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Considerações acerca do estatuto do sujeito no cumprimento da medida


socioeducativa.

Juliana Marcondes Pedrosa de Souza

Doutoranda em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de

Minas Gerais, Bolsista Capes, Mestre em Psicologia pela Universidade

Federal do Rio de Janeiro.

Rua Desembargador José Burnier, nº 186 – 104, Castelo, Belo

Horizonte/MG

CEP: 30840-420

juliana.marcondes@yahoo.com.br

Jacqueline de Oliveira Moreira

Doutora em Psicologia Clinica – PUC/SP, Mestre em Filosofia – UFMG,

Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC-Minas

(Mestrado/Doutorado, Psicóloga Clínica.

Rua Congonhas, nº 161 – Bairro São Pedro, Belo Horizonte/MG

CEP 30330-100

jackdrawin@yahoo.com.br
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Considerações acerca do estatuto do sujeito no cumprimento da medida

socioeducativa

Juliana Marcondes Pedrosa de Souza

Jacqueline de Oliveira Moreira

Resumo: No presente artigo pretendemos refletir sobre o estatuto do sujeito

no cumprimento das medidas socioeducativas como intervenção do Estado

nos casos de adolescentes que cometeram ato infracional. Faz-se necessário,

para isso, pensar as diferenças entre os conceitos de sujeito subjacentes aos

discursos jurídico e psicanalítico. Como refletir sobre o tema da

responsabilidade no cumprimento dessas medidas, tendo essas duas categorias

de sujeito entrelaçadas? Defendemos a tese de que, ao escutar o adolescente,

não podemos abrir mão do pressuposto do sujeito do Inconsciente como

referência básica da intervenção. É preciso pensar na intervenção como uma

convocação ao sujeito e sua mudança de posição frente aos modos

permanentes pelos quais ele constitui os seus objetos.

Palavras-chave: medidas socioeducativas, psicanálise, responsabilidade

subjetiva, ECA.
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A ideia deste texto é refletir sobre um processo que, na sua

previsibilidade, se torna imprevisível, a saber, a produção de sujeitos. Mais

especificamente: como os jovens envolvidos com a criminalidade violenta

produzem uma posição subjetiva? A pergunta sobre o lugar para a criança e o

adolescente no século XXI convoca-nos a pensar os adolescentes autores de

ato infracional. Este texto dedica-se a pensar as possibilidades e limites das

medidas socioeducativas como ações que convocam à produção de sujeitos.

Vamos iniciar com dois exemplos: Cristina, adolescente de 16 anos,

cumpriu medida socioeducativa de internação por tráfico de droga e

homicídio associado ao tráfico. Durante o tempo em que ficou acautelada,

apresentou comportamento exemplar, de acordo com as normativas prescritas.

Frequentava a escola e apresentava bom desempenho, fazia cursos de

capacitação, participava de todas as atividades propostas, sempre se

destacando, o que, do ponto de vista jurídico, significou cumprir a medida de

forma satisfatória. Entretanto, essas mudanças de postura da adolescente não

significaram uma mudança subjetiva, já que ela posteriormente cometeu

outros atos infracionais. A medida socioeducativa foi, portanto, insuficiente

para que ela se questionasse sobre essas atuações.

Paulo, 16 anos, é um adolescente que cumpriu medida socioeducativa

de liberdade assistida, também por tráfico de droga. Paulo, assim como

Cristina, era muito envolvido com a criminalidade, o que, segundo ele, era um
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fator que dificultava sair dessa vida. Mas Paulo consegue dizer dessas

dificuldades, e encontra, no espaço da medida, um lugar para falar da sua

vida. Paulo, mesmo sem apresentar um comportamento adequado frente às

normativas prescritas – ele não quis, por exemplo, voltar a estudar, ou fazer

cursos –, faz um movimento de mudança; não de comportamento, mas uma

mudança subjetiva, já que consegue romper com a pulsão de morte e fazer um

laço com a vida.

