PRÓLOGO
Doze Barbudos
Ah!, de que maneira os mortais censuram os deuses! A dar-lhes ouvidos, de nós provêm todos os
males, quando afinal, por sua insensatez, e contra a vontade do destino, são eles os autores de suas
desgraças.
Odisséia, de Homero. 1*
CAPÍTULO UM
Não é o homem mais que isto? Considerai-o bem: Ao verme não deves a seda, ao animal o abrigo,
ao carneiro a lá e ao gato o perfume. Ah! Dos presentes, três somos adulterados; tu és a coisa em
si. O homem sem atavios não passa de um pobre animal, nu e fendido como tu.
Rei Lear1
A similaridade é a sombra da diferença. Duas coisas são similares graças a sua diferença
de outra; ou diferentes em virtude da similaridade de uma delas com uma terceira.
Assim é com os indivíduos. Um homem baixo é diferente de um homem alto, mas dois
homens parecem similares se comparados com uma mulher. E assim é com as espécies.
Um homem e uma mulher podem ser tão diferentes, mas, em comparação com um
chimpanzé, são suas similaridades que chamam a atenção — a pele sem pêlos, a postura
ereta, o nariz proeminente. Um chimpanzé, por sua vez, é similar a um ser humano
quando comparado com um cão; a face, as mãos, os 32 dentes, e assim por diante. E um
cão é como uma pessoa na medida em que ambos são diferentes de um peixe. A
diferença é a sombra da similaridade.
Considere, então, os sentimentos de um jovem ingênuo quando desembarcou na
Terra do Fogo em 18 de dezembro de 1832 para seu primeiro encontro com o que
chamaremos agora de caçadores-coletores, ou o que ele chamaria de “homem em estado
natural”. Melhor ainda, deixemos que ele conte a história:
Foi, sem exceção, o mais curioso & interessante espetáculo que já contemplei. Não teria
acreditado em como são diferentes o selvagem & o homem civilizado. A diferença é muito maior
que entre um animal selvagem & um domesticado, mesmo porque no homem há maior poder de
aperfeiçoamento (...). Acredito que, se o mundo fosse investigado, não se encontraria nenhum grau
inferior de homem.2
O efeito em Charles Darwin foi tão chocante porque foram os primeiros nativos da
Terra do Fogo que ele via. Ele compartilhou um barco com três deles, que foram
transportados para a Grã-Bretanha, vestidos em camisas e casacos e levados para
conhecer o rei. Para Darwin, eles eram tão humanos quanto qualquer pessoa. Todavia
aqui estavam seus parentes, subitamente parecendo bem menos humanos. Eles lhe
recordavam.., bem, animais. Um mês depois, sobre a descoberta do local de um único
caçador de lapa da Terra do Fogo em um lugar ainda mais remoto, ele escreveu em seu
diário: “Encontramos o lugar onde ele dormiu — que possivelmente não proporcionava
mais proteção do que a toca de uma lebre. Quão pequenos são os hábitos de tal ser
superior em relação aos de um animal.” 3 Subitamente, ele está escrevendo não sobre a
diferença (entre o homem civilizado e o selvagem), mas sobre a similaridade — a
afinidade entre tal homem e um animal, O nativo da Terra do Fogo é tão diferente do
estudante de Cambridge que ele começa a parecer um animal.
Seis anos depois de seu encontro com os nativos da Terra do Fogo, na primavera
de 1838, Darwin visitou o zoológico de Londres e ali, pela primeira vez, viu um grande
macaco. Era um orangotango fêmea chamada Jenny, e era o segundo macaco a ser
trazido para o zoológico. Seu predecessor, Tommy, um chimpanzé, fora exibido no
zoológico por alguns meses em 1835, antes de morrer de tuberculose. Jenny foi
adquirida pelo zoológico em 1837 e, como Tommy, causou uma pequena comoção na
sociedade londrina. Ela parecia um animal tão humano, ou era uma pessoa bestializada?
Os macacos impunham questões desagradáveis sobre a distinção entre as pessoas e os
animais, entre a razão e o instinto. Jenny figurou na capa da Penny Magazine of the
Society for the Diffusion of Useful Knowledge, em que o editorial reafirmou aos leitores
que, “embora o orangotango possa ser extraordinário se comparado com seus
companheiros da criação bruta, nada faz para violar as esferas moral ou mental do
homem”. A rainha Vitória, que viu um orangotango diferente no zoológico em 1842,
discordou categoricamente. Ela o descreveu como “assustadora, dolorosa e
desagradavelmente humano”.4
Depois de seu primeiro encontro com Jenny em 1838, Darwin voltou ao zoológico
outras duas vezes alguns meses depois. Ele retornou armado com uma harmônica, um
pouco de pimenta e um ramo de verbena. Aparentemente, Jenny apreciou os três. Ela
pareceu “assombrada além da medida” com seu reflexo no espelho. Ele escreveu em seu
caderno de notas: “Deixe que o homem visite o orangotango em cativeiro (...) veja sua
inteligência (...) e depois deixe-o se jactar de sua preeminência orgulhosa (...). O
homem, em sua arrogância, considera-se uma grande obra, admirável ato da divindade.
Mais humilde, eu acredito ser verdade considerá-lo oriundo dos animais,” Ele estava
aplicando aos animais o que aprendera a aplicar à geologia: o princípio uniformitarista
de que as forças que hoje modelam a paisagem são as mesmas que modelaram o
passado distante. Mais tarde, ainda em setembro, enquanto lia o ensaio de Malthus
sobre a população, ele teve seu súbito insight do que agora conhecemos como seleção
natural.
Jenny fez sua parte. Quando pegou a harmônica e colocou-a nos lábios, ela o
ajudou a perceber como os animais podiam ascender acima do embrutecimento, como
os habitantes da Terra do Fogo tinham-no levado a perceber como alguns seres
humanos podiam cair abaixo da civilização. Haverá mesmo um abismo?
Ele não foi o primeiro a pensar desta forma. Na verdade, um juiz escocês, lorde
Monboddo, tinha especulado na década de 1790 que os orangotangos podiam fadar —
desde que educados para isso. Jean-Jacques Rousseau foi apenas mais um dos vários
filósofos do Iluminismo que se perguntou se os macacos não evoluíam para os
“selvagens”. Mas foi Darwin que mudou a forma pela qual o ser humano pensa sua
própria natureza. Ainda em vida viu a opinião acadêmica começar a aceitar que o corpo
humano era o do macaco modificado, descendendo de um ancestral comum.
Mas Darwin teve menos sucesso em convencer seus companheiros humanos de
que o mesmo argumento podia ser usado para a mente. Acreditava, desde suas primeiras
anotações após ler o Tratado da natureza humana de David Hume para seu último livro
sobre as minhocas, que havia similaridade, em vez de diferença, entre o comportamento
humano e o animal. Ele tentou com seus filhos o mesmo teste do espelho que havia
experimentado com Jenny. Especulou continuamente sobre os paralelos animais e as
origens evolutivas das emoções, gestos, estímulos e hábitos humanos. Como declarou
abertamente, a mente precisava da evolução tanto quanto o corpo.
Mas nisso ele foi abandonado por muitos de seus adeptos, e o psicólogo William
James foi uma notável exceção. Alfred Russel Wallace, por exemplo, o co-descobridor
do princípio da seleção natural, afirmou que a mente humana era complexa demais para
ser produto da seleção natural. Devia, em vez disso, ser uma criação sobrenatural. O
raciocínio de Wallace era atraente e lógico. Baseava-se na similaridade e na diferença,
novamente. Wallace era extraordinariamente, para seu tempo, desprovido de
preconceito racial. Ele viveu entre os nativos da América do Sul e do Sudeste da Ásia e
considerava-os iguais, moral se não intelectualmente. Isso o levou à crença de que todas
as raças da humanidade têm capacidades mentais semelhantes, o que o confundiu,
porque isso implicava que, nas sociedades mais “primitivas”, grande parte da
inteligência humana não era utilizada. Qual era o sentido de ser capaz de ler ou fazer
uma divisão complexa se iríamos passar toda a vida em uma floresta tropical? Logo,
disse Wallace, “alguma inteligência superior dirigiu o processo pelo qual se
desenvolveu a raça humana”.5
Sabemos agora que o pressuposto de Wallace estava inteiramente correto onde o
de Darwin estava errado. O hiato entre o homem “inferior” e o macaco “superior” é
enorme. Genealogicamente, todos descendemos de um ancestral comum muito recente
que viveu apenas há 150.000 anos, enquanto o último ancestral comum com um
chimpanzé viveu há pelo menos 5 milhões de anos. Geneticamente, as diferenças entre
um ser humano e um chimpanzé são pelo menos dez vezes mais numerosas que aquelas
entre os dois seres humanos mais parecidos. Mas a dedução de Wallace a partir deste
pressuposto, de que a mente humana e a mente animal requerem explicações diferentes,
não é garantida. Só porque dois animais são diferentes não significa que eles não
possam ser similares.
René Descartes decretou firmemente no século XVII que as pessoas eram
racionais e os animais eram autômatos. “Eles agem não por conhecimento, mas por
disposição de seus órgãos (...). Os brutos não só têm um grau menor de raciocínio que o
homem, mas carecem completamente dele.” 6 Darwin prejudicou essa distinção
cartesiana por algum tempo. Livres pelo menos da necessidade de considerar a mente
humana uma criação divina, alguns contemporâneos de Darwin, os instintivistas,
começaram a pensar nos seres humanos como autômatos levados pelo instinto; outros,
os “mentalistas”, começaram a creditar ao cérebro humano o raciocínio e o pensamento.
O antropomorfismo mentalista chegou ao apogeu na obra do psicólogo vitoriano
George Romanes, que elogiou a inteligência dos animais de estimação, como os cães
que podiam erguer trincos e gatos que pareciam entender seus donos. Romanes
acreditava que a única explicação para seu comportamento era a escolha consciente. Ele
chegou a afirmar que cada espécie de animal tem uma mente como a de um ser humano,
apenas está congelada em um estágio equivalente ao de uma criança de uma certa idade.
Portanto, um chimpanzé tinha a mente de um adolescente, enquanto um cão era o
equivalente a uma criança mais nova, e assim por diante.7
A ignorância em relação aos animais selvagens sustentava esta concepção. Sabia-
se tão pouco sobre o comportamento dos macacos que era fácil pensar neles como
versões primitivas das pessoas, em vez de animais sofisticados, brilhantemente bons
sendo macacos. Em especial com a descoberta do aparentemente feroz gorila em 1847,
os encontros entre seres humanos e macacos selvagens foram exclusivamente curtos e
violentos. Quando eram levados aos zoológicos, os macacos tinham pouca oportunidade
de mostrar seu repertório de hábitos selvagens, e seus carcereiros pareciam manifestar
mais interesse em sua capacidade de “macaquear” costumes humanos do que no que
pertencia naturalmente a eles. Por exemplo, desde a primeira chegada dos chimpanzés à
Europa, parece ter havido uma obsessão em servir-lhes chá. O grande naturalista francês
Georges Leclerc, conde de Buffon, foi um dos primeiros “cientistas” a ver um
chimpanzé cativo, por volta de 1790. O que ele achou digno de nota? Que ele o
observou “pegar uma xícara e um pires e colocá-los na mesa, colocar o açúcar, verter
chá, deixá-lo esfriar sem beber”.8 Thomas Bewick, alguns anos depois, relatou
esbaforido que um macaco, “visto em Londres alguns anos atrás, aprendeu a se sentar à
mesa, fazendo uso de uma colher ou garfo para comer seus víveres”. 9 E quando
chegaram ao zoológico de Londres na década de 1830, Tommy e Jenny foram
rapidamente ensinados a comer e beber à mesa, para deleite do público pagante. Nasceu
aí a tradição do chá dos chimpanzés. Na década de 1920, era um ritual diário no
zoológico de Londres; chimpanzés treinados tanto para imitar costumes humanos como
para quebrá-los: “havia o eterno risco de que suas maneiras à mesa se tornassem polidas
demais”.10 O chá dos chimpanzés nos zoológicos durou cinqüenta anos. Em 1956, a
empresa Brooke Bond fez o primeiro de seus muitos comerciais de televisão
imensamente bem-sucedidos para seu chá usando chimpanzés tomando esta bebida, e a
Tetley abandonou suas propagandas de chá com chimpanzés somente em 2002. Em
1960, os seres humanos ainda sabiam mais sobre a capacidade dos chimpanzés de
aprender maneiras à mesa de chá do que sabiam sobre como os animais se comportavam
no meio selvagem. Não é de surpreender que os macacos fossem vistos como ridículos
aprendizes de gente.
Na psicologia, o mentalismo foi logo ridicularizado e demolido. O psicólogo
Edward Thorndike, no início do século XX, demonstrou que os cães de Romanes
invariavelmente aprendiam seus truques inteligentes por acidente. Eles não entendiam
como um trinco de porta era aberto; apenas repetiam qualquer ação que, acidentalmente,
lhes permitisse abrir a porta. Em reação à credulidade do mentalismo, os psicólogos
começaram a fazer o pressuposto contrário: de que o comportamento animal era
inconsciente, automático e reflexivo, O pressuposto logo se tornou um credo. Os
behavioristas radicais, que repeliram os mentalistas na mesma década em que os
bolcheviques repeliram os mencheviques, afirmaram bruscamente que os animais não
pensam, refletem ou raciocinam: apenas reagem a estímulos. Tornou-se até heresia falar
de animais tendo estados mentais, o que dizer de atribuir compreensão humana a eles.
Logo, com Burrhus Skinner, os behavioristas aplicariam a mesma lógica aos seres
humanos. Afinal, as pessoas não apenas antropomorfizam os animais, elas acusam
torradeiras de perversidade e as tempestades de fúria. Também antropomorfizam outras
pessoas, creditando a elas razão demais e hábitos de menos. Tente argumentar com um
viciado em nicotina.
Mas como ninguém levou Skinner muito a sério sobre o tema das pessoas, os
behavioristas inadvertidamente restauraram a distinção entre a mente humana e animal
exatamente onde Descartes a havia colocado. Os sociólogos e antropólogos, com sua
ênfase no peculiar atributo humano chamado cultura, condenaram toda aquela conversa
de instinto humano. Em meados do século XX, era heresia falar em mente animal e falar
em instintos humanos. A diferença, não a similaridade, era tudo.
Tudo isso iria mudar em 1960, quando uma jovem praticamente ignorante da ciência
começou a observar chimpanzés nas margens do lago Tanganica. Como escreveu ela
mais tarde:
Como eu era ingênua. Como não era cientista, não percebi que se supunha que os animais não
tinham personalidade, nem pensavam, nem sentiam emoções ou dor (...). Sem saber, livremente fiz
uso de todos os termos e conceitos proibidos em minhas primeiras tentativas de descrever, com o
máximo de minha capacidade, as coisas maravilhosas que observei em Gombe. 11
E assim, o relato de Jane Goodall da vida entre os chimpanzés de Gombe é lido como
um episódio sobre a Guerra dos Rose escrita por Jane Austen — tudo é conflito e
caráter. Sentimos a ambição, o ciúme, a ilusão e a afeição; distinguimos personalidades;
percebemos motivos; não podemos deixar de enfatizar que:
Gradualmente, a confiança de Evered voltou — em parte, sem dúvida, porque Figan nem sempre
estava com seu irmão. Faben ainda era amistoso com Humphrey, e Figan, sabiamente, obedecia
claramente ao macho poderoso. Além disso, mesmo quando os irmãos estavam juntos, Faben nem
sempre ajudava Figan: às vezes ele apenas se sentava e assistia. 12
Para onde quer que se olhe, há similaridades entre nosso comportamento e o dos
animais que não podem ser simplesmente varridas para debaixo do tapete cartesiano.
Todavia, é claro, seria perverso afirmar que as pessoas não são diferentes dos
chimpanzés. A verdade é que somos diferentes. Somos mais capazes de
autoconsciência, de calcular e de alterar o ambiente circundante do que qualquer outro
animal. É óbvio, em certo sentido, que isso nos distingue. Construímos cidades,
viajamos ao espaço, adoramos deuses e escrevemos poesia. Cada uma dessas coisas
deve algo a nossos instintos animais — abrigo, aventura e amor —, mas isso na verdade
não as define bem. É quando vamos além do instinto que parecemos mais
idiossincraticamente humanos. Talvez, como sugeriu Darwin, a diferença seja de grau, e
não de tipo; é quantitativa, não qualitativa. Podemos contar melhor que os chimpanzés;
podemos raciocinar melhor, pensar melhor, comunicarmo-nos melhor, emocionarmo-
nos melhor, talvez até adorar melhor. Nossos sonhos são provavelmente mais vívidos,
nosso riso mais intenso, nossa empatia mais profunda.
Isso nos leva, porém, direto de volta ao mentalismo, igualando um chimpanzé
com um aprendiz de gente. Os mentalistas modernos têm tentado diligentemente ensinar
animais a “falar”. Washoe (um chimpanzé), Koko (um gorila), Kanzi (um bonobo) e
Alex (um papagaio) têm se saído extraordinariamente bem. Eles aprenderam centenas
de palavras, em geral na forma da linguagem de sinais, e aprenderam a combiná-las em
frases primitivas. Todavia, como assinalou Herbert Terrace depois de fazer o mesmo
com um chimpanzé chamado Nim Chimpsky, o que todos estes experimentos nos
ensinam é como esses animais são ruins em linguagem. Eles raramente chegam aos pés
de uma criança de dois anos, e parecem incapazes de usar a sintaxe e a gramática,
exceto acidentalmente. Como Stalin parece ter dito da força militar, a quantidade tem
uma qualidade toda sua. Somos tão melhores do que o mais inteligente dos chimpanzés
em linguagem que isso pode ser chamado de diferença de tipo e não de grau. Não é o
mesmo que dizer que não há fundamentos e homologias na comunicação animal, mas
que a asa de um morcego tem homologia com o pé dianteiro de um sapo, e um sapo não
pode voar. Concordar que a linguagem é uma diferença qualitativa não implica que
possamos excluir a criação nos seres humanos, contudo. As trombas são específicas dos
elefantes. Cuspir veneno é típico das cobras. A singularidade não é singular.
Então o que somos nós, similares aos macacos ou diferentes dos macacos? As
duas coisas. O argumento sobre o excepcionalismo humano, hoje como nos tempos
vitorianos, está atolado em uma confusão simples. As pessoas ainda insistem que seus
oponentes devem assumir um lado: ou somos animais instintivos, ou somos seres
conscientes, mas não podemos ser os dois. Porém, tanto a similaridade como a diferença
podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Você não tem de abandonar o que existe de
iniciativa humana quando aceita o parentesco de nossa mente com a dos macacos. 17
Nem a similaridade nem a diferença vence; elas coexistem. Deixe que alguns cientistas
estudem as similaridades enquanto outros estudam as diferenças. É hora de
abandonarmos o que a filósofa Mary Midgley chamou de “a estranha segregação de
seres humanos de seu parentesco, que tem deformado muito o pensamento iluminista”.
18
ENTRA A GENÉTICA
Não resisto a fazer uma analogia. A frase de abertura do romance David Copperfield, de
Charles Dickens, é a seguinte: “Se devo me tornar o herói de minha própria vida, ou se
esta estação não será de mais ninguém, estas páginas mostrarão.” A frase de abertura do
romance O apanhador no campo de centeio, de J. D. Salinger, diz: “Se querem mesmo
ouvir o que aconteceu, a primeira coisa que vão querer saber é onde nasci, como passei
a porcaria da minha infância, o que os meus pais faziam antes que eu nascesse, e toda
essa lengalenga tipo David Copperfield, mas, para dizer a verdade, não estou com
vontade de falar sobre isso.” Nas páginas que se seguem, para uma aproximação,
Dickens e Salinger usam os mesmos poucos milhares de palavras. Há palavras que
Salinger usa, mas não Dickens, como elevador ou besteira. Há palavras que Dickens
usa, mas não Salinger, como coifa e impertinente. Mas elas serão poucas se comparadas
com as palavras que compartilham. Provavelmente, há pelo menos 90% de
concordância léxica entre os dois livros. Todavia são livros muito diferentes. A
diferença não está no uso de um conjunto diferente de palavras, mas no mesmo conjunto
de palavras usadas em um padrão ou ordem diferente. Da mesma forma, a origem das
diferenças entre um chimpanzé e um ser humano não está nos diferentes genes, mas no
mesmo conjunto de 30.000 genes usados em uma ordem ou padrão diferentes.
Digo isso com confiança por uma razão principal. A surpresa mais atordoante que
os cientistas tiveram quando abriram a tampa do genoma animal pela primeira vez foi a
descoberta dos mesmos conjuntos de genes em animais bem diferentes. No início dos
anos 80, os geneticistas das moscas ficaram surpresos quando descobriram um pequeno
grupo de genes, que eles chamaram de genes hox, que pareciam estabelecer um plano
corporal da mosca durante seu desenvolvimento inicial — aproximadamente dizendo
onde colocar a cabeça, as pernas, as asas e assim por diante. Mas eles estavam
completamente despreparados para o que veio a seguir. Seus colegas que estudavam
camundongos descobriram os mesmos genes hox, na mesma ordem, fazendo a mesma
coisa. O mesmo gene diz ao embrião de camundongo onde (mas não como) desenvolver
costelas, como diz ao embrião de mosca onde desenvolver asas: você pode até trocá-lo
entre as espécies. Nada tinha preparado os biólogos para este choque. Ele significou,
com efeito, que o plano básico do corpo de todos os animais tinha sido definido no
genoma de um ancestral extinto há muito tempo, que viveu há mais de 600 milhões de
anos e foi preservado desde então em seus descendentes (e isso inclui você).
Os genes hox são as receitas para proteínas chamadas “fatores de transcrição”, o
que significa que sua tarefa é “ativar” outros genes. Um fator de transcrição funciona
ligando-se a uma região do DNA denominada promotor. 34 Em criaturas como as
moscas e as pessoas (ao contrário de uma bactéria, digamos), os promotores consistem
em cinco trechos separados do código de DNA, em geral na parte superior do gene, às
vezes na parte inferior. Cada uma destas seqüências atrai um tipo diferente de fator de
transcrição, que por sua vez inicia (ou bloqueia) a transcrição de um gene. A maioria
dos genes não será ativada até que vários de seus promotores tenham apanhado os
fatores de transcrição. Cada fator de transcrição é um produto de outro gene, presente
em algum lugar do genoma. A função de muitos genes é, portanto, ajudar a ativar ou
desativar outros genes. E a suscetibilidade de um gene a ser ativado ou desativado
depende da sensibilidade de seus promotores. Se seus promotores mudaram, ou
alteraram a seqüência de forma que os fatores de transcrição os encontrem mais
facilmente, o gene pode ser mais ativo. Ou, se a mudança fez com que os promotores
atraíssem fatores de bloqueio de transcrição em vez daqueles que a intensificam, o gene
pode ser menos ativo.
Pequenas mudanças no promotor podem, assim, ter efeitos sutis na expressão do
gene. Talvez os promotores sejam mais como termostatos do que como comutadores. Ë
aqui, nos promotores, que os cientistas esperam descobrir a maior mudança evolutiva
em animais e plantas — em contraste agudo com as bactérias. Por exemplo, os
camundongos têm pescoço curto e o corpo longo; as galinhas têm pescoço longo e o
corpo curto. Se você contar as vértebras do pescoço e do tórax de uma galinha e de um
camundongo, descobrirá que o camundongo tem sete vértebras no pescoço e 13
torácicas; a galinha tem 14 e sete, respectivamente. A origem desta diferença está em
um dos promotores ligados a um dos genes hox, o Hoxc8, um gene encontrado em
camundongos e galinhas, cuja tarefa é ativar outros genes que determinam detalhes do
desenvolvimento. O promotor é um parágrafo de 200 letras do DNA e tem um punhado
de letras diferentes nas duas espécies. Na verdade, uma mudança em algumas letras,
mesmo em apenas duas, pode ser o bastante para fazer toda a diferença. O efeito é
alterar ligeiramente a expressão do gene Hoxc8 no desenvolvimento do embrião da
galinha. No embrião da galinha, o gene é expresso em uma parte mais limitada da
espinha, dando ao animal um tórax mais curto, se comparado com o camundongo. Uma
vez que o desenvolvimento começa na cabeça, isso significa que a galinha terá mais
vértebras no pescoço que o camundongo. 35 Na píton, o Hoxc8 é expresso a partir da
cabeça e vai sendo expresso para a maior parte do corpo. Assim, a píton consiste em um
longo tórax — ela tem costelas em todo o corpo. 36
A beleza do sistema é que o mesmo gene pode ser reutilizado em diferentes
lugares e em diferentes momentos simplesmente colocando um conjunto de promotores
diferentes ao lado dele. O gene “eve” nas moscas-da-fruta, por exemplo, cuja tarefa é
ativar outros genes durante o desenvolvimento, é ativado em pelo menos dez ocasiões
distintas durante a vida da mosca, e tem oito promotores diferentes ligados a ele, três
acima do gene e cinco abaixo. Cada um destes promotores requer de dez a 15 proteínas
ligadas a ele para que a expressão do gene seja ativada. Isso, aliás, parece ser um bom
motivo para o fato humilhante de que em geral as plantas têm mais genes que os
animais. Em vez de reutilizar o mesmo gene acrescentando um novo promotor a ele,
uma planta reutiliza um gene duplicando todo o gene e mudando o promotor na versão
duplicada. Os 30.000 genes humanos provavelmente são usados pelo menos duas vezes
em muitos contextos durante o desenvolvimento graças às baterias de promotores. 37
Para fazer grandes mudanças no plano de corpo de animais, não é necessário
inventar novos genes, como também não há necessidade de inventar novas palavras para
escrever um romance original (a não ser que seu nome seja Joyce). Tudo o que você
precisa fazer é ativar e desativar os mesmos genes em diferentes padrões. Subitamente,
aqui está um mecanismo para criar grandes e pequenas mudanças evolutivas a partir de
pequenas diferenças genéticas. Basta ajustar a seqüência de um promotor, ou adicionar
um novo promotor, e você poderá alterar a expressão de um gene. E se esse gene é o
código para um fator de transcrição, então sua expressão alterará a expressão de outros
genes. Basta uma mudança minúscula e um promotor produzirá uma cascata de
diferenças para o organismo. Estas mudanças podem ser suficientes para criar toda uma
nova espécie sem alterar completamente os próprios genes. 38
De certa forma, isso é um pouco deprimente. Significa que, até que os cientistas
saibam como encontrar genes promotores no vasto texto do genoma, eles não saberão
como a receita de um chimpanzé difere da de uma pessoa. Os próprios genes lhes dirão
pouco, e a origem da singularidade humana continuará tão misteriosa como sempre foi.
Mas em outro sentido, é também animador, lembrando-nos, com mais vigor que nunca,
de uma verdade simples que é esquecida com demasiada freqüência: de que os corpos
não são feitos, eles se desenvolvem, O genoma não é um programa para a construção de
um corpo; ele é uma receita para assar um bolo. O embrião de galinha é marinado no
molho Hoxc8 por um tempo menor que o embrião de camundongo. Esta é uma metáfora
a que devo retornar freqüentemente neste livro, por ser uma das melhores maneiras de
explicar por que natureza e criação não são opostas, mas trabalham juntas.
Como ilustra a história do hox, os promotores do DNA se expressam na quarta
dimensão: seu timing é tudo. Um chimpanzé tem uma cabeça diferente da cabeça de um
ser humano não porque tem um programa diferente para a cabeça, mas porque ele
desenvolve as mandíbulas por mais tempo e o crânio por menos tempo que o ser
humano. A diferença está toda no timing.
O processo de domesticação, pelo qual o lobo foi transformado no cão, ilustra o
papel dos promotores. Na década de 1960, um geneticista chamado Dmitri Beliaev
estava administrando uma imensa fazenda de criação de animais de pele perto de
Novosibirsk, na Sibéria. Ele decidiu tentar criar raposas domesticadas, porque, embora
tivessem um bom manejo e já fossem mantidas em cativeiro havia muitas gerações, as
raposas eram criaturas nervosas e tímidas na fazenda de peles (com bons motivos,
presumivelmente). Assim, Beliaev começou a selecionar, como estoque de criação, os
animais que permitiam a maior proximidade dele antes de fugir. Depois de 25 gerações,
ele na verdade teve muitas raposas domesticadas, que, longe de fugirem, aproximavam-
se dele espontaneamente. A nova raça de raposas não só se comportava como cães, elas
pareciam cães: sua pelagem era malhada, como os collies, seu rabo se inclinava para
cima na ponta, as fêmeas tinham cio duas vezes por ano, as orelhas eram caídas, o
focinho mais curto e o cérebro menor que o das raposas selvagens. A surpresa foi que,
meramente selecionando para a domesticação, Beliaev chegara por acaso a todas as
características que o domesticador original do lobo tinha conseguido — e era
provavelmente a mesma raça do próprio lobo, que tinha desenvolvido a capacidade de
não fugir com muita rapidez do lixo dos homens antigos quando eram perturbados. A
inferência é que tinha ocorrido uma mudança no promotor que afetou não um, mas
muitos genes. Na verdade, é bastante óbvio que o que aconteceu nos dois casos foi que
o timing do desenvolvimento tinha sido alterado de modo que os animais adultos
conservaram muitas das características e hábitos de filhotes: as orelhas caídas, o focinho
mais curto, o crânio menor e o comportamento brincalhão. 39
O que parece acontecer nestes casos é que animais jovens não mostram medo nem
agressividade, e isso se desenvolve mais tarde durante o crescimento avançado do
sistema límbico, na base do cérebro. Assim, a forma mais provável de a evolução
produzir um animal amistoso ou domesticado é parar prematuramente o
desenvolvimento do cérebro. O efeito é um cérebro menor e especialmente uma “área
13” menor, uma parte de desenvolvimento tardio do sistema límbico que parece ter a
tarefa de desinibir as reações emocionais adultas, como o medo e a agressividade. O que
é intrigante, tal processo de domesticação parece ter acontecido naturalmente nos
bonobos depois de sua separação dos chimpanzés há mais de 2 milhões de anos. Por seu
porte, o bonobo não só tem uma cabeça menor, mas também a agressividade reduzida e
várias características juvenis são mantidas na idade adulta, inclusive um tufo de cauda
anal branco, chamados agudos e genitais incomuns nas fêmeas. Os bonobos têm em
geral uma pequena área 13. 40
E assim são os seres humanos. Surpreendentemente, o registro fóssil sugere que
houve um declínio acentuado no cérebro humano durante os últimos 15.000 anos, em
parte, mas não completamente, refletindo a redução do corpo que parece ter
acompanhado a chegada de densos e “civilizados” assentamentos humanos. A isto se
seguiram vários milhões de anos de aumentos mais ou menos estáveis no tamanho do
cérebro. No Mesolítico (por volta de 50.000 anos atrás), o cérebro humano tinha em
média 1.468 cc (nas fêmeas) e 1.567 cc (nos machos). Hoje os números caíram para
1.210 cc e 1.248 cc e, mesmo admitindo uma redução no peso corporal, este parece ser
um declínio agudo. Talvez tenha havido alguma recente domesticação da espécie. Se
houve, como aconteceu? Richard Wrangham acredita que, uma vez que os seres
humanos tornaram-se sedentários, vivendo em assentamentos permanentes, eles não
podiam mais tolerar o comportamento anti-social e começaram a banir, aprisionar ou
executar indivíduos especialmente difíceis. No passado, no planalto da Nova Guiné,
mais de um em dez de todos os adultos mortos foram executados como “bruxos”
(principalmente homens). Isso pode ter significado matar os mais agressivos e
impulsivos — aqueles de maior maturidade no desenvolvimento e um cérebro maior. 41
Esta autodomesticação, contudo, parece ser um fenômeno recente em nossa
espécie e não consegue explicar as pressões seletivas que levaram à divergência dos
seres humanos de ancestrais semelhantes a chimpanzés mais de 5 milhões de anos atrás.
Mas apóia a idéia de a evolução acontecer através do ajuste de promotores de genes em
vez de nos próprios genes: daí a alteração de várias características irrelevantes
apanhadas no turbilhão de uma redução da agressividade impulsiva. 42 Enquanto isso,
de repente parece plausível compreender como o cérebro humano alcançou seu tamanho
maior, graças a um gene recentemente descoberto no cromossomo 1. Depois da
conclusão de uma represa em Mirpur, na Caxemira controlada pelo Paquistão, em 1967,
um grande número de habitantes, deslocados de suas casas, migrou para Bradford, na
Inglaterra. Eles incluíam alguns que se casaram com primos, e entre a descendência
destes casamentos estavam algumas pessoas nascidas com cérebros anormalmente
pequenos, embora normais em outros aspectos — os chamado microcéfalos. A
genealogia das famílias permitiu que os cientistas localizassem a causa em quatro
mutações diferentes, em famílias diferentes, mas todas afetando o mesmo gene: o gene
ASPM no cromossomo 1.
Em uma pesquisa posterior, uma equipe de cientistas liderados por Geoffrey
Woods, em Leeds, descobriu algo bastante extraordinário sobre o gene. É um gene
grande, com 10.434 letras e dividido em 28 parágrafos (chamados exons). Os parágrafos
16 e 25 contêm um tema característico, repetido várias vezes. A frase, em geral de 75
letras, começa com o código para os aminoácidos isoleucina e glutamina, e o
significado disso logo será revelado por mim. Na versão humana do gene, há 74 desses
temas, no camundongo há 61, na mosca-da-fruta 24 e no verme nematóide apenas 2
repetições. Notavelmente, esses números parecem ser proporcionais ao número de
neurônios no cérebro adulto do animal. 43 Ainda mais extraordinário, a abreviatura
padrão para glutamina é “Q”, e a abreviatura para isoleucina é “I”. Portanto, o número
de repetições QI pode determinar o QI relativo da espécie, o que, de acordo com
Woods, “é uma prova da existência de Deus, uma vez que somente alguém com senso
de humor podia ter arranjado essa correlação”. 44
O ASPM parece funcionar regulando o número de vezes em que as células tronco
neuronais se dividem dentro das vesículas do cérebro jovem, por volta de duas semanas
depois da concepção. Isto, por sua vez, determina quantos neurônios terá um cérebro
adulto. Ter tropeçado com um gene com o poder de decidir o tamanho cerebral de uma
forma tão simples parece bom demais para ser verdade e, quanto mais conhecimento
tivermos, indubitavelmente mais complicações serão acumuladas nesta história simples.
Mas o gene ASPM demonstra as idéias do jovem que atemorizou tanto os habitantes da
Terra do Fogo: a evolução é uma diferença de grau, e não de tipo.
A nova e desconcertante verdade que surgiu do genoma humano — de que os
animais evoluem ajustando os termostatos nos frontes dos genes, capacitando-os a
desenvolver diferentes partes de seu corpo por mais tempo — tem profundas
implicações para o debate natureza-criação. Imagine as possibilidades em um sistema
desse tipo. Você pode alterar a expressão de um gene, e o produto disso aumenta a
expressão de outro, que suprime a expressão de um terceiro, e assim por diante. E bem
no meio desta pequena rede, você pode acompanhar os efeitos da experiência. Alguma
coisa externa — educação, comida, uma luta, ou amor retribuído, digamos — pode
influenciar um dos termostatos. De repente a criação pode começar a se expressar
através da natureza.
CAPÍTULO DOIS
Quando, como que por milagre, a adorável borboleta irrompe da crisálida alada e perfeita (...) não
há, na maior parte dos casos, nada a aprender, porque sua pequena vida flui de sua organização
como melodia de uma caixa de música.
Assim como Charles Darwin, William James era um homem de recursos. Ele herdou
uma renda particular de seu pai Henry, cujo pai, William, acumulara US$10.000 por
ano com o Canal do Erie. O perneta Henry usou sua auto-suficiência para se tornar um
intelectual, e passou grande parte da vida entre Nova York, Genebra, Londres e Paris
com seus filhos a reboque. Ele era articulado, religioso e seguro de si. Seus dois filhos
mais novos partiram para lutar na Guerra Civil, depois fracassaram nos negócios e
voltaram-se para a bebida ou a depressão. Seus dois filhos mais velhos, William e
Henry foram educados quase desde o nascimento para serem intelectuais, O resultado
foi (nas palavras de Rebecca West) que “um deles se tornou escritor de ficção, embora
fosse filosofia, e o outro escreveu filosofia embora fosse ficção”. 2
Os dois irmãos foram influenciados por Darwin. O romance de Henry, The
Portrait of a Lady, foi escrito em obediência à idéia de Darwin da escolha feminina
como uma força da evolução. 3 Principles of Psychology, de William, grande parte
publicada pela primeira vez como uma série de artigos na década de 1880, continha um
manifesto pelo nativismo — a idéia de que a mente não pode aprender a menos que
tenha rudimentos de conhecimento inato —, contrariando a moda dominante do
empirismo, a teoria de que o comportamento é modelado pela experiência. William
James acreditava que os seres humanos eram equipados com tendências inatas que não
derivavam da experiência, mas do processo darwiniano de seleção natural. “Ele nega a
experiência!”, escreveu James, citando um leitor imaginário. “Nega a ciência; acredita
que a mente é criada por milagre; é um velho adepto regular de idéias inatas! Basta!
