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ISSN 0104-8694
SUMÁRIO
ARTIGOS
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de 05
Aristóteles
Nazareno Eduardo de Almeida
TRADUÇÕES
A Existência de Deus, de Richard Swinburne 271
Tradução de Edrisi Fernandes
RESENHAS
Ética, bioética: diálogos interdisciplinares, de Antônio Basílio N. 315
Thomaz de Menezes (Org.).
Glenn W. Erickson
Resumo: Este artigo mostra que o princípio primário da ciência do ente enquanto
ente, apresentado e defendido por Aristóteles no Livro IV da Metafísica, é
constituído pela bi-implicação necessária (modal) entre os princípios de não-
contradição e do terceiro excluído, e não somente, como na interpretação
tradicional, pelo primeiro destes princípios. Tal é mostrado através de uma
interpretação de uma parte do capítulo 3 e, em especial, de três partes do capítulo 4
deste escrito, onde Aristóteles desenvolve o que chamou “demonstração refutativa”,
que consiste na demonstração indireta do princípio primário por meio da refutação
da tese que nega (de modo forte) este mesmo princípio. A interpretação apresentada
no artigo mostra que neste procedimento lógico Aristóteles está defendendo tanto o
princípio de não-contradição quanto o princípio do terceiro excluído, assumindo
ambos como formulações equivalentes do princípio primário da ciência do ser
enquanto ser.
Palavras-chave: Aristóteles, Metafísica, Não-contradição, Princípios, Verdade,
Terceiro excluído
Abstract: This article shows that the primary principle of the science of being as
being, presented and defended by Aristotle in the Book IV of Metaphysics, is
constituted by the necessary (modal) bi-conditional between the principles of non-
contradiction and of third excluded, and not only, as in the traditional interpretation,
by the former of these principles. Such is showed through a interpretation of one
part of the chapter 3 and, specially, of three parts of the chapter 4 of this writing,
where Aristotle is developing what he has called “demonstration by refutation”,
which consists of indirect demonstration of the primary principle by means of
refutation of the thesis that deny (in a strong way) this same principle. The
interpretation presented in the article shows that on this logical procedure Aristotle
is defending the principle of non-contradiction as far as the principle of third
excluded, assuming both as equivalent formulations of the primary principle of the
science of being as being.
Keywords: Aristotle, Metaphysics, Non-contradiction, Principles, Truth, Third
excluded
*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso
(UFMT). E-mail: nazarenoeduardo@gmail.com. Artigo recebido em 11.02.2008
e aprovado em 30.06.2008.
1 Introdução
O presente artigo apresenta sucintamente alguns argumentos
interpretativos sobre a defesa do princípio primário da filosofia
primeira realizada por Aristóteles nos capítulos 3 e 4 do Livro IV da
Metafísica, tomando tal princípio como o fundamento de sua teoria
da verdade, a qual representa, juntamente com alguns diálogos de
Platão, a primeira sistematização daquilo que posteriormente foi
chamado de teoria da verdade como correspondência. 1 Contudo,
este princípio primário não deve ser restringido, como é comum
pensar, ao princípio de não-contradição, mas inclui, em uma bi-
implicação necessária (modal), este e o princípio do terceiro
excluído. 2
Nesta equivalência encontra-se aquilo que se pode chamar
de ‘princípios de verdade’, os quais, segundo Aristóteles, são o
fundamento último (ou primeiro) de justificação para qualquer
discurso declarativo que se pretenda verdadeiro, sendo, por isso,
também assumidos pelo mestre do Liceu como critérios últimos para
determinar a verdade ou falsidade de qualquer discurso declarativo.
Como será apontado nas linhas abaixo, Aristóteles defende o
princípio primário de verdade de seus adversários apresentando
alternadamente tal princípio na forma da não-contradição e do
terceiro excluído.
1
A idéia de que o princípio primário da metafísica aristotélica é o fundamento para
sua teoria da verdade foi desenvolvida no capítulo final da tese de doutorado do
autor deste artigo, intitulada O princípio de verdade, ensaio de reconstrução
filosófica da teoria aristotélica da verdade, defendida na Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, em julho de 2005.
2
Simbolizando o princípio de não-contradição por ‘PNC’ e o princípio do terceiro
excluído por ‘PTE’, pode-se representar esta equivalência deste modo: (PNC ↔
PTE), ou seja, “Necessariamente (PNC se, e somente se, PTE)”. Note-se que o
operador modal de necessidade não é apenas exigido pelo texto de Aristóteles,
como se verá abaixo, mas também pelo fato de que na lógica clássica não modal
uma bi-implicação pode ser verdadeira mesmo quando suas duas partes são falsas,
o que não é o caso na bi-implicação operada nas lógicas modais. Do ponto de
vista estritamente textual esta equivalência é corroborada através de diversos
textos de Aristóteles, entre os quais, os mais importantes são: Da interpretação,
cap. 9; Segundos analíticos, I, 10-11; Metafísica, III, 2, 996 b 29-31. Nestas
passagens, o estagirita explicitamente coloca os princípios de não-contradição e
do terceiro excluído como igualmente primários.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 7
3
Colocado em termos esquemáticos isto significa: ‘~ (A & ~ A)’ = ‘(A ∨ ~ A)’, ou
seja, “não é o caso que ‘A’ e ‘não-A’” equivale a “‘A’ ou ‘não-A’”.
4
Além disso, Aristóteles opera com argumentos e leis lógico-semânticas que
apontam também para uma equivalência implícita destes princípios com o
princípio de identidade. No entanto, neste artigo não se falará senão de passagem
deste tópico, dada a complexidade e a extensão necessária para tornar claras as
questões envolvendo o conceito de identidade ao longo do Livro IV da Metafísica.
Mesmo assim, vale indicar aqui que, para Aristóteles, a negação forte dos
princípios de não-contradição e do terceiro excluído, implica a negação da
identidade individual e específica dos estados de coisas, o que fica claro por sua
constante preocupação de que se a tese do adversário do princípio primário for
verdadeira, então “todas as coisas serão uma só”. De todo modo, ficará claro neste
artigo que a defesa dos princípios de não-contradição e do terceiro excluído se põe
de acordo com a máxima de Quine, segundo a qual “não há entidade sem
identidade”. Para uma minuciosa análise lógico-filosófica dos vários sentidos do
conceito de identidade reconhecidos e operados por Aristóteles à luz da lógica
modal de predicados contemporânea, veja-se, de Mario Mignucci, “La noción de
identidad en los Tópicos”, in Anuário filosófico, v. 35, p. 313-340.
8 Nazareno Eduardo de Almeida
5
Para uma teoria lógico-filosófica atual (concebida em “consonância” com a
ontologia aristotélica) que enfrenta persuasivamente estas questões do ponto de
vista da ontologia formal, veja-se, de Nino Cocchiarela, “Conceptual realism as a
formal ontology”, in Formal ontology; (eds.) Roberto Poli & Peter Simons.
Dordrecht/Boston/Londres: Kluwer, 1996, p. 27-60.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 9
6
Metafísica, IV, 3, 1005 b 11-12: bebaiotavth d! ajrch; pasw'n peri; h}n diayeu-
sqh'nai ajduvnaton.
10 Nazareno Eduardo de Almeida
7
Metafísica, IV, 3, 1005 b 13-14: peri; ga;r a} mh; gnwrivzousin ajpatw'ntai pavn-
te".
8
Metafísica, IV, 3, 1005 b 16-17: o} de; gnwrivzein ajnagkai'on tw'/ oJtiou'n gnwriv-
zonti.
9
Metafísica, IV, 3, 1005 b 19-34: to; ga;r aujto; a{ma uJpavrcein te kai; mh;
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 11
uJpavrcein ajduvnaton tw'/ aujtw'/ kai; kata; to; aujto; (kai; o{sa a[lla prosdiori-
saivmeq! a]n, e[stw prosdiwrismevna pro;" ta;" logika;" duscereiva"): au{th dh;
pasw'n ejsti; bebaiotavth tw'n ajrcw'n: e[cei ga;r to;n eijrhmevnon diorismovn. ajduv-
naton ga;r oJtinou'n tajuton uJpolambavnein ei\nai kai; mh; ei\nai, kaqavper ti-
ne;" oi[ontai levgein @Hravkleiton. oujk e[sti ajnagkai'on, a{ ti" levgei, tau'ta kai;
uJpolambavnein: eij de; mh; ejndevcetai a{ma uJpavrcein tw'/ aujtw/' tajnantiva (prosdi-
wrivsqw d! hJmin kai; tauvth/ th'/ protavsei ta; eijwqovta), ejnantiva d! ejsti; dovxa
dovxh/ hJ th'" ajntifavsew", fanero;n o{ti ajduvnaton a{ma uJpolambavnein to;n auj-
to;n ei\nai kai; mh; ei\nai to; aujtov: a{ma ga;r a]n e[coi ta;" ejnantiva" dovxa" oJ
dieyeusmevno" peri;touvtou. dio; pavnte" oiJ ajpodeiknuvnte" eij" tauvthn ajnavgou-
sin ejscavth" dovxan: fuvsei ga;r ajrch; kai; tw'n a[llwn ajxiwmavtwn au{th pavntwn.
10
O termo ‘uJpavrcein’ é usado por Aristóteles ao longo de todo o Organon para
denotar a predicação em geral. Seu duplo sentido (lógico e ontológico) é
confirmado pelo próprio estagirita ao dizer que tanto este termo quanto sua
negação equivalem ao ser ou não-ser de algo, bem como ao ser verdadeiro ou ser
falso das afirmações e negações. Cf. Primeiros analíticos, I, 37; Tópicos, VI, 1,
139 b 1-3.
11
Cf. “Sur le principe de contradiction chez Aristote”, trad. Barbara Cassin &
Michel Narcy, in Rue Descartes, 1991, p. 14-15.
12 Nazareno Eduardo de Almeida
12
A mesma formalização do princípio de não-contradição é sugerida (mas não
justificada ou discutida) no breve e excelente artigo de Harold W. Noonan, “An
argument of Aristotle on non-contradiction”, in Analysis, nº 37, 1976-77, p. 163-
169, esp. 164. Uma formalização no mesmo estilo é encontrada no artigo
“Aristotle’s defense of the principle of non-contradiction”, de Fernando Inciarte,
in Archiv für Geschichte der Philosophie, v. 76, 1994, p. 129-150, esp. p. 145. A
formulação acima utiliza a equivalência entre ‘impossível’ e ‘necessariamente
não’, equivalência explicitada pela primeira vez justamente por Aristóteles em Da
interpretação, 13. Esta troca é feita para facilitar a leitura e para apresentar
diretamente o sentido necessário e universal pretendido por Aristóteles para o
princípio primário na forma da não-contradição. O termo ‘simultaneamente’
(a{ma) parece colocar a exigência de uma quantificação temporal para traduzir a
formulação do princípio. Isso complicaria desnecessariamente a formalização,
uma vez que a simultaneidade está já implícita no conectivo lógico ‘&’ (“e”).
Ademais, o estagirita interpreta o sentido dos operadores modais em termos
temporais, de modo que “é necessário que p” significa “p é verdadeiro em todos
os momentos”; “é impossível que p” significa “p é falso em todos os momentos”;
“é possível que p” significa “p é verdadeiro em algum momento”; e, por fim, “é
possível que não-p” significa “p é falso em algum momento”. Com isso, o termo
‘simultaneamente’ não está introduzindo o conceito de tempo no princípio, mas
apenas determinando o sentido temporal já presente na modalidade do necessário
que o rege. Em termos mais diretos, está explicitando aquilo que é exigido pela
definição de “impossível que p”. Note-se que o conceito de “momento no tempo”
em Aristóteles corresponde ao conceito atual de “mundo possível”, indicando
assim o caminho para a semântica das modalidades na obra do estagirita. Sobre o
sentido temporal das modalidades em Aristóteles, veja-se, de Vittorio Sainati,
Storia dell’ “Organon” aristotelico (v. I). Florença: Felice Le Monnier, 1968, p.
257-266. Veja-se também, de Jaakko Hintikka, Time and necessity. Oxford:
Clarendon, 1973. Veja-se ainda, de Sarah Waterlow, Passage and possibility, a
study of Aristotle’s modal concepts. Oxford: Clarendon, 1982. Para uma discussão
das exigências técnicas das possíveis interpretações temporais da lógica modal
iniciadas por Arthur Prior, veja-se, de G. E. Hughes & M. J. Cresswell, A new
introduction to modal logic. Routledge: Londres/Nova Iorque, 2001, cap. 7.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 13
13
Sobre a dimensão psicológica ou (como se prefere aqui) epistêmica do princípio
de não-contradição, veja-se o minucioso artigo de Thomas V. Upton,
“Psychological and metaphysical dimensions of non-contradiction in Aristotle.”,
in Review of metaphysics, v. 36, 1983, p. 361-401, onde o autor mostra a
importância do aspecto psicológico da defesa do princípio primário contra a
tradição interpretativa, representada por Lukasiewicz e Kirwan, que vê tal aspecto
como secundário.
14
Cf. Metafísica, III, 2, 996 b 26 ss.
15
Já Lukasiewicz aponta para este fato ao dizer: “on doit donc tenir pour établi que
selon Aristote le principe de contradiction est à concevoir non comme une loi
ontologique générale, mais comme une loi métaphysique que doit valoir au
premier chef pour les substances, et dont il est au moins douteux que le domaine
de validité s’étende aussi aux phénomènes.” Cf. “Sur Le principe de contradiction
chez Aristote”, art. cit., p. 26.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 15
16
Chamado por Lukasiewicz de sentido ‘psicológico’ do princípio de não-
contradição.
16 Nazareno Eduardo de Almeida
17
Deve-se lembrar que nos sistemas de lógicas epistêmicas atuais a exigência
apresentada por Aristóteles em sua pequena “refutação” é tomada como um
princípio indispensável e simbolizado por ‘~ (B p & B ~ p )’, ou seja, “não é o
caso que (alguém acredita que p e acredita que não-p).” Desde o ponto de vista
das lógicas epistêmicas atuais, portanto, o argumento de Aristóteles, longe de
introduzir o “psicologismo” no âmbito da lógica (como interpreta Lukasiewicz em
seu famoso artigo), apresenta uma exigência epistêmica para qualquer crença que
pretenda ser justificável e verdadeira. Deve-se observar que mesmo nas lógicas
epistêmicas paraconsistentes o princípio acima continua válido, pois estas lógicas
admitem apenas que ‘B (p & ~ p)’, ou seja, “alguém acredita que (p e não-p)”.
Sobre este último ponto, veja-se, de Newton da Costa e Steven French, Science
and partial truth. Oxford: Oxford UP, 2003, p. 97-101. Uma análise da
argumentação de Aristóteles que aponta na mesma direção é encontrada no artigo
de Marc Cohen, “Aristotle on the principle of non-contradiction”, in Canadian
journal of philosophy, v. 16, nº 3, 1986, p. 367-68.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 17
18
A idéia de uma pretensão de verdade inerente à forma dos enunciados
declarativos é apresentada por Charles Kahn em seu instigante artigo “Sobre a
teoria do verbo ser”, in Sobre o verbo grego ser e o conceito de ser; trad. Maura
Iglesias et alli, Cadernos de tradução 1, Rio de Janeiro: PUC, 1997, p. 33-62. A
mesma idéia é proposta por Ernst Tugendhat em seu Lições introdutórias à
18 Nazareno Eduardo de Almeida
filosofia analítica da linguagem; trad. Mário Fleig et alli. Ijuí: Unijuí, 1992, esp.
p. 70-71.
19
Metafísica, IV, 4, 1005 b 35-1006 a 3: aujtoiv te ejndevcesqai fasi to; aujto;
ei\nai kai; mh; ei\nai, kai; uJpolambavnein ou{tw". crw'ntai de; tw'/ lovgw/' touvtw/ po-
lloi; kai; tw'n peri; fuvsew".
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 19
20
Esta é também a interpretação de Robert Bolton em seu “Aristotle’s conception
of metaphysics as a science”, in Unity, identity and explanation; (eds.) T, Scaltsas,
D. Charles, M. L. Gill. Oxford: Clarendon, 1994, p. 325.
21
Metafísica, IV, 5, 1009 a 22-38; 1009 b 38-1010 a 2.
