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Estudo da controvérsia

a respeito da coerência
ou da incoerência interna
das disposições a partir
das obras de Pierre
Bourdieu e de Bernard
Lahire

Resumo: Analisa-se, no presente artigo, a Abstract: The relevance of the critique ad-
Laura Luedy pertinência da crítica que Bernard Lahire vanced by Bernard Lahire against Pierre
avança contra a conta que Pierre Bourdieu Bourdieu’s account of dispositions to ac-
dá das disposições à ação, especificamente tion, particularly in what pertains to their
quanto a seu caráter internamente homo- internally homogeneous character, is in
gêneo. Embasado, sobretudo, em pesquisa this article analysed. Based mainly in biblio-
de caráter bibliográfico, com enfoque em graphic research focused on certain funda-
certas obras fundamentais desses autores, mental works of both authors, a summary
expõe-se sumariamente o que é preciso of what is indispensable in considering
considerar de seus modelos teórico-meto- their theoretical and methodological mod-
dológicos para que se possa delinear com els is here exposed in order to outline the
exatidão a referida crítica e o objeto criti- previously referred critique, as well as its
cado. Finalmente, examina-se suas limita- object with precision. Finally, its limitations
ções, bem como sua a propriedade. and its adequacy are examined.

Palavras-chave: habitus, identidade, in- Keyword: habitus, identity, intra-individual-


traindividualidade, praxeologia. ity, praxeology.

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Esses dois últimos textos fazem Introdução se oposição descritiva, de outro, deman- xam a desejar no que tange às ilustrações
qualificações mais atuais às te- dam uma explicação. empíricas das teses que ele avança contra
ses apresentadas pelo autor na O retrato de um sujeito que age, aqui e ali, É sobre uma das tentativas recentes o modelo bourdieusiano da dinâmica e da
primeira obra referida. de maneira contraditória, frequentemente de fornecer uma explicação para isso que o conformação prática, deu-se atenção espe-
nos parece tão verossímil quanto o do su- presente artigo se debruça. Apresentar-se- cial a Retratos Sociológicos: disposições e
jeito cujas ações tendem a ser congruen- -á, aqui, uma análise da alternativa crítica variações individuais ([2002] 2004) e a A
tes. Quem objetaria que é perfeitamente que Bernard Lahire propõe face à teoria do cultura dos indivíduos ([2004] 2006). Sen-
crível que ande entre nós uma personagem habitus de Pierre Bourdieu. do A distinção: crítica social do julgamento
tal como o de um agente penitenciário que, Esta análise teve por base sobretudo ([1979] 2008) não apenas a obra à qual a
sádico em seu trabalho para muito além a pesquisa de caráter bibliográfico – ou, última dessas obras de Lahire anteriormen-
do que suas tarefas o obrigam a ser, vê-se, o cotejamento de bibliografia publicada. te citadas quer responder, mas também a
logo que termina seu expediente, feito ma- O grau de sistematicidade na tematização obra de maior fôlego empírico de Bourdieu,
rido devoto e pai afetuoso? Não é, todavia, de nossa questão foi o critério a guiar a se a considerou também de maneira mais
igualmente plausível conceber uma perso- eleição das obras desses autores que em detida neste exercício. Adicionalmente, in-
nagem como a do jovem que, estreando cujo exame me deteria. Em primeiro lu- formações encontradas em outras obras
numa cena particularmente violenta do cri- gar, garantiu-se que os textos em que o desses autores, bem como comentários
me, veja os novos modos de proceder que cerne de suas propostas teórico-metodo- relevantes de comentadores, foram usados
são ali por ele cultivados transbordarem lógicas estava melhor reunido fossem tão eventualmente e de acordo a necessidade
para o resto de suas relações? finamente analisados quanto possível. Isso ou o interesse que a análise provou que ha-
Há, no entanto, um grande abismo determinou que se desse especial aten- via nisso.
entre essas duas imagens. Em um caso, ção a Homem Plural: os determinantes da A primeira seção deste artigo apresen-
entrevê-se a harmonia das disposições; no ação ([1998] 2002) e El espiritú sociológico ta sumariamente a posição de Lahire quan-
outro, tem-se algo que pode ser tomado, ([2005] 2006) de Lahire, bem como sobre to a nossa questão fulcral. Segue-se a isso
ao menos sob determinado aspecto, por O Senso Prático ([1980] 2009), An Invita- um inventário de como este autor entende
um índice de incoerência. A composição tion to a Reflexive Sociology (1992) e Medi- que Bourdieu a trata, coisa que dá ocasião
dramática que formam, face a face, a ade- tações Pascalianas ([1997] 2001), de Bour- a uma delimitação de sua crítica. Feito isso,
quação empírica (no mínimo aparente) de deu1. Em segundo lugar, porque as duas consta, da terceira seção, a posição de
ambas as contas, de um lado, e a sua qua- obras anteriormente citadas de Lahire dei- Bourdieu segundo se a pode reconhecer,

