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Sobre o conceito da historia tal modo que podia responder a cada lance de um j xadrez.com um contralance, que the dssegurava a vitér fantoche vestido a turca, com um narguilé na boca, sentava-se diante do tabuleiro, colocado numa grande mesa, Um sistema de espelhos criava a ilusto de que a mesa era totalmente vi- sivel, em todos os seus pormenores. Na reali coreunda se escondia nela, um mestre no com cordéis a mao do fantoche. Podemos i trapartida filos6fica desse mecanismo. O fantoche chamado “materialismo hist6rico” ganhard sempre. Ele pode enfrentar qualquer desafio, desde que tome a seu servi¢o a teologia, Hoje, ela é reconhecidamente pequena e feia ¢ nao ousa mos- trar-se. 2 seu futuro”. Essa reflexdo conduz-nos a pensar que nossa imagem da jade € totalmente marcada pela época que i atribuida pelo curso da nossa existéncia. A felicidade MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA 223 capaz de suscitar nossa inveja est toda, inteira, no ar que jé respiramos, nos homens com 0s quais poderiamos ter conver- sado, nas mulheres que poderiamos ter possuido. Em outr palavras, a imagem da felicidade est indissoluvelmente gada 4 da salvagao, O mesmo ocorre com a imagem do pas- sado, que a his 1a sua. O passado traz consigo um indice misterioso, que 0 impele a redengao. Pois nao somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Nao existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes ‘que emudeceram? Nao tém as mulheres que cortejamos irmas que elas no chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as geracbes precedentes e a nossa. Alguém na terra estd a nossa espera. Nesse caso, como a cada geracdo, foi-nos concedida uma fragil forca messianica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo nao pode | ser rejeitado impunemente. O materialista historico sabe disso. 3 cronista que narra os scimentos, sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado per- dido para a histéria. Sem divida, somente a humanidade redimida poder4 4propriar-se totalmente do seu passado, Isso quer dizer: somente para a humanidade redimida o pasado € citével, em cada um dos seus momentos. Cada momento vi- vido transforma-se numa citation d l'ordre du jour — e esse dia 6 justamente 0 do juizo 4 imeiro pela alimentagdo e pelo vestudrio, ¢ em seguida oreino de Deus vird por si mesmo". Hegel, 1807 fa de classes, que um historiador educado por Marx is perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas ¢ ma- iebycemanauneae econ ceanela eg ae * ma WALTER BENIAMIN Mas na luta de classes essas coisas espirituais nto podem ser atribuidos ao vencedor. Elas se a forma da confianca, da coragem, do humor, da astéicia, da firmeza, e agem de longe, do fundo dos tempos. Elas questinarao sempre cada vit6ria dos domi- nadores. Assim como as flores dirigem sua corola para o sol, assado, gracas a um misterioso heliotropismo, tenta se para osol que se levanta no céu da histéria. O materialismo hist6rico deve ficar atento a essa transformaco, a mais imper- ceptivel de todas. B A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O pas- sado 36 se deixa fixar, como imagem que relampeja i sivelmente, no momento em que é reconhecido, nunca nos escapara”” — essa frase de Gottfried Keller carac- teriza o ponto exato em que o historicismo se separa do mate- sente que se dirige ao presente, sem que esse presente se sinta visado por ela. 6 Articular historicamente o passado nio significa conhect- ica apropriar-se de uma remi- ja no momento de um perigo. Cabe ao materialismo hist6rico fixar‘uma imagem dopassado, como ela se apresenta, no momento do perigo, ao suieito his- torico, sem que ele tenha consciéncia disso. O perigo ameaga tanto a existfncia da tradigao como os que a recebem, Para ambos, 0 perigo é 0 mesmo: entregar-se as classes dominan- tes, como seu instrumento. Erit cada época, é preciso arrancar ‘a tradigio ao conformismo, que quer apoderar-se dela, Pois 0 Messias no vem apenas como salvador; ele vem também como 0 vencedor do Anticristo. © dom de despertar no pas- sado as centelhas da esperanca € privilégio exclusivo do histo- riador convencido de que também os mortos nao estario em MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA oy seguranga se 0 inimigo vencer. E esse inimigo nao tem cessado de veneer. “Pensa na escuridio e no grande fio ‘Que reinam nesse vale, onde soam lamentos.”" Brecht, Opera dos urés vinténs Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interes.’ sado em ressuscitar uma época que esqueya tudo 0 que sabe sobre fases posteriores da histéria. Impossivel caracterizar melhor 0 método com 0 qual rompen 0 materialistmo hist6- rico. Esse método o da empatia. Sua origem é a inércia do coraao, a acedia, que desespera de apropriar-se da verda- rica, em seu relampejar fugaz. Para os te6- Jogos medievais, a acedia era o primeiro fundamento da tris, teza. Flaubert, que a conhecia, escreveu: “Peu dé gens devi- a fallu étre triste pour ressusciter Car- thage”. A natureza dessa tristeza se tornaré mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece uma relagdo de empatia. A resposta é inequivoca: com o ven- cedor, Ora, os que num momento dado dominam so os her- deiros de todos os que venceram antes. A empatia com ven- cedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso diz tudo para o materialista hist6rico. Todos os que até hoje ven- ceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estao prostrados no cho, Os despojos sao carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos sd 0 que chamamos bens culturais. © mate- rialista hist6rico os contempla com distanciamento. Pois todos os bens culturais que ele vé tém uma origem sobre a qual ele niio pode refletir sem horror. Devem sua existéncia ndo so- mente ao esforgo dos grandes génios que os criaram, como corvéia andnima dos seus contemporaneos. Nunca houve um monumento da cultura que nao fosse também um monumento da barbirie. E, assim como a cultura nao éisenta de tarbérie, no 06, tampouco, 0 processo de transmissio da cultura. Por isso, na medida do possivel, o materialista histérico se desvia dela, Considera sua tarefa escovar a hist6ria a contrapelo, note g 226 WALTER BENJAMIN 8 ‘A tradigto dos oprimidos nos ensina que 0 “estado de excecdo” em que vivemos é na verdade a regra geral. Preci- samos construir um conceito de histria que corresponda a jade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa iginar um verdadeiro estado de excec0; com isso, nossa posigio ficaré mais forte na luta contra o fascismo. Este se benelicia da circunstdncia de que seus adversarios o enfren- tamem nome do progresso, considerado como uma norma his- t6rica. O assombro com 0 fato de que os episédios que vivemos no séculos XX “ainda” sejam possfveis, nfo € um assombro filos6fico, Ele nao gera nenhum conhecimento, a no ser 0 conhecimento de que a concepeao de hist6ria da qual emana semelhante assombro é insustentivel. ¥ “Minhas asas estio prontas para o véo, Se pudesse, eu retrocederia Pois eu seria menos feliz Se permanecesse imerso no tempo vivo." Gerhard Seholem, Saudaedo do anjo Ha um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estio escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da historia deve ter esse aspecto, Seu rosto est dirigido para o passado. Onde n6s vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vé uma catistrofe ‘inica, que acumula incansavelmente ruina sobre ruina e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar 0s fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraiso e prende-se em suas asas com tanta forga que ele no pode mais feché-las. Essa tempestade o impele irresistivel- mente para 0 futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto 0 amontoado de ruinas cresce até 0 céu. Essa tempestade € 0 que chamamos progresso. MAGIA E TECNICA, ARTE E POLITICA a7 10. Os temas que as regras do élaustro impunham a medi- tagdo dos monges tinham como fungo desvié-los do mundo ¢ das suas pompas. Nossas reflexdes partem de uma preocu- agio semelhante. Neste momento, em que os politicos nos uais os adversérios do fascismo tinham depositado as suas esperangas jazem por terrae agrayam sua derrota com a trai- ‘clo & sua propria causa, temos que arrancar a politica das malhas do mundo profano, em que ela havia sido enredado por aqueles traidores. Nosso ponto de partida é a idéia de que a obtusa 6 no progresso desses politicos, sua confianga no “apoio das massas” e, finalmente, sua subordinagao servil ‘um aparelho incontrolével so tr€s aspectos da mesma real dade. Estas reflexdes tentam mostrar como € alto 0 prego au: nossos hdbitos mentais tém que pagar quando nos ass a uma concepeao da histéria que recusa toda cumplic ‘com aquela a qual continuam aderindo esses politicos. 11) © conformismo, que sempre esteve em seu elemento na na apenas suas taticas polf- ticas, mas também suas idéias econémicas. F uma das causas do seu colapso posterior. Nada foi mais corruptor para a clas- se operiria alema que a opiniao de que ela nadava co corrente. © desenvolvimento técnico era visto como o dec da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Dai s6 ha um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os tragos do progresso técnico, representava uma grande conquista politica. A antiga moral protestante do trabalho, seculatizada, festejava uma ressurreigfo na classe trabalha- dora alema. O Programa de Gotha ja continha elementos dessa confusdo. Nele, 0 trabalho é definido como ‘a fonte de toda riqueza e de toda civilizagdo”’. Pressentindo o pior, Marx replicou que o homem que nao possui outra propriedade que a sua forca de trabalho esté condenado a ser ‘o escravo de outros homens, que se tornaram... proprietirios”. Apesar disso, a confusio continuou a propargar-se, e pouco depois: Josef Dietzgen anunciava: “O trabalho é 0 Redentor dos

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