Dessa forma, pensar essas intervenções é refletir sobre o estatuto do

sujeito no cumprimento das medidas socioeducativas, e isso nos impõe a

tarefa de pensar a concepção de sujeito pelo viés jurídico e da psicanálise. No

entanto, é preciso entender qual concepção de sujeito subjaz a esses dois

campos de conhecimento, para então refletir sobre o tema da responsabilidade

no cumprimento dessas medidas.

Foi a partir do cogito cartesiano que o projeto da modernidade se

propôs a ter o sujeito racional, emancipado e livre como objetivo final. A

categoria do sujeito entra em cena na modernidade e sustenta a presença da

metafísica da consciência. O sujeito filosófico representa o substrato último

de garantia do conhecimento.

Sabe-se que o Direito, enquanto uma ciência de fundamento positivista,

trabalha no campo da razão, no qual a lei é a expressão máxima da

normatividade socialmente produzida e legalizada em códigos universais. É o


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Direito que convocamos para resgatar, por meio de suas leis, a ordem, tendo

por objetivo a produção de um saber racional, que regulamenta, de forma

universal, os procedimentos de solução dos conflitos segundo as prescrições

legais.

É justamente na contramão da lógica cartesiana do sujeito pleno e

consciente que Freud (1900/1980), com o conceito de Inconsciente, irá

criticar a filosofia. Segundo Moreira (2002), a teoria psicanalítica desloca a

concepção de sujeito, enlaçada com a consciência e dominada pela razão, para

o sujeito do inconsciente, determinado por leis próprias que extrapolam as

possibilidades do sujeito racional. Ao utilizar a associação livre em sua

clínica, Freud (1900/1980) percebe que as palavras e expressões apresentam

uma lógica não racional, sem sentido para a ciência positivista. Dessa forma,

a psicanálise sustenta que a verdade do sujeito, aquilo que lhe é singular,

refere-se ao inconsciente, e apresenta-se por um enigma, opondo-se à

objetividade discursiva.

(...) a noção central de inconsciente implica: o sujeito é movido por

forças que desconhece, o verdadeiro sentido de suas experiências está

onde sua consciência não pode chegar, ele é um trágico personagem

sempre tentando compreender e interpretar as motivações

desconhecidas que o governam. (Bezerra, 1989, p. 232)


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Ao nos referirmos aos adolescentes que cumprem medida

socioeducativa, estamos dizendo que eles estão submetidos tanto a um saber

do Direito, categorizado e universal, pautado na concepção de sujeito

racional, quanto a um saber da psicanálise, que trabalha com a

particularidade, o caso a caso, e considera o sujeito do inconsciente.

Assim, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que foi

sancionado em 13 de julho de 1990, instituindo-se como Lei Federal n.º

8.069, é a legislação que rege os direitos e deveres dos adolescentes. Ao

romper com a lógica menorista, o ECA, no âmbito das medidas

socioeducativas, propõe que, como sujeitos de Direito, os adolescentes que

cometeram ato infracional devem ter seus interesses respeitados e direitos

garantidos, e como sujeitos de deveres, devem cumprir a sanção a eles

determinada, ou seja, a sua medida socioeducativa.

As medidas descritas no ECA, em seu artigo 112, são aplicadas aos

adolescentes com idade definida entre 12 e 18 anos aos quais se atribui a

prática de atos infracionais. Estas são, segundo o ECA, as medidas

socioeducativas: I. Advertência; II. Obrigação de reparar o dano; III.

Prestação de serviço à Comunidade; IV. Liberdade Assistida; V. Inserção em

regime de semiliberdade; VI. Internação em estabelecimento educacional.