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A opção por introduzir o debate argumentar-se-á, para além da leitura que lidade histórica (LARIHE, [2005] 2006, p. interações etc. (objetos sociológicos que,
partindo da posição de Lahire e dela faz Lahire. Por fim, traça-se algumas 94-96,100-104). segundo o autor, seriam hegemonicamen-
não, como a princípio poderia considerações a respeito do alcance que a Isso, combinado à negação do autor te usados e reconhecidos enquanto tais)
parecer mais adequado, da po- crítica a Bourdieu, feita por esse autor, pa- de que haja qualquer coisa como um vácuo seriam como dobras específicas do social;
sição de Bourdieu – dado que rece ter sob a luz da presente análise, bem social (LAHIRE, [1998] 2002, p. 197-199, dobras para cujo acesso são necessários
esta última não só lhe é anterior, como algumas considerações sobre em quê 608; LAHIRE, [2005] 2006, p. 117; LAHI- instrumentos analíticos também específi-
como também tem inegável im- este debate específico poderia contribuir RE, 2013, p. 22), indica que sua sociologia cos. Esses seriam necessariamente distin-
portância na gênese do modelo para o trato futuro da ação social e das dis- psicológica – ou, simplesmente, sociologia tos, por exemplo, daqueles requeridos para
teórico-metodológico que in- posições à ação.2 em escala individual (LAHIRE, 2013, p. 18) evidenciar os processos que dizem respeito
forma a primeira – justifica-se – pode ser compreendida, sem prejuízos, a dobras do social relativamente mais com-
pelo fato de que, não havendo como uma parte mais radicalmente con- pactas, tais como os atores a que Lahire se
resposta explícita ou oblíqua A posição de Lahire textual ou situacionalista de um programa refere como “indivíduos empíricos” e – o
de Bourdieu à crítica tardia que mais amplo.4 que é uma noção central para o problema
Lahire lhe faz a esse respeito, a Lahire se alinha à sociologia relacional De fato, Lahire não rejeita os mode- do presente artigo – sua “intraindividuali-
posição bourdieusiana no debate e disposicionalista de Bourdieu no que los relativamente mais gerais e abstratos e dade” (LAHIRE, [1998] 2002, p. 197-199;
é uma ficção a posteriori; isto aquiesce, basicamente, a duas teses.3 Uma concorda que estes tenham potencial para, LAHIRE, [2005] 2006, p. 117). Estes últimos
é, é mais uma derivação de uma delas reza que é analiticamente frutífe- ao simplificar um determinado conjunto de e suas histórias singulares nada mais se-
questão posta, enquanto tal, por ro discriminar, de um lado, esquemas de relações sócio-históricas, contribuir para riam que a recomposição, em certo nível,
Lahire. Dado isso, creio que este- ação incorporados por agentes sociais – as sua compreensão (LAHIRE, 2013, p. 23). daquilo que é institucional e cientificamen-
ja justificado o ordenamento da disposições – e, de outro, o contexto e Todavia, ele quer escapar do que vê como te desdobrado de sua experiência: escola,
presente argumentação. as determinações extradisposicionais da sendo hiper-simplificações decorrentes da família, sindicato, igreja, enfim, realidades
ação. Na segunda tese, aposta-se em que tomada inadequada desses modelos pela estruturais de classe ou de coletivo (LAHI-
3
Esse alinhamento é, no entan- conhecer o processo de inter-relação dialé- conta mais exaustiva dos fenômenos a que RE, 2013, p. 20). Se trata de pontos de vista
to, como ficará claro ao longo tica entre essas dimensões seria essencial se referem (LAHIRE, [2002] 2004, p. X-XII, complementares a respeito de uma mesma
desta exposição, apenas par- para dar conta da gênese e da configuração 44; LAHIRE, [2004] 2006, p. 593,618; LAHI- realidade. As variações, no entanto, impor-
cial. O autor desenvolveria sua desses mesmos elementos em sua parti- RE, [2005] 2006, p. 78-79, 82, 84, 86-88). tariam em muito para a análise e suas parti-
própria proposta valendo-se de cularidade histórica e – como um desdo- Em suas dimensões subjetiva e obje- cularidades não poderiam ser ignoradas.5
incursões em certa literatura bramento disso – também em sua genera- tiva, instituições, grupos, classes, tipos de Conduzindo pesquisas empíricas em

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psicológica, sociolinguística, an- acordo com essa premissa, Lahire notaria opostas, incongruentes ou incoerentes, 25,27; LAHIRE, [2004] 2006, p. 26).
tropológica e filosófica que lhe que certos postulados sociológicos, tão ou, ao contrário, entre disposições coeren- Embora Lahire conceda que, mesmo
dão insumo à crítica do projeto comuns quanto prenhes de consequências tes, que sejam atualizadas por um sujeito em ambientes altamente diferenciados,
bourdieusiano. para as descrições e análises que os mobi- durável da ação em contextos particulares haja alguma coerência entre os estruturan-
lizam, não se verificam. Dentre eles estaria e distintos. Nesses casos, é possível usar tes ambientais das disposições (ambiente
4
Esse diagnóstico ecoa Pontes a imagem das disposições como sendo in- a constatação da aparência de oposição passado) e da ação (ambiente presente),
(2009, p. 15), bem como Van- ternamente (ou intrassubjetivamente) coe- para refinar a descrição das propriedades bem como que há uma propensão, da parte
denberghe ([1999] 2010). rentes quanto a suas propriedades ou, pelo das disposições em caso, podendo chegar, dos atores, de evitar situações que apare-
menos, como sendo tendencialmente assim. assim, à conclusão de que se tratava, em çam a suas consciências como contrariando
5
Sobre isso, o seguinte trecho Os exemplos de disposições de pro- realidade, de um caso de atualização de muito forte ou duravelmente seu programa
é bastante ilustrativo: “Quando priedades “opostas” que Lahire apresenta disposições perfeitamente compatíveis.6 A de socialização incorporado, ele se distan-
se diz, por exemplo, que 52% talvez o elucidem melhor aquilo de que ele noção de incoerência disposicional pode, cia de Bourdieu no que nega que haja, em
dos jovens da camada dos altos trata quando fala de incoerência ou coerên- ainda, dizer respeito a casos de atualização geral, a possibilidade de evitar reflexiva
funcionários e 66% dos jovens cia interna: iniciativa versus passividade, simultânea ou, alternativamente, sucessiva ou praticamente esse tipo de confronto
do meio operário foram a uma modos práticos de aprendizagem versus (não-simultânea) num mesmo contexto – (LAHIRE, [1998] 2002, p. 31,48). Em con-
festa de feira nos últimos 12 modos escolares pedagógicos, ascetismo ou, para sermos mais exatos quanto ao que sequência dessa exposição efetiva, ele – o
anos e se comenta esses dados versus hedonismo, disposições de planeja- acontece em caso de atualizações sucessi- ator – não teria seus esquemas de ação,
dizendo que ‘os jovens do meio mento versus disposições de espontanei- vas, num contexto aproximadamente igual. sentimento e cognição sucessivamente cor-
operário distinguem-se antes de dade, relação estrita e tensa com normas Lahire sustentará, como alternativa à rigidos para formar, a partir de um todo
tudo por sua tendência a ir mais versus relaxamento, disposições culturais anteriormente mencionada representação homogêneo anterior, um novo todo homo-
aos bailes públicos e às festas de legítimas versus disposições culturais pou- comum em sociologia de que a coerência gêneo. Sua hipótese é a de que, em reali-
feira’, muitos leitores pensarão co legítimas, disposições estéticas versus disposicional é a norma, que a multiplici- dade, se estocaria, num mesmo ator, esses
espontaneamente, por economia disposições utilitárias, disposição à ativida- dade e a incoerência intrassubjetiva seriam esquemas em sua forma heterogênea ou
interpretativa, em um jovem do de pública versus disposições disposição fenômenos comuns e que a virtualidade de contraditória (LAHIRE, [1998] 2002, p. 31).
meio operário que estaria volta- ao recolhimento e ao individualismo (LAHI- sua verificação aumentaria em relação dire- Podemos entrever, em seu Retratos
do para (ocupado, interessado, RE, [2002] 2004, p. 26-7). Há que se notar, ta com o grau de diferenciação do ambien- sociológicos: disposições e variações indi-
envolvido por) a festa de feira e porém, que não se trata, simplesmente, te em que as disposições se conformam viduais ([2002] 2004), ilustrações do que
que se distinguiria de um outro de denominar a relação entre disposições e se atualizam (LAHIRE, [1998] 2002, p. se supõe que sejam casos de incoerência

