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‘i 3) OPERADORES DE LEITURA DA POESIA Clarice Zamonaro Cortez Milto Hermes Rodrigues NATUREZA E EXIGENCIAS DA POFSIA Quando nos dizem quea matéria-prima do poeta éo “sentimento” (Patho, 1984, p. 14), quea poesia € 0 “estado emocional ou lirico do poeta” (AMORA, 1973, p. 74), somos levados a crer, no primeiro momento pelo menos, que o interesse imediato da pocsia nao €a represernacio direta ca reabidaide lisica, hist6rica, que a leitura de poesia tem mais a ver com a busca de um estado, de uma nfo distanciada de fatores estéticos ¢ intelectivos. Essa cmocio, é certo, alimentae realidade, que 6, afinal, resul como comunicagao de um “estado psiquico”, na terminologia de Bousos define bem o interesse maior desse género literétio: propor 20 leitor (Gigamos) imaterial, pedindo-Lhe que se aproprie, até despudoradaneni ~ do “sentimento”, do “estado psiquico” que ela carrega, ainda que mai um poema seria também buscar o “estado poético do poeta, a ele suscite no leitor outro ou similar estado poético”, conforme Angelo Ricci (apud DUFRENNE, 1969, p. xvii). Entim, a leitura de poesia orientam-se, cm termos amplos, menos pela busca de unra do que pela demanda de um estado, de uma emogio particular, Am conter um fato (oui fatos mogio especi sede algum modo na do de institucionalizagoes, de ideias, Esse entendimente li rode poesia 1982, p. 403), na experignicia eognitiva mais Para aceitar on para recusar ‘ou menos fingidamente, Ler » (MOL n de qu criagin © dade (Fisica, social) a, embora possa Tativos), busca ainda, as vezes mais do que outra coisa, acionar estes, vivencias, ideia, sutilezas, *O poeta € dondor de sentido”, diz Bosi (1983, p. 78) Nilo se trata, pois, de negar & poesia forga representativa, mas de destacar, pelos recursos que Rormalmente aciona, suas proposigées suplementares, Essa mensagem (de “sentide”) costa abrigar nos pormenores figurativos (€ atos do poema) segundas e terceiras intengoes. A metaforizagio esté no horizonte, em maior ou menor frau. Por isso soa imprdprio invox da inverossimilhanga (principalmet fe a externa) no trato da poesia, Ela tem un hatureza diferente da que tem a prosa. Nao se di 08 poetas, talvez porque tém maior facilidade lingua de chegada. Mesmo assim, hi Porque demanda em fa aos sagen pot outros ara que modo de ser, toa que og melhores tradutores de pocsi to de estaclos © na busca de seus eo quem insista, até com certa ray 1, que a poesia € intrabusivel Ices nem sempre facilmente tangveis. Se nossa incli buscar a realidade Feprescntada, dliante dia poesia essa tendéncia preci arimetros sugeridos pelo poema, ainda que este seja de {dole narrativa, Neste aso, a capt da prosa, » POF Si 86, ages e atitudes de al it emotividade estética, laboremosa sensi Tene Schsibilidade. Em alguns casos, a poesiache ebidos buscam mais testar sua pacitneis : mie bu ma, ‘singularizar”, de estilizar de Castro Alves. © | “Mocidade lamento ic nplo “Mocidade & numacitavacnumdnens 40 Pocta, dstribuido em sete conjuntos (modvinde oe a » Como se vé logo adiante), testif ier ine ae vai do anima nied COE Wo adiante),testfiea um percurso emocional, nndesrende vou morter..") « cha 1 £t quero viver [...]"), passa pela consciéneia do inevitivel (Ecusei que Entre um extremo on timo total, & encrega final (*E eu morro, 6 Deusl.."s "Ada cian ). utro, entre, de um lado, o louvor d, c2 erdade, da mulher, do idlenestaes lado, © louvor da natureza, da liberdade, da mulher, do fae G2 lori vindoura,e, de