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PERSONAS SEXUAIS – Camille Paglia, p.

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Os arquétipos daimônicos da mulher, que enchem a mitologia mundial, representam a


incontrolável proximidade da natureza. A tradição deles passa quase intacta dos ídolos
pré-históricos, através da literatura e da arte, para o cinema moderno. A imagem básica é
da femme fatale, a mulher fatal para o homem. Quanto mais se repele a natureza no
Ocidente, mais a femme fatale reaparece, como um retorno do reprimido. É o espectro da
consciência de culpa do Ocidente em relação ã natureza. Ê a ambigüidade moral da
natureza, uma lua malévola a romper incessantemente o nevoeiro de nossos sentimentos
de esperança.

O feminismo descarta a femme fatale como caricatura e calúnia. Se ela existiu, foi
simplesmente uma vítima da sociedade, recorrendo às manhas destrutivas femininas pela
falta de acesso ao poder político. A femme fatale era uma executiva manquée, sua energia
neuroticamente desviada para o boudoir. Com essas técnicas de desmistificação, o
feminismo se meteu numa enrascada. A sexualidade é um domínio sombrio de
contradição e ambivalência. Nem sempre se pode entendê-lo por meio de modelos sociais,
que o feminismo, como herdeiro do utilitarismo do século XIX, insiste em impor-lhe. A
mistificação continuará a ser sempre a desordeira companheira do amor e da arte;
Erotismo é mística; ou seja, a aura de emoção e imaginação que cerca o sexo. Não se pode
"dar um jeito" nele, com códigos de conveniência social ou moral, seja da esquerda ou da
direita política. Pois o fascismo da natureza é maior que o de qualquer sociedade. Há nas
relações sexuais uma instabilidade daimônica que talvez tenhamos de aceitar.

A femme fatale é uma das mais mesmerizantes personas sexuais. Não é ficção, mas uma
extrapolação de realidades biológicas, na mulher, que continuam sendo constantes. O
mito da vagina dentada (vagina dentata) dos índios norte-americanos é uma transcrição
hediondamente direta do poder feminino e do medo masculino. Metaforicamente, toda
vagina tem dentes secretos, pois o macho sai com menos do que ao entrar. A mecânica
básica da concepção exige ação do macho, mas apenas passiva receptividade da fêmea.
O sexo, como uma transação mais natural que social, é pois na verdade uma espécie de
drenagem da energia masculina pela plenitude feminina. Castração física e espiritual é o
perigo que todo homem corre no intercurso com uma mulher. O amor é o sortilégio pelo
qual ele adormece seu medo sexual. O vampirismo latente da mulher não é uma aberração
social, mas um desenvolvimento de sua função maternal, para a qual a natureza a equipou
com exaustiva minuciosidade. Para o homem, todo ato sexual é um retorno à mãe, e uma
capitulação a ela. Para os homens, o sexo é uma luta por identidade. No sexo, o homem
é consumido e novamente liberado pelo poder dentado que o deu ã luz, o dragão fêmea
da natureza.

A femme fatale foi produzida pela mística da ligação entre mãe e filho. Uma das crenças
modernas ê que sexo e procriação são medicamente, cientificamente, intelectualmente
"controlãveis". Se mexermos bastante no mecanismo social, todos os problemas
desaparecerão. Enquanto isso, o número de divórcios sobe às alturas. O casamento
convencional, apesar de suas iniqüidades, represava o caos da libido.

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