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jovem da camada dos altos fun- disposicional, bem como ilustrações do e a configuração da situação ao todo ou, tem com cada prática sua – isso, com base
cionários muito mais ‘dotado’. É modo de proceder de Lahire na análise especificamente, entre suas disposições e na frequência com que se engaja nela, em
preciso, entretanto, resistir a es- de seu objeto. Nesta obra, Lahire reuniria a configuração das disposições da pessoa que circunstâncias e com que finalidade
ses desvios interpretativos, pois oito estudos de caso construídos a partir com que interagia no momento; seja sim- (por exemplo, apenas quando acompanha-
a verdade dos fatos é que 52 a de entrevistas em profundidade, conduzi- plesmente que há, num mesmo ator, von- do e para agradar a companhia), pelo modo
cada 100 jovens da camada dos das de modo a pôr em jogo certos pontos tades autoinibidas (LAHIRE, [2002] 2004, p. como ele mesmo a avalia etc. (LAHIRE,
altos funcionários e 66 a cada geralmente subdesenvolvidos na tradição 28,30).9 [2004] 2006, p. 218).11
100 do meio operário são estri- disposicionalista nos estudos sociais (LAHI- Outras ilustrações empiricamente ri- À medida que essa apreciação de Lahi-
tamente equivalentes do ponto RE, [2002] 2004, p. 32,38).7 Busca-se, por cas da posição do autor podem ser encon- re a respeito da configuração coerente ou
de vista da frequência à festa de exemplo, a devida discriminação e a devida tradas, também, em A cultura dos indiví- incoerente das disposições intrassubjetivas
feira (...). Os grupos sociais se exposição das condições de gênese das duos ([2004] 2006). O repertório de dados é desdobrada, nota-se que ela envolve, ne-
dividem em subgrupos de pra- disposições. Lahire proporia, a partir des- quantitativos ali recolhidos mostraria, em cessariamente, o delineamento de posicio-
ticantes, mas não os indivíduos sas experiências, que é útil distinguir entre resumo, que, caso se considere, na análi- namentos a respeito do caráter reflexivo
que os compõem, e não se pode socialização por treinamento direto, socia- se, conjuntos de pelo menos três produtos ou não-reflexivo da atualização e da incor-
desviar do grupo para o indiví- lização por efeito difuso e socialização por ou atividades culturais realizados por cada poração dos esquemas de ação, bem como
duo por analogia sem cometer inculcação ideológico-simbólica (LAHIRE, sujeito empírico, os perfis culturais indivi- a respeito do peso da experiência passada
graves erros de interpretação” [2002] 2004, p. 27,335). Em casos concre- duais ou coletivos heterogêneos no que diz em comparação com o peso da experiência
(LAHIRE, [2004] 2006, p. 610-1). tos, as disposições que, num mesmo ator, respeito à legitimidade ou ilegitimidade de imediata na conformação da ação. No que
são fruto de um desses tipos de socializa- seus elementos costumam ser majoritários segue, toco no que desses pontos é essen-
6
Lahire o faria no seguinte tre- ção não seriam forçosamente coerentes para toda a população de pesquisa, seja cial fazer notar para que se compreenda o
cho: “Imaginemos que se consta- com aquelas que não são fruto de sociali- cada sujeito que a compõe considerado modelo do autor, antes de passar à exposi-
te em um indivíduo um processo zação de outro tipo (LAHIRE, [2002] 2004, individualmente, seja a população consi- ção da posição de Bourdieu.12
de atualização/suspensão do p. 335).8 Lahire daria atenção, também, a derada dividida em grupos (LAHIRE, [2004] Lahire concorda com Bourdieu quan-
hábito de organização do tipo: partir daí, à apetência, ao desgosto ou à 2006, p. 17,154-65,168, 175).10 Na fase to a que seria mormente pela capacidade
organizado em seu trabalho/ indiferença que acompanhariam a atualiza- qualitativa de sua pesquisa, Lahire confir- de encontrar prática e globalmente, e não
desorganizado em casa. Isso ção de disposições, posto que estes senti- maria a mesma tendência por meio de uma intencional e analiticamente, a semelhança
significa, primeiramente, que a mentos podem indicar, a seu ver, seja de- avaliação das práticas e gostos individuais entre a situação presente e as experiências
propensão à organização não é sajustes entre as disposições incorporadas mais sensível à relação que cada sujeito passadas incorporadas que o ator pode

