempo inteiramente determinado por coisas que não são mais e por coisas
que não são ainda". O tempo histórico parecia então suspenso. Por outro lado, seu estudo pioneiro
sobre As origens do totalitarismo a havia levado a concluir que "a estrutura íntima da cultura
ocidental, com suas crenças, havia desmoronado sobre nossas cabeças", em particular o
conceito moderno de história, fundado na noção de processo. Mais uma vez, uma experiência
de tempo desorientado.” (pp. 22-23)

“O tema dos "retornos a" (até tornar-se uma fórmula pronta-para-pensar e para-vender) ia logo
fazer sucesso. Após a subversão dos retornos a Freud e a Marx, vieram os retornos a Kant ou a Deus,
e muitos outros retornos relâmpagos que se consumiam em suas próprias proclamações. Os
progressos (tecnológicos), no entanto, continuavam a galope enquanto a sociedade de consumo
não parava de crescer, exatamente como-a categoria do presente, da qual fazia seu alvo e que
constituía, de alguma maneira, sua razão social. Apareciam na vida pública os primeiros passos
da revolução informática, exaltando a sociedade da informação, mas também os programas das
biotecnologias.” (pp. 23-24)

“De fato, os anos 1980 viram o desabrochar de uma grande onda: a da memória. Com seu alter
ego, mais visível e tangível, o patrimônio: a ser protegido, repertoriado, valorizado, mas também
repensado. Construíram-se memoriais, fez-se a renovação e a multiplicação de museus, grandes e
pequenos. Um público comum, preocupado ou curioso pelas genealogias, pôs-se a frequentar os
arquivos. As pessoas passaram a interessar-se pela memória dos lugares, e um historiador,
Pierre Nora, propôs em 1984 o "lugar de memória". Organizadora do grande empreendimento
editorial dos Lieux de mémoire [Lugares de memória], a noção resultava inicialmente de um
diagnóstico baseado no presente da França.” (p. 24)

“Ao mesmo tempo, era lançado oficialmente Shoah (1985) de Claude Lanzmann, filme
extraordinariamente forte sobre o testemunho e os "não-lugares" da memória. Pondo diante dos
olhos do espectador "homens que se colocam na condição de testemunha", o filme visava, de
fato, a abolir a distância entre o passado e o presente: fazer surgir o passado do presente.” (p.
24)

“Mas não há dúvida de que os crimes do século XX, seus assassinatos em massa e sua monstruosa
indústria da morte são as tempestades de onde partiram essas ondas memoriais, que acabaram
unindo e agitando intensamente as sociedades contemporâneas. O passado não havia "passado"
e, na segunda ou terceira geração, ele estava sendo questionado.” (p. 25)
“Memória tornou-se, em todo caso, o termo mais abrangente: uma categoria meta-histórica, por
vezes teológica. Pretendeu-se fazer memória de tudo e, no duelo entre a memória e a história,
deu-se rapidamente vantagem à primeira, representada por este personagem, que se tornou central
em nosso espaço público: a testemunha. Interrogou-se sobre o esquecimento, fez-se valer e
invocou-se o "dever de memória" e por vezes, também, começou-se a estigmatizar abusos da
memória ou do patrimônio.” (pp. 25-26)

Do Pacífico a Berlim

“Em meu trabalho, não estudei diretamente esses eventos de massa. Não sendo nem historiador do
contemporâneo nem analista da atualidade, levei minhas pesquisas para outros caminhos.
Tampouco são diretamente aqueles da teoria da história, mas me esforço, cada vez que o posso, por
refletir sobre a história fazendo história. Não se trata então de propor depois de outros, melhor
que outros, uma explicação geral ou mais geral desses fenômenos históricos contemporâneos.
Meu enfoque é diferente, outro meu propósito. Esses fenômenos, eu os apreendo obliquamente, ao
me interrogar sobre as temporalidades que os estruturam ou os ordenam. Por que ordem do
tempo eles são sustentados? De que ordem são portadores ou sintomas? De que "crise" do
tempo, os indícios?

Para fazer isso, convém encontrar alguns pontos de entrada. Historiador da história, entendida como
uma forma de história intelectual, pouco a pouco fiz minha a constatação de Michel de Certeau. O
tempo tornou-se a tal ponto habitual para o historiador que ele o naturalizou ou o
instrumentalizou. O tempo é impensado, não porque seria impensável, mas porque não o
pensamos ou, mais simplesmente, não pensamos nele. Historiador que se esforça para ficar
atento ao seu tempo, observei ainda, como muitos outros, o crescimento rápido da categoria do
presente até que se imponha a evidência de um presente onipresente. O que nomeio aqui
"presentismo".” (p. 26)

“Para Renê Rémond, um de seus defensores mais constantes, "a história do tempo presente é uma
boa medicação contra a racionalização a posteriori, contra as ilusões de ótica que a distância e
o afastamento podem induzir". Ao historiador foi solicitado, algumas vezes exigido, que
respondesse às demandas múltiplas da história contemporânea ou muito contemporânea. Presente em
diferentes frentes, essa história encontrou-se, em particular, sob os holofotes da atualidade
judiciária, durante processos por crimes contra a humanidade, que têm por característica
primeira lidar com a temporalidade inédita do imprescritível.” (p.27)
“Recomeçando das reflexões de Claude Lévi-Strauss sobre as sociedades "quentes" e as
sociedades "frias", Sahlins buscava efetivamente delimitar a forma de história que fora própria
às ilhas do Pacífico. Tendo deixado, por assim dizer, a expressão de lado, sem elaborá-la muito, eu
a reencontrei dessa vez não mais com os Selvagens e no passado, mas no presente e aqui; mais
exatamente, depois de 1989, ela impôs-se quase por si mesma como uma das maneiras de
interrogar uma conjuntura, em que a questão do tempo tornava-se pregnante, um problema:
uma obsessão às vezes.” (pp. 27-28)

“No intervalo, familiarizei-me com as categorias meta-históricas da "experiência" e da


"expectativa", como as trabalhara o historiador alemão Reinhart Koselleck, com a intenção de
elaborar uma semântica dos tempos históricos. Interrogando as experiências temporais da história,
ele de fato buscava "como, em cada presente, as dimensões temporais do passado e do futuro
haviam sido correlacionadas". Exatamente isso era interessante investigar, levando em conta as
tensões existentes entre campo de experiência e horizonte de expectativa e estando atento aos
modos de articulação do presente, do passado e do futuro. A noção de regime de historicidade
podia assim beneficiar-se do estabelecimento de um diálogo (nem que fosse por meu intermédio)
entre Sahlins e Koselleck: entre a antropologia e a história.” (p. 28)

“"Regime de historicidade", escrevíamos então, podia ser compreendido de dois modos. Em uma
acepção restrita, como uma sociedade trata seu passado e trata do seu passado. Em uma acepção
mais ampla, regime de historicidade serviria para designar "a modalidade de consciência de si
de uma comunidade humana.". Como, retomando os termos de Lévi-Strauss (aos quais retornarei),
ela "reage" a um "grau de historicidade" idêntico para todas as sociedades. Mais precisamente,
a noção devia poder fornecer um instrumento para comparar tipos de história diferentes, mas
também e mesmo primeiramente, eu acrescentaria agora, para colocar em foco modos de
relação com o tempo: formas da experiência do tempo, aqui e lá, hoje e ontem. Maneiras de ser
no tempo. Se, do lado da filosofia, a historicidade, cuja trajetória Paul Ricoeur reconstituiu de
Hegel até Heidegger, designa "a condição de ser histórico", ou ainda "o homem presente a si
mesmo enquanto história" aqui, estaremos atentos à diversidade dos regimes de historicidade.”
(pp. 28-29)

“Que relações manter com o passado, os passados certamente, mas também, e muito, com o
futuro? Sem esquecer o presente ou, inversamente, correndo o risco de nada ver além dele:
como, no sentido próprio da palavra, habitá-lo? O que destruir, o que conservar, o que
reconstruir, o que construir, e como? Decisões e ações que implicam uma relação explícita com
o tempo, que salta aos olhos a ponto de não se querer ver?” (p. 30)
“De ambos os lados de um muro, que se tornaria pouco a pouco um muro de tempo, tentou-se de
início apagar o passado. A declaração de Hans Scharoun - "Não se pode querer construir uma nova
sociedade e ao mesmo tempo reconstruir os prédios antigos" - podia, na verdade, valer para os
dois lados. (...) Cidade emblemática, lugar de memória para uma Europa apreendida como um
todo, entre amnésia e dever de memória. Esta é a Berlim no limiar do século XXI. Nela, aos olhos
do flâneur-historiador, ainda se veem fragmentos, vestígios, marcas de ordens de tempo diferentes,
como as ordens da arquitetura.” (p. 30)

Histórias universais

“Não faltaram ao longo da história as grandes "cronosofias", misto de profecias e de periodizações,


seguidas dos discursos sobre a história universal - de Bossuet a Marx, passando por Voltaire, Hegel
e Comte, sem esquecer Spengler ou Toynbee. Engendradas por interrogações sobre o futuro, essas
construções, tão diferentes quanto possam ter sido os pressupostos que as fundamentavam (quer
tenham privilegiado uma perspectiva cíclica ou linear), buscaram fundamentalmente compreender as
relações entre o passado e o futuro. Descobri-las e fixá-las: dominá-las, para compreender e prever.
Na entrada dessa longa galeria, em ruínas há muito tempo, pode-se inicialmente parar por um
momento em frente à estátua que apareceu no sonho de Nabucodonosor, o rei da Babilônia.” (pp. 31-
32)

“Nessas tramas (à das idades e da sucessão dos impérios somou-se mais tarde o conceito de
transferência (translatio) do império), por muito tempo presentes e eficientes na história ocidental,
operou-se inicialmente com o humanismo uma divisão em Tempos Antigos, Idade Média (Media
Aetas) e Tempos Modernos. Depois a abertura do futuro e do progresso se dissociou
progressivamente e cada vez mais da esperança do fim. Por temporalização do ideal da perfeição.
Passou-se então da perfeição à perfectibilidade e ao progresso. Chegando a desvalorizar, em nome
do futuro, o passado, ultrapassado, mas também o presente. Não sendo nada mais do que a
véspera do futuro, melhor senão "radiante", ele podia, até devia ser sacrificado.” (p. 33)

“Nesses mesmos anos, a história, ao menos aquela que ambicionava tornar-se uma ciência social,
buscava seriamente outras temporalidades, mais profundas, mais lentas, mais efetivas. Em
busca dos ciclos, atenta às fases e às crises, ela se fez história dos preços. Foi o primeiro programa
de uma história econômica e social, como ele se formulou, na França, em torno dos primeiros
Annales. Após a Segunda Guerra Mundial, três linhas aparecem quanto ao tempo. A arqueologia
e a antropologia física não param de mover e de fazer recuar no tempo o surgimento dos primeiros
hominídeos. Conta-se agora em milhões de anos. A "revolução neolítica", finalmente, passou-se
ontem, a Revolução Industrial então! Entre os historiadores, Fernand Braudel propõe a todos os
praticantes das ciências sociais a longa duração e convida a assumir a responsabilidade pela
"pluralidade do tempo social". Atenta às estruturas, preocupada com os níveis e os registros, cada
um com suas temporalidades próprias, a história se dá, por sua vez, como "dialética da duração". Não
há mais tempo único e, se o tempo é ator, é um ator multiforme, proteiforme, anônimo também,
se é verdade que a longa duração é esta "enorme superficie de água quase estagnada" que,
irresistivelmente, "leva tudo consigo".” (p. 34)

“A terceira linha, enfim, a mais importante para a nossa proposta, é o reconhecimento da


diversidade de culturas. A obra Raça e história, de Claude Lévy- Strauss, financiada e publicada
pela Unesco, em 1952, é o texto de referência. Nessas páginas, ele começa por criticar o "falso
evolucionismo", denunciado como atitude que consiste para o viajante ocidental em crer
"reencontrar", por exemplo, a idade da pedra nos indígenas da Austrália ou de Papua. O
progresso, em seguida, é fortemente colocado em perspectiva. As formas de civilização que
éramos levados a imaginar "como escalonadas no tempo" devem, preferencialmente, ser vistas
como "desdobradas no espaço". Assim, a humanidade "em progresso não lembra muito um
personagem galgando uma escada, acrescentando, com cada um de seus movimentos, um degrau
novo em comparação a todos aqueles cuja conquista está adquirida; ela evoca, antes, um jogador cuja
sorte é repartida em vários dados. [ ... ] É apenas de um tempo a outro que a história é cumulativa, ou
seja, que as contas se adicionam para formar uma combinação favorável".” (pp. 34-35)

“Ora, todo membro de uma cultura é tão estreitamente solidário dela quanto esse viajante ideal o é de
seu trem.” (p. 35)

“O último argumento, enfim, que poderia parecer contradizer o precedente: não existe sociedade
cumulativa "em si e por si": uma cultura isolada não poderia ser cumulativa. As formas de
história mais cumulativas, com efeito, foram alcançadas por sociedades "combinando seus jogos
respectivos", voluntária ou involuntariamente. De onde a tese final do livro, o mais importante é a
distância diferencial entre culturas. É ali que reside sua "verdadeira contribuição" cultural a
uma história milenar, e não na "lista de suas invenções particulares". Assim, agora que estamos
inseridos em uma civilização mundial, a diversidade deveria ser preservada, mas com a condição
de percebê-la menos como conteúdo do que como forma: conta sobretudo o próprio "fato" da
diversidade e menos "o conteúdo histórico que cada época lhe deu". Por meio de suas convenções e
suas cartas, a Unesco entendeu (ao menos parcialmente) a mensagem, tendo em vista que está em
elaboração uma convenção internacional sobre a diversidade cultural. Tais são os principais pontos
de um texto, saudado, em um dado momento, como "o último dos grandes discursos sobre a história
universal".” (pp. 35-36)
“A princípio apresentada sob a forma de um artigo que deu a volta ao mundo, a tese, retomada em
seguida em livro, pretendia sugerir que a democracia liberal poderia bem constituir ''a forma
final de todo governo humano" e, então, nesse sentido, "o fim da História". "O aparecimento de
forças democráticas em partes do mundo onde sua presença não era esperada, a instabilidade das
formas autoritárias de governo e a completa ausência de alternativas teóricas (coerentes) à
democracia liberal nos forçam, assim, a refazer a antiga questão: será que existe, de um ponto de
vista muito mais 'cosmopolita' do que era possível no tempo de Kant, uma história universal do
homem?". Para Fukuyama, a resposta é sim, mas ele acrescenta imediatamente: ela está
terminada.” (p. 36)

Regimes de historicidade

“Simples ferramenta, o regime de historicidade não pretende falar da história do mundo passado,
e menos ainda do que está por vir. Nem cronosofia, nem discurso sobre a história tampouco serve
para denunciar o tempo presente, ou para deplorá-lo, mas para melhor esclarecê-lo. O historiador
agora aprendeu a não reivindicar nenhum ponto de vista predominante. O que não o obriga de
forma alguma a viver com a cabeça enterrada na areia, ou unicamente nos arquivos e
enclausurado em seu período. Tampouco busca reativar uma história transformada por um
tempo único, regulado ele mesmo por um único staccato do acontecimento ou, ao contrário, pela
lentidão da longa ou bem longa duração. Não é o caso de se privar de todos os recursos de
inteligibilidade aportados pelo reconhecimento da pluralidade do tempo social. De todos esses tempos
folheados, imbricados, desencontrados, cada um com seu ritmo próprio, dos quais Fernand Braudel,
seguido por muitos outros, foi o descobridor apaixonado. Eles enriqueceram consideravelmente o
questionário das ciências sociais, tornando-o mais complexo e refinando-o.” (p. 37)

“(...) a hipótese do regime de historicidade deveria permitir o desdobramento de um


questionamento historiador sobre nossas relações com o tempo. Historiador, por lidar com
vários tempos, instaurando um vaivém entre o presente e o passado, ou melhor, passados,
eventualmente hem distanciados, tanto no tempo quanto no espaço. Este movimento é sua única
especificidade. Partindo de diversas experiências do tempo, o regime de historicidade se
pretenderia uma ferramenta heurística, ajudando a melhor apreender, não o tempo, todos os
tempos ou a totalidade do tempo, mas principalmente momentos de crise do tempo, aqui e lá,
quando vêm justamente perder sua evidência as articulações do passado, do presente e do
futuro. Isso não é inicialmente uma "crise" do tempo? Seria, dessa maneira, uma forma de esclarecer,
quase do cerne, as interrogações de hoje sobre o tempo, marcado pela equivocidade das categorias:
há relação entre um passado esquecido ou demasiadamente lembrado, entre um futuro que
quase desapareceu do horizonte ou entre um porvir ameaçador, um presente continuamente
consumado no imediatismo ou quase estático ou interminável, senão eterno? Seria também uma
maneira de lançar uma luz sobre os debates múltiplos, aqui e lá, sobre a memória e a história, a
memória contra a história, sobre o jamais suficiente ou o já em excesso de patrimônio.” (pp. 37-38)

“Operatória no espaço de interrogação assim produzido, a noção valeria por e para esses
movimentos de ida e retorno. (...) A atenção, é preciso repetir, incide inicialmente e, sobretudo,
sobre as categorias que organizam essas experiências e permitem revelá-las, mais precisamente
ainda, sobre as formas ou os modos de articulação dessas categorias ou formas universais, que
são o passado, o presente e o futuro. Como, conforme os lugares, os tempos e as sociedades, essas
categorias, de pensamento e ação ao mesmo tempo, são operacionalizadas e vêm tornar possível e
perceptível o deslocamento de uma ordem do tempo? De que presente, visando qual passado e qual
futuro, trata-se aqui ou lá, ontem ou hoje? A análise focaliza-se assim em um aquém da história
(como gênero ou disciplina), mas toda história, seja qual for finalmente seu modo de expressão,
pressupõe, remete a, traduz, trai, enaltece ou contradiz uma ou mais experiências do tempo.
Com o regime de historicidade, tocamos, dessa forma, em uma das condições de possibilidade
da produção de histórias: de acordo com as relações respectivas do presente, do passado e do
futuro, determinados tipos de história são possíveis e outros não.” (pp. 38-39)

“O tempo histórico, se seguirmos Reinhart Koselleck, é produzido pela distância criada entre o
campo da experiência, de um lado, e o horizonte da expectativa, de outro: ele é gerado pela
tensão entre os dois lados. É essa tensão que o regime de historicidade propõe-se a esclarecer, e é
dessa distância que essas páginas se ocupam. Mais precisamente ainda, dos tipos de distância e
modos de tensão. Para Koselleck, a estrutura temporal dos tempos modernos, marcada pela
abertura do futuro e pelo progresso, caracteriza-se pela assimetria entre a experiência e a
expectativa. A partir do final do século XVIII, essa história pode esquematizar-se como a de um
desequilíbrio que não parou de crescer entre essas duas, sob o efeito da aceleração. De modo que a
máxima "quanto menor a experiência, maior a expectativa" poderia resumir essa evolução.
Ainda em 1975, Koselleck interrogava-se sobre o que poderia ser um "fim" ou uma saída dos tempos
modernos. Isso não se revelaria por uma máxima do gênero: "Quanto maior a experiência, mais
prudente e aberta é a expectativa"?” (p. 39)

“Hoje, com os regimes de historicidade, o objeto é outro, a conjuntura também. Trata-se de um


novo itinerário, agora entre experiências do tempo e histórias, desenvolvendo-se em um
momento de crise do tempo. A perspectiva ampliou-se, o presente está mais diretamente
presente, mas perdura a maneira de ver e de fazer, de avançar: o que se tornou minha maneira
de trabalhar.” (p. 41)

Cap. 4 - Memória, história, presente

“Porém, de Chateaubriand a Pierre Nora, para voltar ao nosso atalho inicial, a diferença na relação
com o tempo surpreende imediatamente. O "novo plano" exigido pelos "progressos" da
inteligência remetia, de fato, a uma visão do tempo como aperfeiçoamento e progresso: aquele
da liberdade, filha dos costumes, descoberta na América, aquele que fazia do Ensaio histórico
revisitado uma testemunha dessa caminhada. Mas ele sabia também que a forma de trabalhar dos
historiadores liberais que julgavam o mundo novo como "escala retificada para medir o mundo
antigo" era o oposto de sua vocação de escritor, cuja escrita é marcada por ranhuras incessantes de
um a outro. Ao passo que, no momento de empreender o que se tornaria Les Lieux de mémoíre, Nora
não apenas não invocava nenhum tempo progressista, como tampouco saía do círculo do presente.
Muito pelo contrário, observava ele, "o desaparecimento rápido de nossa memória nacional me
parecera exigir um inventário dos lugares onde ela se encarnou de maneira seletiva". Um
inventário antes de uma morte anunciada.” (p. 135)

“Como já anunciei, a questão que nos serve de fio condutor é aquela da ordem do tempo,
testemunhado pelos Líeux, percebidos acima de tudo como projeto intelectual. Colocando a
memória à frente, com que articulação do passado, do presente e do futuro eles jogam? Já que
é evidente que começam por não restabelecer o regime moderno de historicidade. Para além deles e
de sua abordagem, Les Líeux de mémoíre nos servirão também de projetor para iluminar as
temporalidades mobilizadas pelo gênero da história nacional no curso de sua história. Mas, antes,
distanciemo-nos um pouco novamente e pratiquemos uma outra modalidade de olhar distanciado.”
(p. 136)

As crises do regime moderno

“As características do regime moderno, tais como se destacam das análises agora clássicas de
Koselleck, são, como já vimos, a passagem do plural alemão díe Geschíchten ao singular díe
Geschíchte: a História. "Para além das histórias, há a História", a História em si, que segundo
a expressão de Droysen, deve tornar-se "conhecimento de si mesma". Particularmente, ela é
doravante compreendida como processo, com a ideia de que os acontecimentos não se produzem
mais somente no tempo, mas através dele: o tempo torna-se ator, se não o Ator. Então a exigência
de previsões substitui as lições da história, já que o passado não explica mais o futuro. O historiador
não produz mais a exemplaridade, mas está em busca do único. Na hístoría magistra, o exemplar
ligava o passado ao futuro, por meio da figura do modelo a ser imitado. Atrás de mim, o homem
ilustre estava tanto na minha frente como à frente de mim.” (p. 137)

“Com o regime moderno, o exemplar como tal desaparece para dar lugar ao que não se repete.
O passado é, por princípio ou por posição, ultrapassado. Um dia, mais tarde, quando as condições
estiverem reunidas, os historiadores conseguirão estabelecer uma lei como a que já se produziu nas
ciências da natureza. Ou, conforme uma formulação própria à história-ciência do final do século XIX,
o dia glorioso da síntese acabará por nascer, mas, enquanto isso, o historiador deve, como um artesão
desvalorizado, limitar-se ao hábito ingrato da análise. É cedo demais. De qualquer modo, o futuro,
isto é, o ponto de vista do futuro, exige: "A história passou a ser essencialmente um ultimato
dirigido pelo Futuro ao Contemporâneo".” (pp. 137-138)

“Se há ainda uma lição da história, ela vem do futuro e não mais do passado. Ela está em um
futuro que se deve fazer surgir como ruptura com o passado, pelo menos como algo diferente
dele, enquanto a historia magistra repousava na ideia de que o futuro, se não repetia exatamente o
passado, pelo menos não o excedia nunca. Vivia-se no interior do mesmo círculo (mesmo que
Chateaubriand tivesse arriscado a imagem dos círculos concêntricos), com a mesma Providência ou
as mesmas leis e, em todos os casos, com homens dotados da mesma natureza humana.” (p. 138)

“Aliás, um regime de historicidade nunca foi uma entidade metafísica, caída do céu e de alcance
universal. É apenas a expressão de uma ordem dominante do tempo. Tramado por diferentes
regimes de temporalidade, ele é, concluindo, uma maneira de traduzir e de ordenar experiências
do tempo - modos de articular passado, presente e futuro - e de dar-lhes sentido. Ainda assim,
para a apreensão e a manifestação dessas experiências, a descrição fenomenológica agostiniana dos
três tempos permanece um ponto de referência essencial. Como poderíamos enumerar regimes?
Eu o ignoro. O exemplo do regime heroico polinésio mostra, pelo menos, que o inventário está aberto
e que não estamos confinados somente na autocontemplação da história europeia. Contestado logo
que instaurado, e mesmo nunca completamente instaurado (exceto no melhor dos mundos), um
regime de historicidade instaura-se lentamente e dura muito tempo.” (p. 139)

“De uma maneira mais profunda, o regime cristão pode se combinar com o da historía magístra, na
medida em que ambos olhavam para o passado, para um já, mesmo que o já dos Antigos não fosse
de modo algum o dos cristãos (abrindo para o horizonte de um ainda não) . Não resulta que esse
antigo regime de historicidade não tenha experimentado muitos questionamentos na sua longa
história.” (p. 140)
A ascensão do presentismo

“O século XX aliou, finalmente, futurismo e presentismo. Se, em primeiro lugar, ele foi mais
futurista do que presentista, terminou mais presentista do que futurista. Foi futurista com paixão, com
cegueira, até o pior, hoje todos sabem. Futurismo deve ser entendido aqui como a dominação do
ponto de vista do futuro. Este é o sentido imperativo da ordem do tempo: uma ordem que
continua acelerando ou se apresentando como tal. A história é feita então em nome do futuro e
deve ser escrita do mesmo modo. O movimento futurista estimulou essa postura ao extremo.”
(pp. 140-141)

“A exemplo do Manifesto do partido comunista, o Manifesto futurista, lançado por Marinetti em


1909, pretende ser um ato retumbante de ruptura em relação à antiga ordem. É preciso liberar
a Itália de "sua gangrena de professores, de arqueólogos, de cicerones e de antiquários",
declarando que "o esplendor do mundo se enriqueceu com uma beleza nova: a beleza da
velocidade". É sintomático que seja a partir do lugar-marco onde a Europa forjou sua noção
de patrimônio que uma contestação radical dessa ordem tenha vindo. "Mais belo do que a Vitória
de Samotrácia", um automóvel "ruidoso" é a expressão mais forte disso. "Estamos no promontório
extremo dos séculos", acrescenta ainda Marinetti, "De que serve olhar atrás de nós ( ... )?" Um
ano mais tarde, o Manifesto dos pintores futuristas é igualmente radical: "Camaradas! Nós
declaramos que o progresso triunfante das ciências ocasionou mudanças tão profundas para a
humanidade que um abismo se cavou entre os dóceis escravos do passado e nós, livres e certos
da radiosa magnificência do futuro. [ ... ] Mas a Itália renasce, e ao seu Risorgimento político
faz eco sua renascença intelectual". As vanguardas artísticas alimentaram-se desse impulso
inicial, em busca dessa radiosa magnificência.” (p. 141)

“(...) o Manifesto futurista mostra também como podemos passar do futurismo ao presentismo,
ou como o futurismo é também (já) um presentismo. Quando Marinetti proclama: "O Tempo e o
Espaço morreram ontem. Vivemos já no Absoluto, pois já criamos a eterna velocidade
onipresente", o presente encontra-se "futurizado" ou não há mais senão presente. Pela
velocidade, o presente se transforma em eternidade e Marinetti, no volante de seu carro de
corrida, vê-se como um substituto de Deus.” (p. 141)

“O presente é o iminente: o corpo do corredor inclinado para frente no momento de se lançar.”