22
Para um quadro sinóptico e sistemático dos adversários e suas posições
específicas, veja-se, de Barbara Cassin, “Parle, si tu es un homme”, in La décison
du sens, le livre Gamma de la Métaphysique d’Aristote. Paris: Vrin, 1989, p. 56-
57.
23
Não muito tempo depois esta “falta de educação” (ajpaideusiva) viria a ser
instituída como um dos cinco tropos de Agripa.
20 Nazareno Eduardo de Almeida
24
Metafísica, IV, 4, 1006 a 11-15: e[sti d'! ajpodei'xai ejlegktikw'" kai; peri; touv-
tou o{ti ajduvnaton, a]n movnon ti levgh/ oJ ajmfisbhtw'n: a]n de; mhqevn, geloi'on to;
zhtei'n lovgon pro;" to;n mhqeno;" e[conta lovgon, h|/ mhqevna e[cei lovgon: o{moio"
ga;r futw'/ oJ toiou'to" h|/ toiou'to" h[dh.
25
Não cabe aqui fazer uma recensão das muitas interpretações propostas para a
demonstração refutativa. Ao longo da interpretação serão citadas na medida do
necessário. Dentre as interpretações que foram consideradas na perspectiva desta
investigação, aquela que mais fortemente a “influenciou” encontra-se no
minucioso livro de Russell Dancy, Sense and contradiction. Dordrecht/Boston:
Reidel, 1975. Para uma breve recensão dos tipos de interpretação propostos
atualmente, veja-se, de Barbara Cassin, “Parle, si tu es un homme”, in La décison
du sens, le livre Gamma de la Métaphysique d’Aristote, opus cit., p. 9-18.
26
Olhado do ponto de vista retrospectivo, o Livro IV da Metafísica merece o posto
de primeira argumentação filosófica na forma da fundamentação, estilo literário
que será desenvolvido na filosofia moderna (a partir de Descartes) como a forma
mais apropriada para a instauração de uma teoria metafísica. Para uma
comparação das semelhanças e diferenças entre a fundamentação da metafísica
realizada por Aristóteles e aquela realizada por Descartes, veja-se, de Francis
Wolff, “Le principe de la Métaphysique d’Aristote et le principe de la
métaphysique de Descartes”, in Revue internationale de philosophie, nº 201, p.
417-443.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 21
27
Esta idéia já é insinuada por Lukasiewicz no artigo referido, mas é explicitamente
apresentada por Russell Dancy em seu Sense and contradiction, opus cit., p. 59 ss.
28
Aristóteles não tem aqui especificamente nenhum personagem histórico em vista.
Seu adversário é uma construção teórica e hipotética. Se alguém pode ser
aproximado da posição que representa a negação forte é Heráclito ou seus
discípulos e epígonos. Para uma minuciosa discussão acerca deste ponto, veja-se,
de Russell Dancy, Sense and contradiction, opus cit., cap. 3.
22 Nazareno Eduardo de Almeida
29
Bem entendido, relações distintas dentro do espaço lógico em que se move a
argumentação de Aristóteles.
30
Para uma elaboração deste quadrado das modalidades aristotélicas, segundo as
mesmas relações lógico-semânticas do quadrado lógico, veja-se, de Martha e
William Kneale, O desenvolvimento da lógica; trad. M. S. Lourenço. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 1991, p. 87-88. Para uma sucinta discussão sobre as
equivalências modais e um quadro sinóptico das mesmas, veja-se, de Robert
Blanché, A história da lógica de Aristóteles a Russell; trad. António J. P. Ribeiro.
Lisboa: Edições 70, p.68-73.
31
Isto já é apontado por Lukasiewicz em seu “Sur le principe de contradiction chez
Aristote”, art. cit., p. 24: “ce qui reste à faire pour le Stagirite, à la fin de ses
explication, ce n’est plus de démontrer la principe de contradiction dans sa
généralité, mais de trouver au moins une vérité absolue et exempte de
contradiction, permettant d’établir la fausseté de la thèse opposée selon la
contrariété au principe de contradiction.”
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 23
32
Tal é a posição atualmente chamada de dialeteísmo (fundada em uma
determinada interpretação da negação na lógica paraconsistente), segundo a qual
há algumas contradições verdadeiras. Para uma defesa do dialeteísmo contra
argumentos que remetem à defesa da não-contradição por Aristóteles, veja-se, de
Graham Priest, “What is so bad about contradiction?”, in The journal of
philosophy, v. 45, nº 8, 1998, p. 410-426.
33
Cf. Tópicos, II, 1-3; III, 6. Para uma excelente análise lógica e hermenêutica
destas passagens no contexto do Organon, veja-se, de Vittorio Sainati, Storia dell’
“Organon” aristotelico (v. I), opus cit., p. 41-51.
24 Nazareno Eduardo de Almeida
34
Nas lógicas modais atuais estes axiomas são chamados respectivamente ‘T’ e
‘T1’. Uma vez que estes axiomas podem ser tomados como consecutivos (no
sistema S5), podem ser expressos pela seguinte forma lógica:
( p → p) → (p→ ◊ p)
Ou seja:
“Se (se necessariamente ‘p’, então é o caso que ‘p’) então (se é o caso que ‘p’,
então é possível que ‘p’)”.
Para uma passagem em que Aristóteles opera com estes axiomas cf. Metafísica, IX,
4. Que o estagirita não admite o caminho inverso destas inferências é fácil
perceber, por exemplo, através do quadrado das modalidades, o qual segue regras
semânticas análogas às do quadrado lógico, de modo que se fosse permitido partir
do possível ou do atual para o necessário, seria permitido igualmente concluir da
verdade de uma predicação particular (I ou O) a verdade da mesma predicação
universalizada (A ou E), o que não é o caso.
26 Nazareno Eduardo de Almeida
35
A fórmula de Barcan e sua forma inversa podem ser expressas na seguinte forma
lógica:
[( (∀x) Fx → (∀x) Fx)] ↔ [(∀x) Fx → (∀x) Fx)]
O que significa:
“[(se (necessariamente, para todo x, x é F), então (para todo x, x é necessariamente
F)] se, e somente se, [se (para todo x, x é necessariamente F), então
(necessariamente, para todo x, x é F)]”
Esta fórmula tem sido combatida pelas diversas conseqüências contra-intuitivas que
se seguem dela na semântica dos mundos possíveis, mas esse não é o lugar para
discutir tais conseqüências e as estratégias para evitá-las. O fato é que a silogística
modal de Aristóteles (que pode ser considerada sua lógica modal de predicados)
supõe a verdade desta tese, em especial nos modos Barbara e Celarent da
primeira figura com duas premissas necessárias, pois neste caso tanto as
proposições como um todo são necessárias e universais (necessidade de dicto)
quanto são necessárias e universais as predicações nelas contidas (necessidade de
re). Cf. Primeiros analíticos, I, 8. Outro contexto em que Aristóteles supõe a
fórmula de Barcan é no caso das propriedades que definem os estados de coisas de
uma mesma espécie ou gênero, de modo que estas propriedades não apenas são
necessárias do ponto de vista do enunciado da definição (necessárias do definiens
e de dicto), mas também têm de ser necessárias do ponto de vista do que é
definido (necessárias do definiendum e de re), sobretudo as definições primárias
de onde partem as demonstrações científicas. Sobre este ponto, cf. Segundos
analíticos, I, 2, 6; II, 3, 10. Note-se, porém, que, dada a quantificação existencial
dos tipos de refutação mencionados, a fórmula de Barcan só permite a passagem
de (4) para (3) e não o inverso, mas não é possível discutir este ponto aqui.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 27
36
A expressão ‘essencialismo aristotélico’ foi proposta por Quine em sua discussão
crítica dos compromissos ontológicos da lógica modal de predicados. Para uma
exposição do que seria o essencialismo aristotélico nos textos de Aristóteles e
como ele não é equivalente àquele exposto por Quine, veja-se, de Nicolas White,
“Origins of Aristotle’s essentialism”, in Review of metaphysics, v. 26, 1972-73, p.
57-85.
37
Uma essência postulada por Aristóteles que preenche (4) é o movente não-
movido (Deus), que possui todas as suas propriedades necessariamente, ou seja,
eternamente. Em todo caso, o estagirita se esforçará para mostrar que todas as
essências sensíveis, mesmo se individuando em entidades que nascem e perecem,
têm propriedades necessárias que as definem do ponto de vista de sua forma, a
qual, diferentemente dos indivíduos que as instanciam, é eterna, conforme
Metafísica, VII, 8, esp. 1033 b 5-7. Neste sentido, as propriedades essenciais (o
‘to; tiv h\n ei\nai’) que definem a forma das essências sensíveis preencheriam as
condições de (4) e poderiam ser colocadas como necessárias de re, existindo
sempre na medida em que as formas são eternas.
38
Cf. Metafísica, IV, 5, 1009 a 35-36. Sobre a prioridade da atualidade sobre a
potencialidade, veja-se, Metafísica, IX, 8. Uma análise minuciosa da
argumentação aristotélica sobre esta prioridade encontra-se no texto de Russell
Dancy, “Aristotle and the priority of actuality”, in Reforging the great chain of
being, (ed.) S. Knuuttila. Dordrecht: Reidel, 1980, p. 73-115.
28 Nazareno Eduardo de Almeida
39
Não é possível mostrar neste artigo em que sentido a demonstração refutativa, em
sua peculiar petição de princípio, é um tipo especial de demonstração circular com
validade indutiva, pois isso demandaria a discussão de diversas passagens dos
Analíticos e das Refutações sofísticas.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 29
40
Metafísica, IV, 4, 1006 a 15-29: to; d! ejlegktikw'" ajpodei'xai diafevrein kai;
to; ajpodei'xai, o{ti oJ ajpodeiknuvwn me;n a]n dovxeien aijtei'sqai to; ejn ajrch'/, a[l-
lou de; tou' toiouvtou aijtivou o[nto" e[legco" a]n ei[h kai; oujk ajpoveixi". ajrch; de;
pro;" a{panta ta; toiau'ta ouj to; ajxiou'n h] ei\naiv ti levgein h] mh; ei\nai (tou'to
me;n ga;r tavc! a[n ti" uJpolavboi to; ejx ajrch'" aijtei'n), ajlla; shmaivnein gev ti
kai; auJtw'/ kai; a[llw/: tou'to ga;r ajnavgkh, ei[per levgoi ti. eij ga;r mhv, oujk a]n ei[h
tw'/ toiouvtw/ lovgo", ou[t! aujtw'/ pro;" auJton ou[te pro;" a[llon. a]n de; ti" tou'to
didw'/, e[stai ajpovdeixi": h[dh ga;r ti e[stai wJrismevnon. ajll! ai[tio" oujc oJ ajpo-
deiknu;" ajll! oJ uJpomevnwn: ajnairw'n ga;r lovgon uJpomevnei lovgon. e[ti de; oJ tou'to
sugcwrhvsa" sujcwvrhkev ti ajlhqe;" ei\nai cwri;" ajpodeivxew" [w{ste oujk a]n pa'n
ou{tw" kai; oujc ou{tw" e[coi].
30 Nazareno Eduardo de Almeida
modo que <se consentirmos isso> todas <as predicações> serão uma
<só>, pois <serão> sinônimas). E não acontecerá de a mesma coisa ser e
não ser, senão por homonímia, como se aquilo que chamamos ‘homem’,
outros chamassem ‘não-homem’, mas o aporético não é isto: se é
possível, simultaneamente, que o mesmo seja e não seja homem na
designação, mas no estado de coisas <que é designado>. Assim, se não
significam <predicações> distintas a <designação> ‘homem’ e a
<designação> ‘não-homem’, tampouco serão <distintos> o <predicado>
‘não ser homem’ e o <predicado> ‘ser homem’, pois serão um só
<predicado>. Pois isto é o que significa ‘ser uma só <designação>’, como
no caso de ‘manto’ e ‘pálio’, se a predicação é uma <só para ambas as
designações>, de modo que se <as designações ‘homem’ e ‘não-homem’>
forem uma só, então significarão um só <estado de coisas as predicações>
‘ser homem’ e ‘não ser homem’. Mas foi mostrado que significam
<estados de coisas> distintos.
(4) Por isso, é necessário que se enunciamos com verdade que algo
é homem, <então isto> é <um> animal bípede (pois isto era o que
significava a <designação> ‘homem’); portanto, se isto é necessário,
então não é possível que este mesmo <algo> não seja animal bípede
(pois é isso que significa o ‘ser necessário’: o ‘ser impossível não ser
[homem]’). Portanto, não é possível enunciar com verdade que o mesmo
<algo> simultaneamente ‘é homem’ e ‘não é homem’.
(5) E o mesmo argumento <vale> para o <predicado> ‘ser não-
homem’, pois o ‘ser homem’ e o ‘não ser homem’ significam <estados de
coisas> distintos, assim como também o ‘ser branco’ e o ‘ser homem’
significam <estados de coisas> distintos, pois muito mais se opõem
aqueles [sc. ‘ser homem’ e ‘não ser homem], de modo que <estes> [sc.
‘ser homem’ e ‘ser branco’] significam <estados de coisas> distintos.
Porém, se <o adversário> afirma que a <designação> ‘branco’ <e a
designação ‘homem’> significam o mesmo <estado de coisas>,
novamente enunciaremos o que antes foi dito: que todos <os estados de
coisas> serão um <só> e não apenas os opostos. E se isso não é possível,
segue-se o que foi dito, desde que responda o que foi perguntado.
(6) Contudo, se ao lado do que é simplesmente perguntado ele aduz
também as negações, então não responde o que foi perguntado. Pois nada
impede que o mesmo <algo> seja homem e branco e milhares de outras
coisas; entretanto ao ser perguntado se é verdade enunciar que isto é
homem ou não é, deve responder algo com significado único e não
acrescentar que também é branco e grande. É impossível enumerar os
acidentes, uma vez que são infinitos: <então> ou enumera todos ou
nenhum. De modo análogo, se o mesmo é milhares de vezes homem e
não-homem, ao ser perguntado se é homem, não deve responder que
também é ao mesmo tempo não-homem, a não ser que responda aqueles
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 35
41
Metafísica, IV, 4, 1006 a 28-1007 a 20: prw'ton me;n ou\n dh'lon wJ" tou'tov
g! aujto; ajlhqev", o{ti shmaivnei to; o[noma to; ei\nai h] mh; ei\nai todiv, w{st! oujk
a]n pa'n ou{tw" kai; oujc ou{tw" e[coi: e[ti eij to; a[nqrwpo" shmaivnei e{n, e[stw
tou'to to; zw'/on divpoun. levgw de; to; e}n shmaivnein tou'to: eij tou't! e[stin a[n-
qrwpo", a]n h\/ ti a[nqrwpo", tou't! e[stai to; ajnqrwvpw/ ei\nai (diafevrei d! oujde;n
oujd! eij pleivw ti" faivh shmaivnein movnon de; wJrismevna, teqeivh ga;r a]n ejf!