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‘geral’, mas que pode encontrar mobilizar as competências que permitiriam da prática, pois as circunstâncias da ação ação, o autor é explícito quanto a acredi-
áreas de ativação e áreas de sus- que ele aja de maneira mais eficaz (LAHIRE, raramente permitiriam que a consciência se tar que, quando uma determinada situação
pensão (...). É possível, a partir [1998] 2002, p. 69). Esse raciocínio prático ausentasse completamente. Em realidade, evocasse apenas algumas das disposições
dessa constatação, interrogar-se do tipo “isso se parece com” seria, comu- a questão da intencionalidade ou da não- com que o ator social conta, suas demais
sobre a razão dessa variação em mente, aproximativo e variável, podendo -intencionalidade, bem como da consciên- disposições permaneceriam afastadas não
função do contexto e, por exem- perfeitamente negligenciar certos traços cia ou da ausência de consciência, não se só da prática, mas também do juízo (LAHI-
plo, levantar a hipótese de que da situação em curso para reter apenas um coloca, para Lahire, de maneira geral ou RE, [1998] 2002, p. 37-9). Essa retirada à
a origem da variação constatada esquema relacional geral, como também se absoluta na ação, mas depende sempre da consciência seria, para Lahire, um dos fa-
é o universo social (profissional ater a um detalhe totalmente descontextu- sequência da ação considerada: haveria tores que permitiriam que um ator social
ou doméstico). Pode-se ir até alizado do conjunto da situação (LAHIRE, menos intencionalidade e consciência na incorporasse esquemas de ação contraditó-
mesmo mais longe, imaginando [1998] 2002, p. 69-70). ação quando esta fosse em sua duração, rios sem que estes fossem necessariamente
que o contexto impositivo do Em consequência, embora Lahire ami- em sua complexidade, em sua recorrên- produtores de sofrimento psíquico para ele
universo profissional (...) é o que úde frise a importância da participação cia, tendente a níveis extremos – seja por (LAHIRE, [1998] 2002, p. 41).
leva esse indivíduo a executar ativa do sujeito no permanente trabalho aproximar-se da falta (p.ex., ações de cur- Essa caracterização leva a crer que
gestos de organização, enquanto de compromisso simbólico e afetivo ne- tíssima durabilidade) seja por aproximar-se Lahire aceitaria que o ator comum simples-
o contexto familiar, vivenciado cessário para que a interiorização nele de do excesso (p.ex., ações muito recorrentes) mente se esquece de esquemas de agir,
como menos impositivo, não o disposições seja exitosa, na grande maioria (LAHIRE, [1998] 2002, p. 152-3). Aos cur- sentir ou pensar mobilizados inclusive num
impele aos mesmos atos. [Este dos casos, a situação, enquanto encontro sos de ação medianos no que tange a essas passado bastante próximo, caso eles não
seria uma caso de desenvolvi- do passado experimentado (estoque de mesmas propriedades corresponderiam, estejam sendo atualizados no presente
mento da análise no sentido de disposições incorporadas) com as poten- então, graus também medianos de reflexi- imediato. Seria assim, inclusive, que, a seu
aceitar que se trata de disposi- cialidades do ambiente em que se põe no vidade e intencionalidade. ver, “o sentimento de uma grande coerência
ções incoerentes.] Mas imagine- presente, que teria mais peso em confor- A capacidade de ativar um hábito re- identitária pode provir de indivíduos com
mos que, não somente o entre- mar a ação (LAHIRE, [1998] 2002, p. 53, flexivo nesses moldes, e, em especial, de um patrimônio de disposições muito hetero-
vistado nos fale de seu ‘apreço’ 194, 256).13 Não obstante isso, esse tipo julgar e mesmo corrigir, graças a isso, uma gêneo” (LAHIRE [2002] 2004, p. 137-138).
(e não de sua obrigação) pela de hábito não reflexivo seria frequente- ação corrente para que se adapte melhor Embora o autor não seja explícito
organização do trabalho (o que mente retificado, corrigido e controlado às exigências contextuais, cria, porém, quanto ao que garante a autocorreção re-
o distinguiria de todos aqueles pelo desencadeamento situacional de há- uma dificuldade para o esquema de Lahire. flexiva bem-sucedida, pode-se supor que
que não têm nenhuma apetência bitos de reflexão e isso no próprio tempo Em seu Homem plural: os determinantes da esses exemplos se encaixem nos seguintes

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por isso), mas que se descubra, casos: trata-se ou de substituir um esque- Trata-se, portanto, da externalização de definem crises grandiosas, ligadas a trans-
paralelamente, certas práticas de ma por outro que, conquanto lhe seja dis- disposições que provocam conflitos rele- formações importantes de posições sociais,
organização espontâneas (não tinto, não lhe é contraditório; ou tratava-se vantes para a eficácia da ação porque, no Bourdieu postularia que ação e reflexão
impostas) dentro do universo de substituir um esquema por outro que, primeiro caso, se conforma quase o total são movimentos que impõem dificuldades
doméstico (arrumação minuciosa ali, conduz apenas a conflitos parciais e das disposições mobilizáveis sob essa cha- um ao outro (LAHIRE, [1998] 2002, p. 48-
das ferramentas e das peças de irrelevantes à eficácia da ação em causa. É ve de incongruência com referência umas 9,152,156).
uma pequena oficina de conser- que o autor concederá que esquemas con- às outras (embora não necessariamente O fato de considerar mormente não as
to de pequenos objetos de todo traditórios podem coexistir pacificamente sobre uma chave de bipolarização); ou, no crises pequenas e médias, mas, ao contrá-
tipo: relógios, motores etc.). So- quando se exprimem apenas em contex- segundo caso, porque conforma-se uma rio, as olímpicas, teria implicações também
mos levados, então, a reorientar tos sociais distintos, mas também quando contradição fundamental entre dois con- para a avaliação da intensidade e da frequ-
a interpretação, ou melhor, a conduzem apenas a conflitos parciais em juntos disposicionais, sem que se conte, ência com se internalizam ou externalizam
precisá-la, considerando a natu- tal ou qual contexto (LAHIRE, [1998] 2002, alternativamente, com disposições que se disposições incongruentes. Ao trabalhar
reza dos objetos organizados. p. 41). Do contrário, a ilusão identitária da relacionassem de maneira diferente do ple- tão somente com casos de extraordinário
Descobrimos, ao mesmo tempo, unidade de si passaria a ser impossível e a no acordo ou, ao contrário, da plena dis- deslocamento social – o que é o caso dos
que o que esse indivíduo não incoerência psíquica provocaria, dirá Lahi- cordância (bipolarização). trânsfugas de classe (BOURDIEU, 1989) – e
organiza são objetos domésticos re, hesitação, inação e sofrimento (LAHIRE, com casos de patologia mental e sofrimen-
geralmente pouco valorizados [1998] 2002, p. 41-3). to identitário – como nos de divisão do eu
pelos homens e que, no final Esse tipo de situação de embaraço, A posição de Bourdieu, segundo Lahire (clivage du moi) (BOURDIEU, [1997] 2001);
das contas, apenas delega esse paralisia ou dor aconteceria mais frequen- – para dar conta desse tipo de fenômeno,
‘trabalho sujo’ à sua mulher, ao temente, ou mais gravemente, segundo Lahire, como Boltanski ([2009] 2010), acu- Bourdieu teria deixado de atentar tanto
passo que os objetos profissio- Lahire, em casos em que o ator é subme- saria Bourdieu de ter falhado em dar con- para o quão frequentes, cotidianos ou, em
nais ou os objetos pessoais da tido precocemente a experiências sociali- ta da normalidade do recurso à reflexão uma palavra, normais, são os pequenos
oficina de bricolagem, organiza- zadoras sistematicamente contraditórias (LAHIRE, [1998] 2002, p. 156). Transpondo deslocamentos sociais, quanto para o quão
dos, lhe parecem mais atraentes (em termos, por exemplo, de exigências inapropriadamente a lógica da ação que disseminadas são as breves e inócuas atu-
ou mais nobres. (...) Em tal caso, familiares, profissionais, e associativas) e, é levada a cabo em situação de urgência alizações e incorporações de esquemas
o comportamento de organiza- sobretudo, quando estas provocassem uma prática para dar conta de todas as ações e diferentes e incongruentes num mesmo
ção dessa pessoa é produto da tendência de bipolarização de seus esque- privilegiando injustificadamente, em sua ator (LAHIRE, [2002] 2004, p. 325; LAHIRE,
combinação de suas disposições: mas de ação (LAHIRE, [1998] 2002, p. 42). análise, episódios de ineficácia da ação que [2004] 2006, p. 351-2).