(p. 142)

“Porém, com as religiões reveladas, o presente encontrou-se a uma só vez desvalorizado (nada
do que aconteça tem real importância), estendido (em certo sentido há apenas o presente) e
valorizado como presente messiânico, à espera do eschaton: a qualquer momento o Messias
pode surgir. (...) Daí essa apóstrofe de Pascal, ao retomar às origens do Evangelho, evocando a
dimensão escatológica do presente: "O presente nunca é nosso fim: o passado e o presente são
nossos meios; somente o futuro é nosso fim. Em consequência, nunca vivemos, mas esperamos viver;
e nos preparando sempre para sermos felizes, é inevitável que nunca o sejamos". Temos aqui as duas
grandes formas históricas de presentismo: a religiosa e a das filosofias antigas, com passagens
de uma para outra, como em Montaigne e ainda em Pascal.” (pp. 143-144)

“O presente ergue-se então contra o passado, em nome da vida e da arte. No que tange às
vanguardas artísticas do período de 1905 a 1925, Éric Michaud chamou a atenção para o espaço dado
ao presente nos próprios títulos dos seus manifestos, suas reivindicações presentistas, eu diria. Ao
lado do Futurismo presentista de Marinetti, evocado há pouco, podemos citar o Simultaneísmo, o
Praesentismus, o Nunismo (de nun, "agora" em grego), o PREsentismo, o Instantaneísmo.” (p. 144)

“De modo que, se quisesse responder e escapar à "falência da história" (que se tomou patente
com a Guerra de 1914), a história profissional teria então de começar por demonstrar que o
passado não era sinônimo de morte e que não queria sufocar a vida. Precisou propor um modo
de relação entre o passado e o presente, tal que o passado não pretendesse dar lições ao presente,
sem que esse fosse tachado por isso de inanidade de princípio. E isso mesmo que o antigo modelo
da historia magistra já tivesse deixado de ser operatório há um bom século. A insistência dos
primeiros Annales de Marc Bloch e Lucien Febvre sobre a essencial preocupação do presente assumia
também seu sentido em relação a esse contexto intelectual. Mais tarde, eles colocarão o trabalho do
historiador sob o signo de um duplo movimento: do passado para o presente e do presente para
o passado. Nisso reside a justificativa da história, mas daí também surgem seus recursos
heurísticos.” (pp. 144-145)

“Se a crítica ao progresso não implica uma promoção automática do presente, ela instila a
dúvida sobre o caráter inevitavelmente positivo da caminhada para o futuro. Certamente o topos
não era novo, mas podemos assinalar aqui sua reativação e seu deslocamento, em meados dos anos
1950, por Claude Lévi-Strauss na obra Tristes trópicos, imediatamente célebre. No contexto da
descolonização, ele propunha uma interpretação renovada do bom selvagem.” (p. 146)

“A história, observava ele, não é senão de tempos em tempos cumulativa e, além disso, apreendemos
como cumulativo somente o que é análogo ao que acontece conosco. As formações sociais e a história
universal ainda esperam o seu Einstein. Nos anos 1960, o selvagem entrou na moda. Praticou-se todo
tipo de usos selvagens do "pensamento selvagem", exerceu-se influência sobre "o pensamento
mítico"; valorizou-se o Selvagem, em oposição ao Civilizado ou ao Estado, mas houve também
retornos ou fugas para os Selvagens. Antes dos "retornos" ao país.” (p. 147)
“Nessa progressiva invasão do horizonte por um presente cada vez mais inchado, hipertrofiado, é
bem claro que o papel motriz foi desempenhado pelo desenvolvimento rápido e pelas exigências
cada vez maiores de uma sociedade de consumo, na qual as inovações tecnológicas e a busca de
benefícios cada vez mais rápidos tornam obsoletos as coisas e os homens, cada vez mais
depressa. Produtividade, flexibilidade, mobilidade tornam-se as palavras-chave dos novos
administradores. Se o tempo é, há muito, uma mercadoria, o consumo atual valoriza o efêmero.
A mídia, cujo extraordinário desenvolvimento acompanhou esse movimento que é, em sentido
próprio, sua razão de ser, faz a mesma coisa. Na corrida cada vez mais acelerada para o ao vivo,
ela produz, consome, recicla cada vez mais palavras e imagens e comprime o tempo: um
assunto, ou seja, um minuto e meio para trinta anos de história.” (pp. 147-148)

“Esse tempo coincide também com o do desemprego em massa que as sociedades europeias
começaram a sofrer nessa época. Para o desempregado, um tempo cotidiano, sem projetos
possíveis, é um tempo sem futuro. Para esses "homens sem futuro", como os denominava Pierre
Bourdieu, "o tempo parece se aniquilar", pois "o trabalho assalariado é o suporte, senão o princípio,
da maior parte dos interesses, das expectativas, das exigências, das esperanças e dos investimentos
no presente, assim como no futuro ou no passado que ele envolve". O desemprego contribui
fortemente para o confinamento no presente e para um presentismo, agora penoso e
desesperado.” (p. 148)

“O futurismo deteriorou-se sob o horizonte e o presentismo o substituiu. O presente tornou-se


o horizonte. Sem futuro e sem passado, ele produz diariamente o passado e o futuro de que
sempre precisa, um dia após o outro, e valoriza o imediato.” (p. 148)

“O poeta T. S. Eliot já testemunhava esse expansionismo do presente: "Em nossa época", observava
ele, [ ... ] apresenta-se um novo gênero de provincianismo, que talvez mereça um nome novo. É um
provincianismo não do espaço, mas do tempo; para o qual [ ... ] o mundo é propriedade somente
dos vivos, do qual os mortos não participam". Os mortos não têm mais seu lugar, e mesmo, lugar
nenhum. Como historiador, Philippe Ariès soubera chamar nossa atenção sobre esse mesmo
fenômeno: "Tudo se passa na cidade como se ninguém mais morresse". (...) Esses comportamentos
traduzem uma experiência amplamente compartilhada do presente e são um de seus
componentes, delineando assim um dos regimes de temporalidade do presente.” (p. 149)

As fendas do presente

“É uma resposta midiatizada e midiática à antiga questão provocadora formulada por Kant: "Como
a história é possível a priori? Resposta: quando aquele que faz prognósticos realiza e organiza
ele próprio os acontecimentos que anunciou antecipadamente". Certamente, trata-se apenas de
história a priori midiática, mas reconhece-se nisso também uma forma política denunciada sob o
nome de efeito de anúncio.” (p. 150)

“Simetricamente, nosso presente tem uma ânsia de previsões, senão de predições. Ele se cercou
de experts, que consulta sem parar. Solicitado, o historiador encontra- se, em mais de uma
ocasião, investido como expert da memória e preso no círculo do testemunho. (...) Contudo, as
sondagens erram, nós já constatamos, e o futuro escapa! Mais uma vez, gostaríamos de estar em
uma forma de história a priori. Ou, o que dá no mesmo, negar o tempo. Daí, a contrario, o sucesso,
em meados dos anos 1980, da máxima de Mitterrand "Dar tempo ao tempo"!” (pp. 150-151)

“Em meados dos anos 1970, outra fenda manifesta-se nesse presente. Ele começa a se mostrar
preocupado com a conservação (de monumentos, de objetos, de modos de vida, de paisagens,
de espécies animais) e ansioso em defender o meio ambiente. Os modos de vida local e a ecologia,
de temas exclusivamente contestatórios passaram a ser temas mobilizadores e promissores.
Gradativamente, a conservação e a renovação substituíram, nas políticas urbanas, o mero
imperativo de modernização, cuja brilhante e brutal evidência não tinha sido questionada até
então. Como se se quisesse preservar, na verdade, reconstituir um passado já extinto ou prestes
a desaparecer para sempre. Já inquieto, o presente descobre-se igualmente em busca de raízes e de
identidade, preocupado com memória e genealogias.” (p. 151)

“Esse período corresponde também a uma produção em massa dos arquivos. Sua quantidade
multiplicou-se por cinco desde 1945 e, um ao lado do outro, se desdobrariam por mais de três
mil quilômetros lineares. Acompanhando esse movimento, a lei de 1979 sobre os arquivos (a
primeira desde a Revolução) dava uma definição bem ampla: "Os arquivos são o conjunto dos
documentos, qualquer que seja sua data, sua forma e seu suporte material, produzidos ou
recebidos por toda pessoa física ou moral, e por todo serviço ou organismo público ou privado,
no exercício de sua atividade". Tudo pode, em última instância, ser arquivado, e os arquivos
"constituem a memória da nação e uma parte essencial de seu patrimônio histórico". Os termos-
chave estão aqui: memória, patrimônio, história, nação. Eles assinalam que entramos efetivamente
nos anos-patrimônio. Os arquivos tinham, nesse contexto, evidentemente, seu lugar. Contudo, os
arquivistas tiveram o sentimento, mais ou menos justificado, de terem sido, afinal, os abandonados
daqueles anos, enquanto os museus e as bibliotecas faziam mais sucesso junto aos poderes públicos.
O que é uma das componentes da crise dos arquivos.” (p. 152)
“Lembrando que "É um dever da República perpetuar a memória dos acontecimentos que ocorreram
em nosso país entre 1940 e 1945", ela convidava a ir mais longe em matéria de derrogações, sem se
fixar "na personalidade ou na motivação das pessoas que solicitam

uma derrogação". Traduzia, em suma, para a administração, o dever de memória.” (p. 153)

“Porém, o tempo funcionou às avessas. Ao invés de ter produzido o esquecimento, ele avivou a
memória, reconstituiu e impôs a lembrança. Com a temporalidade até então inédita criada pelo
crime contra a humanidade, o tempo não "passa": o criminoso permanece contemporâneo de seu
crime.” (p. 154)

“Quanto ao museu, chamado finalmente de Centro Georges Pompidou, é interessante lembrar que
ele devia inicialmente ser um museu "experimental". Em que sentido? "Um museu", esclarecia-
se, "cuja finalidade não seria conservar obras de arte, mas permitir a expressão livre a todas as
formas da criação contemporânea.” O prédio de vidro, com seus espaços polivalentes e suas
estruturas móveis, devia aliar uma arquitetura funcionalista e rigorosa ao lúdico e ao efêmero. Devia
expor mais a arte contemporânea do que a arte moderna e, mais ainda, mostrar a arte
acontecendo. A proposta associava assim o futurismo (inerente a todo projeto museológico) com
uma componente forte de presentismo. Desejava-se colocar no museu o presente da arte e
tornar visível a criação contemporânea acontecendo, rejeitando a museificação. Porém, ao longo
das adaptações e das renovações, a parte experimental se reduziu e o conservatório venceu o
laboratório. O espaço reservado ao museu aumentou, enquanto o destinado à criação diminuía.
Como se o presente, passando de uma postura presentista lúdica e narcisista para outra bem
menos segura, reconhecesse que duvida dele mesmo.” (p. 155)

“Escondido na sua bolha, o presente descobre que o solo desmorona sob seus pés. René Magritte
poderia ter pintado isso! Três palavras-chave resumiram e fixaram esses deslizamentos de terreno:
memória, mas trata-se, na verdade, de uma memória voluntária, provocada (a da história oral),
reconstruída (da história, portanto, para que se possa contar sua história); patrimônio - 1980 foi
decretado o ano do Patrimônio - ,o sucesso da palavra e do tema (a defesa, a valorização, a promoção
do patrimônio) acompanha a crise da própria noção de "patrimônio nacional"; comemoração, de uma
comemoração à outra poderia ser o título de uma crônica dos últimos vinte anos. Esses três termos
apontam para um outro, que é como seu lar: a identidade.” (p. 156)

Memória e história
“Em 1974, são publicados os três volumes de Paire de l'histoire, dirigidos porJacques Le Goff e
Pierre Nora, cuja pretensão é "ilustrar e promover um tipo novo de história", aquela que
responde à "provocação" das outras ciências humanas, em particular da etnologia. Da história
das mentalidades à antropologia histórica, era o momento de uma consciência e de uma ciência
de nossa distância em relação a nós mesmos, mas distanciada tanto no tempo quanto no espaço.
A memória, assim como o patrimônio, ainda não era considerada entre os novos objetos ou as
novas abordagens. De fato, mesmo que os historiadores tenham sempre lidado com a memória,
eles quase sempre desconfiaram dela. Tucídides já a recusava, considerava-a como não confiável:
ela esquece, deforma, não resiste ao prazer de agradar àquele que escuta. O olho, a evidência da
autópsia, deve prevalecer sobre o ouvido. Esse era o valor da história, como busca da verdade.
Grande admiradora de Tucídides, a história-ciência do século XIX começou a marcar uma clara
cisão entre o passado e o presente. O que sempre fez de Michelet um transgressor, ele que
atravessou e reatravessou tantas vezes o rio dos mortos. A história devia começar exatamente onde
a memória parava: nos arquivos escritos.” (pp. 157-158)

“A história nova, dicionário codirigido por Jacques Le Goff, Roger Chartier e Jacques Revel, abriu
espaço para a memória, com o verbete "Memória Coletiva". Forjada por Maurice Halbwachs, a
noção é retomada e defendida por Pierre Nora, mas com a condição de que os historiadores
saibam como dela se servir. As rupturas modernas conduziram a uma multiplicação de memórias
coletivas, de maneira que a história se escreve agora sob sua pressão: a própria história científica
vê seus interesses e suas curiosidades ditados por elas. O que explica a proposição de Nora de
"conferir à memória coletiva, e para a história contemporânea, o papel que representara a
história dita das mentalidades para a história moderna". Decorre disso o primeiro esboço dos
futuros Lieux de mémoire: partir dos lugares topográficos, monumentais, simbólicos, funcionais,
onde a sociedade deposita voluntariamente suas lembranças e fazer história desses memoriais.
O objetivo é claro: "A análise das memórias coletivas pode e deve tomar-se a ponta da lança de
uma história que se pretende contemporânea".” (p. 158)

“Maurice Halbwachs dedicara-se de fato a desenvolver uma sociologia da memória coletiva.


Encontrava-se, nessa investigação continuada, algo do pós-guerra de 1914. Hoje, sua própria obra
tomou-se um verdadeiro lugar de memória dos estudos sobre a memória. Por muito tempo pouco
frequentada, ela foi sendo cada vez mais revisitada, citada, e, finalmente, reeditada. Dessa forma,
fornece, simultaneamente, uma ferramenta para trabalhar sobre o objeto da memória e um
índice da presente conjuntura. Propondo-se a abrir o campo da memória ao sociólogo,
Halbwachs pensava ao mesmo tempo com e contra Bergson: com, já que fazia suas as análises da
duração; contra, pois tinha a intenção de colocar antes a dimensão social (e inicialmente familiar)
da memória: seus "quadros sociais". Por isso, concluía que "o pensamento social é
essencialmente uma memória", constituída de "lembranças coletivas", mas dessas lembranças
somente permanecem aquelas que a sociedade, "ao trabalhar sobre seus quadros atuais, pode
reconstruir". O destaque era dado nitidamente a "atuais".” (pp. 158-159)

“Com A memória coletiva, livro que ele deixou inacabado, Halbwachs traçava uma clara linha
divisória entre a história e a memória em benefício de uma abordagem pela memória, que
polidamente dispensava o historiador, reenviando-o a seus arquivos e à sua exterioridade. A
história é uma, enquanto há tantas memórias coletivas quantos grupos, nas quais cada um
imprime sua própria duração. Assim, sob efeito de uma vida social cada vez mais acelerada há
cada vez mais memórias coletivas. Também se encontrava em Halbwachs a constatação da
aceleração. A memória coletiva, em seguida, forma "uma corrente de pensamento contínuo" (ela só
retém do passado o que ainda está vivo), enquanto o historiador "só pode fazer sua obra com a
condição de pôr-se deliberadamente fora do tempo vivido pelos grupos que assistiram aos
acontecimentos, que tiveram com eles o contato mais ou menos direto, e que podem lembrar-se
deles". A história, que "extrai as modificações da duração", forja "uma duração artificial que não tem
realidade para nenhum dos grupos dos quais esses acontecimentos são emprestados". O pássaro da
história, só poderia, assim; alçar seu voo quando a noite tivesse caído completamente, quando
o presente estivesse definitivamente morto. Em 1867, um relatório sobre os estudos históricos na
França terminava por estas fortes constatações: "A história só nasce para uma época quando ela
está inteiramente morta. Assim, o domínio da história é o passado, o presente convém à política
e o futuro pertence a Deus". O autor, J. Thiénot, apresentava-se ao ministro destinatário do relatório
como um "escrivão preciso".” (pp. 159-160)

“Mas a partir do momento em que a figura do historiador não é identificada como aquele que
seria profissionalmente excluído do campo da memória, a oposição categórica entre história e
memória cai. A memória coletiva pode também fazer parte do "território" do historiador ou,
melhor ainda, tornar-se instrumento da escalada da história contemporânea. Ora, Nora sempre
recusou o postulado de um corte (artificial ou ilusório) entre o passado e o presente. Pelo
contrário, diferentemente dos autores do relatório encaminhado ao ministro, ele defende que é
incumbência do "historiador do presente" fazer, "de forma consciente, o passado manifestar-
se no presente (no lugar de fazer, de forma inconsciente, o presente manifestar-se no passado)".
Ainda sobre o tempo, a reflexão que ele conduz, a propósito do acontecimento, sugere uma relação
entre o novo estatuto dado ao acontecimento em uma sociedade de consumo e uma maneira de
apreender o tempo: "Talvez o tratamento a que submetemos o acontecimento seja uma maneira [ ...
] de reduzir o próprio tempo a um objeto de consumo e de investir nele os mesmos afetos?".” (p. 160)
“O modo de ser do passado é o de seu surgimento no presente, mas sob o controle do historiador.
Este é o postulado dos Lieux de mémoire, cujo primeiro volume é publicado em 1984. O longo texto
de abertura, intitulado "Entre memória e história" cumpre a função de manifesto e exposição da
problemática geral. O importante é, inicialmente, o entre: posicionar-se entre história e memória,
não opô-las, nem confundi-las, mas servir-se de uma e de outra. Apelar à memória para renovar
e ampliar o campo da história contemporânea (conferir, de fato, à memória coletiva, o papel
que a história dita das mentalidades representara para a história moderna). Decorre disso a
abertura de um campo novo: o de uma história da memória. Mais do que isso, uma história,
entrada em sua idade crítica, preocupada em retomar sua trajetória e sua tradição, tornar-se
capaz de reparar as trocas que intervieram entre memória e história, em particular nos limites
dessas "Histórias-memórias" que, de Froissart a Seignobos, passando por Michelet e Lavisse,
constituíram a longa tradição das histórias nacionais.” (pp. 160-161)

“Todo esse primeiro texto de Nora se constitui sob o signo da aceleração. (...) Mas já
Chateaubriand fazia dessa experiência da aceleração o sinal irrecusável da ruína da antiga ordem
do tempo, e Robert Musil inclusive forjou a expressão "acelerismo". Halévy abria seu ensaio citando
Michelet e o concluía com o futuro de Hiroshima. "Um dos fatos mais graves", chamava atenção
Michelet, "e dos menos comentados, é que a aparência do tempo mudou completamente. Ele
acelerou de uma maneira estranha. Duas revoluções (territorial, industrial) no espaço de uma
simples vida de um homem." Mais amplamente, essa mudança de aparência é constitutiva da
ordem moderna do tempo. Reconhecê-la não implica, por outro lado, aceitar como reais todas
as declarações do mundo moderno sobre a aceleração.” (pp. 161-162)

“Para Nora, o efeito da aceleração não é mais somente o de uma "multiplicação" das memórias
coletivas, então "impossíveis de unificar", como o era ainda para Halbwachs, mas sim o de uma
"ruptura" com o passado. A ruptura com o campo da experiência. A globalização, a
democratização, a massificação, a midiatização acarretam o fim do que Nora denomina
"sociedades-memórias" e, em suma, o desaparecimento da memória. A tal ponto que "só se fala
tanto de memória porque ela não existe mais"; ou ainda, é justamente porque não há "mais
meios de memória" que "lugares" se encontram investidos do sentimento residual da
continuidade.” (p. 162)

“Estaríamos em pleno paradoxo? A memória seria ainda mais invocada porque está
desaparecendo? Basta compreendermos que o que atribuímos a essa palavra: a memória de
hoje, destacava Nora, não é mais a de ontem, a que regulava as sociedades-memórias. Com o
mesmo vocábulo, as formas e as práticas diferem amplamente. De um lado, havia a memória de tipo
antiga, por assim dizer, "sem passado", que reconduzia "eternamente a herança"; do outro, "a
nossa", que foi apreendida pela história e transformada por ela. Sem dúvida essa sociedade-
memória desaparecida está um pouco simplificada ou mitificada, mas para a análise de hoje
importa, antes de tudo, seu valor contrastivo.” (p. 162)

“Enfim, essa memória opera a partir de uma relação com o passado na qual sobrepuja a
descontinuidade. O passado não está mais "no mesmo plano". Por consequência, fomos "de uma
história que se procurava na continuidade de uma memória a uma memória que se projeta na
descontinuidade de uma história". Tal como se define hoje em dia, a memória "não é mais o que
se deve reter do passado para preparar o futuro que se quer; ela é o que faz com que o presente
seja presente para si mesmo". Ela é um instrumento presentista.