eJkavstw/ lovgw/ e{teron o[noma: levgw d! oi|on, eij mh; faivh to; a[nqrwpo" e}n sh-
maivnein, polla; dev, w|n eJno;" me;n ei|" lovgo" to; zw'/on divpoun, ei\en de; kai; e{teroi
pleivou", wJrismevnoi de; tovn ajriqmovn: teqeivh ga;r a]n i[dion o[noma kaq! e{kasqon
to;n lovgon: eij de; mh; [teqeivh], ajll! a[peira shmaivnein faivh, fanero;on o{ti oujk
a]n ei[h lovgo": to; ga;r mh; e}n shmaivnein oujde;n shmaivnein ejstivn, mh; shmainovn-
twn de; tw'n ojnomavtwn ajnhv/rhtai to; dialevgesqai pro;" ajllhvlou", kata; de; th;n
ajlhvqeian kai; pro;" auJtovn oujde;n ga;r ejndevcetai noei'n mh; noou'nta e{n, eij d! ejn-
devcetai, teqeivh a]n o[noma touvtw/ tw'/ pravgmati e{n). < e[stw dh;, w{sper ejlevcqh
kat! ajrca;", shmai'novn ti to; o[noma kai; shmai'non e{n: ouj dh; ejndevcetai to; ajn-
qrwvpw/ ei\nai shmaivnein o{per ajnqrwvpw/ mh; ei\nai, eij to; a[nqrwpo" shmaivnei mh;
movnon kaq! eJno;" ajlla; kai; e{n (ouj ga;r tou'to axiou'men to; e}n shmaivnein, to;
kaq! eJnov", ejpei; ou{tw ge ka]n to; mousiko;n kai; to; leuko;n kai; to; a[nqrwpo" e}n
ejshvmainen, w{ste e}n a{panta e[stai: sunwvnuma ga;r). kai; oujk e[stai ei\nai kai;
mh; ei\nai to; aujto; ajll! h] kaq! oJmonumivan, w{sper a]n eij o}n hJmei'" a[nqrwpon ka-
lou'men, a[lloi mh; a[nqrwpon kaloi'en: to; d! ajpoouvmenon ouj tou'to ejstin, eij en-
devcetai to; aujto; a{ma ei\nai kai; mh; ei\nai a[nqrwpon to; o[noma, alla; to; pra'-
gma. eij de; mh; shmaivnei e{teron to; a[nqrwpo" kai; to; mh; a[nqrwpo", dh'lon o{ti
kai; to; mh; ei\nai ajnqrwvpw/ tou' ei\nai ajnqrwvpw/, w{st! e[stai to; ajnqrwvpw/ ei\nai
mh; ajnqrwvpw/ ei\nai: e}n ga;r e[stai. tou'to ga;r shmaivnei to; ei\nai e{n, to; wJ" lwv-
pion kai; iJmavtion, eij oJ lovgo" ei|": eij de; e[stai e{n, e}n shmanei' to; ajnqrwvpw/ e
i\-
nai kai; mh; ajnqrwvpw/. ajll! ejdevdeikto o{ti e{teron shmaivnei. ajnavgkh toivnun, eij
tiv ejstin ajlhqe;" eijpei'n o{ti a[nqrwpo", zw'/on ei\nai divpoun (tou'to ga;r h\n o}
ejshvmaine to; a[nqrwpo"): eij d! ajnavgkh tou'to, oujk ejndevcetai mh; ei\nai tovte to;
aujto; zw'/on divpoun (tou'to ga;r shmaivnei to; ajnavgkh ei\nai, to; ajduvnaton ei\nai
mh; ei\nai a[nqrwpon): oujk a[ra ejndevcetai a{ma ajlhqe;" ei\nai eijpei'n to; aujto; a[n-
qrwpon ei\nai kai; mh; ei\nai a[nqrwpon. oJ d! aujto;" lovgo" kai; ejpi; tou' mh; ei\nai
a[nqrwpon: to; ga;r ajnqrwvpw/ ei\nai kai; to; mh; ajnqrwvpw/ ei\nai e{teron shmaivnei,
ei[per kai; to; leuko;n ei\nai kai; to; a[nqrwpon ei\nai e{teron: polu; ga;r ajntivkei-
tai ejkei'no ma'llon, w{ste shmaivnein e{teron. eij de; kai to; leuko;n fhvsei to; auj-
to; kai; e}n shmaivnei, pavlin to; aujto; ejrou'men o{sper kai; provteron ejlevcqh, o{ti
e}n pavnta e[stai kai; ouj movnon ta; ajntikeivmena. eij de; mh; ejndevcetai tou'to,
sumbaivnei to; lecqevn, a]n ajpokrivnhtai to; ejrwtwvmenon. eja;n de; prostiqh'/ ejrw-
tw'nto" aJplw'" kai; ta;" ajpofavsei", oujk ajpokrivnetai to; ejrwtwvmenon. oujde;n
ga;r kwluvei ei\nai to; aujto; kai; a[nqrwpon kai; leuko;n kai; a[lla muriva to; plh'-
qo": ajll! o{mw" ejromevnou eij ajlhqe;" eijpei'n a[nqrwpon tou'tou ei\nai h] ou[, ajpo-
kritevon to; e}n shmai'non kai; ouj prosqetevon o{ti kai; leuko;n kai; mevga. kai; ga;r
ajduvnaton a[peira g! o[nta ta; sumbebhkovta dielqei'n: h] ou\n a{panta dielqevtw h]
mhde;n. oJmoivw" toivnun eij kai; muriavki" ejsti; to; aujto; a[nqrwpo" kai; oujk a[n-
qrwpo", ouj prosapokritevon tw'/ ejromevnw/ eij e[stin a[nqrwpo", o{ti ejsti;n a{ma
kai; oujk a[nqrwpo", eij mh; kai; ta\lla o{sa sumbevbhke prosapokritevon, o{sa ejs-
ti;n h] mh; e[stin: eja;n de; tou'to poih',/ ouj dialevgetai.
36 Nazareno Eduardo de Almeida
42
Para uma excelente análise de (2), (3) e (5) através de outras obras do estagirita e
de outras passagens do capítulo 4 não incluídas aqui, veja-se, de Lucas Angioni,
“Princípio de não-contradição e semântica da predicação em Aristóteles”, in
Analytica, v. 4, n.2, 1999, p. 121-158. A tradução do trecho citado, bem como sua
análise deve muito às sugestões e esclarecimentos deste artigo.
38 Nazareno Eduardo de Almeida
43
Sobre este tipo de inferência como um dos tipos de procedimentos de prova ou
refutação, veja-se Tópicos, II, 6, 112 a 24-31. Na realidade, tal esquema foi
incorretamente chamado de silogismo disjuntivo a partir da fusão entre a lógica
estóica e a peripatética realizada já na antiguidade, mas cujos registros mais
antigos conservados remontam a Boécio. Trata-se, falando de modo aproximado,
de uma forma predicativa do modus tollendo ponens (que é usado na passagem de
(b) para (c)) e do modus ponendo tollens. Sobre este ponto veja-se, de Susanne
Bobzien, “The development of modus ponens in antiquity”, in Phronesis, v. 47,
2003, p. 359-394, sobre a passagem dos Tópicos mencionada p. 369-373. Para
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 39
44
Sobre todo este ponto, veja-se, de Lucas Angioni, “Princípio de não-contradição
e semântica da predicação em Aristóteles”, art. cit.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 41
45
Cf. Tópicos, VII, 1, 152 b 25-29, 33-37; Refutações sofísticas, 6, 168 b 32-33. Na
primeira referência Aristóteles postula a lei como condição de verdade para as
predicações definitórias, que são o “ponto focal” (em um sentido que não pode ser
discutido aqui: o seu ‘pro;" e}n legovmenon’) das discussões dialéticas. Na segunda
referência, o princípio é colocado como arma para mostrar a falácia do
conseqüente usada nas refutações aparentes feitas pelos sofistas.
46
O exemplo dos termos sinônimos ‘manto’ e ‘pálio’ (aduzido em (3)) é mais um
indicador da aplicação do princípio da indiscernibilidade dos idênticos no presente
argumento, uma vez que este exemplo aparece também nos Tópicos, I, 7 (103 a 9-
10), onde Aristóteles explicita e discute os vários sentidos do conceito de
identidade.
47
Que Aristóteles admite explicitamente uma identidade entre predicados fica claro
em sua tripartição do conceito de idêntico entre o que é idêntico por número, por
espécie e/ou por gênero. Cf. Tópicos, I, 7.
48
Note-se que o operador modal de necessidade é aplicado aqui sobre toda a
expressão, impondo às suas partes a condição semântica de serem verdadeiras:
primeiro para a implicação que as rege e coordena e, depois, para a igualdade no
antecedente e para a bi-implicação no conseqüente. Lembrando que a mesma
formulação, sem o operador de necessidade, permitiria o caso de um antecedente
falso e um conseqüente verdadeiro e ainda, dentro do conseqüente, permitiria que
as duas partes da bi-implicação fossem falsas e mesmo assim o conseqüente
permaneceria verdadeiro. Em tal caso, o sentido da demonstração realizada por
Aristóteles seria perdido, como o indica claramente sua ênfase textual na
42 Nazareno Eduardo de Almeida
equivalência entre ‘ser necessário’ e ‘ser impossível não ser’, este último
equivalente a ‘não poder não ser’.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 43
49
Como ficará claro na próxima seção, Aristóteles também opera, ao menos
implicitamente, com estas leis ao fazer equivalerem a negação forte do princípio
de não-contradição e a negação forte do princípio do terceiro excluído.
50
Cf. Tópicos, VIII, 5, esp. 154 a 33-35, 154 b 3-4.
44 Nazareno Eduardo de Almeida
51
Metafísica, IV, 4, 1007 a 21-22: pavnta ga;r ajnavgkh sumbebhkevnai favskein
aujtoi'".
46 Nazareno Eduardo de Almeida
52
Metafísica, IV, 4, 1007 b 29-1008 a 2: ajlla; mh;n lektevon g! aujtoi'" kata;
panto;" th;n katavfasi" h] th;n ajpovfasi": a[topon ga;r eij eJkasvstw/ hJ me;n auj-
tou' ajpovfasi" uJpavrxei, hJ de; eJtevrou o} mh; uJpavrcei aujtw'/ oujc uJpavrxei: levgw d!
oi|on eij ajlhqe;" eijpei'n to;n a[nqrwpon o{ti oujk a[nqrwpo", dh'lon o{ti kai; h] trihv-
rh" h] ouj trihvrh". eij me;n ou\n hJ katavfasi", ajnavgkh kai; th;n ajpovfasi": eij de;
mh; uJpavrcei hJ katavfasi", h{ ge ajpovfasi" uJpavrxei ma'llon h] hJ aujtou'. eij ou\n
kajkeivnh uJpavrcei, uJpavrxei kai; hJ th'" trihvrou": eij d! au{th, kai; hJ katavfasi".
A conjunção ‘ou’ (h]) grifada em negrito é suprimida por alguns editores (como é o
caso de Ross) como redundante e mesmo incoerente. Na presente interpretação, o
termo se mostra necessário para a estrutura do argumento, como se verá.
48 Nazareno Eduardo de Almeida
53
Neste sentido, como já foi indicado anteriormente, a defesa dos princípios de
não-contradição e do terceiro excluído, em sua mútua implicação necessária,
aponta para a defesa do lema de Quine: “nenhuma entidade sem identidade.” Com
isso, o compromisso com estes princípios implica necessariamente o compromisso
com o princípio de identidade, mesmo que somente em sua forma predicativa.
50 Nazareno Eduardo de Almeida
(1) Com efeito, estas são as conseqüências para os que proferem tal
discurso [da contradição universal e necessária], e também que não é
necessário ou afirmar ou negar. Pois se é verdade que <algo é> homem
<e que é> não-homem, evidentemente também será <verdade dizer> que
não é homem nem não-homem, pois para as duas <afirmações
correspondem> duas negações, e se <é> uma <afirmação> composta de
ambas aquelas <afirmações>, então esta <negação> seria uma que se
lhe opõe.
(2) A partir disso, [A] ou todos <os estados de coisas> se
comportam deste modo (e <o mesmo> será branco e não-branco, ente e
não-ente, e do mesmo modo para as outras afirmações e negações), [A’]
ou não: mas, de um lado, <é assim> para alguns <estados de coisas>
[contraditórios], e, de outro lado, não <é assim> para alguns <estados de
coisas> [estados não-contraditórios]. E se, de um lado, não é assim para
todos <os estados de coisas>, estes [os não-contraditórios] seriam
concedidos <pelo adversário>.
(3) Mas se [B], de outro lado, é assim para todos, então, novamente,
ou [B’] daqueles de que se pode afirmar <algum predicado> também se
pode negar e daqueles de que se pode negar também se pode afirmar, ou
[B’’], por um lado, daqueles <estados de coisas> de que se pode afirmar,
pode-se também negar, mas, por outro lado, de nem todos aqueles de que
se pode negar se pode também afirmar. E se, de uma parte, é assim,
<então> haveria algo que seguramente não é, e isto seria uma opinião
firme, e se o não-ser de algo é firme e conhecido, então mais conhecido
seria a afirmação oposta.
(4) Mas [C], de outra parte, e de modo análogo <ao que foi dito
acima>, se daqueles <estados de coisas> de que se pode negar, <pode-se
também> afirmar, <então>, necessariamente, [C’] ou será verdadeiro
dizer em separado (por exemplo, que é branco e, novamente, que não é
branco), [C’’] ou não. E, de um lado, [C’’] se não é verdade dizer em
separado, <então> não diz estas <predicações> e também <este
adversário> não é coisa-alguma (e como poderia pronunciar algo e andar
o que não é?); e ainda, de outro lado, todos <os estados de coisas> seriam
um <só>, como já dissemos anteriormente, e serão idênticos ‘homem’,
‘deus’, ‘trirreme’ e as contradições destes (pois se para cada um <pode-se
52 Nazareno Eduardo de Almeida
54
Metafísica, IV, 4, 1008 a 2-34: tau'tav te ou\n sumbaivnei toi'" ' levgousi to;n lov-
gon tou'ton, kai; o[ti oujk ajnavgkh h] favnai h] ajpofavnai. eij ga;r ajlhqe;" o[ti a[n-
qrwpo" kai; oujk a[nqrwpo", dh'lon o[ti kai; ou[t! a[nqrwpo" ou[t! oujk a[nqrwpo"
e[stai: toi'n ga;r duoi'n duvo ajpofavsei", eij de; miva ejx ajmfoi'n ejkeivnh, kai; au{th
miva a]n ei[h ajntikeimevnh. < e[ti h[toi peri; a{panta ou{tw" e[cei, kai; e[sti kai;
leuko;n kai; ouj leuko;n kai; o]n kai; oujk o[n, kai; peri; ta;" a[lla" favsei" kai; ajpo-
favsei" oJmoiotrovpw", h] ou] ajlla; prei; mevn tina", peri; tina" d! ou[. kai; eij me;n
mh; peri; pa'sa", au|tai a]n ei\en oJmologouvmenai: eij de; peri; pa'sa", pavlin h[toi
kaq! o{swn to; fh'sai kai; ajpofh'sai kai; kaq! o{swn ajpofh'sai kai; ajpofh'sai, h]
kata; me;n w|n fh'sai kai; ajpofh'sai, kaq! o{swn de; ajpofh'sai ouj pavntwn fh'sai.
kai; eij me;n ou{tw", ei[h a[n ti pagivw" oujk o[n, kai; au{th bebaiva dovxa, kai; eij to;
mh; ei\nai bevbaiovn ti kai; gnwvrimon, gnwrimwtevra a]n ei[h hJ favsi" hJ ajntikeimev-
nh: eij de; oJmoivw" kai; o{sa ajpofh'sai favnai, ajnavgkh h[toi ajlhqe;" diairou'nta
levgein, oi|on o{ti leuko;n kai; pavlin o{ti ouj leuko;n, h] ou[. kai; eij me;n mh; ajlhqe;"
diaiou'nta levgein, ouj levgei te tau'ta kai; oujk e[stin oujdevn (ta; de; mh; o[nta
pw'" a]n fqevgxaito h] badivseien_), kai; pavnta d! a]n ei[h e{n, w{sper kai; provte-
ron ei[rhtai, kai; taujton e[stai kai; a[nqrwpo" kai; qeo;" kai; trihvrh" kai; aiJ ajn-
tifavsei" aujtw'n (eij ga;r oJmoivw" kaq! eJkavstou, oujde;n dioivsei e{teron eJtevrou:
eij ga;r dioivsei, tou't! e[stai ajlhqe;" kai; i[dion): oJmoivw" de; kai; eij diarou'nta
ejndevcetai ajlhqeuvein, sumbaivnei to; lecqevn, pro;" de; touvtw/ o{ti pavnte" a]n
ajlhqeuvoien kai; pavnte" a]n yeuvdointo, kai; aujto;" auJto;n oJmolovgei yeuvdesqai.
a{ma de; fanero;n o{ti peri; oujdenov" ejsti pro;" tou'ton hJ skevyi": oujde;n ga;r lev-
gei. ou[te ga;r ou{tw" ou[t! oujc ou{tw" levgei, ajll! ou{tw" te kai; oujc ou{tw": kai;
pavlin ge tau'ta ajpovfhsin a[mfw, o{ti ou[q! ou{tw" ou[te oujc ou{tw": eij ga;r mh;,
h[dh a[n ti ei[h wJrismevnon.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 53
55
Que Aristóteles tem este tipo de exemplo em mente é corroborado por sua
menção deste teorema no capítulo 8 do Livro IV (1012 a 32-33), um contexto que
retoma vários passos argumentativos semelhantes aos presentemente discutidos.