outro lado, a vor da morte, o lamento do "tine Ahasverus” Essa antitese tains ore ans enitre um ponto e outro, enfim, floresce uma exuberante figuragio, aa aio geral (Viver/morrer), pulsa também na maioria dos conjuntos, com os disticos ee endo Cnfaticamente todo animo positivo, também enfitico, das itavas, Essa trifase brota da gui » COMO Vernos no conjunto inicial, le se acat leito espacial (lit 10) ¢ a fn tesodae ij cial, onde se destscam 0 pleito espacial (libertério) ¢ a fruigio Oh Ba quero viver, bober perfumes INa flor silvestre que embalsama os ares Ver minha ama adja peo infinto, Qual branca velamamplidao dos mares. No seio ds mulher tanto aoa. Nos seus beijs de fog hi tana vida —Arabe errante, vos dormir tarde A sombra fesca ds palmeiraerguida ‘Mas uma voz responde-me somb ‘Teri 0 sono sob a lijea fia (CASTRO ALVES, 1976). No verso “Qual branca vela n’amplidio dos mares" a assonincia do /a/ reforga tanto a imagética cromética (a “branca vela") quanto o sentido de abertura, de amplidio, A esse pleito espacial vern juntar-se 0 apelo sensorial intensificado por sinestesias (“beber perfumes", “beijos de fogo”, “sombra fresca”). A ideia de calor (“fogo”) que conota prazer e vitalidade, também ressoa na “tarde”, contexto em que outra vez se intensifica a aspiracao pelo espaco aberto, amplo, livre. ‘Todo esse pleito libertario vital vai esbarrar no distico que se segue: “Mas uma voz responde-me sombria/ ‘Teras 0 sono sob a ldjea fria”. A sinestesia aqui (voz sombria) remete & ideia de clausura, de timulo. Agora a ideia de sombra € negativa, interligando-se bem, dentro do aniincio negativo, com a ideia de sono-morte, Também 0 sentido de “fria” contrape-se ao de “fresca”, negando aquela abertura espacial. Essa reverso semantica a partir de vocabulos quase idénticos talvez revele 0 quao proximos estio a vida ¢ a morte. A morte, de visibilidade imediata, comega a ganhar maior sentido dramético (€ estético) quando percebemos no jogo antitético — oitava versus distico — a sonegacio, a0 fim, de claridade, de calor. A nogio de fechamento espacial intensifica-se no distico com o advento da frialdade, para o que também contribui a assonancia, na rima, do fonema /i/, sujeito a ajustar-se, pela nossa sensibilidadc, a ideia de frio, tanto que Augusto dos Anjos aproveitou essa relagio sonoro- semintica em alguns versos, como neste: “Fazia frio ¢ 0 frio que fazia (.,.]”. Assim, em apenas dois versos lacénicos opera-se a contradigao do longo pleito vital (sensorial e espacial) do inicio, erste em oito versos. O desejo ¢ sua negagio ~ expressdes de estado, de ideias — adquirem dramaticidade num 6O—TEORIA LITERARIA SDOrensvones ve certuas on» maior cm tizio da qualidade informativa, da gnfase estlistica (estética) colocada A disposi vensibitidade e da intuigio do leitor ) colocada & disposicio da Anatureza da poesia se define, pois, por cobrar do leitor um olhar especial, atisco, intensificado, rminucioso, algumas vezes necessariamente ousado, Que esse leitor force a vsibilidade, no poema ¢ ‘om si, de experigncias sensfveis ¢ emocionais amortecidas, indefiniveis as vezes; que ultrapasse a pura Teleegio, que calibre o othar para um entrentamento m: sugestivo de imagens obscuras, resistentes A comprecnsio imediata. Algumas situagdes, figuradas ou nio, recusam, de fato, a interpretacio com crivo apenas no referencial, Lemos no poema “Aniversirio”, de Fernando Pessoa: “O que eu sow hoje € como a umidade no corredor do fim da casa/pondo grelado nas paredesf...]". No basta