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uma disposição (associada a um Para além do viés empírico-metodo- namente coerentes. Para melhor compre- produtos incorporados da prática históri-
apreço) à percepção dos objetos lógico que teria levado Bourdieu a frisar a ender essa versão lahiriana e para, assim, ca, das estruturas externas e dos habitus”
a serem organizados como mais coerência disposicional, bem como o impé- estar em condições de avaliar o alcance de (BOURDIEU, [1980] 2009, p. 86-7).
ou menos dignos de si” (LAHIRE, rio da pré-reflexividade, há que se citar que sua crítica, resta revisar alguns do modelo Vejamos, então, como Bourdieu de-
[2002], 2004, p. 327). certos entraves ao alcance de outra conclu- bourdieusiano para além desta conta que lineia esses produtos objetivados e dos
são podem ser reputados ainda a aspectos Lahire dá dele. produtos incorporados da prática histórica.
7
Embora reconheça que os entre- substantivos de sua teoria. O habitus é Comecemos pelos primeiros:
vistados selecionam os relatos evocado por este autor, Lahire lembraria, Caso se queira sumarizar a teoria
que dão de si para formar algo como sendo “princípio ativo da unificação A posição de Bourdieu geral dos campos do autor, pode-se dizer
mais ou menos coerente e re- (...) das práticas e das representações, irre- simplesmente que, para Bourdieu, todos
presentativo do que julgam ser dutível às percepções passivas que possam Não obstante rejeite o objetivismo e o os espaços sociais (ou campos sociais) são,
a chave interpretativa de suas sugerir alguma incoerência e fragmenta- subjetivismo como propostas encerradas aí, “estruturas relacionais de diferenças
vidas e que isso faz par, ainda, ção” (BOURDIEU, 1986, p. 70, grifo meu) em si, Bourdieu acolhe entusiasticamente geradas pelo princípio de distribuição das
com a tendência que há, da par- e como “sistema [o que já está suposto na aquele em seu reconhecimento da exis- diferentes espécies de capital válido para
te do pesquisador, de registrar unificação em que toca definição anterior] tência de padrões de conduta e sistemas uma determinada sociedade” (VANDENBER-
esses relatos como narrativas de de disposições duráveis e transferíveis” de relações independentes da intenção e GHE, [1999] 2010)16 i.e., estruturas relacio-
uma estória coerente, ao ver de (BOURDIEU apud LAHIRE, 2013, p. 16, grifo da consciência de quaisquer atores, bem nais de diferenças geradas pelo princípio
Lahire, o recurso às entrevistas meu).14 como acolhe este em sua consideração do de distribuição dos diferentes recursos de
em seu favor o fato de que, à Afora isso, a coerência tendencial que papel das competências subjetivas (de per- poder válidos para um determinado grupo
medida que se multiplica o vo- reconhece na situação objetiva experimen- cepção, representação, avaliação e demais de agentes estruturados em sua ação es-
lume de relatos coletados para tada pelos atores – o contexto enquanto tipos de ação) na produção do mundo so- truturante entre eles mesmos. É possível
o mesmo caso ou à medida que campo –, bem como a ação unificadora da cial (BOURDIEU, [1980] 2009, p. 90). Uma depreender disso que a posição de um de-
são feitas perguntas que não en- experiência pelo Estado contribuiriam no combinação de ferramentas conceituais e terminado agente num determinado campo
tram em seu campo de consciên- mesmo sentido (LAHIRE, [1998] 2002, p. explicativas de cada uma dessas aborda- social e em um determinado intervalo de
cia e interesse espontâneo, seria 21-30).15 gens mesmas lhe serviria para a investiga- tempo pode ser definida pela considera-
difícil, tanto para o entrevistado, Em consequência disso, Bourdieu teria ção das práticas sociais enquanto “lugar ção do histórico, do estado presente e das
quanto para o entrevistador, se- tendido a reduzir a caracterização das dis- da dialética do opus operatum e do modus potencialidades (a) do volume de capital
guir ignorando os limites dessa posições do ator social à de que são inter- operandi, dos produtos objetivados e dos de que ele se vale (isto é, dos recursos de