56
Deve-se observar que Aristóteles distingue dois tipos de negação: uma que se
refere a classes mutuamente exclusivas e outra que se refere a classes
complementares (cf. Da interpretação, 10; Primeiros analíticos, I, 46). Somente
nas negações do primeiro tipo pode-se passar validamente para a afirmação
contrária, tal como no caso da equivalência entre o não ser comensurável e o ser
in-comensurável da diagonal, ou ainda: o número três não é par equivale a dizer
que o número três é não-par (= é ímpar). Que Aristóteles tem presente a distinção
entre estes dois tipos de negação no contexto do Livro IV fica evidente pelo
parágrafo (5) do trecho (A1) anteriormente citado.
56 Nazareno Eduardo de Almeida
57
Para um exemplo (influente e problemático) desta interpretação tradicional, veja-
se, de Enrico Berti, Contraddizione e dialettica, negli antichi e nei moderni.
Palermo: Epos, 1987, cap. 4.
58
A título de indicação: a solução aristotélica do paradoxo se aproxima muito
daquela que foi esboçada por Arthur Prior, segundo a qual em todo enunciado
declarativo existe uma auto-predicação implícita de sua própria verdade (aquilo
que foi chamado aqui de ‘pretensão de verdade’), de modo que o enunciado do
mentiroso seria pura e simplesmente falso por ser auto-contraditório. Sobre a
solução de Arthur Prior, veja-se, “Epimenides the Cretan” & “Some problems of
reference in John Buridan”, in Papers in logics and ethics; (eds.) P. T. Geach e A.
J. P. Kenny. Londres: Duckworth, 1976, resp. p. 70-77, 130-146. Para uma
apresentação sucinta da solução de Prior, veja-se, de Richard L. Kirkham, Teorias
da verdade, uma introdução crítica; trad. Alessandro Zir. São Leopoldo:
Unisinos, 2003, p. 406-407.
60 Nazareno Eduardo de Almeida
9 Considerações finais
Foi visto como Aristóteles, mesmo apresentando inicialmente o
princípio primário na forma da não-contradição, supõe, ao mesmo
tempo, que este princípio pode ser apresentado alternativamente na
forma do terceiro excluído. A escolha do princípio de não-
contradição para apresentar o princípio primário deve-se,
provavelmente, ao fato de que o princípio do terceiro excluído foi
justamente formulado pela primeira vez, como princípio primário de
verdade, pelo próprio Aristóteles, enquanto o princípio de não-
contradição possuía já uma história dentro da tradição filosófica
grega anterior ao estagirita, em especial por seu uso e pressuposição
na obra de Platão. 59 Entretanto, a análise feita acima mostra que
ambos são pensados no Livro IV da Metafísica como princípios co-
originários, o que, na realidade, faz com que este texto esteja de
acordo com os demais contextos em que Aristóteles apresenta ou
discute ambos os princípios em pé de igualdade, como, por exemplo,
no famoso capítulo 9 do tratado Da interpretação, onde se coloca o
59
Vale lembrar a importância do princípio de não-contradição em toda a obra de
Platão, não apenas como critério para as refutações e argumentações elaboradas
em diversos diálogos das três fases de seu pensamento, mas como princípio
reconhecido como fundamental e operado na argumentação sobre as partes da
alma na República (Livro IV, 436 b-c; 436 e-437 a; 439 b).
62 Nazareno Eduardo de Almeida
60
Vale lembrar, de passagem, que no capítulo 9 do tratado Da interpretação
defende em conjunto a necessidade e universalidade dos princípios de não-
contradição e do terceiro excluído, mantendo simultaneamente a necessidade e
universalidade do princípio de bivalência, contrariamente ao que algumas
interpretações sugerem. Na verdade, Aristóteles está argumentando contra a
passagem (aos seus olhos falaciosa) da universalidade e necessidade de dicto dos
princípios de não-contradição, do terceiro excluído e de identidade para a
afirmação da universalidade e necessidade de re destes mesmos princípios. Para o
estagirita, a necessidade de re destes princípios se restringe apenas aos estados de
coisas enquanto instanciam propriedades universais e necessárias, ou seja, às
essências enquanto tema das definições (cf. Da interpretação, 11). Neste sentido,
segundo o quadrado das modalidades, a conjunção de duas proposições contrárias
(e não contraditórias) sobre a possibilidade contingente e futura de um mesmo
estado de coisas singular ou particular podem ser simultaneamente verdadeiras
(mas não simultaneamente falsas) enquanto o conteúdo proposicional de ambas
permanece puramente possível. Na medida em que os fatos a que se referem
cheguem a ocorrer ou não ocorrer, então uma das duas tem de ser considerada
verdadeira e a outra falsa. Mas sobre isso não é possível discorrer aqui.
61
É preciso lembrar, entretanto, que nem todas as lógicas polivalentes necessitam
de uma interpretação que negue a validade dos princípios do terceiro excluído e de
bivalência. Sobre este ponto, veja-se, de Susan Haack, Filosofia das lógicas; trad.
Cezar Mortari e Luís H. A. Dutra. São Paulo: UNESP, 1998, cap. 11, esp. p. 280-
282. É interessante notar que as lógicas intuicionistas impugnam a equivalência
tautológica entre o princípio de não-contradição e o do terceiro excluído, uma vez
que o primeiro é logicamente válido enquanto o segundo é inválido nestas lógicas.
Para uma apresentação introdutória às lógicas intuicionistas, enquanto lógicas
alternativas à lógica clássica, veja-se, de Cezar Mortari, Introdução à lógica. São
Paulo: UNESP, 2001, p. 377-381.
Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles 63
62
Para uma apresentação do sentido filosófico da lógica paraconsistente no
contexto das lógicas surgidas no século XX, veja-se, de Newton da Costa, Ensaio
sobre os fundamentos da lógica. São Paulo: Hucitec, 1994.
O leitmotiv arqueológico de Foucault no Prefácio de
História da Loucura
Augusto Bach *
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar o estatuto filosófico da história
arqueológica empreendida por Michel Foucault no início de seu pensamento. Sua
obra, simultaneamente filosófica e de história das ciências, tem o objetivo de
realizar uma arqueologia da nossa cultura. Desde a História da Loucura Foucault
sempre esteve interessado em fazer aparecer o modo como nossa cultura procurou
encerrar e significar o que era fundamentalmente “outro” no homem. Mediante a
leitura do primeiro Prefácio à História da Loucura, nós desejamos compreender
como os conceitos de razão e loucura estão conectados neste primeiro passo de sua
obra. É acerca dos problemas filosóficos que este artigo irá tratar na tentativa de
compreender o posicionamento filosófico desta nova maneira de escrever a história.
Palavras-chave: Arqueologia, Foucault, História, Loucura, Razão
1
A respeito desta analogia metodológica que historicamente animou o pensamento
arqueológico, é válido citar o pronunciamento de Michel Foucault em 1970 numa
conferência intitulada A Loucura e a Sociedade: “No estudo dos sistemas de
pensamento no Ocidente, o movimento tradicional consistiu, até agora, em só
prestar atenção nos fenômenos positivos. Ora, nesses últimos anos, em etnologia,
Lévi-Strauss explorou um método que permite esclarecer a estrutura negativa em
toda sociedade ou toda cultura. Por exemplo, ele demonstrou que, se o incesto é
proibido no seio de uma cultura, isso não está relacionado à afirmação de um certo
tipo de valores. [...] Para mim, tratava-se, então, não mais de saber o que é
afirmado e valorizado em uma sociedade ou em um sistema de pensamento, mas
de estudar o que é rejeitado ou excluído. Eu me contentei em utilizar um método
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 67
2
Acenamos aqui para o suprimido prefácio publicado na primeira edição da
História da Loucura na Idade Clássica em 1961. A partir de 1972 (ano da
segunda edição), por razões que serão necessárias explicitar ao longo do texto,
Foucault o suprimiu das posteriores edições da História da Loucura.
3
Foucault, Folie et dérasoin, 1999, p.187.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 69
4
Escrúpulos de imparcialidade em reconstituir a experiência histórica da loucura tal
como sua época a produziu quiçá herdados do mote fenomenológico.
5
Foucault, Doença Mental e Psicologia 1994, p. 91.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 71
6
Foucault, Folie et déraison, 1999, p.187.
72 Augusto Bach
7
Foucault, Ibidem. 1999, p.188.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 73
8
É sobre este ponto negro da história que irá se depositar toda uma linguagem que
Foucault irá chamar de “literatura”.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 75
Isso quer dizer que não se trata de uma história do conhecimento, mas dos
movimentos rudimentares de uma experiência. História não da
psiquiatria, mas da própria loucura, em sua vivacidade antes de toda
captura pelo saber. [...] Fazer a história da loucura quererá então dizer:
fazer um estudo estrutural do conjunto histórico – noções, instituições,
medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos – que mantém cativa
uma loucura cujo estado selvagem jamais poderá ser restituído nele
próprio; mas, na falta dessa inacessível pureza primitiva, o estudo
estrutural deve remontar à decisão que liga e separa, ao mesmo tempo,
razão e loucura; deve tender a descobrir a troca perpétua, a obscura raiz
comum, o afrontamento originário (grifo nosso) que dá sentido à unidade
tanto quanto à oposição entre o sentido e o insensato. Assim, poderá
reaparecer a decisão fulgurante, heterogênea ao tempo da história, mas
inapreensível fora dele... 9
9
Foucault, Ibidem, 1999, p.192.
76 Augusto Bach
em que, em último recurso, ele apoiou essa linguagem sem recurso e sem
apoio [sem recurso e sem apoio são palavras de Foucault que acabo de
citar]: quem enuncia o não-recurso, quem escreveu e quem deve ouvir
essa história da loucura? Pois não é um acaso se é hoje que tal projeto
pôde se formar. Deve-se supor – sem esquecer, muito pelo contrário, a
audácia do gesto de pensamento em História da Loucura – que uma certa
liberação da loucura começou, que a psiquiatria, por pouco que seja, se
abriu, que o conceito de loucura como desrazão, se algum dia teve uma
unidade, se deslocou. E que é na abertura desse deslocamento que um
projeto como esse pôde encontrar sua origem e sua passagem históricas.
Se Foucault está mais do que outro sensível e atento a questões desse tipo,
10
Referimo-nos aos artigos Cogito e História da Loucura e Fazer justiça a Freud.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 77
11
Derrida, J. Fazer justiça a Freud, 1994, p. 97
12
As objeções e hesitações expressas por Derrida referiam-se à possibilidade
mesma do projeto enunciado por Foucault em História da Loucura. Contudo, elas
78 Augusto Bach
14
Foucault, Ibidem, 1999, p. 194).
80 Augusto Bach
Não se procura reconstituir o que podia ser a própria loucura, tal como ela
se apresentaria inicialmente a alguma experiência primitiva, fundamental,
secreta, apenas articulada, e tal como teria sido organizada em seguida
(traduzida, deformada, deturpada, reprimida talvez) pelos discursos e pelo
jogo oblíquo, freqüentemente retorcido, de suas operações. Sem dúvida,
semelhante história do referente é possível; não se exclui de imediato, o
esforço para desenterrar e libertar (grifo nosso) do texto essas
experiências ‘pré-discursivas’. Mas não se trata, aqui, de neutralizar o
discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e atravessar-lhe a
espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém dele.”
Essas palavras de Foucault, ele o admite em nota, são escritas “contra um
tema explícito em Histoire de la folie e presente várias vezes no
prefácio.” Tratar-se-á então de definir o seu trabalho como a tarefa de
“substituir o tesouro enigmático das ‘coisas’ anteriores ao discurso pela
formação regular dos objetos que só nele (o discurso, grifo nosso) se
delineiam; definir esses objetos sem referência ao fundo das coisas. 15
15
Foucault, 2002, p.54.
82 Augusto Bach
16
Dizemos “retorno às coisas mesmas” para lembrar a oposição de Foucault ao
mote fenomenológico de Husserl.
17
A título de esclarecimento da expressão, aqui utilizada, nominalismo histórico
referente à prática arqueológica, é válido citar algumas palavras de Foucault
pronunciadas a este respeito: “Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas
sociais podem chegar a engendrar domínios de saber que não somente fazem
aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem
nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento. O
próprio sujeito de conhecimento tem uma história, a relação do sujeito com o
objeto, ou, mais claramente, a própria verdade tem uma história. [...] Atualmente,
quando se faz história – história das idéias, do conhecimento ou simplesmente
história – atemo-nos a esse sujeito de conhecimento, a este sujeito da
representação, como ponto de origem a partir do qual o conhecimento é possível e
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 83
a verdade aparece. Seria interessante tentar ver como se dá, através da história, a
constituição de um sujeito que não é dado definitivamente, que não é aquilo a
partir do que a verdade sé dá na história, mas de um sujeito que se constitui no
interior mesmo da história, e que é a cada instante fundado e refundado pela
história. É na direção desta crítica radical do sujeito humano pela história que
devemos nos dirigir.” (Foucault, A Verdade e as Formas Jurídicas 1999, p.8-10).
84 Augusto Bach
sentidos que a razão atribuiu à loucura ao longo das épocas, mas não
o seu suporte, não estaria Foucault retomando um projeto ontológico
através dessa História da Loucura? Mais ainda, não estaria a
arqueologia requerendo desta maneira uma fenomenologia que ela
mesma era incapaz de formular? Nesse sentido, o jovem Foucault
parece tomado numa contradição que opõe seu anti-humanismo aos
pressupostos de seu próprio método.
Para que não seja obliterada, contudo, a importância
decisiva desse conceito de experiência trágica em História da
Loucura, é preciso observar novamente que há, presente ainda nessa
nevralgia entre loucura e razão, uma “procura do fundamento
ontológico oculto no discurso” 18 que importuna o pensamento do
autor e o autoriza a supor, por debaixo da história que sobre a
loucura (racionalmente) foi realizada, uma experiência essencial à
loucura 19 atravessando livremente a história e escapando, ao mesmo
tempo, aos limites de sua constituição. É a esta forma mais que
primitiva de uma linguagem que fala sozinha e por si mesma – pois
sem qualquer sujeito historicamente constituído que a enuncie ou
interlocutor que a interprete – que Foucault está tentando escutar por
trás do silêncio imposto pelos diversos tempos históricos da nossa
18
Dreyfus e Rabinow, 1999, p. 4.
19
No que tange a História da Loucura não seria prudente afirmar com Paul Veyne
que “a loucura não existe” (Veyne, Paul; 1993 Foucault revoluciona a história in
Como se escreve a história). Neste texto, como é de hábito a muitos
comentadores, Veyne opera uma leitura retroativa, partindo das análises
genealógicas de Foucault efetuadas posteriormente, de História da Loucura
olvidando-se de levar em consideração as transformações teóricas por que tem
passado, ao longo de toda a obra foucaultiana, seu projeto de análise histórica.
Uma das propostas de Foucault, dirá Veyne, é a destruição dos “falsos objetos”
que o historiador das idéias ou das mentalidades seria seduzido a tomar como
ponto de referência; já que “é a nossa prática histórica que determina seus
objetos”. Certamente, Foucault tanto se esforçará em se libertar do método
praticado pela história das mentalidades, como definirá a loucura objetivada em
doença mental no século XIX; contudo, o ponto de referência primordial de suas
análises, em História da Loucura, continua sendo a idéia de uma “experiência
fundamental da loucura”, pilar a-histórico no qual se encontraria a verdade
profunda do homem. Em outras palavras: a doença mental só pôde existir como
objeto de uma interpretação histórica sobre a loucura enquanto determinada por
uma prática: a psiquiatria e sua instituição asilar; mas ainda assim a loucura existe
como estrutura imóvel atravessando os séculos.
O leitmotiv arqueológico de Foucault ... 85
Referências
DERRIDA, J; Fazer justiça a Freud in Leituras da ‘História da
Loucura’. Rio de Janeiro : Relume Dumará 1994.
DREYFUS y RABINOW; Michel Foucault: um percurso filosófico
Rio de Janeiro : Forense Universitária 1999.
FOUCAULT; (1) A Arqueologia do Saber, Rio de Janeiro : Forense
Universitária 2002.
_______ (2) A Verdade e as Formas Jurídicas, Rio de Janeiro : Nau
Editora 1999.
_______ (3) Dits et écrits I, Paris : Gallimard, 2001
_______ (4) Ditos e Escritos I, Rio de Janeiro : Forense
Universitária 1999.