(Brasil, 1990/2001)
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Podemos dizer que a concepção de sujeito implícita no ECA assemelha-se à

do sujeito cartesiano enquanto um sujeito que pensa, e que, pela via da razão,

consegue responder pelo ato infracional cometido, modelando seu

comportamento. Para o Direito é satisfatória uma resposta pautada na

pedagogia subjacente às diretrizes legais. Sabe-se, porém, que essa resposta

jurídica de ordem socioeducativa não garante, por si só, uma mudança

subjetiva. A lei é um Outro que impõe limites, mas é preciso que alguém

nesse processo de execução implique o adolescente em seu ato. Dessa

maneira, o trabalho com esses adolescentes dever estar para além da punição,

e compreender a tentativa de reinserção social, de fortalecimento dos vínculos

familiares e comunitários, assim como a construção de outras saídas para os

impasses da vida que não a infração. O adolescente, alvo desses saberes que

circulam, precisa de se responsabilizar pelo ato cometido em uma esfera

subjetiva.

Em termos gerais, “responsabilizar” significa dar uma resposta a um

outro a respeito daquilo que, via ato, gerou consequências. Nos casos desses

adolescentes, consequências que resultaram da transgressão da norma jurídica

que organiza a sociedade. “Responsabilidade” é responder por, mas para que

ela ocorra para além da perspectiva jurídica alguém precisa perguntar. O

direito não pergunta para o sujeito sobre o seu ato, apenas aplica-se àquele

que transgride a lei uma punição como forma de resposta à sociedade pelas
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consequências da transgressão cometida. É uma resposta em que não há um

reconhecimento do sujeito. Podemos dizer de uma desimplicação do sujeito

em relação à infração, que incide sobre a não responsabilidade, já que, para a

psicanálise, só é possível haver resposta se houver algum questionamento, se

houver reconhecimento.

Constatamos, no trabalho com a execução das medidas

socioeducativas, que não basta um trabalho orientado apenas pela premissa do

ECA de que o adolescente é um sujeito do Direito, porque nesse caso não é

considerada sua história de vida, e os encaminhamentos são orientados em

nome da doutrina de proteção integral, seguindo-se um protocolo. Com isso,

as intervenções, que deveriam ser construídas no caso a caso, são

direcionadas em prol do saber universal de quem cumpre a lei, e podem não

produzir um efeito de responsabilização subjetiva.

Responder por um ato, para a psicanálise, não pode ser sinônimo de

cumprir uma medida socioeducativa, ou seja, cumprir uma norma. Dessa

forma, a função do psicólogo na execução dessas medidas é fazer com que o

adolescente possa se perguntar a respeito de seu ato, para então começar um

processo de responsabilização subjetiva que só se dá a posteriori da aplicação

da lei.

Falar de sujeito na psicanálise implica necessariamente considerar a

responsabilidade. Assim o sujeito adolescente que cumpre uma medida


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socioeducativa responde por seus atos, ao construir novas saídas, que o

auxiliam a mudar sua vida.

Lacan (1966/1998), ao se referir à responsabilidade, nos diz que por

nossa condição de sujeito, somos sempre responsáveis, o que significa dizer

que o sujeito é sempre responsável por seus atos, mesmo que condições

adversas, entre elas sociais, estejam presentes. Ao escutar os adolescentes que

cumprem medida socioeducativa podemos dizer que os atos violentos são

uma forma possível de tentarem dar uma resposta ao estado de vida puro e

bruto ao qual foram entregues. Assim, via atuação, eles pedem o olhar do

outro, o reconhecimento. Então, no contexto do cumprimento de uma medida

socioeducativa, é preciso considerar o reconhecimento para que possamos

discutir a questão da responsabilidade. É só a partir daí que o adolescente se

percebe como autor de sua história, de seu ato, e passa a ter um lugar. Nos

programas de execução das medidas socioeducativas, o encontro com o

psicólogo pode viabilizar uma saída que se dá em favor da emergência de

sujeitos que podem, a partir de suas falas, se posicionar de forma responsável

ante suas escolhas.