Não ouviremos mais tal disparate antediluviano.”
William James afirmava que os seres humanos tinham mais instintos que outros
animais, e não menos. “O homem possui todos os impulsos que têm [as criaturas
inferiores], e muitas outras além destas (...). Será observado que nenhum outro
mamífero, nem mesmo o mico, mostra um leque tão amplo deles.” Ele afirmou que era
falso opor o instinto à razão:
A razão, per se, não pode inibir os impulsos; a única coisa que pode neutralizar um impulso é um
impulso no sentido contrário. A razão pode, contudo, fazer uma inferência que estimulará a
imaginação de forma a liberar o impulso no sentido contrário; e assim, embora o animal mais fértil
em razão possa também ser o animal mais fértil em impulsos instintivos, ele nunca pareceria o
autômato fatal que um animal meramente instintivo seria. 4
Esta é uma passagem extraordinária, não menos porque seu impacto no pensamento do
início do século XXI pode ser considerado quase nulo. Muito poucas pessoas, seja do
lado da natureza ou da criação, assumiram essa posição nativista extrema no século por
vir, e quase todos assumiram nos cem anos seguintes que a razão era na verdade o
oposto do instinto. Todavia James não era de opiniões extremadas. Sua obra influenciou
gerações de eruditos sobre a consciência, a sensação, o espaço, tempo, memória,
vontade, emoção, pensamento, conhecimento, realidade, individualidade, moralidade e
religião — para citar apenas os títulos de capítulos de um livro moderno sobre sua obra.
Assim, por que este mesmo livro de 628 páginas nem mesmo tem as palavras “instinto ,
impulso ou inato em seu índice? 5 Por que, por mais de um século, tem se considerado
um tanto indecente usar a palavra instinto no contexto do comportamento humano?
As idéias de James foram na verdade imensamente influentes no início. Seu
seguidor, William McDougall, criou toda uma escola de instintivistas, que se tornaram
proficientes no reconhecimento dos novos instintos humanos sob qualquer
circunstância. Proficientes até demais: a especulação ultrapassou o experimento, e muito
em breve uma contra-reforma seria inevitável. Na década de 1920, as próprias idéias
empiristas atacadas por James, incorporadas no conceito da tabula rasa, recuperaram
forças não só na psicologia (com John B. Watson e B. E Skinner), mas na antropologia
(Franz Boas), psiquiatria (Freud) e sociologia (Durkheim). O nativismo foi quase
inteiramente eclipsado até 1958, quando Noam Chomsky mais uma vez afixou seus
estatutos na porta da ciência. Em uma famosa análise de um livro sobre linguagem de
Skinner, Chomsky afirmou que era impossível que uma criança aprendesse as regras de
linguagem a partir de exemplos: a criança deve ter as regras inatas pelas quais o
vocabulário da linguagem é fixado. Mesmo assim, a tabula rasa dominou as ciências
humanas por muitos anos. Foi somente um século depois da publicação de seu livro que
a idéia de William James da singularidade dos instintos humanos foi novamente levada
a sério em um novo manifesto do nativismo, escrito por John Tooby e Leda Cosmides
(ver Capítulo 9).
Falarei mais disso posteriormente. Primeiro, uma digressão sobre teleologia. Foi o
gênio de Darwin que colocou o velho argumento teológico do projeto em sua cabeça.
Até então, o fato óbvio de que as partes do organismo parecem ser projetadas para um
propósito — o coração para bombear, o estômago para digerir, a mão para pegar —
parecia implicar logicamente um projetista, como um motor a vapor implicava a
existência de um engenheiro. Darwin viu como o processo inteiramente às avessas da
seleção natural não podia ter produzido um projeto menos premeditado — o que
Richard Dawkins chamou de relojoeiro cego. 6 Embora em teoria não tenha sentido
teleológico falar de um estômago tendo seu propósito, uma vez que o estômago não tem
mente, na prática isso faz perfeito sentido desde que você considere o equivalente
gramatical da tração nas quatro rodas, a voz passiva: os estômagos foram selecionados
para parecer que são equipados com um projeto intencional. Uma vez que eu tenho
aversão à voz passiva, pretendo evitar este problema em todo o livro fingindo que na
verdade há um engenheiro teleológico pensando à frente e planejando intencionalmente.
O filósofo Daniel Dennett chama um artefato desses de “skyhook”, 7 uma vez que é o
equivalente aproximado de um engenheiro civil sustentando seu andaime no céu, mas,
para simplificar, eu simplesmente chamarei meu skyhook de Dispositivo de Organização
de Genoma, ou, para resumir, GOD (de genome organising device). Isso deixará os
religiosos satisfeitos e me permitirá usar a voz ativa. Então a pergunta é: como o GOD
construiu um cérebro que pode expressar um instinto?
Voltemos a William James. Para apoiar sua afirmação de que os seres humanos
têm mais instintos que outros animais, James enumerou sistematicamente os instintos
humanos. Ele começou com as ações dos bebês: sugar, agarrar, chorar, sentar, levantar,
andar e escalar eram todas, sugeriu ele, expressões de impulso, e não imitações ou
associações. Da mesma forma, à medida que a criança cresce, eram a imitação, a raiva e
a simpatia. Assim era um medo de estranhos, ruídos altos, altura, o escuro, répteis. (“O
evolucionista comum e seguro de si não deve ter dificuldade de explicar esses terrores”,
escreveu James, quase antecipando o argumento do que agora denomina-se psicologia
da evolução, “como reincidência na consciência do homem das cavernas, uma
consciência em geral encoberta em nós por experiências de épocas mais recentes.”) Ele
passou à cobiça, observando a tendência dos rapazes de colecionar coisas. Ele percebeu
as preferências bem diferentes de jogos entre meninos e meninas. O amor dos pais,
sugeriu ele, era pelo menos inicialmente mais forte nas mulheres do que nos homens.
Ele passeou rapidamente pela sociabilidade, timidez, dissimulação, asseio, modéstia e
vergonha. “O ciúme é inquestionavelmente instintivo”, assinalou ele.
O mais forte dos instintos, acreditava James, era o amor. “De todas as propensões,
os impulsos sexuais trazem em sua face os mais óbvios sinais de ser instintivos, no
sentido da cegueira, do automático e do impensado.” 8 Mas, insistiu ele, só porque a
atração sexual era instintiva não significava que era irresistível. Outros instintos, como a
timidez, nos impedem de corresponder a cada atração sexual.
Então deixe-me levar James a sério, pelo menos temporariamente, e examinar a
idéia do instinto do amor com um pouco mais de profundidade. Se ele está certo, deve
haver algum fator hereditário que dá origem a alguma mudança química ou física em
nosso cérebro quando nos apaixonamos, e esta mudança causa a emoção de se
apaixonar, em vez de ser causada por ela. Como o que se segue, do cientista Tom Insel:
Uma hipótese viável é que a ocitocina liberada durante o acasalamento ative os locais límbicos
ricos em receptores de ocitocina, conferindo um valor de reforço duradouro e seletivo ao casal. 9
MARCIANOS E VENUSIANOS
Definir “instinto” tem frustrado tantos cientistas que alguns se recusam a usar a palavra.
Ele não precisa estar presente desde o nascimento: alguns instintos só se desenvolvem
em animais adultos (como o dente siso). Ele não precisa ser inflexível: as vespas
alterarão seu comportamento de acordo com o número de lagartas que encontram na
toca que abasteceram. Ele não precisa ser automático: a menos que encontre um peixe
de barriga vermelha, o esgana-gata macho não lutará. E as fronteiras entre o
comportamento instintivo e aprendido são turvas.
Mas imprecisão não é necessariamente uma palavra inútil. As fronteiras da
Europa são incertas — até que ponto ela se estende para o leste? A Turquia e a Ucrânia
estão dentro dela? — e há muitos significados diferentes para a palavra “europeu”, mas
ainda é uma palavra útil. A palavra “aprender” cobre uma multiplicidade de virtudes,
mas ainda é uma palavra útil. Da mesma forma, acredito que pode ser útil chamar isso
de comportamento instintivo. Implica que o comportamento é pelo menos parcialmente
herdado, engastado e automático, de acordo com o ambiente esperado. Um traço
característico de um instinto é que ele é universal. Isto é, se algo é primariamente
instintivo, então deve ser mais ou menos igual em todas as pessoas. O interesse da
antropologia sempre oscilou entre as similaridades e as diferenças humanas, com os
defensores da natureza enfatizando as primeiras e os defensores da criação destacando
as segundas. O fato de que as pessoas sorriem, franzem as sobrancelhas, fazem caretas e
riem da mesma forma em todo o mundo chocou Darwin e mais tarde os etólogos
Irenaeus Eibl-Eibesfeldt e Paul Ekman. Mesmo entre aqueles habitantes da Nova Guiné
e da Amazônia até então intocados pela “civilização”, estas expressões emocionais
tinham a mesma forma e o mesmo significado. 27 Ao mesmo tempo, a atordoante
variedade de rituais e hábitos expressos pela raça humana testemunha sua capacidade
para a diferença. Como é habitual na ciência, cada lado do debate leva o outro a assumir
posições extremas.
Talvez satisfizesse a ambos (ou a nenhum deles) concentrar-se no paradoxo das
diferenças humanas que são universalmente similares em todo o mundo. Afinal, a
similaridade é a sombra da diferença. Os principais candidatos são o sexo e a diferença
de gênero. Hoje ninguém nega que homens e mulheres são diferentes não só na
anatomia, mas também no comportamento. De livros best-sellers que afirmam que eles
são de planetas diferentes à crescente polarização do cinema em filmes que apelam aos
homens (ação) ou às mulheres (relacionamentos), certamente não é mais controverso
afirmar que — apesar das exceções — há diferenças mentais e físicas consistentes entre
os sexos. Como afirma o comediante Dave Barry, “Se uma mulher tem de escolher entre
pegar uma bola rebatida de beisebol e salvar a vida de um bebê, ela escolherá salvar a
vida do bebê sem sequer considerar se há homens na base”. Estas diferenças são da
natureza, da criação, ou de ambas?
De todas as diferenças sexuais, as mais estudadas são aquelas que têm a ver com o
acasalamento. Na década de 1930, os psicólogos começaram a perguntar a homens e
mulheres o que eles procuravam em um parceiro, e continuam a fazer a mesma pergunta
desde então. A resposta parece tão óbvia que somente um nerd de laboratório ou um
marciano se preocuparia em fazer a pergunta. Mas às vezes as coisas mais óbvias são
aquelas que mais precisam de demonstração.
Eles encontraram muitas similaridades. Os dois sexos querem parceiros
inteligentes, cooperativos, confiáveis e fiéis. Mas eles também encontraram diferenças.
As mulheres valorizam boas perspectivas financeiras em seus parceiros duas vezes mais
que os homens. O que não é de surpreender, uma vez que eram os homens que
sustentavam a casa na década de 1930. Volte à década de 1980 e você certamente
encontrará uma diferença cultural desaparecendo claramente. Não: em qualquer
levantamento realizado desde então, até o dia de hoje, a mesma preferência surge com a
mesma força. Até hoje, as mulheres americanas valorizam as perspectivas financeiras
duas vezes mais que os homens quando procuram parceiros. Em notificações pessoais,
as mulheres mencionam a riqueza como uma característica desejável de um parceiro
onze vezes mais que os homens. A comunidade da psicologia desprezou este resultado:
ele reflete meramente a importância do dinheiro na cultura americana, e não uma
diferença sexual universal. Então o psicólogo David Buss saiu e perguntou a
estrangeiros, e obteve a mesma resposta de homens e mulheres holandeses e alemães.
Não seja absurdo, ele ouviu, europeus ocidentais são como americanos. Então Buss
perguntou a 10.047 pessoas de 37 culturas diferentes em seis continentes e cinco ilhas,
indo do Alasca à Zululândia. Em todas as culturas, sem exceção, as mulheres
valorizavam as perspectivas financeiras mais que os homens. A diferença era mais alta
no Japão e mais baixa na Holanda, mas sempre estava presente. 28
E esta não foi a única diferença que ele encontrou. Em todas as 37 culturas, as
mulheres queriam homens mais velhos que elas. Em quase todas as culturas, o status
social, a ambição e a operosidade do parceiro correspondiam mais às mulheres que aos
homens. Os homens, por sua vez, colocavam mais ênfase na juventude (em todas as
culturas, os homens queriam mulheres mais novas) e na aparência física (em todas as
culturas, os homens queriam mulheres bonitas mais que as mulheres queriam homens
bonitos). Na maioria das culturas, os homens também colocavam um pouco mais de
ênfase na castidade e na fidelidade de suas parceiras, embora (é claro) fosse muito mais
provável que eles próprios procurassem sexo extraconjugal. 29
Bem, que surpresa! Os homens gostam de mulheres bonitas, novas e confiáveis,
enquanto as mulheres gostam de homens ricos, ambiciosos e mais velhos. Uma olhada
nos filmes, romances ou nos jornais podia ter revelado isso a Buss, ou a qualquer
marciano de passagem. Mas permanece o fato de muitos psicólogos terem afirmado
peremptoriamente a Buss que ele não conseguiria encontrar estas tendências repetidas
fora dos países do Ocidente, o que dirá em todo o mundo. Buss provou uma coisa que
era — pelo menos para a comunidade das ciências sociais — muito surpreendente.
Muitos cientistas sociais afirmam que o motivo para que as mulheres procurem
homens ricos é que os homens têm mais riqueza. Mas agora que sabe que isso é
universal à raça humana, você pode facilmente inverter a questão. Os homens procuram
a riqueza porque eles sabem que isso atrai as mulheres — assim como as mulheres dão
mais atenção à aparência de juventude porque sabem que isso atrai os homens. Esta
direção de causalidade nunca foi menos plausível do que outras e, dada a evidência da
universalidade, agora é mais plausível. Aristóteles Onassis, que sabia um pouco a
respeito de dinheiro e mulheres bonitas, notoriamente disse uma vez: “Se as mulheres
não existissem, todo o dinheiro do mundo não teria significado.” 30
Ao provar como tantas diferenças sexuais são universais nas preferências de
acasalamento, Buss atirou o ônus da prova para aqueles que veriam um hábito cultural
em vez de um instinto. Mas as duas explicações não são mutuamente exclusivas.
Ambas, provavelmente, são verdadeiras. Os homens procuram a riqueza para atrair as
mulheres, portanto as mulheres procuram a riqueza porque os homens a têm, portanto os
homens procuram a riqueza para atrair as mulheres. E assim por diante. Se os homens
têm um instinto para procurar as bugigangas que levam ao sucesso com as mulheres,
então eles provavelmente aprenderão em sua cultura que o dinheiro é uma dessas
bugigangas. A criação está reforçando a natureza, e não se opondo a ela.
Com a espécie humana, como observou Dan Dennett, você nunca pode ter certeza
de que o que vê é instinto, porque você pode estar olhando o resultado de um argumento
raciocinado, um ritual copiado ou uma lição aprendida. Mas o mesmo se aplica ao seu
oposto. Quando você vê um homem caçando uma mulher só porque ela é bonita, ou
uma garota brincando com uma boneca enquanto o irmão brinca com uma espada,
nunca pode ter certeza de que o que está vendo é apenas cultural, porque pode ter um
elemento de instinto. Polarizar a questão é um completo equívoco. Não é um jogo
empatado, onde a cultura desloca o instinto ou vice-versa. Pode haver todo tipo de
aspectos culturais no comportamento, baseados no instinto. A cultura com freqüência
refletirá a natureza humana, em vez de afetá-la.
MONEY OU DIAMOND?
PSICOLOGIA POPULAR
Meninos como David Reimer querem ser meninos. Eles gostam mais de brinquedos,
armas, competição e ação que de bonecas, romance, relacionamentos e famílias. É claro
que eles não vêm ao mundo com todas essas preferências plenamente formadas, mas
nascem com alguma preferência inefável a se identificarem com coisas de meninos. Isso
é o que a psicóloga infantil Sandra Scarr chamou de “escolha de nicho”: a tendência de
escolher a criação que é adequada a sua natureza. As frustrações da juventude de David
Reimer foram causadas pelo fato de ele não ter tido permissão para escolher seu nicho.
De certa forma, causa e efeito são provavelmente circulares. As pessoas tanto
gostam de fazer aquilo em que elas acham que são boas como são boas no que gostam
de fazer. Mas isso implica que o início desta diferença sexual é pelo menos auxiliada
pelo instinto, por diferenças inatas de comportamento que antedatam a experiência.
Como muitos pais que tiveram filhos dos dois sexos, acho as diferenças
surpreendentemente fortes e precoces. Também não tenho dificuldade em acreditar que
eu e minha esposa estamos reagindo a tais dissimilaridades de gênero, em vez de causá-
las. Demos carrinhos aos meninos e bonecas às meninas não porque queremos que eles
sejam diferentes, mas porque era dolorosamente óbvio que um queria carrinhos e a
outra, bonecas.
Exatamente com que precocidade essas diferenças surgem? Svetlana Lutchmaya,
uma aluna de Simon Baron-Cohen em Cambridge, filmou 29 meninas e 41 meninos de
12 meses de idade e analisou com que freqüência o bebê olhava o rosto de sua mãe.
Como esperado, as meninas faziam mais contato visual que os meninos. Ela depois
voltou e mediu os níveis de testosterona presentes no útero durante o primeiro trimestre
da gestação de cada bebê. Isso foi possível porque, em todos os casos, a mãe tinha feito
amniocentese e uma amostra do líquido amniótico fora armazenada. Ela descobriu que o
nível de testosterona fetal geralmente era mais alto nos meninos que nas meninas, e que,
entre os meninos, havia uma correlação significativa: quanto mais alto o nível de
testosterona, menos contato visual fazia o bebê de um ano. 34
Baron-Cohen então pediu a outra aluna, Jennifer Connellan, para retroagir ainda
mais, ao primeiro dia de vida. Ela deu a 102 bebês com 24 horas de vida duas coisas
para olhar: seu próprio rosto, ou um móbile físico-mecânico de aproximadamente o
mesmo tamanho e formato de uma face. A maioria dos bebês meninos preferiu olhar o
móbile; as meninas preferiram, em geral, o rosto. 35
Então a preferência relativa por rostos, que gradualmente transforma-se em uma
preferência por relacionamentos sociais, parece estar presente de alguma forma desde o
início. A distinção entre os mundos social e físico pode ser uma pista crucial de como
funciona o cérebro humano. O psicólogo do século XIX Franz Brentano dividiu
rigidamente o universo em dois tipos de entidades: aquelas que têm intencionalidade e
as que não têm. O primeiro tipo pode se mover espontaneamente e pode ter metas e
desejos; o último obedece unicamente a leis físicas. É uma distinção que recai nos
extremos — e quanto aos vegetais? —, mas, como método empírico, funciona bastante
bem. Os psicólogos da evolução começaram a suspeitar de que os seres humanos
aplicam instintivamente dois processos mentais diferentes para compreender tais
objetos: o que Daniel Dennett chamou de psicologia popular e física popular.
Pressupomos que um jogador de futebol se move porque ele “quer”, mas que uma bola
de futebol se move porque foi chutada. Até bebês expressam surpresa quando objetos
parecem desobedecer às leis da física — quando eles se movem um através do outro,
quando grandes objetos parecem se transformar em pequenos, ou quando eles se movem
sem serem tocados.
Acho que você pode ver onde estou querendo chegar: em média, os homens são
mais interessados em física popular que as mulheres, que são mais interessadas em
psicologia popular que os homens. A pesquisa de Simon Baron-Cohen focaliza o
autismo, uma dificuldade com o mundo social que afeta principalmente meninos. Junto
com Alan Leslie, Baron-Cohen foi o pioneiro da teoria de que os meninos autistas têm
problemas para teorizar sobre a mente dos outros, embora ele agora prefira usar o termo
“empatizar”. Há muitas outras características do autismo grave, inclusive a dificuldade
com a linguagem, mas, no que é provavelmente sua forma mais “pura” e mais severa, a
síndrome de Asperger, o autismo parece consistir principalmente em uma dificuldade de
empatizar com as idéias de outras pessoas. Uma vez que os meninos são menos bons em
empatizar do que as meninas, então talvez o autismo seja apenas uma versão extrema do
cérebro masculino. Daí o interesse de Baron-Cohen na correlação inversa entre
testosterona uterina e contato visual: a masculinização do cérebro pela testosterona pode
ir “longe demais” nos autistas. 36
O que é intrigante, as crianças com síndrome de Asperger são com freqüência
melhores em física popular do que o normal. Não só são freqüentemente fascinadas por
coisas mecânicas, de interruptores de luz a aeroplanos, como geralmente têm uma
abordagem de engenharia ao mundo, tentando compreender as regras pelas quais as
coisas — e as pessoas — funcionam. Elas freqüentemente tornam-se especialistas
precoces em conhecimento factual e matemática. Também é duas vezes mais provável
que elas tenham pais e avôs que trabalharam com engenharia. Em um teste padrão de
tendências autistas, cientistas geralmente obtêm uma pontuação mais alta que não-
cientistas, e engenheiros pontuam mais que biólogos. Baron-Cohen diz de um brilhante
matemático, ganhador da medalha Fields, que tinha a síndrome de Asperger: “A
empatia não tomou conhecimento dele.” 37
Para demonstrar como a dificuldade com a psicologia popular pode coexistir
satisfatoriamente com a perícia em física popular, os psicólogos planejaram dois testes
incrivelmente semelhantes chamados de teste da falsa crença e teste da falsa foto. No
teste da falsa crença, a criança vê o experimentador mover um objeto escondido de um
receptáculo para outro, enquanto uma terceira pessoa não está observando. A criança
depois tem de dizer onde a terceira pessoa procurará o objeto. Para ter a resposta
correta, ela tem de entender que a terceira pessoa tem uma falsa crença. Todas as
crianças são aprovadas neste teste pela primeira vez por volta dos quatro anos (os
meninos mais tarde que as meninas), mas os autistas se desenvolvem especialmente
tarde.
Já no teste da falsa foto, a criança tira uma foto polaróide de uma cena, e depois,
enquanto a foto está se processando, vê o experimentador mover um dos objetos da
cena. Pergunta-se à criança que posição o objeto ocupará na fotografia. Os autistas não
têm dificuldade com este teste, porque sua compreensão de física popular é maior que a
compreensão da psicologia popular.
A física popular é apenas parte de uma habilidade que Baron-Cohen chama de
“sistematização”. É a capacidade de analisar relacionamentos entrada/saída nos mundos
natural, técnico, abstrato e até humano: é compreender causa e efeito, regularidade e
regras. Ele acredita que os seres humanos têm duas capacidades mentais separadas, de
sistematizar e empatizar, e que, embora algumas pessoas sejam boas em ambas, outras
são boas em uma e ruins na outra. Os que são bons sistematizadores e bons
empatizadores tentarão usar suas habilidades de sistematizar para resolver problemas
sociais. Por exemplo, uma pessoa com síndrome de Asperger disse a Baron-Cohen que
“Onde você vive?” não era uma boa pergunta, uma vez que pode ser respondida em
muitos níveis: país, cidade, bairro, rua ou o número da casa. É verdade, mas a maioria
das pessoas resolve o problema empatizando com o indagador. Se estiver falando com
um vizinho, ele poderá citar a casa; se for com um estrangeiro, o país.
Se as pessoas com síndrome de Asperger são boas sistematizadoras e
empatizadoras ruins, com cérebros extremamente masculinos, surge a idéia de que
provavelmente há pessoas que são boas empatizadoras e sistematizadoras ruins, com
cérebros extremamente femininos. Um pouco de reflexão confirmará que todos
conhecemos pessoas assim, mas sua combinação específica de habilidades raramente é
classificada como patológica. Provavelmente é mais fácil viver uma vida normal no
mundo moderno com habilidades de sistematização ruins do que com habilidades de
empatia ruins. Na Idade da Pedra, podia ter sido menos fácil. 38
A MENTE EM PARTES
A história da empatia ilustra um tema típico de William James, dos instintos separados.
Para ser bom em empatizar você precisa de um domínio, ou módulo em sua mente que
aprenda a tratar intuitivamente criaturas animadas como possuidoras de estados mentais
bem como de propriedades físicas. Para ser bom em sistematizar, você precisa de um
domínio que aprenda como intuir causa e efeito, regularidades e regras. São módulos
mentais separados, habilidades separadas e tarefas de aprendizagem separadas.
O domínio da empatia parece depender de circuitos em torno do sulco do
cingulado, um vale no cérebro perto da linha média e próximo da frente da cabeça. Nos
estudos de Chris e Uta Frith em Londres, esta área se acende (em um aparelho de
varredura adequado) quando uma pessoa lê uma história que requer “mentalização”
— imaginar os estados mentais de terceiros; ela não se acende quando a pessoa lê uma
história sobre causa e efeito físicos ou uma série de frases não relacionadas. Nas pessoas
com síndrome de Asperger, contudo, esta área não se acende durante a leitura de
histórias de estado mental, mas uma área vizinha, sim. Esta é uma área envolvida no
raciocínio geral, o que apóia o palpite dos psicólogos de que as pessoas com síndrome
de Asperger raciocinam sobre questões sociais em vez de empatizar com elas. 39
Tudo isso apóia a idéia de James de que os instintos devem se manifestar em
circuitos mentais chamados módulos, cada um deles especificamente projetado para ser
bom em sua tarefa mental. Tal visão modular da mente foi enunciada pela primeira vez
pelo filósofo Jerry Fodor no início da década de 1980, e mais tarde desenvolvida pelo
antropólogo John Tooby e pela psicóloga Leda Cosmides na década de 1990. Tooby e
Cosmides estavam atacando a então disseminada crença de que o cérebro é um
dispositivo de aprendizagem de propósito geral. Em vez disso, diz a dupla de
antropólogo-psicóloga, a mente é como um canivete suíço. Quanto às lâminas, chaves
de fenda e coisas que ajudam os escoteiros a tirar pedras de cascos de cavalos, leiam-se
módulos de visão, módulos de linguagem e módulos de empatia. Como as ferramentas
de um canivete, estes módulos são ricos em propósito teleológico: faz sentido não só
descrever de que são feitos e como fazem seu trabalho, mas para que servem. Assim
como o estômago está para a digestão, o sistema visual do cérebro está para a visão.
Ambos são funcionais, e o projeto funcional implica evolução por seleção natural, que
implica pelo menos em parte uma ontologia genética. A mente portanto consiste em
uma coleção de módulos de conteúdo específico e processamento de informação
adaptada para ultrapassar ambientes. O nativismo estava de volta. 40
Este foi o ponto alto do que às vezes é chamado revolução cognitiva. Embora
agora deva muito ao trágico gênio de Alan Turing, com sua extraordinária prova
matemática de que o raciocínio pode assumir uma forma mecânica — que era uma
forma de computação —, a revolução cognitiva na verdade começou com Noam
Chomsky na década de 1950. Chomsky afirmou que as características universais da
linguagem humana, invariáveis em todo o mundo, somadas à impossibilidade lógica de
uma criança deduzir as regras de uma linguagem com a mesma rapidez com que faz a
partir dos poucos exemplos disponíveis a ela, deve implicar que há alguma coisa inata
na linguagem. Mais tarde, Steven Pinker dissecou o “instinto de linguagem” humano,
mostrando que ele tinha todos os sinais de um canivete suíço — a estrutura projetada
para a função — e acrescentou a concepção de que a mente estava equipada não com
informação inata, mas com formas inatas de processar a informação. 41
Não confunda isto com um argumento vazio ou óbvio. Seria bem possível
imaginar que a visão, a linguagem e a empatia são feitas por diferentes partes do cérebro
em diferentes pessoas. Esta na verdade é a previsão lógica que se segue do argumento
empirista que veio de Locke, Rume e Mill para os modernos “conexionistas” que
projetam redes de computadores de múltiplos propósitos para imitar o cérebro. E isso
está errado. Os neurologistas podem produzir batalhões de histórias de caso para apoiar
a idéia de que determinadas partes da mente correspondem a determinadas partes do
cérebro com muito pouca variação em todo o mundo. Se você danifica uma parte de seu
cérebro, em um acidente ou depois de um derrame, não sofre uma debilidade
generalizada: você perde uma característica específica da mente — e a característica que
você perde depende precisamente de que parte do cérebro foi atingida. Isso só pode
significar que partes diferentes do cérebro são pré-projetadas para diferentes tarefas,
algo que só pode advir dos genes. Com freqüência considera-se que os genes reprimem
a adaptabilidade do comportamento humano. A verdade é o contrário disso. Eles não
reprimem; eles capacitam.
Na verdade, tem havido alguns ataques dos empiristas em retirada, mas estas
escaramuças só têm atrasado um pouco o progresso da mente modular. Há um grau de
plasticidade no cérebro que permite que diferentes áreas compensem a falha de sua área
adjacente. Mriganka Sur religou parcialmente os olhos de um furão ao córtex auditivo
de seu cérebro, em vez de ao córtex visual, e de uma forma rudimentar ele ainda pode
“ver”, mas não muito bem. Embora você possa pensar que é extraordinário que o furão
possa ver depois de uma cirurgia dessas, há desacordo se o experimento de Sur revela
mais sobre a plasticidade do cérebro ou sobre os limites desta plasticidade. 42
Se a mente modular é real, então tudo o que você tem a fazer para compreender as
características especiais da mente humana é dissecar o cérebro a fim de descobrir que
pedaços têm “hipertrofiado” nos últimos milhões de anos — que módulos, e portanto
que instintos, são desproporcionalmente grandes. Então você saberá o que torna o ser
humano especial. Quem dera fosse fácil assim! Quase tudo no cérebro humano é maior
que no cérebro do chimpanzé. Os seres humanos aparentemente têm mais visão, mais
sensações, mais movimentos, mais equilíbrio, mais lembranças e ainda mais olfato que
os chimpanzés. Longe de encontrar um cérebro de chimpanzé normal com um imenso e
turbinado dispositivo de pensamento e fala ligado a ele; você descobrirá, se olhar dentro
do crânio humano, mais de cada uma dessas coisas. Uma análise mais profunda revela
que há certas desproporções sutis. Nos primatas de modo geral, comparados com os
roedores, as partes ligadas ao olfato têm encolhido drasticamente e as partes que vêem
têm aumentado. O neocórtex cresceu em detrimento do resto. Mas mesmo aqui a
desproporção não é muito acentuada. Na verdade, como o neocórtex se desenvolve
tarde, e as regiões frontais mais tarde que todas, você pode simplesmente explicar o
grande cérebro humano como um cérebro de chimpanzé que cresceu demais. Em sua
forma extrema, esta teoria sustenta que o cérebro se expandiu não porque a expansão foi
necessária para realizar novas funções — especificamente a linguagem ou a cultura —,
mas porque alguma coisa exigiu o alargamento do tronco cerebral e um córtex maior
apareceu como carona. Lembre-se da lição de que o QI domina o gene ASPM: é
geneticamente fácil aumentar qualquer parte do cérebro. Uma vez que o cérebro grande
estava lá, como que por mágica, 50.000 anos atrás, o Homoo sapiens subitamente
descobriu que podia usá-lo para fazer arcos e flechas, pintar paredes de cavernas e
pensar no significado da vida. 43
Esta idéia tem a vantagem de reduzir novamente as espécies à posição cartesiana
— sempre reafirmando a idéia de que a humanidade foi o sujeito, e não o objeto, de sua
história evolutiva. Mas não é necessariamente incompatível com a idéia de uma mente
modular. De fato, você pode inverter facilmente a lógica em sua cabeça e afirmar que os
seres humanos estavam sob pressão seletiva para desenvolver mais poder de
processamento nas partes do genoma necessárias para uma função — a linguagem
digamos —, e a resposta mais fácil do genoma foi construir um cérebro maior. A
capacidade de fazer mais visão e ter um repertório maior de movimentos foi posta em
liberdade. Além disso, é muito pouco provável que mesmo um módulo de linguagem
seja isolado de outras funções. Ele precisa de uma ótima discriminação de audição, um
controle mais refinado de movimento na língua, lábios e peito, uma memória maior e
assim por diante. 44
As teorias científicas, contudo, como os impérios, chegam a seu ponto mais
vulnerável quando conquistam os rivais. Mal a mente modular triunfou e um de seus
defensores começou a destruí-la. Em 2001, Jerry Fodor publicou um livro
extraordinário intitulado The Mind Doesn’t Work That Way, que afirmava que, embora
separar a mente em módulos computacionais distintos tenha sido a melhor teoria na
época, não explicava e não podia explicar como funciona a mente. 45 Apontando o
fracasso “escandaloso” dos engenheiros na construção de robôs capazes de tarefas
rotineiras como preparar o café da manhã, Fodor gentilmente lembrou seus colegas
quão pouco tinha sido descoberto e censurou Pinker por seu otimismo animador de que
a mente estava explicada. 46 A mente, disse Fodor, é capaz de abduzir inferências
globais da informação fornecida pelas partes do cérebro. Você pode ver, sentir e ouvir
as gotas de chuva com três módulos diferentes do cérebro, ligados a diferentes sentidos,
mas em algum lugar de seu cérebro está a inferência: “está chovendo”. De forma
inevitável, então, o pensamento é uma atividade geral que integra visão, linguagem,
empatia e outros módulos: mecanismos que operam como módulos pressupõem
mecanismos que não o fazem. E quase nada se sabe sobre os mecanismos que não são
modulares. A conclusão de Fodor foi lembrar os cientistas de quanta ignorância eles
descobriram: eles apenas tinham esclarecido que as trevas eram enormes.
Mas pelo menos isso está claro. Para construir um cérebro com capacidades
instintivas, o dispositivo de organização do genoma assentou circuitos separados com
padrões internos adequados que lhes permitem realizar computações adequadas, depois
ligam-nos com a entrada de informação adequada dos sentidos. No caso de uma vespa
ou um cuco, é possível que tais módulos tenham de “ter o comportamento certo” na
primeira vez e podem ser comparativamente indiferentes à experiência. Mas no caso da
mente humana, quase todos os módulos instintivos são projetados para que sejam
modificados pela experiência. Alguns se adaptam continuamente ao longo da vida,
alguns mudam rapidamente com a experiência e se solidificam como cimento. Uns
poucos desenvolvem seu próprio cronograma. No restante deste livro, proponho tentar
descobrir os genes responsáveis pela construção — e pela mudança — destes circuitos.
UTOPIA PLATÔNICA
CAPÍTULO TRÊS
Roger Masters 1
A expressão “natureza e criação” [nature and nurture] é um jogo conveniente de palavras, pois
separa sob dois tópicos distintos os inumeráveis elementos dos quais é composta a personalidade. 4
Shakespeare não foi o primeiro a justapor as duas palavras. Três décadas antes de A
tempestade ter sido encenada, um professor elisabetano de nome Richard Mulcaster, o
primeiro diretor da escola Merchant Taylor, gostava tanto da antifonia de natureza e
criação que a usou quatro vezes em seu livro de 1581, Positions Concerning the
Training Up of Children (Atitudes em relação à educação de crianças):
(...) [Os pais] criarão seus filhos tão bem quanto puderem, sem perguntar onde, ou desavirem-se
por quem: assim como podem ter estes filhos bem-educados pela criação, que eles prezam tanto,
legando-lhes a natureza (...) Deus proporcionou esta força da natureza, por meio da qual Ele não
permite que a criação exclua o que à natureza pertence (...). Estas capacidades naturais, apesar de
não as perceberem, é a Ele que devem: que condenem, seja por ignorância, se não podiam julgar,
seja por negligência, se não as buscaram, tudo o que estava nas crianças, implantado pela natureza,
ampliado pela criação (...). Que, sendo assim, quando tanto a verdade fala ao ignorante e a leitura
mostra ao erudito, fazemos bem então em perceber pelos homens naturais, e por motivos
filosóficos, que as jovens donzelas merecem a educação: porque elas têm este tesouro, que a elas
pertence, concedido a elas pela natureza, a ser nelas aprimorado pela criação. 6
DIVIDINDO PARES
COINCIDÊNCIA
Ou:
O ambiente compartilhado tem apenas um papel pequeno e insignificante na criação das diferenças
de personalidade nos adultos. 32
INTELIGÊNCIA
ACENTUANDO O POSITIVO
EUTOPIA
Ao final de sua longa vida, Francis Galton sucumbiu à tentação em que caíram muitos
homens proeminentes. Escreveu uma utopia. Como todas as descrições da sociedade
ideal, de Platão e Thomas Morus em diante, ele descreve o tipo de Estado totalitário em
que ninguém, em seu juízo perfeito, gostaria de viver Este é um lembrete útil de um
tema recorrente em todo este livro: o pluralismo é essencial nas causas da natureza
humana. Galton estava certo sobre o poder dos fatores herdáveis na natureza humana
mas errado em pensar que, por causa disso, a criação não importava.