_______ (5) Doença Mental e Psicologia, Rio de Janeiro : Tempo
Brasileiro 1994
_______ (6) Histoire de la folie à l’age classique, Paris: Gallimard,
1972.
VEYNE, Paul; Foucault revoluciona a história in Como se escreve
a história. Brasília : Ed. UnB 1993.
Da Virtude ao Terror:
o itinerário de um pensador revolucionário
Marcelo Alves *
Introdução
Acontecimento via de regra apresentado como a grande obra política
e social do Século das Luzes, a Revolução Francesa oferece ao
estudioso a oportunidade de observar, em toda a sua complexidade e
*
Doutorando em Filosofia pela UFSC. Professor da UNIVALI. E-mail:
unimalves@terra.com.br. Artigo recebido em 03.03.2008 e aprovado em
30.06.2008.
O contraste entre a brandura das teorias e a violência dos atos, que foi
uma das mais estranhas características da Revolução Francesa, não
surpreenderá a quem se lembrar que esta revolução foi preparada pelas
classes mais civilizadas da nação e executada pelas classes mais incultas e
rudes. 2
4
Estima-se que, somente entre o verão de 1788 e maio de 1789, algo entre mil a
dois panfletos circularam pela França, sobretudo em Paris. O peso dessa literatura
para o advento da Revolução é freqüentemente reconhecido: “[...] não se poderia
subestimar o peso, nos últimos anos que precedem 1789, do ‘baixo clero’ leigo
das Luzes, intelligentsia marginal, boêmia literária formada pelos seguidores de
Diderot ou pelos ‘Rousseau das sarjetas’ (R. Darnton) à qual pertencem Marat,
Brissot, Sébastien Mercier, Carra, Camille Desmoulins, e outros escrevinhadores
[...]. Minando essa sociedade, a monarquia e a Igreja Católica, por abundantes
publicações de segunda ordem, freqüentemente escandalosas, essa ‘literatura da
lama’ foi mais perigosa para o Antigo Regime que os textos dos filósofos mais
ousados” (Bluche, Fréderic; Rials, Stéphane & Tulard, Jean. 1889, p. 56).
5
Camus, Albert. Lettres à un ami allemand. In:. Essais. Paris: NRF/Gallimard,
1996. p. 233. Todas as traduções sem indicação do tradutor são de minha
responsabilidade.
Da Virtude ao Terror 93
A Virtude e a Lei
Basta folhear a principal obra de Saint-Just, O Espírito da
Revolução e da Constituição na França (1791), para o leitor
reconhecer que está diante de um autor que faz dos valores e das
estruturas sociais e políticas do período clássico a medida para
julgar a Revolução e os seus resultados. Não é a eficácia
administrativa ou a preservação e a promoção da vida, como
encontramos em Maquiavel e Hobbes, que servem de medida para
avaliar a política, mas aquilo que é a grande marca da concepção
política clássica: a virtude. E essa virtude é preservada e estimulada
por meio das Leis: “Todo bem deriva da bondade das leis, todo mal,
de sua corrupção” 6 . As leis combatem os vícios, corrigem os
costumes: “uma boa Constituição desconcerta os preconceitos e cura
os costumes” 7 . E não se pense que Saint-Just está se referindo
apenas a uma virtude pública. A crença desse jovem advogado nos
poderes da Lei é tamanha que ele chega a lhe atribuir a tarefa de
tornar os homens privadamente virtuosos: “Quanto mais os
costumes privados forem dissolutos, tanto mais convém que leis
boas e humanas tornem-se inflexíveis contra seu desregramento. A
virtude nada deve ceder aos homens em particular” 8 . Trata-se, para
6
Saint-Just, 1989. p. 75
7
Saint-Just, 1989, p. 72.
8
Saint-Just, 1989, p. 68. Ainda vale a pena destacar outra passagem que retoma de
modo mais detalhado essa crítica à corrupção dos costumes privados e faz das leis
a grande esperança para “regenerar” os indivíduos: “os costumes privados, quadro
deplorável que a pena se recusa às vezes a traçar; são a conseqüência inevitável da
sociedade humana e derivam da tormenta do amor próprio e das paixões. Os gritos
dos oradores não param de persegui-los sem atingi-los: a pintura que fazem deles
só serve para acabar de corrompê-los. Ocultam-se freqüentemente sob o véu da
Da Virtude ao Terror 95
virtude e toda a arte das leis consiste em repeli-los incessantemente sob esse véu.
[...] A natureza saiu do coração dos homens e ocultou-se em sua imaginação;
entretanto, se a constituição é boa, reprime os costumes ou transforma-os em
benefício próprio, como um corpo robusto se nutre de alimentos sem qualidade”
(id., ib., p. 60-61).
9
Saint-Just, 1989, p. 60-61. É interessante notar o quanto esse raciocínio de Saint-
Just é devedor daquele feito por Rousseau em relação, sobretudo, à liberdade
natural. Se, para o primeiro, a lei “traz de volta o natural” (id., ib., 67), para o
segundo, a liberdade natural perdida na passagem do estado natural para a vida em
sociedade só poderá ser resgatada – não de maneira plena, mas em boa medida –
por meio do contrato social, fonte das leis civis.
96 Marcelo Alves
A justiça será simples quando as leis civis, livre das sutilezas feudais,
beneficiárias e habituais, não despertarem mais do que a boa fé entre os
homens, quando o espírito público voltado para a razão deixar os
tribunais desertos.
A Virtude e a Revolução
Se a lei desempenha todo esse papel na vida pública e na vida
privada dos cidadãos, a conclusão de Saint-Just quanto àquilo que
seria a principal causa da Revolução não poderia ser outra: a
Revolução Francesa deve o seu advento à fragilização da lei e
daquelas instituições que deveriam fazer com que ela fosse
respeitada:
10
Saint-Just, 1989, p. 110.
11
Saint-Just, 1989, p. 37.
12
Saint-Just, 1989, p. 151.
Da Virtude ao Terror 97
As revoluções são menos um acidente das armas que um acidente das leis.
Há muitos séculos a monarquia nadava no sangue e não se dissolvia. Mas
há uma época na ordem política em que tudo se decompõe por um germe
secreto de consunção, tudo se deprava e degenera; as leis perdem a sua
substância natural e se enfraquecem; então se algum povo bárbaro se
apresenta, tudo cede ao seu furor e o Estado é regenerado pela conquista.
Se não é atacado pelos estrangeiros, sua corrupção o devora e o
reproduz. 13
13
Saint-Just, 1989, p. 17.
14
Saint-Just, 1989, p. 18.
15
Saint-Just, 1989, p. 20. Em relação a Luís XVI, o julgamento de Saint-Just recai
sobretudo sobre a sua fraqueza para defender e promover a virtude: “pelo fato de
pensar o bem, acreditava fazê-lo” (id., ib., p. 19).
98 Marcelo Alves
Não se pensou na mais sólida das vantagens, na fuga das tropas que
bloqueavam Paris [que ocorreu dois dias depois da Queda da Bastilha];
regozijou-se com a conquista de uma prisão de Estado. Aquilo que trazia
a marca da escravidão pela qual se era oprimido impressionava mais a
imaginação do que aquilo que ameaçava a liberdade que não se tinha; foi
o triunfo da servidão. Despedaçavam-se as portas das masmorras,
atormentavam-se os cativos em seus grilhões, banhavam-nos de pranto,
fizeram-se esplêndidas exéquias às ossadas que se descobriram fazendo
escavações na fortaleza; desfilaram troféus de grilhões, de ferrolhos e de
outros arneses de escravos. [...] as revoluções deste tempo apenas
mostram por toda parte uma guerra de escravos imprudentes, que lutam
com seus grilhões e caminham exaltados. 16
O povo exerceu por sua vez uma espécie de despotismo; a família do rei e
a Assembléia dos Estados marcharam aprisionadas em Paris, no meio da
pompa mais ingênua e mais perigosa que jamais existiu. Percebeu-se
então que o povo não agia para a elevação de ninguém, mas para o
aviltamento de todos. O povo é uma eterna criança; ele fez com que
16
Saint-Just, 1989, p. 22.
17
Saint-Just, 1989, p. 23.
Da Virtude ao Terror 99
18
Saint-Just, 1989, p. 23.
19
Mais especificamente, a própria Bastilha era apresentada pelos escritores como
grande símbolo das injustiças e da opressão sofrida pelo povo, a um nível tal que a
transformaram num mito: “A Bastilha é, no entanto, a maior realização histórica
da mitomania, uma produção hollywoodiana cujos diretores foram a angústia
visionária dos humildes e o imaginário erudito dos letrados, o medo supersticioso
de uma pobre mulher que um século antes seria dita ‘possuída’, e a criação
100 Marcelo Alves
27
Saint-Just, 1989, p. 37.
28
Saint-Just, 1989, p. 37.
29
Saint-Just, 1989, p. 43.
30
Saint-Just, 1989, p. 44.
31
Saint-Just, 1989, p. 44.
Da Virtude ao Terror 103
32
Saint-Just, 1989, p. 37.
33
Num dos seus poucos momentos de otimismo tipicamente iluminista em relação
ao futuro do homem em sociedade, Saint-Just declara que “no mundo, por mais
confuso que ele pareça, percebe-se sempre um propósito de perfeição, e parece-
me inevitável que, após uma longa seqüência de revoluções, o gênero humano, à
força de luzes, se volte à sabedoria e à simplicidade” (Saint-Just, 1989, p. 144).
104 Marcelo Alves
34
“A Constituição é o princípio e o fulcro das leis; toda instituição que não emana
da Constituição é tirania; é por isso que as leis civis, as leis políticas, as leis do
direito das gentes devem ser positivas e nada deixar para as fantasias, nem para as
presunções do homem” (Saint-Just, 1989, p.57).
35
Saint-Just, 1989, p. 120.
36
Um texto que consagra essa visão e contribui substancialmente para torná-la
vitoriosa é “O que é o Terceiro Estado?”, de Emmanuel Sieyès. Lá aparece
explicitamente a sugestão de que as “classes disponíveis do terceiro estado”
formem o corpo de representantes da nação: “Considerai as classes disponíveis do
terceiro estado, e eu chamo, como todo mundo, classes disponíveis aquelas em
que uma certa condição favorável permite aos homens receber uma educação
liberal, cultivar a sua razão, enfim, interessar-se pelos negócios públicos. Estas
classes não têm outro interesse a não ser aquele mesmo do resto do povo. Vêde se
elas não contêm vários cidadãos instruídos, honestos, dignos, em todos os
aspectos, de ser bons representantes da nação.” Sieyès, E. J. p. 43.
37
Saint-Just, 1989, p. 99.
Da Virtude ao Terror 105
38
Saint-Just, 1989, p. 151.
39
Saint-Just, 1989, p. 50.
106 Marcelo Alves
[...] a nação recebeu o que lhe convinha da liberdade para ser soberana; a
legislação tornou-se popular pela igualdade, o monarca conservou o poder
de que necessitava para ser justo. Como é belo ver como tudo fluiu no
seio do estado monárquico, que os legisladores escolheram
judiciosamente para ser a forma de um grande governo; a democracia
constitui; a aristocracia faz as leis, a monarquia governa! 41
A Virtude e o Terror
A Constituição de 1791 havia sido concebida para “terminar” a
Revolução, para “fixar” as suas conquistas, traduzindo-as em uma
nova ordem social e política. A euforia que inicialmente a Queda da
40
Saint-Just, 1989, p. 50.
Da Virtude ao Terror 107
41
Saint-Just, 1989, p. 50.
42
Apud: Chaussinand-Nogaret, Guy. 1989, p. 97.
43
Apud: Bluche, Fréderic; Rials, Stéphane & Tulard, Jean. 1989, p. 72-73.
108 Marcelo Alves
Aqui não há processo. Luís não é um acusado, vós não sois seus juízes:
vós sois, e não podeis ser outra coisa senão homens de Estado e
44
Saint-Just, Sur le jugement de Louis XVI – Prononcé devant la Convention le 13
novembre 1972.
Da Virtude ao Terror 109
46
Cf. Bluche, Fréderic; Rials, Stéphane & Tulard, Jean. 1989, p. 113.
47
Saint-Just, Rapport sur la necessité de déclarer le gouvernement révolutionnaire
jusqu’à la paix – Prononcé devant la Convention le 10 octobre 1973. Saint-Just
está se referindo, de um lado, ao direito de insurreição que a constituição
montanhesa confere e, de outro, à situação crítica em França, que inclui crise
econômica, guerra civil, agitação social e uma guerra travada ao mesmo tempo
com vários países europeus.
48
Saint-Just, Rapport sur la necessité de déclarer le gouvernement révolutionnaire
jusqu’à la paix – Prononcé devant la Convention le 10 octobre 1973.
49
Ambos já formam, juntamente com Couthon, o trio de ideólogos do “Grande
Comitê de Salvação Pública”, criado desde 6 de abril de 1793 e composto no total
por doze Montanheses, que controlam diferentes setores do governo.
50
Robespierre, M. Rapport sur les principes du Gouvernement révolutionnaire. Fait
au nom du Comité de salut public, prononcé à la Convention le 25 décembre
1793.
Da Virtude ao Terror 111
51
Robespierre, M. Sur les principes de morale politique qui doivent guider la
convention nationale dans l’administration intérieure de la République – Prononcé
à la Convention le 5 février 1794.
52
Saint-Just, Rapport sur la necessité de déclarer le gouvernement révolutionnaire
jusqu’à la paix – Prononcé devant la Convention le 10 octobre 1973.
53
Apud: Bluche, Fréderic; Rials, Stéphane & Tulard, Jean. 1989, p. 119. É essa, em
linhas gerais, a caracterização de “inimigo do povo” que o leitor encontrará
detalhada, por exemplo, no relatório de Robespierre intitulado “Sur les principes
de morale politique qui doivent guider la convention nationale dans
l’administration intérieure de la République”, pronunciado em 5 de fevereiro de
1794, na Convenção Nacional. Eis alguns números do Terror: “Antes da lei dos
suspeitos, o Tribunal Revolucionário pronunciava a pena de morte onze vezes por
mês, em média (24% das sentenças). Passou-se a 134 execuções mensais (58%)
entre a lei dos suspeitos e a lei prairial, e a 878 (79%) entre prairial [10 de junho
de 1794] e termidor [9 de junho de 1794]. No fim do Terror, o número de
execuções terá aumentado em metade a cada mês (38 cabeças por dia às vésperas
de 9 de termidor). A náusea da guilhotina atinge até mesmo uma parte do público
112 Marcelo Alves
“patriota, mas os Comitês não parecem nada dispostos a deter o Terror” (Bluche,
Fréderic; Rials, Stéphane & Tulard, Jean.1989, p. 130).
54
Robespierre, M. Sur les principes de morale politique qui doivent guider la
convention nationale dans l’administration intérieure de la République – Prononcé
à la Convention le 5 février 1794.
55
Saint-Just, Fragments sur les institutions républicaines, Troisième Fragment.
56
Robespierre, M. Sur les principes de morale politique qui doivent guider la
convention nationale dans l’administration intérieure de la République – Prononcé
à la Convention le 5 février 1794.
57
Saint-Just, Rapport sur la necessité de déclarer le gouvernement révolutionnaire
jusqu’à la paix – Prononcé devant la Convention le 10 octobre 1973. Vale notar
Da Virtude ao Terror 113
que a liberdade nesse contexto, ou seja, num Governo Revolucionário, deve ser
exercida ativamente, e não mais passivamente, como Saint-Just defendia para a
Constituição de 1791.
58
Robespierre, M. Rapport sur les principes du Gouvernement révolutionnaire. Fait
au nom du Comité de salut public, prononcé à la Convention le 25 décembre
1793.
114 Marcelo Alves
59
Como já foi visto, para Saint-Just, a Europa deveria tirar melhor proveito da
grande força moral que pode ser extraída da Revolução Francesa. Para
Robespierre, trata-se de um modelo que é invejado e, ao mesmo tempo, temido
pelos demais países europeus, o que faz com que queiram destruí-lo (Cf.
Robespierre, M. Rapport sur les principes du Gouvernement révolutionnaire).
Da Virtude ao Terror 115
Referências
BLUCHE, Fréderic; RIALS, Stéphane & TULARD, Jean. A
Revolução Francesa. Trad. Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1989.