Uma tal mudança do regime da memória não pode senão repercutir sobre o que representou de longa
data "nosso meio de memória" por excelência, ou seja, a história nacional. Como escrevê-la hoje
em dia? Como considerar a série dessas "Histórias-memórias" até aquela de Lavisse, que se elaborou
"no cruzamento da história crítica e da memória republicana"? É aqui que a historiografia entra em
jogo. Les Lieux só se tomavam possíveis a partir desse duplo reconhecimento: a mudança do
regime de memória e a entrada da história na sua idade historiográfica. Restava reunir os dois
fenômenos: o lugar de memória faz a conexão.” (p. 163)

“Para compreender o que se passava em 1980, entre memória e história e tudo o que estava em jogo
nessa nova demanda de memória, Nora começava por transportar-se para um século antes,
quando, com Lavisse, só existia a questão da história. 1980 vinha olhar 1880, e 1880, refletindo
esse olhar, devolvia inteligibilidade a 1980. A aproximação dos dois momentos era, para ele
próprio, esclarecedora: ele mostrava que a "História" de Lavisse era, em seu princípio, memória
(republicana) promovida à dignidade de história.” (p. 164)

“Ora, hoje em dia, a relação com esses lugares simbólicos tomou-se muito tênue: eles são, escrevia
Nora, como "as conchas sobre a praia quando se retira o mar da memória viva". Estão aqui,
mas a única relação ativa que se pode manter com eles é a que propõem os Lieux: uma relação
de segundo grau, feita da reativação daquilo de que foram a história. Esse primeiro volume
desembocava em uma República que se mostrava como já sendo ela própria o lugar de
memória.” (p. 164)

“(...) Cabe, assim, ao historiador dos lugares de memória encontrar os lugares ativos, as imagines
agentes de Cícero, mas, ao contrário do orador que escolhia os lugares para memorizar seu
discurso, o historiador parte dos lugares para reencontrar os "discursos", dos quais foram os
suportes. O que faz o lugar de memória é, enfim, que ele seja um entroncamento onde se
cruzaram diferentes caminhos de memória. De modo que somente ainda estão vivos (agentes) os
lugares retomados, revisitados, remodelados, rearranjados. Desativado, um lugar de memória não
é mais, na melhor das hipóteses, do que a lembrança de um lugar, tais como os gauleses e os
francos, após 1914.” (p. 165)

“Exploração continuada do nacional sob o prisma da memória, Les Lieux de mémoire colocaram em
evidência uma periodização dos "impulsos memoriais", com vários tempos fortes: 1830 (resumido
pela obra de Guizot); 1880 (quando se fixam os rituais da República e sua história); 1980 (ponto de
partida e razão de ser da pesquisa sobre os Lieux). Há ainda um, em minha opinião, capital: 1914
(trata-se, mais uma vez, de um número redondo).” (p. 165)

“No fim das contas, para retomar seu vocabulário, a história é "inscrição", enquanto a memória
é "rememoração". Estamos em plena contestação do regime moderno de historicidade.” (p. 167)

“A rememoração é ativa, ela não é um surgimento involuntário do passado no presente; visando


um momento do passado, ela tende a transformá-lo. Homem da brecha do tempo, do presente,
seguramente, mas em nenhum caso do presentismo, sua aura não parou de crescer, justamente, desde
que o regime moderno de historicidade encontrou-se questionado. Do passado, ele não faz de forma
alguma tábula rasa, enquanto formula um pensamento da revolução.” (p. 168)

“Aspirando associar-se a essa ciência social, da qual os durkheimianos, em particular François


Simiand, atuavam como promotores ativos e cuidadosos guardiães, a história ambicionava
contribuir, no que lhe tocava, para a produção do saber da sociedade sobre si mesma. Esse
deslocamento da Nação em direção à Sociedade era acompanhado de uma relação de tempo
diferente: "Com o advento da sociedade no lugar da Nação, a legitimação pelo passado,
portanto, pela história, cedeu vez à legitimação pelo futuro". Seguramente, mesmo que o futuro
estivesse antes ativo, visto que era ele que esclarecia o passado.” (p. 169)

“De maneira mais específica, os fundadores dos Annales preconizaram as idas e vindas entre o
presente e o passado. Aproximar os trabalhadores (analistas, estudiosos) do contemporâneo e
os profissionais do passado, certamente, sem no entanto esquecer que a "incompreensão do
presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas que talvez não seja menos vão se
esgotar para compreender o passado, se não se sabe nada do presente". Seria uma maneira de
recolocar o historiador nos debates intelectuais e no jogo social.” (p. 170)

Histórias nacionais

“Partamos da geração liberal de 1820: a que planta a bandeira da reforma histórica, reclamando
justamente a Nação. Com esses jovens, abre-se um período ativo, inventiva, ingênuo também, mas
intelectualmente inovador, que é também a primeira reivindicação e expressão da história-ciência, e
não mais arte. A Nação é para eles ao mesmo tempo uma evidência, uma arma política, um
esquema cognitivo e um programa histórico. Uma evidência, já que é o mesmo sentido da
revolução que, no lugar do rei - na pessoa de quem, assim como se dizia, "a nação residia
inteiramente" - , instalou justamente a nação como "receptáculo místico da soberania". O que explica
os problemas (de longa duração) da representação que decorrem dessa brutal substituição de um
absoluto a outro. Como apreendê-lo e servi-lo, esse absoluto, como encarná-lo? Ao longo de todo o
século, os historiadores tentaram compreender esse momento fundador e, portanto, inscrevê-lo
e dar-lhe sentido na longa duração da história da França, do início ao fim. Daí saiu, na realidade,
o conceito moderno de história e definiu-se a tarefa (até mesmo a missão) do historiador. Daí
também, François Furet, fazendo-se leitor dos historiadores do século XIX, partiu de novo para
"pensar" a Revolução francesa.” (pp. 170-171)

“Inicialmente, uma transformação do caderno de tarefas do historiador: compete a ele, daí por
diante, revelar o que não era imediatamente visível, com menos atenção aos segredos dos
grandes e mais voltado aos murmúrios dos anônimos e mesmo aos silêncios da história. Mas,
para descobri-los e se impregnar deles, ele não pode mais se contentar em só sacudir a poeira das
crônicas, deve decididamente "mergulhar" nos depósitos dos arquivos. Na poderosa língua de
Michelet, o historiador, caminhante das galerias dos arquivos e visitante dos mortos, deve de
fato saber ouvir "os murmúrios de uma grande quantidade de almas sufocadas": todos esses
mortos em relação a quem o presente contraiu uma dívida.” (p. 172)

“Como já revelara Philippe Aries, a abordagem de Fustel, enfim, ressalta as diferenças das épocas
e busca dar-lhes sentido, mostrando as coerências gerais de que as instituições são a resultante
e a expressão. Diferenças "radicais" entre os povos antigos e as sociedades modernas, diferenças
entre a antiga França e a França moderna. Se Fustel não está do lado do regime moderno de
historicidade e de seu futurismo, todo seu trabalho parte da constatação de que o antigo regime
da historia magistra não se sustenta mais: as épocas diferem. Foi justamente para encontrar as
lógicas respectivas que as subentendem que ele se dedicou. Há descontinuidade na história, mas
não são os acidentes de superfície que constituem suas verdadeiras marcas. Se o passado não esclarece
mais o futuro, Fustel resiste, no entanto, à ideia de escrever uma história da França na qual o futuro
esclareceria plenamente o passado. Quanto ao presente, ele proclama, após 1870, que o historiador,
para verdadeiramente agir como historiador, deve começar por "esquecê-lo". Quando ele
publica, em 1875, o primeiro volume de suas Instituições políticas, não atribui mais outra finalidade
explícita a seu trabalho do que a de contribuir "ao progresso da ciência histórica e ao conhecimento
da natureza humana". O único progresso reivindicado é o dos estudos. Também ele se encontra entre
duas impossibilidades: tanto a do passado como a do futuro.” (p. 175)

“Em 1876, um ano mais tarde, Monod apresenta o primeiro número da Revue historique: não é
evidentemente questão de história nacional como tal, mas de uma coleção de textos que pretende
"contribuir para o progresso dos estudos históricos" , ao adotar um "ponto de vista estritamente
científico". Trata-se de análise e não de síntese. A síntese, já lembramos, está por vir: ela seria
prematura. Não impede que o historiador tenha claramente um papel social, diríamos hoje em
dia, e uma responsabilidade. Cabe a ele ser o pontífice (aquele que propriamente faz ponte) entre o
passado da França e seu presente: sua tarefa é compreender e explicar a "conexão lógica que liga
todos os períodos do desenvolvimento" do país: de ontem até hoje.” (pp. 175-176)

“"Ao perder a esperança na história", que não soube nada prever, Paul Valéry, nossa testemunha já
citada, denuncia então este produto perigoso que toma "as nações amargas, soberbas, insuportáveis e
vãs". Como se justamente não existisse outra história senão a história nacional e a história
historicizante, logo ridicularizada por Lucien Febvre.” (p. 177)

“Mas quando Febvre assume a cátedra na Universidade de Strasbourg, em 1919, ele começa sua aula
inaugural afirmando que "a história que serve" é "uma história serva. Professores da
Universidade de Strasbourg, nós não somos os missionários descalços de um evangelho
nacional”. E, mesmo essa recusa que lhe permite responder enfim afirmativamente à sua
interrogação inicial e central: "Tenho direito", quer dizer, ainda tenho o direito de fazer
história no "mundo em ruínas"? É essa recusa que toma legítimo retomar o oficio e
"restabelecer os laços rompidos" e, sobretudo, é ela que vai abrir um espaço de trabalho e de
interrogação para uma história-ciência, em busca de outros ritmos, outras dimensões, outros
objetos: outras temporalidades. Nisso se abrigará, alguns anos mais tarde (após 1929), o programa
dos Annales d'histoire économique et sociale. Esse recuo do nacional, ou ainda seu eclipse, não
significava seu esquecimento ou um abandono definitivo (...).” (pp. 177-178)

“Em 1958 ainda, George Duby e Robert Mandrou publicam, não uma história da França, mas uma
Histoire de la civilisation française, cujo prefácio termina com esta frase: "Este breve livro terá
cumprido seu papel [ ... ] se ele permitir aos leitores compreenderem melhor, estabelecidos por
dez séculos de história, os traços originais da França de hoje em dia, essa 'pessoa'". Ou seja,
uma dupla lembrança em forma de alusão, mas tão discreta que parece quase um happy few: a
Michelet (pela "pessoa"), a Marc Bloch (pelos Caracteres originaux de l'histoire rurale française).”
(p. 179)
“Durante mais de meio século, o nacional, dessa maneira, não foi mais o motor da pesquisa:
nem a escala adequada, nem a perspectiva adequada. Tampouco a escala cronológica certa.
Desgastara-se demais e suas capacidades cognitivas pareciam exauridas. No entanto, surgiram
formas renovadas de história-ciência, que tiveram como horizonte o materialismo histórico, o
quantitativo, o serial e, como instrumentos, as fichas mecanizadas e depois o computador. Ora,
tomou-se claro, em tomo de 1980, que esses modelos científicos, frequentemente grandes
consumidores de futuro e solidamente ligados ao conceito de progresso (tanto da sociedade
como da ciência), atingiam resultados decrescentes, e mesmo sem efeito. Abriu-se então um
tempo de estase, momento de pausa, no qual o olhar retrospectivo tomou-se legítimo: para
abarcar o caminho percorrido, para tentar compreender onde tínhamos chegado e por quê?
Era uma maneira de tomar distância, passando do prospectivo ao retrospectivo: os indivíduos
punham-se a preocupar-se com genealogias, e as empresas, com seus arquivos (com seu chamariz, a
cultura empresarial). O regime moderno de historicidade perdia sua evidência.

Como as outras disciplinas, a história não escapou desse movimento, que nada mais é do que um
elemento da conjuntura geral esboçada em nossas primeiras páginas, da qual não foi de modo
algum a origem. A reintrodução do historiador na história, praticada e proclamada por Febvre,
preconizada por Marrou e Aron contra a história positivista, preparara, no entanto, o terreno: o
historiador parecia disposto, segundo a fórmula de Péguy, a entrar "na fileira histórica": "Eles [os
historiadores] não querem que se faça a história dos historiadores. Querem esgotar a
imprecisão do detalhe histórico, mas não querem entrar na linha de cálculo dessa indefinição
do detalhe histórico. Não querem estar na fileira histórica. Posicionam-se como se fossem
médicos que não quisessem ficar doentes e morrer". Acabou a imunidade ou a superioridade.

Foram condições que favoreceram a abertura de um espaço para uma história da história, da
qual Nora soube fazer, como vimos, um dos pontos de partida da reflexão que levou aos Lieux
de mémoire. Essa postura reflexiva, historiográfica, não foi reivindicada nem por um só tipo de
história, nem, evidentemente, só pela história. Ao que ela procura responder senão, em parte, a
essa conjuntura nova, marcada por um questionamento da temporalidade, até aquele momento
paradigmática, do regime moderno de historicidade? A luz projetada a partir do futuro diminui, a
imprevisibilidade do porvir aumenta, o presente torna-se a categoria preponderante, enquanto o
passado recente - aquele que surpreende por "não passar" ou que inquieta por "passar" - exige
ser incessante e compulsivamente visitado e revisitado. Com a consequência de que a história
não pode mais ser escrita a partir do ponto de vista do futuro (ou de suas diversas hipóstases)
ou em seu nome: inicialmente a história contemporânea, mas, aos poucos, não somente ela.”
(pp. 179-180)
“Quanto à L'Histoire de la France, organizada por André Burguiere e Jacques Revel, ela
deliberadamente substituiu "a clássica narrativa da nação, das origens aos nossos dias", por "um
método temático e lógico". Não se tratava absolutamente de "contar", mais uma vez, a história
da França, mas de romper com a narrativa convencional, interrogando-se sobre ela, sempre, a
partir do presente, "para tentar encontrar em suas gêneses e em suas mutações, as
características originais do conjunto nacional". Longe de ser teleológico, retroativamente
teleológico, seu método é regressivo. Aqui também, o presente fornece o ponto de partida, o
ponto de vista e o ponto de chegada para questionar o nacional.” (p. 182)

“Les Lieux de mémoire exploraram ao máximo essa perspectiva até incluir, já insistimos sobre isso,
à medida de sua publicação, a historiografia de sua própria trajetória, o que conduziu a uma
ampliação da noção de lugar. A partir desses modos de apreensão do nacional como problema
rompe-se, em todo caso, com todas as histórias-memórias nacionais, escritas do ponto de vista
do futuro. No oposto da história metódica (que jamais falava disso, embora sempre pensasse), o
presente tornou-se de fato – explicitamente - a categoria dominante (e suficiente?).” (p. 182)

Comemorar

“Como, em certos momentos-chave, o passado (qual passado e o que do passado?) fora retomado no
presente, para fazer dele um passado significante. Sem jamais perder de vista que, após ter seguido
esses deslocamentos e essas retomadas sucessivas do passado no presente, que toda uma retórica
organizou, o objetivo de Nora, claramente estabelecido desde o começo, era voltar para o hoje, para
tentar, instruído por esse longo desvio, compreender melhor e fazer melhor compreender. Vai-se
exatamente do presente ao presente, para interrogar o momento presente.” (p. 183)

“A Revolução e a República trazem a comemoração de volta, que, por transferência de sacralidade,


torna-se nacional, republicana e laica.” (p. 183)

“"A tomada da Bastilha foi propriamente uma festa, foi a primeira celebração, a primeira
comemoração e, por assim dizer, o primeiro aniversário da tomada da Bastilha. [ ... ] Não foi a festa
da Federação a primeira comemoração, o primeiro aniversário da tomada da Bastilha. A tomada da
Bastilha foi a primeira festa da Federação, uma Federação avant la lettre". Hoje, esse traço
tornou-se uma regra: todo acontecimento inclui sua autocomemoração. Foi assim com maio de
1968.” (p. 184)

“Mas a marca da comemoração contemporânea, valorizada por Nora, é seu caráter


"patrimonial": ela é fragmentada ou "desnacionalizada", mesmo quando se dedica a ser
reconhecida pelo Estado, cujos serviços, inclusive, tiveram dificuldade em enfrentar a ocupação
patrimonial. Mais exatamente ainda, diagnosticava Nora, é a própria nação que se transforma em
patrimônio: "Como se a França deixasse de ser uma história que nos divide para tornar-se uma
cultura que nos reúne". Faltaria saber quem é esse nós, quem o decide, como e em torno de
quê? Nesse movimento que leva da política ao cultural, Nora reparava, em todo caso, a emergência
de um "nacional sem nacionalismo". A França do fim do século XX estava a um passo de tornar-
se uma Kultur Nation, enquanto a Alemanha, que tomara por muito tempo esse caminho em
resposta à ausência da unidade política, é agora uma nação, talvez "a contragosto", mas de
fato, não podendo evitar a questão do nacional? Estaria aí o início de uma interessante
alternância histórica, sobre o pano de fundo da integração europeia.” (p. 184)

O momento dos “Liéux de mémoire”

“Se Les Lieux de mémoire nos serviram de entrada para os debates entre história e memória,
assim como de projetor para lançar luz sobre as relações entre a história nacional e o regime
moderno de historicidade, eles são também um revelador. Se eles pertencem, evidentemente, ao
momento que se dedicam a configurar, a maneira como procederam nos ensina algo a mais sobre
nosso presente. O permanente interesse historiográfico que os atravessa, já destacado, é um
testemunho no segundo grau dessa tendência do presente a se historicizar.” (p. 185)

“(...) Les Lieux de mémoire pretendem-se uma história dopresente, no presente, integrando o fato de
que o presente "tornou- se a categoria de nossa compreensão sobre nós mesmos".” (p. 185)

“Se há um momento dos Lieux, os Líeux são, dessa forma, também os lugares desse momento,
ou lugares para esse momento. História da França para hoje, os Lieux propõem também (de
forma completamente consciente) uma história de nosso presente. Resulta disso que o
historiador não pode mais ser o responsável pela passagem entre passado e futuro, pontífice à
moda de Monod ou profeta à Michelet, que, no passado, lia o futuro já ocorrido ou a ocorrer e
o proclamava. Pode, menos ainda, permanecer, à Fustel, no "esquecimento" do presente ou,
particularmente, na sua contestação. (...) Modesto, talvez, mas que se tornou, enfim, historiador
do presente em pleno direito e pleno exercício. Quanto à história, quer seja aquela do presente ou
de outros períodos, incumbe-lhe assumir-se como história no presente.” (pp. 185-186)

“Ora, a epistemologia desenvolvida nos Lieux evoca tudo ao mesmo tempo, reivindica até a
centralidade do presente (que está no ponto de partida e de chegada), e a contorna ou crê dela escapar.
De que maneira? Fazendo, justamente, da passagem do passado ao presente, de sua retomada
seletiva, que caracteriza o funcionamento da memória, o ponto de partida de sua operação
historiográfica: converter a memória, menos como conteúdo do que como forma, em modo de
questionamento histórico e de escrita da história.” (p. 186)
“Enquanto o historiador clássico começava por fazer a clara separação dos dois, a história devia
ser apenas a ciência do passado, ciência pura, e o historiador, somente um olho que decifra seus
documentos no silêncio dos arquivos. Contrariamente, a lógica dos Lieux leva a conceber o
historiador no próprio exercício de seu oficio, como um lugar de memória. Dessa posição e dessa
percepção decorre a conduta ego-historiadora que convida o historiador a fazer-se, em segundo
grau, historiador de si mesmo. Mas não há só grandes historiadores.” (pp. 186-187)

“Sintoma de hoje, os Lieux o são ainda na concepção da memória atual. Suponhamos por um
momento uma pesquisa feita em meados dos anos 1960: o inconsciente (o lapso, a falha de memória,
a amnésia, o deslocamento, a denegação, etc.) teria representado muito provavelmente um papel
importante. A memória dos Lieux é uma memória sem inconsciente, com exceção da metafórica,
não por princípio, mas de fato: falei da concepção retórica do lugar. O pesquisador não visa
desacomodar o impensado do lugar, mas, antes, reconstituir o que o tornou pensável. De onde vem,
talvez, uma certa dificuldade de dizer os "não-lugares", ou os "maus" lugares da história ou da
memória nacional?” (pp. 187-188)

“Sem dúvida, mostrando como certos lugares cristalizaram-se, foram remodelados, anamorfoseados,
esquecidos, Les Lieux de mémoire estabeleceram um inventário crítico da história-memória da
França. Atentos a toda organização do passado no presente, também indicaram um modo de
circulação possível entre passado e presente, deliberadamente, repitamos mais uma vez, a
partir do presente.” (pp. 188-189)

“Le Goff fala do "título ativo" da coleção: fazer história é também uma maneira de fazer a
história. Seria uma simples reativação do regime moderno de historicidade, com um futuro que
vem, mais uma vez, esclarecer o passado? Não, tal não é evidentemente o ponto de vista do
organizador, para quem "hoje vem de ontem e amanhã sai do passado". E precisa: "um passado
que não deve paralisar o presente, mas ajudá-lo a ser diferente na fidelidade, e novo no
progresso". São portanto igualmente recusados o futurismo do regime moderno e o passadismo
do antigo regime de historicidade, para preservar a possibilidade de um presente, ao mesmo
tempo diferente, novo e fiel. Le Goff não é Lavisse!” (p. 190)

“De maneira e de intensidade variáveis, esses retornos ou essas aspirações, mais ou menos
exacerbados, ao nacional podem se relacionar, em parte, a uma crise do tempo. Eles não se
reduzem a isso, nem são absorvidos, mas são um componente, uma expressão, uma maneira de
responder a isso também, que, infelizmente, já dera provas. Mas a resposta mostra-se ainda mais
defasada porque o regime moderno de historicidade, com sua bandeira futurista ou nacional
futurista perdeu largamente sua evidência e seu impulso.” (p. 191)
HESPANHA, Antonio Manuel. Categorias: Um pouco de teoria da história. In: Imbecillitas: As
bem aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. Belo Horizonte:
UFMG/FAFICH, 2008.

Cap. 1 – Categorias: Um pouco de teoria da história


“O tema deste curso são “categorias”. Podia chamar-lhes “imagens”, “representações” ou
“conceitos”. Escolho a primeira palavra propositadamente. Categoria remete, na reflexão sobre o
conhecimento, para a ideia de modelos de organização das percepções, da “realidade”, se
quisermos. Ou seja, conota uma capacidade ativa, estruturante, criadora (poiética) na
modelação do conhecimento. E este é um sinal metodológico que queria deixar desde já, o de que
pressuponho que estas entidades a que me referirei têm essa capacidade de criar conhecimento (se
não - adianto já toda a provocação ... - de criar realidade).” (p. 4)

“Representar, em termos jurídicos, era “estar em vez de”. Já em termos teatrais – e políticos, no
Antigo Regime – era um tanto mais do que isso: era antes, apresentar algo escondido, mesmo
inevitavelmente escondido; com o que “representar” podia constituir a primeira visão de uma coisa,
uma “apresentação”, como quando apresentamos – tornamos conhecidas pela primeira vez - pessoas.
(...) Hoje em dia, os historiadores – mesmo aqueles que não se confessam de bom grado como
construtivistas – fazem dos termos “imagens”, “imaginário” e “representação” um uso que lhes
realça, além do aspecto arbitrário, o seu aspecto poiético. Ou seja, por um lado, sublinham que
a imagem não mantém nenhum vínculo forçoso com a “realidade”, antes sendo criações
autónomas dos sujeitos (coletivos, prefere-se hoje pensar). Por outro lado, realçam que, uma
vez instalados, estes imaginários modelam as percepções, as avaliações, os comportamentos.”
(p. 4)

“Esta remissão para a lógica de organização existe também na palavra “conceito”. Na sua
etimologia está o verbo latino capere, que significa agarrar, tomar; tal como, no correspondente
alemão (Begriff), está o verbo greifen, com a mesma conotação cativa, ao passo que ao sinónimo
Auffassung subjaz o verbo fassen, agarrar, apanhar, tomar. O que me afasta da palavra é o facto de
estar muito embebida por concepções racionalistas; por insinuar um esforço mental consciente
e refletido, típico dos pensadores e dos filósofos, gente de que não me vou ocupar muito,
enquanto tais, ou seja, enquanto produtores conscientes e individualizados de ideias. Temo que,
se optasse por falar de “conceitos” se confundisse o meu trabalho com uma empresa de “história
das ideias”, concebida como história de ilustres pensadores e dos seus intencionais pensamentos.
E não é disso que vou tratar. (...) O peso da palavra “conceito” ainda é, nos discursos usuais,
demasiado para que se utilize sem a preocupação de se ser mal entendido, aproximando-nos à
força de uma história individualista, subjetivista, internacionalista das construções
intelectuais.” (pp. 4-5)
“O projeto de uma história das categorias tem que combater em duas frentes.

Por um lado, tem que combater, na frente da “história social”, aqueles que acham – decerto
vacinados pela história tradicional das ideias – que, como a história se faz de atos humanos e
não de palavras é lá, nesse plano dos atos e comportamentos, que a historiografia tem que
assentar arraiais. Claro que esses homens que agem também pensam e também falam. Mas esse
pensar e esse falar limitar-se-iam a pensar em coisas e a falar de coisas. Por outras palavras, os
homens construiriam o pensamento a partir da “realidade”, avaliariam a realidade em função de
“interesses” e, em função da realidade e da sua avaliação, assumiriam “comportamentos”, uns dos
quais eram discursos, com os quais traduziriam em “palavras” o modo como viam e avaliavam a
realidade e a forma como reagiriam; os quais, de novo, seriam apreendidos por outros como
“realidades”, avaliados segundo outros “interesses” e respondidos com outros “comportamentos”.
“Interesses”, “realidades”, “comportamentos” seriam, termos sociais, coisas. O resto, incluindo
as “palavras”, seriam, nos mesmos termos, não coisas. Como a história social se devia ocupar
de coisas, as ideias e as palavras não faziam parte dela, por justamente lhes faltar “espessura
social”.” (p. 5)

“Num texto de síntese, Koselleck sistematiza algumas das razões da autonomia da história dos
discursos.
A primeira delas parece banal; mas contém mais de razão que aquilo que aparenta. Trata-se do uso
de conceitos técnicos ou enfaticamente carregados de sentido. Uns e outros têm uma evidente
espessura, que os faz dizer para além do que aquilo que os locutores querem.

No primeiro caso – de que os exemplos típicos são as linguagens formalizadas, como, por exemplo,
as linguagens de programação dos dias de hoje -,estamos perante aquilo a que Umberto Eco chamou
os “limites da interpretação”: o conceito, na sua fixidez técnica ou formalista, resiste à
“apropriação”. E, por isso, a “história social” não tem grande volta a dar-lhe. Dir-se-á que, na
longa duração, isto raramente ou nunca acontece, pois não há formalismo que resista ao tempo.
É verdade, mas, no curto e médio termo é claro que há discursos e categorias não disponíveis.

Existe, no entanto, uma segunda espécie de indisponibilidade: a dos conceitos tão carregados de
sentido, que este sentido (positivo ou negativo) sobre-investe o sentido dos utilizadores. As
categorias dizem mais do que se quer, têm sentidos preterintencionais. É por isso que nem um honesto
ateu está à vontade com a palavra Deus; ou que um rebento das boas velhas famílias portuguesas
nunca usa, deliberadamente, a rabiosa palavra “vermelho”, mas apenas “encarnado”. Num plano
menos fútil, Koselleck descreve o impacto objetivo de palavras polémicas na história política
europeia, como “revolução”, “feudal”, “cidadão”. Mesmo ciciada, melosamente insinuada,
“revolução” é sempre Revolução.