Galton escreveu seu livro em 1910, aos oitenta anos. Intitulado Kantsaywhere, se
propôs a ser o diário de um homem chamado Donoghue, um professor de estatística
vital. Ele chega a Kantsaywhere, colônia governada por um conselho que segue linhas
inteiramente eugênicas. Ele conhece a Srta. Augusta Allfancy, que está prestes a fazer
um exame no Colégio de Eugenia.
A política eugênica de Kantsaywhere foi inventada por um Sr. Neverwas, que
deixou seu dinheiro para ser usado para o aperfeiçoamento da linhagem humana. Os que
se saíam bem nos exames eugênicos, por terem dons herdáveis, eram recompensados de
várias formas; os que eram apenas aprovados tinham permissão para procriar mas
pouco; os que fracassavam eram enviados a colônias de trabalho, nas quais seus deveres
não eram especialmente onerosos mas permaneciam celibatários. A propagação dos
desajustados é um crime contra o Estado. Donoghue acompanha Augusta a vários
lugares, nos quais ela conhece parceiros em potencial, porque se casará aos 22 anos.
Felizmente para Galton a Methuen não quis publicar o romance, e sua sobrinha-
neta Eva conseguiu impedir que tivesse uma circulação ampla. 48 Pelo menos, ela
percebeu como era constrangedor. O que não percebeu absolutamente é que a sociedade
controlada de Galton era também terrivelmente profética para o século XX.
CAPÍTULO QUATRO
William James 1
A CULPA É DA MÃE
Franz Kallmann, que tinha emigrado da Alemanha em 1935, fez um estudo semelhante
de 691 gêmeos esquizofrênicos em Nova York, e chegou a resultados ainda mais
sólidos (86% de concordância para os gêmeos idênticos, 15% para os fraternos). Foi
vaiado pelos analistas no Congresso Mundial de Psiquiatria em 1950. Rosanoff e
Kallmann, ambos judeus, foram ainda acusados de nazismo por usar estudos de gêmeos.
A teoria materna da esquizofrenia foi protegida dos fatos desagradáveis por mais duas
décadas.
O consenso atual é de que os “fatores psicossociais” têm um efeito pequeno, se é
que têm algum. Em um estudo finlandês de adotivos, ficou evidente que era um pouco
mais provável que filhos de esquizofrênicos exibissem distúrbio de pensamento se suas
mães adotivas também mostrassem o que era eufemisticamente chamado “desvio de
comunicação”. Mas não havia tal efeito para filhos de pais biológicos não afetados.
Assim, se existe uma “mãe esquizofrenogênica” ela só pode atingir aqueles de sua
descendência que têm suscetibilidade genética. 10
Chamo a terceira testemunha. Alguns cientistas, em vez de tentar descobrir o que era
diferente nos genes de esquizofrênicos, tentaram compreender o que era diferente em
sua bioquímica cerebral. A partir daí, eles deduziriam que genes controlam sua
bioquímica e assim investigariam os genes candidatos . A primeira escala foi feita no
receptor de dopamina, sendo a dopamina um “neurotransmissor”, ou sistema de relé
químico entre certos neurônios no cérebro. Um neurônio libera dopamina na sinapse
entre as células (uma sinapse é um hiato estreito especial), e isso causa o início da
transmissão de sinais elétricos no neurônio adjacente.
O foco na dopamina foi inevitável depois de 1955, o ano em que a droga
clorpromazina começou, a ser usada amplamente em esquizofrênicos. Para os
psiquiatras forçados a escolher entre a brutalidade da lobotomia e a inutilidade da
psicanálise, a droga era uma dádiva de Deus. Ela genuinamente restaurava a sanidade.
Pela primeira vez, os esquizofrênicos podiam deixar o manicômio e voltar a ter uma
vida normal. Somente mais tarde surgiriam os terríveis efeitos colaterais, e com eles o
problema dos pacientes se recusarem a tomar a medicação. A clorpromazina induzia em
alguns pacientes uma degeneração progressiva do controle do movimento, semelhante a
doença de Parkinson.
Mas apesar de não representar uma cura, a droga parecia oferecer uma pista vital
para a causa. A clorpromazina e suas sucessoras eram substâncias químicas que
bloqueavam os receptores de dopamina e evitavam que eles tivessem acesso à
dopamina. Além disso, as drogas que aumentam os níveis de dopamina no cérebro,
como as anfetaminas, provocam surtos psicóticos exacerbados. Terceiro, a varredura
eletrônica cerebral mostra que as partes do cérebro nutridas com dopamina são mais
atípicas nos esquizofrênicos. A esquizofrenia deve ser um distúrbio de
neurotransmissores, em particular da dopamina.
Há cinco tipos diferentes de receptores de dopamina nos neurônios receptores.
Dois deles (D2 e D3) mostraram-se defeituosos em alguns esquizofrênicos, mas
novamente o resultado é decepcionantemente fraco e difícil de reproduzir. Além disso, a
melhor droga antipsicótica prefere bloquear receptores D4. Para piorar as coisas, o gene
D3 está no cromossomo 3, que é um dos seis cromossomos que, nos estudos de ligação,
nunca se conseguiu associar com a esquizofrenia.
A teoria da dopamina na esquizofrenia aos poucos saiu de moda, no mínimo
depois da descoberta de camundongos com a sinalização de dopamina defeituosa que
não se comportavam absolutamente como pessoas esquizofrênicas. Recentemente a
atenção tem se voltado para um sistema diferente de sinalização no cérebro, o sistema
do glutamato. Os esquizofrênicos parecem ter muito pouca atividade em um tipo de
receptor de glutamato (chamado receptor NMDA) em seu cérebro, assim como têm
dopamina demais. Uma terceira possibilidade é o sistema de sinalização da serotonina.
Aqui tem havido mais sucesso, porque um dos genes candidatos, chamado 5HT2A,
parece estar, com bastante freqüência, defeituoso em esquizofrênicos, e se localiza em
um dos cromossomos (13) mais acusados por estudos de ligação. Mas o efeito ainda é
decepcionantemente fraco. 14
Com a chegada do ano 2000, nem os estudos de ligação nem a pesquisa de genes
candidatos resolveu o problema de que genes eram responsáveis pela herdabilidade da
esquizofrenia. Mas na época o Projeto Genoma Humano estava perto de sua conclusão,
então todos os genes estavam pelo menos presentes, nas entranhas dos computadores;
mas como descobrir os poucos que importam? Pat Levitt e seus colegas em Pittsburgh
colheram amostras de córtex pré-frontal de esquizofrênicos mortos para descobrir que
genes tinham agido estranhamente. Eles classificaram cuidadosamente os indivíduos
por sexo, tempo desde a morte, idade e acidez cerebral. Depois usaram microarrays
para amostrar perto de 8.000 genes e identificar os que pareciam se expressar de forma
diferente em esquizofrênicos. O primeiro foi um grupo de genes envolvidos nas
“funções secretórias pré-sinápticas”. Em bom português, isto significa os genes
envolvidos na produção de sinais químicos a partir dos neurônios — sinais como a
dopamina e o glutamato. Dois destes genes, em particular, eram menos ativos nos
esquizofrênicos. Surpreendentemente, estes genes estão nos cromossomos 3 e 17 —
dois dos seis cromossomos em que os estudos de ligação não encontraram uma
associação com a esquizofrenia. 15
Mas outro gene também surgiu deste estudo, apontando para um dos locais
cromossomiais certos (no cromossomo 1). É um gene chamado RGS4, e é ativo no lado
descendente da sinapse — isto é, no terminal receptor dos sinais químicos. Tinha sua
atividade drasticamente reduzida em dez esquizofrênicos do grupo estudado por Levitt.
Em animais, a atividade do RGS4 é reduzida por estresse agudo. Talvez isto explique
uma característica universal dos esquizofrênicos, de que o estresse tende a trazer-lhes
episódios psicóticos. No caso do brilhante matemático de Princeton John Nash, uma
prisão e a conseqüente perda de seu emprego, além do desespero de não conseguir
resolver um problema da mecânica quântica, parecem tê-lo derrubado no abismo. No
caso de Hamlet, ver a mãe se casar com o assassino de seu pai pode ser considerado
estresse suficiente para levar qualquer um a enlouquecer. Se tal estresse deprime a
atividade de RGS4, e se o RGS4 já é baixo em tipos vulneráveis, então o estresse pode
estimular a própria psicose. Mas isso não significaria que o RGS4 é a causa da
esquizofrenia, apenas que sua ausência é uma causa de sintomas piores em
esquizofrênicos depois de estresse — o que mais parece um sintoma.
Mas refreie esta especulação com a cautela. A técnica de microarray está pegando
genes que mudaram sua expressão em reação à doença bem como genes que induzem à
doença. Isto pode ser confundir a conseqüência com a causa. Esta é uma questão
essencial evocada em todo o livro. Os genes não só escrevem o roteiro; eles também
interpretam os personagens.
Contudo, a evidência dos microarrays pelo menos dá apoio às pistas fornecidas
pelos tratamentos medicamentosos de que a esquizofrenia é uma doença da sinapse,
embora pouco faça para separar causa de efeito. Algo está errado nas junções entre os
neurônios em determinadas partes do cérebro, mais especialmente no córtex pré-frontal.
A CULPA É DO DESENVOLVIMENTO
A CULPA É DA DIETA
Porém, um amante da ciência não deve ficar satisfeito quando as coisas estão se
tornando consensuais. A sexta testemunha está decidida a transtornar o ambiente. Ele
acredita que os genes, o desenvolvimento, os vírus e os neurotransmissores têm
importância, mas nenhum deles é uma explicação realmente fundamental da causa.
Todos são na verdade sintomas. A chave para entender a esquizofrenia, afirma ele, está
no que comemos. Em particular, o cérebro humano em desenvolvimento tem uma
necessidade desesperada de certas gorduras, conhecidas como ácidos graxos essenciais,
e o cérebro de pessoas esquizotípicas precisam de mais dessas gorduras do que o
habitual. Se elas não as obtêm na dieta, o resultado pode ser a esquizofrenia.
Em fevereiro de 1977, em um dia luminoso mas muito frio, um pesquisador
médico britânico estava caminhando por Montreal quando teve seu momento de
“eureca”. David Horrobin vinha tentando encaixar as peças de um quebra-cabeça mental
de fatos estranhos sobre a esquizofrenia. Todos se relacionavam com os aspectos não
mentais freqüentemente esquecidos da doença, e eles estavam ali. Primeiro, os
esquizofrênicos raramente sofrem de artrite; segundo, eles são surpreendentemente
insensíveis à dor; terceiro, sua psicose com freqüência melhora, temporariamente,
quando eles têm febre (espantosamente, certa vez se tentou a malária como uma cura
para a esquizofrenia — e funcionou, mas temporariamente apenas). A quarta peça do
quebra-cabeça era nova para Horrobin. Ele tinha acabado de observar que uma
substância química chamada niacina, então usada para tratar o colesterol alto, não causa
rubor cutâneo em esquizofrênicos como faz com outras pessoas. 29
Subitamente as peças se encaixavam, O rubor cutâneo, a inflamação da artrite e a
reação à dor dependem da liberação de uma molécula de gordura chamada ácido
araquidônico (AA) pelas membranas das células. Elas são convertidas em
prostaglandinas, que causam alguns dos sinais de inflamação, vermelhidão e dor. Da
mesma forma, uma febre também libera AA. Assim, talvez os esquizofrênicos sejam
incapazes de liberar quantidades normais de AA de suas células e isso cause seus
problemas mentais, bem como sua resistência à dor, à artrite e ao rubor. Basta um pouco
de febre para aumentar seus níveis de AA para o de pessoas normais e restaurar o
funcionamento normal do cérebro. Horrobin publicou devidamente sua hipótese na
Lancet e sentou-se para esperar pelos aplausos. Houve um silêncio estarrecedor. Na
época, os especialistas em esquizofrenia estavam imersos demais na hipótese da
dopamina para perceber uma teoria diferente, e ainda mais considerá-la. A esquizofrenia
era uma doença cerebral, então, qual era a importância de toda essa conversa de
gorduras?
Horrobin gosta de negar o pensamento convencional e foi destemido. Mas foi
apenas na década de 1990 que começaram a surgir evidências em apoio a seu palpite.
Os déficits de AA em esquizofrênicos logo foram relatados, assim como uma taxa
maior de oxidação de AA. Aos poucos surgiram da névoa da ignorância detalhes
sugerindo que ou o AA é secretado com mais facilidade das membrana celulares de
esquizofrênicos, ou que o AA, depois de liberado, não pode ser reincorporado às
membranas com facilidade — ou talvez as duas coisas. Os dois processos são o
resultado de enzimas defeituosas, e as enzimas são feitas pelos genes; assim, Horrobin
admite com satisfação um papel para os genes na predisposição de pessoas à
esquizofrenia. Mas quanto a expressar a doença, ou, melhor ainda, quanto a curá-la, ele
acredita que a dieta possa ter importância.
Neste ponto, provavelmente é necessária uma pesquisa longa e bem fundamentada
sobre a natureza e a função das gorduras e dos ácidos graxos. Receio, porém, que o
leitor não compre este livro por ter paixão pela bioquímica. Então vou tentar expressar
com simplicidade os fatos essenciais sobre as gorduras em algumas frases concisas.
Cada célula de seu corpo é mantida unida por uma membrana externa, que é feita
amplamente de moléculas ricas em gorduras chamadas fosfolipídios; um fosfolipídio é
como um tridente, cada dente sendo um ácido graxo longo. Há centenas de diferentes
ácidos graxos a partir dos quais escolher, dos saturados aos poliinsaturados, e a
principal característica dos poliinsaturados é que eles formam um dente mais flexível.
Isto é especialmente importante no cérebro, onde a membrana de uma célula cerebral
deve não só assumir uma forma intrincada como também mudar rapidamente quando
conexões entre as células são acrescentadas ou perdidas. Assim, o cérebro necessita de
mais ácidos graxos poliinsaturados que outros tecidos: cerca de um quarto de seu peso
seco consiste em apenas quatro tipos de poliinsaturados. Eles são conhecidos como
ácidos graxos essenciais (EFA), porque nossos ancestrais negligentes nunca inventaram
a capacidade de produzi-los do zero; seus precursores provêm da comida, tendo
escalado a cadeia alimentar a partir de algas e bactérias simples que sabem como
produzi-los. Quem come uma dieta rica em gorduras saturadas e pobre em EFA pode
terminar com membranas celulares cerebrais que são menos flexíveis que aqueles que
comem muita gordura de peixe. (Isto não explica facilmente como a esquizofrenia é tão
comum em países como a Noruega e o Japão, onde o peixe compõe grande parte da
dieta tradicional.)
O teste óbvio das idéias de Horrobin é tratar esquizofrênicos com EFA. Seu
colega Malcolm Peet e outros começaram a fazer isso. Os resultados não são
espetaculares mas são estimulantes. Uma grande dose diária de óleo de peixe — rico em
EFA — produz uma melhora modesta nos sintomas de esquizofrênicos. Em 31
esquizofrênicos indianos recém-diagnosticados, uma dose de um dos quatro EFA
principais, chamados EPA, surtiram efeito em um estudo duplo-cego (onde nem o
médico, nem o paciente sabem que pacientes estão tomando a droga até o final do
ensaio) em que dez não precisaram mais tomar drogas antipsicóticas para controlar sua
doença; nenhum dos 29 controles que receberam placebo viram alguma melhora, O
EPA inibe a enzima que remove o ácido araquidônico das membranas neuronais;
portanto, preserva o AA na membrana. Uma vez que a maior parte das drogas
antipsicóticas tem efeitos colaterais bem pavorosos, de apatia e ganho de peso aos
sintomas do mal de Parkinson, esta é uma notícia empolgante.
A história do ácido graxo não é rival das várias hipóteses genéticas. Muitos dos
sintomas neurais da esquizofrenia podem ser relacionados com os ácidos graxos. Sabe-
se que os EFA regulam a supressão de conexões neuronais na puberdade. As mulheres
são melhores na produção de EFA a partir de seus precursores alimentares, e a
probabilidade de esquizofrenia nas mulheres é menor. A inanição durante a gravidez,
hipóxia durante o parto, estresse e até uma infecção gripal parecem reduzir a
disponibilidade de EFA para o cérebro em desenvolvimento. O vírus da gripe na
verdade inibe a formação de AA, possivelmente porque o AA é necessário como parte
da defesa do corpo.
Evidências mais diretas da teoria do ácido graxo vêm de alguns dos genes
implicados na esquizofrenia. Incluem o gene para a fosfolipase-A2, uma proteína cuja
tarefa é remover o dente do meio de um tridente fosfolipídico, que geralmente é um
EFA. O gene para apoD, uma espécie de caminhão de entrega que traz os ácidos graxos
ao cérebro, é três vezes mais ativo em esquizofrênicos exatamente na parte do cérebro
mais envolvida nos sintomas da doença — o córtex pré-frontal — mas não no resto do
cérebro ou do corpo. É quase como se o córtex pré-frontal, vendo-se com poucos destes
ácidos graxos, estimule a expressão do gene apoD como uma tentativa de compensar (o
gene apoD, aliás, está no cromossomo 3, em que nenhum “gene da esquizofrenia’ foi
detectado pelos estudos de ligação). Um dos motivos para que a clozapina seja uma
droga eficaz contra a esquizofrenia pode ser sua capacidade de estimular a expressão do
apoD. A hipótese de Horrobin é de que para a esquizofrenia plena são necessários dois
defeitos genéticos: um que reduz sua capacidade de incorporar EFA nas membranas
celulares e outro que as retira com demasiada facilidade (cada um pode ser afetado por
vários genes). Mesmo com estes defeitos genéticos, um evento externo também é
necessário para incitar a psicose, e outros genes podem modificar ou mesmo anular o
efeito. 30
CONFUSÃO MENTAL
Durante o século XX, as forças ideológicas da natureza e da criação com freqüência se
comportaram como exércitos medievais sitiando as doenças como se fossem castelos. O
escorbuto e a pelagra, explicados como deficiências de vitaminas, sucumbiram às forças
da criação, enquanto a hemofilia e a doença de Huntington, explicadas como mutações
genéticas, sucumbem ao exército da natureza; a esquizofrenia era uma fortaleza
essencial na fronteira, mantida na maior parte do século pela criação como um forte da
teoria freudiana. Mas embora os freudianos — aqueles Cavaleiros Templários da guerra
natureza-criação — tenham se retirado da batalha décadas atrás, os geneticistas nunca
conseguiram ocupar convincentemente a fortaleza, e eles podem ser forçados a pedir
trégua e receber as forças da criação de volta ao fosso.
Um século depois de a síndrome ter sido identificada pela primeira vez, as únicas
duas coisas que podem ser ditas com certeza sobre a esquizofrenia é que culpar as mães
não emocionais foi um completo equívoco, e que há algo de altamente herdável na
síndrome. Fora disso, quase qualquer combinação de explicações é possível. Muitos
genes claramente influenciam a suscetibilidade à esquizofrenia, muitos podem reagir a
ela como compensação, mas poucos parecem causá-la. A infecção pré-natal parece ser
essencial em muitos casos, mas pode nem ser necessária nem suficiente. A dieta pode
exacerbar os sintomas e talvez até incitar seu início, mas provavelmente apenas
naqueles que trazem uma suscetibilidade genética.
No caso da psicose, nem as teorias da natureza nem as teorias da criação são
muito boas para distinguir causa de efeito. O cérebro humano é equipado para procurar
por causas simples. Ele evita eventos infundados, preferindo em vez disso deduzir que
quando A e B aparecem juntos, ou A causa B, ou B causa A. Esta tendência é mais forte
em esquizofrênicos, cujas relações causais na maioria das coincidências são evidentes.
Mas freqüentemente A e B são simplesmente sintomas paralelos de outra coisa. Ou
ainda pior, A pode ser ao mesmo tempo causa e efeito de B.
Aqui está então uma ilustração perfeita de que tanto natureza como criação
importam. Prometi que a esquizofrenia confundiria a questão e cumpri a promessa.
Kraepelin foi sábio em ser agnóstico em relação à causa: mesmo com todo o peso da
ciência moderna por trás deles, seus sucessores não conseguiram encontrá-la. Eles têm
fracassado até em distinguir causa de efeito. Na verdade, parece muito possível que a
explicação definitiva da esquizofrenia venha a incluir natureza e criação, sem que
nenhuma das duas possa reclamar a primazia.
CAPÍTULO CINCO
Se seguirmos uma determinada receita de um livro de culinária palavra por palavra, sairá um bolo
do forno no final. Agora, não podemos quebrar o bolo em seus farelos componentes e dizer: este
farelo corresponde à primeira palavra da receita; este farelo corresponde à segunda palavra da
receita.
Richard Dawkins 1
O cargo de curador da coleção de moluscos do museu de história natural em Genebra
não pode ser desprezado. Quando foi oferecido Jean Piaget, ele era bem qualificado,
tendo publicado quase vinte artigos sobre caracóis e seus primos. Mas ele o rejeitou, e
por um bom motivo: ainda era estudante. Viria a fazer doutorado em moluscos suíços
antes que seu pai, alarmado com sua obsessão pela história natural, o desviasse da
malacologia para a filosofia, primeiro em Zurique e depois na Sorbonne. Mas sua fama
está em sua terceira carreira, iniciada no Instituto Rousseau em Genebra em 1925:
psicólogo infantil. Entre 1926 e 1932, ainda precoce, publicou cinco livros influentes
sobre a mente das crianças. É a Piaget que os pais modernos devem sua obsessão para
que o Joãozinho encontre os marcos de seu desenvolvimento.
Piaget não foi o primeiro a observar as crianças como se elas fossem animais —
Darwin fez o mesmo com seus próprios filhos —, mas foi provavelmente o primeiro a
pensar nelas não como aprendizes de adultos, mas como uma espécie dotada de uma
mente característica. Os “erros” que crianças de cinco anos de idade cometem ao
responder a perguntas de testes de inteligência revelaram a Piaget as formas peculiares
mas coerentes pelas quais sua mente funcionava. Ao tentar responder à pergunta, “como
o conhecimento cresce?”, ele viu uma construção progressiva e cumulativa da mente
durante a infância em resposta à experiência. Cada criança atravessa uma série de
estágios de desenvolvimento, sempre na mesma ordem, embora nem sempre na mesma
velocidade. Primeiro vem o estágio sensório-motor, quando o bebê é pouco mais que
um monte de reflexos e reações; ele ainda não pode conceber que os objetos continuam
existindo mesmo quando escondidos. Em seguida vem o estágio pré-operacional, uma
época de curiosidade egocêntrica. Depois, o estágio de operações concretas. E por fim,
perto da adolescência, a aurora do pensamento abstrato e do raciocínio dedutivo.
Piaget percebeu que o desenvolvimento era mais contínuo do que isto. Mas
insistiu que, assim como uma criança não fala ou anda até que esteja pronta, os
elementos do que o mundo chama de inteligência não são apenas absorvidos do mundo
exterior; aparecem quando o cérebro em desenvolvimento está pronto para eles. Piaget
via o desenvolvimento cognitivo não como aprendizagem ou amadurecimento mas
como uma combinação dos dois, uma espécie de envolvimento ativo da mente em
desenvolvimento com o mundo. Ele pensava que as estruturas mentais necessárias para
o desenvolvimento intelectual são geneticamente determinadas, mas o processo pelo
qual o cérebro em amadurecimento se desenvolve requer feedback da experiência e
interação social. Este feedback assume duas formas: assimilação e acomodação. Uma
criança assimila experiências previstas e acomoda-se àquelas inesperadas.
Em termos de natureza-criação, Piaget, sozinho entre os homens em minha
fotografia, desafia os rótulos de empírico ou nativista. Onde seus contemporâneos
Konrad Lorenz e B. E Skinner assumiram posições extremas, o primeiro como defensor
da natureza, o segundo da criação, Piaget toma um caminho cuidadoso no meio. Com
sua ênfase no desenvolvimento por estágios, Piaget prefigura vagamente as idéias das
experiências de formação na juventude. Estava errado em muitos aspectos. Sua hipótese
de que uma criança compreende as propriedades espaciais dos objetos apenas quando os
manipula se mostrou falsa. A compreensão espacial parece estar muito mais próxima do
inato que isso — até bebês muito pequenos podem entender as propriedades espaciais
de coisas que nunca pegaram. Todavia, Piaget merece algum crédito por ser o primeiro
a levar a sério a quarta dimensão da natureza humana — a dimensão do tempo. 2
OS EXCESSOS DO NATIVISMO
Foi este conceito, redescoberto um pouco mais tarde pelos zoólogos, que veio a
desempenhar um papel central em um dos mais esclarecedores debates natureza-criação,
aquele entre Konrad Lorenz e Daniel Lehrman nas décadas de 1950 e 60. Um nova-
iorquino fervoroso e articulado, apaixonado pela observação de pássaros, Lehrman fez
uma descoberta sobre o comportamento do pombo-torcaz com amplas implicações para
o ser humano. Descobriu que a dança da corte do macho de torcaz incita uma mudança
nos hormônios da fêmea. Assim, uma experiência externa pode causar, através do
sistema nervoso, uma mudança interna e biológica no organismo. Ele não sabia disso,
mas esta resposta é mediada pela ativação e desativação de genes.
Em 1953, antes do clímax de seu trabalho com os pombos, Lehrman decidiu usar
seu parco alemão, aprendido enquanto decodificava interceptações de rádio para a
inteligência americana na Segunda Guerra Mundial, para traduzir a obra de Lorenz para
o inglês — com o objetivo de criticá-lo. Sua poderosa crítica viria a influenciar uma
geração de etólogos. Até Niko Tinbergen moderaria suas opiniões depois de ler
Lehrman. O austríaco Lorenz tinha defendido o instinto — a idéia de que algum
comportamento é inato, no sentido de que surgirá mesmo que o animal fique isolado de
seu ambiente normal desde o nascimento. A maioria dos animais, disse Lorenz, era
levada a padrões de comportamento elaborados e sofisticados não por sua experiência,
mas por seus genes. Em sua crítica, Lehrman acusou Lorenz de ter omitido qualquer
menção ao desenvolvimento: de como o comportamento pode vir a ser. Ele não surge
plenamente formado a partir do gene; os genes construíram um cérebro, que absorveu
experiência antes que emitisse comportamento. Neste sistema, o que significa a palavra
inato? 3
Lorenz replicou longamente, e Lehrman respondeu de novo, mas os dois estavam
claramente em campos opostos. Lehrman afirmou que só porque um comportamento é
produto da seleção natural não quer dizer que seja “inato”, no sentido de produzido sem
experiência. Antes que um pombo possa desenvolver uma preferência de parceiro para
sua espécie, ele precisa conviver com um pai pombo; o mesmo não é valido em um
Molothrus, que parece um cuco que nunca viu os pais, e portanto não tem preferências
de parceiro verdadeiramente “inatas”. Lorenz não se preocupou com o modo como o
comportamento era produzido, desde que fosse obviamente mantido por seleção natural
e expresso no animal adulto da mesma forma que uma determinada experiência normal.
Para ele, inato significava inevitável. Lorenz sempre se interessou mais pelo por quê do
que pelo como.
Tinbergen resolveu a questão, para a satisfação de muitos, quando disse que um
estudioso do comportamento animal deve fazer quatro perguntas diferentes sobre um
determinado comportamento. Quais são os mecanismos que causa o comportamento?
Como o comportamento vem a se desenvolver no indivíduo (a questão de Lehrman)?
Como o comportamento evoluiu? Qual é a função ou o valor de sobrevivência do
comportamento (a pergunta de Lorenz)? 4
O debate foi abreviado com a morte de Lehrman em 1972. Todavia, o argumento
do desenvolvimento de Lehrman tornou-se nas últimas décadas uma espécie de padrão
para reorganizar os que acham que os nativistas da genética do comportamento e da
psicologia da evolução foram longe demais. O “desafio desenvolvimentista’ assume
muitas formas, mas as principais acusações que sofre são de que os muitos biólogos
modernos falam com demasiado desembaraço sobre “genes para” o comportamento,
ignorando a incerteza, a complexidade e a circularidade do sistema através do qual os
genes vêm a influenciar o comportamento. De acordo com o filósofo Ken Schaffner, um
manifesto de cinco pontos do desafio desenvolvimentista pode se assemelhar a isto: os
genes merecem paridade com outras causas; eles não são “pré-formacionistas”; seu
significado depende muito do contexto; os efeitos dos genes e dos ambientes são
contínuos e inseparáveis; e a psique “surge” imprevisivelmente do processo de
desenvolvimento. 5
Em sua forma mais vigorosa, apresentada pela zoóloga Mary Jane West-Eberhard,
o desafio afirma apresentar uma “segunda síntese evolutiva” que superará a primeira —
a fusão de Mendel com Darwin que surgiu na década de 1930 —, ao elevar os
mecanismos de desenvolvimento junto dos mecanismos genéticos. 6 Por exemplo — e
este exemplo é meu — dê uma olhada no padrão dos vasos sangüíneos no dorso de sua
mão. Embora as veias tenham o mesmo destino nas duas mãos, elas têm itinerários
ligeiramente diferentes. Não é que haja diferentes programas genéticos para diferentes
mãos, mas porque o programa genético é flexível: de certa forma, ele delega a direção
local aos próprios vasos. O desenvolvimento acomoda-se ao ambiente: ele é capaz de
lidar com diferentes circunstâncias e ainda chegar ao resultado que funciona. Se
diferentes desenvolvimentos podem resultar do mesmo conjunto de genes, então
diferentes genes podem ser capazes de chegar ao mesmo resultado. Ou, para colocar em
termos técnicos, o desenvolvimento é bem “tamponado” contra mudanças genéticas
menores. Isto pode explicar dois fenômenos intrigantes. Primeiro, as raças selvagens,
como os lobos, são muito menos sensíveis a mutações genéticas individuais do que as
formas consangüíneas como os cães com pedigree: eles são tamponados por sua
variação genética. Isto, por sua vez, pode explicar o fato desconcertante de haver tantas
versões diferentes de cada gene na população (em seres humanos, bem como em outros
animais selvagens). Muitos genes vêm em duas versões ligeiramente diferentes, um em
cada cromossomo equivalente, o que pode ajudar a proporcionar a flexibilidade para
desenvolver um corpo funcional em ambientes diferentes.
O desenvolvimento do comportamento não precisa ser menos flexível e
tamponado que o desenvolvimento da anatomia. 7 Em sua forma mais branda, o desafio
desenvolvimentista é apenas um lembrete aos geneticistas do comportamento para que
não tirem conclusões que sejam simplistas demais e não estimulem os redatores de
manchetes de jornais a falar de “genes gays” ou “genes da felicidade”. Os genes
funcionam em equipes imensas e constroem o organismo e seus instintos não de forma
direta, mas por meio de um processo flexível de desenvolvimento. Aqueles que
realmente estudam os genes e o comportamento — em camundongos, moscas e vermes
— dizem que estão bem conscientes dos perigos da supersimplificação, e às vezes ficam
um pouco irritados com os desenvolvimentistas. Na medida em que destacam suas
complicações e sua flexibilidade, mesmo o desenvolvimento ainda é basicamente um
processo genético. Os experimentos confirmam a complexidade, a plasticidade e a
circularidade do sistema, mas também revelam que até o ambiente afeta o
desenvolvimento, apenas por ativar e desativar genes: os genes que permitem a
plasticidade e o aprendizado. Ralph Greenspan, pioneiro do estudo da corte nas moscas-
da-fruta, coloca desta forma:
Assim como a capacidade de realizar a corte, também a capacidade de aprender durante a
experiência é dirigida pelos genes. Estudos deste fenômeno dão apoio adicional à probabilidade de
que o comportamento seja regulado por uma miríade de genes em interação, cada um deles lidando
com responsabilidades diversas no corpo. 8
NA COZINHA
Uma vez que você tente pensar na quarta dimensão do organismo, várias parábolas úteis
vêm à mente, todas bem ilustrativas. A metáfora, em minha opinião, é o sangue vital
(ah!) da boa prosa científica, então devo explorar longamente duas destas parábolas.
A primeira é a parábola da canalização, cunhada pelo embriologista britânico
Conrad Waddington em 1 940. 9 Considere uma bola no topo de uma colina. À medida
que a bola desce, a colina é suave no início, mas depois de algum tempo começam a
aparecer sulcos na superfície; em pouco tempo a bola está descendo um canal estreito.
Em algumas colinas, os sulcos convergem em um canal; em outras, eles divergem em
vários canais. A bola é o animal. A colina de sulcos convergentes representa o
desenvolvimento da maior parte do tipo “inato” de comportamento: sempre se torna
aproximadamente o mesmo, qualquer que seja a experiência do indivíduo. A colina de
sulcos divergentes representa o comportamento que é muito mais “ambientalmente”
determinado. Porém, o aparecimento de ambos requer genes, experiência e
desenvolvimento. Assim, por exemplo, a gramática é altamente canalizada; o
vocabulário, não. A canção formulaica de uma cambaxirra — que acabo de ouvir do
lado de fora de minha janela — é muito mais canalizada que a canção imitativa e
inventiva do tordo, que também posso ouvir. 10
Equiparar o comportamento inato com o desenvolvimento canalizado é uma idéia
útil, apesar de limitada, não menos porque corta tão claramente a dicotomia gene-
ambiente: uma coisa pode ser bem especificada pelos genes e ainda ser lançada em um
canal diferente pelo ambiente. Se a personalidade e o QI são altamente herdáveis na
maior parte das sociedades (Capítulo 3), isso implica que seu desenvolvimento é
estreitamente canalizado — seria necessário um ambiente muito diferente para lançar a
bola tão fora da trilha que ela terminaria em um canal diferente. Mas isso não significa
que o ambiente não tenha importância: a bola ainda precisa de uma colina para rolar
para baixo.
Para meu próximo sermão, discorrerei sobre uma parábola diferente, que data de
1976, quando foi cunhada por Pat Bateson, etólogo britânico muito influenciado por
Lehrman. Esta é a parábola da cozinha:
Os processos envolvidos no desenvolvimento psicológico e comportamental têm certas
similaridades metafóricas com o cozinhar. Os ingredientes e a maneira em que são combinados são
importantes. A cronometragem também importa. Em uma analogia com a cozinha, os ingredientes
representam as muitas influências genéticas e ambientais, enquanto cozinhar representa os
processos biológicos e psicológicos do desenvolvimento. 11
EX UNUM PLURIBUS
NOVOS NEURÔNIOS
INCUBANDO UTOPIA
“Não lhe ocorreu que, para um embrião de Ípsilon, é preciso um meio de Ípsilon, tanto
quanto uma hereditariedade de Ípsilon?” Assim fala o diretor de Incubação e
Condicionamento do romance de Aldous Huxley de 1932, Admirável mundo novo. Ele
está mostrando aos estudantes as Salas de Predestinação e Decantação na incubadora,
onde embriões humanos artificialmente inseminados são criados sob diferentes
condições para produzir diferentes castas da sociedade: de alfas brilhantes a ípsilons
para as fábricas.