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 86
congruência pretendida (LAHIRE, poder pertinentes no campo) e (b) da estru- mencionado por Lahire (vide seção ante- É igualmente isso o que permite que ges-
[2002] 2004, p. 314-315, 318). tura desse capital (i.e., da composição de rior), mas também a circularidade que há tos ou palavras experimentados pelo ator
todo o seu capital de acordo com o valor entre esses conceitos induziria a esperar em contextos circunscritos possam evocar
8
Por exemplo, em um de seus relativo de espécies de capital) (BOURDIEU, coerência ou sistematicidade daquilo que todo o sistema do qual são solidários, con-
casos de estudo (entrevista a Léa [1979] 2008, p. 107). esses conceitos subsumem – isto é, de seu tribuindo, assim, para sua socialização em
Cantelli), Lahire apontaria a dis- O habitus, por sua vez, seria um conteúdo empírico. Estes são conceitos matérias que os ultrapassam.18
tância que há entre suas crenças construto analítico usado para se referir a que, ambos, servem à designação do Se frisar uma tal propriedade do ha-
estéticas e suas práticas efetivas qualquer sistema de disposições para agir, mediador da operação que, em Bourdieu, bitus tem como feliz corolário evidenciar o
a respeito do cuidado do cor- sentir e pensar incorporadas por qualquer conforma a prática social – a dialética en- valor explicativo que pode haver em buscar
po, especificamente seu gosto agente social (BOURDIEU, [1980] 2009, p. tre duas estruturas (PETERS, 2013).17 São, conexões entre domínios da existência que
declarado por roupas chiques e 87). Ele é a versão subjetivada do capital por isso mesmo, pares indissociáveis e, são, em geral, analisados em separado, e
originais, bem como por pratos social objetivo (propriedades) de um agen- enquanto pares conceituais robustos, refor- em conceber a coordenação das ações de
leves e delicados e seu hábito te (BOURDIEU, [1979] 2008, p. 107). As dis- çam-se. sujeitos diferentes sem precisar recorrer a
efetivo de usar roupas mais des- posições incorporadas, elas mesmas, são, Dito isso, há, no entanto, algo da de- mecanismos sistêmicos ou a cálculos indivi-
contraídas e comuns, bem como tanto quanto os campos sociais, “estrutu- finição anteriormente apresentada desses duais, uma consequência menos feliz disso
o de comer sanduíches e pratos ras estruturadas [da ação social] predispos- conceitos que merece refinamento. Este re- é que se dê por desimportante questionar-
mais pesados e gordos (LAHIRE, tas a funcionar como estruturas estruturan- finamento evidencia, pretende-se aqui de- -se a respeito da adequação empírica dessa
[2002]2004, p. 108). Esta seria tes [também da ação social]” (BOURDIEU, monstrar, certos limites da crítica lahiriana. suposição para cada caso.
uma ilustração de incoerência [1980] 2009, p. 87). Podem-se traçar as ori- De fato, como dissemos, na obra de De todo modo, adequado ou não aos
disposicional. A defasagem entre gens de boa parte do que é fundamental na Bourdieu, é bastante comum que o habitus casos empíricos em que seja usado, há que
crença, de um lado, e disposição concepção de campo do autor no conceito seja referido por um sistema de disposi- se conceder que o esquema de Bourdieu
para agir, de outro, seria fruto, de habitus, segundo este fora cunhado em ções transponíveis a situações distinta – permite alguma instância de multiplicidade
a seu ver, de uma modalidade seus primeiros trabalhos, ocasião em que p.ex. entre diferentes campos (BOURDIEU, intra ou extra-habitus sem que se precise
específica de incorporação: ao nosso autor reconheceria a necessidade de [1980] 2009, p. 87) –, e a aplicação dos abrir mão da sistematicidade e da transfe-
passo que as formas de agir e se trabalhar mais “em termos de ordem e mesmos esquemas de percepção, ação, ribilidade como propriedades. Basta con-
crer coerentes entre si viriam de distribuição” (PINTO, [1998] 2000, p. 39). cognição e avaliação a uma profusão de es- siderar a possibilidade de que essa multi-
uma experimentação da situação Parece que não só o conteúdo das feras de conduta seria possível por transfe- plicidade se faça reconhecer em elementos
e da prática acordante com um definições de habitus e campo, conforme rência analógica (mormente pré-reflexiva). integrados, mas em graus variáveis. A

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 87
ver-fazer e ouvir-dizer, no caso exigência de adaptabilidade prático-impro- o de evitar os exageros, de um lado, das plicidade perfeita entre habitus e situação
de formas de agir e crer incoe- visativa de qualquer ação a uma infinidade abordagens internalistas, e de outro, das foi, no conjunto da obra de Bourdieu, sis-
rentes, as formas de agir seriam de situações relativamente novas e impre- externalistas, que desconsideram a auto- tematicamente privilegiado (VANDENBER-
incorporadas via uma experi- visíveis, junto à conclusão de que “não se nomia relativa (empiricamente variável) dos GHE, [1999] 2010) e porque mesmo em sua
mentação da situação e da práti- pode inferir mecanicamente o conheci- campos, seja frente a um campo maior que literatura mais recente, em que esse autor
ca em desacordo com o ver-fazer mento dos produtos do conhecimento das eles componham, seja frente a uns aos ou- se aproxima mais do reconhecimento da
e o ouvir-dizer responsáveis pela condições de produção” (BOURDIEU, 1984, tros. natureza improvisativa e mesmo criadora
disposição a crer incorporada p. 135) posto que há uma seleção, pelo Numa avaliação justa do esquema de do habitus, encontram-se declarações de
(LAHIRE, [2002] 2004, p. 262). habitus, entre estímulo objetivo e a respos- Bourdieu, a coerência entre campos deve que seu ajuste de antemão à situação, bem
ta subjetiva, indicam que seus princípios ser, portanto, relativa, ao passo que a co- como sua harmonia interna, não obstante
9
Ainda quanto ao caso de Léa constitutivos devem ser tidos como relati- erência dos princípios geradores da ação sejam apenas casos particulares do possí-
Cantelli, Lahire apontaria, por vamente imprecisos e flexíveis e, portanto, deve ser meramente prática, em oposição vel, são casos particularmente frequentes,
exemplo, que o sentimento po- como compatíveis com alguma incoerência a uma coerência lógica. O diagnóstico lahi- e de que a ordem social tenha a tendência
sitivo de satisfação da persona- interna dos cursos de ação. riano parece falhar ao ignorar esses pontos de perseverar em seu ser (conatus) (BOUR-
gem com a experiência de traba- Quanto ao campo, por um lado, ele é primários justamente no delineamento de DIEU, [1997] 2001, p. 177,186).
lhar como formadora de públicos uma ferramenta analítica que permite de- sua crítica fulcral.19 O seguinte trecho de An Invitation to
analfabetos teria a ver, em parte, signar ora um campo de fenômenos abran- a Reflexive Sociology (1992) ilustra bem
com o fato de que a situação re- gente, ora parte dele, sem prejuízos. Isso essa dança de conclusões mais ou menos
avivava uma série de disposições poderia sugerir de fato, como quer Lahire, Considerações finais conflitantes:
por ela fortemente incorporadas que Bourdieu suponha uma harmonia geral
(disposições anti-imposição, an- entre eles. No entanto, duas considerações Tendo exposto acordos e reservas quanto O habitus não é a sina que algumas pessoas
ti-hierárquicas e de resistência) previnem contra a elevação dessa harmonia à crítica de Lahire, concluo que, embora reconhecem nele. Sendo produto da história,
(LAHIRE, [2002] 2004, p. 75). a um grau absoluto: a insistência em que em certos pontos ela se prove inexata, al- ele é um sistema aberto de disposições que
Este seria um caso ilustrativo de a designação de uma esfera de fenômenos gumas de suas proposições não devem ser está constantemente sujeito a experiências
coerência disposicional. Noutra como campo não pode ser aleatória – só é ignoradas em futuras tentativas de descri- que reforçam ou modificam suas estruturas
ocasião ([1999] 2001, p.132- campo aquilo que é regido pelos mesmos ção e explicação da ação social. [nota: para além dos efeitos de certas tra-
133), Lahire faria a qualificação princípios –, bem como em que o interesse Enquanto crítica interna, ela guarda jetórias, o habitus pode ser transformado,
de que é perfeitamente possível do uso dessa ferramenta é precisamente valor, sobretudo, porque o caso da cum- também, via sócio-análise, i.e., via um des-