CAMUS, Albert. Lettres à un ami allemand. In: Essais. Paris:
NRF/Gallimard, 1996. p. 233. (Col. Bibliothèque de La Pléiade).
CHAUSSINAND-NOGARET, Guy. A Queda da Bastilha: o
começo da Revolução Francesa. Trad. Lucy Magalhães. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
ROBESPIERRE, M. Sur les principes de morale politique qui
doivent guider la convention nationale dans l’administration
intérieure de la République – Prononcé à la Convention le 5 février
1794. Disponível em:<http://www.membres.lycos.fr/discours>.
Acesso em: 10 jul. 2006.
________. Rapport sur les principes du Gouvernement
révolutionnaire. Fait au nom du Comité de salut public, prononcé à
la Convention le 25 décembre 1793. Disponível em:
<http://www.membres.lycos.fr/discours>. Acesso em : 10 jul. 2006.
SAINT-JUST, Louis Antoine Léon. O espírito da revolução e da
constituição na França. Trad. Lídia Fachin e Maria Letícia G.
Alcoforado. São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista,
1989.
________. Fragments sur les institutions républicaines. Disponível
em:
<http:www.classiques.uqac.ca/classiques/saint_just/fragments/fragm
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________. Sur le jugement de Louis XVI – Prononcé devant la
Convention le 13 novembre 1972. Disponível em:
<http//www.royet.org/nea1789-
1794/archives/discours/stjust_gouvernement_revolutio...> Acesso
em: 10 jul. 2006.
116 Marcelo Alves
Thomaz Kawauche*
Resumo: Este artigo tem como objetivo evidenciar o aspecto político da Profissão
de fé do vigário saboiano a fim mostrar, na passagem do Emílio para o Contrato
social, a idéia rousseauniana de tolerância como elo de ligação entre religião
natural e religião civil.
Palavras-chave: Moral, Política, Religião, Rousseau, Tolerância.
2
Para um quadro comparativo detalhado entre os dogmas da religião natural no
Emílio e os da religião civil no Contrato, deve-se consultar Waterlot, G.
Rousseau: religion et politique. Paris: PUF, 2004, p. 88.
Da religião natural à religião civil em Rousseau 119
* * *
3
Kawauche, T. A santidade do contrato e das leis: um estudo sobre religião e
política em Rousseau. Dissertação (Mestrado em Filosofia). São Paulo: FFLCH-
USP, 2007. O texto integral da dissertação encontra-se disponível na Biblioteca
Digital de Teses e Dissertações da USP (www.teses.usp.br).
120 Thomaz Kawauche
4
O.C. III, Lettres écrites de la montagne, III, p. 695 (trad. bras. p. 157).
5
O.C. IV, Lettre à Christophe de Beaumont, p. 996-997 (trad. bras. p. 107).
Da religião natural à religião civil em Rousseau 121
6
O.C. IV, Lettre à Christophe de Beaumont, p. 997 (trad. bras. p. 107).
122 Thomaz Kawauche
Tão logo cada um pretenda ser o único a ter razão, para escolher entre
tantos partidos, será preciso escutar a todos, ou seremos injustos. 8
7
O.C. IV, Émile, IV, p. 617-618 (trad. bras. p. 411).
8
O.C. IV, Émile, IV, p. 618 nota (trad. bras. p. 411).
9
O.C. IV, Lettre à Christophe de Beaumont, p. 960 (trad. bras. p. 72).
Da religião natural à religião civil em Rousseau 123
de reconhecê-la; mas, se vejo a seu favor provas que não posso combater,
vejo também contra ela objeções que não consigo resolver. Há tantas
razões sólidas contra e a favor que, não sabendo o que decidir, não a
admito, nem a rejeito; rejeito apenas a obrigação de reconhecê-la, porque
essa pretensa obrigação é incompatível com a justiça de Deus que, longe
de retirar com ela os obstáculos para a salvação, tê-los-ia multiplicado, tê-
los-ia tornado intransponíveis para a maior parte do gênero humano.
Afora isso, permaneço quanto a esse ponto numa dúvida respeitosa. 10
10
O.C. IV, Émile, IV, p. 625 (trad. bras. p. 419).
11
O.C. IV, Émile, IV, p. 614 (trad. bras. p. 407).
12
O.C. IV, Lettre à Christophe de Beaumont, p. 996 (trad. bras. p. 106).
124 Thomaz Kawauche
13
O.C. IV, Émile, IV, p. 610 (trad. bras. p. 404).
14
O.C. IV, Émile, IV, p. 607 (trad. bras. p. 400).
15
O.C. III, Lettres écrites de la montagne, III, p. 747 (trad. bras. p. 233).
Da religião natural à religião civil em Rousseau 125
16
O.C. III, Lettres écrites de la montagne, III, p. 750 (trad. bras. p. 237).
17
O.C. IV, Émile, IV, p. 624-625 (trad. bras. p. 418-419).
126 Thomaz Kawauche
18
O.C. IV, Émile, IV, p. 625-626 (trad. bras. p. 419).
Da religião natural à religião civil em Rousseau 127
19
Masson sugere que Rousseau abre mão de sua crítica diante da impossibilidade
de aplicá-la contra a revelação cristã: “Ainsi la lourde machine de guerre, qu’il a
mise en mouvement contre toute révélation, semble avoir joué à faux, et demeurer
impuissante contre la révélation chrétienne.” Masson, P.-M. La Religion de Jean-
Jacques Rousseau, t. II. Paris: Hachette, 1916, p. 107. Esse comentador explica
ainda que, nesse momento do texto, Rousseau faz tábula rasa de toda sua
discussão anterior, passando a deixar-se guiar pela voz do coração: “Rousseau
aborde le problème de la Révelation chrétienne et l’examen de l’Évangile, comme
si tous les arguments qu’il vient d’accumuler contre toute révélation n’étaient pas
valables contre la religion chrétienne. Il semble, en effet, que, dans les pages qui
vont suivre, Rousseau fasse table rase de toute la discussion antérieure, laisse de
côté “les principes de la raison”, dont il vient de dire qu’ “il n’y a rien de plus
incontestable”, et se laisse guider par la seule voix du “coeur”. Cette brusque
volte-face, inexpliquée et presque inconsciente, témoigne d’un bien curieux
dédoublement de mentalité. [...]” Masson, P.-M. La “Profession de foi du vicaire
savoyard” de Jean-Jacques Rousseau. Paris: Hachette, 1914, p. 397. Bruno
Bernardi, em sua edição crítica da Profissão de fé, defende, contrariamente a
Masson, que não se trata de um retorno de Rousseau à idéia de revelação, mas
apenas de uma ressonância entre a linguagem dos Evangelhos e a voz da
consciência: “L’idée de révélation reste, comme celle de création, de celles dont
on doit dire que la raison ne peut pas les poser, sans qu’elle s’y oppose. D’autre
part, il ne nous importe pas assez de la poser pour que notre sentiment intérieur se
prononce. Cela parce que la voix de notre conscience suffit à nous dire tout ce que
nous devons entendre. Pourquoi alors cette place tout à fait singulière pour
l’Évangile? Parce qu’il nous parle de la même voix que notre conscience, celle du
sentiment intérieur. Ce qu’il dit, notre “instinct divin” nous le dit. Il fait vibrer la
corde qui sommeille en nous, parce qu’il est avec elle à l’unisson. [...]”. Cf. La
Profession de foi du vicaire savoyard. Paris: GF-Flammarion, 1996, nota 127.
Isso vai de encontro àquilo que Henri Gouhier já havia sugerido em seu famoso
artigo “Nature et histoire dans la pensée de Jean-Jacques Rousseau”, de 1955: que
é como se o livro da natureza dissesse o mesmo que os Evangelhos. Cf. Gouhier,
H. Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques Rousseau. Paris: J. Vrin,
1970, p. 39.
128 Thomaz Kawauche
20
O.C. IV, Émile, IV, p. 627 (trad. bras. p. 421).
21
O.C. IV, Émile, IV, p. 627 (trad. bras. p. 421).
22
O.C. IV, Lettre à Christophe de Beaumont, p. 995 (trad. bras. p. 105). Nesse
ponto, há uma questão importante que se impõe: a tolerância do vigário nasce do
ceticismo? A resposta tende para a negativa pelo seguinte argumento: o
“ceticismo involuntário” do vigário não é um ceticismo no sentido mais radical do
termo, de modo que ele não deixa de crer nas verdades fundamentais da religião
natural para concluir pela necessidade da circunspecção e, com isso, tornar-se
tolerante. O ceticismo do vigário na segunda parte da Profissão de fé não é levado
às últimas conseqüências, servindo apenas como instrumento de combate aos
materialistas. Como explica Maria das Graças de Souza, “para criticar os
dogmáticos Rousseau se utiliza do instrumental cético, mas apenas para sustentar
sua própria posição contra as filosofias materialistas. Se ele discute com seus
contemporâneos, opondo às teses materialistas seus ‘artigos de fé’, é que ele
permanece no interior da filosofia, não realiza a retirada cética. Tenta, ao
contrário, superar as teses dos adversários mediante outras teses positivas.”
Souza, M.G. “O Cético e o Ilustrado”. Cadernos de Ética e Filosofia Política, São
Paulo, n. 2, 2000, p. 10. Ezequiel de Olaso, em um importante artigo, explica que
Rousseau apresenta dois tipos de ceticismos: o acadêmico e o pirrônico. Se por
um lado o vigário defende a incompreensibilidade das coisas pela razão, o que
estaria de acordo com o ceticismo acadêmico, por outro ele é conduzido pela
consciência a continuar suas investigações após a suspensão do seu juízo, o que
seria o ideal do pirronismo. Para Olaso, a Profissão de fé é “el testimonio de una
crisis pirrónica de la que el Vicario quiere salir por medios académicos”. Olaso,
E. “Los dos escepticismos del vicario saboyano”. Manuscrito, Campinas, v. III, n.
2, 1980, p. 12.
Da religião natural à religião civil em Rousseau 129
23
O.C. IV, Émile, IV, p. 624 (trad. bras. p. 418).
24
O.C. III, Lettres écrites de la montagne, I, p. 699 (trad. bras. p. 163).
130 Thomaz Kawauche
25
O.C. IV, Émile, IV, p. 629 (trad. bras. p. 423-424). Acerca dessa questão,
recomenda-se a leitura do artigo “Rousseau: filosofia política e revolução”, de
Bento Prado Jr., no qual o filósofo brasileiro contesta a tese de Bernard
Groethuysen, segundo a qual o pensamento de Rousseau seria revolucionário. Cf.
Prado Jr., B. “Rousseau: filosofia política e revolução”. In: Discurso sobre a
economia política e Do contrato social. Trad. Maria Constança Peres Pissarra.
Petrópolis: Vozes, 1996. Nesse artigo, Bento Prado cita uma interessante
passagem dos Diálogos, na qual Rousseau afirma considerar-se “o homem do
mundo que tem o mais verdadeiro respeito pelas leis, pelas constituições
nacionais, e que tem a maior aversão pelas revoluções e pelos militares de toda
espécie [...].” O.C. I, Rousseau juge de Jean-Jacques, Troisième Dialogue, p. 935.
26
O.C. III, Du Contrat social, IV, 8, p. 469 (trad. bras. p. 150).
27
O.C. IV, Émile, IV, p. 628 (trad. bras. p. 422).
28
Cita-se a conhecida passagem do Contrato: “Há, pois, uma profissão de fé
puramente civil, cujos artigos o soberano tem de fixar, não precisamente como
dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade sem os quais é
impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Sem poder obrigar ninguém a crer
neles, pode banir do Estado todos os que neles não acreditarem, pode bani-los não
como ímpios, mas como insociáveis, como incapazes de amar sinceramente as
Da religião natural à religião civil em Rousseau 131
leis, a justiça, e de imolar, sempre que necessário, sua vida a seu dever.” O.C. III,
Du Contrat social, IV, 8, p. 468 (trad. bras. p. 149).
29
O.C. III, Lettres écrites de la montagne, I, p. 701 (trad. bras. p. 166).
30
Fortes, L.R.S. Paradoxo do espetáculo. São Paulo: Discurso, 1997, p. 153.
31
Um estudo exaustivo sobre a relação entre religião natural e religião civil deveria
abordar a contradição entre homem e cidadão estabelecida por Rousseau em sua
obra. Salinas Fortes nos oferece uma pista do caminho a ser trilhado ao afirmar o
seguinte: “Religião civil e religião natural. Duas formas opostas de religião? E
como o apóstolo da ‘religião natural’ pode ser, ao mesmo tempo, o adepto de uma
‘religião civil’? Longe de serem opostas, trata-se, ao contrário, de duas noções
absolutamente complementares.” Cf. Fortes, L.R.S. Paradoxo do espetáculo, op.
cit., p. 132. São noções “complementares” porque não se confundem, e, ao
mesmo tempo, são mutuamente dependentes. É o que ocorre com as noções de
homem e cidadão, referidas por Salinas em termos de uma “dicotomia” e uma
“dualidade”: “A dicotomia recobre, como se vê, a dualidade antropo-política do
indivíduo humano: o Homem, de um lado e, de outro, o Cidadão.” Id., ibid., p.
133.
132 Thomaz Kawauche
Referências
FORTES, Luiz Roberto Salinas. Paradoxo do espetáculo: política e
poética em Rousseau. São Paulo: Discurso, 1997.
GOUHIER, Henri. Les Méditations métaphysiques de Jean-Jacques
Rousseau. Paris: J. Vrin, 1970.
KAWAUCHE, Thomaz. A santidade do contrato e das leis: um
estudo sobre religião e política em Rousseau. Dissertação (Mestrado
em Filosofia). São Paulo, 2007. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas – Universidade de São Paulo.
MASSON, Pierre-Maurice. La Religion de Jean-Jacques Rousseau.
Paris: Hachette, 1916, 3 v.
OLASO, Ezequiel. “Los dos escepticismos del vicario saboyano”.
Manuscrito, Campinas, v. III, n. 2, p. 7-23, 1980.
PRADO JR., Bento. “Rousseau: filosofia política e revolução”. In:
Discurso sobre a economia política e Do contrato social. Trad.
Maria Constança Peres Pissarra. Petrópolis: Vozes, 1996.
SOUZA, Maria das Graças de. “O Cético e o Ilustrado”. Cadernos
de Ética e Filosofia Política, São Paulo, n. 2, p. 9-17, 2000.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Œuvres Complètes. Paris: Gallimard,
1959-1995. 5 v. (Coleção “Bibliothéque de la Pléiade”).
______. La “Profession de foi du vicaire savoyard” de Jean-
Jacques Rousseau. Édition critique de Pierre-Maurice Masson.
Paris: Hachette, 1914.
Da religião natural à religião civil em Rousseau 133
Abstract: In his 1982 book Wittgenstein On Rules and Private Language, Saul
Kripke maintains that Wittgenstein´s rule following considerations land us with a
skeptical argument about meaning. This essay contains a short exposition of
Kripke´s argument. In addition, I hold, both on textual grounds and by an appeal to
some select secondary literature, that Wittgenstein offered no such skeptical
argument in the Philosophical Investigations. Although Wittgenstein certainly
repudiates a view of meaning based on temporally located mental states, it does not
follow that there can be no meaning-grounding facts of other sorts. Although it is
true that mental states, viewed atomistically, offer no sure foundation for meaning,
I argue that it need not follow, pace Kripke, that no facts about an individual´s past
mental life can ever make it clear that he meant ‘plus’ rather than ‘quus’ while
performing any addition. For the individual´s past mental life is indeed relevant to
meaning when considered in its unfolding in time. The essay further contains
explorations on the very nature of the practice of following a rule and ends with a
discussion of the solitary rule follower.