Daí que estas palavras fecundas não sejam domesticamente apropriáveis, senão limitadamente, pelos
grupos sociais. Realmente, elas estão antes deles; fazem eventualmente os grupos sociais.” (p. 6-7)

“E com isto entramos num segundo aspecto da autonomia da história dos discursos. Os discursos
como palcos de lutas sociais. As categorias como praças fortes que se conquistam ou se perdem, na
luta social.

Realmente, muitos nomes não são apenas nomes. “Intelectual”, “burguês”, “proletário”,
“homem”, “demente”, “rústico”, são, além de sons e letras, estatutos sociais pelos quais se luta,
para entrar neles ou para sair deles. Numa sociedade de classificações ratificadas pelo direito,
como a sociedade de Antigo Regime, estes estatutos eram coisas muito expressamente tangíveis,
comportando direitos e deveres específicos, taxativamente identificados pelo direito. Daí que,
ter um ou outro destes nomes era dispor de um ou outro estatuto. Daí que, por outro lado,
classificar alguém era marcar a sua posição jurídica e política. A mobilidade de estatuto que então
existia não era tanto uma mobilidade social, nos termos em que hoje a entendemos (enriquecer,
estudar, melhorar o círculo das suas relações, mudar de bairro); era antes e sobretudo uma mobilidade
onomástica ou taxinómica – conseguir mudar de nome, conseguir mudar de designação, de categoria
(discursiva), de estado (nobre, fidalgo, jurista, peão, lavrador). Claro que a mudança de vida podia
ser importância; mas quem decidia dessa importância era a própria entidade conceptual que
designava o estado pretendido. Ou seja, era o conceito de nobreza (a definição da categoria da
nobreza) que decidia que mudanças de vida eram necessárias para se ser admitido.” (p. 7)

“Pierre Bourdieu generalizou esta perspectiva a todos os mecanismos de distinção social, construindo
uma teoria geral sobre o modo de organizar estratégias de luta por símbolos, por marcas de
distinção. E também explicou que, já quando se fala, se estão a fazer coisas muito mais
complicadas do que designar objetos existentes aí, em estado bruto, fora do discurso. Na
verdade, não apenas se estão a construir, de novo, objetos; como se está a construir poder, por
vezes um poder imenso, com essas coisinhas aparentemente voláteis e frágeis que são as
palavras.

Por isso é que podemos encarar a categorização social como uma forma de institucionalização
de laços políticos; e as tentativas de recategorização como uma espécie de revolução.” (pp. 7-8)

“Num estudo de há uns anos mostrei como o uso pelos juristas medievais de categorias de
classificação dos oficiais públicos provindas do Império bizantino e já sem qualquer
correspondência com a realidade político-administrativa tinha efeitos políticos concretos,
inculcando a ideia de centralização política e de hierarquia dos funcionários entre si. Neste caso,
o conjunto das categorias nem sequer é aplicado a pessoas. Apenas funciona como um modelo
de organização política com o qual a situação administrativa instalada é continuamente
confrontada, sendo por ele avaliada e paulatinamente conformada.

O próprio fato de estas categorias serem objeto de um confronto social – i.e., de os seus contornos e
conteúdos serem objeto de despique – fá-las, evidentemente, mover. Mas apenas nos termos de uma
gramática que é a delas. Ou seja, é o próprio sistema das categorias que seleciona as regras da
luta. Nem todos os argumentos serviam, nem todas as autoridades eram sempre invocáveis, nem
todos os limites eram sempre ultrapassáveis.” (p. 8)

“Mas cada argumento, para além de ter as suas regras próprias, chama por outros ou repele
outros. Realmente, o campo dos argumentos está organizado por regras de implicação, de simpatia,
de antipatia ou de exclusão. De tal modo que o uso de um tópico conveniente pode implicar a
aceitação de outros muito inconvenientes. Por exemplo, e como veremos mais tarde. Era
conveniente, para a justificação da escravatura, aceitar o tópico aristotélico de que havia
homens que, por natureza, estavam destinados a servir. Mas a aceitação deste tópica implicava
reconhecer que o gênero humano não era uno e que, portanto, a Salvação não podia ser
universal.
Ou seja, nem tudo se pode invocar. E, mais do que isso, invocar certas razões pode ter
consequências indesejadas e indesejáveis. De onde, as intenções políticas de quem fala - as “razões
dos políticos”, colhidas na história política conjuntural – podem não ser a única instância decisiva do
que é dito. A lógica interna do próprio discurso em que elas se exprimem fornece, seguramente,
outra leitura. Os seus argumentos existem previamente nas memórias tópicas – no senso comum –
de uma cultura local (por exemplo, a cultura política, ou a cultura parlamentar); os argumentos têm
competências demonstrativas limitadas e organizam-se entre si segundo relações objetivas.” (p.
9)
“É este fato da relativa indisponibilidade do discurso que autoriza uma história autónoma das
categorias e dos discursos. Koselleck exprime esta ideia com nitidez: “cada conceito abre certos
horizontes, tal como fecha outros, define experiências possíveis e teorias pensáveis... A
linguagem conceptual é um médio dotado da sua própria coesão que permite exprimir tanto a
capacidade de experiência (Erfahrungsfähigkeit) como a dimensão teórica (Theoriehaltigkeit)”.
Koselleck vai bem fundo na justificação do carácter criativo do discurso. Na verdade, ele sublinha
o modo como o discurso conforma a própria vida: ao pré-determinar a sua apreensão
(experiência). Poder-se-ia acrescentar: ao avaliar essa experiência, ao identificar os interesses, ao
escolher os comportamentos. Em suma, antes dos momentos pragmáticos, existem sempre
momentos dogmáticos.
Daí que, muito coerentemente, Koselleck inclua a história das categorias no âmbito da história
estrutural. As categorias constituem, de facto, modelos muito permanentes de atribuir sentido
aos comportamentos individuais e individualizados (“cada um dos significados ligados a uma
palavra ultrapassa a unicidade própria dos acontecimentos históricos”). Tal como as estruturas
(virtuais) da língua (langue) atribuem sentido à língua falada (langage) e aos actos de fala
(linguistic utterances). É neste sentido que as categorias conceituais escapam a uma história
cronológica dos seus sucessivos usos, reclamando antes uma história da gramática abstrata que
dá sentido aos seus usos verificados e a verificar; a história de um conceito não é, por isso, uma
mera cronologia (uma narrativa empirista de usos), comportando, também, aspectos
sistémicos.” (pp. 9-10)

“De onde vem às categoria esta autonomia frente à história ? Se não vem das intenções dos
locutores ou dos interesses dos grupos, de onde vem este seu poder de organizar as vidas?
Há mais de trinta anos, Michel Foucault escreveu um livro muito importante sobre as categorias
da cultura clássica europeia, descrevendo aquilo que, a um nível muito profundo, o das suas
categorias mais fundamentais, separara essa cultura, quer da anterior, quer da de hoje. Para
descrever essas grandes formas culturais, essas molduras mais gerais do conhecimento, Foucault
cunhou um conceito, o de episteme. Num momento em que as explicações sociologistas da história
cultural tinham um impacto muito forte na cultua universitária francesa, Foucault foi severamente
criticado pelo fato de não providenciar uma explicação sociológica para a génese destes modelos
intelectuais.

Dois anos depois, um novo livro aparece expressa e exclusivamente dedicado a explicitar a sua
metodologia subjacente. O seu título – L’archéologie du savoir, 1969 – remete já para a ideia de
que o saber tem uma “origem”. Só que Foucault recusa enfaticamente uma concepção
“humanista” desta origem, quer ele estivesse num sujeito individual (psicologismo,
racionalismo clássico), quer num sujeito coletivo (sociologismo, nomeadamente o materialismo
histórica da vulgata estabelecida). Essa origem encontra-a Foucault em dispositivos materiais da
produção cultural – desde as tradições textuais aos circuitos de comunicação, desde as
bibliotecas aos “campos de objetos” disponíveis, desde as linguagens técnicas aos arquivos da
memória cultural invocados, desde as formas de divisão social e de institucionalização do
trabalho intelectual às suas relações com as estruturas sociais mais globais. É nesses dispositivos
e nas práticas discursivas que eles suscitam que as formações discursivas, ou seja, as particulares
configurações dos discursos num determinado período, têm a sua origem.” (pp. 10-11)
“Os discursos não vêm do nada, nem vêm de um Todo que seja a Razão universal. Mas também
não são, tão pouco, a expressão, dócil e disponível, de intenções dos sujeitos. Vêm de práticas
de discurso, em que, seguramente, há sujeitos que falam e que escutam; mas em que uns e outros
falam e escutam em lugares e com meios sobre os quais não dispõem de um poder de
conformação. Estas práticas fazem parte da história, mas de uma história em que, no centro,
não está o Sujeito, com o seu poder de atribuição de sentido. Mas antes dispositivos objetivos que,
objetivamente, constituem os sentidos possíveis. Dispositivos, uns intelectuais, outros materiais,
outros sociais. Entre os primeiros estão as nossas categorias.” (p. 11)

“Na obra de M. Foucault, esta ideia de “descentramento do sujeito”, de substituição do sujeito


como instituidor do sentido dos discursos por estruturas objetivas de produção discursiva não
abria explicitamente para aquilo que se veio a chamar “bibliografia material”. Ou seja, para a
ideia de que na gênese dos sentidos do discurso podem estar elementos puramente materiais
dos suportes da comunicação. Embora esta ideia – que seguramente agradaria a Foucault – já tivesse
sido suficientemente explicitada por Walter Ong, no final dos anos 50, a propósito da história da
lógica ocidental. Para ele, a evolução de um pensamento argumentativo, dominante até ao séc.
XVI, para um pensamento sistemático, cujo emblema vem a ser a nova lógica de Pierre de la
Ramée (Petrus Ramus), relaciona-se estreitamente com a difusão massiva da imprensa e com
uma nova organização da folha escrita. Alguns anos depois, Marshall McLuhan voltou ao tema
da influência da estrutura material dos media na criação de sentido, alargando o âmbito da
discussão aos novos “textos” da galáxia audiovisual (por oposição à galáxia do impresso. Do
lado da antropologia, o tema é completado por Jack Goody, numa obra clássica sobre o modo como
a oralidade e a escrita condicionam o pensamento, mesmo nas suas operações mais básicas
(listar, analisar, sistematizar, contextualizar). Até que surge também num seu lugar natural – a
história do livro – com a redefinição do próprio conceito de “bibliografia”, levada a cabo por
de Donald F. McKenzie. De modo a incorporar no estudo dos textos, todos os elementos que
contribuem para lhes dar sentido, começando pela sua apresentação gráfica, da
responsabilidade dos editores e, antes deles, da própria organização da produção material do
livro.

Perspectivas deste tipo têm dois tipos de consequências. Por um lado, afastam a ideia de sujeito e
de intencionalidade do sentido ainda mais do centro da interpretação e da constituição das
categorias. Por outro, convidam a um estudo das origens do sentido – a uma “arqueologia dos
saberes” – muito atenta aos detalhes mais materiais da comunicação: no caso dos impressos: a
estrutura do trabalho editorial e as suas consequências no livro, a organização da página, os tipos, o
uso das maiúsculas, a divisão do texto impresso, a “ilustração” do texto, o número de páginas, o
formato do livro, a organização das bibliotecas e as suas políticas de aquisições, a própria forma
escrita e os significados que ela pode revestir para os seus utilizadores.” (pp. 11-12)

“Aí, todo o sentido reside no contexto. É a situação, o caso, que, na suas características
irrepetíveis e irredutivelmente complexas, constrói os sujeitos da ação (ou seja, os põe em ação).
Ou melhor, os põe em ações, já que a complexidade das situações e dos sentidos que os contextos
envolvem é múltipla e inesgotável. Uma visão destas tem várias consequências historiográficas,
diametralmente oposta às que adopto, mas que o autor explicita com legitimidade teórica.
A primeira é a de que todas as evocações de quadros gerais de referência – ou horizontes de
expectativas, ou quadros de avaliação, ou padrões de valoração - são deliberadamente
suspensos (ou mesmo definitivamente excluídos). Cultura de elites, cultura popular, sistemas de
crenças, modelos de religiosidade, de disciplina, de poder e de resistência, regularidades disciplinares,
quadros institucionais e, evidentemente, sistemas jurídicos, tudo isto são formas de iludir o
verdadeiro sentido dos atos humanos, justamente porque são modelos gerais pelos quais a ação
concreta nunca se deixa moldar.

A segunda é pôr a tónica na recepção, mais do que na produção, tema um tanto trivial nos dias
de hoje; mas que aqui aparece com uma coloração um pouco diferente das formulações
clássicas, tanto ao substituir a noção de “horizonte pessoal de leitura” pelo de “contexto prático
de utilização”, como ao propor uma capacidade poiética ilimitada e arbitrária por parte dos
leitores em situação.

A terceira é a de que a única escala de observação é, portanto, a pequena escala, aquela que
reconstrói aquela situação que, por sua vez, constrói os atores, os lances (enjeux) e as estratégias.
É claro que, se por “atender às situações” apenas se quer significar contextualizar
adequadamente as “aplicações” de modelos gerais e verificar a ambivalência das suas
apropriações, o método não passa de um truísmo.
A quarta é a de que a interpretação das situações nunca fornece chaves que ultrapassem essa
situação, uma vez que os contextos são irrepetíveis. Quando muito, facilita “alusões” (que bem
se podem transformar em “ilusões”...). A reconstrução de um “objeto geral” – como “cultura
política” - surge assim como um problema metodológico central.
A quinta é que, vista esta irrepetibilidade dos contextos e a inextensibilidade dos modelos
interpretativos, a narrativa histórica é inverificável. Por muito que se sobrecarreguem os textos
de citações eruditas e de papelada de arquivo, ou por muito enfáticas, fortes ou mesmo terrorizantes
que sejam as afirmações dos autores, as conclusões a que se chega são apenas problemáticas e
provisórias alusões a sentidos inatingíveis, locais e efémeros.” (pp. 13-14)

“A minha convicção pessoal é a de que existem matrizes gerais de percepção, avaliação e reação,
históricas e integrantes do senso comum. Que estas, tendo espaços de incerteza e limites de
variação, são tendencialmente coerentes. Que é disso que se fala quando se fala de categorias
de senso comum. E que este senso comum – mais do que as situações que nos enredam - pesa
duramente sobre as nossas vidas. Neste sentido, creio que a história da cultura comum, como a
que tento fazer e como a que outros a têm feito, tem um sentido explicativo muito grande,
sobretudo se se quiserem entender os processos sociais seriais e massivos.

Não me comove muito o descentramento do sujeito que com isto se opera; por um lado, porque
não creio do seu descentramento venha algum mal à história; mas, mesmo que viesse, o sujeito
não é menos descentrado se o escravizarmos à lógica das situações concretas.

O ponto teórico crítico, aqui, é outro. É o da capacidade trans-histórica de aceder a esses


universos categoriais dadores de sentido. Porém, tenho que dizer que não conheço nenhum
fundamento metodológico que garanta que, se descermos do macro para o micro, das categorias
para as práticas, das estruturas para os indivíduos, esses problemas de inacessibilidade
desapareçam.” (p. 16)

“Nos últimos tempos, a biografia ficou de moda. Os méritos da novidade vão para um grupo de
companheiros de ofício, de inspiração relativamente consistente, com referências culturais
também bastante partilhadas e todos eles comungando, se não me engano, de um certo desfastio
pela história chamada estrutural. Em comum têm também a escrita sedutora e um bom
conhecimento, pelo menos ao nível que lhes interessa, do período sobre que trabalham.

Na teorização desta história biografia, a que também chamam “política”, ressaltam sobretudo duas
ideias-chave.

Uma delas é a recusa de esquemas interpretativos “fortes”, daqueles usados pelos cientistas
sociais dos vários matizes, substituindo-os por uma interpretação “evidente” (pelo menos, de
“senso comum”), do género daquela que nós usamos para nos orientarmos na vida. O que, sendo
pacífico para nós interpretarmos a vida de hoje, é bastante mais problemático para nós
interpretarmos a vida de há muitos anos. Os nossos filhos sabem, disso, quando procuram entender
os pais; e nós próprios o sabemos também quando temos a sorte de ainda poder tentar entender os
nossos. Na minha opinião, por detrás da “evidência” de alguns enredos, podem esconder-se
retroprojeções da sensibilidade de hoje. E isto, já se vê, tem perigos graves.

A outra ideia-chave do nóvel biografismo é a de que são os homens concretos – e não os


desenvolvimentos anónimos “das estruturas” (também mentais) – que modelam a história. Mas
como não são muitos os homens que estão em condições de modelar a história – pelo menos, a
história de um país -, quem acaba por interessar a esta corrente historiográfica são os “grandes
homens”, nomeadamente os “grandes políticos”.” (pp. 16-17)

“O que se pretende, aqui, sublinhar é a necessidade de ter em conta o modo de transação entre
ideias e interesses, entendidos estes últimos como os resultados mais diretos da interação social.
Poder-se-á então entender como um sistema de ideias (o liberal) cuja lógica era a da
generalização absoluta da cidadania, posto em contato com um certo "ambiente" de práticas e
interesses políticos inóspito a essa generalização, é deformado por ele, e obriga a desenvolver
elementos teóricos capazes de introduzir critérios seletivos nas anteriores teorias da Nação e do
indivíduo.

É justamente este tipo mediatizado de conversação entre "sistema" e "ambiente" que permite
ultrapassar, quer uma história das ideias que ignora os mecanismos de transação com o exterior
do sistema ideológico, quer com uma história social (ou uma história política) que pressupõe
que as "ideias" são ilimitadamente mobilizáveis e disponivelmente funcionalizáveis a quaisquer
projetos, estratégias ou interesses sociais e políticos. Assim, o que aqui nos interessa é sublinhar
é o modo como interesses até aí justificados teoricamente nos quadros de uma concepção - que,
por motivos também teóricos, deixou de poder servir - buscaram novas justificações nos
quadros da nova teoria, para poderem sobreviver socialmente. E, ao mesmo tempo, é ver esta
teoria a alterar-se si mesma para poder incluir em si desenvolvimentos capazes de justificar os
novos/antigos interesses.

Interesses são também, muito claramente, representações, neste caso acerca das vantagens (ou
inconvenientes) do alargamento do universo político a certas categorias pessoas. Mas, ao
estudarmos estes interesses, não estamos a tocar numa realidade bruta (isto é, não mediatizada por
representações). Pelo contrário, estamos em pleno mundo das imagens e de representações acerca de
categorias de pessoas e acerca de vantagens e desvantagens políticas.” (pp. 17-18)
“Começo por salientar que o direito dispunha, realmente, de um corpo textual imponente. No plano
dos livros impressos, as matérias jurídicas (de direito civil ou de direito canónico, de direito comum
ou de direitos pátrios, na tratadística ou na praxística) cobriam uma elevada percentagem da edição.
(...) Numa quantificação muito grosseira, feita a partir dos emolumentos destes funcionários, pude
calcular que, só no domínio da administração judiciária, se escreveriam em Portugal, por ano,
milhares de laudas.

Estes escritos, situados a níveis diversos da comunicação social – desde as universidades até às
escrivaninhas das pequenas terras -, infiltravam-se continuamente no diálogo social, disseminavam
aí imagens e tópicos acerca da sociedade e dos seus vários grupos.” (p. 19)

“A justiça tinha virtudes anexas: a religião, a piedade, a reverência, a gratidão, a verdade, a amizade,
a liberalidade e a equidade. Em todas elas, havia “alteridade”, ou seja, havia deveres a cumprir para
com outrem; ou para com Deus, ou para com os pais ou superiores, ou para com os amigos, ou para
com a própria natureza das coisas (como no caso da verdade e da honestidade). Por isso, “como a
justiça diz respeito aos outros – explica S. Tomás – todas as virtudes relativas a outrem são conexas
coma Justiça, pois têm algo em comum com ela. O mundo das virtudes só não se reduzia à justiça ou
porque, estando esta última relacionada com a igualdade, nem todas as outras se lhe podiam
identificar, uma vez que algumas careciam de igualdade nas recíprocas prestações (o caso mais típico
era a religião); ou porque, noutras delas, a “razão do débito” não era estritamente jurídico.” (p. 20)

“De fato, a centralidade, aliada à longa permanência da cultura jurídica ocidental – cujo corpus
doutrinal se mantém durante séculos e séculos -, fizera com que ela tivesse embebido os
esquemas mais fundamentais de apreensão cognitiva e valorativa do mundo, instituindo grelhas
de distinção e de classificação, maneiras de descrever, constelações conceituais, regras de
inferência, padrões de valoração. Esquemas que se tinham incorporado na própria linguagem;
que se tinham tornado comuns numa literatura vulgar ou em tópicos e brocardos; que se
exteriorizavam em manifestações litúrgicas, em programas iconológicos, em práticas
cerimoniais, em dispositivos arquitetônicos. E que, por isso, tinham ganho uma capacidade de
reprodução que ia muito para além daquela que decorria dos textos originais em si mesmos. A
tradição literária teológica, ética e jurídica constituía, assim, um habitus de auto-representação
dos fundamentos antropológicos da vida social. Neste sentido, a sua ação de modelação dos
comportamentos antecedia mesmo qualquer intenção explicita e conscientemente normativa,
pois decorria de que a tradição jurídica inculcava necessariamente uma panóplia completa de
utensílios intelectuais de base, necessários à apreensão da vida social.” (pp. 20-21)

“Porém, a literatura jurídica era tudo menos puramente descritiva. A sua carga preceptiva era
enorme.

Primeiro porque, nela, o tom descritivo decorre, desde logo, de uma crença na indisponibilidade
da ordem do mundo. As suas proposições apareciam ancoradas, ao mesmo tempo, na natureza
e na religião. De facto, o que aparece, como que descrito, nos livros de teologia e de direito
constitui o dado inevitável da natureza ou o dado inviolável da religião. (...) Depois porque, para
além de decorrer de uma crença, a descrição era, também, um expediente retórico para reforçar
a perceptividade.

Em suma, apesar de todas as aparências estilísticas, intenção dos textos ético-jurídicos não era
a de descrever o mundo, mas de o transformar. Transformar, porém, mais por meio da sua
eficácia simbólica de constituir imagens, do que pela sua capacidade de enunciar normas de
comportamento efetivamente dotadas de coação.” (p. 21)
“Deste modo, os textos jurídicos têm, ao nível da sociedade, uma estrutura semelhante à do
habitus, tal como é concebido por Pierre Bourdieu. Por um lado, constituem uma realidade
estruturada (pelas condições de uma prática discursiva embebida em dispositivos textuais,
institucionais e sociais específicos), que incorpora esquemas intelectuais cuja adequação ao
ambiente fora comprovada. Mas, por outro, constituem uma realidade estruturante que
continua a operar para o futuro, inculcando esquemas de apreensão, avaliação e ação

Tanto os intuitos práticos, como o apelo a valores universais como a natureza e a religião,
favoreciam a difusão destes modelos mentais e pragmáticos em auditórios culturalmente muito
diferentes do grupo dos produtores.” (pp. 21-22)

“Mas provinha também da intenção prática a que antes já nos referimos. A educação pela
persuasão não se pode levar a cabo senão a partir de um núcleo de proposições geralmente
aceites. Para modificar eficazmente os comportamentos dos homens, a moral e o direito tinham
que partir de bases consensuais de argumentação e exigir atitudes também não muitos distantes
daquilo que era consensualmente tido como justo.” (p. 22)

“O carácter consensual deste núcleo de representações fundamentais não excluía,


evidentemente, visões conflituais, sobre as quais era preciso optar, em vista da formação de
uma regra de comportamento.

O saber teológico-jurídico tinha desenvolvido métodos de encontrar a solução justa que, por
um lado, deixavam aparecer a pluralidade de visões conflituais e que, por outro, faziam
depender a opção entre elas dos consensos possíveis, registando a solução mais consensual
(opinio communis) como a solução provável (embora não forçosa).

Estes processos metodológicos eram, por um lado, o esquema expositivo da quaestio e, por outro,
a combinação da tópica (ars topica) e da opinião comum.

A quaestio era, simplificando um tanto, um processo metódico de decidir questões problemáticas:


(i) colocando o problema em discussão; (ii) enunciando as objecções à posição que virá a ser
adoptada; (iii) enunciando ainda cursivamente os contra-argumentos a estas objecções (sed
contra); (iv) enunciando a resposta adoptada (responsio, respondeo quuod); (v) replicando as
objecções iniciais, agora já explicitamente em função da resposta adoptada. O uso deste modo
de raciocinar e apresentar os resultados garantia, portanto, um diálogo regrado e exaustivo entre os
argumentos presentes no auditório, tomando em linha de conta dos conflitos provenientes,
nomeadamente, de diferentes apropriações dos textos, e visando convencer, ganhar adesão,
popularizar a resolução, e não impor unilateral e dogmaticamente uma saída. Uma vez resolvida
a quaestio, a responsio transforma-se num tópico, integrando-se num capital de proposições (ou
lugares) comuns, que será tratado pela tópica.

A tópica, por sua vez, acede ao catálogo das bases consensuais de qualquer discussão, i.e., aos
topoi (argumentos) socialmente aceitáveis. Mas a tópica garante ainda que a solução final,
registada para a posteridade como opinião comum, é a solução mais consensual, tomada de
futuro como base de novos desenvolvimentos textuais.