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 88
que certos hábitos sejam inte- pertar da consciência e uma forma de ‘auto- Raras vezes, de fato, como sugere Lahire,
riorizados duravelmente sem -trabalho’ que permite ao indivíduo contro- esse olhar alcançou o nível das variações
que haja, da parte do sujeito, lar suas disposições (...). A possibilidade de inter e intraindividuais propriamente ditos.
qualquer gosto em atualizá-los. eficácia desse tipo de auto-análise é, em si, Como, no entanto, lançar luz sobre as mi-
Ao contrário do que sugeriria o determinada em parte pelas estruturas origi- núcias da aquisição e da condução de com-
caso anteriormente citado, com- nais do habitus em questão, em parte pelas petências quando se o ignora?
petência e apetência não andam condições objetivas sob as quais o despertar
necessariamente de mãos dadas. da consciência ocorre (...)].20 Ele [o habitus]
Como contraexemplos disso, o é durável, mas não eterno! Tendo dito isso,
autor citaria casos de amantes eu devo imediatamente acrescentar que há
da leitura com competências de uma probabilidade, inscrita no destino social
leitura falíveis, bem como pesso- associado a condições definitivas, de que
as com alta competência linguís- experiências confirmem o habitus, porque a
tica, graças a sua formação, que maioria das pessoas estão estatisticamente
não têm particular apreço pela comprometidas com se deparar com circuns-
leitura. Gosto, desgosto ou indi- tâncias que tendem a concordar com estes
ferença quanto a atualizar uma [seus habitus]. (BOURDIEU; WACQUANT,
disposição dependeriam de uma 1992, p.133, tradução minha).
série de fatores, dentro os quais
seu modo de aquisição, do mo- A crítica lahiriana demonstra, ainda,
mento da trajetória do indivíduo muito equilibradamente o interesse da
em se a adquire ou se a atualiza sociologia individual. Historicamente, en-
etc. quanto disciplina acadêmica, a sociologia
parece ter dirigido seu olhar às variações
10
Essa tendência se acirraria tan- entre civilizações, épocas, sociedades, gru-
to mais quanto maior o número pos, classes (ou subcategorias destes) e,
de produtos e atividades consi- mesmo na microssociologia interacionis-
derados na análise. ta, às situações socialmente tipificadas.21

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 89
11
Vejamos um exemplo mais Referências
concreto disso. Em sua vigésima
primeira entrevista da obra, Lahi- BOURDIEU, Pierre. (1979) A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2008.
re dissecaria o perfil cultural de
Brigitte, uma professora de le- ______. (1980) O senso prático. Petrópolis: Vozes, 2009.
tras de trinta e sete anos de ida-
de, oriunda das classes médias. ______. Questions de sociologie. Paris: Minuit, 1984.
Ela é casada com um homem
de nível sociocultural conside- ______. P. L’illusion biographique. Actes de la recherche en sciences sociales, v. 62-63, p. 69-72, 1986.
ravelmente menor que o seu e
tem três filhos. Socializada de ______. La Noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Minuit, 1989.
maneira intensa por uma forma-
ção escolar literária, Brigitte não ______. (1997) Meditações pascalianas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
conheceu, todavia, socializações
similares nos campos culturais BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. J. D. An invitation to reflexive sociology. London/Chicago: University of Chicago Press, 1992.
da música, do teatro, da dança
ou do cinema. Ela não detesta os BOLTANSKI, Luc. (2009) On critique: a sociology of emancipation. Cambridge/Malden: Polity Press, 2011.
lazeres de pura diversão, consi-
derados culturalmente pouco le- GOFFMAN, E. Interaction ritual: essays in face to face behavior. Chicago: Aldine Pub. Co., [1967] 2005.
gítimos: vai à boate cinco a seis
vezes por mês, vai a bailes públi- LAHIRE, Bernard. (1998) Homem plural: os determinantes da ação. Petrópolis: Vozes, 2002.
cos e a festas de feira, concertos
de rock e música pop. Em com- ______. (1999) De la théorie de l’habitus à une sociologie psychologique. In: LAHIRE, Bernard (Org.). Le travail sociologique de Pierre
pensação, nunca esteve em uma
sessão de caraoquê. No que diz Bourdieu: dettes et critiques. Paris: La Découverte, 2001.
respeito às saídas culturais mais
legítimas, Brigitte vai pouco ao ______. (2002) Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004.
teatro e nem sempre com gosto;

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 90
vai pouco a exposições de pintu- ______. (2004) A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed, 2006.
ra, mas nunca às de fotografia,
aos museus de ciências, aos es- ______. (2005) El espiritú sociológico. Buenos Aires: Manantial, 2006.
petáculos de dança e aos concer-
tos de música clássica. Por outro ______. (2013), O singular plural. Cadernos do Sociofilo, v. 3, n. 4, p. 16-26. Tradução de Thiago Panica Pontes.
lado, a professora tem o hábito
de ler muito, desde magazines e OLIVEIRA, Laura S. L. Sobre a força do hábito: estudo da controvérsia acerca da coerência interna das disposições a partir das obras
revistas de diversos tipos até his- de Pierre Bourdieu e Bernard Lahire. Monografia (Bacharelado em Sociologia). Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, 2013.
tórias em quadrinhos, poesias,
livros de arte, livros de história e PINTO, Louis. (1998) Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000.
romances franceses e estrangei-
ros – em geral, dos relativamente PONTES, Thiago P. Esquemas disposicionais e reflexividade: elementos para uma abordagem dialética. Dissertação (Mestrado em So-
legítimos que tratam de estórias ciologia). Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, IUPERJ, 2009.
de amor, como O diário de Brid-
get Jones, aos inquestionavel- VANDENBERGHE, Frédéric. (1999) O real é relacional: uma análise epistemológica do estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu. In: Teo-
mente muito legítimos; rejeita, ria social realista: um diálogo franco- britânico. Belo Horizonte: Editora UMG, 2010.
no entanto, veementemente os
livros comerciais. Quanto a seu
gosto musical, suas escolhas
são nitidamente menos legíti-
mas: muito pop e rock, nada de
jazz ou música clássica e muito
pouco de ópera. A televisão, por
sua vez, é assistida com muito
escrúpulo (nada de programas
baixos como reality shows ou
programas de auditório, umas
poucas séries e o foco nos pro-