Raramente um livro foi mais mal interpretado que Admirável mundo novo. Hoje
se julga quase automaticamente ser uma sátira à ciência hereditariana radical: um ataque
à natureza. Na verdade trata exclusivamente de criação. No futuro imaginado por
Huxley, os embriões humanos, tendo sido inseminados artificialmente e em alguns
casos clonados (“bokanovskificados”), são depois desenvolvidos em membros de várias
castas por um cuidadoso regime de nutrientes, drogas e oxigênio racionado. A isto se
segue, durante a infância, uma incessante hipnopedia (lavagem cerebral durante o sono)
e condicionamento neopavloviano até que cada pessoa surja certa de desfrutar a vida
para a qual foi atribuída. Aqueles que trabalham nos trópicos são condicionados ao
calor; os que voam em foguetes são condicionados ao movimento.
A heroína altamente “pneumática” Lenina é predestinada — pelo que foi feito a
ela na incubadora e na escola, não por seus genes — a gostar de voar, namorar o
predestinador assistente, promiscuidade, rodadas de golfe de obstáculos e doses da
droga da felicidade, o Soma. Seu admirador, Marx, se rebela contra tal conformidade
somente porque foi adicionado álcool, por engano, em seu sangue substituto no seu
nascimento. Ele leva Lenina à Reserva Selvagem no Novo México para férias, onde
conhece Linda, uma “selvagem” branca, e seu filho, John, que eles levam a Londres
para confrontar o pai de John, que por sua vez é o próprio diretor de incubação e
condicionamento. John, educado como autodidata com um livro de Shakespeare, anseia
por ver o mundo civilizado, mas se desilude rapidamente e se retira para um farol em
Surrey, onde é capturado por um cineasta. Acossado por espectadores invasivos, ele se
enforca. 39 Embora haja drogas para manter as pessoas felizes e sugestões de
hereditariedade, Admirável mundo novo e seus relatos como um lugar horrível de se
viver, detalha as influências ambientais exercidas sobre o desenvolvimento dos corpos e
cérebros dos habitantes. É um inferno da criação e não da natureza.
CAPÍTULO SEIS
Os Anos de Formação
A criação é reversível; a natureza, não. Foi por causa deste raciocínio que os intelectuais
passaram um século preferindo o encantador meliorismo do ambiente ao árido
calvinismo dos genes. Mas e se houvesse um planeta onde ocorresse o oposto? Suponha
que algum cientista tenha descoberto um mundo que abrigasse seres inteligentes cuja
criação estivesse fora de seu controle, no qual seus genes fossem extraordinariamente
sensíveis ao mundo em que viviam.
Não suponha mais. Neste capítulo, meu objetivo é começar a convencê-lo de que
você vive exatamente neste planeta imaginário. Uma vez que são um produto da
criação, no sentido estritamente parental da palavra, as pessoas são amplamente
produtos de eventos iniciais e irreversíveis. Uma vez que elas são o produto dos genes,
elas estão expressando novos efeitos na idade adulta, e com freqüência estes efeitos
estão à mercê da forma como levam sua vida. Esta é uma daquelas surpresas
contraditórias que a ciência adora fornecer e é uma das menos reconhecidas e mais
significativas descobertas dos últimos anos. Mesmo seus descobridores, impregnados
como são da litania de natureza versus criação, estão apenas vagamente conscientes de
como suas descobertas são revolucionárias.
Em 1909, nos pântanos do Danúbio perto de Altenberg, no leste da Áustria, um
garoto de seis anos chamado Konrad e sua amiga Gretl ganharam de um vizinho dois
patinhos recém-chocados. Os patinhos fixaram a imagem das crianças e as seguiam a
toda parte, confundindo-as com seus pais. “O que não percebemos”, disse Konrad 64
anos depois, “é que, naquele meio tempo, os patos tinham fixado minha imagem (...).
Um comportamento de toda a vida é fixado por uma experiência decisiva no início da
juventude.” 2 Em 1935, Konrad Lorenz, então casado com Gretl, descreveu muito
cientificamente como um filhote de ganso, logo após ser chocado, se fixará na primeira
coisa em movimento que encontrar e a seguirá. Em geral, esta coisa é sua mãe, mas
ocasionalmente pode ser um professor de cavanhaque. Lorenz percebeu que havia um
pequeno lapso de tempo durante o qual podia acontecer esse processo, denominado
imprinting. Se o filhote de ganso tivesse menos de 15 horas ou mais que três dias de
idade, não sofria imprinting. Depois do imprinting, fixava a imagem e não podia
aprender a seguir um pai adotivo diferente. 3
Lorenz não foi realmente o primeiro a descrever o imprinting. Mais de sessenta
anos antes, o naturalista inglês Douglas Alexander Spalding falou da experiência que
teve sendo “gravado” na mente de um jovem animal praticamente a mesma metáfora.
Pouco se sabe sobre Spalding, mas esse pouco é agradavelmente exótico. John Stuart
MilI, tendo conhecido Spalding em Avignon, deu a ele o cargo de tutor do irmão mais
velho de Bertrand Russell. Os pais de Russell, o visconde e a viscondessa Amberley,
achavam um erro que Spalding, um tísico, se reproduzisse. Mas achavam igualmente
errado que se proibissem os impulsos sexuais naturais de um homem, então resolveram
que o dilema devia ser solucionado da maneira óbvia: por Lady Amberley
pessoalmente. Ela fez isso devidamente, mas morreu em 1874, seguida em 1876 por seu
marido, que tinha nomeado Spalding um dos guardiães de Bertrand Russell. A
revelação do caso estarreceu o envelhecido avô, o conde Russell, que prontamente
tomou a guarda do jovem Bertrand antes de morrer em 1878. Spalding, nesse meio
tempo, tinha morrido em 1877 de sua tuberculose.
Em seus poucos escritos, o obscuro herói desta tragédia grega parece ter
antecipado muitos dos grandes temas da psicologia do século XX, inclusive o
behaviorismo. Ele também descreveu como um pintinho recém-nascido “seguirá
qualquer objeto em movimento. E, quando guiado só pela visão, ele não parece ter uma
disposição maior de seguir um porco do que seguir um pato ou um ser humano (...) Há o
instinto a ser seguido; e a audição, anterior à experiência, liga-o ao objeto certo”.
Spading chegou a assinalar como um pintinho mantido encapuçado pelos primeiros
quatro dias de vida imediatamente foge dele quando descoberto, ao passo que, se tivesse
sido desencapuçado um dia antes, correria para ele. 4
Mas Spalding passou despercebido e foi Lorenz que colocou o imprinting (em
alemão, “Pragung”) no mapa científico. Foi Lorenz que cunhou o conceito de período
crítico — o lapso de tempo durante o qual o ambiente age irreversivelmente sobre o
desenvolvimento do comportamento. Para Lorenz, o imprinting era importante por ser
um instinto. A tendência a sofrer imprinting por uma mãe é inata no ganso recém-
nascido. Possivelmente não pode ser aprendida, por ser a primeira experiência da ave.
Na época em que o estudo do comportamento era dominado por reflexos condicionados
e associações, Lorenz via seu papel como o de reabilitador do inato. Em 1937, Niko
Tinbergen passou a primavera com Lorenz em Altenberg, e eles inventaram a ciência da
etologia — o estudo dos instintos animais. Surgiram ali conceitos como deslocamento
(fazer alguma outra coisa quando impedido de fazer o que é desejado), liberadores (o
ambiente incita o instinto) e padrões de ação fixa (subprogramas de um instinto).
Tinbergen e Lorenz fora premiados com o Nobel em 1973 pelo trabalho que começaram
naquela primavera
Mas há outra forma de ver o imprinting: como o produto do ambiente. Afinal, o
filhote de ganso não seguirá a menos que haja alguma coisa a seguir. Uma vez que ele
tenha seguido uma espécie de “mãe”, preferirá seguir uma que se pareça com ele. Mas,
antes disso, é receptivo ao que parece com a “mãe”. De uma perspectiva diferente,
Lorenz descobriu como o ambiente externo, da mesma forma que o interno, modela o
comportamento. O imprinting pode ser recrutado para o campo da criação com a mesma
convicção com que foi recrutado para o campo da natureza: um filhote de ganso pode
ser ensinado a seguir qualquer coisa que se move. 5
Um patinho, porém, é diferente. Apesar de seu sucesso com patinhos quando
garoto, o adulto Lorenz não conseguiu levar filhotes de patos selvagens a sofrer
imprinting por ele até que tentou fazer ruídos parecidos com o do pato selvagem.
Depois disso, eles o seguiam com entusiasmo, Os patinhos precisam ver e ouvir a mãe.
No início da década de 1960, Gilbert Gottlieb fez uma série de experimentos para
explorar como isso funciona. Ele descobriu que ingênuos filhotes recém-nascidos de
patos selvagens tinham preferência pelos chamados de sua própria espécie. Isto é,
apesar de nunca terem ouvido o chamado de sua própria espécie, eles identificavam o
som correto quando o ouviam. Mas Gottlieb então tentou complicar as coisas e
conseguiu um resultado surpreendente. Ele emudeceu os patinhos, operando suas cordas
vocais enquanto eles ainda estavam no ovo. Agora os patinhos, na incubadora, não
tinham preferência por uma mãe de sua espécie. Gottlieb concluiu que os patinhos
somente conheciam o chamado correto porque eles tinham ouvido sua própria voz antes
de o ovo ser chocado. Segundo ele, isto solapava toda a noção de instinto, ao trazer à
baila um estímulo ambiental anterior ao nascimento. 6
AS CICATRIZAES DA GESTAÇÃO
Um evento pré-natal pode ter efeitos de longo alcance que não são absolutamente
impossíveis de neutralizar mais tarde na vida. Mesmo diferenças sutis entre indivíduos
saudáveis podem ser atribuídas a imprinting pré-natal. O tamanho do dedo é um
exemplo. Na maioria dos homens, o dedo anular é maior que o dedo indicador. Nas
mulheres, os dois dedos são em geral do mesmo tamanho. John Manning percebeu que
isto era uma indicação do nível de testosterona pré-natal a que as pessoas foram
expostas quando estavam no útero. Quanto mais testosterona em sua experiência
uterina, maiores seus anulares. Há um bom motivo biológico para a ligação. Os genes
hox, que controlam o crescimento da genitália, também controlam o crescimento dos
dedos, e uma diferença sutil na seqüência de eventos no útero provavelmente leva a
tamanhos de dedos sutilmente diferentes.
As medições de dedos anulares de Manning dão uma medida grosseira da
exposição à testosterona antes do nascimento: mas, e daí? Bem, esqueça a quiromancia;
esta é uma previsão real. Os homens com dedos anulares incomumente longos (alta
testosterona) têm um risco maior de autismo, dislexia, gagueira, disfunção imune; eles
também têm relativamente mais filhos. 10 Os homens com dedos anulares incomumente
curtos têm um risco maior de doença cardíaca e infertilidade. E porque os músculos
masculinos também são parcialmente formados pela testosterona, Manning estava
preparado para prever ousadamente na televisão que, de um grupo de atletas prestes a
disputar uma corrida, ganharia o único com o dedo anular mais longo, o que
efetivamente aconteceu. 11
O tamanho do dedo anular e sua impressão digital sofrem imprinting no útero.
Eles são um produto da criação — porque certamente o útero é a própria incorporação
da palavra criação. Mas isso não o torna maleável. A crença reconfortante de que a
criação é mais maleável do que a natureza repousa parcialmente na falácia de que
criação é o que acontece antes do nascimento e natureza é o que acontece antes do
parto. Isto é falácia mesmo.
Talvez você agora possa vislumbrar uma explicação do paradoxo do Capítulo 3:
de que a genética do comportamento revela um papel para os genes, e um papel para o
ambiente não compartilhado, mas dificilmente um papel para a influência ambiental
compartilhada. O ambiente pré-natal não é compartilhado com irmãos (exceto no caso
de gêmeos); a experiência de gestação é única para cada bebê; as injúrias sofridas ali,
como desnutrição, gripe ou testosterona, dependem do que está acontecendo com a mãe
naquele momento, e não do que acontece em toda a família. Quanto mais a criação
importa no pré-natal, menos a criação pode importar no pós-natal.
SEXO E O ÚTERO
Há algo muito freudiano em todo esse imprinting. O velho Sigmund acreditava que a
mente humana carrega as marcas de sua experiência inicial, e que muitas destas marcas
estão enterradas no subconsciente, mas ainda estão lá. Revelá-las é um dos prazeres do
divã do psicanalista. Freud chegou a sugerir que, por este processo de revelação, uma
pessoa podia se curar de várias neuroses. Um século depois, há um veredicto claro nesta
proposição: diagnóstico bom, terapia terrível. A psicanálise é desastrosamente inepta na
tarefa de mudar as pessoas. Isto é o que a torna tão lucrativa — “Vejo você na semana
que vem”. Mas ela está certa em sua premissa de que há coisas como “experiências de
formação”; que estas experiências surgem muito cedo; e que elas ainda estão
poderosamente presentes no subconsciente adulto. Todavia, por este mesmo raciocínio,
se elas ainda estão lá, e ainda são influentes, então deve ser difícil revertê-las. Se
persistem, as experiências de formação devem ser imutáveis.
Freud pode não ter sido o primeiro a considerar os desejos sexuais infantis mas
certamente foi o mais influente. Nisto ele estava sendo do contra. Para o observador
distante, nada pode ser mais óbvio que o fato de que o sexo começa na adolescência.
Até a idade de 12 anos, os seres humanos são indiferentes à nudez, entediam-se com o
romance e são um tanto incrédulos com os fatos da vida. Aos vinte anos, eles são
fascinados por sexo a um grau obsessivo. Algo mudou com certeza. Mas Freud estava
convencido de que havia alguma coisa sexual ocorrendo na mente da criança, mesmo do
bebê, muito antes disso.
Voltemos aos filhotes de ganso. Lorenz percebeu que filhotes de ganso marcados
por imprinting (e outras aves) não só tratavam-no como pai como também mais tarde
tornavam-se sexualmente fixados nele também. Eles ignorariam membros de sua
própria espécie e cortejariam seres humanos. (Minha irmã e eu descobrimos a mesma
coisa quando, na nossa infância, criamos uma rola-de-coleira do nascimento à idade
adulta; ela se apaixonou fanaticamente pelos dedos das mãos e dos pés de minha irmã,
provavelmente porque tinha sido alimentada com os dedos desde o momento em que
abriu seus olhos. Ela tratava meus dedos das mãos e dos pés como rivais sexuais.) Isto
era verdadeiramente intrigante porque implicava que, pelo menos nas aves, o objeto de
uma atração sexual podia ser fixado logo depois do nascimento e ao mesmo tempo
podia consistir em quase qualquer objeto vivo. Desde então, toda uma série de
experimentos no cativeiro e no meio natural tem mostrado que, em muitas espécies de
aves, um filhote macho criado por uma mãe adotiva de uma espécie diferente sofre
imprinting sexual por aquela outra espécie, e que existe um período crítico durante o
qual ele adquire sua preferência sexual. 12
Será que a mesma coisa pode ser aplicada às pessoas? A tranqüilizadora resposta
que a maioria das pessoas se dava no século XX em geral era não, as pessoas não têm
instintos, e então esta necessidade não aparece. Mas agora veja a que confusão isso
levou! Se o instinto é algo tão flexível que um ganso pode se apaixonar por um homem,
então será que os seres humanos têm um instinto menos flexível? Ou eles têm de
aprender duramente a amar? De qualquer forma, a bazófia humana de que nossa falta de
instinto é o que nos torna flexíveis começa a parecer vazia.
De qualquer forma, está claro há muito, a partir de experimentos com
homossexuais, que as preferências sexuais humanas não só são difíceis de mudar como
também são fixadas desde o início da vida. Ninguém na ciência atual acredita que a
orientação sexual é causada por acontecimentos na adolescência. A adolescência
meramente revela o negativo de uma película que foi exposta muito tempo antes. Está
claro que uma compreensão de por que a maioria dos homens sente-se atraída por
mulheres enquanto alguns sentem atração por homens deve remeter bem ao início da
infância. Talvez até ao útero.
A década de 1990 viu uma série de estudos que reviveram a idéia da
homossexualidade como uma condição “biológica” em vez de psicológica, como um
destino, e não uma escolha. Foram feitos estudos mostrando que os futuros
homossexuais tinham personalidades diferentes na infância; estudos mostrando que os
homens homossexuais tinham diferenças na anatomia cerebral em relação a
heterossexuais; vários estudos de gêmeos mostrando que a homossexualidade era
altamente herdável na sociedade ocidental; e relatos anedóticos de homens
homossexuais indicando que eles se sentiam “diferentes” desde a primeira infância. 13
Isoladamente, nenhum destes estudos se mostrou irresistível. Mas juntos, e comparando
décadas de provas de que a terapia de aversão, “tratamento” e preconceito fracassaram
inteiramente na “cura” de pessoas com instintos homossexuais, eles foram
enfaticamente claros. A homossexualidade é uma preferência inicial, provavelmente
pré-natal e irreversível. A adolescência simplesmente joga combustível no fogo. 14
O que, exatamente, é a homossexualidade? É claramente toda uma gama de
características diferentes de comportamento. Em alguns casos, os homens gays parecem
ser mais como mulheres: eles se sentem atraídos por homens, dão mais atenção às
roupas, com freqüência são mais interessados em pessoas do que, digamos, em futebol.
De outras formas, contudo, eles são mais como os heterossexuais: compram pornografia
e são promíscuos, por exemplo. (As páginas centrais de nus da Playgirl retratando
homens acabam apelando principalmente aos gays, e não às mulheres que a revista
pretende atingir.) 15
Pessoas, como os mamíferos em geral, são naturalmente fêmeas a não ser que
sejam masculinizadas. O sexo feminino é o “sexo padrão” (acontece o contrário com as
aves). Um único gene, o SRY, no cromossomo Y, começa uma cascata de eventos no
feto em desenvolvimento que levam ao desenvolvimento da aparência e do
comportamento masculinos. Se este gene está ausente, o resultado é um corpo feminino.
É portanto razoável supor que a homossexualidade nos homens resulta da falha parcial
deste processo de masculinização pré-natal no cérebro, embora não no corpo (ver
Capítulo 9).
De longe, a descoberta mais confiável, nos últimos anos, sobre as causas da
homossexualidade é a teoria de Ray Blanchard da ordem de nascimento fraterna. Em
meados dos anos 90, Blanchard mediu o número de irmãos e irmãs mais velhos de
homens gays, comparando com a média da população. Ele descobriu que era mais
provável que os gays tivessem irmãos mais velhos (mas não irmãs mais velhas) que as
mulheres gays ou os homens heterossexuais. Desde então isto foi confirmado em 14
amostras diferentes de muitos lugares diferentes. Para cada irmão mais velho a mais, a
probabilidade de um homem ser gay aumenta em um terço. (Isto não significa que os
homens com muitos irmãos mais velhos estejam fadados a serem gays; um aumento de,
digamos, 3 para 4% em uma população é um aumento de um terço.) 16
Blanchard calcula que pelo menos um homem gay em sete, provavelmente mais,
pode atribuir sua orientação sexual ao efeito da ordem de nascimento de seus irmãos. 17
Não é apenas a ordem de nascimento, porque ter irmãs mais velhas não tem
conseqüências. Algo sobre os irmãos mais velhos deve realmente estar causando a
homossexualidade em homens. Ele acredita que o mecanismo está no útero, não na
família. Uma pista está no peso ao nascimento de bebês meninos que mais tarde se
tornam homossexuais. Normalmente, um segundo bebê é mais pesado que um primeiro
do mesmo sexo. Os meninos são especialmente mais pesados se nascem depois de uma
ou mais irmãs. Mas meninos nascidos depois de um irmão são somente um pouco mais
pesados que os primogênitos meninos, e aqueles nascidos depois de dois ou mais irmãos
são em geral menores que o primeiro e o segundo meninos. Ao analisar questionários
respondidos por homens gays, heteros e seus pais, Blanchard pôde mostrar que irmãos
mais novos que viriam a se tornar homossexuais eram 170 gramas mais leves ao
nascimento que irmãos mais novos que viriam a se tornar heterossexuais. 18 Ele
confirmou este resultado — alta ordem de nascimento, baixo peso ao nascimento
comparado com controles — em uma amostra de 250 meninos (com idade média de sete
anos) que exibiam suficientes desejos “intergêneros” relatados a psiquiatras; sabe-se que
o comportamento intergênero na infância prevê a homossexualidade mais tarde. 19
Como Barker, Blanchard acredita que as condições no útero formam o bebê para a
vida. Neste caso, ele afirma, algo acerca de ocupar um útero que já manteve outros
meninos ocasionalmente resulta em peso reduzido ao nascimento, placenta maior
(presumivelmente compensando a dificuldade de crescimento que experimenta o bebê)
e uma maior probabilidade de homossexualidade. Este algo, suspeita ele, é a reação
imunológica materna. A reação imunológica da mãe, preparada pelos primeiros fetos
masculinos, torna-se mais forte a cada gestação de meninos. Se é branda, causa apenas
uma leve redução do peso ao nascimento. Se é forte, causa uma redução acentuada no
peso ao nascimento e uma probabilidade maior de homossexualidade.
Como pode a mãe estar reagindo a isso? Há vários genes que se expressam
somente em meninos, e já se sabe que alguns criam uma reação imunológica nas mães.
Alguns são expressos no cérebro, na época pré-natal. Uma nova e intringante
possibilidade é um gene chamado PCDH22, que está no cromossomo Y, e é portanto
específico de homens, e provavelmente está envolvido na construção do cérebro. 20 É a
receita para uma protocaderina (sim, ela novamente). Poderia este ser o gene que ativa a
parte do cérebro peculiar aos homens? Uma reação imunológica materna pode ser
suficiente para evitar a ativação da parte do cérebro que mais tarde estimularia um
fascínio pelo corpo feminino.
É evidente que nem toda homossexualidade é causada desta forma. Algumas delas
podem ser causadas diretamente por genes na pessoa homossexual, sem a mediação da
reação imunológica da mãe. A teoria de Blanchard pode explicar por que tem se
mostrado tão difícil encontrar o “gene gay”. O principal método para descobrir tal gene
é comparar marcadores nos cromossomos de homens homossexuais com aqueles de
seus irmãos heterossexuais. Mas, se muitos homens gays têm irmãos mais velhos
heteros, então este método funcionaria muito mal. Além disso, a principal diferença
genética pode estar nos cromossomos da mãe, que causam a reação imunológica. Isto
pode explicar por que a homossexualidade parece ser herdada pela linha feminina: os
genes para uma reação imunológica materna mais forte podem parecer “genes gays”,
embora seja possível que eles jamais se expressem no homem gay, mas somente na
mãe.
Observe, porém, o que isto faz ao debate natureza versus criação. Se a criação,
sob o pretexto da ordem de nascimento, causa alguma homossexualidade, ela o faz
causando uma reação imunológica, que é um processo mediado diretamente pelos
genes. Assim, é ambiental ou genético? Dificilmente isso importa, porque a distinção
absurda entre criação reversível e natureza inevitável está agora bem e verdadeiramente
enterrada. Neste caso, a criação parece tão irreversível quanto a natureza, talvez até
mais.
Politicamente, a confusão é ainda maior. Em meado dos anos 90, a maioria dos
homossexuais recebeu bem a notícia de que sua orientação sexual parecia ser
“biológica”. Eles queriam que fosse destino e não uma opção, porque isso solaparia o
argumento de homófobos de que era uma opção e portanto moralmente questionável.
Como pode ser errado se é inato? Sua reação é compreensível mas perigosa. Uma
tendência maior à violência é também inata nos machos humanos. O fato de existir não
significa que seja correta. A falácia naturalista, em que o “deve” pode ser derivado do
“é”, é por definição enganadora. Basear qualquer posição moral em um fato natural, seja
derivado da natureza ou da criação, é procurar problemas. Em minha concepção moral,
e espero que também na sua, algumas coisas são ruins apesar de serem naturais, como a
desonestidade e a violência; outras são boas, embora menos naturais, como a
generosidade e a fidelidade.
IDIOMAS JOVENS
O imprinting no período crítico está em toda parte. Há milhares de modos que podem
ser alterados nos seres humanos em sua juventude que são imutáveis na idade adulta.
Assim como um filhote de ganso é marcado por uma imagem de sua mãe durante as
horas que se seguem ao nascimento, uma criança é marcada por tudo, do número de
glândulas sudoríparas em seu corpo e uma preferência por certos alimentos a uma
apreciação dos rituais e padrões de sua própria cultura. Nem a imagem da mãe de um
filhote de ganso, nem a cultura infantil são inatas em algum sentido. Mas a capacidade
de absorve-las, sim.
Um exemplo óbvio é o sotaque. As pessoas mudam seus sotaques facilmente
durante a juventude, geralmente adotando o sotaque de pessoas de sua própria idade em
seu meio, mas em alguma época entre os 15 e os 25 anos, esta flexibilidade
simplesmente desaparece. A partir de então, mesmo se alguém emigrar para um país
diferente e viver lá por muito anos, seu sotaque mudará muito pouco. Ele pode adquirir
algumas inflexões e hábitos do novo ambiente lingüístico, mas não muitos. Isto é válido
para sotaques regionais e nacionais: os adultos retém o sotaque de sua juventude; os
jovens adotam o sotaque da sociedade que o cerca. Considere Henry Kissinger e seu
irmão mais novo Walter. Henry nasceu em 27 de maio de 1923, enquanto Walter nasceu
apenas um ano depois, em 21 de junho de 1924. Eles emigraram como refugiados da
Alemanha para os Estados Unidos em 1938. Hoje em dia, Walter parece um americano,
enquanto Henry tem um sotaque caracteristicamente europeu. Um repórter uma vez
perguntou a Walter por que Henry tinha sotaque alemão e ele não. “Porque Henry não
ouve”, foi a resposta jocosa. Parece mais provável que, quando chegaram na América,
Henry estava velho o suficiente para perder a flexibilidade de assimilar o sotaque de seu
ambiente; ele estava saindo do período crítico.
Em 1967, um psicólogo de Harvard, Eric Lenneberg, publicou um livro em que
afirmou que a capacidade de aprender a linguagem está sujeita a um período crítico que
termina abruptamente na puberdade. As evidências para a teoria de Lenneberg agora
surgem de todos os lados, especialmente do fenômeno da língua crioula e da língua
franca. As línguas francas são uma linguagem usada por adultos de diferentes
formações linguísticas para se comunicarem uns com os outros. Ela carece de uma
gramática consistente ou sofisticada. Mas uma vez que tenha sido aprendida por uma
geração de crianças ainda em seu período crítico, elas mudam para as línguas crioulas
— novas linguagens com uma gramática plena. Em um exemplo na Nicarágua, crianças
surdas mandadas a novas escolas para surdos pela primeira vez em 1979 simplesmente
inventaram uma nova linguagem de sinais crioula com uma sofisticação extraordinária.
26
Uma das teorias mais controversas do imprinting humano diz respeito ao incesto. O
período crítico no desenvolvimento da orientação sexual certamente deixa um jovem
destinado a se sentir atraído por membros do sexo oposto (exceto quando o torna
destinado a ter atração por membros do mesmo sexo). Provavelmente isto também
determina “seu tipo” de parceiro de uma forma muito mais específica. Mas será que
determina também quem você terá aversão a cortejar?
A lei proíbe o casamento entre irmão e irmã, e por um bom motivo. O
acasalamento consangüíneo causa terríveis doenças genéticas, por reunir genes
recessivos raros. Mas suponha que algum país rejeitasse esta lei e proclamasse que, a
partir de agora, os casamentos entre irmãos seriam não só legais como uma boa coisa. O
que aconteceria? Nada. Apesar de serem os melhores amigos e altamente compatíveis, a
maioria das mulheres simplesmente não se sente atraída por seus irmãos “desta forma”.
Em 1891, um pioneiro finlandês da sociologia chamado Edward Westermarck publicou
um livro intitulado The History of Human Marriage, em que ele sugere que os seres
humanos evitam o incesto por instinto em vez de por obediência à lei. Eles são
naturalmente avessos ao sexo com parentes próximos. Inteligentemente, ele viu que isso
não requer que se tenha uma capacidade inata para reconhecer irmãos e irmãs reais. Em
vez disso, havia uma forma prática de reconhecê-los: aqueles que se conheceram bem
quando criança provavelmente eram parentes próximos. Ele previu que as pessoas que
compartilharam a infância são instintivamente avessas a fazer sexo quando adultas.
A idéia de Westermarck foi esquecida por vinte anos. Freud criticou sua teoria e
sugeriu que os seres humanos eram atraídos pelo incesto e eram impedidos de praticá-lo
apenas por proibições culturais na forma de tabus. Édipo sem o desejo incestuoso é
como Hamlet sem a loucura. Mas se são avessas ao incesto as pessoas não podem ter
desejos incestuosos. E se precisam de tabus, isto significa que devem ter desejos.
Westermarck protestou em vão que as teorias de aprendizado social “implicam que o lar
é mantido sem o sexo incestuoso pela lei, pelos costumes ou pela educação. Mas mesmo
que as proibições sociais evitem as uniões entre parentes mais próximos, elas não
evitam o desejo por tais uniões. O instinto sexual dificilmente e alterado por
proibições”. 30
Westermarck morreu em 1939, quando a estrela de Freud ainda estava em
ascensão e as explicações “biológicas” saíam de moda. Foram necessários outros
quarenta anos para que alguém observasse novamente os fatos. Arthur Wolf, um
sinólogo que analisou os meticulosos registros demográficos mantidos pela ocupação
japonesa na Taiwan do século XIX, percebeu que os chineses mortos há muito tinham
praticado duas formas de casamento arranjado. Em uma, a noiva e o noivo se conheciam
no dia do casamento, embora o casal fosse arranjado muitos anos antes. Na outra, a
noiva era adotada pela família do noivo quando bebê e criada por seus futuros sogros.
‘Wolf percebeu que este era um teste perfeito da hipótese de Westermarck, porque
aquelas “sim-puahs” ou “pequenas noras” viviam a ilusão de que esperavam se casar
com seu irmão. Se, como afirmou Westermarck, a infância compartilhada levava à
aversão sexual, então estes casamentos não deviam funcionar muito bem.
Wolf recolheu informações sobre 14.000 mulheres chinesas e comparou as que
tinham sido sim-puahs com as que conheceram os maridos arranjados somente no dia de
seu casamento. Surpreendentemente, era 2,65 vezes mais provável que o casamento
com uma infância associada terminasse em divórcio do que o casamento arranjado com
um parceiro não familiar — era muito menos provável que aqueles que se conheciam
por toda a vida permanecessem casados do que os que nunca se conheceram! Os
casamentos de sim-puah também produziram menos filhos e experimentaram mais
adultério. Wolf excluiu outras explicações óbvias — que o processo de adoção levava à
saúde ruim e à infertilidade, por exemplo. Longe de gerar cônjuges, o hábito de criar os
noivos juntos parecia inibir o desenvolvimento posterior da atração sexual. Mas isto era
verdade somente para sim-puahs adotadas na idade de três anos ou menos; aquelas
adotadas aos quatro anos ou mais tinham casamentos tão bem-sucedidos quanto as que
conheceram os noivos quando adultas. 31
Desde então, muitos estudos confirmaram o mesmo fenômeno. Israelenses criados
comunalmente em um kibutz raramente se casam. 32 Marroquinos que dormiram no
mesmo quarto quando crianças têm aversão a aceitar o casamento arranjado. 33 A
aversão parece ser mais forte entre mulheres do que entre homens. Mesmo na ficção, os
ecos da aversão reverberam: Victor Frankenstein, no romance de Mary Shelley, se vê na
expectativa de se casar com uma prima criada com ele desde a infância — mas
(simbolicamente) seu monstro intervém, matando sua noiva antes que o casamento seja
consumado. 34
É verdade que os tabus do incesto existem, mas em uma análise mais profunda
eles tem pouca relação com o casamento entre parentes próximos. Todos regulam mais
ou menos o casamento entre primos. 35 É verdade, também, que as pessoas parecem ser
fascinadas pelo incesto, e que ele tem um grande papel na ficção, no escândalo vitoriano
e nas lendas urbanas modernas. Mas então as coisas que aterrorizam as pessoas também
as fascina: com freqüência, as cobras fascinam tanto quando apavoram. Também parece
ser verdade que irmãos separados ao nascimento, que se conhecem mais tarde quando
adultos, frequentemente se sentem fortemente atraídos, 36 mas isto só confere apoio ao
efeito Westermarck.
O efeito Westermarck não é universalmente eficaz, com certeza. As exceções
existem tanto no nível cultural como no individual. Muitas noivas sim-puahs
conseguiram superar sua aversão sexual e ter casamentos bem-sucedidos: o sistema
derrubara seu instinto de evitar o incesto com um instinto ainda mais forte de
procriação, Também há alguma evidência de que ocorrem “brincadeiras” entre irmãos e
irmãs que foram criados juntos, enquanto é muito mais provável que os que foram
separados por mais de um ano no início da infância tenham se entregado a sexo
verdadeiro. Em outras palavras, a associação de infância não produz uma aversão à
atração, nem ao sexo real. 37
Todavia, a aversão ao incesto entre aqueles criados na mesma família, como a
linguagem, parece ser um caso claro de um hábito marcado na mente durante um
período crítico da juventude. De certa forma, é pura criação — a mente não tem
preconcepções sobre quem se rejeitará, desde que sejam companheiros de infância. E
todavia é a natureza no sentido de um desenvolvimento inevitável colocado em ação
presumivelmente por algum programa genético em uma determinada idade. Mensagem
do autor: você precisa da natureza para ser capaz de absorver a criação.
Como filhotes de ganso de Lorenz às avessas, somos marcados por uma aversão
em vez de uma ligação. Então aqui está um detalhe engraçado: Konrad Lorenz casou-se
com sua amiga de infância Gretl, a menina com quem ele marcou seu primeiro patinho
aos seis anos. Ela era filha de um agricultor, seu vizinho. Por que eles não tiveram
aversão um pelo outro? Talvez uma pista esteja no fato de que ela era três anos mais
velha que ele. Isto significa que ela provavelmente já havia saído do período crítico do
efeito Westermarck na época em que eles se conheceram. Ou talvez Konrad Lorenz
tenha sido uma exceção à própria regra. A biologia, disse certa vez alguém, é a ciência
das exceções e não das regras.
NAZITOPIA
Aprendendo Lições
— Todos os homens são semelhantes, em alma como no corpo. Cada um de nós tem cérebro, baço,
coração e pulmões de construção semelhante; e as chamadas qualidades morais são as mesmas em
todos nós — as ligeiras variações não têm importância... As doenças morais são causadas pelo tipo
errado de educação, por todo o lixo que enche a cabeça das pessoas desde a infância, em resumo,
pelo estado desordenado da sociedade. Reforme a sociedade e não haverá doenças (...) De
qualquer maneira, em uma sociedade adequadamente organizada, não tem a menor importância se
um homem é idiota ou inteligente, bom ou mau.
— Sim, entendo. Eles terão baços idênticos.
— Exatamente, madame.
1
Bazarov e Madame Odintsov, em Pais e filhos, de Ivan Turgenev
Em 1893, Alfred Nobel, o sueco inventor da dinamite, estava começando a sentir sua
idade. Passara dos sessenta com a saúde ruim, e ouvira rumores de proezas miraculosas
de rejuvenescimento que podiam ser alcançadas com transfusões de sangue de girafas.
Quando homens ricos estão nesse tipo de humor, o cientista astuto se recolhe. Nobel foi
persuadido a pagar 10.000 rublos para financiar um novo prédio de fisiologia no
Instituto Imperial de Medicina Experimental da Rússia, nos arredores de São
Petersburgo. Nobel morreu de qualquer forma em 1896, e o laboratório nunca comprou
uma girafa, mas teve um sucesso após outro. Com uma equipe de mais de cem pessoas e
gerenciado como uma empresa, ele foi uma espécie de fábrica científica. No comando,
estava um ambicioso e confiante jovem chamado Ivan Petrovitch Pavlov. 2
Pavlov era discípulo de Ivan Mikhailovitch Setchenov, que era tão obcecado com
os reflexos que acreditava que o pensamento nada mais era que um reflexo com ação
ausente. Ele era tão dedicado à causa da criação quanto seu contemporâneo Galton à
causa da natureza: acreditava que “a verdadeira causa de toda atividade está fora do
homem”, e que “999/1.000 do conteúdo da mente depende da educação no sentido mais
amplo, e somente 1/1.000 depende da individualidade”. 3
A filosofia de Setchenov norteou grande parte da torrente de trabalho
experimental que inundou a fábrica de Pavlov nas três décadas seguintes. As vítimas
destes experimentos eram principalmente cães, ou “tecnologias de cão”, como eles
friamente a denominavam. A princípio, Pavlov se concentrou nas glândulas digestivas
do cão; mais tarde, começou a passar para o cérebro. Em 1903, em uma conferência em
Madri, anunciou os resultados de seu mais famoso experimento. Ele tinha começado
acidentalmente, como boa parte da grande ciência. Estava tentando estudar o reflexo de
salivação do cão em resposta à comida, e havia desviado uma das glândulas salivares
para um funil para que pudesse medir a produção de saliva, O cão, contudo, começaria a
salivar tão logo ouvisse a comida sendo preparada, ou mesmo logo depois de ser
amarrado no aparelho — em expectativa pela comida.