Quaestio e topica são, assim, dois poderosos mecanismos de enraizamento dos textos teológico-
jurídicos nos contextos sociais, mecanismos que transformam estes textos em testemunhos
particularmente fiáveis acerca dos dados culturais embebidos na prática.
No entanto, não eram apenas estes mecanismos de achamento da solução jurídica que
mantinham em contacto textos e senso comum. Exisitiam outros.

As soluções jurídicas letradas eram continuamente justificadas pelo facto de serem aceites pelas
pessoas comuns: por serem longamente usadas (usus receptae), por estarem enraizadas em práticas
sociais (radicatae, praescriptae), por corresponderem à ordem das coisas, tal como esta era
geralmente concebida (honestae, bonnae et aequae). O próprio quadro das fontes de direito aceite
pela doutrina exprimia este sentido comum de justiça. No topo estava o costume (consuetudo), a
doutrina mais comumente aceite (opinio communis) e a prática judicial (stylus curiae, praxis). E era
este contínuo escrutínio do senso comum que era completado pelas referidas técnicas de decisão da
quaestio e da topica.” (pp. 22-24)

“Mas não será que justamente o intuito preceptivo da teologia, da moral e do direito prejudica
a relevância dos seus textos como testemunhos das relações sociais? Ou seja, nestes textos o
pathos normativo não os fará estar mais atentos ao dever ser do que ao ser? Não lhes dará uma
coloração mistificadora, "ideológica", que os inutilize como fontes idóneas da história?
Alguns reparos feitos por historiadores à utilização destas fontes insistem justamente neste ponto.

Por isso é que, para alguns, a estas fontes carregadas de intenções seriam de preferir fontes não
intencionais, subprodutos brutos da prática, como peças judiciais, petições, descrições e
memoriais. Ou seja, textos que não foram escritos para constituir modelos de ação, mas antes
que foram escritos sob a modelação da ação.

É provável que a preferência pelas “fontes meramente aplicativas” em relação às “fontes


doutrinais”, do ponto de vista da sua "fidelidade ao real", repouse num conceito de ideologia
como consciência deformada e do discurso ideológico como discurso mistificador, discurso que
poderia ser oposto a outros meramente denotativos, que reproduziriam sem mediações o
"estado das coisas". Este conceito de ideologia não reúne hoje muitos sufrágios, pois não se aceita
geralmente que, por oposição ao discurso ideológico, existam discursos não deformados, dando
neutralmente conta da realidade. E, assim, entre um texto explicitamente normativo e um texto
aparentemente denotativo, a diferença que existe é apenas a de duas gramáticas diferentes de
construção dos objetos. Porque, afinal, a realidade dá-se sempre como representação. (...) Até
por razões de economia da pesquisa, vale mais a pena ler o que os teólogos e juristas ensinavam,
longa e explicadamente, sobre, por exemplo, a morte, do que procurar, através da leitura de milhares
de testamentos, perscrutar a sensibilidade comum sobre ela.” (pp. 24-25)

“A sociedade moderna não era, evidentemente, uma sociedade unânime. As pessoas não
atuavam sempre da mesma maneira, mesmo em contextos práticos objetivamente equivalentes.
Ou seja, os seus sistemas de apreensão e avaliação do contexto, bem como os de eleição da ação
e de antecipação das suas consequências não eram sempre os mesmos.” (p. 25)

“Não cremos, no entanto, que seja prudente erigir o modelo cultural subjacente ao espírito das
instituições e da literatura doutrinal do direito como um modelo global, um pouco como faz
Louis Dumont para os quadros mentais subjacentes às hierarquizações sociais da cultura
hindu. Existem, evidentemente, modelos de representação estranhos ao discurso dos teólogos e
dos juristas. Por exemplo, para a época primo-moderna peninsular, o modelo do mundo dos
“políticos”, fundado em valores (como o da oportunidade ou da eficácia, concebidas como adequação
a um único ponto de vista), que são claramente antipáticos aos fundamentos da imagem da sociedade
que enforma o discurso da teologia moral e do direito. Como há outros modelos radicalmente
alternativos, de minorias culturais (judeus, mouros, heréticos) ou de grupos subalternos
(bruxas, “libertinos”, mulheres), embora haja, a meu ver, que ir com cuidado na pretensão,
muito comum hoje, de buscar “outros” ... naqueles que, nas suas estruturas básicas de
pensamento e sensibilidade são “mesmos”. Bem como há que não cair na ilusão de que estes
discursos minoritários ou reprimidos são os protagonistas da história cultural da época, tema
a que já voltarei.” (pp. 25-26)

“O discurso dos teólogos e dos juristas apenas permite o acesso a estas “outras” constelações
cognitivas e axiológicas em contraface, na medida em que com elas polemiza. E nem isso,
quando nem sequer é obrigado a polemizar com elas, limitando-se a desqualificá-las pelo
silêncio ou pelo desdém.
Naturalmente que estes modelos "variantes" (num caso) ou "alternativos" (no outro) devem ser
considerados pelo historiador ao traçar o quadro dos paradigmas de organização social e
política da sociedade moderna.

A sua eficácia em meios sociais determinados deve ser contextualizada. Não necessariamente nos
termos de uma contextualização "social", sobretudo atenta aos "interesses" dos grupos, mas de uma
contextualização cultural, que tenha em conta os sistemas cognitivos e axiológicos próprios
desses grupos de que, justamente, decorrem os seus "interesses".
Porém, os respectivos peso e difusão sociais - e, logo, a sua capacidade para dar sentido (para
"explicar") as práticas - destes modelos alternativos de cálculo pragmático devem ser tidos em
conta.
Ora, pelas razões já antes referidas, parece-me que os discursos alternativos à teologia moral e
ao direito são, durante toda a Época Moderna, francamente minoritários. Não devendo ser
sobrevalorizados quando se trata de descrever condutas massivamente dominantes, são, em
todo o caso, muito importantes para explicar as resistências aos poderes estabelecidos e,
também, os processos de ruptura e desintegração do universo cultural moderno que conduzem
à substituição pelo universo cultural contemporâneo.” (p. 26)
KOSELLECK, Reinhart, et al. Introdução, A configuração do moderno conceito de História e
“História” como conceito mestre moderno. In: O Conceito de História. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.

Introdução – Reinhart Koselleck

“O fato de "História" ser um conceito histórico básico parece decorrer da própria palavra. Mas
a expressão possui sua própria história, a qual somente ao final do século XVII lhe permitiu
ascender à condição de conceito mestre, político e social. Abrangendo tanto passado quanto
futuro, "a História" se transformou num conceito regulador para toda a experiência já
realizada e ainda a ser realizada. Desde então, a expressão ultrapassa em muito os limites de
simples narrativa ou de ciência histórica.

Por outro lado, a “Historie”, como conhecimento, narrativa e ciência, é um fenômeno antigo da
cultura europeia. Não há dúvida de que a narração de histórias faz parte da sociabilidade dos
homens. Mais: sem histórias não há memória, não há nada em comum, não há auto definição
de grupos sociais ou de unidades de ação políticas, os quais só conseguem se constituir em
elementos agregadores através de memórias comuns. Esse tipo de “histórias" naturalmente não
são conceitos básicos, mas se mantêm como narrativa daquilo que estava em jogo numa
determinada história. Pode se tratar da história de uma batalha, de um ato jurídico, de uma viagem,
ou de um milagre, do assassinato de um rei, ou de um amor. Sempre se narra de quem trata e de que
trata a história. Até esse ponto, a expressão “uma história” não constitui qualquer conceito
básico, no máximo aquilo que, como um somatório de uma narrativa, pode, ao seu final, ser
subsumido num conceito.

O fato de que a História se reflita à "própria História" [Geschichte selber], e não a uma história
de algo, constitui uma formulação da Era Moderna. Somente assim, pouco antes da Revolução
Francesa, a antiga palavra usual se transformou num conceito central da linguagem política e social.

Esse conceito de "História em si e para si" [Geschichte an und für sich] incorporou uma teia de
significados, seguidos como trilhas neste texto: a História como acontecimento e sua narrativa,
como destino e como informação a seu respeito, como providência e sinal a respeito, todo
conhecimento da Historie como coletânea de exemplos para uma vida piedosa e justa, prudente
e até sábia. Sem renegar todas elas, o moderno conceito de História articulou muitos dos
sentidos antigos.
Em contrapartida, a novidade está no fato de que o conjunto do emaranhado de relações político-
sociais deste mundo, em todas as suas dimensões temporais, deva ser entendido como
"História".” (pp. 37-38)

“Novos significados, que antes não se conseguiam resumir linguisticamente num conceito único
foram agregados: a História como processo, como progresso, como evolução ou como
necessidade. "História" se transforma num amplo conceito de movimento.

De outro lado, se abre um novo espaço de significados: "História" como campo de atuação e
como ação, como liberdade. A História torna-se planejável, produtível, factível. De "História"
decorre também um conceito de ação. As duas variantes - o lado objetivo e o lado subjetivo -, que
se excluem mutuamente, conferem ao conceito uma ambivalência que lhe é inerente desde então.
Sua utilização como palavra de ordem, sua suscetibilidade à ideologia e sua capacidade de
crítica da ideologia derivam desse fato.” (p. 38)

“O início da Neuzeit, do novo tempo, da Era Moderna, evidentemente, constitui um processo de


longo prazo, e somente no seu final se encontra o reconhecimento do caráter processual desse
período: isto é, a descoberta da "História como tal" [Geschichte überhaupt], como resultado do
Iluminismo. (...) Desde o século XVII existe uma "História propriamente dita" [Geschichte
schlechthin], que parecia ser seu próprio sujeito e seu próprio objeto, um sistema e um agregado
(como se dizia na época).” (p. 39)

“Uma das características estruturais dessa nova História é que ela reduziu a um mesmo conceito
a contemporaneidade de coisas não contemporâneas, ou a não contemporaneidade de coisas
contemporâneas - aproximando-se também aqui ao progresso. Isso é válido não só no sentido
evidente de que toda e qualquer narrativa traz o passado para o presente, eliminando, dessa
forma, as diferenças temporais que tematiza.” (p. 39)

“Somente a partir do momento em que aceleração e retardamento conseguem medir diferenças


de experiências, cuja equalização se transforma em Leitmotiv (motivo condutor) de uma ação
político-social, e só a partir do momento em que isso se vincula à expectativa de um futuro
planejável, é que existe o conceito de História. "História" – como conceito-legitimador - vai
muito além de sua aplicação científica. Ele conseguiu reunir as experiências e as esperanças da
Era Moderna numa só palavra, a qual conseguiu se tornar, desde então, termo de discórdia e
palavra de ordem em nossa linguagem político-social.” (p. 40)

V. A configuração do moderno conceito de História – Reinhart Koselleck


1. O percurso histórico do termo

“Quando hoje se fala de "História", estamos diante de uma expressão cujo significado e cujo conteúdo
só se consolidou no último terço do século XVIII. "A História" é um conceito moderno que -
apesar de resultar da evolução continuada de antigos significados da palavra -, na prática,
corresponde a uma configuração nova. Naquilo que tange à História do termo, o conceito se
cristaliza a partir de dois processos de longa duração, que no final vão confluir e, assim,
desbravar um campo de experiência que antes não podia ser formulado. Por um lado, trata-se
da criação do coletivo singular, que reúne a sorna das hist6rias individuais em um conceito
comum. Por outro lado, trata-se da fusão de “História” (como conjunto de acontecimentos) e
“Historie” (como conhecimento, narrativa e ciência históricos).” (p. 119)

“A partir daí, "die Geschichte" ["a História"] (a o lado de "die Geschicht", e, desde o século XV, "die
Geschichten" ["as Histórias"] foi, até pleno século XVIII, uma forma plural, que designava a soma
de histórias individuais. "A História são" - lê-se em Jablonski, em 1748 - "um espelho das virtudes
e dos vícios através da qual se pode aprender, a partir da experiência alheia, aquilo que se pode
fazer ou se deve deixar de fazer; elas são um monumento tanto das más ações quanto das
louváveis". Da mesma forma, Baumgarten define, em 1744, na velha tradição: "A História são, sem
dúvida, a parte mais educativa e útil, o mais engraçado da erudição". E inclusive Herder utilizou,
eventualmente, “a História” no seu significado aditivo, plural.” (p. 120)

“O novo slogan expresso pela palavra "História" identificava um grau de abstração mais elevado, que
podia caracterizar unidades sobrepostas de movimento histórico.

"A História" tinha uma complexidade maior que aquela das histórias individuais com que se
lidava até então. O conceito subjacente à "palavra da moda" pretendia apreender essa
complexidade como uma realidade genuína. Com isso, se explorava uma nova experiência de
mundo - exatamente a da História.” (pp. 121-122)

“"Uma série de acontecimentos é chamada uma História", define Chaldenius, em 1752. Mas “a
palavra 'série' aqui não significa... apenas uma multiplicidade ou grande número; mas mostra também
as relações entre eles, e mostra que eles formam um conjunto''. Essa visão de conjunto – que, em
geral, era pragmaticamente interpretado corno um emaranhado de causas e efeitos - colocou-se num
nível mais elevado que os simples acontecimentos e episódios. "É a grande História", como disse
Planck, em 1781 - que, "como uma planta trepadeira, perpassa muitas histórias pequenas".” (p. 123)

“Para a História do conceito, foi decisivo que a questão dos efeitos não foi interpretada apenas
como urna construção racional - é sobre isso que trata a próxima seção -, mas que ele tenha sido
reconhecido como um campo autônomo, que, na sua complexidade, orienta toda a experiência
humana. A História sofreu uma alteração linguística, que a transformou no seu próprio objeto.” (p.
123)

“Uma vez descoberta a História como autônoma e autoativa, ela passa a classificar sua própria
representação: ''A classificação é a própria História que nos fornece". Mais, ela habilita o
historiador a esfriar “a ânsia por heroísmo”, própria dos príncipes, "em especial quando a
própria História transforma os historiadores em filósofos". Passo a passo, essa História também
vai aumentando sua pretensão à verdade, a partir de seu genuíno e complexo conteúdo realista.
"A própria História, quando vista em geral, nos dá a melhor indicação das condições de todos
os seres sensatos, morais e sociais", escreve Wegelin, em 1783. O Direito Natural e o Direito
Internacional Público se baseiam nela, liberdade e moralidade não são viáveis sem ela . "É daí
que surge o conceito do mundo moral, ou da relação entre todos os seres pensantes e ativos.
Esse conceito geral não é outra coisa que a expressão da História como tal". A fundamentação
do Iluminismo histórico em uma História não mais derivada mas na história como tal", tinha
se definido como conceito.” (p. 124)

“No sentido de uma História revelada por Deus, Agostinho, por exemplo, havia constatado que as
representações históricas tratam de instituições humanas, mas que a própria História ("ipsa historia")
não é uma instituição humana. Pois aquilo que aconteceu e não pode ser rever tido, isso faz parte da
sequência dos tempos ("in ordine temporum habenda sunt"), cujo fundador e administrador seria
Deus.” (p. 125)

“O que caracterizou o novo conceito de uma "História como tal" [Geschichte überhaupt] foi sua
capacidade de abrir mão do recurso a Deus. Paralelamente, ocorreu a revelação de um tempo
que é peculiar à História. Ele abarca - como destaca Chladenius, em oposição ao linguajar usual
- todas as três dimensões temporais: “Coisas futuras fazem parte do historiar. [...]. Pois, mesmo que
o conhecimento do futuro, em oposição ao conhecimento do passado, seja muito limitado e breve,
mesmo assim temos várias perspectivas de perscrutar o futuro, não só através da revelação, mas
também da astronomia e dos assuntos civis", bem como da “arte médica”. “E Por isso, na doutrina
racional da História, esse conceito deve ser tomado de forma tão ampla que inclua o futuro". E, em
contraposição à expectativa cristã, essa História adquire, em Chladenius, um horizonte
fundamentalmente ilimitado, "pois a História em si e diante de si [Geschichte an und vorsich] não
tem fim".” (p. 126)

“Kant definira que a História é mais que a soma temporal de dados individuais, que, em última
instância, se alinham num tempo natural. A revelação de um tempo genuinamente histórico no
conceito de História coincidiu com a experiência da "Era Moderna". Desde então, os historiadores
estão obrigados a verificar relações que não se orientam mais pela sucessão natural de gerações de
soberanos, pelas órbitas das estrelas ou pela mística figural do simbolismo numérico dos cristãos. A
História funda sua própria cronologia.” (p. 127)

“A História no coletivo singular definiu as condições para as possíveis Histórias individuais.


Todas as Histórias individuais passaram, desde então, a se localizar numa relação complexa,
cujo efeito é peculiar e autônomo. “Acima das Histórias está a História” – assim Droysen resumiu,
em 1858, o novo mundo vivido da História.” (p. 127)

“Nas décadas das simplificações e das singularizações, quando, a partir das liberdades, surgiu "a
liberdade", e das revoluções surgiu “a revolução”, a História subordinou a si as histórias individuais.
Esse é o conceito que na economia linguística histórico-política dos alemães parece ocupar aquele
lugar que "revolução" ocupa no francês . A "História" já aparece como conceito antes da Revolução
Francesa, os contextos revolucionários transformarão aquilo que era surpreendentemente único nessa
nova História numa proposição axiomática de vida.” (p. 128)

“b) A fusão de "Historie" e "Geschichte [História]". A História, cuja ampliação de sentido foi
explicitada até aqui, não foi apenas um novo conceito de realidade, mas também um novo conceito
de reflexão.” (p. 128)

“Desde a germanização da palavra latina "historia", no século XIII, "Geschicht(e)" e "Historie"


tinham mantido significados claramente distintos, como já acontece em Conrado de
Megenberg: "... aquilo que as Historien dizem, isso são os escritos das geschichten nos países e
nos tempos". Em 1542 Burkart faz uma rima : "quando tais Geschichten tiveram lugar, / como
em Historien se pode observar". O campo “objetivo” dos acontecimentos e da ação bem como
o conhecimento “subjetivo”, a narrativa, ou - mais tarde - a ciência a respeito, puderam, até o
século XVIII, ser designados com terminologia separada. Assim, lê-se no prefácio a um
dicionário geográfico de 1705: “Historie ou ciência da História”. É evidente que essa
contraposição raramente foi observada com tanto rigor quanto em definições. O significado de
uma influenciava o da outra, ainda que com intensidade variável.” (p. 129)

“A sobreposição dos dois campos semânticos pode ser constatada nos vocabulários do século XV:
"historia" é traduzida por “um acontecimento, uma coisa que aconteceu, geschicht, um discurso
escrito que conta como aconteceu” e “historie (history)”. Tanto “coisa acontecida” quanto
“historie” constam como “historia”, que é definida como “res facta” e como “relato de uma história
sobre uma coisa acontecida” tudo ao mesmo tempo.” (pp. 129-130)
“Enquanto ''Historie" se manteve relativamente imune a uma contaminação por parte de
“Geschichte”, a transferência do significado de “Historie” para “Geschichte” se realizou de
forma muito mais rápida e profunda.” (p. 131)

“O fato de imaginar uma "História" que fosse além da narrativa de transformações representava
criatividade teórica. Ela fazia com que a realidade da História desembocasse num “Lehrgebäude”,
numa “estrutura doutrinária”, sem a qual a história dos acontecimentos nem poderia ser reconhecida.
Somente através da reflexão sobre as histórias individuais é que "a História" poderia ser desvendada.”
(p. 132)

“A "Historie" como doutrina ou como disciplina científica, desde sempre, pôde ser utilizada de
forma reflexiva e sem objeto. A partir de Cícero, o conhecimento reunido sobre as histórias
individuais fora subsumido, coletivamente, no termo “historia”: “Historia magistra vitae”.” (p.
132)

“Desde então, se tornou difícil distinguir entre a “verdadeira” História e a História ativamente
refletida. Frederico, o Grande, ainda ficou desnorteado quando o bibliotecário Johann Erich Biester
lhe disse que "se dedicava preferencialmente à Geschichte [História]". O rei perguntou "se isso
significava a mesma coisa que Historie, pois não conhecia a palavra alemã". Ele terá conhecido a
palavra, mas não seu sentido reflexivo contido no novo coletivo singular. Em 1777 já se diz de forma
bem natural que Iselin pretendeu “estudar a História”, e tornar-se “professor de História”.

Em 1775 Adelung, finalmente, registrou a vitória da "História". A expressão possuiria três


significados equivalentes, que não se perderam, desde então: “1. Aquilo que aconteceu, uma coisa
acontecida... 2. A narrativa de tal História ou de episódios acontecidos; a Historie... 3. O
conhecimento dos episódios acontecidos, o estudo da História [Geschichtskunde], sem plural.”
(p. 133)

“Claro, seria possível interpretar essa constatação - que Adelung certamente também registrou por
razões linguístico-políticas - de forma puramente onomasiológica, no sentido de que o espaço
semântico de uma palavra ("Historie") simplesmente foi assumido por outra palavra ("
Geschichte"). Mas a história vocabular mostrou que tais convergências foram possíveis e
corriqueiras, desde o final da Idade Média. Também não é decisivo que "Historie" agora podia ser
usada, sem restrições, no sentido de “Geschichte”, coisa que a Deutsche Encyclopedie [Enciclopédia
alemã] – apesar de eruditas diferenciações - confirma. O que é decisivo é que, no último terço do
século XVIII, foi transposto um patamar. Os três níveis (situação objetiva, a representação dela,
e a ciência a respeito) foram reunidos num único conceito: ''Geschichte". Levando-se em
consideração o emprego das palavras na época, trata-se da fusão do novo conceito de realidade
expresso em "História como tal" [Geschichte überhaupt], com as reflexões que ensinam a
entender essa realidade. Numa formulação talvez um pouco exagerada, pode-se dizer que
"Geschichte" foi um tipo de categoria transcendental que visava às condições de possibilidade
de Geschichten/Histórias.” (p. 134)

“Com isso, o novo conceito de realidade e o novo conceito de reflexão se haviam sobreposto. No
campo teórico-científico, essa convergência levou a inúmeras imprecisões e dúvidas. Niebuhr – e
muitos outros, depois dele - procuraram diferenciar novamente a utilização das palavras."' O fracasso
desses esforços indica que a "História como conceito social e político cumpriu [uma tarefa]
menor ou maior, em todo caso, [uma tarefa] diferente: ele se transformou num conceito
abrangente, supracientífico, que precisa incluir a experiência moderna de uma História
autônoma na reflexão dos seres humanos que a realizam ou são produto dela.” (p. 135)

2. “A História” como Filosofia da História

“A importância que teve o fato de a nova realidade da "História como tal" [Geschichte überhaupt] ter
conseguido evoluir para o status de um conceito através da reflexão está indicada pelo surgimento da
palavra paralela "Filosofia da História". O desvendamento da "História como tal" coincidiu com o
surgimento da Filosofia da História. (...) Já a escrita pragmática da História, que tiraria
conclusões de experiências próprias e alheias, mereceria esse nome, da mesma forma que a
"crítica histórica", que ensinaria a distinguir verdade de plausibilidade, podendo, por isso, ser
chamada de "lógica da Geschichte [História] ou teoria da Historie".

Foi graças à Filosofia iluminista que a Historie como ciência se separou da Retórica e da
Filosofia moral, e se livrou da Teologia e da Jurisprudência, a quem estivera subordinada.” (pp.
135-136)

“a) A reflexão estética. No contexto do surgimento da Filosofia da História, Historik e Literatura


sofreram uma nova ordenação recíproca, cuja relação constituía tema antigo, sempre retomado, desde
o Humanismo. De forma esquemática, a relação entre Historie e produção literária pode ser
caracterizada por duas posições extremas, que permitem construir uma escalada gradativa) para
agregá-las.

Ou se classifica o conteúdo de verdade da Historie em nível mais elevado que a produção


literária, pois quem se dedica às res factae precisaria mostrar a verdade) enquanto as res fictae
levariam à mentira.” (p. 136)
“O fato de a História da Filosofia ter-se tornado viável não se deveu, de forma alguma, à vitória
de um ou de outro desses dois campos) aqui apresentados de maneira esquematicamente
reduzida. Nem os representantes da ''verdade nua", isto é, os defensores da "própria História"
[Geschichte selbst], conseguiram se impor, nem os defensores da Poesia - considerada superior
-, que submetiam sua representação às regras de uma possibilidade imanente, o conseguiram.
Pelo contrário, ambos os campos fizeram uma fusão, na qual a Historie se aproveitou da
verdade mais geral da Poesia, de sua plausibilidade interna, enquanto, inversamente, a Poesia
tentou incorporar cada vez mais as exigências da realidade histórica. O resultado acaba sendo
sinalizado pela Filosofia da História.” (p. 138)

“Com isso, a Historie havia galgado um patamar, no âmbito da hierarquização aristotélica, que
a aproximava da poesia. Não se perguntava pela realidade, mas, em primeiro lugar, pelas condições
de sua possibilidade. Mas a Poesia tinha a mesma obrigação. Uma vez submetida a uma exigência
racional comum, também sua utilidade podia ser definida em comum (...)” (p. 139)

“No âmbito da produção literária, foi a nova categoria do romance burguês que agora se achava
submetida ao postulado da fidelidade histórica aos fatos. Como em dois vasos comunicantes,
Historie e romance foram mutuamente adaptados. A credibilidade e a capacidade de
convencimento do romance cresciam na medida em que ele se aproximava de uma "Historie
verdadeira".” (p. 139)

“Enquanto a arte do romance foi se comprometendo com a realidade histórica, a Historie,


inversamente, foi submetida ao mandamento poetológico de criar unidades de sentido. Passou-
se a exigir-lhe uma maior arte de representação, em vez de narrar séries cronológicas, ela'
deveria desvendar motivos secretos, e tentar descobrir uma ordem interna em meio aos
acontecimentos casuais. Dessa forma, através de um tipo de osmose recíproca, ambas as
categorias levaram à descoberta de uma realidade histórica a que só se poderia chegar através
da reflexão.” (p. 141)

“A transição é gradativa: o historiador fundamenta, compara, atenta para o caráter e as


motivações “e ousa derivar daí um sistema de acontecimentos, uma força propulsora”, que ele
ou confirma através de fontes contemporâneas “ou encontra justificado através de todo o
conjunto interconectado da História”. A intervenção teórica prévia, o “nexus renum
universalis”, é confirmado pela própria História. “Pois, nenhum acontecimento no mundo é,
por assim dizer, insular. Tudo interdepende, é reciprocamente motivado, produz-se
mutuamente, é desencadeado, é gerado e motivado, e gera de novo”.” (pp. 142-143)
“A ruptura filosófica que indicou o caminho foi feita por Kant, quando vinculou a questão da relação
da História com sua adequada representação à tarefa moral, com que historiador e História estariam
igualmente comprometidos. Com sua “ideia de uma História mundial [Weltgeschichite] que possui
como que um fio condutor a priori”, ele não queria dispensar o trabalho empírico dos historiadores.
Mas Kant promoveu um avanço na discussão sobre uma representação adequada, na medida em que
vinculou a realidade histórica às condições transcendentais de seu conhecimento.