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 91
gramas culturais, nos jornais informativos e nos erentes entre si, duas reações às novas situações de disposições heterogêneas, é, no entanto, ao
documentários). Os gostos cinematográficos de que se lhe podem apresentar são bastante previsí- contrário dos demais efeitos mencionados, igual-
Brigitte tendem a ser também mais legítimos (não veis. Nesse caso, os acontecimentos são meros de- mente adequada à imagem de disposições homo-
vê o que chama de coisas ridículas de americanos sencadeadores da ação, ao passo que a disposição gêneas.
ou comédias pastelão no cinema e prefere os fil- incorporada pode ser tida como sendo seu verda-
mes de autor, apesar de que, diante da televisão deiro determinante. Em seu próprio modelo, ao 15
Ver mais sobre campo e habitus na seção seguin-
ou usando o videocassete, se permita uma seleção contrário, Lahire preferiria falar, quanto à disposi- te.
mais relaxada) (LAHIRE, [2004] 2006, p. 126-30). ção incorporada e ao seu ambiente de atualização,
de parceiros disposicionais recíprocos (LAHIRE, 16
Sendo que o espaço, sem maiores qualificativos,
12
Uma exposição mais detida disso e dos proble- [1998] 2002, p. 51). seria “qualquer coisa que seja topologicamente
mas que certos pontos causam à abordagem lahi- construída como uma estrutura relacional de dife-
riana pode ser encontrada em minha monografia 14
Transferibilidade e sistematicidade são proprie- renças geradas por um princípio” (VANDENBERGHE,
sobre o mesmo tema (OLIVEIRA, 2013). dades supostas do habitus intimamente solidárias, [1999] 2010).
Lahire notará. Isso fica claro na menção elogiosa
13
Há que se ter em mente, em primeiro lugar, que que faz a certo esquema interpretativo para o 17
A estrutura relacional que forma o campo experi-
dizer de um ator social que ele é participante ativo comportamento humano proposto por Jon Elster, mentado até então pelo sujeito da ação, bem como
não implica dizer que ele seja necessariamente um em que figuram, entre os hábitos, efeitos de trans- seu habitus, frente um ao outro, dão forma e ha-
participante consciente. Em segundo lugar, cabe bordamento (que os reforçam uns aos outros), bilitam a atualização da ação desse sujeito – ação
mencionar que o recurso de Lahire à abordagem efeitos de soma nula (que anulam a possibilidade esta que, por sua vez, estruturará o campo a ser
disposicional denuncia, por si só, a importância de atualização contextual de outros) e efeitos de experimentado a partir de então, bem como seu
que o autor concede às experiências passadas compensação (que fazem recorrer, no que não se habitus.
incorporadas por cada ator na configuração de podem suprir as necessidades em face das quais
sua ação (LAHIRE, [1998] 2002, p. 59). O presente se encontra, por meio de um hábito, a outros) 18
Vide o que frisa o seguinte trecho: “O artifício
teria, porém, mais peso na explicação dos com- (LAHIRE, [1999] 2001, p. 137). O efeito de com- da razão pedagógica reside precisamente no fato
portamentos, das práticas ou das condutas, se os pensação, note, supõe a multiplicidade interna; o de extorquir o essencial sob a aparência de exigir
atores são tidos por internamente plurais. Quando de soma nula, a multiplicidade interna, bem como o insignificante, como o respeito das formas e as
um ator é socializado em condições pelo menos a eventual incoerência. A transferibilidade, tam- formas de respeito que constituem a manifestação
experimentadas como sendo particularmente co- bém perfeitamente compatível com essa imagem mais visível e, ao mesmo tempo, mais ‘natural’ da

Laura Luedy Estudo da controvérsia a respeito da coerência ou da incoerência interna das disposições a partir das obras de Pierre Bourdieu e de Bernard Lahire 92
submissão à ordem estabelecida ou as concessões não é o indivíduo e sua psicologia, mas sim as
de polidez, que sempre encerram concessões polí- relações sintáticas entre os atos de diferentes pes-
ticas.” (BOURDIEU, [1980] 2009, p. 87). soas mutualmente presentes umas às outras. Não
obstante, já que são os atores individuais que con-
19
Não se pode concluir, porém, que Lahire ignore tribuem com os materiais definitivos, sempre será
completamente essas mesmas particularidades, razoável perguntar que propriedades gerais eles
posto que as menciona em outras ocasiões. O que devem ter se esse tipo de contribuição deve ser
noto é que não as considera e incorpora à crítica esperada deles. (...) Que modelo mínimo do ator é
específica de que tratamos. necessário que se lhe demos uma forma definiti-
va e pomos entre seus pares, garantindo que um
20
Vale mencionar, sobre esse ponto que, a certa tráfego de comportamento ordeiro emerja? Que
altura de Meditações Pascalianas, Bourdieu traça- modelo mínimo é requerido se o estudante deve
ria uma distinção interessante entre a reflexivida- antecipar as linhas ao longo das quais um indiví-
de que corresponde a uma prática de sócio-auto- duo, qua interator, possa ser eficaz ou falhar? (...)
-análise e a reflexividade, que é fruto de um efeito Uma psicologia está necessariamente envolvida,
de histerese. Enquanto a primeira é voltada funda- mas uma simplificada e modelada para servir ao
mentalmente para o sujeito da prática, a última é estudo sociológico das conversas, das reuniões,
voltada para a prática em si e se faz por intermé- dos banquetes, dos julgamentos por júri, da vadia-
dio dos movimentos do corpo (BOURDIEU, [1997] gem nas ruas. Não, então, os homens [sic.] e seus
2001, p.197). Isso indica que a readequação re- momentos. Mais exatamente, os momentos e seus
flexiva das disposições talvez tivesse de induzir homens [sic.].” (GOFFMAN, 2005 (1967), p. 2-3,
à produção de um maior grau de homogeneidade grifos meus). Agradeço enormemente a Gabriel
interna se feita por via de socioanálise, dado que Peters por chamar atenção para esse ponto sobre
esta, enquanto autoanálise, teria de se sustentar o situacionalismo e pela indicação desta citação.
num fundamento egoico, num eu relativamente Descobri, posteriormente, a mesma opinião em
fixo durável. Bourdieu e Wacquant (1992, p.16).

21
“Presumo que o estudo apropriado da interação

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