O “reflexo psíquico” não era o que Pavlov procurava, mas subitamente viu sua
importância e voltou sua atenção para ele. O cão agora foi levado a esperar pela comida
sempre que ouvia uma campainha ou um metrônomo, e logo começava a salivar ao som
da campainha. Pavlov, tendo desviado a glândula salivar do cão para um funil,
realmente pôde contar as gotas de saliva produzidas em reação a cada toque da
campainha. Mais tarde, provou que um cão sem córtex cerebral ainda podia salivar
reflexivamente quando alimentado, mas não quando alertado pela campainha, O
“reflexo condicionado” à campainha estava portanto no próprio córtex. 4
Pavlov parecia ter descoberto um mecanismo — condicionamento, ou associação
— pelo qual o cérebro podia conhecer as regularidades do mundo. Foi uma grande
descoberta, estava correta e é claro que não era toda a resposta. Mas, como sempre,
alguns seguidores de Pavlov foram longe demais. Começaram a afirmar que o cérebro
nada mais era que um dispositivo de aprendizagem através do condicionamento. Esta
tradição floresceu nos Estados Unidos como behaviorismo. Seu defensor foi John
Broadus Watson, de quem falarei mais tarde.
Os teóricos modernos da aprendizagem modificaram a idéia de Pavlov de uma
forma crucial. Eles afirmam que o aprendizado ativo ocorre não quando o estímulo e a
recompensa continuam a aparecer juntos, mas quando há alguma discrepância entre uma
coincidência esperada e o que realmente acontece. Se a mente comete um “erro de
previsão” — esperando uma recompensa depois de um estímulo sem a conseguir, e
vice-versa — então a mente deve mudar sua expectativa: ela deve aprender. Assim, por
exemplo, se a campainha não prevê mais a comida, mas agora a comida é prevista por
um flash de luz, o cão deve aprender a partir da discrepância entre suas próprias
expectativas e a nova realidade. Surpresa, prazer ou desprazer são mais informativos
que a previsibilidade.
A nova ênfase nos erros de previsão passou a assumir uma forma física no
cérebro, bem como a forma psicológica na mente. Em uma série de experimentos com
macacos, Wolfram Schultz descobriu que os neurônios que secretam dopamina em
determinada parte do cérebro (a substância negra e a área tegmental ventral) reagem à
surpresa, mas não a efeitos previstos. Eles são mais ativos quando o macaco é
recompensado, e menos ativos quando é inesperadamente privado de uma recompensa.
As células de dopamina, em outras palavras, realmente codificam a mesma regra da
teoria do aprendizado que os engenheiros agora tentam construir em robôs. 5
Pavlov, o infatigável dissector de cães, teria gostado deste resultado reducionista.
Mas ele poderia encontrar dificuldade em uma ironia filosófica derivada deste resultado.
Não provaria mais que o cérebro do cão aprendeu sobre sua situação com o mundo, que,
nas palavras de Setchenov, “a causa real (...) está fora do homem”. Ele seguia uma
longa tradição do empirismo que remontava de Mill e Hume a Locke: a natureza
humana era em grande parte escrever a experiência na folha em branco da mente.
Todavia, para que a mente escreva em sua folha, deve ter neurônios de dopamina
especialmente projetados para reagir à surpresa. E como eles são projetados? Pelos
genes. Um experimento equivalente ao que Pavlov realizou está sendo feito
precisamente hoje, como rotina, em muitos dos maiores laboratórios de genética do
mundo, porque os modernos descendentes de Pavlov estão ocupados provando o papel
dos genes na aprendizagem. Aqui está a prova do tema deste livro: os genes não só
estão envolvidos na natureza; eles estão também envolvidos intimamente na criação.
Os modernos experimentos pavlovianos são com freqüência feitos com moscas-
da-fruta, mas o princípio é idêntico. Uma mosca recebe um choque elétrico nos pés logo
depois que uma lufada de substância química malcheirosa é esguichada em seu tubo de
ensaio. Logo depois, a mosca aprende que o cheiro será seguido de um choque, então
ela toma ar antes da chegada do choque: ela faz a associação (inicialmente
surpreendente) entre os dois fenômenos. Este experimento foi feito pela primeira vez
por Chip Quinn e Seymour Benzer, na década de 1970, no Instituo de Tecnologia da
Califórnia. Ele provou, para surpresa de todos, que moscas podem aprender e se lembrar
de associações entre odores e choques.
Também provou que elas só fazem isso se têm certos genes. As mutantes que
carecem de um gene essencial não fazem a associação. Há pelo menos 17 genes que são
essenciais para a formulação de uma nova lembrança na mosca-da-fruta. Estes genes
têm nomes pejorativos — dunce (burro), amnesiac (amnésico), cabbage (lesado),
rutabaga (nabo) e assim por diante — que são um pouco injustos, uma vez que a mosca
é burra apenas se carece do gene e não se o possui. Reconhecivelmente o mesmo
conjunto dos chamados genes CREB é usado por todos os animais, inclusive seres
humanos. Eles devem se ativar — isto é, devem criar uma proteína — durante o próprio
processo de aprendizagem.
Esta é uma descoberta atordoante, raramente apreciada devido ao choque que
provoca. Aqui está o que John B. Watson disse sobre a aprendizagem associativa em
1914:
A maioria dos psicólogos fala com muita loquacidade sobre a formação de novas vias no cérebro,
como se houvesse um grupo de minúsculos servos de Vulcano que correm pelo sistema nervoso
com martelo e cinzel cavando novas trincheiras e aprofundando as antigas. 6
Watson estava zombando da idéia. Mas não foi ele quem riu por último. A formação de
uma associação mental tem a forma de novas conexões fortalecidas entre os neurônios.
Os servos de Vulcano que criam aquelas conexões existem. Eles são chamados genes.
Genes! Aqueles mestres implacáveis das marionetes do destino que supomos que fazem
o cérebro e deixam-no se haver com o trabalho. Mas não é assim que agem; eles
também participam do aprendizado. Bem agora, em algum lugar de sua cabeça, um gene
está sendo ativado, de forma que uma série de proteínas pode ir para o trabalho
alterando as sinapses entre células cerebrais para que você, talvez, passe a associar para
sempre a leitura deste parágrafo com o cheiro de café que vem da cozinha...
Nenhuma ênfase que eu der à frase seguinte será suficiente. Estes genes estão à
mercê de nosso comportamento; não o contrário. As coisas que fazem as associações de
Pavlov são feitas do mesmo material dos cromossomos que carregam a hereditariedade.
A memória está “nos genes”, no sentido de que usa genes, não no sentido de que você
herda lembranças. A criação, tanto quanto a natureza, é realizada pelos genes.
Aqui está mais um exemplo de um gene desses. Em 2001, Josh Dubnau,
trabalhando com Tim Tully, fez um experimento primoroso em uma mosca-da-fruta.
Por favor, tolere os detalhes dos métodos por algum tempo apenas para apreciar a
sofisticação das ferramentas disponíveis à moderna biologia molecular (e depois faça
uma pausa para imaginar a que grau de sofisticação chegarão daqui a alguns anos).
Primeiro, ele fez uma mutação sensível à temperatura em um gene específico da mosca,
chamado shibire, o gene para uma proteína motora chamada dinamina. Isto significa
que a 30°C a mosca é paralisada, mas a 20°C ela se recupera completamente. Em
seguida ele manipulou uma mosca em que este gene mutante é ativo somente na
produção de uma parte do cérebro da mosca, chamado corpo de cogumelo, que é
essencial para aprender a associar cheiros com choques. Esta mosca não é paralisada a
30°C, mas não pode resgatar lembranças. Quando uma mosca destas é treinada, quando
faz calor, a associar um cheiro com perigo, depois solicitada, quando faz frio, a
recuperar a lembrança, ela se sai bem. Na circunstância oposta, quando a mosca é
solicitada a formar a lembrança no frio e recuperá-la quando faz calor, ela não o
consegue. 7
Conclusão: a aquisição de uma lembrança é diferente de sua recuperação;
diferentes genes são necessários em diferentes partes do cérebro. O produto do corpo de
cogumelo é necessário para a recuperação, mas não para a aquisição da lembrança, e a
ativação de um gene é necessária para este produto. Pavlov pode ter sonhado que um dia
alguém compreenderia a formação de rede neural do cérebro que explicasse o
aprendizado associativo, mas ele certamente não teria imaginado que alguém iria ainda
mais profundamente e descreveria as próprias moléculas envolvidas, e muito menos que
descobriria que a chave para o processo, a cada minuto, está nas pequenas partículas da
hereditariedade de Mendel.
Esta é uma ciência em sua infância. Aqueles que estudam os genes envolvidos na
aprendizagem e na memória têm enfrentado um rico veio de ignorância para explorar.
Tully, por exemplo, tomou para si a imensa tarefa de compreender como estes genes da
memória alteram algumas das sinapses entre seu neurônio de origem e o neurônio
adjacente, enquanto deixam outras sinapses intocadas. Cada neurônio tem em média
setenta sinapses conectando-o com outras células. De algum modo, no núcleo das
células, o gene CREB no cromossomo 1 tem a tarefa de ativar um conjunto de outros
genes, que devem então mandar suas transcrições para as sinapses corretas, nas quais
podem ser usadas para mudar a intensidade da conexão. Tully pelo menos descobriu
uma maneira de entender como isto é feito. 8
Todavia o CREB é apenas uma parte da história. Seth Grant descobriu evidências
de que muitos dos genes necessários para o aprendizado e a memória não são parte de
uma rede seqüencial; mais do que isso, eles chegam a compor uma máquina, que ele
chama de Hebbossomo (por motivos que se tornarão mais claros posteriormente). Um
desses Hebbossomos consiste em pelo menos 75 proteínas diferentes — isto é, o
produto de 75 genes — e parece funcionar como um única máquina complexa. 9
REPROJETANDO AS PESSOAS
SEM MANTEIGA
Pode ser que esta história da agricultura pareça ter pouco a ver com a natureza humana.
Afinal, como afirmou David Joravsky, um historiador do lisenkoísmo, “qualquer
semelhança com o pensamento genuinamente científico era mera coincidência”. Mas ela
demonstra o pano de findo contra o qual trabalhava toda a biologia soviética. O
criacionismo extremo que começou logo antes da revolução com Setchenov e chegou a
seu auge com Lisenko deu a tônica para grande parte do século na Rússia. E,
conscientemente ou não, ele ecoou em todo o Ocidente. Os insights de Pavlov e Watson
sobre como ocorria o aprendizado foram de certa forma tomados por muitos como
prova de que nada ocorria às pessoas, exceto o aprendizado. O marxismo endossava
explicitamente o excepcionalismo humano, afirmando que a história humana tinha
passado da biologia para a cultura em um determinado momento (“O homem, graças a
sua mente, há muito deixou de ser um animal”, disse Lisenko). De Marx também era o
crédito por ter transcendido a antinomia entre “é” e “deve ser” — a famosa falácia
naturalista de David Hume e G. E. Moore. No final dos anos 40, os conceitos gêmeos de
que os seres humanos eram o produto de criação e cultura, em contraste agudo com os
animais, e de que isto era uma necessidade moral bem como científica, foram
disseminados em todo o Ocidente e no mundo socialista.
“Se o determinismo genético é verdadeiro”, escreveu Stephen Jay Gould,
“aprenderemos a viver com ele também. Mas reitero minha declaração de que não existe
evidência em seu apoio, que as versões grosseiras dos séculos passados provaram-se
conclusivamente falsas, e que sua popularidade contínua deriva do preconceito social
daqueles que mais se beneficiam do status quo.” 20 Este raciocínio criou problemas.
Como afirmaram os biólogos, de Ernst Mayr a Steven Pinker, não é apenas equivocado
basear a política e a moralidade no pressuposto de que a natureza humana é maleável —
é também perigoso. Tão logo os biólogos começassem a descobrir que havia um grau de
causa inata e genética ao comportamento, outro argumento teria de ser inventado para a
moralidade. Disse Pinker:
Uma vez que [os cientistas sociais] apostaram no argumento indolente de que o racismo, o
sexismo, a guerra e a desigualdade política eram logicamente insensatos ou factualmente
incorretos porque não existe o que se chama de natureza humana (em oposição ao moralmente
desprezível, independente dos detalhes da natureza humana), toda descoberta sobre a natureza
humana foi, segundo seu raciocínio, equivalente a dizer que o racismo, o sexismo, a guerra e a
desigualdade política não eram de todo ruins. 21
Devo me repetir para ser absolutamente claro. Não há nada de factualmente errado em
afirmar que os seres humanos são capazes de aprender, ou de que podem ser
condicionados a associar estímulos, ou a reagir a recompensas e punições ou qualquer
outro aspecto da teoria do aprendizado. Estes são fatos verdadeiros e tijolos essenciais
na parede que estou construindo. Mas não se segue daí que os seres humanos não têm
instintos, e menos ainda que os seres humanos são incapazes de aprender se têm
instintos. As duas coisas podem ser verdadeiras, O erro é cair nos extremos,
condescender no que a filósofa Mary Midgely chama de “sem manteiga”.
O maior pregador do “sem manteiga” foi Burrhus Frederick Skinner, um seguidor
de Watson, que levou o behaviorismo a novos patamares de dogmatismo. O organismo,
disse Skinner, era uma caixa-preta que não precisa ser aberta: ela meramente processa
sinais do ambiente em uma reação adequada, sem que seu conhecimento inato
acrescente alguma coisa. Skinner, ainda mais que Watson, definiu a psicologia com
base em uma inverdade sobre a natureza humana: que as pessoas não têm instintos.
Mesmo quando, tarde na vida, admitiu que havia um componente inato no
comportamento humano, ele o equiparou ao destino — “[as características inatas] não
podem ser manipuladas depois que o indivíduo é concebido” — mais uma vez provando
meu argumento de que os críticos do inato têm em mente um modelo muito mais
determinista dos genes do que seus defensores. Os criacionistas eram mais fatalistas
sobre os genes que os naturistas.
Tento me manter positivo quando leio Skinner. Seus experimentos sobre
condicionamento operante foram indubitavelmente brilhantes; sua invenção da caixa de
Skinner, em que um pombo podia ser recompensado ou punido de acordo com um
programa experimental, foi uma maravilha tecnológica; sua honestidade intelectual era
inquestionável. Ao contrário de alguns behavioristas, ele não fingia que ambientalismo
não é determinismo. Em minha própria vida, eu freqüentemente obedeço a seus dogmas.
Comporto-me como um pombo em uma caixa de Skinner quando vou pescar: foram os
skinnerianos que descobriram que um programa imprevisível de recompensas aleatórias
é excepcionalmente eficaz para manter o pombo bicando o símbolo ou o pescador
arremessando o anzol na correnteza. Comporto-me como a própria caixa de Skinner
sempre que tento condicionar as maneiras de meus filhos à mesa usando recompensa e
punição.
Mas não posso admirar um homem que confinou regularmente sua filha Debby
em uma espécie de caixa de Skinner nos primeiros dois anos de sua vida. A “casinha de
ar” era uma caixa à prova de som com uma janela, abastecida com ar umidificado e
filtrado, da qual a garotinha saía somente para brincadeiras e refeições programadas.
Skinner também publicou um livro atacando a liberdade e a dignidade como conceitos
ultrapassados. Em 1948, no ano em que apareceu 1984 de George Orwell, ele publicou
um relato ficcional de utopia que parece quase tão ruim quanto o inferno de Orwell.
Falarei mais disso adiante. Meu propósito aqui é registrar o declínio e a queda do
skinnerismo, porque ele abriu um novo e fascinante capítulo na história do aprendizado.
Tudo começou com um bebê macaco no Wisconsin.
Harry Harlow era um jovial psicólogo do Meio-oeste viciado em trocadilhos e
rimas que se irritou com as restrições de sua formação no behaviorismo. Nascido Harry
Israel, ele estudou em Stanford com o psicólogo dominador Lewis Terman (que insistia
que Harry mudasse seu nome para Harlow porque parecia menos judeu, aumentando
portanto suas chances de conseguir um emprego). Ele nunca aceitou bem a idéia de que
só recompensa e punição determinavam a mente. Incapaz de construir um laboratório de
ratos, ele começou a criar bebês macacos em um laboratório caseiro quando se mudou
para a Universidade do Wisconsin, em Madison, em 1930. Mas logo percebeu que seus
bebês macacos, retirados de seus pais para serem criados em perfeita higiene e em um
isolamento livre de doenças, estavam se tornando adultos temerosos, anti-sociais e
patentemente infelizes. Eles se agarravam às roupas como se fossem balsas no mar da
vida. Um dia, no final da década de 1950, Harlow estava em um aeroplano de Detroit
para Madison quando olhou para baixo, para as nuvens brancas e fofas sobre o lago
Michigan, e lembrou-se de seus bebês macacos agarrando-se em suas roupas. Teve uma
idéia para um experimento. Por que não oferecer a um bebê macaco a escolha entre um
modelo de roupa de sua mãe, que não o recompensasse, e um modelo de arame de uma
mãe que o recompensasse com leite? O que ele escolheria?
Os alunos e colegas de Harlow ficaram aterrados com a idéia. Era uma hipótese
fraca demais para a severa ciência do comportamento. Mais tarde, Robert Zimmerman
foi convencido a fazer o experimento com a promessa de ficar com os bebês macacos
para algum trabalho posterior mais útil. Oito bebês macacos foram colocados em
gaiolas separadas, abastecidas com modelos de arame e de roupa simulando a mãe — os
dois modelos foram mais tarde equipados com cabeças de madeira mais realistas,
principalmente para agradar a observadores humanos. Em quatro das gaiolas, a mãe de
roupa continha uma garrafa de leite e um bico para que o bebê mamasse nela. Nas
outras quatro, o leite vinha das mães de arame. Se estes quatro bebês macacos tivessem
lido Watson ou Skinner, associariam rapidamente o modelo de arame com comida e
passariam a amar o arame. Suas mães de arame os recompensavam generosamente,
enquanto suas mães de roupa os ignoravam. Os bebês macacos passaram quase todo o
tempo com as mães de roupa; eles deixavam a segurança da roupa somente para beber
das mães de arame. Em uma famosa fotografia, um bebê macaco se agarra com suas
pernas traseiras à mãe de roupa e se inclina para conseguir pegar o leite da mãe de
arame. 22
Seguiram-se muitos experimentos semelhantes — mães de pedra eram preferidas
às de pernas de pau, mães quentes às frias e Harlow anunciou os resultados em seu
discurso presidencial na Associação Americana de Psicologia em 1958, intitulando-o
provocativamente de “A natureza do amor”. Tinha desferido um golpe fatal no
skinnerismo, que defendia a posição absurda de que toda a base de um amor infantil por
sua mãe estava no fato de que a mãe era a fonte de sua nutrição. Havia mais a amar do
que recompensa e punição; havia algo inato e auto-recompensador na preferência de um
bebê por uma mãe macia e suave. “O homem não pode viver só de leite”, brincou
Harlow. “O amor é uma emoção que não precisa ser servida em uma garrafa — ou em
uma colher.” 23
Havia um limite para o poder da associação, um limite fornecido pelas
preferências inatas. Estes resultados parecem quase absurdamente óbvios agora e, a
qualquer pessoa que tenha lido o trabalho de Tinbergen sobre os estímulos de
comportamento em gaivotas e esgana-gatas, eles eram óbvios já naquela época. Mas os
psicólogos não seguiam a etologia, e o poder do behaviorismo na psicologia era tão
grande que o discurso de Harlow realmente surpreendeu muitas pessoas. Aparecera uma
rachadura no edifício do behaviorismo, uma rachadura que se ampliaria paulatinamente.
Por toda a década de 1960, os psicólogos redescobriram a idéia sensata de que as
pessoas, e os animais, eram equipados de forma que achavam algumas coisas mais
fáceis de aprender do que outras. Os pombos são muito bons em bicar símbolos nas
caixas de Skinner. Os ratos são bons em atravessar labirintos. No final dos anos 60,
Martin Seligman desenvolveu o conceito vital de “aprendizado preparado”. Era quase o
extremo oposto do imprinting. No imprinting, um filhote de ganso fixava-se na primeira
coisa em movimento que encontrava, fosse uma mãe ganso ou um professor: o
aprendizado é automático e irreversível, mas pode estar ligado a uma ampla variedade
de alvos. No aprendizado preparado, o animal pode aprender a temer uma cobra muito
facilmente, por exemplo, mas acha difícil aprender a ter medo de uma flor: o
aprendizado está ligado somente a uma gama estreita de alvos, sem os quais não
acontecerá.
Este fato foi demonstrado por outro grupo de macacos do Wisconsin uma geração
depois de Harlow. Susan Mineka foi aluna de Seligman, e depois que se transferiu para
Wisconsin, em 1980, planejou um experimento para testar a idéia do aprendizado
preparado. Ela ainda tem os vídeos originais deste experimento em uma caixa de papel-
cartão em seu escritório. A pista que ela seguiu estava no fato, conhecido desde 1964,
de que os macacos criados no laboratório não exibem medo de cobras, enquanto todos
os macacos selvagens ficam apavorados quando as vêem. Todavia, não é possível que
todo macaco criado no meio natural tenha tido uma experiência pavloviana ruim com
uma cobra, porque o risco das cobras é em geral fatal; não se tem muita oportunidade de
aprender, por condicionamento, que uma picada de cobra é venenosa. Mineka imaginou
que os macacos deviam adquirir um medo de cobras de modo indireto, observando a
reação de outros macacos às cobras. Macacos criados em laboratório, sem ter esta
experiência, não adquirem este medo.
Primeiro ela pegou seis bebês macacos nascidos de mães selvagens em cativeiro e
os expôs a cobras quando eles estavam sozinhos. Eles não ficaram especialmente
temerosos. Quando tiveram a oportunidade de passar por cima de uma cobra para
conseguir comida, os macacos famintos foram rápidos em fazê-lo. Depois ela os
mostrou a cobras quando suas mães estavam presentes. A reação apavorada da mãe —
agarrando-se ao topo da gaiola, estalando os lábios, agitando as orelhas e fazendo
caretas — foi imediatamente percebida pela cria, que assim ficou permanentemente
apavorada até com um modelo plástico de cobra. (Daí em diante, Mineka usou cobras
de brinquedo, que eram mais fáceis de controlar.)
Em seguida ela mostrou que esta lição era aprendida tanto de um macaco estranho
quanto de um pai ou mãe e que era facilmente transmitida: um macaco podia adquirir
medo de cobras com um macaco que tinha adquirido seu medo desta forma. Em seu
truque seguinte, Mineka queria ver se era igualmente fácil levar um macaco a ensinar
outro macaco ingênuo a temer mais alguma coisa, como uma flor. O problema era como
levar o primeiro macaco a reagir com medo de uma flor. O colega de Mineka, Chuck
Snowdon, sugeriu que ela usasse a tecnologia recém-inventada do videoteipe. Se
macacos podiam assistir a videoteipes e aprender com eles, então os vídeos podiam ser
adulterados para parecer que o macaco “professor” estava com medo de uma flor,
quando ele estava na verdade reagindo a uma cobra.
E funcionou, Os macacos não tiveram dificuldades em assistir aos vídeos de
macacos e reagiram a eles como se fossem macacos reais. Então Mineka preparou
vídeos em que a metade inferior da tela exibia outra cena. Isto fez com que parecesse ou
que um macaco estava calmamente passando por cima de uma cobra de brinquedo para
conseguir comida, ou que um macaco estava reagindo com terror a uma flor. Mineka
mostrou as fitas adulteradas a macacos ingênuos criados em laboratório. Em resposta à
fita “verdadeira” (medo de cobra, indiferença à flor), os macacos rápida e fortemente
chegaram à conclusão de que as cobras são assustadoras. Em resposta às fitas “falsas”
(medo de flor, indiferença à cobra), os macacos meramente concluíram que alguns
macacos eram malucos. Eles não adquiriram medo de flores. 24
Este foi, em minha opinião, um dos grandes momentos experimentais da
psicologia, junto com a mãe de arame de Harlow. Foi repetido em todo tipo de maneiras
diferentes, mas surgia sempre a mesma conclusão: o macacos aprendem com muita
facilidade a ter medo de cobras; eles não aprendem facilmente a temer a maioria dos
outros objetos. Isto mostra que há um grau de instinto no aprendizado, assim como o
imprinting mostra que há um grau de aprendizado no instinto. O experimento de
Mineka foi muito examinado pelos entusiastas da tabula rasa que queriam descobrir
falhas nele, mas até agora vem resistindo a ser desmascarado.
Macacos não são pessoas, mas é indubitavelmente verdade que as pessoas com
freqüência têm medo de cobras. O medo de cobra é uma das formas mais comuns de
fobia. Coincidentemente, muitos relatam que adquiriram seu medo por experiência
indireta, como ver um familiar reagir com temor a uma cobra. 25 As pessoas também
comumente temem aranhas, o escuro, altura, águas profundas, pequenos espaços e
trovões. Tudo isso era uma ameaça para as pessoas da Idade da Pedra, onde as ameaças
muito maiores da vida moderna — carros, esquis, armas, tomadas elétricas —
simplesmente não induziriam tais fobias. É um desafio ao bom senso não ver aqui a
obra da evolução: o cérebro humano é pré-equipado para aprender medos que eram
relevantes na Idade da Pedra. E a evolução só pode transmitir tal informação do passado
ao projeto da mente no presente através dos genes. É isto que os genes são: partes de um
sistema de informação que coleta informações sobre o mundo no passado e os incorpora
em um bom projeto para o futuro através da seleção natural.
É claro que não posso provar as últimas afirmações. Posso apresentar muitas
evidências de que o condicionamento para o meio, em seres humanos como em outros
mamíferos, depende muito da amídala, uma pequena estrutura próxima da base do
cérebro. 26 Posso até passar umas poucas dicas sobre que servos de Vulcano estão
cavando trincheiras para e da amídala, e como fazem isso (parece a facilitação de
sinapses de glutamato). Posso contar a você dos estudos de gêmeos mostrando que as
fobias são herdáveis, o que implica genes em funcionamento. Mas não posso ter certeza
de que tudo isso é planejado de acordo com um projeto criado em uma instrução
genética para equipar o cérebro desta forma. Apenas não posso pensar em uma
explicação melhor, O aprendizado do medo parece um módulo bem delineado, uma
lâmina no canivete suíço da mente. É quase automático, encapsulado, seletivo e operado
por um circuito neural seletivo.
Ainda há o que aprender. E você também pode aprender a ter medo de carros,
brocas de dentista ou casacos de pele de foca. Evidentemente o condicionamento
pavloviano pode criar qualquer tipo de medo. Mas ele sem dúvida cria um medo mais
forte, mais rápido e de duração mais longa de cobras do que de carros, e assim também
o faz o aprendizado social. Em um experimento, os participantes humanos foram
condicionados a temer cobras, aranhas, tomadas elétricas ou formas geométricas. O
medo de cobras e aranhas durou muito mais tempo do que os outros medos. Em outro
experimento, os participantes foram condicionados (por ruídos altos de tiro) a temer
cobras ou armas. Novamente, o medo de cobras durou mais tempo que o de armas
— muito embora as cobras não produzam estampidos de tiro. 27
O fato de que um medo pode ser facilmente ensinado não quer dizer que não
possa ser evitado ou revertido. Macacos que assistem a vídeos de outros macacos
ignorando cobras tornam-se resistentes a aprender a temer cobras mesmo que mais tarde
sejam expostos a um vídeo de um macaco alarmado. Crianças com cobras de estimação
podem aparentemente “imunizar” seus amigos contra aprender a temer cobras. Desta
forma este não é, como destaca Mineka, um instinto fechado. Ainda é um exemplo de
aprendizado. Mas aprender requer não só genes para estabelecer o sistema para a
aprendizagem como genes para operá-lo também.
O mais estimulante nesta história é a forma como reúne cada um dos temas que
explorei neste livro até agora. Superficialmente, o medo de cobras parece exatamente
um instinto. É modular, automático e adaptativo. É altamente herdável — os estudos de
gêmeos mostram que as fobias, como a personalidade, nada devem ao ambiente familiar
compartilhado, mas a muitos genes compartilhados. 28 Porém... os experimentos de
Mineka mostram que isso é inteiramente aprendido. Haveria um caso ainda mais claro
de natureza via criação? O aprendizado é ele mesmo um instinto.
Os behavioristas radicais são raros hoje em dia. Poucos — os que não ficaram
impressionados com a revolução cognitiva e por experimentos como o de Mineka —
continuam a acreditar que a mente humana aprende o que é bom aprender, e que o
aprendizado requer mais que um cérebro de propósito geral; ele requer dispositivos
especiais, cada um deles sensível ao conteúdo e especializado na obtenção de
regularidades do ambiente. As descobertas de Pavlov, Thorndike, Watson e Skinner são
pistas valiosas de como estes dispositivos fazem seu trabalho mas não são o oposto do
inato: tudo isso depende da arquitetura inata.
Ainda existe um grupo de cientistas que se opõe a conferir nativismo demais à
teoria da aprendizagem. São chamados conexionistas. Como sempre, mal se pode
distinguir o que eles dizem sobre como o cérebro funciona do que afirma a maioria dos
nativistas. Mas como sempre acontece nos debates natureza versus criação, os dois
lados gostam de retratar o outro em pontos extremos, e os sentimentos são exaltados. A
única diferença que posso ver entre os dois é que os conexionistas enfatizam a
receptividade de circuitos do cérebro a novas habilidades e experiências enquanto os
nativistas destacam sua especificidade. Se você me perdoar por usar um pouco de latim
vulgar, os conexionistas vêem a tabula como rasa pela metade; os nativistas a vêem
como escripta pela metade.
Vamos ao que interessa, então. O conexionismo não trata realmente de cérebros.
Trata de construir redes de computador que podem aprender. Ele é inspirado por duas
idéias simples: a correlação hebbiana e a propagação retroativa de erro. A primeira se
refere a um canadense chamado Donald Hebb, que fez uma afirmação imprudente em
1949 que o colocou firmemente nos livros de história:
Quando um axônio de uma célula A está perto o bastante para excitar a célula B e repetida ou
persistentemente participa de sua excitação, ocorre algum processo de crescimento ou mudança
metabólica em uma ou em ambas as células, de forma que a eficiência de A, quando uma das
células excita B, é ampliada. 29
O que Hebb está dizendo é que aprender consiste em fortalecer as conexões que são
usadas freqüentemente. Os servos de Vulcano cavam os canais que são usados, fazendo-
os fluir melhor. Ironicamente, Hebb não era behaviorista — na verdade, era um inimigo
fervoroso da idéia de Skinner de que a caixa-preta deve permanecer fechada. Ele queria
saber o que muda dentro do cérebro e estava certo em apostar que é a força da sinapse
que se altera. O fenômeno da memória, no nível molecular, parece ser precisamente
hebbiano.
Alguns anos depois do insight de Hebb, Frank Rosenblatt construiu um programa
de computador chamado perceptron, que consistia em duas camadas de “nós”, ou
switches, podendo-se variar as conexões entre elas. Sua tarefa era variar a intensidade
das conexões até que sua saída tivesse o padrão “correto”. O perceptron pouco fez; mas
quando, trinta anos depois, uma terceira camada “oculta’ de nós foi adicionada entre as
camadas de saída e entrada, a rede conexionista começou a assumir as propriedades de
uma máquina de aprendizagem primitiva, especialmente depois de lhe ser ensinada a
“propagação retroativa de erro”. Isto significa ajustar as forças das conexões entre as
unidades na camada oculta e a camada de saída quando a saída estava errada, e depois
ajustar a intensidade das conexões anteriores — propagando a conexão de erro de volta
para a máquina. É praticamente a mesma coisa que aprender com os erros de previsão,
que os pavlovianos modernos defendem e que Wolfram Schultz descobriu claramente
no sistema de dopamina humano. 30
Adequadamente bem-projetadas, as redes conexionistas são capazes de aprender
regularidades do mundo de uma forma que parece um pouco com o funcionamento do
cérebro. Podem, por exemplo, ser usadas para classificar palavras em substantivo/verbo,
animado/inanimado, animal/humano e assim por diante. Se danificadas, ou
“lesionadas”, elas parecem cometer erros semelhantes aos cometidos por pessoas que
tiveram derrames. Pouco surpreende que alguns conexionistas fiquem empolgados com
a idéia de que deram os primeiros passos para recriar o funcionamento básico do
cérebro.
Os conexionistas negam que não acreditam em nada, exceto a associação. Eles
não afirmam, como Pavlov, que aprender é uma forma de reflexo, ou, como Skinner,
que um cérebro pode ser condicionado a aprender qualquer coisa com a mesma
facilidade. Suas unidades ocultas desempenham o papel inato que Skinner relutou em
atribuir ao cérebro. 31 Mas eles afirmam que, com um mínimo de conteúdo pré-
especificado, uma rede geral pode aprender uma ampla variedade de regras sobre como
o mundo funciona. Neste sentido, eles seguem a tradição empirista. Eles não gostam do
nativismo excessivo, deploram a ênfase na modularidade maciça e lhes desagrada a
conversa de genes para o comportamento. Como David Hume, eles acreditam que o
conhecimento da mente deriva amplamente da experiência.
“É isto que é tão atraente na ciência cognitiva empirista: você pode pular alguns
séculos e não perde absolutamente nada”, brinca o filósofo Jerry Fodor. Embora tenha
se tornado um crítico mordaz do hábito de se levar o nativismo longe demais, Fodor não
teve tempo para a alternativa conexionista. Ela é “simplesmente inútil”, porque não
pode explicar nem que forma devem assumir os circuitos lógicos, nem o problema da
inferência abdutiva “global”. 32
A objeção de Steven Pinker é mais específica. Ele diz que as realizações dos
conexionistas estão em proporção direta porque pré-equipam suas redes com
conhecimento. Você só pode fazer uma rede que aprenda alguma coisa útil pré-
especificando as conexões. Ele compara os conexionistas com o homem que afirma ser
capaz de fazer “sopa de pedra” — quanto mais vegetais acrescenta, melhor fica seu
sabor. Na opinião de Pinker, os sucessos recentes do conexionismo são um elogio
ambíguo ao nativismo. 33
Em resposta, os conexionistas dizem que não estão negando que os genes podem
montar o palco para o aprendizado, somente que pode haver regras gerais sobre como as
redes de sinapses mudam para que este aprendizado se manifeste, e que redes
semelhantes podem operar em diferentes partes do cérebro. Eles fizeram muitas das
últimas descobertas da plasticidade neural. Em surdos, por exemplo, ou em amputados,
as partes sem uso do cérebro são realocadas para diferentes funções, implicando que
elas têm propósitos múltiplos. A fala, normalmente uma função do hemisfério esquerdo,
está no hemisfério direito em algumas pessoas. Os violinistas têm um córtex
somatossentorial maior que o normal para a mão esquerda.
Longe de mim julgar tais argumentos. Eu só faria minha avaliação habitual: algo
pode ser parcialmente verdade sem que represente a resposta completa. Acredito que
ainda descobrirão redes no cérebro que usam suas propriedades gerais como
dispositivos de aprendizado para aprender regularidades sobre o mundo, que elas
empregam princípios semelhantes às redes conexionistas e que redes similares podem
aparecer em diferentes sistemas mentais, de forma que aprender a reconhecer um rosto
requer uma arquitetura neural similar a aprender a ter medo de cobra. Descobrir estas
redes e descrever suas similaridades será um trabalho fascinante. Mas também acredito
que haverá diferenças entre redes que fazem trabalhos diferentes, diferenças que
codificam o pré-conhecimento na forma de um projeto mais ou menos evoluído. Os
empiristas enfatizam a similaridade; os nativistas, a diferença. Os conexionistas
modernos, como outros empiristas antes deles — Hebb, Skinner, Watson, Thorndike,
Pavlov, para não mencionar Mill, Hume e Locke — indubitavelmente acrescentaram
um tijolo útil à parede. Eles estão errados somente quando tentam retirar o tijolo de
outra pessoa, ou quando afirmam que a parede é mantida somente por tijolos empiristas.