Por outro lado, Kant se pronunciava contra a metáfora de que se pudesse construir a História
teleologicamente, como um romance. (...) Assim, o projeto filosófico de constituir a História gera
efeitos sobre a História real. O planejamento humano exige mais que o plano estético: ele se
funde na intenção moral prática com o plano secreto da natureza.” (p. 144)

“A profundidade com que essa virada transcendental entrelaçara as tarefas da representação


com a interconexão dos acontecimentos em uma unidade da História fica clara numa reflexão
de Niebuhr, de 1829, quando justificou o anúncio de suas preleções a respeito da "História da
era da revolução". Ele não pretenderia falar "exclusivamente da revolução", mas ela constituiria “o
centro dos últimos 40 anos; é ela que confere a unidade épica ao todo", motivo pelo qual ele a tomaria
como ponto de partida. Evidentemente a própria revolução constituiria apenas “um produto do
tempo” sobre o qual pretenderia falar. "Mas falta-nos uma palavra para o tempo em geral, e, diante
dessa ausência, permito-me chamá-lo de era da revolução".

A revolução como que criou a unidade a ser exposta, épica, da História, mas por trás dela está
o tempo em geral, o tema genuíno da História moderna, a qual, na revolução, foi subsumida no
seu primeiro conceito, todo ele derivado da experiência.” (p. 145)

“Para chegar à própria História [Geschichte selbst], haveria necessidade, por um lado, da
"investigação crítica do acontecimento", isto é, da pesquisa histórico-filosófica, por outro lado,
da fantasia produtiva, que vincula o historiador ao poeta. Só então se poderia desenvolver
aquele conceito de "realidade" que, "independentemente de sua aparente casualidade, está
condicionada por uma necessidade interna". Graças a esse reconhecimento, a matéria do
acontecimento adquiriria aquela forma geral que a estruturava como História. (...) a História
como uma interconexão dinâmica e como conhecimento teria uma base comum, "já que tudo aquilo
que age na História mundial [Veltgeschichte], também se movimenta dentro do interior do homem",”
(pp. 145-146)

“Agora era possível que Schaller, em 1838, nos Hallische Jahrbücher, pudesse constatar, de forma
Jacônica: “A História como representação daquilo que aconteceu, na sua perfeição, é,
necessariamente, também Filosofia da História”.” (p. 146)
“b) Da moralização à processualização da História. A tarefa poetológica atribuída à Historie
exigira a apresentação de uma interconexão com sentido. Essa interconexão foi atribuída, como
responsabilidade, à "própria História" [Geschichte selbst], graças a reflexões histórico-
filosóficas, com que ela seria comprovável nela mesma. A velha tarefa moral da Historie de,
através de juízos, não só ensinar, mas também melhorar, sofreu uma mudança parecida. Se
originalmente a submissão de uma História real a normas morais era coisa do historiador, como
guardião filosófico, ao final do século XVIII, o ônus da prova para a moralidade foi transferido
para a própria História.” (pp. 146-147)

“Os historiadores debatiam, de forma animada, se deveriam permitir que seu juízo fluísse para
dentro da narrativa, ou se deveriam deixar que a própria História falasse. (...) Uma posição
retórica preferida dos historiadores - exatamente para obter um efeito exemplar - era a de fazer
com que a História falasse por si mesma, uma posição que se mantivera desde Luciano.” (p.
147)

“Do outro lado, por causa do Iluminismo, foi se fortalecendo decisivamente aquele campo que
exigia do historiador um posicionamento enfático a favor da verdade, em especial pelo
ensinamento moral da História. A antiga versão de que medo ou esperança diante do julgamento
histórico possui efeito regulador sobre o comportamento do mundo posterior já fora aceita no
Humanismo, por Bodin, por exemplo.” (p. 147)

“''Justiça histórica é a capacidade de chegar a conclusões válidas a partir da verdade histórica


que deriva de fatos".” (p. 138)

“Uma dessas “regras” dizia: "O abuso se punirá a si mesmo, e a desordem, com o tempo,
simplesmente se transformará em ordem, através da incansável dedicação de uma razão
crescente". A moral da História foi temporalizada em direção à História como processo. (...)
História hic et nunc adquiria um caráter incontornável: “Aquilo que a gente excluiu do minuto,
/ nenhuma eternidade devolve”.” (p. 149)

“Vivenciar a História como um tribunal poderia aliviar o historiador da formulação subjetiva de seu
juízo. Por isso, Hegel se defendeu, de consciência tranquila, contra a acusação da "presunção de ter-
se comportado como juiz do mundo", ao desenvolver a História como processo. Os acontecimentos
da História geral do mundo representavam para Hegel a "dialética dos espíritos particulares dos
povos, o tribunal do mundo". Na transição da formulação de um juízo moral, por parte dos
historiadores, para o processo como História mundial [Weltgeschichte], se firmara a visão filosófica
da História do Iluminismo em direção à Filosofia da História da Era Moderna.” (p. 150)
“e) Da formulação racional de hipóteses à razão da História. O desafio poetológico frente ao plano
histórico levou à unidade interna, ao "sistema" da História. O postulado por uma moral da História
levou à justiça do processo histórico. Para os contemporâneos, ambas as respostas foram resultado de
reflexões filosóficas sobre a Historie. (...) A “Filosofia da história”, de fato, no início, foi um
conceito polêmico - se voltava criticamente contra a fé nas Escrituras, e metafisicamente contra
a providência divina, que, segundo a interpretação teológica, criava a conexão interna da
História. Voltaire se encontrava na esteira de Simon, Sp1noza ou de Bayle, dos pirronistas e
racionalistas, retomando os desafios apresentados por estes contra a Teologia.” (p. 151)

“Tratava-se de conseguir interpretar de forma filosoficamente consistente a multiplicidade e a


sucessão de realidades históricas, eliminando o acaso e os milagres, através de fundamentações
racionais. Para cumprir essa tarefa, a Historie se serviu cada vez mais de hipóteses, que
possibilitavam superar lacunas no conhecimento dos fatos e tirar conclusões sobre o desconhecido a
partir do conhecido. (...) O pressuposto teórico da "pesquisa" histórica consistia em "diferenciar
entre a ciência histórica possível e a verdadeira".” (p. 152)

“E quando Iselin tentou explicar a História humana, de forma progressiva, a partir de motivações
internas, admitiu, de forma sincera: "As revoluções que descrevemos neste livro constituem, no
entanto, muito mais hipóteses filosóficas que verdades históricas".” (p. 153)

“Independentemente de a providência divina ou um plano natural continuarem a agir nos


bastidores, foi a coragem de formular hipóteses que permitiu a elaboração filosófica de uma
nova História.” (p. 153)

“Na formulação de hipóteses, foram unificadas demandas científico-teóricas específicas da disciplina


com reflexões transcendental-filosóficas. Assim, a "primeira pergunta" que o jovem Schelling fazia
"a uma Filosofia da História" foi a seguinte: "como uma História como tal [Geschichte überhaupt]
seria imaginável, já que, se tudo aquilo que é, para cada um, só é posto através de sua consciência,
também toda a História passada, para cada um, só pode ser posta através de sua consciência".” (p.
154)

“Depois que a Filosofia havia sistematizado a História, essa História podia retroagir sobre a
Filosofia e compreendê-la historicamente.

Como filósofo, seria possível mostrar quais são os degraus de cultura que uma sociedade deve
percorrer, como historiador se estaria perscrutando a experiência para saber que degrau, em
determinado tempo, teria sido efetivamente alcançado. Constituiria tarefa simultânea dos filósofos
e dos historiadores reconhecer os futuros meios de satisfação das necessidades.” (p. 155)
“Com isso, "a História", como coletivo singular de todas as Histórias individuais, não é apenas
resultado de reflexão racional, mas ela própria constitui a forma em que se manifesta o Espírito, que
se desdobra no trabalho da História mundial. "Esse processo de ajudar o Espírito a chegar a si
mesmo, a seu conceito, é a História".” (p. 156)

“d) Resultados da guinada histórico-filosófica ao tempo da revolução. As Filosofias idealistas


da História tentaram fundamentar a unidade da História em sua extensão temporal e no modo
de sua movimentação. (...) Ainda que se especulasse sobre o início e o destino da História mundial
isso sempre acontecia com vistas a um diagnóstico sobre o próprio tempo. Só então o conceito de
“História” se tornou capaz de preencher, para além de qualquer método científico, o espaço
antes ocupado pela religião eclesiástica, só então o conceito estava apropriado a trabalhar com
as experiências da revolução.” (p. 158)

“Primeiro, a Filosofia idealista da História introduziu o axioma do caráter único [Efomaligkeit],


sobre o qual se baseavam tanto o "progresso" quanto a Escola Histórica. A soma das histórias
individuais foi elevada à unidade da própria História [Geschichte selbst], que é única, por
natureza.” (p. 158)

“Assim, de História - como conceito transcendental de reflexão - surgiu um conceito reflexivo.


Na formulação de Novalis: "A História se produz a si mesma". A incomparabilidade, a unicidade de
situações hist6ricas concretas - também efeito da Revolução Francesa - levou à História criadora,
produtiva.” (p. 160)

“Com isso, em segundo lugar, se modificou o potencial prognosticador das velhas Historien. Sua
tarefa tradicional de servir de mestra para a vida deixou de existir tão logo não foi mais possível
comprovar situações análogas das quais se pudesse tirar conclusões para o próprio
comportamento.” (pp. 160-161)

“Assim, a Filosofia da História levou a uma reversão do futuro. Do prognóstico pragmático de


um futuro possível, surgiu a expectativa de longo prazo sobre um novo futuro, que deveria
determinar o comportamento. Essa nova determinação temporal teve reflexos sobre o conceito de
História: transformou-se também num conceito de ação. Evidentemente, a frase muitas vezes citada
de Kant de que o homem pode prever os acontecimentos que ele mesmo desencadeia, continha uma
conotação irônica. Ela se voltava contra o ancien régime, o qual, co1n sua política anti-humana,
estaria, ele próprio, produzindo as consequências que tanto temia. Kant era mais cuidadoso nas suas
medições da História como espaço de ação moral mente determinável.” (p. 161)

“Assim, o tratamento histórico-filosófico da Revolução Francesa conduziu a um novo


alinhamento entre experiência e expectativa. A diferença entre todas as Histórias até aqui e a
História do futuro foi temporalizada num processo em que se torna dever do homem intervir
com sua ação. Com isso, a Filosofia da História deslocou de forma fundamental a antiga
importância da Historie. Desde o momento em que o tempo adquirira uma qualidade histórico-
dinâmica, não foi mais possível - como se fosse um retorno natural - aplicar as mesmas regras
de antigamente ao presente, regras que tinham sido elaboradas de forma exemplar até o século
XVIII.” (p. 162)

“Em consequência - em terceiro lugar -, também a importância do passado na História se


modificou. A História temporalizada e processualizada como unicidade permanente não podia
ser mais aprendida de forma exemplar - "portanto, o objetivo didático é incompatível com a
Historie". A História deveria, muito mais – como continuou Creuzer -, "ser encarada e explicada de
forma nova por cada nova geração da humanidade que está em progressão". A elaboração do passado
se transformou em um processo de educação que progredia junto com a História, e que, por sua vez,
tinha efeitos sobre a vida. E, nesse processo, a revolução, em sua classificação histórico-filosófica,
ocupou o lugar das Histórias que vigoravam até então.” (pp. 162-163)

“A aceleração, que na época foi reiteradamente destacada, constitui um indício seguro da


existência de forças imanentes à História, as quais dão origem a um tempo histórico próprio e
pelas quais a Era Moderna se distinguiria do passado. Para dar conta da unicidade de toda a
História e da distinção entre passado e futuro, importava reconhecer a História como um todo, a
realidade, seu transcurso e sua direção, que leva do passado ao futuro.” (p. 163)

“Na tentativa de cumprir essa tarefa, a velha Historie perdeu sua utilidade, que consistia em
recuperar os achados do passado para a situação contemporânea. Hegel dizia: "Aquilo que traz
algum ensinamento na História é algo diferente das reflexões dela derivadas. Nenhum caso é
totalmente semelhante ao outro... Aquilo que a experiência e a História ensinam é que povos e
governos nunca aprenderam com a História nem agiram de acordo com os ensinamentos que
ela poderia ter fornecido". Do diagnóstico de Hegel se pode deduzir teoricamente o lugar das
novas ciências históricas. Como ciência do passado, ela só poderia ser praticada por si mesma -
a não ser que ela, pela via da formação histórica, interfira de forma direta na vida.” (p.163)

“Em termos modernos: existem estruturas formais que se mantêm ao longo dos acontecimentos,
condições para Histórias possíveis, cujo conhecimento antes se refere à prática do que o
conhecimento das condições.” (p. 164)

3. A “História” se define como conceito


“A História narrativa, o ato de contar [Erzählung]; encontra-se entre as formas mais antigas
de interação humana, e isso ela continua, sendo até hoje. Nesse sentido, seria possível considerar
"História" como um conceito fundamental permanente da sociedade, em especial da
sociabilidade. Se, no século XVIII, "a História" – cuja fundamentação terminológica e teórica
tentamos conhecer até aqui – foi configurada como conceito fundamental da linguagem social e
política, isso aconteceu porque o conceito adquiriu o status de princípio regulador de toda experiência
e expectativa possível. Com isso, se modificou a importância da "Historie" como ciência
propedêutica - como se pretende mostrar de forma esquemática, a seguir: "a História" foi
abarcando de forma crescente todos os âmbitos de vida, enquanto simultaneamente ia sendo
guindada à posição de uma ciência central.” (p. 165)

“A configuração da História como conceito que está na base de tudo pode ser mostrada à mão de três
processos: [primeiro], na eliminação da historia naturalis do cosmos histórico, fato que, no entanto,
trouxe consigo a historicização da “História Natural”; segundo, na fusão da historia sacra com a
História Geral; e, terceiro, na conceitualização da História mundial [Weltgeschichte] como ciência-
mestra, que transformou a antiga História universal (Universalhistorie).

a) Da ''historia naturalis" para a “História da natureza” [Naturgeschichte]. Conhecimentos


históricos foram considerados até o século XVIII, como pressuposto empírico de todas as
ciências assim que Heckermann podia afirmar que devem existir tantas Historien quantas são
as ciências. Como conhecimento geral das experiências, a Historie tratava do individual, do
específico, enquanto as ciências e a Filosofia visavam ao geral.” (p. 166)

“A historicização da natureza que - em termos modernos - se ia configurando, no longo prazo, isto é,


sua classificação temporal - de forma que ela mesma ganhasse uma "História" – não se deu sob o
título de "historia naturalis", pois essa expressão estava reservada para a descrição daquilo que está
dado de forma permanente.” (p. 167)

“A temporalização da natureza, que abre seu passado finito em direção a um futuro infinito, e
preparava sua interpretação histórica, realizou-se no âmbito da teoria, e não da historia naturalis - e
isso corresponde à nossa História conceitual do século XVIII. Por isso, não admira que essa
tradicional pesquisa da natureza fosse sendo gradativamente excluída do cosmos das ciências
históricas.” (p. 168)

“b) Da "historia sacra" para a "História da salvação" [Heilsgeschichte]. (...) A Historie humana
trataria daquilo que é provável, a História da natureza daquilo que é necessário, e a divina da verdade
da religião. Bodin, que orientava essa sequência nas três doutrinas do Direito, enxergava nelas uma
escala de certeza crescente. Mas no seu Methodus, só abordou a historia humana, colocando-se,
assim, na tradição da escrita temporal da História, como ela fora desenvolvida pela alta Idade Média
e pelo Humanismo. A História sagrada, na sequência, era tratada ou separada da Historie política ou
então, cada vez mais, como uma História secular das Igrejas, ou das doutrinas religiosas, ou ainda
totalmente integrada nessa História secular. Com isso, também a interpretação teológica de todos os
acontecimentos seculares foi perdendo cada vez mais sua força.” (p. 171)

“A inclusão da História sagrada [heilige Geschichte] na História do mundo [Weltgeschichte] vinha


sendo preparada pela historiografia eclesiástica protestante, na medida em que esta - sobretudo a
Escola de Göttingen, no século XVIII - tinha feito da Historia ecclesiastica uma História das
sociedades eclesiásticas e de suas opiniões doutrinárias. "Na História da Igreja, é, sem dúvida, muito
conveniente partir do pressuposto de que se deve visar, em cada um de seus períodos, ... àquilo que é
peculiar e característico das formas sociais a que se ligam ... e apenas seguir as relações que
estabelecem com elas”. Experiências extrassensoriais eram eliminadas em favor de fatos históricos
que podiam ser incluídos na perspectiva de uma moral que avançava ou, então, eram interpretados de
forma psicológica. A primeira experiência temporal historicamente imanente - a do progresso -
historicizou coerentemente também os dogmas, até agora considerados imutáveis. (...) Desde que a
História adquirira uma qualidade que se modificava no decorrer do tempo, também a historia sacra
podia ser interpretada, nesse sentido, de forma “histórica”, como a historia naturalis.” (pp. 172-173)

“O esquema reproduzido e reproduzível pela expectativa escatológica, com suas promessas e


realizações, desde sempre se prestara a atribuir ao transcurso temporal uma qualidade histórica no
sentido da unicidade e até da mudança para um nível ascensional. Também a conversão do futuro
escatológico em um processo que avança com o tempo foi impulsionada pelas expectativas
religiosas.” (pp. 173-174)

“O reino de Deus se tornou, ele próprio, um processo histórico, A convergência com um conceito
“secular” de progresso da História se realizou via inspiração recíproca. Isso acontece, por exemplo,
com Thomas Wizemann, que derivou o "plano" de Deus do “desenvolvimento histórico”: “O homem
está em eterno movimento, e cada recaída constitui um passo adiante no aperfeiçoamento do todo ...
Juntamente com sua História, seu conhecimento também avança e constitui verdade política e
teológica que o verdadeiro conhecimento efetivo só pode se tornar mais transcendente na medida em
que a História também se torna [mais transcendente]”.” (p. 175)

“Nas palavras de Karl Barth: "Toda História religiosa e eclesiástica se desdobra por completo dentro
do mundo. A assim chamada 'História da salvação', porém, só representa a permanente crise de toda
a História, não uma História ou ao lado da História". O componente progressista do conceito perdeu
importância, mas o momento processual, que deriva da presença existencial do juízo eterno, se
manteve, incluindo um legado da Teologia federal.” (p. 177)

“c) Da "historia universalis" à "História mundial" [Weltgeschicte]. A incorporação da natureza e


da historia sacra no processo histórico geral fez com que o conceito de História passasse a constituir
um conceito-chave da experiência e das expectativas humanas. O conceito de "História mundial"
[Welltgeschichte] se adequava muito bem a uma definição desse processo.” (p. 177)

“Em 1304, surgiu uma tal obra, que pouco depois recebeu o certeiro título de Compendium
historiarum. Historien deste mundo que tentavam unificar uma soma de Histórias individuais com
pretensões universais só surgiram - nas palavras de Borst - quando a imagem do mundo do povo
cristão de Deus se esfacelou. Na medida em que a conquista de terras no além-mar progredia, e a
unidade da Igreja se rompia, começam a se multiplicar os títulos histórico-universais, os quais
deveriam registrar e unificar as novas e heterogêneas experiências.” (p. 178)

“Uma década mais tarde, em 1785, já fazia uma avaliação retrospectiva: "Historie universal
antigamente não foi outra coisa do que 'uma misturança de alguns dados históricos"', que serviam aos
teólogos e aos filólogos como “ciência auxiliar”. Outra coisa era a História mundial [Weltgeschichte],
que agora assumira posição de destaque no título de sua obra: WeltGeschicltte [MundoHistória] –
Schlözer preferia essa forma de escrever, para caracterizar o caráter composto do conceito; "estudar
WeltGeschichte significa pensar como um conjunto as principais transformações da terra e do gênero
humano, a fim de reconhecer a situação atual de ambos, a partir de suas bases".

Com isso, Schlözer já citara os dois critérios que caracterizavam a nova História mundial:
espacialmente, ela se referia a todo o globo e, temporalmente, a todo o gênero humano, cujas
interconexões deveriam ser reconhecidas e explicadas, com vistas ao presente. (...) Pontos de vista
"cronológicos" e "sincronísticos'' - em termos modernos: diacronia e sincronia - devem se
complementar reciprocamente, a fim de classificar a História mundial de acordo com critérios
imanentes. Com isso, se tornam dispensáveis as quatro monarquias da profecia divina, e as novas
etapas derivam da importância que os "povos principais" e os "povos secundários" tiveram para a
História mundial. Apenas “as revoluções, não a História específica dos reis e dos soberanos, sim, nem
todos os nomes deles” contavam, como destacara Gatterer. "Na verdade, ela [História do mundo] é a
Historie dos acontecimentos maiores, das revoluções, refiram-se aos próprios homens ou aos povos,
ou a sua relação com a religião, o Estado, as ciências, as artes e aos ofícios; aconteçam em tempos
mais remotos ou mais recentes".” (pp. 179-180)

“Com isso, o novo campo semântico estava definido. Abrindo mão da transcendência, pela primeira
vez, o gênero humano foi encarado como o sujeito presuntivo de sua História, neste mundo.” (p. 180)
“Mas existe uma outra Historie universal [Universalhistorie] - simplesmente assim denominada-,
que também se chama de História mundial geral [allgemeine Weltgeschichte]". Ela trataria de todo o
gênero humano, e da "superfície da terra" como seu campo de ação. Ela mostraria, “por que o
gênero humano se tornou aquilo que realmente é, ou aquilo que ele foi, em cada período”.” (p.
181)

“As mudanças constitucionais e a expansão da Europa sobre todo o globo teriam tornado os
“intercâmbios mundiais” cada vez mais "entrelaçados", de forma que não seria mais possível escrever
a História de Estados individuais, já que a interconexão real perpassaria tudo. (...) Em 1783, foi
possível que uma tese de doutorado apresentada em Mainz iniciasse de forma enfática e assintática,
com as seguintes palavras: “O gênero humano chegou a um ponto em que, através de revoluções
conhecidas, foram derrubados os muros que separavam continente de continente, povo de povo,
e os diferentes setores humanos se fundiram num grande todo, o qual é avivado por um espírito
– o mesmo espírito que aviva a História - de que o mundo é um só povo, da mesma forma que
a História geral mundial [allgemeine Weltgeschichte] , motivo pelo qual ela deve ser tratada
como tendo utilidade e influência para o mundo”. A História educaria os povos, aos poucos, para
uma cidadania mundial geral, ampliando-se para uma História mundial [Weltgeschichte] . "Essa é
uma verdade que tem base na própria História”.” (pp. 181-182)

“O conceito de História moderna, que, por assim dizer, recorria a si mesmo para se definir,
procurava encontrar na "História mundial" sua âncora empírica.” (p. 182)

VI. “História” como conceito mestre moderno

“Quando Friedrich Schlegel disse, em 1795, que "o caminho e a direção da formação moderna
são determinados por conceitos dominantes", esse reconhecimento já pressupunha o moderno
conceito de História. Schlegel se serviu de uma série de determinações atuais de movimento,
todas abrangidas pelo conceito de História. Nessa medida, valia para a "História", em especial,
aquilo que Schlegel reivindicava para os conceitos dominantes: "Sua influência é imensamente
importante, decisiva". História somente pôde se tornar o 1noderno conceito mestre, porque, no
período do Iluminismo e através dos efeitos da revolução, todas as ações precursoras até então
descritas tinham influenciado esse conceito.” (p. 185)

1. Funções sociais e políticas do conceito de História


“A configuração do conceito moderno, reflexivo de História se deu tanto através de discussões
científicas quanto através de diálogos político-sociais do cotidiano. Quem fez a ligação entre os dois
níveis de diálogo foram os círculos do Bildungsbürgertum, a assim chamada burguesia culta
composta por intelectuais de formação acadêmica, seus livros e suas revistas, que foram aumentando
cada vez mais, no último terço do século XVIII, sendo seguidos, no século XIX, por inúmeras
associações e instituições. O surgimento de uma ciência histórica autónoma pode ser atribuído
a essa classe média intelectualizada, a qual, simultaneamente com o desenvolvimento de uma
consciência histórica, se apropriava de sua identidade. Nessa medida, a gênese do moderno
conceito de História coincide com sua função social e política - sem naturalmente se limitar a
ela. Gatterer se orgulhava de ser catedrático de História, sem precisar ser - como historiógrafo da
corte - servo de nenhum príncipe. A despeito de sua autoavaliação, as questões teórico-científicas
que ele formulou continuam tendo validade duradoura. Foi justamente o reivindicado caráter
científico do conceito de História que reforçou sua força integrativa social e política.” (pp. 185-
186)

“A ciência histórica, que alcançou seu auge na Alemanha, no século XIX, reuniu em si duas
etapas precursoras. Em primeiro lugar, a zelosa atividade de colecionar, e a elaboração de
ciências auxiliares, que vinham se desenvolvendo desde o Humanismo. Em segundo lugar, a
reflexão teórica e crítica com que o Iluminismo reagira a seus predecessores. Ambas as etapas
encontraram na historiografia alemã desde Niebuhr, sua frutífera síntese.