Keywords: Kripke, Rule following, Skepticism about meaning, Wittgenstein
Resumo: Em seu livro Wittgenstein On Rules and Private Language (1982), Saul
Kripke afirma que as considerações de Wittgenstein sobre seguir uma regra
deixam-nos com um argumento cético quanto ao significado. Este artigo contém
uma breve exposição do argumento de Kripke. Além disso, argumentamos com
elementos textuais e valendo-nos, ainda, da literatura secundária, que Wittgenstein
não ofereceu um argumento cético em suas Investigações Filosóficas. Embora
Wittgenstein certamente repudie uma visão do significado baseada em estados
mentais temporalmente localizados, não se segue que a noção de significado não
possa ter base diversa. Embora seja certo que os estados mentais, considerados
atomisticamente, não ofereçam um fundamento seguro para o significado, não se
segue, pace Kripke, que nenhum fato atinente à vida mental anterior de um
indivíduo determine se ele pretendeu significar ‘plus’ em vez de ‘quus’, ao fazer
uma adição qualquer. A vida mental anterior de um indivíduo é, na verdade,
relevante para o significado, se considerada em seu evolver no tempo. O artigo
*
Doutor em filosofia pela University of California, Riverside, professor de filosofia
da Faculdade Maurício de Nassau. E-mail: rodrigo-jungmann@yahoo.com.br.
Artigo recebido em 22.09.2007 e aprovado em 30.05.2008.
ainda explora a própria prática de seguir uma regra e termina com uma discussão
do seguidor solitário de uma regra.
Palavras chave: Ceticismo quanto ao significado, Kripke, Seguir uma regra,
Wittgenstein
This essay has two main purposes and a few subsidiary ones. I shall
hold, both on textual grounds and by drawing on some of the
relevant secondary literature on the topic, that Wittgenstein’s rule
following considerations, as presented in his Philosophical
Investigations, do not offer a skeptical argument about meaning.
Moreover, I shall maintain that Wittgenstein’s treatment of rule
following does not purport to show that the very notion of meaning
is riddled with insurmountable difficulties, requiring an approach
which dispenses altogether with the traditional picture which has it
that the meaning of a declarative sentence is – through its truth
conditions – importantly related to extra-linguistic facts or states of
affairs. Rather, it should become clear, on the view which will
emerge as this essay unfolds, that Wittgenstein’s real target are those
positions which take it that the meaning of a sentence – or, more
appropriately, given both Wittgenstein and Kripke’s stress on the
language user’s perspective, what it is for someone to mean
something by a sentence – is to be thought of in terms of an
individual’s possession of inner states comprising occurrent, that is
to say, temporally located, mental events.
Although one is bound to concede that objectively existing
facts of a certain sort cannot constitute a proper foundation for
meaning, it does not follow, pace Kripke, that Wittgenstein’s
thinking on rule following leaves no room for alternative candidates
which could do the job. If this is correct as an interpretation of
Wittgenstein, the appearance of a sceptical problem – namely that
we are content to speak about meaning, in our everyday interactions
as if it were an unproblematic concept, there being all along no facts
of the matter constituting someone’s meaning this or that by his
words – can be seen to vanish.
Since there is in fact no skeptical problem in the
Philosophical Investigations, Wittgenstein scarcely needs to come
“Kripke’s Near Miss” … On Rule Following 137
* * *
138 Rodrigo Jungmann de Castro
1
“So the present paper should be thought of as expounding neither ‘Wittgenstein’s’
argument nor ‘Kripke’s’: rather Wittgenstein’s argument as it struck Kripke, as it
presented a problem for him” p. 5.
“Kripke’s Near Miss” … On Rule Following 139
* * *
It can be seen that there is a misunderstanding here from the mere fact
that in the course of our argument we give one interpretation after
another; as if each contented us at least for a moment, until we thought of
yet another standing behind it. What this shews is that there is a way of
grasping a rule which is not an interpretation, but which is exhibited in
what we call “obeying the rule” and “going against it” in actual cases. PI
p. 81.
after fact showing that, say, A meant ‘plus’ all along, while B meant
‘quus’.
Now, if A and B’s mental history is considered not
atomistically – by considering what might be true of A and B’s
individual mental states in the course of performing each and every
of the many individual computations with arguments smaller than 57
– but rather in their totality, Kripke’s utter rejection of any link
whatsoever between mental states and rule following will strike one
as far less plausible.
Let us suppose that B is the ‘quus’ user. True, he may
quadd, say, 9 and 12, with no ocurrent awareness that his
computational behavior will change radically after a while. The
same may be true of ’17 + 32’ , as considered above, or of any other
particular computation. But does it actually make any sense to hold
that B could have been a devoted ‘quus’ user all along and yet
never, in the course of performing all of those computations stumble
upon the thought that his computational behavior would eventually
undergo a very significant change? Clearly, such an awareness need
not dawn on him at any particular point in time, or in the course of
performing any particular, antecedently determined, quaddition. Yet,
does it really make sense to hold that his entire mental history might
be indistinguishable from A’s mental history, and that he simply
starts both acting and having different ocurrent mental states when
the number 57, as it were, finally introduces itself to him? To
suppose that this might be the case is to introduce a view of rule
following which is no less untenable, no less mysterious, than the
view that both Wittgenstein and Kripke seek to attack.
That goes a long way to provide us with a possible
explanation of why Kripke was avowedly uneasy about the skeptical
problem allegedly proposed by Wittgenstein, seeming to find it so
unnatural.. Whether or not such considerations unveil the reasons
for Kripke’s uneasiness, they serve the heuristic purpose of laying
bare the real source of our problems. A temporal cross-section of a
person’s mental history is not a good starting point for someone
trying to find a firm basis for understanding, meaning, and the
“Kripke’s Near Miss” … On Rule Following 145
139. When someone says the word “cube” to me, for example, I know
what it means. But can the whole use of the word come before my mind,
when I understand it in this way?
Well, but on the other hand isn’t the meaning of the word also
determined by this use? And can’t these ways of determining meaning
conflict? Can what we grasp in a flash accord with a use, fit or fail to fit
it? And how can what is present to us in an instant, what comes before
our mind in an instant, fit a use?
What really comes before our mind when we understand
word?- Isn’t it something like a picture? Can’t it be a picture?
146 Rodrigo Jungmann de Castro
is no way to say how often the pupil has to get the series right before
we can credit him with a mastery of the system. But the truly
important point here is that Wittgenstein seems to be implying in
these passages – both in talking about what is normal and about
what ‘we’, that is to say, the vast majority of people belonging to a
linguistic community do– that what it is for someone to get a word
or procedure right is for him to become integrated in the
surrounding practices which constitute overwhelmingly the way
things happen to be. Language users become integrated in a number
of “forms of life”, to use one of Wittgenstein’s much-quoted
coinages. Normativity, he seems to think, is grounded on the sheer
fact that the linguistic community has shared, almost invariably
agreed-upon, ways of going about the application of vitally
important procedures, and among those, the mathematical procedure
of which Kripke and Wittgenstein make so much use. Adding
correctly amounts to responding in expected ways to the teaching
one receives, ways which are the object of nearly universal
consensus, apart from some bizarre cases.
Now, of course, what is involved in communal agreement
need not be the sort of thing that can the object of a unified
theoretical treatment. General talk of rules should not make us
oblivious to the fact that there might be rules of an altogether
different nature, by which I do not mean to refer to the fact that the
content of rules of course varies widely. That on which rules have
their foundation can also be expected to vary.
Presumably, overwhelming agreement on certain
procedures, say, addition, or, to remind us of another of
Wittgenstein’s memorable examples, the general tendency to think
of index fingers or arrows as pointing in a certain direction rather
than its opposite, may turn out to be universal ways of going on,
based on species-wide proclivities. This may conceivably be
analogous to species-wide tendencies in other domains, say, the
widespread use of metaphors relating terms that can be thought of
spatially, like “up”, “high”, “heaven” and so on, with what is lofty,
noble or transcendent.
148 Rodrigo Jungmann de Castro
References
BAKER, G. P. and Hacker, P. M. S. (1984) “Critical Study: On
Misunderstanding Wittgenstein: Kripke’s Private Language
Argument”. Synthese 58, p. 407-450,
KRIPKE, Saul A. (1982) Wittgenstein On Rules and Private
Language. Cambridge. Harvard University Press. 1982.
MALCOLM, Norman. (1986) Wittgenstein: Nothing Is Hidden.
Oxford. Blackwell.
MCGINN, Colin. (1984) Wittgenstein On Meaning. Oxford.
Blackwell.
MONK, Ray. (1990) Ludwig: The Duty of Genius. Penguin Books
USA. New York.
WITTGENSTEIN, Ludwig. (1953) Philosophical Investigations.
Oxford. Blackwell.
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal
Identity: A Defense of Bernard Williams’ Criterion of
Bodily Continuity
Abstract: In this article I revisit earlier stages of the discussion of personal identity,
before Neo-Lockean psychological continuity views became prevalent. In
particular, I am interested in Bernard Williams’ initial proposal of bodily identity as
a necessary, although not sufficient, criterion of personal identity. It was at this
point that psychological continuity views came to the fore arguing that bodily
identity was not necessary because brain transplants were logically possible, even if
physically impossible. Further proposals by Shoemaker of causal relations between
mental states in our memory and Parfit’s discussion of branching causal chains
created additional complications. My contention in this paper is that psychological
continuity views deflected our attention from what should have remained in the
spotlight all the time: the intersubjective character (or not) of criteria proposed to
decide personal identity in our language game, and ultimately our form of life
concerning ourselves as persons. B. Williams’ emphasis on the body was not just
common sense. It was also recognition of the importance of giving priority to
criteria that could be kept under intersubjective control.
Keywords: Criterion, Intersubjectivity, Personhood, Personal Identity,
Perspectivism, Self-Concept, Will.
*
Professor colaborador do Instituto de Artes da UNICAMP. E-mail:
ttorr@hotmail.com. Artigo recebido em 30.09.2007, aprovado em 06.05.2008.
1 Introduction 1
In our everyday lives, doubts about personal identity are not very
common and tend, therefore, to be conspicuous and worthy of
becoming a subject of conversation among friends (“Did you see so-
and-so? I could hardly recognize him when I saw him the other
day!”). A person may be hard to re-identify because he or she went
through dramatic changes in appearance and behavior. Some of
these changes may be simply developmental: a child who grows
very tall in a few years, or a young adult who ages out of grief after
many misfortunes. Facial recognition is clearly the most important
way we re-identify persons. A mutilated corpse that had its head
severed is harder to recognize if the body lacks any characteristics or
markings (such as scars and tattoos) that differentiate it to an
external observer.
It is also a fairly common experience to see identical twins
play games by switching identities. It may be difficult even for
parents and relatives to distinguish between them. Such cases of
maximal similarity pose the greatest challenge to the external
observer who is trying to decide what the person’s identity is. Much
may depend on the observer’s capacity to distinguish facial and
general physical traits. It is known that there is an ethnic factor in
facial recognition: a white Caucasian person placed in countries with
a racially different but still rather homogenous environment such as
1
Research for this paper was funded by scholarships from Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) and Deutscher
Akademischer Austauschdienst (DAAD). I would also like to thank Dr. José
Oscar de Almeida Marques and Dr. Michael Beaumont Wrigley of the State
University of Campinas (UNICAMP), Brazil, and Prof. Dr. Arno Ros of Otto-
von-Guericke University at Magdeburg, Germany.
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 155
Now finally, why are we not in a position to claim that these necessary
conditions of moral personhood are also sufficient? Simply because the
concept of a person is, I have tried to show, inescapably normative.
Human beings or other entities can only aspire to being approximations of
the ideal, and there can be no way to set a "passing grade" that is not
arbitrary. Were the six conditions (strictly interpreted) considered
sufficient they would not ensure that any actual entity was a person, for
nothing would ever fulfill them. The moral notion of a person and the
metaphysical notion of a person are not separate and distinct concepts but
just two different and unstable resting points on the same continuum. This
relativity infects the satisfaction of conditions of personhood at every
level. (D. Dennett - Brainstorms, p. 285).
2
Dennett’s conditions are:(1) All persons are or must be rational, (2) All persons
are or must be beings to which mental states can be attributed, (3) All persons are
treated in a special way, which involves recognition and a special attitude towards
them, (4) All persons are or must be capable of reciprocating this attitude, (5) All
persons are or must be capable of communicating through language, and (6) All
persons are or must be self-conscious in a special way.
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 157
3
In his book Materie und Geist, Arno Ros ((Ros 2005)) presents a painstaking
methodic reconstruction of intersubjective criteria for distinguishing between
organisms (Lebewesen), agents (Handlungssubjekte) and persons (Personen). My
approach here is, however, somewhat different in that my major concern is in
cultural contextualization of the personal identity debate so that non-rationalistic
views can be also considered and not unilaterally dismissed. This difference in
approach is roughly analogous to Von Wright’s (Von Wright, p. 160, footnote #
85) distinction between analytical and dialectical ways of doing philosophy.
158 Tristan Guillermo Torriani
4
This is my terminology, not Sider’s. I suggest σ (sigma) because it can stand for
σωμα (soma, body in Greek).
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 159
It appears that we are capable of having either of two intuitions about the
case, one predicted by the psychological theory, the other by the bodily
continuity theory. A natural explanation is that ordinary thought contains
two concepts of persisting persons, each responsible for a separate set of
intuitions, neither of which is our canonical conception to the exclusion of
the other.
I say there exist temporal parts; the chaste endurantist disagrees. And each
of us disagrees with the nihilist in thinking there exist composites. These
disagreements are not merely over how the world should be described; we
disagree about what there is. These disagreements cannot, I think, be
dissolved. There must be a fact of the matter who is right.
5
Perhaps one should also remember Mark Twain’s The Prince and the Pauper.
168 Tristan Guillermo Torriani
clear the doubt about his personal identity. But this was not possible,
since in having S0 memories, or in having S1 memories, he lacked
any means or reason to doubt his identity and so the question did not
even arise for him. If the doubt were to come up at all, he would
have to have S0 and S1 simultaneously.
To examine this possibility, Williams then asked us to
imagine the case in which S1 included a general memory W, by
which a person could remember things that he had by now (i.e., after
the loss of S0) forgotten, such as the very exchange of memory sets.
However, only because we forgot something does not mean that we
would have to doubt our own identities. Loss of memory and loss of
identity are two different things. Williams suggested that we could
then imagine that S1 included a general memory W by which the
person could remember facts that were empirically incompatible
with the memories in S1. In this situation the subject would have to
try to discover under which memories were truly his. In attempting
this, his most economic hypothesis would probably be to suppose
that the extended memory W itself was an illusion. If he were not yet
satisfied with this, or if some parts of S0 were left over in S1, so that
he seemed to have completely contradictory "memories", he could
do nothing to solve this with the help of his own memory alone. He
would have to ask others about his past. In doing this he would be
depending on the memories of others about his past. But then
memory would not serve as a private or "internal" criterion for the
person himself. So Williams concluded that there was no way in
which memory could be used by a person as an internal criterion for
his own identity. In the first case, where S0 was changed for S1, the
person would simply believe he was another person and would not
have how to doubt his own new identity. In the second case, where
S1 conflicted with W, the person would not be able to decide his
identity without appealing to others. Thus, Williams showed that the
third person perspective and intersubjetive control were inescapable.
Bodily criteria cannot be completely excluded from personal
identity criteria. The reference to the body is fundamental and
inescapable. A person is a particular material object and personal
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 171
what would be considered the person's body and (b) on the idea of
the brain as the home of the self. Bodily continuity would not
constitute a metaphysical criterion of personal identity, for my body
could then be occupied by a new self by means of a brain transplant.
Of course, we can call this distinction between the brain and the
person's body into question, since the former is part of the latter.
McGinn admits that a way out for the body theorist would
be to claim that personal identity is brain identity. A person would
be the same if her brain remained unchanged. But the problem of
this brain criterion, objects McGinn, is that the analysis of the
concept of the brain does not seem to have direct relevance to the
analysis of the concept of the self. To have the concept of the self
does not depend upon having the concept of the brain, for we can
know what is a person without knowing anything about neurology
and identity conditions between brains. In this sense it would be
incorrect to claim that our judgments about personal identity are
grounded on judgments about identity between brains. The criterion
of brain identity is not necessary because there is no conceptual
necessity that persons have the brains we in fact have. Our concept
of the self would not be different if our brains were made
differently. Besides, the physical basis of the self could be not an
entity, but a process. If we discovered that our brains renewed their
tissues continually we would not have to abandon our conviction
that today we are the same person as yesterday. Our concept of
individuality and persistence of the self is simply independent of the
ontological status of our brains. For McGinn, the brain criterion is
not sufficient because the self ceases to exist as such upon death, but
the brain continues. If somebody received my brain by transplant,
this would not be sufficient to establish that that person is me. The
self is the reference of the term 'self' and its proper characteristics
are mental, seen mainly from the first person singular perspective.