aqui desmontar mecanicamente a comparagio. A imagética de um poema, que reclama, € certo, em graus yariados, uma representagio da realidade, nem sempre se resolve, para nossa compreensio, por uma operagio apenas intelectiva, Exige muitas vezes, pelo intrineado de sugestdes, uma participacio decisiva da intuicio, da afetividade, da experiéncia. Podemos enfrentar desde sugestes imagéticas inusitadas, tensas ou “dificeis”, até a informagio direta, franca, livre de figuragio, de “efeitos”, mas também exigente. Num texto que se apresenta como pocma, a informagio seca, sem aderegos figurativos, sem rima, sem regularidade métrica, nao raro suscita desconfianga nos menos avisados. Avancemos um pouco mais nessa questio, considerando que, ainda aqui, perseveram na poesia uma natureza literdria especial ¢ uma exigéncia especial. Em poemas modernistas, o gosto do prosaico ¢ 0 vezo do coloquialismo levam a uma espécie de esvaziamento figurative, ao desprezo pela rima, pela métrica, © leitor impaciente, acostumado com a poesia tradicional, dird logo que isso nfo & poesia. Tristio de Athayde, embora reconhecesse a poesia modernista, chamou os poemas de Peesia pan-brasil (Oswald de Andrade) de “patacoadas” (TELES, 1980, p. 347). © poema “seco” incomoda. O estorgo analitico, duvidando as veres da prépria condigio poética do texto, se obriga 4 explicagio, nem sempre lograda, daquilo que apenas a intuicio ea sensibilidade poderiam arrancar de certas imagens, ou sugest6es de imagens. O olhar atento, insatisteito com a exposigao de superficie, debare-se com a literalidade nua ¢ crua, descobrindo qualidades em poemas aparentemente primérios. Vejamos isso, com mais vagar, tomando aquele "Poema tirado de tuma noticia de jornal”, de Manuel Bandeira, incluso em Libertinagem, de 1930: ‘Poema tirado de uma noticia de jornal JJofo Gostoso era carregador de feira livre ¢ morava no morro da Babilinia num barracto sem ‘Unma noite ele chegos: no bar Vinte de Novembro, Bebew Canton Dangou ‘Depts se atizou na lagoa Redigo de Freitas € morren afoyado (BANDEIRA, 1993). COpoema étodonarrativo,supostamente decalcadode om, queé um meioingormativo comprometido mais chen o teferencial, com a denotacio, Podemos admitit, de inicio, que © autor coloca em pritica 0 ideal modernista de conferir poeticidade a fatos da realidade cotidiana, como pede Oswald de Andrade, no Manfisto da Poesia Pau-Bracil, de 1924. O jogo livre entre versos longos ¢ eurtos, que incomoda, & ‘ousadia de indole modernista, Também €: modernista a opgio pelo vocabulirio simples, pela sintaxe direta, Thora, Bandeira revelou noutro poema da mesma obta que estava farto do lirismo burocratico, escravo doc manuais, Sea “Poerna tirado de uma notécin de jornal” vincula-se, pois, pelo assunto (de jomal) ¢ pela forma, a uma estética, a um movimento literirio. O ratamento aparentemente frio do suicidie faz ainda lembrar o pedido modernista de Mario de Andrade no preficio da revista Klan (primeiro nsmero), de extirpagio das glindulas Jacrimais. Foss primeira mirada nos permite comecar a afistar uma eventual impressio de gramidade ou de superficilidade criativa. E essa impressio tendea desaparecer na medida em que, abrindoa sensibilidade para as mindcias, para as ressondiicias poemiticas, nos pegamos descobrindo significagies pars além da Ineralidade, Qualquer iniciante no jornalismo sabe que uma reportage sobre acontecimentos )— 61 ‘Tuomas Bonmier / Locia Osnea Zorn Concawtaasonss

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