Com isso, a Historie conquistou seu espaço científico, à medida que foi se desligando da função
servil nas faculdades de Teologia e de Direito. O resultado desse ganho de autonomia se
evidenciou no último terço do século XVIII, quando também o novo conceito de História passou
a ser definido. Ele indica, por um lado, a conquistada autonomia da ciência histórica.
Paralelamente, por outro lado, "História" alterou sua posição dentro da linguagem política.”
(p. 186)

“A utilidade pragmática da escrita da História deveria beneficiar todos os estratos - como Abbt
já exigira -, e, no ano de 1765 , Christian Kestner fez, em Göttingen, a seguinte pergunta, muito
sugestiva: "Se a utilidade da nova História também se estende a pessoas privadas?" Evidentemente
"o historiador deve nos descrever o homem em sua totalidade, e não só nas raras situações especiais
em que ele domina povos e conquista países.” (p. 189)

“Do ponto de vista do conteúdo, colocaram-se, no século XVIII , ao lado da tradicional História das
Igrejas e dos Estados, aquelas áreas reivindicadas por Bacon, como História da literatura, Hístória da
arte e da técnica) do comércio, a História da ciência e a História da cultura; enfim - nas palavras de
Gatterer -, a História dos povos, que abrangia tudo. "Portanto, para falar a verdade, só existe uma
Historie, a História dos povos".

A nova sociedade civil se projeta como povo, como nação, e, por isso, Krug leva esse fator em
consideração, quando uniu o cosmos de todas as ciências históricas parciais - seria “prejudicial”
separar a História do Estado e do povo, "pois, em função da estreita ligação" entre ambos, "a
História de um sem a História do outro nem pode ser compreendida".” (p. 189)

“Depois que a “História” se transformara num conceito sobre o qual se refletia e que - explicando,
fundamentando e legitimando - estabelece uma ligação do futuro com o passado, essa sua tarefa
pôde ser percebida de diversas formas. Nações, classes, par tidos, seitas ou outros grupos de
interesse podiam - e até deveriam – recorrer à História, na medida em que a derivação genética da
posição que o respectivo grupo defendia lhe dava o direito à existência dentro do campo de ação
político ou social.” (pp. 189-190)

“''História'', portanto, de forma alguma, era apenas conhecimento especial que se restringia ao passado
e à sua memória, ela continuava politicamente ativa e apresentava seu desafio social frente aos
contemporâneos, qualidades que adquirira ao final do período iluminista. Por isso, Jacob Burckhardt
fundamentou em 1846 sua famosa fuga "para o belo e indolente sul" com o argumento de que esse
sul ''morreu para a História". A viagem à Itália, portanto, não representou uma fuga para a História,
mas, sim, para fora da História – na medida em que Burckhardt procurou se esquivar da aguda crise
política.” (p. 189)

“Após a fundação do império alemão, a disputa entre Treitschke e Schmoller mostra em que medida
pressupostos teórico-científicos - e metodológicos - assumem funções políticas e sociais, e podem
influenciar a forma em que são percebidas. Treitschke argumentava, a partir de pressupostos
aristotélicos, a favor de uma estabilidade da dominação, em confronto com uma social-democracia,
que Schmoller, por sua vez, tentava conquistar, a partir de teoremas histórico-social-evolucionistas e
reformistas.” (pp. 189-190)

“A utilização política direta da "História", que atingia um amplo público de ouvintes e leitores,
só foi possível porque a História foi entendida não apenas como ciência do passado, mas sim
como espaço de experiência e meio de reflexão da unidade de ação social e política que se tem
em vista. (...) Ou, numa formulação singela de Schopenhauer: "Somente através da História
um povo vem a se tornar plenamente consciente de si mesmo".” (p. 190)

“Marx ironizava aquelas "invocações dos mortos da História mundial" que apenas serviram para a
autoestilização política. "A revolução social do século XIX não pode buscar sua poesia no passado,
mas apenas no futuro ... As revoluções de antigamente necessitavam da lembrança da História
mundial, a fim de anestesiar seu próprio conteúdo. A revolução do século XIX deve deixar que os
mortos enterrem seus mortos, para chegar ao seu próprio conteúdo”. Mas ele próprio produziu
acuradas análises contemporâneas - como O 18 Brumário de Luís Bonaparte-, para instruir o
proletariado, a partir dos fracassos de revoluções anteriores, e treiná-lo no "espírito da nova
linguagem".” (pp. 190-191)

“Dependendo da posição, diferentes passados serviam - e continuam servindo - para a


autodefinição política e social, e para os prognósticos que podem fornecer. Mas esse aspecto
multifraturado dessa uma História não significa, de forma alguma, subjetivismo desenfreado
ou um Historicismo, como o caracterizou Theodor Lessing, em 1921: ele esconderia dentro de si "a
presunção adoidada ... de que o pensar um processo é o próprio processo". Pelo contrário, a
relatividade de juízos históricos na ciência e na política faz parte dos reconhecimentos que
ajudaram a constituir o conceito de História. Sem prejuízo para a busca da verdade por parte
da História, como ciência, a referenciação às condições de produção do conhecimento a respeito
de uma experiência ajudou a descobrir o mundo da História, no século XVIII.” (p. 191)

2. Relatividade histórica e temporalidade

“Em 1623 Comenius comparou a atividade dos historiadores com um olhar através de um binóculo
que, na forma curva de um trombone, tivesse voltado sua lente para trás. Assim se tentaria buscar
no passado ensinamentos para o presente e o futuro. Mas aquilo que impressionaria seriam as
perspectivas retorcidas, que mostrariam tudo sob uma luz diferente. Por isso, de forma alguma
seria possível “confiar ... que uma coisa realmente se comporta assim como ela aparece ao
observador". Cada um confiaria nos seus próprios óculos, e disso decorreriam disputas e
desavenças.” (p. 191)

“A transferência da teoria da perspectiva, vinda das ciências naturais, para a Historie ganhou
evidência no século das guerras religiosas e de seus libelos confessionais - na medida em que os
autores estavam dispostos a reconhecer posições dogmáticas como relativas. Mas isso não significava
que a nova posição, racional e supraconfessional, fosse relativizável. O antigo topos de que o
historiador deveria ser apolis, isto é apátrida, para poder servir à verdade e apenas relatar
"aquilo que aconteceu'', perpassa, como postulado científico e ético, todos os séculos.” (p. 192)

“Não foi essa inflexão metodologicamente antiga e imprescindível no procedimento da pesquisa de


tentar ser suprapartidário que construiu o mundo histórico. Pelo contrário, é a referenciação da
História a seus pr6prios pressupostos de conhecimento que resume a História moderna, tanto
no campo científico quanto no pré-científico, tanto no político quanto no social.
(...) Zedler escreveu de forma resignada que “seria difícil, quase impossível, ser um historiador
perfeito. Quem quisesse sê-lo deveria, se necessário, não pertencer a uma ordem, nem a um partido,
nem a uma pátria, nem a uma religião". Foi mérito de Chladenius ter demonstrado que exatamente
isso é impossível.” (p. 192)

“Chladenius partiu do princípio de que a História e a concepção a seu respeito costumam


coincidir. Mas para poder interpretar e julgar uma História, seria necessária uma separação
rígida: “A História é uma coisa, mas a concepção a seu respeito é diferente e múltipla”. Uma
História em si [Geschichte an sich] só seria pensável sem contradições, mas qualquer relato a
respeito sofreria quebras de perspectiva. “Aquilo que acontece na História é visto de diferentes
maneiras por pessoas diferentes”. Aquilo que seria decisivo seria se uma interconexão de
acontecimentos é avaliada por um interessado ou um estranho, um amigo ou um inimigo, um erudito
ou um leigo, um nobre, um burguês ou um camponês, por um revolucionário ou um súdito fiel. A
partir desse diagnóstico feito a partir do mundo da vida, Chladenius deduz duas coisas: primeiro,
a incontornável relatividade de todos os "juízos opinativos", de toda a experiência. Podem
existir dois relatos mutuamente contraditórios que reivindicam ser verdadeiros. Pois, "existe
uma razão para que reconheçamos as coisas de uma forma e não de outra, este é o ponto de
vista sobre uma mesma coisa ... Do conceito de ponto de vista decorre que pessoas que encaram
uma coisa de diferentes pontos de vista também devem possuir concepções diferentes da coisa
... ; quot capita, tot sensus”.

Em segundo lugar, Chladenius deriva de sua análise da testemunha ocular e do seu comportamento o
perspectivismo da pesquisa e da representação posteriores. É claro que, através do questionamento
adequado de testemunhos contrários e através da busca por evidências, deve-se tentar reconhecer a
própria História [Geschichte selbst] - com que também Chladenius reconhece um moderado ideal
realista de conhecimento -, acontecimentos do passado jamais poderiam ser reconstituídos em
sua totalidade, através de qualquer representação.” (p. 193)

“Desde a História vivida até a História cientificamente elaborada, "História" sempre se


concretiza numa perspectiva que possui sentido e que cria sentido, perspectivas nas quais uma
remete à outra. Desde Chladenius, os historiadores estavam mais seguros do que até então para
ver na plausibilidade uma verdade própria, exatamente uma forma histórica de verdade. E
como devessem ter seu ponto de vista [Sehepunkt], também tiveram a coragem de assumir
aberta e conscientemente um “posicionainento” [Standort]. (...) Dessa forma, a visão de
Chladenius se transformou num lugar-comum.” (p. 194)

“E Chladenius deu mais um passo adiante ao diferenciar o perspectivismo em relação à História


da “narrativa partidária”, que, contra "o saber e a consciência", “'distorce e obscurece, de forma
premeditada", os acontecimentos ... Uma narrativa apartidária também não pode significar o
relato de uma coisa sem pomo de vista, porque isso, simplesmente, não é possível; e narrar
partidariamente não pode significar narrar uma coisa e uma História de acordo com seu ponto
de vista, porque, nesse caso, todas as narrativas seriam partidárias”.

Com essa constatação de que a formação de juízo perspectivista e o partidarismo não são idênticos,
Chladenius traçou uma moldura teórica que até hoje não foi ultrapassada.” (p. 195)

“Finalmente, não só a distância temporal crescente em relação ao passado foi vista como
constitutiva para sua mudança. Também se deduziu que com a distância temporal crescente
aumentavam as possibilidades de conhecimento. Com isso, também a testemunha ocular, que
até então ocupava uma posição privilegiada - ainda que já relativizada por Chladenius -, perdeu
sua posição como fonte principal: a lembrança do passado não é mais mantida através da
tradição oral ou escrita, ela é, muito antes, reconstruída através de um processo crítico. “Cada
grande acontecimento está envolto numa névoa para os contemporâneos sobre os quais ela age de
forma direta, névoa que vai se dissipando aos poucos, muitas vezes depois de algumas gerações”.
Uma vez decorrido tempo suficiente, o passado aparece graças à "crítica histórica", que sabe
calcular as exigências de verdade do espírito de partido, "sob uma forma bem diferente".” (p.
196)

“Quem pleiteia "a imutabilidade do sistema eclesiástico", na sua História, estaria incorrendo em
preconceitos e servindo a interesses hierárquicos de dominação. Estaria impedindo o desdobramento
moral da religião cristã, "e não pode haver ... pecado maior contra toda a verdade histórica".” (p. 197)

“Desde que se estabeleceu a perspectiva temporal de seu desenvolvimento, surgiu da verdade


histórica-relativa uma verdade superior. Pressuposto dessa posição superior foi a alteridade
perspectivista, e - daí decorrente, como em Semler - efetiva do passado, medida pelo presente e
pelo futuro. "Que a História do mundo precisa ser reescrita de tempos em tempos, sobre isso
creio que não resta mais dúvida, nos dias de hoje" - escreveu Goethe, pouco depois. "Mas tal
necessidade não decorre do fato de que tenha sido descoberta muita coisa nova, mas do fato de
que aparecem novas concepções, porque o cidadão de um tempo que progride é levado a
posições a partir das quais aquilo que passou é visto e avaliado sob uma nova forma". (...)
Goethe expressara uma experiência histórica que crescia vagarosamente e se acumulava desde
Chladenius: que a referência a uma posição é constitutiva para a experiência histórica, bem como
para o conhecimento histórico. Com a temporalização dessa História rompida em função da
perspectiva, se tornou necessário refletir também sobre o próprio posicionamento, já que ele se
modifica dentro e com o movimento da História. Essa experiência foi confirmada com os
acontecimentos que se desenrolaram na Revolução Francesa: foram eles que forçaram
concretamente a se tomar partido. É por isso que Friedrich Schlegel exige uma reflexão aberta a
respeito do próprio posicionamento. Ele pedia que o historiador apresentasse, “de coração
aberto”, “suas opiniões e seus juízos, sem os quais não se consegue escrever nenhuma História,
ao menos uma História expositiva” bem como apresentasse seus princípios básicos a respeito
do Direito e da fé. “Não se deve acusá-lo de partidarismo, ainda que sejamos de opinião diferente” -
acrescentou, no mesmo sentido de Chladenius”.” (pp. 197-198)

“Naquilo que tange à aporia que se abre entre a busca por verdade e seu condicionamento histórico,
Schlegel contornou a posição de Hegel. Hegel queria, por um lado, levar em consideração "a
totalidade de todos os pontos de vista", ao apresentar sua História filosófica do mundo. Por outro
lado, exigiu a irrestrita tomada de partido a favor da razão, a favor do Direito. Somente ela poderia
querer reconhecer a verdadeira História, “ela toma partido pelo essencial. [...]. Uma sabedoria antiga
diz que se deve proceder de forma histórica”. A exigência de apartidarismo só teria sentido
enquanto se tentasse proteger aquilo que se encontrou contra juízos unilaterais. Mas ampliar o
apartidarismo a tal ponto que o historiador seja relegado ao simples papel de "espectador" –
que relataria tudo, sem qualquer objetivo - significaria transformar o próprio apartidarismo
em algo sem sentido: "Sem juízo, a História perde seu interesse".” (p. 199)

“Contra essa identificação do posicionamento com uma tomada de posição política, Ranke defendeu
uma posição que ficava num outro extremo, a - aparente - abstração temporal da ciência histórica:
"Gervinus (diz ele no necrológio) repete muitas vezes a intenção de que a ciência deve intervir na
vida. É verdade: Mas, para ter efeito, ela deve ser, em primeiro lugar, ciência; pois é impossível que
se assuma uma posição na vida, e transferir essa posição para a ciência - nesse caso a vida age sobre
a ciência, e não a ciência sobre a vida ... Só podemos exercer um verdadeiro efeito sobre o presente,
se, antes disso, abstraímos dele, e nos colocamos numa posição elevada de uma ciência livre e
objetiva". Ranke buscava, em última instância, desvencilhar-se do condicionamento histórico de seus
juízos históricos, ao refutar, categoricamente, qualquer “intenção que enxerga tudo aquilo que passou
sob o ponto de vista do dia de hoje, sobretudo, porque esse muda constantemente”. Para Ranke, o
condicionamento histórico se manteve como uma restrição ao conhecimento histórico.” (p. 200)

“Que a perspectiva temporal se referia a um movimento que sofria modificações constantes e,


no final, se acelerava, isso já fora formulado, de forma muito clara, por Lorenz Stein, em 1843.
Há 50 anos, a vida estaria se acelerando. "Tem-se a sensação de que a historiografia não consegue
mais acompanhar a História. E mesmo assim, numa análise mais precisa, se verifica que é
justamente o contrário que acontece. Da mesma forma como todas aquelas diferentes formações
surgiram, de repente, elas podem ser abarcadas numa única visualização. E a mais importante
diferença desse período em relação ao anterior, é que nele o juízo correto depende muito mais
da posição, e no anterior dependia muito mais do conhecimento histórico”.

Stein aceitara o condicionamento histórico da respectiva posição corno pressuposto do


conhecimento histórico. Pois se os próprios ritmos de tempo da História se modificam, há
necessidade de perspectivas que lhes sejam adequadas. Por isso, Stein procurou conhecer as leis
do movimento da História, isto é, da Era Moderna, para poder derivar delas um futuro, que ele
queria, ao mesmo tempo, influenciar, através do esclarecimento de sua posição. O diagnóstico
consegue arriscar melhor um prognóstico, quando se certifica de seus condicionamentos e de
seus limites históricos. Enquanto a História de antigamente estava preparada para todo tipo de
surpresas, já que suas Histórias não sofriam nenhuma modificação fundamental, a Era
Moderna parece despreparada para surpresas, porque o futuro não pode mais ser derivado de
forma não mediada da experiência do passado. (...) Com isso, o perspectivismo histórico se
transformou, por completo, de uma "categoria de conhecimento" em uma determinação
fundamental de toda a experiência e de todas as expectativas, que tem sua origem na própria
História. A diferença temporal entre passado e futuro conquistou sua qualidade própria, uma
qualidade histórica, que só pode ser avaliada através de abordagens que guardam a consciência.
de sua relatividade, de sua "temporalidade". Por isso, um contemporâneo procurou “sua salvação
... unicamente ... na compreensão e na utilização de nosso próprio tempo, que é instrutivo, porque não
mais recebe, como o tempo passado, uma História feita, para transmiti-la, sem modificações, aos
descendentes”.” (pp. 200-201)

“Com cada novo futuro, surgem novos passados. "Não se pode nem prever o que um dia ainda será
História. O passado talvez continue fundamentalmente não descoberto! Ainda necessitamos de tantas
forças retroativas!" (Nietzsche).” (p. 202)

3. A irrupção do distanciamento entre experiência e expectativa

“A História - escreveu Novalis, em 1799 - se compõe de coisas do passado e de coisas do futuro,


de esperança e de lembrança. Essa equação clara se transformou num problema. O
perspectivismo temporal derivou de uma História que parecia se afastar, com velocidade
crescente, de seus dados prévios. A experiência de uma ruptura que estaria separando, de forma
violenta, as dimensões do passado e do futuro, a consciência de um período de transição está
amplamente registrado, desde a grande revolução. Desde então, também vão se afastando os
enfoques em direção a um futuro a ser criado, por um lado, e um passado que vai se perdendo
cada vez mais, que só pode ser reconquistado historicamente, por outro lado, - ainda que
inicialmente ambos ainda sejam cobertos pelo conceito de História. No decorrer do século XIX,
vai se desenvolvendo certa distinção que atribui a dimensão de futuro mais ao "progresso", e a
dimensão do passado mais à "História'', ainda que esse par de conceitos, de forma alguma, fosse
utilizado exclusivamente de maneira antitética. Na História pensada como "Entwicklung'' como
“evolução” ou como ''desenvolvimento", ambas se juntaram.” (p. 202)

““Quanto mais a História compacta os fatos que se sucedem, tanto mais intensa e geral será a disputa”.
Períodos anteriores conheceram mudanças de rumo que se estenderam por séculos: “nosso tempo,
porém, reuniu aquilo que era totalmente irreconciliável dentro das atuais três gerações, convivendo
simultaneamente. As enormes contradições dos anos 1750, 1789 e 1815 dispensam a transição, e não
aparecem como algo em linha de sucessão, mas como algo simultâneo dentro dos homens que vivem
nesse momento - dependendo se são avós, pais ou netos". Com esse diagnóstico da
contemporaneidade do não contemporâneo, Perthes estabeleceu um parâmetro para a "incrível
velocidade" da mudança.

A experiência existencial de um passado que ia se afastando cada vez mais rápido desencadeou, em
sentido inverso - e, por assim dizer, de forma compensatória -, em todo lugar, "prazer e simpatia para
a História.” (p. 203)

“As três dimensões do tempo pareciam se desagregar. O presente seria muito veloz e provisório.
"Falta-nos um ponto fixo, a partir do qual os fenômenos pudessem ser encarados, avaliados e
permitissem conduzir até nós" - escreveu Rist [a Perthes]. (...) E Poel confirmou: "Em todas as
instâncias da vida - na civil, na política, na religiosa e na financeira -, a situação não é provisória?
Mas o objetivo da História não é o vir a ser, mas sim aquilo que já é". Seria cada vez mais difícil
reconhecer isso, porque o futuro se modificaria de forma cada vez mais rápida. "Onde está o homem
que consegue enxergar os enormes processos de mudança, ainda que apenas na penumbra? O
processo de mudança" seria muito profundo, para que se pudesse escrever agora já uma História do
passado. (...) A "História" dos historiadores - ao contrário da linguagem de nosso editor - foi, portanto,
associada à durabilidade. Em outras palavras, a aceleração da História atrapalhava os
historiadores na sua profissão. Na verdade, porém, ela alterou a direção de seu trabalho - eles
se atiraram a uma pesquisa que deveria reconstruir um passado que estava se perdendo. (...) A
fundação da "História" como pesquisa rigidamente metodológica do passado - como Hegel já
a ironizara - se dá exatamente nesses anos em que as experiências tradicionais tinham cada vez
menos a ver com as expectativas do futuro que iam surgindo e ganhando espaço.” (pp. 204-205)
“(...) a Revolução Francesa traçara um “limite sangrento entre passado e futuro” que rompeu
de forma perspectivista o conceito de História, e lhe deu um rosto de Jano, dependendo da direção
em que era apontado. Immermann, envolvido na discussão atual sobre literatura histórica, distinguiu,
na época, três estágios de um acontecimento histórico: a primeira fase de seu surgimento como
“mítica”, a segunda, do acontecimento em si, ele chamou de “histórica”, e, finalmente, a
terceira, de historiográfica. “Aí a História propriamente dita acaba, e se entra na pesquisa
histórica”.” (p. 205)

“Dessa forma, o conceito de História varia correspondentemente à experiência de ruptura que o


determina. Por um lado, podia não apenas se referir à durabilidade do passado em processo de
desaparecimento, mas também requerer a preocupação permanente com o futuro, indicando o rumo
a ser seguido.” (p. 206)

“Assim, o conceito de História teve de servir para cobrir todas as extensões temporais - desde a
expectativa de futuro, sem base na experiência, até a pesquisa sobre o passado, destituída de qualquer
expectativa. O terceiro componente - aqui não abordado -, que tentou mediar ambas as coisas
através do conceito de “evolução”, foi o mais utilizado na linguagem cotidiana do século XIX.
(...) De qualquer maneira , a diferença entre experiência e expectativa induziu a uma tensão temporal
permanente da qual parecia emanar "História" em sua unicidade.” (pp. 207-208)

“Feuerbach designa como "Historicismo", nos anos 1840, “uma consciência deformada por uma falsa
relação com a História”, e pôde chamar o historiador Heinrich Leo "a inveja personificada do
Historicismo contra as gotas sadias de sangue do presente".” (p. 208)

“Também a terceira posição, que dava destaque ao contexto do desenvolvimento geral, pôde ser
designada de "Historicismo": “o verdadeiro Historicismo” estaria fundamentado nas doutrinas
de Lessing e de Kant, e entenderia "a História do mundo [Weltgeschichte], no sentido mais
amplo, como um todo, como o desenvolvimento necessário de um processo, unitário e em acordo
com leis racionais" - essa foi a definição dada em 1852 por Felix Dahn, ao se referir a seu
professor Prantl.” (pp. 208-209)

“Evidentemente, faz parte do conceito moderno de História a ideia de que ele desde o início era
passível de se tornar ideológico e, por isso, também ser questionado a partir de uma crítica da
ideologia. Essa ambivalência – que estava contida nos diferentes significados apresentados - o
conceito compartilha com os demais conceitos mestres da modernidade.” (p. 209)

4. “História” entre ideologia e crítica da ideologia


““A História é invocada como árbitro, mas apenas aparentemente, pois, na verdade cada um só utiliza
os fatos históricos como meio para fundamentar e justificar, de forma sofistica, sua já existente
opinião inabalável” - essa observação foi feita pelo conde Cajus Reventlow em 1820, quando
descreveu o então desencadeado debate sobre a nobreza. Acontece que a utilização de argumentos
históricos faz parte desde sempre da retórica para reforçar posições jurídicas ou sociais,
teológicas, morais ou políticas. Mas tais argumentos adquiriram maior peso quando a História
conseguiu galgar a posição de um tipo de última instância para fundamentar algo.
Simultaneamente, esses argumentos perderam seu caráter inequívoco, porque de imediato
resvalaram para as linhas de fuga perspectivistas, que caracterizaram o conceito moderno de
História. Comprovações históricas incorreram em ambiguidades, desde que “História” se
transformou num conceito reflexivo. Elas podiam ser utilizadas para criticar ideologias, mas
podiam, na mesma medida, sucumbir à ideologia.” (pp. 209-210)

“Mas como se poderia evitar a arbitrariedade a não ser revelando as premissas teóricas? Não
fazê-lo, invocando “a História” - foi a acusação critico-ideológica que Karl Heinrich Hermes
formulou, em 1837, contra a Escola Histórica. "Existem poucas expressões na nossa língua com
que se pratica um abuso tão criminoso quanto a palavra ‘histórico’. História, como se sabe,
chama-se tudo aquilo que acontece e vai acontecer" - a dimensão do passado é cuidadosamente
excluída por Hermes. Mas não é aí que reside o cerne de sua posição, ele destaca o mais alto
grau de generalidade que caracterizaria o conceito de História, de fornia que ele, a rigor, não
permite excluir nada. "Da mesma. forma que, ao final, não existe nada que ficasse fora da História,
também não existe nada que não fosse histórico em um ou outro sentido".” (p. 211)

“Por que a evolução seria mais histórica que a revolução, o surgimento mais que o
desaparecimento? Por que se poderia afirmar - com Steffens – “que tudo aquilo que a História
quer conosco aconteceria de forma inconsciente”? Aí só valeria como histórico aquilo de que
não sabemos como e por que acontece.” (p. 211)

“A controvérsia em torno de História, em especial em torno do seu conceito, não era só uma
controvérsia metodológica, teóricocientífica ou científico-política. Ela atingiu de forma profunda a
dimensão política e social do campo linguístico, pois o conceito carregava dentro de si - como
conceito geral de movimento - aquela força integradora e distanciadora que podia motivar ações
políticas. Isso fica claro na política de censura e no movimento que a ironizava, o lirismo político.

