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O exame neuropsicoldgico: 0 que € € para que serve? LEANDRO F. MALLOYDINIZ PAULO MATTOS NEANDER ABREU DANIEL FUENTES jferentemente de outras modalidades de avaliagio cognitiva, o exame neuropsicoldgico parte necessariamente de um pressuposto monista materialista segundo 0 qual todo comportamento, proceso cognitivo ou reagao emocional tem como base a atividade de sistemas neurais especificos. De acordo com Baron (2004), a especialidade da neuropsicologia inclui profissionais que apresentam background tedrico e de formagées diversas. Essa diversidade tedrico-conceitual é uma das forgas da neuropsicologia e impulsiona nao apenas a produgio de conhecimento como também a eficiéncia de suas aplicagdes. A despeito da existéncia de diferentes concepgdes sobre a pratica clinica da neuropsicologia, Lamberty (2005) propde que o principal objetivo de um neuropsicélgo clinico é sempre o mesmo: compreender como determinada condigio patolégica afeta o comportamento observavel do paciente (entendido aqui como cogni¢ao, comportamento propriamente dito e emogio). De acordo com Benton (1994), o exame neuropsicoldgico permite tragar inferéncias sobre a estrutura e a fingao do sistema nervoso a partir da avaliagao do comportamento do paciente em uma situagio bem controlada de estimulo-resposta. Nela, tarefas cuidadosamente desenvolvidas para acessar diferentes dominios cognitivos sao usadas para eliciar comportamentos de um paciente. Tais respostas so, ent&o, interpretadas como normais ou patol égicas pelo expert. Este, por sua vez, usara nao apenas a interpretagao de parametros quantitativos (comparagéo com parametros populacionais de desempenho), mas, principalmente, a analise dos fenémenos observados e sua relagio com a queixa principal, a historia clinica, a evolugao de sintomas, os modelos neuropsicoldgicos sobre o fncionamento mental ¢ o conhecimento de psicopatologia. Embora os neuropsicdlogos usem com grande frequéncia os testes cognitivos, estes sio apenas um dos quatro pilares da avaliagio neuropsicoldgica. Os demais sio a entrevista, a observagio comportamental e as escalas de avaliagao de sintomas. Os testes geralmente sio supervalorizados em diversos programas de formagio em neuropsicologia e por profissionais em inicio de formagao. Ha também um apelo cartorial que clama pela reserva de mercado da neuropsicologia para psicdlogos. Um dos pontos centrais desse argumento é a retificagao de testes psicol dgicos como a pedra filosoftl da neuropsicologia. A formacao bem-sucedida de um neuropsicélogo certamente o levaré a dar a devida dimensio aos testes cognitivos, encarando-os como meio, jamais como fim. Obviamente, os testes so indispensiveis na pratica do neuropsicélogo, porém devem ser corretamente escolhidos de acordo com hipdteses aventadas na entrevista e coerentes com a observagao comportamental. O conhecimento sobre a validade de construto, a validade de critério a validade ecolégica, bem como sobre parametros normativos e fidedignidade, é algo necessario na pratica clinica do neuropsicélogo. Além disso, as informagdes geradas por testes sio geralmente potencializadas pelas que sio coletadas a partir do uso de escalas de avaliagao de sintomas. Mas, novamente, eles sempre sero um meio de investigacao, e jamais um fim em si mesmos. Mattos (2014) define o exame neuropsicolégico como um exame clinico armado. Como qualquer exame clinico, compreende anamnese abrangente e observagio clinica do paciente. Seu diferencial esta na selecio das “armas” (geralmente, testes e escalas) que poderao auxiliar na investigagio de hipoteses especificas e no esclarecimento de déficits sutis, De modo geral, o exame realizado com baterias de testes neuropsicolégicos que envolvem uma variedade de fungdes, tais como meméria, atengao, velocidade de processamento, raciocinio, julgamento, fungdes da linguagem e fungées espaciais (Harvey, 2012). Para avaliacao dessas fungées, boas armas