UTOPIA NEWTONIANA
O que me traz de volta a Skinner. Você se lembrará de que ele escreveu uma utopia. Ela
descreve um lugar tão horrível quanto o Admirável mundo novo de Huxley ou o
Kantsaywhere de Galton e pelo mesmo motivo: é desequilibrado. Um mundo de puro
empirismo, sem a moderação da genética, seria tão terrível quanto um mundo de pura
eugenia sem a moderação do ambiente.
O livro foi intitulado Walden Two, e trata de uma comuna que é um clichê
sufocante de fascismo. Homens e mulheres jovens perambulam pelos corredores e
jardins da comuna sorrindo e ajudando-se como em um filme de propaganda nazista ou
soviética; a coerção à conformidade está em toda parte. Nenhuma nuvem distópica pode
desfigurar o céu, e o herói, Frazier, é o mais horripilante de todos, porque seu criador o
admira integralmente.
O romance é narrado pelos olhos de um professor, Burris, que é levado por dois
ex-alunos para ver seu velho colega, Frazier, que fundou uma comunidade chamada
Walden Two. Burris, acompanhado dos alunos e suas namoradas, além de um cínico
chamado Castle, passa uma semana em Walden Two, admirando a sociedade
aparentemente feliz de Frazier, baseada inteiramente no controle científico do
comportamento humano. Castle parte, zombeteiro; Burris o segue em princípio, mas
depois volta, atraído pelo magnetismo da visão de Frazier:
Nosso amigo Castle está preocupado com o conflito entre a ditadura de longo alcance e a
liberdade. Não sabe ele que está apenas levantando a antiga questão da predestinação e do livre-
arbítrio? Tudo o que acontece está contido em um plano original, mas em cada estágio o indivíduo
é capaz de optar e determinar o resultado. Acontece a mesma coisa em Walden Two. Nossos
membros praticamente estão fazendo sempre o que querem fazer—o que “escolhem” fazer—, mas
nós cuidamos para que eles queiram fazer exatamente o que é melhor para eles e para a
comunidade. Seu comportamento é determinado, mas eles são livres. 34
Fico do lado de Castle. Mas pelo menos Skinner é honesto. Ele acha que a natureza
humana é inteiramente causada por influências externas, em uma espécie de mundo
newtoniano de determinismo ambiental linear Se os behavioristas estivessem certos,
então o mundo seria assim: a natureza de uma pessoa simplesmente seria a soma de
influências externas sobre ela. Seria possível termos uma tecnologia de controle do
comportamento. Em um prefácio acrescentado à segunda edição em 1976, Skinner
demonstra não ter voltado atrás, embora, como Lorenz, ele quase inevitavelmente tente
ligar Walden Two ao movimento ambientalista.
Somente pela destruição de cidades e economias, e sua substituição por comunas
behavioristas, podemos sobreviver à poluição, à exaustão dos recursos e à catástrofe
ambiental, diz Skinner. “Algo como Walden Two não seria um mau começo.” O que é
verdadeiramente assustador é que a visão de Skinner atraiu seguidores que realmente
formaram uma comuna e tentaram administrá-la de acordo com as linhas de Frazier. Ela
ainda existe: é chamada Walden Dos e fica perto de Los Horcones, no México. 35
CAPÍTULO OITO
Enigmas da Cultura
Alguns homens, graças à composição inalterável de sua constituição, são corajosos, outros
temerosos, alguns confiantes, outros modestos, afáveis, ou obstinados, curiosos ou descuidados,
rápidos ou lentos.
John Locke 1
Uma criança que vem ao mundo hoje em dia herda um conjunto de genes e aprende
muitas lições com a experiência. Mas ela adquire algo mais, também: as palavras, os
pensamentos e as ferramentas que foram inventados por outras pessoas muito tempo
antes. O motivo para que a espécie humana domine o planeta e os gorilas estejam em
risco de extinção não está em nossos 5% de DNA especial, nem em nossa capacidade de
aprender associações, nem mesmo em nossa capacidade de agir culturalmente, mas na
capacidade de acumular cultura e transmitir informação, através dos mares e das
gerações.
A palavra cultura significa pelo menos duas coisas diferentes. Significa arte
intelectual, discernimento e gosto: a ópera, em uma palavra. Também significa ritual,
tradição e etnicidade: dançar em torno da fogueira do acampamento com um osso
atravessado no nariz. Há uma profunda convergência entre os dois: sentar-se em black-
tie assistindo a La Traviata é apenas uma versão ocidental de dançar em torno da
fogueira com um osso atravessado em seu nariz. O primeiro significado da palavra veio
do Iluminismo francês. La culture significa civilização — uma dimensão cosmopolita
do progresso. O segundo significado vem do movimento romântico germânico: die
Kultur era o estilo peculiar com que os germânicos distinguiam-na de outras culturas, a
essência primeva do teutonismo. Na Inglaterra, enquanto isso, surgindo do movimento
evangélico e sua reação ao darwinismo, cultura veio a significar o oposto de natureza
humana — o elixir que elevava os homens acima dos macacos. 2
Franz Boas, o dos magníficos bigodes em minha foto imaginária, levou o uso
germânico para a América e o transmutou em uma disciplina: a antropologia cultural.
Sua influência sobre o debate natureza-criação no século seguinte não pode ser
exagerada. Por enfatizar a plasticidade da cultura humana, ele expandiu a natureza
humana em uma infinidade de possibilidades em vez de mantê-la presa a restrições. Foi
ele que plantou com mais vigor a idéia de que a cultura é o que liberta as pessoas de sua
natureza.
A epifania de Boas vem do litoral de Cumberland Sound, uma baía na costa da
ilha Baffin, no Ártico canadense. Era janeiro de 1884. Boas tinha 25 anos e estava
mapeando a costa para tentar compreender as migrações e a ecologia do povo inuit.
Recentemente ele deixara seu interesse na física (sua tese foi sobre a cor da água) em
favor da geografia e da antropologia. Naquele inverno, acompanhado somente de um
europeu (seu empregado), ele efetivamente tornou-se um inuit: viveu com os habitantes
de Baffin em suas tendas e iglus, comeu carne de foca e viajou em trenó de cães. A
experiência foi humilhante. Boas começou a apreciar não só as habilidades técnicas de
seus anfitriões, mas também a sofisticação de suas canções, a riqueza de suas tradições e
a complexidade de seus costumes. Ele também viu sua dignidade e estoicismo diante da
tragédia: naquele inverno, muitos inuits morreram de difteria e gripe; seus cães,
também, morreram de uma nova doença. Boas sabia que as pessoas o culpavam por esta
epidemia. Não seria a última vez em que um antropólogo se perguntaria se tinha trazido
a morte a seus objetos de pesquisa. Quando ele se deitou em um iglu apertado, ouvindo
os gritos de esquimós, o ladrar dos cães, o choro das crianças , confiou a seu diário:
“Estes são os ‘selvagens’ cuja vida supostamente nada valem quando comparados com
um europeu civilizado. Não acredito que nós, se vivêssemos sob as mesmas condições,
estaríamos tão dispostos a trabalhar ou ser tão encantadores e felizes!” 3
Na verdade, ele estava bem preparado para a lição da igualdade cultural. Era filho
de orgulhosos livres-pensadores judeus da cidade de Minden, no Reno. Sua mãe, uma
professora, impregnou-o do “espírito de 1848”, o ano da fracassada revolução alemã.
Na universidade, ele travou um duelo para vingar o estigma anti-semita, e ficou com
cicatrizes no rosto pelo resto da vida. “O que eu quero, para o que viverei e morrerei,
são direitos iguais para todos”, escreveu ele a sua noiva da ilha Baffin. Boas era um
adepto ardoroso de Theodor Waitz, que argumentava pela igualdade da humanidade:
que todas as raças do mundo descendem de um ancestral comum recente — uma crença
que dividiu os conservadores. Apelava a leitores do Gênesis abalados por Darwin, mas
não aos praticantes da escravidão e da segregação racial. Boas foi muito mais
influenciado pela escola berlinense da antropologia liberal de Rudolf von Virchow e
Adolf Bastian, com sua ênfase no determinismo cultural e não no determinismo racial.
Assim, dificilmente surpreende ver Boas concluindo sobre seus amigos inuits, “a mente
do selvagem é sensível às belezas da poesia e da música, e é somente para o observador
superficial que ele parece estúpido e insensível”. 4
Boas emigrou para os Estados Unidos em 1887 e criou as fundações da moderna
antropologia como o estudo da cultura e não da raça. Ele queria estabelecer que a
“mente do homem primitivo” (o título de seu livro mais influente) era igual em tudo à
mente do homem civilizado, ao mesmo tempo que as culturas de outros povos eram
profundamente diferentes entre si e da cultura civilizada. A origem das diferenças
étnicas portanto está na história, na experiência e nas circunstâncias, e não na psicologia
e na fisiologia. Primeiro ele tentou provar que o formato da cabeça das pessoas mudou
uma geração depois de elas terem migrado para os Estados Unidos:
Os hebreus da Europa oriental, que têm uma cabeça muito redonda, tornam-se de cabeça alongada;
o italiano do sul, que na Itália tem uma cabeça excepcionalmente longa, ganha uma cabeça mais
curta; e assim, neste país, ambos se aproximam de um estilo mais uniforme. 5
O ACÚMULO DE CONHECIMENTO
A descoberta de que os seres humanos são 95% chimpanzés no nível genético exacerba
meu problema. Na descrição dos genes envolvidos no aprendizado, instinto, imprinting
e desenvolvimento, não tive dificuldades em apelar para exemplos animais porque,
nestes aspectos, a diferença entre a psicologia humana e a animal é uma diferença de
grau. Mas a cultura é diferente. O hiato cultural entre um ser humano e até o mais
brilhante dos macacos ou golfinhos é um abismo. Transformar um cérebro de ancestral
símio em um cérebro humano certamente requer apenas alguns pequenos ajustes na
receita: todos os mesmos ingredientes apenas um pouco mais de tempo no forno.
Todavia estas mudanças menores têm conseqüências de longo alcance: as pessoas têm
armas nucleares e dinheiro, deuses e poesia, filosofia e fogo. Elas conseguem todas
estas coisas através da cultura, de sua capacidade de acumular idéias e invenções
geração após geração, transmiti-las a outros e portanto reunir os recursos cognitivos de
muitos indivíduos vivos e mortos.
Um homem de negócios comum, por exemplo, nada faria sem a ajuda da escrita
fonética assíria, a imprensa chinesa, a álgebra árabe, os numerais indianos, a
contabilidade italiana, as leis de mercado holandesas, os circuitos integrados
californianos e uma série de outras invenções espalhadas pelos continentes e séculos. O
que é que torna as pessoas, e não os chimpanzés, capazes desta proeza de acumulação?
Afinal, parece haver pouca dúvida de que os chimpanzés são capazes de cultura.
Eles mostram fortes tradições locais na conservação do comportamento, que é então
transmitido por aprendizado social. Algumas populações quebram nozes usando pedras;
outras usam varetas. Na África ocidental, os chimpanzés comem formigas mergulhando
uma longa vareta em um formigueiro, coletam muitos insetos, tiram as formigas
passando a mão pela vareta e as levam à boca. Há mais de cinqüenta tradições culturais
deste tipo conhecidas em toda a África e cada uma delas é aprendida por observação
cuidadosa pelos mais jovens (os imigrantes adultos em um bando acham mais difícil
aprender os costumes locais). Estas tradições são essenciais para sua vida. Frans de Vaal
chegou ao ponto de afirmar que “os chimpanzés são completamente dependentes da
cultura para sobreviver”. Como os seres humanos, eles não conseguem passar pela vida
sem as tradições aprendidas. 11
E os chimpanzés não estão sozinhos nisso. O momento em que a cultura animal
foi descoberta pela primeira vez foi em setembro de 1953, na pequena ilha de Kohima,
na costa do Japão. Por cinco anos, uma jovem chamada Satsue Mito alimentou os
macacos da ilha com trigo e batata-doce, para habituá-los a observadores humanos.
Naquele mês ela viu pela primeira vez um jovem macaco chamado Imo lavar a areia de
uma batata-doce. Em três meses dois dos companheiros de Imo e sua mãe tinham
adotado a prática, e em cinco anos a maioria dos macacos mais novos do bando a
adotara. Somente os machos mais velhos não conseguiram adquirir o costume. Imo
depois aprendeu a separar o trigo da areia colocando-o na água e deixando a areia
afundar. 12
A cultura abunda em espécies de cérebro grande. Baleias assassinas têm técnicas
de alimentação tradicionais e aprendidas que são peculiares a cada população: encalhar
na praia para pegar leões marinhos é uma especialidade das orcas do Atlântico sul, por
exemplo, e é um truque que requer muita prática para ser aperfeiçoado. Assim, os seres
humanos definitivamente não são os únicos na capacidade de transmitir costumes
tradicionais por aprendizado social. Mas isto só torna a questão mais desconcertante. Se
os chimpanzés, macacos e orcas têm culturas, por que eles não têm salto cultural? Não
há o fermento da inovação contínua e cumulativa. Não há, em uma palavra,
“progresso”.
Vamos reformular a questão, então. Como os seres humanos fazem progresso
cultural? Como topamos com a cultura cumulativa? Esta é uma questão que tem
incitado uma torrente de especulação teórica nos últimos anos, mas muito pouco na
forma de dados empíricos. O cientista que tem tentado encontrar uma resposta com mais
afinco é Michael Tomasello, de Harvard. Ele fez uma longa série de experimentos com
chimpanzés adultos e jovens seres humanos, dos quais conclui que “somente o ser
humano compreende [outros seres humanos] como agentes intencionais como o self e
assim só o ser humano pode se envolver em aprendizado cultural”. Esta diferença surge
aos nove meses de idade — o que Tomasello chama de revolução do nono mês. Neste
ponto os seres humanos deixam os macacos antropomorfos para trás no
desenvolvimento de certas habilidades sociais. Por exemplo, eles agora apontarão um
objeto com o único propósito de dividir a atenção com outro. Eles olham na direção que
alguém aponta, e seguem o olhar do outro. Os macacos nunca fazem isso, nem as
crianças autistas (até muito mais tarde), que parecem ter problemas para compreender
que os outros são agentes intencionais com uma mente própria. De acordo com
Tomasello, nenhum macaco jamais mostrou a capacidade de atribuir uma falsa crença a
outro indivíduo, algo que vem naturalmente à maioria dos seres humanos de quatro anos
de idade. A partir disto, Tomasello infere que só os seres humanos podem se colocar no
lugar dos outros. 13
Este argumento oscila na beira do excepcionalismo humano que tanto irritou
Darwin. Como todas as afirmações deste tipo, ele é vulnerável à primeira descoberta
definitiva de um macaco antropomorfo que age com base no que acredita ser o
pensamento de outro macaco. Muitos primatologistas, especialmente Frans de Vaal,
acreditam já ter visto tal comportamento no meio natural e em cativeiro. 14 Tomasello
não concorda. Outros macacos antropomorfos podem compreender os relacionamentos
sociais entre terceiros (algo que provavelmente está além da maioria dos mamíferos) e
podem aprender por imitação. Se a eles for mostrado que revirar um tronco revelará
insetos, eles aprenderão que os insetos podem ser encontrados embaixo de troncos. Mas
eles não podem, segundo Tomasello, compreender o objetivo do comportamento de
outros animais. Isto limita sua capacidade de aprender e, em particular, limita sua
capacidade de aprender por imitação. 15
Não tenho certeza se aceito plenamente o argumento de Tomasello. Sou
influenciado pelos macacos de Susan Mineka, que são indubitavelmente capazes de
aprendizado social pelo menos no caso minuciosamente preparado do medo de cobra.
Aprender não é um mecanismo geral; é modelado especificamente para cada tipo de
informação, e pode haver informações cujo aprendizado por imitação é possível até em
chimpanzés. E mesmo que Tomasello consiga explicar a imitação nas tradições culturais
de primatas — os macacos que aprenderam a lavar areia das batatas, os chimpanzés que
aprendem com os outros a como quebrar nozes — ele certamente terá problemas para
provar que os golfinhos não podem imaginar o que os outros estão pensando. Há sem
dúvida algo unicamente humano em nossa capacidade de empatizar e imitar, assim
como há algo unicamente humano em nossa capacidade de comunicar simbolicamente
— mas é uma diferença de grau e não de tipo.
Mas uma diferença de grau ainda pode chegar a um abismo nas engrenagens da
cultura. Neste ponto, Tomasello garante que a imitação torna-se algo mais profundo
quando o imitador entra na mente de seu modelo — quando ele tem uma teoria da
mente. Ele garante, também, que imitar uma idéia de alguém de certa forma cria
representação, o que por sua vez pode se transformar em simbolismo. Talvez seja isto
que permite aos jovens seres humanos adquirir muito mais cultura que os chimpanzés.
A imitação assim se torna a primeira candidata do que Robin Fox e Lionel Tiger
chamaram de dispositivo de aquisição de cultura. 16 Há duas outras candidatas
promissoras: a linguagem e a destreza manual. E, estranhamente, as três parecem surgir
juntas em uma parte do cérebro.
Em julho de 1991, Giacomo Rizzolatti fez uma descoberta impressionante em seu
laboratório em Parma. Ele estava registrando os sinais de neurônios isolados dentro do
cérebro de macacos, tentando entender o que causa a ativação de um neurônio.
Normalmente isto é feito em condições altamente controladas, usando macacos
imobilizados ao máximo, ocupados em tarefas inventadas. Insatisfeito com estas
condições artificiais, Rizzolatti queria registrar sinais de macacos levando uma vida
quase normal. Ele começou com a alimentação, tentando correlacionar cada ação com
cada resposta neuronal. Começou a suspeitar de que alguns neurônios registravam o
objetivo da ação, e não a própria ação, mas seus colegas cientistas rejeitaram a idéia: a
evidência era anedótica demais.
Então Rizzolatti devolveu seus macacos a condições mais controladas. De tempos
em tempos cada macaco lidava com comida, e Rizzolatti e seus colegas perceberam que
alguns neurônios “motores” pareciam reagir à visão de uma pessoa pegando um pedaço
de comida. Por um longo tempo eles pensaram que era uma coincidência e que o
macaco devia estar se movendo ao mesmo tempo, mas um dia estavam registrando um
neurônio que se ativava quando o experimentador pegava um pedaço de comida de uma
certa maneira; o macaco ficou completamente imóvel. A comida foi então dada ao
macaco, e quando ele a pegava da mesma maneira, mais uma vez o neurônio se
excitava. “Naquele dia eu me convenci de que o fenômeno era real”, diz Rizzolatti.
“Ficamos muito empolgados.” 17 Eles tinham descoberto uma parte do cérebro que
representa tanto a ação como a visão daquela ação. Rizzolatti chamou-o de “neurônio-
espelho” por sua capacidade incomum de espelhar ao mesmo tempo a percepção e o
controle motor. Ele mais tarde descobriu mais neurônios-espelho, cada um deles ativo
durante a observação e a imitação de uma ação altamente específica: coisas como pegar
entre o polegar e o indicador. Ele concluiu que esta parte do cérebro podia combinar um
movimento percebido da mão com um movimento realizado da mão. Ele acreditou que
estava vendo “o precursor evolutivo do mecanismo humano para a imitação”. 18
Desde então, Rizzolatti e seus colegas repetiram o experimento com seres
humanos em aparelhos de varredura eletrônica do cérebro. Três partes do cérebro se
acenderam quando os voluntários observavam e imitavam movimentos dos dedos:
novamente, o fenômeno de atividade “espelho”. Uma dessas partes, o Sulco Temporal
Superior (STS), estava relacionada com a percepção. Não é de surpreender encontrar
uma área sensorial acendendo-se quando o voluntário observa uma ação, mas
surpreende que ela se ative quando o voluntário mais tarde execute a ação imitada. Uma
curiosidade da imitação humana é que, se uma pessoa é solicitada a imitar uma ação da
mão direita, ela com freqüência imitará com a mão esquerda, e vice- versa. (Tente dizer
a alguém que há algo na bochecha dele e toque sua bochecha direita ao mesmo tempo.
As probabilidades são de a pessoa reagir tocando a bochecha esquerda.) Coerente com
isso, nos experimentos de Rizzolatti, o STS era mais ativo quando o voluntário imitava
uma ação da mão esquerda com a mão direita do que quando o voluntário imitava uma
ação da mão esquerda com a mão esquerda. Rizzolatti concluiu que o STS “percebe” a
ação do sujeito e a combina com sua lembrança da ação observada. 19
Recentemente, a equipe de Rizzolatti descobriu um neurônio ainda mais estranho,
que se excita não só quando um certo movimento é realizado e observado mas também
quando a mesma ação é ouvida. Por exemplo, eles encontraram um neurônio que reagia
à visão e ao som de um amendoim sendo quebrado mas não ao som de papel sendo
rasgado. O neurônio reagia ao som do amendoim se quebrando mas não à visão
isoladamente. O som é importante para dizer ao animal que ele conseguiu quebrar uma
noz, e portanto isto faz sentido. Mas os neurônios são tão primorosamente sensíveis que
eles podem “representar” certas ações a partir apenas do som que produzem. A
descoberta da manifestação neuronal de uma representação mental está ficando
extraordinariamente próxima: a expressão “quebrar nozes”. 20
Os experimentos de Rizzolatti nos colocam perto da descrição, apesar de em
termos mais grosseiros, de uma neurociência da cultura — um conjunto de ferramentas
que compõem pelo menos parte do dispositivo de aquisição de cultura. Será que
encontrarão um conjunto de genes que subjazem ao projeto de um “órgão”? De certa
forma sim, porque o projeto dos circuitos cerebrais, de conteúdo específico, é
indubitavelmente herdado através do DNA. Pode ser que não sejam os únicos para esta
parte do cérebro, sendo a singularidade proveniente da combinação dos genes usados no
projeto, e não proveniente dos próprios genes. Isto criará a capacidade de absorver
cultura. Mas esta é apenas uma interpretação da expressão “genes da cultura”; será
encontrado em funcionamento na vida cotidiana um conjunto completamente diferente
de genes provenientes dos genes de projeto. Os genes que guiam os axônios que
constroem o dispositivo serão silenciados. Em seu lugar, haverá genes que operam e
modificam sinapses, que secretam e absorvem neurotransmissores e assim por diante.
Tampouco este não será o único conjunto de genes. Mas eles serão, em um sentido
verdadeiro, os dispositivos que transmitem a cultura do mundo exterior para e através
do cérebro. Eles serão indispensáveis para a própria cultura.
Recentemente, Anthony Monaco e sua aluna Cecilia Lai descobriram uma
mutação genética aparentemente responsável por um distúrbio da fala e da linguagem. É
o primeiro candidato para um gene que pode melhorar o aprendizado cultural através da
linguagem. Há muito se sabe que várias deteriorações da linguagem ocorrem em
famílias, pouco tendo a ver com a inteligência geral, e afetam não só a capacidade de
falar, mas a capacidade de generalizar regras gramaticais na linguagem escrita e talvez
até de ouvir e interpretar a fala. Quando foi descoberta, a herdabilidade desta
característica foi batizada de “gene da gramática”, para a fúria dos que entendiam que
uma descrição dessas era culpada de determinismo. Mas agora parece que há mesmo um
gene no cromossomo 7 responsável por este distúrbio em uma grande genealogia e em
outra menor. O gene é necessário para o desenvolvimento da gramática normal e a
capacidade de falar nos seres humanos, inclusive o controle motor refinado da laringe.
Conhecido como forkhead box P2, ou resumidamente FOXP2, é um gene cuja tarefa é
ativar outros genes — um fator de transcrição. Quando é defeituoso, a pessoa nunca
desenvolve uma linguagem plena. 21
Os chimpanzés também têm FOXP2; da mesma forma, os macacos do Novo
Mundo e os camundongos. O simples fato de ter o gene não possibilita a fala. Na
verdade, o gene é incomumente semelhante em todos os mamíferos. Svante Paabo
descobriu que em todas as milhares de gerações de camundongos, macacos do Novo
Mundo, orangotangos, gorilas e chimpanzés, uma vez que todos compartilharam um
ancestral comum, houve somente duas mudanças no gene FOXP2 alterando seu
produto, a proteína — uma nos ancestrais do camundongo e outra nos ancestrais do
orangotango. Mas é possível que ter a forma humana peculiar do gene seja um pré-
requisito para a fala. Nos seres humanos, desde a divisão com os chimpanzés (apenas
ontem) já aconteceram duas mudanças que alteraram a proteína. E evidências
engenhosas da ausência de mutações inativas sugerem que estas mudanças aconteceram
muito recentemente e foram o motivo de uma “limpeza seletiva”. Este é o jargão técnico
para a exclusão de todas as outras versões do gene em pouco tempo. Em algum
momento depois de 200.000 anos atrás, apareceu uma forma mutante do FOXP2 na raça
humana, com uma ou com as duas mudanças, e esta forma mutante se saiu tão bem ao
ajudar seu possuidor a se reproduzir que agora seus descendentes dominam a espécie,
excluindo completamente todas as versões anteriores do gene. 22
Pelo menos uma das mudanças, que substitui uma molécula de serina por uma
arginina na 325ª posição (de 715) na construção da proteína, quase com certeza altera a
ativação e desativação do gene. Ela pode, por exemplo, permitir que o gene seja ativado
pela primeira vez em uma certa parte do cérebro. Isto, por sua vez, pode permitir que o
FOXP2 faça alguma coisa nova. Lembre-se de que os animais parecem evoluir dando
novas tarefas aos mesmos genes, em vez de inventar novos genes. Ninguém sabe
exatamente o que faz o FOXP2, ou como ele permite que a linguagem passe a existir e,
assim, já estou especulando aqui. Continua sendo possível que, em vez de o FOXP2
permitir que as pessoas falem, a invenção da fala tenha pressionado o GOD a mutar o
FOXP2 por algum motivo desconhecido: que a mutação seja conseqüência e não causa.
Mas uma vez que já estou indo além do perímetro do mundo conhecido, deixe-me
dar meus melhores palpites para como o FOXP2 capacita as pessoas a falar. Suspeito de
que, nos chimpanzés, o gene ajude a conectar a parte do cérebro responsável pelo
controle motor fino da mão a várias partes perceptuais do cérebro. Nos seres humanos, o
período extra (ou mais longo?) de atividade permite que ele conecte outras partes do
cérebro, inclusive a região responsável pelo controle motor da boca e da laringe.
Penso desta forma porque pode haver uma ligação entre o FOXP2 e os neurônios-
espelho de Rizzolatti. Uma das partes do cérebro que é ativa nos voluntários durante o
experimento de Rizzolatti, conhecida como área 44, corresponde à área em que
descobriram os neurônios-espelho no cérebro de macacos. Esta é parte do que às vezes é
chamado de área de Broca, o que complica consideravelmente a trama, porque é uma
parte essencial do “órgão da linguagem” do cérebro humano. Em macacos e pessoas,
esta parte do cérebro é responsável pelo movimento da língua, da boca e da laringe (é
por isso que um derrame nesta área incapacita a fala), mas também pelo movimento das
mãos e dos dedos. A área de Broca responde pela fala e pelo gesto. 23
Aqui está uma pista vital para a origem da fala. Uma idéia verdadeiramente
extraordinária começou a tomar forma na mente de vários cientistas nos últimos anos.
Eles estão começando a suspeitar de que a linguagem humana foi originalmente
transmitida pelos gestos e não pela fala.
As evidências para este palpite vêm de diferentes direções. Primeiro há o fato de
que macacos e pessoas usam uma parte do cérebro para produzir “chamados” que é
completamente diferente daquela que os seres humanos usam para produzir a
linguagem. O repertório vocal da média dos macacos consiste em várias dezenas de
ruídos diferentes, alguns dos quais expressam emoções, alguns se referindo a
predadores específicos e assim por diante. Todos são dirigidos por uma região do
cérebro que fica perto da linha média. Esta mesma região do cérebro dirige as
exclamações humanas: o grito de terror, o riso de prazer, o arfar de surpresa, a
imprecação involuntária. Alguém pode perder a capacidade de falar por um derrame no
lobo temporal e ainda exclamar fluentemente. Na verdade, alguns afásicos ainda podem
praguejar com prazer, mas descobrem que é impossível movimentar os braços.
O “órgão” da linguagem, por contraste, situa-se no lado (esquerdo) do cérebro,
escarrapachado no grande vale entre os lobos temporal e frontal — a fissura silviana.
Esta é uma região motora, usada nos macacos principalmente para os gestos, para
agarrar e tocar, bem como para os movimentos faciais e da língua. A maioria dos
grandes macacos antropomorfos usa preferencialmente a mão direita quando faz gestos
manuais, e a área de Broca é por conseqüência maior no lado esquerdo do cérebro de
chimpanzés, bonobos e gorilas. 24 Esta assimetria do cérebro — ainda mais acentuada
nos seres humanos — deve portanto ter antedatado a invenção da linguagem. Em vez de
o lado esquerdo do cérebro crescer e acomodar a linguagem, parece lógico que a
linguagem possa ter ido para a esquerda, porque era ali que a mão dominante dos gestos
era controlada. É uma boa teoria, mas não consegue explicar o fato a seguir. As pessoas
que aprendem a linguagem dos sinais quando adultas usam o hemisfério esquerdo; mas
falantes nativos da linguagem dos sinais usam os dois hemisférios. Aparentemente, a
especialização do hemisfério esquerdo para a linguagem é mais pronunciada na fala que
na linguagem de sinais — o oposto do que prevê a teoria dos gestos. 25
Uma terceira pista em favor da primazia da linguagem dos sinais vem da
capacidade humana de expressar a linguagem com o uso das mãos em vez da voz. Em
uma extensão maior ou menor, as pessoas acompanham grande parte de sua fala com
gestos -—- mesmo quando falam ao telefone, e até as que são cegas de nascença.
Antigamente se pensava que a linguagem dos sinais usada por surdos era uma mera
pantomima de gestos que imitam ações. Mas em 1960 William Stokoe percebeu que era
uma linguagem verdadeira: ela usa sinais arbitrariamente e possui uma gramática
interna tão sofisticada quanto a linguagem falada, com sintaxe, inflexão e todo o
equipamento da linguagem. Possui outras características muito semelhantes às línguas
faladas, como ser aprendida melhor durante um período crítico da juventude e adquirida
exatamente da mesma forma construtiva das linguagens faladas. De fato, assim como as
línguas francas podem ser transformadas em línguas crioulas plenamente gramaticais
somente quando aprendidas por uma geração de crianças, o mesmo acontece com a
linguagem de sinais. Como prova final do fato de que a fala é apenas um mecanismo de
elocução para o órgão da linguagem, os surdos podem se tornar manualmente “afásicos”
quando sofrem derrames que afetam as mesmas regiões do cérebro das pessoas com
audição normal.
Agora entra o registro fóssil. A primeira coisa que os ancestrais humanos fizeram
quando se separaram dos ancestrais dos chimpanzés, há mais de 5 milhões de anos, foi
se erguer sobre os pés. A locomoção bípede, acompanhada de uma grande organização
do esqueleto, ocorreu mais de 1 milhão de anos antes que qualquer sinal de aumento do
cérebro. Em outras palavras, nossos ancestrais libertaram suas mãos para pegar e fazer
gestos muito antes que começassem a pensar ou falar de qualquer forma diferente de
qualquer outro antropomorfo. Uma das belezas da teoria dos gestos é que ela sugere
imediatamente que os seres humanos adquiriram a linguagem e outros antropomorfos
não. O bipedalismo libertou as mãos não para carregar coisas mas para falar. Os
membros dianteiros da maioria dos primatas ficam demasiado ocupados sustentando o
corpo para participar de conversas.
Robin Dunbar sugere que a linguagem assumiu o papel que a limpeza coletiva
ocupa na sociedade de macacos — a manutenção e o desenvolvimento de laços sociais.
Na verdade, os macacos antropomorfos provavelmente usam sua ótima destreza manual
quando procuram carrapatos no pêlo uns dos outros e quando coletam frutas. Em
primatas que vivem em grandes grupos sociais, a limpeza é uma atividade que consome
muito tempo. Os babuínos-gelada passam até 20% de seu tempo de vigília cuidando uns
aos outros. As pessoas começaram a viver em grupos tão grandes, afirma Dunbar, que
se tornou necessário inventar uma forma de limpeza coletiva que pudesse ser feita com
várias pessoas de uma vez: a linguagem. Dunbar observa que os seres humanos não
usam a linguagem apenas para comunicar informações úteis; eles a usam principalmente
para fofocas sociais: “Por que diabos tanto tempo é dedicado a tanta discussão sobre tão
pouco?” 26
A idéia de limpeza-fofoca merece outro desvio: se os primeiros proto-humanos a
usar a linguagem começaram a fofocar com gestos manuais, eles teriam
necessariamente negligenciado seus verdadeiros deveres de limpeza. Se você fala com
as mãos, não pode limpar os outros e discutir ao mesmo tempo. Estou tentado a sugerir
que a linguagem gestual trouxe consigo uma crise na higiene pessoal em nossos
ancestrais, resolvida somente quando eles pararam de ser cabeludos e começaram a
vestir as roupas disponíveis. Mas algum crítico irritadiço me acusaria de contar lorotas,
então eu retiro a idéia.
De acordo com as poucas evidências fósseis, a fala, ao contrário da destreza
manual, apareceu tarde na evolução humana. O esqueleto Nariokotome de 1,6 milhão de
anos descoberto em 1984 no Quênia tem em seu pescoço espaço vertebral para apenas
uma fina medula espinhal como a de um macaco antropomorfo: a metade do tamanho
de uma medula humana moderna. As pessoas modernas precisam de uma grande
medula espinhal, para fornecer os muitos nervos para o tórax para o controle da
respiração durante a fala. 27 Outros esqueletos ainda mais antigos do Homo erectus têm
laringes altas como a dos macacos antropomorfos, que podem ser incompatíveis com a
fala elaborada. Os atributos da fala apareceram tão tarde que alguns antropólogos vêm
tentando inferir que a linguagem foi uma invenção recente, aparecendo apenas há
70.000 anos. 28 Mas linguagem não é a mesma coisa que fala: sintaxe, gramática,
recursividade e inflexão podem ser antigas, mas podem ter sido feitas com as mãos e
não com a voz. Talvez a mutação no FOXP2 de menos de 200.000 anos atrás represente
não o momento em que a linguagem em si foi inventada, mas o momento em que a
linguagem pôde ser expressa através da boca, bem como das mãos.
Ao contrário, as características peculiares da mão e do braço humanos aparecem
cedo no registro fóssil. Lucy, a etíope de 3,5 milhões de anos, já era dona de um polegar
longo e articulações alteradas na base dos dedos e no pulso, capacitando-a a pegar
objetos entre o polegar, o indicador e o dedo médio. Ela também tinha um ombro
alterado, permitindo lançar objetos do alto, e sua pélvis ereta lhe permitia um rápido
giro do eixo do corpo. Todas as três características são necessárias para a habilidade
humana de agarrar, mirar e lançar uma pequena pedra — algo que está além da
capacidade de um chimpanzé, cujo lançamento consiste em esforços aleatoriamente
almejados e lançados a partir de baixo. 29 É uma habilidade extraordinária, exigindo
uma cronometragem precisa na rotação de várias articulações e o exato momento do
lançamento. Planejar tal movimento requer mais que um pequeno comitê de neurônios
no cérebro; requer coordenação entre diferentes áreas. Talvez, diz o neurocientista
William Calvin, este “planejador de lançamento” tenha se mostrado adequado à tarefa
de produzir seqüências de gestos ordenados por uma espécie de gramática primitiva.