Tão logo as massas estamentalmente desarticuladas desafiaram para uma nova organização social e
política, cresceu o papel do ensino da História.” (p. 212)
“Quanto mais funcional em relação a interesses políticos a "História" era utilizada, tanto mais
ela se expunha a falsificações de princípio - nem sempre propositais -, a uma ideologia, à qual,
por simples razões de automanutenção moral daqueles que utilizavam o vocábulo, ela parecia
não poder fugir.” (p. 213)

““História” servia tanto para convocar para a luta quanto podia servir para a integração social.
Afinal, num mesmo contexto, o conceito foi utilizado para amenizar e acalmar”.” (p. 214)

“Nessa situação de utilização do conceito em sentidos opostos e divergentes, Marx produziu uma
crítica ideológica que decifrava a utilização linguística dominante a partir de uma teoria
própria da História. Marx ironizou Bruno Bauer perguntando como poderia recorrer à
História "para servir de ato de consumação do banquete teórico, de prova". E formulava a
pergunta sugestiva sobre que História seria essa upara que a verdade atingisse a consciência. A
História se transforma, assim, como a verdade, em uma pessoa à parte, um sujeito metafísico,
cujos portadores são os efetivos indivíduos humanos". E Marx mostra isso à mão de uma série de
frases: “A História não permite que se zombe dela; a História investiu seus maiores esforços em; a
História tem sido ocupada com; para que serviria a História?" etc.” (p. 215)

“Pelo contrário, a consciência, desde o início, "já é um produto social", motivo pelo qual constituiria
“ilusão dos ideólogos”, esses "fabricadores da História", querer escrever a História a partir de ideias
mestras ou de conceitos dominantes. Conceitos dominantes indicam classes dominantes.” (p. 215)

“Marx tentou juntar no seu pensamento aqueles dois polos que na linguagem comum sempre foram
utilizados de forma unilateral e, assim, prejudicados: a factibilidade da História, por um lado, e o
superpoder que exerce sobre os homens, por outro lado. Marx juntou as duas coisas: "Os homens
fazem a sua própria História, mas eles não a fazem livremente, não sob condições escolhidas,
mas sim sob condições encontradas, dadas e transmitidas".” (p. 216)

“Ao contrário dessa premissa teórica, a linguagem cotidiana costuma se mover em um desses níveis,
abrindo, com isso, flancos que podem ser apontados numa crítica ideológica. A História é ou
desclassificada como simples produto da ação humana ou substancializada e adquire um caráter
supra-humano.” (p. 216)

“A utilização como palavra de ordem torna confusa a distinção entre a História narrada e a que
se cria por si mesma - e, em beneficio da ideologia, certamente também precisa estabelecer certa
confusão.” (p. 217)

“O "poder da História", de que falava Droysen para caracterizar sua força supraindividual, moral, foi
ampliado, modificado, como conceito, porque ele aparentemente se manteve insubstituível. Foi
exatamente a palavra de ordem que evocava expectativas e ordenava experiências, cujas qualidades
comuns supra ou inter-humanas não podiam ser designadas de outra forma. "História" se
transformou num desaguadouro de. todas as ideologias imagináveis. Isso fica ainda mais claro
quando se mostra o outro plano argumentativo, a factibilidade da História.

A mesma expressão “História” podia designar um conjunto de objetos de ações humanas


seguras de si. (...) Admitir essa multiplicidade semântica dentro de um conceito significa aceitar
argumentos passíveis de ideologização, a não ser que se admita como legítimo que uma palavra
de ordem foque de forma misturada situações de ânimo e desejos.

A "História como ação" constitui uma versão em franca contradição com significados verbais que
também queriam dizer " destino". Também essa versão só se tornou viável depois que a expressão
desembocara no coletivo singular. Desde então, "História" também podia se tornar factível - e
não no sentido de sua narrativa – na forma em que Eichendorf confronta o sentido novo com o
antigo: um faz a História, o outro a registra".” (pp. 217-218)

“A História que "aconteceu antigamente, e em certo sentido se passava com os homens, só podia ser
vista como campo de ação, como factível e como produtível, depois que fora elaborada pelo idealismo
alemão como processo de autorrealização humana.” (p. 218)

“Para Scheidler, que transmitiu o legado do idealismo alemão para a burguesia alemã, não havia
dúvida a respeito. "É por isso que somente o homem possui uma História no verdadeiro sentido; pois
suas ações não estão presas dentro de determinado ciclo, como o do animal''. Só o homem pode dar
uma direção à sua vida, “fazer” a sua "própria" História.” (p. 219)

“O coletivo singular “História”, como categoria transcendental, sempre estava referido à ação. Não
só a descoberta da "História", em especial o desvendamento de uma História factível, faz parte do
selo do mundo burguês que despontava.” (p. 219)

“A desistência em relação à possibilidade de planejamento de transcursos históricos faz com


que, de imediato, se manifeste o outro complexo de sentidos do desenvolvimento de longo prazo
que está embutida no conceito de História. Dessa forma, a utilização da palavra, em especial o
alinhamento das possibilidades polares de seu significado, pode representar um teste de utopia.”
(p. 220)

“A uma conclusão oposta chegou Engels; quando anunciou a "organização conscientemente


planificada” do futuro. "As estranhas forças objetivas que até agora dominavam a História ficam
submetidas ao controle dos próprios homens. Somente a partir daí, os homens farão a própria História
com plena consciência ... Será o salto da humanidade do reino da necessidade para o reino da
liberdade".” (p. 221)

“Hitler e seus assedas se excediam na utilização da palavra “História”, a qual tanto era evocada como
destino quanto vista como factível; mas a inconsistência da versão propagandística revela, por si
mesma - quando questionada a respeito -, seu conteúdo ideológico. (...) "Em última instância, é
indiferente quantos por cento do povo alemão fazem História. O que importa é que os últimos que
fazem História na Alemanha somos nós". Não havia forma melhor para formular os autoultimatos
sob cuja coerção Hitler fazia política e, com isso, imaginava fazer História, E ele, de fato, fez
História - mas diferente do que ele imaginava.” (p. 221)

“Assim, o sentido plural do moderno conceito de História - ao poder realizar um movimento


pendular entre factibilidade e superpoder - abre uma brecha para sua utilização ideológica.
Mas no mesmo diagnóstico linguístico estão contidos critérios para desmascarar o caráter
ideológico dessa utilização.” (p. 222)

VII. Perspectiva – Reinhart Koselleck

“A ambiguidade fundamental elo conceito ele História, desde seu surgimento, teve influência
profunda sobre a linguagem cotidiana da política. A possibilidade ele sua afetação por
sentimentos enfáticos, e sua utilização para fins ideológicos, tem suas raízes na formulação da
palavra no coletivo singular. Como categoria transcendental, ela abrange, simultaneamente,
Historie e História; o conceito “História” passa por uma escala cambiante de experiências
possíveis: espaço de ação e processo, progresso e evolução, criação de sentido e destino,
acontecimento e ação. Parece que o velho sentido de narrativa foi empurrado para a margem.”
(p. 223)

“Ao confrontar critérios internos da atividade científica e seus efeitos para fora, Nietzsche constatou
a existência de três tipos de Historie: a antiquária, a monumental e a crítica. Vista como funcional
em relação àquilo que ele chamava de vida, a Historie como um todo apareceu como sintoma de
senilização, como empecilho para a vida. Por essa razão, Nietzsche exige - e isso não acontece sem
consequências - da juventude a coragem para "o ahistórico e o supra-histórico".” (p. 223)

“Desde então, são oferecidas posições alternativas de tipologização, provindas da natureza e da


Antropologia', sem que uma deshistorização da consciência geral ou até da ciência tenha tido um
sucesso efetivo.
A tentativa multifacetada de Dilthey de fazer uma crítica da razão histórica continua
projetando sua influência profunda para dentro das ciências sociais e humanas [Sozial- umd
Geisteswissenchaften], aparentemente mais profunda que o enfoque teórico-científico dos
neokantianos de garantir para a ciência histórica um genuíno campo de conhecimento, ao lado
das ciências da natureza.” (p. 224)

“O ataque mais forte contra o conceito de "História" ocorrido até agora talvez tenha sido formulado
por Mauthner, que partia do pressuposto de que o Historicismo bem como a expressão “História”
somente são possíveis desde Kant, mas que, ao mesmo tempo, já foram superados com Kant. Teriam
sido frustradas as buscas por leis históricas. Mas os conceitos costumariam sobreviver como
fantasmas às coisas por eles designadas.” (p. 225)

“Por fim, deve-se lembrar que, desde a Segunda Guerra Mundial, pela primeira vez,
ingressamos na etapa da História mundial global, cujos centros de ação se espalham de forma
pluralista da Europa para o globo. É evidente que, com isso, se desenham novas Histórias, que,
porém, acabam criando um novo espaço de experiência comum. Com isso, dentro da ciência
histórica, também a velha História dos acontecimentos deverá manter, sem grande contestação,
sua tarefa, ao lado da qual se estabeleceu a História social, como ramo próprio de pesquisa, a
fim de investigar as mudanças de longo prazo e as estruturas duradouras. O que é certo é que
o conceito de História não será capaz de resolver o assim chamado enigma da História.” (p. 225)
GINZBURG, Carlo. Medo, reverência e terror. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

“Seu país precisa de você”: Um estudo de caso em iconografia política

“Uma historiografia que fosse atenta às sombras da memória — essas imagens adormecidas que
saltam espontâneas para a vida e que servem como sentinelas fantasmagóricas de nosso pensamento
— poderia pelo menos dar tanta atenção às imagens quanto aos manuscritos ou impressos. O visual
nos oferece nossas imagens armazenadas, nossos pontos subliminares de referências, nosso inaudito
ponto de contato.” (p. 40)

“Um soldado insensível, impiedoso, implacável; um organizador militar hábil; um servidor fiel do
Império Britânico através dos continentes — da África à Austrália, à Índia. Este era o homem
convocado pelo Times em 3 de agosto de 1914 para desempenhar o papel de ditador no verdadeiro
sentido romano: o soldado vitorioso pronto a servir seu país em tempo de perigo.” (p. 42)

“Embora o estouro inicial do recrutamento tenha declinado aos poucos, nos primeiros dezoito meses
de guerra, antes da adoção do serviço compulsório, “os exércitos de Kitchener” ou as “divisões de
Kitchener” (mesmo alguns documentos oficiais usaram esses termos) subiram para 2,5 milhões de
homens — um número muito elevado, que os obituários de Kitchener transformaram em 5 milhões.

Esse fenômeno maciço destruiu por fim a distinção entre o Lord Kitchener do cartaz e o Lord
Kitchener general, contribuindo para a vitória do primeiro sobre o segundo. Seus olhos, mirando fixos
a partir dos cartazes ubíquos, causavam uma profunda impressão em seus contemporâneos. “A cor
deles é muito bonita”, escreveu um jornalista, “um azul profundo e claro como o mar, em seus
momentos mais límpidos — e eles olham para o mundo, com a perfeita autenticidade de um homem
que mira diretamente para seu objetivo.”.” (pp. 43-44)

“Voltarei ao olhar de Kitchener mais adiante. Por enquanto, vamos nos deter no impacto do cartaz.
Uma fotografia do Arquivo do Museu Imperial da Guerra mostra um grupo de voluntários que
responderam ao chamado às armas de Kitchener. Um leitor cuidadoso dessa imagem salientou a
mistura social dos recrutas: Num grupo de meia dúzia de voluntários podem ser vistas pelo menos
três classes, cada uma identificada pelo chapéu apropriado: “o boné [cloth-cap] do trabalhador; o
chapéu de palha [straw-boater] do “importante” ou “rico”; o chapéu de feltro [trilby] do homem de
negócios ou profissional”.

Esse comentário parece irrepreensível, mas levanta outra questão. Como os centros de recrutamento
se localizavam em diferentes áreas, a mistura social representada na imagem teria sido improvável
— exceto numa foto encenada.20 Nesse caso, o comentário tornaria explícita uma mensagem
deliberadamente subliminar — para usar as palavras de Raphael Samuel. Receberíamos a mensagem,
isto é: que diferentes grupos sociais responderam igualmente ao apelo de Lord Kitchener, mas não
teríamos o código. Mesmo a propaganda, uma linguagem supostamente clara por si mesma e
transparente, precisa ser decifrada.” (pp. 44-45)

“A representação da autoridade atuava como a própria autoridade. Uma descarga de energia social
ocorreu; um comando foi introjetado e se transformou numa decisão que era, literalmente, questão de
vida e morte.” (p. 45)

“Essa eficácia tem sido em geral considerada como algo indiscutível — evitando uma análise mais
minuciosa dos mecanismos visuais e verbais envolvidos. Como o cartaz atuava?

“A ferramenta que usarei para responder a essa pergunta é a noção de Aby Warburg de
Pathosformeln, fórmulas de emoções.24 Por muito tempo, o legado de Warburg — sua biblioteca e
o instituto a ela ligado — obscureceu a importância de seus próprios textos. Durante as últimas
décadas, as ideias seminais que ele desenvolveu no final do século XIX e no início do XX se tornaram
cada vez mais influentes. A ideia de Pathosformeln, uma das mais importantes delas, foi apresentada
por Gertrud Bing, eminente estudiosa que foi diretora do Instituto Warburg, nos seguintes termos:
[…] foi a cultura pagã, tanto no ritual religioso quanto nas imagens, que forneceu a expressão
mais impressionante dos impulsos elementares [Pathosformeln]. As formas pictóricas são
mnemônicas por tais operações; e podem ser transmitidas, transformadas e restauradas numa
nova e vigorosa vida, sempre que impulsos congêneres surgem.” (pp. 45-50)

“Cartazes que convocam recrutas são vistos em todo tapume, na maioria das vitrines, em ônibus, trens
e caminhonetes comerciais. A grande base do pilar de Nelson está coberta por eles. Seu número e sua
variedade são dignos de nota. Por toda parte Lord Kitchener aponta com gravidade um dedo
monstruosamente grande, exclamando: QUERO VOCÊ.” (p. 51)

“Mont Abbott nunca ouviu falar de Plínio, o Velho. MacDonagh e Davray certamente não estavam
pensando nele quando comentaram o cartaz de Kitchener. Todavia, quando lemos as palavras “de
qualquer ângulo que se observasse, os olhos se encontravam com os do espectador e nunca o
deixavam”, podemos nos perguntar: que imagem está sendo descrita aqui, a de Minerva ou a de Lord
Kitchener? Quem está apontando um dedo monstruosamente grande, Lord Kitchener ou Alexandre,
o Grande? Esses ecos recapitulam a trajetória histórica que vou esboçar.” (p. 51)

“Antonello partiu de um tipo iconográfico venerável, o chamado Salvator Mundi (o Salvador do


Mundo), uma figura que “via o espectador independentemente de onde este estivesse olhando”, e
incluía o gesto de abençoar representado por inúmeros ícones.” (p. 52)
“Em minha opinião, Antonello foi inspirado pela passagem de Plínio sobre Alexandre, o Grande,
representado como Zeus: “os dedos parecem se projetar a partir da superfície, e o raio dá a impressão
de estar fora da pintura” (digiti eminere videntur et fulmen extra tabulam esse). A História natural
de Plínio apareceu em latim em 1469. A primeira tradução italiana foi publicada em Veneza, em
1476, pelo impressor francês Nicolas Jenson. Esse imenso esforço de publicação, de
aproximadamente mil fólios, envolveu longas preparações. A tradução de Cristoforo Landino deve
ter estado disponível em Veneza em 1475, quando Antonello, recém-chegado da Sicília, revisou e
assinou sua pintura.” (p. 52)

“Podemos interpretar o dedo apontado de Kitchener como uma versão secularizada e escorçada do
gesto horizontal de Jesus na pintura de Caravaggio? Afinal, em ambos os casos temos um chamado
— um chamado às armas, um chamado religioso. No entanto, as duas imagens são tão diferentes em
seu arranjo formal que se supõe que alguns (talvez muitos) vínculos se perderam nesse intervalo de
tempo. Não consegui encontrá-los. Minha conclusão provisória seria a seguinte: o cartaz de Lord
Kitchener pôde surgir porque duas tradições pictóricas interligadas existiam, envolvendo figuras
frontais que veem tudo, bem como figuras com dedos apontados em escorço.” (p. 61)

“Artifícios técnicos não eram menos importantes. Entre eles Bridgewater salientava “o valor da
perspectiva”: Por meio de apreciação e uso adequados da perspectiva, um artista pode retratar uma
paisagem que se estende por uma grande área (possivelmente milhares de milhas quadradas) em
poucas polegadas quadradas. Um dedo em escorço podia também demonstrar o valor da perspectiva.
Um VOCÊ igualmente agressivo podia reforçar a mensagem. “O estilo ‘você’ de publicidade também
cria uma grande dose de atenção”, escreveu S. R. Hall em seu Writing an Advertisement [Escrevendo
para publicidade] (Boston, 1915): Certos redatores eram capazes de atrair atenção e bons resultados
por um vigoroso estilo de matéria dirigida ao leitor como uma carta o seria, em que o pronome “você”
era livremente usado. Era “Você, caro Leitor”, “Você precisa disto” e assim por diante.” (p. 63)

“Um escritor recentemente sugeriu que o Tio Sam, a contraparte americana de Lord Kitchener, era
“uma forte figura de autoridade com a qual o espectador podia se identificar”.56 Mas era possível se
identificar com uma figura tão autoritária? O olhar severo, o dedo apunhalador, a perspectiva como
que vista de baixo devem ter com frequência despertado uma sensação de pavor, de distância
hierárquica, de submissão. Mesmo um observador sofisticado como Osbert Sitwell, que começou
suas lembranças de Kitchener com um tom ligeiramente irônico, acaba por voltar, em última
instância, a uma atitude quase religiosa — como se estivesse reagindo ao antigo protótipo do cartaz:
Com uma completa rigidez e solidez, [Kitchener] sentava-se ali como se fosse um deus, ligeiramente
falido talvez, mas esperando confiantemente que seu domínio terrestre se revelasse […] um olhar
ligeiramente desfocado que parecia, em sua fixidez, quase possuir um poder de adivinhação […]. E
você podia, no olho do espírito, ver sua imagem estabelecida como a de um deus inglês, por nativos
em diferentes pontos do Império que ele ajudara a criar e apoiar, precisamente como os imperadores
romanos tinham sido antigamente adorados. Num período de poucos meses, em vários tapumes,
grandes cartazes mostravam Lord Kitchener apontando para perspectivas no espaço, assim
prontamente percebidos, mesmo se focalizados com incerteza, e abaixo, a legenda “Ele quer VOCÊ!”.
Com frequência pensei nessa figura rígida.

A mística imperial de Osbert Sitwell era compartilhada por observadores menos esnobes. O poder do
cartaz ignorava distinções de classe — um pequeno detalhe na ampla derrota dos trabalhadores
europeus.” (p. 65)

“Todavia, ambos os cartazes corporificam uma característica visualmente agressiva, relacionada com
a frenética cena urbana superpovoada e tensa, onde deveriam ser vistos. Eu perguntaria se um
acontecimento visual análogo, embora projetado num plano quase metafísico, poderia ter inspirado a
nota que Aby Warburg escreveu em 27 de agosto de 1890: “Suposição de que o trabalho de arte é
algo hostil que se move em direção ao observador”.61 Cinco anos depois, os irmãos Lumière
mergulham as plateias de cinema no terror, projetando sua “Chegada de um trem na estação de La
Ciotat”. Figuras correndo em direção ao espectador se tornaram um aspecto recorrente dos primeiros
filmes. O cartaz de Lord Kitchener se apoiava nos mesmos artifícios visuais e era dirigido a uma
audiência acostumada com o cinema e seus truques visuais sofisticados, inclusive os close-ups de
Griffith. Artifícios visuais inventados por pintores helenísticos foram adaptados com êxito à vida do
século XX e suas exigências. Entretanto, como Warburg veio a reconhecer quando analisou a arte da
Renascença italiana, o significado de fórmulas antigas às vezes se inverte na transmissão.” (pp. 66-
67)

“Uma assustadora ilustração dessa inversão simbólica é fornecida por um cartaz alemão feito em
1944, durante a ocupação da Ucrânia63 (fig. 31). Essa horrorosa peça de propaganda nazista
transformou a descoberta de uma sepultura coletiva, resultado do extermínio stalinista, num
incitamento a massacrar judeus e bolcheviques. Pelo artifício visual que viemos a conhecer bastante
bem, o espectador, simbolicamente afrontado e ameaçado pelo comissário judeu, é instado a uma
vingança literal, reproduzindo um acontecimento com que estava perfeitamente familiarizado — um
pogrom. É evidente o grande significado dessa inversão da representação perdida que Apeles fez de
Alexandre, o Grande, inversão possivelmente inspirada pelo cartaz da Polyphon Musikwerke. A
corporificação da autoridade e do poder legítimo foi transformada num alvo de ódio.” (p. 67)

“Não há necessidade de lembrar o papel desempenhado no romance pela imagem do Grande Irmão,
seja como um cartaz, seja a partir da tela de televisão.67 À luz do que eu disse até aqui, é impossível
não ver nessa passagem um eco distante (mas distinto) do que Plínio afirma sobre a imagem de
Minerva, “que via o espectador independentemente de onde ele estivesse olhando”.” (p. 69)

“Esse soldado eurasiano é inegavelmente um vínculo a ser acrescentado à série de imagens


provenientes da pintura de Apeles, “representando Alexandre, o Grande, segurando um raio”. Orwell
pode ter conhecido a passagem de Plínio. Há, porém, outra possibilidade, mais intrigante: a de que
Orwell, ao pôr lado a lado o Grande Irmão e o soldado eurasiano, a imagem de autoridade que tudo
vê e a imagem agressiva de ameaça, estava de fato revelando a polaridade oculta subjacente a essa
imagem primeva altamente carregada, a figura que encara o espectador. Todavia, como lembrarão os
leitores de 1984, a guerra contra a Eurásia é um acontecimento encenado. Como o cartaz de Kitchener
que obliterava o general, a guerra televisionada é mais autêntica que a real. O Grande Irmão
provavelmente não existe: ele é um nome, um rosto, um slogan — como um cartaz que anuncia uma
marca comercial. Em 1949, quando foi publicado pela primeira vez, 1984 foi lido como um livro da
Guerra Fria; suas referências ao terror stalinista pareciam evidentes por si só. Meio século depois, a
descrição de uma ditadura baseada em mídia eletrônica e controle psicológico pode ser facilmente
aplicada a uma realidade diferente, não de todo impossível.” (pp. 69-70)

“O cartaz de Lord Kitchener nos levou às lembranças de infância de Eric Blair. Não há necessidade
de insistir na relevância histórica de memórias, campo de pesquisa que Raphael Samuel
vigorosamente adotou. Memórias são a matéria da história, em especial para uma revista como
History Workshop, cujo objetivo tem sido tornar as fronteiras dos historiadores profissionais
mais próximas das vidas das pessoas. Esse é um objetivo com que tenho profunda afinidade.
Todavia, a história — história como escrita histórica — é coextensiva à memória? Apesar da
eloquência dos argumentos de Samuel nessa questão, sinto-me mais próximo daqueles que,
seguindo Maurice Halbwachs, insistem em salientar a diferença entre memória e história. O
estudo de caso que acabo de lhes apresentar pode lançar alguma luz sobre essa diferença. Para
decifrar as mensagens subliminares transmitidas pelo cartaz de Lord Kitchener, precisamos de
uma visão mais distanciada, uma perspectiva deslocada no tempo, uma distância crítica:
atitudes certamente nutridas pela memória, mas que são independentes dela.” (p. 70)

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