so aquelas capazes de reproduzir, no contexto do consultério, em situago controlada, varios dos processos presentes na rotina natural de quem esté sendo avaliado. A anilise fenomenoldgica e psicométrica do que se observa nessa etapa da avaliagao ajuda a inferir nfo apenas sobre a funcionalidade do paciente em seu dia a dia como também sobre a integridade ou os danos em diferentes sistemas neurais, bem como sobre a presenga de neuropatologias. Neste capitulo, caracterizaremos 0 exame neuropsicolégico em termos de seus objetivos e aplicagées principais, Nosso ponto de partida sera a fundamentagio do principal diferencial do exame neuropsicoldgico em relagio a outros tipos de avaliagao cognitiva: conhecimento de correlagdes entre a atividade cerebral e o fincionamento cognitivo/comportamental CORRELACOES ESTRUTURA-FUNCAO E O EXAME NEUROPSICOLOGICO: O QUE O NEUROPSICOLOGO DEV! SABER? Em uma época na qual nao existiam exames de neuroimagem e pouco se conhecia sobre a atividade do sistema nervoso, os tmicos recursos disponiveis para inferir o fincionamento cerebral de um paciente eram o registro e a anilise de suas respostas (via entrevista, observacao comportamental ¢ realizagio de pequenas tarefas solicitadas pelo clinico). A neuropsicologia moderna surge nesse contexto, durante a transi¢io entre os séculos XIX e XX. Nesse periodo, as mimuciosas observagées clinicas feitas por médicos como Harlow (1868), Broca (1861) e Wernicke (1874) impulsionaram 0 empreendimento cientifico conhecido como localizacionismo. Correlacionar a atividade de centros cerebrais ¢ fungdes mentais especificas (dissociagao simples) propiciou gradualmente o surgimento da avaliagao neuropsicoldgica. A comparagao entre diversas dissociagées simples impulsionou o desenvolvimento de uma concepgio modular de cogni¢ao, segundo a qual cada processo cognitivo ¢ relativamente independente dos demais ¢ apresenta sua propria base orginica. Essa evolugio conceitual e clinica levou ao desenvolvimento das duplas-dissociagdes (ver Quadro 1.1), como proposto por Teuber (1955), de modo que passaram a ser consideradas 0 principal recurso para compreender a relagio entre estrutura e fimgio, tornando-se 0 padrdo-ouro para o estabelecimento de associagées entre a atividade neural e suas consequéncias fimcionais. O exemplo da Figura 1.1 mostra uma dupla-dissociagao classica, ligada ao processamento da linguagem. Nela, vemos duas regides distintas relacionadas expressio (rea de Broca) e 4 compreensao (area de Wernicke) da linguagem. Enquanto lesdes na area de Broca comprometiam a fluéncia e a capacidade de expresso por meio da linguagem, preservando relativamente a compreensio, lesdes na area de Wernicke comprometiam a compreensao, preservando de forma relativa a fluéncia verbal. QUADRO 1.1 * Conceito de duple-dissociagio ‘As duplas-dissociagties comparam associagGes especificas entre estruturas neumas e consequéncias funcionais. Els so fundanentedas no seguinte mciocinio: 1 cognitivalcomportamental Y”, 2. se una eeéo em Ycompmomete a fingo cognitivalcomportanental Y mas preserva a fungéo cognitiva/comportamental X’, 3. logo, aatividade da regiéo X esta relacionada a fimgo cognitivalcomportanental X’,e a atividade da regiéo cerebral Yesté relacionada a cognitivalcomportamental rt Figura 1.1 Dupla-tissociagio entre as areas de Broca e de Wemicke © localizacionismo estrito no era a tmica forma de compreender a relagio entre a atividade cerebral e os processos mentais. Pierre Flourens e, posteriormente, Karl Lashley destacavam-se entre os proponentes de uma visio holistica do funcionamento neural, segundo a qual o cérebro atua como um todo integrado, Assim, nfo existem os chamados centros fimcionais no cérebro. Os principios fimdamentais do holismo sao a equipotencialidade (todas as regides tém a mesma fungao) e€ a agio em massa (a quantidade de tecido danificado é 0 que determina o grau de comprometimento).

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