Isto explicaria o envolvimento dos dois lados da fissura silviana, conectados por uma
linha principal chamada fascículo arcuado. 30
Quer tenha sido o arremesso, a produção de ferramentas ou o próprio gesto que
capacitou as partes peri-silvianas do cérebro a se tornarem acidentalmente pré-adaptadas
para a comunicação simbólica, a mão indubitavelmente fez a sua parte. Como lamenta o
neurologista Frank Wilson, temos negligenciado por tempo demais a mão humana como
um afiador do cérebro humano. William Stokoe, um pioneiro do estudo da linguagem
dos sinais, sugeriu que os gestos manuais representam duas categorias distintas de
palavras: coisas por sua forma, e ações por seu movimento, inventando assim a
distinção entre substantivo e verbo que é tão profundamente entranhada em todas as
línguas. Até hoje, os substantivos são encontrados no lobo temporal e os verbos no
frontal, através da fissura silviana. Foi sua união que transformou a protolinguagem dos
símbolos e sinais em uma verdadeira linguagem gramatical. E talvez tenham sido as
mãos, e não a voz, que as reuniram primeiro. Somente mais tarde, talvez para ser capaz
de se comunicar no escuro, a fala invadiu a gramática. Stokoe morreu em 2000, logo
após concluir um livro sobre a teoria das mãos. 31
Você pode tergiversar com os detalhes históricos, e eu não sou um devoto
intransigente da hipótese da linguagem manual, mas para mim a beleza desta história
está na forma como une a imitação, as mãos e a voz no mesmo quadro. Todas são
características essenciais da capacidade humana de cultura. Imitar, manipular e falar são
três coisas que os seres humanos fazem peculiarmente bem. Elas não são apenas
centrais para a cultura: são a própria cultura. A cultura tem sido chamada de mediação
da ação através de artefatos. Se ópera é cultura, La Traviata é a combinação habilidosa
de imitação, voz e destreza (na preparação e no uso de instrumentos musicais). O que
estas três coisas trouxeram foi um sistema de símbolos, de forma que a mente pudesse
representar em si mesma, no discurso social e na tecnologia, qualquer coisa, da
mecânica quântica à Mona Lisa ou a um automóvel. Mas talvez mais importante, elas
reuniram os pensamentos de outras mentes: a memória externalizada. Elas capacitaram-
nos a adquirir muito mais do ambiente social do que podíamos esperar aprender por nós
mesmos. As palavras, ferramentas e idéias que ocorreram a alguém há muito tempo
podem ser parte da herança de cada indivíduo nascido hoje em dia.
Independente da veracidade ou não da teoria das mãos, o papel central do
simbolismo na expansão do cérebro humano é uma proposição com que muitos podem
concordar. A própria cultura pode ser “herdada” e pode selecionar para a mudança
genética a fim de se adaptar a ela. Nas palavras dos três cientistas mais associados com
esta teoria da co-evolução gene-cultura:
O processo que levou à cultura, agindo por um longo período de história evolutiva humana, podia
facilmente levar a uma remodelação fundamental das disposições psicológicas humanas. 32
Mas nada aconteceu. Logo depois da época em que o garoto de Nariokotome viveu, há
1,6 milhão de anos, apareceu na terra uma ferramenta magnífica: o machado de mão
acheuliano. Foi sem dúvida inventado por membros da espécie do garoto, os Homo
ergaster de cérebro imenso e sem precedentes, e foi um grande salto para as ferramentas
Olduvai simples e irregulares que o precederam. Com duas faces, simétrica, modelada
como uma lágrima, com gume em todo o contorno, feita de sílex ou quartzo, é um
objeto belo e misterioso. Ninguém sabe com certeza se foi usada para arremessar, cortar
ou raspar. Espalhou-se para o norte da Europa com a diáspora do Homo erectus, a Coca-
Cola da Idade da Pedra, e sua hegemonia tecnológica durou incríveis 1 milhão de anos:
ainda estava em uso apenas meio milhão de anos atrás. Se foi um meme, foi
espetacularmente fiel, fecundo e duradouro. Mas surpreendentemente, durante esse
tempo nem uma das centenas de milhares de pessoas vivas de Sussex à África do Sul
parece ter inventado uma nova versão. Não há engrenagem cultural, nem fermento da
inovação, nem experimento, nem produto rival, nenhuma Pepsi. Há somente um milhão
de anos de monopólio do machado de mão. A Machado de Mão Acheuliano S.A. deve
ter lucrado horrores. Bons tempos aqueles.
As teorias de co-evolução cultural não prevêem isso. Elas exigem uma aceleração
da mudança depois que a tecnologia e a linguagem se reúnem. As criaturas que fizeram
estes machados tinham cérebros grandes o bastante e mãos suficientemente versáteis
para fazer os machados de mão e aprender com os outros como fazê-los, mas não os
usaram para melhorar o produto. Por que esperaram mais de um milhão de anos para de
repente começar a progressão inexorável e exponencial da tecnologia da lança para o
arado, para o motor a vapor e depois para o chip de silício?
Não estou depreciando o machado de mão acheuliano. Experimentos mostram que
é quase impossível melhorá-lo como uma ferramenta para abater grandes caças, exceto
com a invenção do aço. Só podia ser aperfeiçoada pelo uso cuidadoso de “martelos
macios” feitos de ossos. Mas estranhamente, seus produtores parecem ter tido pouco
orgulho de suas ferramentas, fabricando novas para cada caçada. Em pelo menos um
caso, em Boxgrove, em Sussex, onde foram encontrados mais de 250 machados de mão,
parece que eles foram laboriosamente fabricados por pelo menos seis indivíduos destros
no sítio de um cavalo morto, depois descartados nos arredores, quase sem uso: algumas
das lascas quebradas no processo de produção mostraram mais sinais de uso nas caçadas
do que os próprios machados. Nada disso explica por que as pessoas capazes de fazer
uma coisa dessas não fizeram também pontas de lança, pontas de flechas, adagas e
agulhas. 36
A explicação do escritor Marek Kohn é de que os machados de mão não eram
ferramentas realmente práticas, mas o primeiro adorno: ornamentos feitos por machos
para exibir às fêmeas. Kohn afirma que eles mostram todas as marcas da seleção sexual;
são bem mais elaborados e (em particular) simétricos do que exigia sua função. Eram
artisticamente projetados para impressionar o sexo oposto, como o abrigo decorado
feito por um Ptilonorhynchidae, ou a cauda elaborada de um pavão. Os homens estavam
tentando fazer o machado de mão ideal, não o melhor. Pelo menos até muito
recentemente, na arte e no artesanato, afirma Kohn, o virtuosismo, e não a criatividade,
era o epítome da perfeição. As mulheres eram obcecadas por julgar os potenciais
parceiros pelo desenho de seus machados de mão, não por sua inventividade. Vem à
mente a imagem do fabricante do melhor machado de mão em Boxgrove tirando uma
soneca depois de almoçar bife de cavalo para um encontro clandestino nos arbustos com
uma fêmea fértil, enquanto seus amigos pegam desconsoladamente outro pedaço de
sílex e começam a praticar para a oportunidade seguinte. 37
Alguns antropólogos foram além e afirmaram que a própria caça de presas
grandes era sexualmente selecionada. Para muitos caçadores-coletores, era e é uma
forma extraordinariamente ineficiente de conseguir comida, mas os homens dedicavam
muito esforço a ela. Eles parecem mais interessados em se exibir, trazendo a perna de
uma ocasional girafa para seduzir uma mulher para o sexo, do que em encher a
despensa. 38
Sou um fã da teoria da seleção sexual, embora suspeite de que conta apenas uma
parte da história. Mas não resolve o problema da origem da cultura; é só uma nova
versão da co-evolução cérebro-cultura. No máximo, só torna o problema pior. Os
trovadores do paleolítico, cujas senhoras ficavam tão impressionadas com um machado
de mão bem-feito, certamente teriam impressionado mais com uma agulha de marfim de
mamute ou um pente de madeira — algum objeto novo. (Querida, tenho uma surpresa
para você. Ah, amor, outro machado de mão: era justamente o que eu queria.) Os
cérebros estavam crescendo rapidamente, muito antes que o machado de mão
acheuliano, e ele continuou a crescer durante o tempo de seu longo monopólio. Se esta
expansão foi motivada por seleção sexual, então por que os machados de mão mudaram
tão pouco? A verdade é que você pode passar horas olhando para ele e a monotonia
muda do machado de mão acheuliano continua reprovando silenciosamente todas as
teorias de evolução gene-cultura: os cérebros se tornam estavelmente maiores sem
nenhuma ajuda da mudança da tecnologia, porque a tecnologia é estática.
Depois de meio milhão de anos, o progresso tecnológico é estável, mas muito,
muito lento até a Revolução do Paleolítico Superior, às vezes conhecido como o Grande
Salto para a Frente. Por volta de 50.000 anos atrás, na Europa, a pintura, o adorno
corporal, o comércio por longas distâncias, artefatos de argila e ossos, novos e
elaborados objetos em pedra — aparentemente tudo isso apareceu ao mesmo tempo.
Sem dúvida a subitaneidade é em parte ilusória, porque o kit de ferramentas tinha se
desenvolvido gradualmente em algum canto da África antes de se espalhar por toda
parte com a migração ou a conquista. Sally McBrearty e Alison Brooks afirmaram que o
registro fóssil apóia uma revolução muito gradual na África, em etapas, a partir de uns
300.000 anos atrás. Lâminas e pigmentos já estavam em uso na época. Elas situam a
invenção do comércio de longa distância em 130.000 anos, por exemplo, baseando-se
na descoberta de dois sítios na Tanzânia de peças de obsidiana (vidro vulcânico) usadas
para fazer pontas de lança. Esta obsidiana vem do Rift Valley no Quênia, a mais de 300
quilômetros de distância.
A súbita revolução de 50.000 anos atrás no início do Paleolítico Superior é
claramente um mito eurocêntrico, causado pelo fato de que trabalham muito mais
arqueólogos na Europa do que na África. Mas ainda há algo atordoante a ser explicado.
O fato é que os habitantes da Europa foram culturalmente estáticos até então, da mesma
forma que os habitantes da África até 300.000 anos atrás. Sua tecnologia não mostrou
nenhum progresso. Depois daquelas datas, a tecnologia mudou a cada ano. A cultura
tornou-se cumulativa de uma forma que simplesmente não existia antes. A cultura
estava mudando sem esperar que os genes a alcançassem.
Estou diante de uma conclusão severa e bastante estranha, que não acredito que
tenha sido confrontada adequadamente pelos teóricos da cultura e da pré-história. Os
grandes cérebros que tornam as pessoas capazes de um rápido progresso cultural — de
leitura, escrita, tocar violino, aprender sobre o cerco de Tróia, dirigir um carro — surgiu
muito tempo antes que grande parte da cultura se acumulasse. A cultura progressiva e
cumulativa apareceu tão tarde na evolução humana que é pouco provável que tenha
modelado como as pessoas pensam, e muito menos o tamanho de seu cérebro, que já
chegou a seu máximo sem muita ajuda da cultura. A capacidade do cérebro de pensar,
imaginar e raciocinar evoluiu em seu próprio ritmo para resolver os problemas práticos
e sexuais da vida de uma espécie social e não para lidar com as demandas da cultura
transmitida por terceiros. 39
Estou afirmando que muito do que celebramos sobre nossos cérebros nada tem a
ver com a cultura. Nossa inteligência, imaginação, empatia e percepção passaram a
existir gradual e inexoravelmente, mas não com o auxílio da cultura. Elas tornam a
cultura possível, mas não o contrário. Nós, seres humanos, provavelmente seríamos
quase igualmente bons em representar, tramar e planejar mesmo que nunca tivéssemos
pronunciado uma palavra ou modelado uma ferramenta. Se, como afirmaram Nick
Humphrey, Robin Dunbar, Andrew Whiten e outros da “escola maquiavélica”, o
cérebro humano se expandiu para lidar com a complexidade social em grandes grupos
— com a cooperação, traição, fraude e empatia — então ele podia ter feito isso sem
inventar a linguagem ou desenvolver a cultura. 40
Mas a cultura explica o sucesso ecológico dos seres humanos. Sem a capacidade
de acumular e hibridizar idéias, as pessoas nunca teriam inventado a agricultura, ou as
cidades, ou a medicina, ou qualquer uma das coisas que permitem que dominem o
mundo. A chegada simultânea da linguagem e da tecnologia alterou drasticamente o
destino da espécie. Depois que se reuniram, o salto cultural foi inevitável. Devemos
nossa abundância a nosso brilho coletivo, não ao brilho individual.
Embora a origem da cultura cumulativa possa ser inexplicável, o progresso
alimenta a si mesmo depois que tem início. Quanto mais tecnologias houver, mais
alimento podemos conseguir, e mais mentes estas tecnologias podem apoiar e mais
tempo podemos poupar para a invenção, O progresso agora torna-se inevitável, um
conceito que é apoiado pelo fato de que o salto cultural aconteceu paralelamente em
diferentes partes do mundo. A escrita, as cidades, a cerâmica, agricultura, moedas e
muitas outras coisas chegaram juntas, ao mesmo tempo, de forma independente, na
Mesopotâmia, China e México. Depois de 4 bilhões de anos sem cultura letrada, o
mundo de repente teve três em alguns milhares de anos ou menos. Mais até, se, como
parece, o Egito, o Vale do Indo, a África ocidental e o Peru viveram saltos culturais de
forma independente. Robert Wright, cujo brilhante livro Nonzero explora em
profundidade este paradoxo, conclui que a densidade humana teve importância no
destino humano. Depois que os continentes foram povoados, apesar de esparsamente, e
não se podia mais emigrar para territórios vazios, a densidade começou a aumentar na
maior parte das áreas férteis. Com o aumento da densidade veio a possibilidade — aliás,
a inevitabilidade — de divisões crescentes de trabalho e portanto a crescente invenção
técnica. A população torna-se um “cérebro invisível”, fornecendo mercados cada vez
maiores para a engenhosidade individual. E nos lugares em que a população disponível
de repente encolheu — como a Tasmânia, quando foi separada do continente australiano
— o progresso cultural e tecnológico subitamente deu marcha a ré. 41
A densidade em si pode não importar tanto quanto o que ela permite:
a troca. A causa primária deste sucesso na espécie humana, como afirmei em meu livro
The Origins of Virtue (As origens da virtude), foi a invenção do hábito de trocar uma
coisa por outra, o que resultou na divisão de trabalho. 42 Para o economista Haim Ofek,
“não é irracional ver a transição do Paleolítico Superior como uma das primeiras
tentativas humanas muito bem-sucedidas de escapar (como população) da pobreza para
a riqueza através da instituição do comércio e da iniciativa da divisão de trabalho”. 43
Ele afirma que o que foi inventado no início da revolução foi a especialização. Até este
ponto, embora pudesse haver divisão de comida e ferramentas, não havia a atribuição de
diferentes tarefas a diferentes indivíduos, O arqueólogo Ian Tartersll concorda: “A mera
diversidade de produção de material na sociedade [humana do início da era moderna]
foi o resultado da especialização de indivíduos em diferentes atividades.” 44 Será que,
depois da invenção da troca e da divisão de trabalho, o progresso era inevitável?
Certamente há um círculo virtuoso em funcionamento na sociedade de hoje, e ele tem
existido desde a aurora da história, onde quer que a especialização aumente a
produtividade, que por sua vez aumenta a prosperidade, que permite a invenção
tecnológica, que aumenta ainda mais a especialização. Como coloca Robert Wright, “A
história humana envolve participar de jogos ainda mais numerosos, ainda maiores e
ainda mais elaborados cuja soma é diferente de zero”. 45
Uma vez que o ser humano viveu, como outros antropomorfos, em grupos
separados e competitivos, trocando somente fêmeas adolescentes, havia um limite para
o grau de rapidez com que a cultura podia mudar, embora o cérebro humano estivesse
preparado para planejar, cortejar, falar ou pensar, e embora houvesse uma alta
densidade populacional. Novas idéias tinham de ser inventadas em casa; elas não
podiam ser trazidas. As invenções bem-sucedidas podiam ajudar seus proprietários a
deslocar tribos rivais e dominar o mundo. Mas a inovação chegou lentamente. Com a
chegada do comércio — a troca de artefatos, alimento e informação, inicialmente entre
indivíduos e mais tarde entre grupos — tudo isso mudou. Agora uma boa ferramenta ou
um bom mito podiam viajar, podiam encontrar outra ferramenta ou mito e podiam
começar a competir pelo direito de ser replicados pelo comércio: em resumo, a cultura
podia evoluir.
A troca desempenha na evolução cultural o mesmo papel que o sexo desempenha
na evolução biológica. O sexo reúne inovações genéticas feitas em corpos diferentes; o
comércio reúne inovações culturais feitas em tribos diferentes. Assim como o sexo
permite que os mamíferos combinem duas boas invenções — a lactação e a placenta —,
o comércio permitiu que os povos primitivos combinassem arrastar animais com as
rodas para obter um efeito melhor. Sem a troca, os dois continuariam separados. Os
economistas têm afirmado que o comércio é uma invenção recente, facilitada pela
alfabetização, mas todas as evidências sugerem que é muito mais antigo. Os aborígines
yir yoronts, vivendo na península do Cabo York, trocavam nadadeiras de arraia-lixa da
costa por machados de pedra das colinas por meio de uma rede elaborada de contatos
comerciais muito antes da alfabetização. 46
O SEXO E A UTOPIA
CAPÍTULO NOVE
Daniel Dennett 1
Já é bastante ruim ser eclipsado à beira da fama eterna por um concorrente, mas imagine
como é pior saber que seu concorrente estava morto há mais de uma década e viveu toda
a sua vida na completa obscuridade em um mosteiro. Não surpreende que Hugo De
Vries pareça tão infeliz em minha fotografia. Em 1900 ele publicou uma teoria radical,
que achava que merecia o tipo de aclamação dada a John Dalton e que estava prestes a
ser dada a Max Plank. Onde Dalton tinha sugerido que a matéria é composta de átomos,
e Plank diria que a luz surge em feixes, De Vries também tinha apresentado uma teoria
quântica — de que a herança vem em partículas: “Os caracteres específicos dos
organismos são compostos de unidades separadas.” 2 Deduziu isto por uma série de
experimentos brilhantes, hibridizando variedades de plantas, e chegou a uma verdade
que levaria um século para ser demonstrada. Ele especulou que as partículas da
hereditariedade, que chamou de “pangenes”, não obedecem à barreira entre espécies, de
forma que um pangene para a pilosidade em uma planta também era responsável pela
pilosidade em outra espécie de flor pilosa.
De Vries, em outras palavras, certamente merecia ser conhecido como o pai do
gene. Mas logo depois de publicar seu relato triunfante, no jornal francês Comtes
Rendus de l’Académie de Sciences, ele foi atormentado por um alemão de nome Karl
Correns, um homem moderado que foi levado a uma fúria pouco característica pelo
artigo de De Vries. Correns tinha sido derrotado por um resultado científico de De Vries
antes e estava decidido a se vingar. Correns acidamente assinalou que, embora os
experimentos de De Vries fossem realmente dele, sua conclusão da herança particulada
foi tomada de empréstimo, não apenas em suas linhas gerais, mas em detalhes, do
trabalho de um monge da Morávia morto há muito tempo de nome Gregor Mendel,
descendo até aos termos que De Vries usava: recessivo e dominante, por exemplo.
Sabendo que tinha sido vencido, De Vries concordou em reconhecer, com
relutância, a prioridade a Mendel em uma nota de rodapé à versão alemã de seu artigo, e
conformou-se infeliz ao papel de ter tornado a descobrir as leis da hereditariedade. Pior,
teve de compartilhar até seu pequeno crédito com dois outros homens: não só Correns,
mas também um jovem penetra chamado Erich von Tschermark, que era bom em
apenas duas coisas — convencer o mundo da evidência inconsistente de que ele também
tinha redescoberto as leis de Mendel, e (muito mais tarde) aplicar seus talentos a serviço
do nazismo. Para De Vries, que tinha a si mesmo em alta conta, este foi um remédio
amargo; ao fim de seus dias, olhava para a deificação de Mendel com desgosto.
“Provavelmente esta moda vai passar”, asseverou, recusando um convite para desvelar
uma escultura do monge. O problema era que poucas pessoas se entusiasmavam com
De Vries. Rabugento, altivo, irascível e tão misógino que corria o boato de que cuspia
no prato cultural de suas assistentes, De Vries estava fadado a ver até sua terminologia
eclipsada pela dos outros. Em 1909, o pangene tornou-se o “gene”, uma palavra
cunhada por Wilhelm Johannsen, um professor da Dinamarca. 3
Será que De Vries era um plagiador? Provavelmente ele descobriu as leis de
Mendel através de seus próprios experimentos, antes de tomar conhecimento do
trabalho de Mendel na biblioteca; sua súbita mudança de terminologia no final da
década de 1890 é muito sugestiva. Neste sentido, ele fez uma grande descoberta.
Também é provável que ele pensasse que podia escapar sem citar a prioridade de
Mendel. Afinal, quem se divertia com a leitura de volumes de quarenta anos de idade
das atas da Sociedade de História Natural? Neste sentido, De Vries era uma fraude. Mas
não surpreende que um cientista enterre seus ancestrais, reduzindo mais ou menos
inconscientemente a importância dos insights de seus predecessores, temendo que eles
diminuam sua própria inovação. Até Darwin era propenso, de sua maneira
despretensiosa, a evitar mencionar as contribuições dos outros em suas idéias,
especialmente as de seu próprio avô. Ironicamente, o próprio Mendel pode ter tomado
emprestado pelo menos parte de sua idéia principal. Ele não mencionou o artigo do
horticulturista inglês Thomas Knight, de 1799, mostrando que a facilidade de se
conseguir a polinização artificial de diferentes variedades de ervilha podia sugerir o
mecanismo de hereditariedade, até o reaparecimento de caracteres na segunda geração.
O artigo de Knight, traduzido para o alemão, estava na biblioteca universitária em
Brünn. 4
Assim, sem que Mendel, o gênio insubstituível do gene, seja prejudicado de
alguma maneira, vamos dar também a De Vries seu momento de glória. Deixemos que
seu conceito de pangenes, as partes intercambiáveis da hereditariedade, sejam únicos
por um momento. Assim como os diferentes elementos são feitos de diferentes
combinações das mesmas partículas — nêutrons, prótons e elétrons — o mundo agora
sabe, como há vinte anos, que as espécies diferentes são pelo menos em parte
provenientes de diferentes combinações de genes muito parecidos.
Durante o século XX, os geneticistas usavam pelo menos três definições do que é o
gene. A primeira era a de Mendel: um gene é uma unidade da hereditariedade, um
arquivo para a armazenagem da informação evolutiva. A descoberta da estrutura do
DNA em 1953 imediatamente tornou literal a metáfora de Mendel, por sugerir como os
genes podem fazer genes. Como James Watson e Francis Crick anunciaram com uma
certa malícia na Nature, “Não nos escapou que o pareamento específico que postulamos
sugere imediatamente um possível mecanismo de cópia para o material genético”. 5
Apenas por seguir a regra do pareamento de bases, em que A deve parear com T (e não
C, G ou A), e C deve parear com G (e não com C, T ou A), cada molécula de DNA em
dois estágios produz automaticamente uma cópia digital exata de sua seqüência única.
Ela precisa de uma máquina para fazer a cópia, chamada DNA polimerase, mas como o
sistema é digital, não perde precisão, e porque o sistema é falível, permite a mudança
evolutiva. O gene mendeliano é um arquivo.
Uma segunda definição da palavra gene, ressuscitada apenas recentemente, é a
parte intercambiável de De Vries. A surpresa atordoante da leitura do genoma na década
de 1990 é que o ser humano tem muito mais genes em comum com a mosca e o verme
que qualquer pessoa esperava. Revelou-se que os genes para traçar o plano de corpo da
mosca-da-fruta tem contrapartes exatas no camundongo e no homem, tudo herdado de
um ancestral comum chamado verme arredondado-achatado que viveu 600 milhões de
anos atrás. Eles são tão semelhantes que a versão humana de um destes genes pode
substituir a contraparte da mosca no desenvolvimento da mosca-da-fruta. Ainda mais
surpreendente foi a descoberta de que os genes que as moscas usam para aprender e
memorizar são também duplicados nas pessoas — e também presumivelmente herdados
de verme arredondado-achatado. É só um pouco exagerado dizer que os genes nos
animais e plantas são meio como átomos: partes padronizadas usadas em diferentes
combinações para produzir diferentes compostos. O gene de De Vries é uma parte
intercambiável.
Uma terceira definição do gene começa em 1902 com um contemporâneo de De
Vries, o médico inglês Archibald Garrod, que identificou com muita engenhosidade a
primeira doença produzida por um só gene, uma obscura doença chamada alcaptonúria.
Dela descende toda a definição demasiado comum de genes que causam doenças
quando defeituosos, a definição de “um gene uma doença”. É enganadora de duas
maneiras: não menciona que um gene mutado pode ser associado a muitas doenças, e
uma doença a muitos genes mutados; e implica que a função do gene é evitar a doença.
É o mesmo que dizer que a função do coração é evitar ataques cardíacos. Além disso,
dado que a maior parte da pesquisa genética é impulsionada por necessidade médica, as
definições “um gene uma doença” provavelmente são inevitáveis. O gene de Garrod é
um preventivo de doença, um doador de saúde.
Uma quarta definição de um gene é a que é feita atualmente. Desde os primórdios
da pesquisa os pioneiros do DNA perceberam que os genes tinham duas tarefas: copiar a
si mesmos e se expressar através da construção de proteínas. Garrod sugeriu que os
genes fazem enzimas: são catalisadores químicos. Linus Pauling ampliou a definição: os
genes fazem proteínas de todos os tipos. Então, quatro meses antes da descoberta da
dupla hélice, James Watson sugeriu que o DNA faz RNA, que faz proteína, um conceito
mais tarde elegantemente batizado por Francis Crick de “dogma central” da biologia
molecular. A informação flui do gene e não de volta para ele, como a informação flui do
cozinheiro para o bolo e não o contrário. Embora muitos detalhes — splicing
alternativo, DNA lixo, fatores de transcrição, e mais recentemente uma fartura de novos
genes que fazem RNA mas não proteínas, muitos dos quais parecem estar intimamente
envolvidos na regulação da expressão dos genes que codificam proteínas — tenham
complicado o quadro padrão do gene metabólico, o dogma central ainda subsiste. Com
muito poucas exceções, a proteína faz o trabalho, o DNA armazena a informação e o
RNA é a ligação entre os dois, como suspeitou Watson. Então o gene de Watson-Crick
é uma receita.
Uma quinta definição do gene, que pode ser creditada a dois franceses, François
Jacob e Jacques Monod, é o gene como um comutador, e portanto como unidade de
desenvolvimento. O que Jacob e Monod fizeram na década de 1950 foi descobrir como
uma bactéria em uma solução de lactose de repente começa a produzir a enzima que
permite a digestão de lactose, e depois pára de sintetizá-la quando já produziu o
bastante. O gene é desativado por uma proteína repressora, e o repressor é desativado
pela lactose. Jacob e Monod tinham suspeitado de que alguma coisa assim devia
acontecer, espalhando a idéia então surpreendente de que os genes eram ativados e
desativados pela ligação de proteínas a seqüências especiais perto daqueles genes; que,
em outras palavras, os genes vêm com comutadores de DNA. Agora conhecidos como
promotores e enhancers, estes comutadores são a chave para o desenvolvimento de um
corpo a partir de um embrião. Muitos genes requerem vários ativadores para ligar a seus
promotores; os ativadores podem funcionar em diferentes combinações; e alguns genes
podem ser ativados por conjuntos diferentes de ativadores. O resultado é que
exatamente o mesmo gene pode ser usado em diferentes espécies ou em diferentes
partes do corpo para produzir efeitos completamente diferentes, dependendo de que
outros genes também estão ativos. Há um gene chamado sonic hedgehog, por exemplo,
que em um contexto transforma células adjacentes em neurônios; em outro contexto
induz células adjacentes a começar a se desenvolver em membros. Este é um motivo
para que seja arriscado falar de um “gene para’ alguma coisa: muitos genes têm funções
múltiplas.
Subitamente aqui está uma forma muito diferente de ver os genes:
como um conjunto de comutadores do desenvolvimento. Todos os tecidos carregam o
conjunto completo de genes, mas eles são ativados em diferentes combinações em
diferentes tecidos. Agora esqueça a seqüência do gene. O que conta é onde e como o
gene é expresso. Agora é assim que muitos biólogos pensam nos genes. Construir um
corpo humano significa colocar uma série de comutadores na ordem correta,
comutadores que levam ao crescimento e à diferenciação do corpo. E apenas para tornar
as coisas interessantes, as máquinas que ordenam os comutadores — os fatores de
transcrição — são elas mesmas produtos de outros genes. O gene de Jacob-Monod é um
comutador. 6
Mas, para dizer a verdade, havia legiões de cientistas que apenas estavam usando a
palavra gene desde que foi cunhada em 1909 sem que realmente significasse qualquer
um destes cinco conceitos. Para eles, o gene não era a unidade da hereditariedade,
evolução, doença, desenvolvimento ou metabolismo, era a vítima da seleção. Foi
Ronald Fisher que primeiro esclareceu que a evolução era pouco mais que a
sobrevivência diferencial dos genes. E foram George Williams e William Hamilton,
junto com seus defensores Richard Dawkins e Edward Wilson, que finalmente falaram
das plenas e sensacionais implicações desta idéia. Os corpos, disse Dawkins, eram
veículos temporários construídos para a replicação de genes, primorosamente projetados
pelos genes para crescer, se alimentar, prosperar e morrer — mas sobretudo para
empenhar-se na reprodução. Os corpos eram a forma como os genes faziam novos
corpos. Esta visão do organismo “a partir do gene” foi uma mudança filosófica
repentina.
Por exemplo, ela explica imediatamente uma coisa que Aristóteles, Descartes,
Rousseau e Hume não perceberam que precisava de explicação: por que as pessoas são
boas com seus filhos (ou, no caso de Rousseau, não são). As pessoas geralmente são
mais generosas com seus próprios filhos do que com outros adultos, outras crianças e
até consigo mesmas. Um ou dois antropólogos do século XX tinham explicado isto com
elegância em termos puramente egoístas — você é bom com seus filhos na esperança de
que eles sejam bons com você na velhice —, mas aqui, de Williams a Hamilton, estava
uma explicação genuína que não excluía o altruísmo dos pais. Você é bom com seus
filhos porque você descende de pessoas que foram boas com seus filhos, e foram
portanto mais eficientes em capacitá-los para sobreviver para procriar. Eles puderam
fazer isto porque há genes em seus cromossomos que constroem corpos de tal forma
que, em um determinado ambiente, eles produzem confiavelmente o comportamento em
um adulto que leva à reprodução e ao cuidado com os filhos. A generosidade podia estar
nos genes.
Aqui está uma definição da palavra gene que não é nem uma unidade da
hereditariedade, nem uma unidade do metabolismo, nem uma unidade do
desenvolvimento, mas uma unidade da seleção. Para este fim, não importa muito de que
este “gene” é feito. Pode ser um par de genes reais, ou um vinte deles. Pode ser uma
série de genes agindo em seqüência. Pode ser uma rede de genes, regulada por uma
abundância de RNA. O que importa é que produz confiavelmente um determinado
efeito. Como diabos ele faz isso? Como pode haver um gene que diz, “Cuide de sua
prole!” na linguagem do DNA? E se este gene existe, como pode cuidar de si mesmo?
Todo o conceito — mais conhecido pela expressão de Richard Dawkins, “gene egoísta”
— pareceu quase mágico a muitas pessoas. Tão acostumadas estavam elas a pensar
teleologicamente que não conseguiram imaginar um gene se comportando
egoisticamente, a menos que tivesse a meta do egoísmo em mente. Os genes, afirmou
um crítico, são apenas receitas de proteínas; eles “não podem ser egoístas ou altruístas,
mais que os átomos podem ser ciumentos, elefantes abstratos ou biscoitos teleológicos”.
7
Mas esta foi simplesmente uma má incompreensão de Dawkins. Para os
sociobiólogos, como passaram a ser chamados, a questão era que a seleção natural podia
levar os genes a agir exatamente como se guiados por metas egoístas: era uma analogia,
mas uma analogia extraordinariamente útil. Aqueles cujos genes os levaram, ainda que
indiretamente, a serem bons com seus filhos deixam mais descendentes que os que não
o fizeram.
Agora é muito fácil formar uma ligação do gene de Watson-Crick com o gene de
Dawkins em casos reais. Aqui está um, um gene na extremidade norte do cromossomo
Y, chamado SRY. É um gene minúsculo, com apenas 612 letras em um só exon
(parágrafo) de texto — o máximo de simplicidade que um gene pode ter. Como unidade
de metabolismo de Watson-Crick, ele é traduzido em uma proteína de 204 aminoácidos
chamada fator de determinação do testículo. Como unidade de desenvolvimento de
Jacob-Monod, ele é ativado em partes do cérebro e apenas em outro tecido — os
testículos — por algumas horas, em geral no 11º dia depois da concepção (em
camundongos). Como pangene intercambiável de De Vries, ele é encontrado
praticamente da mesma forma em seres humanos e em camundongos, e em todos os
mamíferos, onde tem uma função semelhante — a masculinização do corpo. Como
unidade de doença de Garrod, ele é associado com várias formas de anormalidade
sexual, mais notavelmente pessoas com corpos femininos normais que possuem um
cromossomo Y, mas carecem de uma versão funcional deste gene, ou camundongos
com corpos masculinos normais que não têm o cromossomo Y, mas têm uma versão
funcional deste gene inserida neles por biólogos trapaceiros. Falando amplamente, tudo
de que um mamífero embrionário precisa para se tornar macho é carecer de uma versão
funcional do mesmo gene.
Para os leitores que gostam de saber como funcionam os motores de carros, o
SRY provavelmente realiza sua proeza de masculinização por uma ação muito simples:
ele ativa outro gene chamado SOX9. É tudo o que ele faz. Geneticamente, os seres
humanos machos ocasionalmente nascem com um de seus dois genes SOX9 não
funcionais, e a maioria deles desenvolve-se como mulher com um distúrbio esquelético
de nome displasia campomélica. O SRY parece ser o capitão do barco, ordenando
casualmente que o SOX9 leve o navio ao porto antes de se retirar para seu beliche. O
SOX9 faz todo o trabalho, ativando e desativando todo tipo de genes não só nos
testículos, mas também no cérebro — genes como o Lhx9, Wtl, Sf1, Dax1, Gata4,
Dmrtl, Amh, Wnt4 e Dhh. 8 Estes genes, por sua vez, ativam e desativam a produção de
hormônios, que alteram o desenvolvimento do corpo, o que por sua vez afeta a
expressão de outros genes. Muitos podem se mostrar sensíveis à experiência externa,
reagindo à dieta, ao ambiente social, ao aprendizado e à cultura, refratando o
desenvolvimento da masculinidade da pessoa. Mas ainda é verdade que, dada uma
criação tipicamente de classe média, todos os vastos detalhes da masculinidade,
expressos no ambiente moderno — de testículos à ousadia e à tendência a ficar no sofá
bebendo e zapeando com o controle remoto — partem de um único gene, o SRY.
Certamente não é absurdo chamá-lo de gene “para” a masculinidade.
Então você pode ver facilmente o SRY como um arquivo, uma receita, uma parte
intercambiável ou um doador de saúde da masculinidade — dependendo de qual das
cinco definições do século XX você prefere. Com a mesma facilidade, pode-se vê-lo
como uma unidade de seleção, um gene egoísta de Dawkins. Eis como. Um de seus
efeitos, inseparável da masculinidade, é uma probabilidade maior de que seu corpo
venha a assumir riscos, comporte-se violentamente e morra jovem. Assim que a
testosterona da masculinidade começa a agir no final da adolescência, a mortalidade
prematura dos homens aumenta inexoravelmente devido a muitos fatores: homicídio,
suicídio, acidentes e doença cardíaca. Isto é válido nas sociedades ocidentais — na
verdade, o abismo entre a mortalidade de homens e mulheres está aumentando. Das
principais causas de morre, somente o Alzheimer mata mais mulheres que homens. Mas
isto não é uma aberração da vida moderna; em algumas tribos amazônicas, mais da
metade dos homens é assassinada. A taxa média de morte violenta entre homens era
mais alta em sociedades caçadoras-coletoras do que na Alemanha arrasada pela guerra
no século XX. 9
Estes riscos fazem parte da bagagem do homem. Assumir riscos está na essência
masculina — embora possa ser temperado pela cultura, variado pela individualidade e
atenuado pela tecnologia. A seleção natural fora de moda de Darwin — a sobrevivência
dos indivíduos mais aptos — luta para explicar este fato. Um gene cuja conseqüência
seja uma mortalidade maior deve estar destinado à rápida extinção. O motivo não é
muito óbvio. Covardes avessos ao risco podem viver muito, mas não têm mais filhos. A
melhor maneira de se reproduzir, se você é homem, é assumir poucos riscos, empurrar
alguns outros homens para fora do caminho e impressionar algumas mulheres. Se você
tem sorte e nasceu na classe média da Califórnia, pode fazer tudo isso sem muita
probabilidade de morrer — pode deixar alguns egos feridos e derrubar algumas defesas,
mas provavelmente sobreviverá. Se você tem menos sorte e nasceu filho de um
guerreiro yanomâmi, então a melhor coisa a fazer para conseguir a imortalidade
genética é matar para não ser morto. Nessa sociedade, os homens que mataram outros
homens têm mais parceiras sexuais do que a média. 10 Seja o que for, não há dúvida de
que ser homem é ruim para a sobrevivência, e portanto não passa no teste da seleção
natural. A forma racional de resolver este dilema é ver o gene SRY através dos efeitos
colaterais de masculinização do corpo e do cérebro, cuidando de sua replicação em
gerações futuras à custa da sobrevivência do corpo que está ocupando.