O psicólogo orientado pela psicanálise visa possibilitar o trabalho de

resgate da dimensão subjetiva desses adolescentes, possibilitando-lhes ser

sujeitos envolvidos no processo jurídico que lhes diz respeito, e não objetos

inertes diante da aplicabilidade da lei. A psicanálise, portanto, trabalha em


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uma posição diferente daquela do discurso jurista, uma vez que o trabalho de

escutar subverte a universalidade em prol do particular na política pública.

Como revelam Lara Junior e Ribeiro (2009), a psicanálise não dissocia a

teoria da prática, e alerta o profissional sobre o fato de que escutar a demanda

não é respondê-la.

[Escutar] é diferente de satisfazê-la prontamente. Essa posição permite

a ruptura com a ótica assistencialista que prioriza o aspecto material

(das necessidades) em detrimento das urgências subjetivas e sociais das

comunidades – o que, em última instância, é uma forma ideológica de

manutenção das desigualdades sociais. ([s.p.])

A teoria psicanalítica oferece, para o profissional, elementos para

trabalhar sua posição diante do outro, e a prática da psicanálise permite-nos

escutar o sujeito do inconsciente. Dessa forma, podemos apreender as falácias

narcísicas, diferenciar demanda de desejo, convidar a aparição do sujeito que

se encontra eclipsado pelo sintoma e preso nas redes da compulsão à

repetição. É preciso pensar na intervenção como uma forma de retificação

subjetiva. Como revela Couto (2004), a retificação é um dos elementos

centrais do trabalho de um analista: “A retificação pode ser considerada,

portanto, como ‘subjetiva’, pois conduz o paciente a mudar a sua posição de

sujeito frente aos modos permanentes pelos quais ele constitui os seus

objetos” (p. 277).


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Somente a partir da escuta do que é particular a cada caso é possível ao

técnico trabalhar a possibilidade de uma retificação sugerida por Couto

(2004). Oferecer um lugar para o sujeito falar e suportar ser o destinatário

desse dizer é condição para que o adolescente possa se perguntar sobre seu

ato. Se reduzirmos o ato de escutar esses adolescentes à apreensão dos sinais

que indicam comportamentos que foram modificados com o intuito de

responder à norma e obter o cumprimento de sua medida socioeducativa,

estaremos trabalhando segundo uma lógica em que o ato de escutar passa a

não cumprir mais do que uma função utilitária, que serve para a comunicação

em seu caráter informativo, deixando de lado o sentido que pode estar por

detrás dela.

Podemos concluir dizendo que a psicanálise traz o ato de escutar como

contribuição a estes espaços do jurídico, da regulação social, na medida em

que, através dela, é possível sinalizar


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Referências

Bezerra, B. (1989). Subjetividade Moderna e o Campo da Psicanálise. In J.

Birman (Org.), Freud, 50 Anos Depois (pp. 218-239). Rio de Janeiro:

Relume Dumará.

Brasil. (1990/2001). Estatuto da Criança e do Adolescente. Belo Horizonte:

VL&P Editora.

Couto, L. F. S. D. (2004, dezembro). Uma experiência dialética. Ágora, 7(2).

Recuperado em 4 de fevereiro, 2010, da SciELO (Scientific Electronic

Library On line): www.scielo.br

Freud, S. (1900/1980). Interpretação dos Sonhos. In S. Freud, Edição

Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund

Freud (Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago.

Lacan, J. (1966/1998).A ciência e a verdade. In J. Lacan, Escritos (pp. 869-

892). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Lara Junior, N., & Ribeiro, C. T. (2009, abril). Intervenções psicossociais em

comunidades: contribuições da psicanálise. Psicol. Soc., 21(1).

Recuperado em 4 de janeiro, 2010, da SciELO (Scientific Electronic

Library On line): www.scielo.br


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Moreira, J. de O. (2002). Figuras da Alteridade no Pensamento Freudiano.

Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São

Paulo.

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