Isto é seleção sexual, outra teoria muito negligenciada de Darwin, que insta não à
sobrevivência do mais apto, mas à reprodução do mais apto. Darwin considerava-a tão
importante quanto a seleção natural, talvez mais ainda no caso dos seres humanos, mas
a seleção sexual passou a maior parte do século XX no exílio científico. Em sua forma
atual, refinada por pessoas como Amotz Zahavi e Geoffrey Miller, a teoria da seleção
sexual sugere que o ato de assumir riscos de muitos machos animais é uma manobra
inconsciente dos genes das fêmeas para expor os genes dos machos à prova de fogo, de
forma que ela possa se assegurar de selecionar os melhores genes para sua
descendência. (Em algumas espécies acontece o contrário.) Mesmo que ela observe
passivamente os machos lutando por ela, como fazem as focas e gorilas, ela, ao acasalar
com o vencedor, automaticamente seleciona os genes da luta para as gerações futuras.
Esta seleção sexual pode reproduzir qualquer tipo de macho, de um valentão selvagem a
um almofadinha imprestável ou um macho gentil e cuidadoso, e pode agir sobre a fêmea
também, se exercitada pelo macho. Em espécies socialmente monogâmicas como os
papagaios, os dois sexos têm cores brilhantes para impressionar um ao outro. Na espécie
humana, comparada a outros antropomorfos, há claramente algum grau de seleção
masculina por exibir juventude, saúde, beleza e fidelidade entre as fêmeas, enquanto há
alguma seleção feminina por exibir dominância, saúde, força e fidelidade entre os
machos.
Uma pavoa que escolhe o macho com a cauda maior e mais ornamental está
garantindo inconscientemente que o próprio fato de desenvolver uma cauda
extravagante é um teste que revelará a qualidade dos genes do macho. Quanto mais
fêmeas expressam esta preferência, mais machos herdarão a capacidade de desenvolver
as maiores caudas que puderem. Colocando isto em termos empresariais, os genes do
pavão não podem se contentar em produzir um bom corpo; eles devem divulgá-lo.
Como uma empresa de pasta de dentes, eles têm de investir muito no orçamento de
publicidade: a cauda. Como um orçamento de publicidade, a cauda parece um luxo
dispendioso, mas é essencial. Tais ornamentos e rituais são, como os slogans
publicitários, sinais que tentam ser fraudulentos (será que fazer uma boa pasta de dentes
realmente melhora sua confiança?), mas ajuda as fêmeas a discriminar honestamente a
qualidade genética que está em oferta no mercado do acasalamento
Então Miller afirma que não é coincidência que muitos talentos humanos — de
contar histórias à arte, de discos de jazz à coragem nos esportes e à generosidade e ao
assassinato — tendem a ser exibidos com maior vigor por homens jovens na época da
seleção de parceiros. Miller assinala que os seres humanos dedicam quantidades
ridículas de tempo a práticas culturais que só raras vezes podem melhorar a
sobrevivência: arte, dança, contar histórias, humor, música, mitos, ritual, religião,
ideologia. Todavia tudo isso faz sentido porque aumenta o sucesso reprodutivo, a
sobrevivência genética, e não a individual. 11
Serão os genes unidades do instinto? O conceito percorreu um longo caminho
desde as partículas da hereditariedade de Mendel. A confusão entre muitas concepções
diferentes do gene tem atormentado o debate natureza-criação. Você não encontrará
“divulgar a qualidade masculina para as fêmeas” escrito no gene SRY, como não
encontrará “divulgar a riqueza do macho” escrito no manual de instruções de uma
Ferrari, mas isso não significa que não possa ser uma interpretação valida da função de
cada uma destas coisas. As Ferraris podem ser exemplos primorosos de engenharia, ao
mesmo tempo que podem ser ornamentos sexuais, e o mesmo é válido para os genes.
ENTRA A POLÍTICA
Os autores desta frase, dois outros acadêmicos de Harvard, John Tooby e Leda
Cosmides, fugindo de tal segurança, tentaram uma reforma da sociobiologia a partir de
1992. Eles afirmaram que o comportamento expresso de um ser humano não precisa
estar diretamente ligado aos genes, mas os mecanismos psicológicos subjacentes podem
ser. Assim, para usar um exemplo simples, a busca por “genes para a guerra” está
fadada a fracassar, mas a insistência dogmática contrária de que a guerra é o mero
produto da cultura escrita na tabula rasa de cérebros impressionáveis é igualmente tola.
Pode bem haver mecanismos psicológicos na mente, colocados ali por seleção natural,
agindo no passado sobre conjuntos de genes, que predispõem a maioria das pessoas a
reagir a algumas circunstâncias de forma belicosa. Tooby e Cosmides chamaram isto de
psicologia da evolução. Foi uma tentativa de fundir o melhor do nativismo de Chomsky
— a idéia de que a mente não pode aprender a não ser que tenha rudimentos de
conhecimento inato — com o melhor do selecionismo da sociobiologia: a forma de
compreender uma parte da mente é entender o que a seleção natural planejou que ela
fizesse.
Para Tooby e Cosmides, é todo o programa do desenvolvimento que evolui, o
programa para criar um olho, um pé, um rim ou um órgão da linguagem no cérebro.
Cada programa requer a integração bem-sucedida de centenas, talvez milhares de genes
(muitos deles pangenes usados também em outros sistemas), e a presença de sugestões
ambientais esperadas. É uma mistura sutil de natureza e criação que cautelosamente
evita colocar as duas em campos opostos:
A cada vez que um gene é selecionado em detrimento de outro, um projeto de um programa de
desenvolvimento é selecionado em detrimento de outro também; em virtude de sua estrutura, este
programa desenvolvimental interage com alguns aspectos do ambiente em vez de outros,
produzindo certas características ambientais casualmente relevantes para o desenvolvimento (...).
Assim, os genes e o ambiente relevante para o desenvolvimento são o produto da seleção natural.
19
A principal queixa que Tooby e Cosmides têm contra as ciências sociais é seu desejo de
se isolar de outros níveis de explicação (para lamento do reducionista!). Durkheim
notoriamente declarou: “A cada vez que um fenômeno social é diretamente explicado
por um fenômeno psicológico, podemos ter certeza de que a explicação é falsa (...). A
causa determinante de um fato social deve ser procurada entre os fatos sociais que o
precedem e não entre os estados de consciência individual.” 22 Em outras palavras, ele
rejeitava completamente o reducionismo. Mas outras ciências têm conseguido integrar
níveis “inferiores” de explicação sem perder nada. A psicologia usa a biologia, que usa
a química, que usa a física. Tooby e Cosmides queriam reinventar a psicologia de uma
forma que usasse os genes não como deterministas implacáveis de uma natureza
humana inevitável mas como dispositivos sutis projetados por seleção ancestral para
obter experiência do mundo.
A beleza do gene de Tooby-Cosmides, para mim, é exatamente esta. Ele integra
todas as outras seis definições e acrescenta uma sétima. É um gene dawkinista com
personalidade (em sua dependência de transmitir o teste de sobrevivência através de
gerações); um arquivo mendeliano (inscrito com a sabedoria derivada de milhões de
anos de ajuste evolutivo); uma receita de Watson-Crick (conseguindo seus efeitos
através da criação de proteínas por meio do RNA); um dispositivo do desenvolvimento
de Jacob-Monod (expressando- se somente em tecidos precisamente especificados); um
doador de saúde de Garrod (garantindo um resultado desenvolvimental saudável no
ambiente esperado); e um pangene de De Vries (reutilizado em muitos programas de
desenvolvimento diferentes na mesma espécie e em outras). Mas é também algo mais. É
um dispositivo para obter informação do ambiente.
O SRY, o gene masculinizante no cromossomo Y, à primeira vista pode parecer
um determinista genético do tipo que envaidece os cientistas sociais. Sugeri que ele
coloca em movimento a seqüência de acontecimentos que (em geral) leva a homens
sentando-se em sofás bebendo cerveja e assistindo futebol enquanto as mulheres fazem
compras e fofocam. Mas parece ser também o servo definitivo da criação. Sua tarefa,
objetivo e desejo na vida — com a ajuda de centenas de genes abaixo dele — é obter
certos tipos de informação da educação e do ambiente de seu organismo e senhor. Ele
obtém o alimento necessário para desenvolver um corpo masculino, as pistas sociais
necessárias para desenvolver uma psique masculina, as dicas de gênero necessárias para
desenvolver uma preferência sexual masculina, até a tecnologia necessária para
expressar uma personalidade masculina no mundo moderno (armas de brinquedo,
digamos, ou controles remotos). Ele — ou melhor, o programa de desenvolvimento que
inicia — pode ser dirigido e ajustado por mudanças no ambiente ao longo do caminho.
Pegue um bebê da Europa medieval e o transporte no tempo para ser criado na
Califórnia atual, e posso apostar que sua mente ficará fascinada com armas de fogo e
carros em vez de espadas e cavalos. O SRY nada mais é que um extrator da criação
glorificado.
Aqui, novamente, está a mensagem do autor deste livro. Os genes são
deterministazinhos implacáveis, agitando mensagens completamente previsíveis. Mas
por causa da forma como seus promotores ativam e desativam em resposta a instruções
externas, os genes estão muito longe de terem ações fixas. Em vez disso, eles são
dispositivos para obter informação do ambiente. A cada minuto, a cada segundo, muda
o padrão de genes que é expresso em seu cérebro, com freqüência em resposta direta ou
indireta a acontecimentos fora de seu corpo. Os genes são os mecanismos da
experiência.
CAPÍTULO DEZ
Por que combater o Deus, a Liberdade e a imortalidade de Kant quando é apenas uma questão de
tempo até que a neurociência, provavelmente por varredura eletrônica do cérebro, revele o
verdadeiro mecanismo físico que fabrica estes construtos mentais, estas ilusões?
Tom Wolfe 1
MORAL Nº 2: OS PAIS
Aqui está outra. Em 1960, uma estudante de pós-graduação em Harvard recebeu uma
carta de George A. Miller, chefe do departamento de psicologia, dispensando-a do
Ph.D. porque ela não estava à altura do programa. Lembre-se do nome. Muito tempo
depois, presa em casa com problemas de saúde crônicos, Judith Rich Harris começou a
escrever livros de psicologia, livros em que ela acuradamente substituía o paradigma
dominante da psicologia — de que a personalidade e muitas outras coisas eram
adquiridas do ambiente. Então, 35 anos depois de ter deixado Harvard, como uma avó
desempregada, tendo acidentalmente escapado da doutrinação acadêmica, ela se sentou
e escreveu um artigo, que submeteu à prestigiosa Psychological Review. Foi publicado
com uma aclamação sensacional. Ela foi inundada de perguntas de curiosos, como quem
era ela. Em 1997, somente com a força do artigo, ela recebeu um dos maiores prêmios
da psicologia: o prêmio George A. Miller. 3
As primeiras palavras do artigo de Harris eram:
Será que os pais têm algum efeito importante de longo prazo sobre o desenvolvimento da
personalidade de seus filhos? Este artigo examina as evidências e conclui que a resposta é não. 4
MORAL Nº 3: OS COLEGAS
Com isto, Smith garantiu o apoio de Emile Durkheim, que considerava a divisão do
trabalho não só a fonte de harmonia social, mas também o fundamento da ordem moral:
Mas se a divisão de trabalho produz a solidariedade, não é só porque torna cada indivíduo um
cambista, como dizem os economistas é porque ele cria entre os homens todo um sistema de
direitos e deveres que os liga de uma forma durável. 14
MORAL Nº 4: A MERITOCRACIA
MORAL N° 5: A RAÇA
MORAL Nº 6: A INDIVIDUALIDADE
Eu odiaria deixar o leitor se sentindo tão à vontade. A descoberta e a dissecação da
individualidade genética não tornará a vida dos políticos mais fácil. Antigamente a
ignorância era uma bênção; agora, eles olham para o passado, nostalgicamente, para a
época em que podiam tratar a todos da mesma forma. Em 2002, esta inocência foi
perdida para sempre com a publicação de um estudo extraordinário de 400 homens
jovens.
Todos nasceram nos anos de 1972-73 na cidade de Dunedin, na Ilha Sul da Nova
Zelândia. Os que nasceram naquele lugar e naquela época foram escolhidos para ser
estudados a intervalos regulares à medida que chegavam à idade adulta. Das 1.037
pessoas do grupo, Terrie Moffitt e Avshalom Caspi selecionaram 442 rapazes que
tinham os quatro avôs brancos. Estas crianças — todas brancas e com pouca variação de
classe ou riqueza — incluíam 8% que foram severamente maltratados entre as idades de
três e onze anos, e 28% que provavelmente foram maltratados de alguma forma. Como
era esperado, muitas das crianças maltratadas tinham se tornado violentas ou
criminosas, tendo problemas na escola ou com a lei, e mostravam disposições anti-
sociais e violentas. De acordo com a perspectiva natureza versus criação, seria
necessário ver se era por causa do tratamento que eles receberam de seus pais abusivos
ou dos genes que receberam daqueles pais. Mas Moffitt e Caspi estavam interessados na
abordagem natureza via criação. Eles testaram os meninos em busca de diferenças em
um gene especifico chamado monoamina oxidase A, ou MAOA, e depois compararam-
nos com a criação.
Na extremidade superior do gene MAOA está um promotor com uma frase de
trinta letras repetida 3, 3,5, 4 ou 5 vezes. Os genes com as versões de 3 e 5 repetições
são muito menos ativos que aqueles com 3,5 ou 4 repetições. Então Moffitt e Caspi
dividiram os garotos em alta atividade do gene MAOA e baixa atividade deste gene.
Notavelmente, aqueles com genes MAOA muito ativos eram praticamente imunes ao
efeito dos maus-tratos. Eles não criavam problemas, mesmo que tivessem sido muito
maltratados quando garotos. Aqueles com genes de baixa atividade eram muito mais
anti-sociais se maltratados, e ligeiramente menos anti-sociais do que a média se não
maltratados. Os homens maltratados, com baixa atividade do gene, tiveram uma quota
quatro vezes maior de estupros, roubos e assaltos.
Em outras palavras, parece que não é o bastante ter sofrido maus-tratos, você deve
também ter o gene de baixa atividade; ou não é suficiente ter o gene de baixa atividade,
você deve ter sido maltratado. O envolvimento do gene MAOA não é uma grande
surpresa. Desativar o gene em um camundongo causa o comportamento agressivo, e
restaurá-lo reduz a agressividade. Em uma grande família holandesa com uma história
de criminalidade por várias gerações, descobriu-se que o gene MAOA era
completamente defeituoso nos membros criminosos da família e não em seus parentes
que respeitavam a lei. Mas esta mutação é muito rara, e não pode explicar tanto o crime.
As mutações de baixa atividade, dependentes da criação, são muito mais comuns (cerca
de 37% dos homens).
O gene MAOA está no cromossomo X, do qual os homens têm somente uma
cópia. As mulheres, tendo duas cópias, são correspondentemente menos vulneráveis ao
efeito do gene de baixa atividade, porque a maioria delas possui pelo menos uma versão
do gene de alta atividade também. Mas 12% das garotas do grupo da Nova Zelândia
tinham os dois genes de baixa atividade, e significativa mente foram diagnosticadas
com distúrbio de conduta quando adolescentes — se maltratadas quando novas.
Moffitt assinala que reduzir os maus-tratos infantis é uma meta válida, quer isto afete a
personalidade adulta ou não, assim, ela não vê implicações políticas no trabalho. Mas
não é preciso muito para imaginar resultados como este abrindo as portas para uma
intervenção melhor na vida de jovens problemáticos. Deixa claro que um genótipo
“ruim” não é uma sentença; também é necessário um ambiente ruim. Da mesma forma,
um ambiente “ruim” não é uma sentença; é necessário um genótipo “ruim”. Para a
maioria das pessoas, portanto, a notícia é libertadora. Mas para uns poucos ela parece
bater a porta da prisão do destino. Imagine que você é um jovem resgatado tarde demais
de uma família abusiva pela assistência social. Basta um pequeno exame diagnóstico,
do tamanho do promotor deste gene, que permitirá a um médico prever, com alguma
confiança, se há probabilidade de que você venha a ser anti-social e criminoso. Como
você, seu médico, seu assistente social e seu representante eleito lidarão com esta
informação? Ë bem provável de que a terapia pela fala seja inútil, mas que uma droga
que altere sua neuroquímica mental não seja: muitas drogas para problemas mentais
alteram a atividade da monoamina oxidase. Assim, a droga pode ser perigosa, ou falhar
completamente. Os políticos estão tendo de decidir quem deve ter o poder de autorizar
tal exame e tal tratamento, no interesse não só do indivíduo, mas de suas futuras vítimas
em potencial. Agora que a ciência sabe a ligação entre gene e ambiente, a ignorância
não é mais moralmente neutra. Será mais ético insistir que todas as pessoas vulneráveis
façam tal exame, para poupá-las de prisões futuras, ou que o exame não seja oferecido a
ninguém? Bem-vindo ao primeiro dos muitos dilemas prometéicos do novo século.
Moffitt já encontrou outro exemplo de uma mutação genética no sistema da serotonina
que responde a fatores ambientais. Espere e verá. 18
Moral: A política social deve adaptar-se a um mundo em que todos são diferentes.
MORAL Nº 7: O LIVRE-ARBÍTRIO
Mais de um século depois, ainda é assim. Apesar de todos os esforços dos filósofos para
inculcar no mundo a idéia de que o livre-arbítrio não é nem uma ilusão nem uma
impossibilidade, o homem e a mulher comuns estão, para todos os fins, presos ao que
existia antes. Eles podem ver o enigma com bastante facilidade, mas não podem ver a
solução. Na medida em que a ciência postula uma causa do comportamento de alguém,
parece inevitavelmente descartar a liberdade de auto-expressão. Todavia esse alguém
acha que é livre para escolher sua próxima ação, e neste caso seu comportamento é
imprevisível. O comportamento tem uma causa, então não é livre. Para todos os fins
práticos, os filósofos fracassaram em resolver este problema de uma forma que possam
explicar ao mortal comum. Spinoza disse que a única diferença entre um ser humano e
uma pedra rolando colina abaixo é que o ser humano pensa que está no comando de seu
próprio destino. Grande ajuda. Kant pensava ser inevitável que a razão pura se enrede
em contradições insolúveis quando tenta compreender a causalidade, e que a saída está
em postular dois mundos diferentes, um regido pelas leis da natureza, outro por agentes
inteligíveis. Locke achava um absurdo perguntar “se a vontade de um homem é livre
para perguntar se seu sono é imediato ou se sua virtude é honesta”. Hume disse que ou
nossas ações são determinadas, e neste caso não há nada que possamos fazer a respeito
disso; ou nossas ações são aleatórias, e neste caso não há nada que possamos fazer a
respeito. Ficou claro? 20
Espero ter feito o suficiente neste livro para convencer você de que apelar para a
criação não é uma saída para o dilema do determinismo. Se a personalidade é criada
pelos pais, colegas ou pela sociedade, então ainda é determinada; ela não é livre, O
filósofo Henrik Walter assinala que um animal determinado 99% pelos genes e 1% por
sua própria vontade tem mais liberdade que outro determinado 1% pelos genes e 99%
pela criação. Espero, também, ter feito o bastante para convencê-lo de que a natureza,
na forma de genes que influenciam o comportamento, não é uma ameaça especial ou
peculiar ao livre-arbítrio. De certa forma, as notícias de que seus genes são importantes
contribuintes para sua personalidade devem ser tranqüilizadoras: a própria
impenetrabilidade da natureza humana individual a influências externas proporciona
uma proteção contra a lavagem cerebral. Pelo menos você é determinado por suas
próprias forças intrínsecas em vez das forças de outra pessoa. Como afirma Isaiah
Berlin, na forma de um catecismo:
Desejo que minha vida e minhas decisões dependam de mim, e não de forças externas de qualquer
tipo. Desejo ser o instrumento de minha própria vontade, e não da vontade de outros homens.
Desejo ser o sujeito, não o objeto. 21
Os genes são apenas outra desculpa a ser acrescentada à lista. Além disso, como
assinalou Steven Pinker, desculpar criminosos com base na responsabilidade atenuada
nada tem a ver com decidir se ele tinha livre-arbítrio para escolher se comportar como
se comportou; é apenas uma questão de como evitar que ele aja desta forma novamente.
Mas, para mim, a principal razão para que a defesa do gene ainda seja uma raridade é
que é uma defesa inútil. Ao tentar provar que o criminoso não é culpado, dificilmente é
provável que um criminoso que admite uma inclinação natural para o crime vença nos
tribunais. E quando é sentenciado, se ele afirma que é de sua natureza matar, é
improvável que convença o juiz a deixá-lo livre para matar novamente. A única razão
para usar a defesa do gene seria evitar a pena de morte depois de admitir a culpa. O
primeiro caso em que uma defesa genética foi usada foi o de um assassino de Atlanta,
Stephen Mobley, apelando contra a pena de morte.
Estou agora prestes a tentar uma coisa muito mais ambiciosa: convencê-lo, como
James não conseguiu, de que a liberdade de arbítrio é verdadeira — apesar da natureza e
apesar da criação. Isto não é depreciar os grandes filósofos. O livre-arbítrio era, acredito
eu, um problema genuinamente insolúvel até as descobertas empíricas recentes, assim
como a natureza da vida era um problema genuinamente insolúvel até a descoberta da
estrutura do DNA. É possível que o problema não se resolva só com o pensamento.
Provavelmente ainda é prematuro atacar o livre-arbítrio até que entendamos melhor o
cérebro, mas acredito que agora podemos vislumbrar o começo de uma solução por
causa de nossa compreensão do que os genes fazem em um cérebro funcional.
Aqui está. Meu ponto de partida é o trabalho de Walter Freeman, um
neurocientista californiano visionário. Ele afirma:
A negação do livre-arbítrio, então, provém de se considerar o cérebro incrustado em uma cadeia
causal linear (...). O livre-arbítrio e o determinismo universal são arcas irreconciliáveis para as
quais leva a causalidade linear. 23
A palavra-chave é linear, pela qual Freeman essencialmente quer dizer de uma via. A
gravidade influencia uma bola de canhão em queda, mas não o contrário. Atribuir toda
ação à causalidade linear é um hábito no qual a mente humana é peculiarmente viciada.
É a origem de muitos equívocos. Não estou tão preocupado com o erro de atribuir causa
onde não existe nada, como na crença de que o trovão é a martelada de Tor, ou na busca
pela culpa por acontecimentos acidentais e a obsessão determinista com os horóscopos.
Minha preocupação aqui é com outro tipo de erro: a crença em que o comportamento
intencional deve ter uma causa linear. Isto é simplesmente uma ilusão, uma miragem
mental, um instinto falho. É um instinto muito útil, como é útil a ilusão de que uma
imagem bidimensional em uma tela de televisão é realmente uma cena tridimensional.
A seleção natural deu à mente humana a capacidade de detectar a intencionalidade em
terceiros, para prever melhor seus atos. Gostamos da metáfora de causa e efeito como
uma forma de compreender a vontade. Mas é uma ilusão, da mesma forma. A causa do
comportamento está em um sistema circular, não linear.
Isto não é negar a vontade. A capacidade de agir intencionalmente é um fenômeno
real, e pode ser localizada no cérebro. Está no sistema límbico, como demonstra o
seguinte experimento simples: um animal com qualquer parte de seu prosencéfalo
cortada perderá uma função específica. Ele será cego, surdo ou paralítico. Mas ainda
será inegavelmente intencional. Um animal com seu sistema límbico na base do cérebro
remando ainda é perfeitamente capaz de ouvir, ver e se movimentar. Se alimentado, ele
engolirá. Mas não dá início a nenhuma ação. Ele perdeu sua vontade.
Certa vez William James escreveu sobre estar deitado na cama pela manhã
dizendo a si mesmo para se levantar. Em princípio, nada aconteceu; depois, sem
perceber exatamente como ou quando, ele se viu se erguendo. Ele suspeitou de que a
consciência estava de alguma forma relatando os efeitos da vontade, mas não era a
vontade própria. Uma vez que o sistema límbico é, aproximadamente falando, uma área
inconsciente, isto faz sentido. A decisão de fazer alguma coisa é tomada por seu cérebro
antes que você tenha consciência dela. Os experimentos controversos de Benjamin Libet
com epiléticos conscientes parecem apoiar esta idéia. Libet estimulou o cérebro de
epiléticos enquanto estes estavam sob anestésicos locais. Ao estimular a área do lado
esquerdo do cérebro, que recebe informação sensorial da mão direita, ele pôde fazer
com que os pacientes percebessem conscientemente um toque na mão direita, mas
somente com meio segundo de atraso. Depois, ao estimular a própria mão esquerda, ele
pôde conseguir o mesmo resultado, além de uma resposta imediata e inconsciente na
parte apropriada do cérebro direito, que tinha recebido seu estímulo da mão por um
nervo mais direto e mais rápido. Aparentemente, o cérebro pode receber e começar a
agir com base na sensação em tempo real, antes do inevitável atraso necessário para
processar a sensação na consciência. Isto sugere que a vontade é inconsciente.
Para Freeman, a alternativa à causalidade linear é a causalidade circular, em que
um efeito influencia sua própria causa. Isto elimina a iniciativa da ação, porque um
círculo não tem início. Imagine um bando de pássaros voando em círculos junto a uma
praia. Cada pássaro é um indivíduo tomando suas próprias decisões. Não existe um
líder. Todavia, eles parecem se voltar em uníssono, como se estivessem ligados uns aos
outros. Qual é a causa de cada giro? Coloque-se no lugar de um pássaro. Você gira para
a esquerda, o que leva seu vizinho a se inclinar para a esquerda quase imediatamente.
Mas você virou porque outro vizinho virou, e ele virou porque pensou que você
estivesse virando antes que você o fizesse. Desta vez, a pequena manobra some aos
poucos, porque os três corrigem seu rumo ao ver o que o resto do bando está fazendo,
mas da vez seguinte talvez todo o bando pegue o hábito e desvie para a esquerda. A
questão é que você procurará em vão por uma seqüência linear de causa e feito, porque
a causa primeira (você se virando) é depois drasticamente influenciada pelo efeito (o
vizinho se virando). É possível ainda que as causas somente progridam, mas elas podem
então influenciar a si mesmas. Os seres humanos são tão obcecados por causas lineares
que acham quase impossível escapar do hábito. Inventamos mitos absurdos, como o
bater de asas de uma borboleta dando início a um furacão, em uma vã tentativa de
preservar a causalidade linear em tais sistemas.
Freeman não é o único a defender a causalidade não-linear como a origem do
livre-arbítrio. O filósofo alemão Henrik Walter acredita que todo ideal de livre-arbítrio é
genuinamente uma ilusão, mas que as pessoas possuem uma forma menor dele, que ele
chama anatomia natural e que deriva dos ciclos de feedback no cérebro, onde os
resultados de um processo tornam-se as condições iniciais do seguinte. Os neurônios no
cérebro estão ouvindo seus recipientes antes mesmo que tenham terminado de mandar
as mensagens. A resposta altera a mensagem que eles mandam, o que por sua vez altera
a resposta e assim por diante. Esta idéia é fundamental para muitas teorias da
consciência. 24 Agora tente imaginar isto em um sistema paralelo com muitos milhares
de neurônios se comunicando de uma só vez. Você não encontrará o caos, assim como
não encontrará caos no bando de pássaros, mas verá transições súbitas de um padrão
dominante para outro. Você está deitado desperto na cama e o cérebro está correndo
livre de uma idéia a outra desta forma agradável. Cada idéia surge espontaneamente, por
causa de suas associações com a última, à medida que um novo padrão de atividade
neuronal vem a dominar a consciência; então subitamente um padrão sensorial intervém
— o despertador. Outro padrão assume o controle (Tenho de levantar), depois outro
(Talvez mais uns minutinhos). Depois, antes que você saiba, é tomada uma decisão em
algum lugar no cérebro, e você fica consciente de que está se levantando. É um ato
inteiramente da vontade, mas é de certa forma determinado pelo despertador. Tentar
encontrar a causa primeira do momento real de levantar-se seria impossível, porque está
enterrada em um processo circular em que os pensamentos e experiências alimentam-se
mutuamente.
Até os próprios genes estão impregnados de causalidade circular. De longe, a
descoberta mais importante dos últimos anos na ciência do cérebro é a de que os genes
estão à mercê das ações e vice-versa. Os genes CREB, que regem o aprendizado e a
memória, não são apenas a causa do comportamento; eles são também a conseqüência.
Eles são dentes de engrenagem respondendo à experiência enquanto é mediada pelos
sentidos. Seus promotores são projetados para serem ativados e desativados pelos
acontecimentos. E quais são seus produtos? Os fatores de transcrição dispositivos para
ativar os promotores de outros genes. Esses genes alteram as conexões sinápticas entre
os neurônios; isto, por sua vez, altera o circuito neuronal, que por sua vez altera a
expressão dos genes CREB por absorver experiência exterior, e assim gira o círculo.
Isto é memória, mas outros sistemas no cérebro se mostrarão igualmente circulares. Os
sentidos, a memória e a ação influenciam-se mutuamente através de mecanismos
genéticos. Os genes não são apenas unidades de hereditariedade — esta descrição falha
completamente em tentar compreendê-los. Eles são mecanismos primorosos para
traduzir experiência em ação. 25
Não posso fingir que dei uma descrição refinada do livre-arbítrio, porque não
acho que exista alguma. Ele é a soma e o produto de influências circulares com redes
variáveis de neurônios, imanente em um relacionamento circular entre os genes. Nas
palavras de Freeman, “cada um de nós é uma fonte de significado, um manancial para o
fluxo de construções novas em nossos cérebros e corpos”.
Não há um “eu” dentro de meu cérebro; há somente um conjunto de estados
cerebrais em eterna transformação, uma destilação de história, emoção, instinto,
experiência e a influência de outras pessoas — para não falar no acaso.
Moral: O livre-arbítrio é inteiramente compatível com um cérebro
primorosamente pré-especificado pelos genes e regido por eles.
EPÍLOGO
Homo Stramineus —
O Homem Insignificante
Os mortos não contam histórias, e se houvesse qualquer tribo de outro tipo além desse, ela não
teria sobreviventes. Nossos ancestrais criaram a belicosidade em nossos ossos e medula, e milhares
de anos de paz não tirarão isso de nós.
William James 1
Doze barbudos posaram para minha foto imaginária em 1903. Se eles tivessem se
conhecido, duvido que teriam se gostado muito. O abrasivo Watson, o dogmático Freud,
o indeciso James, o pedante Pavlov, o arrogante Galton, o arrojado Boas — suas
personalidades (inatas?) eram díspares demais, sua formação cultural (adquirida?)
diversa demais e seus pêlos teriam se emaranhado.
Suponho que talvez eles pudessem ter arrumado a bagunça no início e evitado um
século de controvérsias sobre natureza e criação. Eles podiam ter concedido a Darwin,
James e Galton o caráter inato da personalidade; a De Vries a natureza particulada da
herança; a Kraepelin, Freud e Lorenz um papel para a experiência inicial na formação
da psique; a Piaget a importância dos estágios de desenvolvimento; a Pavlov e Watson o
poder do aprendizado para remodelar a mente adulta; a Boas e Durkheim o poder
astronômico da cultura e da sociedade. Todas estas coisas podiam ser verdade ao
mesmo tempo, diriam eles. O aprendizado podia não acontecer sem uma capacidade
inata de aprender. O inato pode não ser expresso sem a experiência. A verdade de cada
idéia não é prova da falsidade das outras.
É possível, mas não provável. Mesmo que tivessem conseguido esta — para os
filósofos — proezas sobre-humanas, não consigo vê-los impondo o pacto àqueles que os
seguiam. As hostilidades teriam aparecido com bastante rapidez entre os partidários de
diferentes teorias: é da natureza humana. Parece haver alguma coisa quase inevitável na
divisão da psicologia humana em natureza e criação. Talvez, como sugeriu Sarah Hrdy,
a dicotomia seja ela mesma um instinto — presente nos genes. Em vez de um progresso
majestoso para o esclarecimento, o século XX tornou-se um choque de idéias, uma
guerra dos cem anos entre as forças da natureza e as forças da criação. A antropologia
foi seu Flandres, Harvard seu Manassas, a Rússia sua Rússia. Era difícil continuar
neutro; aqueles que mantinham o respeito por ambos os lados, como John Maynard
Smith e Pat Bateson, descobriram que era duro prosseguir. Muita gente resvalou na
falsa equação de que provar uma proposição correta era provar que outra estava errada
— que o sucesso da natureza só podia significar a derrota da criação, ou vice-versa. Até
quando repetiam o chavão, “É claro que são as duas coisas”, muitos não conseguiam
resistir à tentação de vê-lo como um impasse, uma batalha. Espero ter mostrado neste
livro como isto é errado. Espero ter mostrado que, quanto mais você descobre genes que
influenciam o comportamento, mais descobre que eles funcionam através da criação, e
quanto mais você descobre que os animais aprendem, mais descobre que o aprendizado
funciona através dos genes.
Estranhamente, até os guerreiros mais ferozes da guerra dos cem anos sabiam
disso. As citações seguintes são todas de veteranos daquelas guerras. Será que você
pode dizer de que lado eles estavam?
[Vejo] os seres humanos como organismos dinâmicos e criativos para quem a oportunidade de
aprender e experimentar novos ambientes amplifica o efeito do genótipo sobre o fenótipo. 2
Cada pessoa é moldada por uma interação de seu ambiente, especialmente seu ambiente cultural,
com os genes que afetam o comportamento social. 3
Na medida em que qualquer aspecto da vida pode ser atribuído aos ‘genes”, nossos genes
proporcionam a capacidade tanto para a especificidade — uma corda salva-vidas relativamente
inacessível para o amortecedor do desenvolvimento e do ambiente — e a plasticidade — a
capacidade de reagir adequadamente à contingência ambiental imprevisível. 6
Se somos programados para ser o que somos, então estas características são inelutáveis. Podemos,
na melhor das hipóteses, canalizá-las, mas não podemos mudá-las seja pela vontade, seja pela
educação ou pela cultura. 7
Os genes de um organismo, na medida em que influenciam o que o organismo faz, em seu
comportamento, psicologia e morfologia, estão ao mesmo tempo ajudando a construir um
ambiente. 8
AGRADECIMENTOS
NOTAS
1. Ato 3,cena4.
2. Keynes, R. D. (org.). 1988. Charles Darwin’s Beagle Diary. Cambridge University
Press.
3. Ibid.
4. Keynes, R. D. 2001. Annie’s Box. 4th Estate.
5. Citado em Degler, C. N. 1991. In Search ofHuman Nature. Oxford University Press.
6. Citado em Midgely, M. 1978. Beast and Man. Routledge.
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correspondência por e-maiL
34. Há alguma confusão com a terminologia aqui. Alguns biólogos usam “promotor”
para indicar o local onde a enzima RNA polimerase se liga depois de ser recrutada
por um fator de transcrição. Eu o uso neste livro no sentido mais amplo, indicando
toda a seqüência regulatória do gene.
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43. Citado no New York Times, 24 de setembro de 2002.
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1. Essay on Human Understandíng, 1692. Que somente mostra que Locke não era o
defensor cego da tabula rasa que com freqüência parecia ser.
2. Kuper, A. 1999. Culture: the Anthropologists’Account. Harvard University Press.
3. Muller-White, L. 1998. Franz Boas among the Inuit of Baifin Island, 1883-1884: Letters
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4. Citado em Degler, C. N. 1991. In Search of Human Nai-ure. Oxford
University Press.
5. Ibid.
6. Ver New York Times, 8 de outubro de 2002, p. F3. Também: Sparks, C. 5. e Jantz, R. L.
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