The brain is an organ of our bodies, to be investigated empirically,
that is, in third person. McGinn's conclusion is that in the same way
that it is impossible for the physical states of the brain to present the
phenomenal properties of the self's mental states, it is also
impossible for the brain to be the self.
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 173
6
As is well known, this was an important issue for Merleau-Ponty in the
phenomenological tradition.
178 Tristan Guillermo Torriani
the denial that our bodily self is presented to our self consciousness.
Indeed, we have bodily sensations such as pain and it simply does
not make sense to doubt whether the bodily self as it is presented to
self-consciousness is ours or somebody else's. But as we experience
bodily sensations, we are conscious of our bodily self, and this is
given in every experience. In this way, contemporary Neo-
Lockeans’ denial of the importance of the bodily self was as bad as
that of radical mind-body dualists (Ayers 1991, pp. 287-288).
would then have two separate persons in two different bodies. None
of the resulting persons would be identical to the original, since they
would be different among themselves and each would be as identical
to the original as the other. But the two descendant persons would
retain a relation of psychological continuity with the original self. In
other words, we would have a branching of the causal chains
between mental states considered by Shoemaker. There would be no
identity, but only survival, guaranteed by the branched
psychological continuity.
Thus, in the brain fission case, Parfit wanted to show that
survival of the primordial self as two descendant selves was
conceptually possible. He accepted Williams' argument that
psychological continuity was neither logically nor empirically one-
one, and that psychological continuity was not a necessary criterion
because it could be complemented (in the absence of psychological
continuity) by bodily continuity, which would then be sufficient to
decide the identity issue. Therefore, Parfit actually disagreed with
Shoemaker as to the necessity of the psychological criterion,
although he accepted its sufficiency. Parfit's contribution began
exactly at this point, since he was not satisfied with only defending
non-branching psychological continuity as a criterion of personal
identity through time. Parfit's idea was to logically explore what
would happen if branching in psychological continuity were
possible. Hence his interest in brain fission cases. Parfit wanted to
account for this possibility of branched psychological continuity in
terms of a new language which would render the debate on personal
identity obsolete.
As far as personal identity was concerned, Parfit stuck to the
psychological view. The important relation that guaranteed personal
identity through time was that of psychological continuity (which
included causal continuity). When we used the concepts of personal
identity, Parfit believed we were trying to suggest such a
psychological continuity. Thus, Parfit said that his was a view that
favored psychological continuity ((Parfit 1978), p. 149).
Parfit then tried to respond to Williams' argument against
the psychological view. For Williams, identity was a one-one
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 181
between habits, memories, etc. of his or her self and those of the
past or future self.
The argument in favor of survival without identity had,
however, some problems (McGinn 1982, pp. 115 and 121). In the
brain fission case, Parfit argued that we could survive as two
persons, each hemisphere constituting a descendant self in a
different body. It was clear that it did not make sense to speak of
identity. Identity was a one-one relation, while survival could
happen among many. The problem was that in the brain fission case
there were three possibilities admitted by Parfit: (1) there was no
survival, (2) there was survival of only one of the hemispheres, and
(3) the self survived as two distinct persons.
As to possibility (1), Parfit insisted that we had previously
agreed that we would survive if our brains were transplanted with
success. He claimed that persons had in fact survived with half of
their brains destroyed. Hence, he concluded, we could survive if half
of our brain were transplanted with success and the other half were
destroyed. This being the case, then it did not make sense that we
did not survive if the other half were also transplanted with success.
This would be absurd. As Parfit famously put it: "How could a
double success be a failure?"
Regarding possibility (2), Parfit initially admitted that
perhaps one success was really the best possible result of brain
fission. Perhaps we would be only one of the resulting persons. But
if each half of my brain was exactly similar, just so as each
resulting person was, it did not make sense to survive as only one of
two persons when both were similar. If similar, both should have the
same chances of survival. If both were similar and could survive,
both should be able to survive, not only one. Therefore, Parfit
concluded that the possibilities (1) and (2) - that we did not survive,
and that we only survived as one of the persons - were highly
implausible. He suggested that who accepted these possibilities must
have ignored other possible solutions to the problem.
In rejecting (1), maybe the most medically plausible result,
Parfit took it for granted that we had previously agreed that if the
186 Tristan Guillermo Torriani
do this deliberately, for certain reasons. But she might refrain upon
realizing she would not be there to help her children survive.
Williams reminded us that that is how we would normally regard the
relation between suicide and parenthood.
However, when we started considering our supposed future
selves, they would have the strange property of, on the one hand, be
born only from the brain fission of their ancestor, while, on the other
hand, the suicide of their ancestral would abort them completely.
For Williams, the analogy became even worse when we had to
conclude that the failure of our projects, and our subsequent
suicides, would also kill all our "descendants", although they were
descendants that would be born only with the fission and death (for
Williams) of our ancestral self. This confused the issues of suicide
and parenthood. In the first, we had to consider whether, our project
having failed, we ought to commit suicide, killing our ancestral self.
In the second, we had to decide if by means of brain fission we
would have descendants with their own and different projects.
Williams noted that the analogy confused the first kind of question
with a question of the second kind, misrepresenting the importance
of the first question for the theory of the self. Williams argued that
suicide only made sense because we would be eliminating our future
self, whose projects had failed. If the future self of a person were not
another descendant self, but the future of his own self, then we could
understand why this future must be eliminated with the failure of the
project that kept the person motivated to live. But it did not make
sense to prevent the birth of descendant selves because the life
project of the ancestral self failed. Hence, from Parfit's view,
according to Williams, suicide would be a strange kind of
contraceptive act. The suicide case showed that our self was more
fundamental exactly because it was he, and not his descendants, who
would not be any more in the world after our self-destruction. It was
the failure of the ancestral self's project that justified his suicide, and
the abortion of the descendant selves was not necessarily related to
this issue (Williams 1981, p. 11-12).
McGinn also agreed with Williams that to abandon our
contemporary concepts of personal identity just to adopt Parfit's
Perspectivism and Intersubjective Criteria for Personal Identity 189
5 Concluding Remarks
With hindsight, it seems to me that Bernard Williams’ emphasis on
bodily continuity was important and remains valid. Later
developments, such as Shoemaker’s non-branching causal memory,
Parfit’s branching descendant selves and the narrative identity
differently proposed by P. Ricoeur, Alasdair MacIntyre, Charles
Taylor and D. Dennett, if taken solely by themselves, would suffer
from a neglect for the body which is ultimately the principal
criterion for intersubjective control of statements regarding personal
identity. As far as perspectivism is concerned, if priority is given to
the first person perspective 7 , such criteria also suffer from
reductionism, which is more harmful than helpful because it
impoverishes the language game in which we try to make sense of
ourselves as persons.
References
AYERS, M.: Locke: Epistemology and Ontology. The Arguments of
the Philosophers. London & NY: Routledge, 1991.
DENNETT, D.C. : Brainstorms: Philosophical essays on mind and
psychology. Cambridge (MA): MIT Press, 1984.
EKLUND, M.: “Personal Identity and Conceptual Incoherence”.
Noűs, 36, 3, pp. 465-485, (Sep., 2002).
LOCKE, J.: An Essay concerning Human Understanding. Oxford:
7
This is clearly not D. Dennett’s case for he has understandably stressed the
importance of heterophenomenology. My intention here is just to point out the
insufficiency of psychological and narrative concepts of the self if reference to the
body is missing.
190 Tristan Guillermo Torriani
∗
Professor de Filosofia do Departamento de Ciências Humanas da UNESP de
Bauru e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UNESP de Marília. E-
mail: jonas@faac.unesp.br. Artigo recebido em 14.09.2007, aprovado em
23.06.2008.
I
Em seu livro “Persons and Bodies: a constitution view”, a filósofa
da mente Lynne Rudder Baker propõe-se a responder uma das
principais questões filosóficas: O que somos (sou) mais
fundamentalmente? Para Baker, não somos nem uma mente
pensante imaterial, como defendem os dualistas de substância, nem
um cérebro pensante incorporado como defendem os materialistas
reducionistas. Somos uma pessoa constituída por um corpo. A
filósofa prefere se ocupar da relação entre pessoa e corpo ao invés
da relação entre mente e corpo alegando: primeiro, a questão da
relação entre mente e corpo deve ser objeto da investigação
científica empírica, dela devendo-se ocupar a neurociência e não a
filosofia; segundo, que a relação mente e corpo está intimamente
ligada à idéia de uma mente imaterial, enquanto que a pessoa é
incorporada e situada, embora não seja idêntica e redutível ao corpo
que a constitui. Baker defende uma concepção materialista não
reducionista.
Para compreender a relação entre pessoa e corpo na teoria
de Baker, “incorporação” 1 sem identidade e redução, devemos
considerar duas de suas idéias fundamentais: as idéias de
constituição e de pessoa. Começaremos pela idéia geral de
1
Preferimos traduzir o termo “embodiment” por “incorporação” e não por
“encarnação” por entendermos que o último sugere a idéia de um corpo biológico
enquanto que o primeiro é menos restrito, mais apropriado à possibilidade
apontada por Baker de pessoas não humanas.
A “pessoa” de Rudder Baker é realmente incorporada? 193
II
Segundo Baker, a teoria da constituição, por meio da qual se propõe
a explicar a relação pessoa e corpo, tem uma abrangência mais geral,
podendo ser estendida aos objetos de arte, às imagens religiosas, aos
símbolos nacionais, enfim, a um conjunto de produções culturais
humanas. Apresentamos abaixo os principais aspectos da teoria da
constituição de propriedades e, a seguir, alguns exemplos para
ilustrá-la. Tais aspectos consistem no desenvolvimento da seguinte
tese: constituição não é identidade ou redução, nem independência
ou separação. Vejamos as justificativas: 1. Constituição não é
identidade e nem independência, “é uma relação intermediária”.
Constituição é similar à identidade pelo fato de dois objetos ou
entidades que mantém entre si uma relação de constituição
partilharem muitas das mesmas propriedades; contudo, não se trata
de identidade pois um objeto pode existir sem constituir um outro
embora o objeto constituído não possa existir independentemente de
algum objeto que o constitua. 2. Algumas propriedades dos objetos
constituídos são derivadas dos objetos constituintes enquanto que
outras são suas propriedades essenciais, ou seja, elas não dependem
dos objetos constituintes. 3. Algumas propriedades dos objetos
constituintes são derivadas dos objetos constituídos enquanto que
outras são suas propriedades essenciais, ou seja, elas não dependem
dos objetos constituídos. 4. O objeto constituído é uma nova
entidade ontológica, isto é, ele tem poderes causais diferentes e em
194 Jonas Gonçalves Coelho
2
Em que medida tais características percebidas dependem apenas de aspectos
intrínsecos e estruturais é algo a ser considerado. De qualquer maneira os
elementos materiais fundamentais em parte são responsáveis por tais
características essenciais ao tecido embora não o sejam à bandeira. Para Baker o
mundo é composto de camadas de diferentes níveis. Em cada nível podemos ter
uma resposta diferente à pergunta: O que algo é fundamentalmente? Um mesmo
objeto, dependendo do nível considerado, pode ser definido como uma
constituição atômica específica, ou como um tecido, ou como uma bandeira.
A “pessoa” de Rudder Baker é realmente incorporada? 195
III
A teoria da constituição de propriedades, que segundo Baker melhor
caracteriza a natureza de vários objetos, em especial dos objetos
intencionais, é também, ainda de acordo com a filósofa, a que
melhor define a relação entre pessoa e corpo. Antes de tratar da
relação pessoa e corpo cabe chamar a atenção para uma diferença
importante entre pessoa e os objetos intencionais anteriormente
citados: a pessoa tem uma vida interior, tem experiências subjetivas
conscientes articuladas com atitudes intencionais e, principalmente,
têm perspectiva de primeira pessoa, ou seja, é capaz de
autoconsciência. As pessoas são capazes de conceber a si mesmas
como fonte dessa perspectiva e reconhecer que as outras pessoas
também a têm, ou seja, pessoas têm consciência de que são
conscientes. Desse modo Baker considera que a característica
198 Jonas Gonçalves Coelho
3
Trataremos aqui apenas de pessoa humana mas, como veremos, Baker admite a
possibilidade em princípio de pessoas não humanas.
A “pessoa” de Rudder Baker é realmente incorporada? 199
IV
Para Baker, pessoas são ontologicamente diferentes de outros
animais. Animais podem até ter perspectiva de primeira pessoa ou
autoconsciência, mas apenas num grau muito fraco, isto é, pelo
menos alguns deles podem ter percepção consciente, crença e
desejo, a partir do local em que se situam e de seus corpos, uma
“perspectiva egocêntrica”. Mas, apenas pessoas têm perspectiva de
primeira pessoa ou autoconsciência num grau forte a qual “expande
o campo da realidade”, ou seja, cria um “novo tipo de realidade”, a
200 Jonas Gonçalves Coelho
Referências
BAKER, L.R. Persons and bodies: a constitution view. Cambridge:
Cambridge University Press, 2000.
A “pessoa” de Rudder Baker é realmente incorporada? 203
Abstract: This article represents our belief of what it is possible to introduce the
Boethius thought from one of the most recurrent problems of the philosophy, the
problem of the contingent futures, explaining, from that problematic, of course,
which are the most basics relations between three of its works, its two
commentaries to the De Interpretatione of Aristotle and its The Consolation of
Philosophy, and, by a sufficiently summarized way, naturally, as the reach of the
thought contained in these works arrives even at least in the Kant’s philosophy.
Keywords: Determinism, Free choice, Middle Age, Patristic, Scholastic.
Introdução
O problema dos futuros contingentes, a possibilidade de eventos
futuros contingentes – não determinados-, surge praticamente no
início da Filosofia Ocidental; muitos são os autores antigos que se
debruçaram sobre ele, dentre as várias obras que foram escritas com
a intenção de solucionar tal problema existe uma que influenciou
direta e fundamentalmente toda a filosofia posterior, trata-se da obra
Peri hermeneias, para qual os latinos deram o nome de De
Interpretatione. Os motivos de tal influência são os mais simples:
primeiro, foi uma das obras antigas que se conservou na íntegra,
segundo, o fato de ter sido escrita por Aristóteles (384-322 a.C.)
considerado o “Filósofo” por excelência por parte dos filósofos
*
Doutorando em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e professor do
Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail:
piaui@usp.br Artigo recebido em 01.09.2007, aprovado em 30.05.2008.
1
Em seu Comentário Maior Boécio vai responder ao determinismo e mesmo ao
indeterminismo mal-formulado defendidos por essas escolas e seus autores.
2
Os estudiosos da obra agostiniana costumam defender a opinião que na verdade
não se trata nem da obra Sobre a adivinhação nem da obra Sobre a natureza dos
deuses de Cícero, mas sim do De fato; opinião que pode ser justificada graças à
seguinte passagem do texto de Cícero: “Suprime-se tudo isso, se a força e a
natureza do destino for estabelecida a partir do argumento da adivinhação (Quae
tolluntur omnia, si uis et natura fati ex divinationis ratione firmabitur)”. (Cícero,
Sobre o destino, V, pp. 14 e 69). Utilizamos a tradução de José R. Seabra Filho.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 207
Longe de nós negar a presciência, por querermos ser livres, visto como
com seu auxílio somos ou seremos livres. (A Cidade de Deus, Livro V,
Cap. X, p. 205).
3
Dado o fato de que Agostinho está lendo a obra de Cícero, certamente a referência
imediata é a oposição ao deus grego Apolo, que na evolução de seu conceito se
torna, suplantando o deus Hélio, o deus da luz, mais comumente chamado pelos
romanos de deus Febo; apesar de ser o deus da luz ele é descrito por Cícero, que
diz ser a opinião de Carnéades, como um deus que não pode saber ou ver tudo
(Cícero, Sobre o destino, XIV, p. 25).
Boécio e o problema dos futuros contingentes 209
Ele tudo vê e tudo ouve./ Assim é Febo, que ilumina com uma límpida
luz:/ Tal o canta Homero, de cuja boca corre o mel;/ E no entanto ele é
incapaz de sondar/ As secretas profundezas da terra ou do oceano,/ Pois
para isso seus raios são muito fracos./ Mas assim não é o criador do vasto
mundo./ Nada faz obstáculo ao seu olhar / Que pousa sobre todas as
coisas;/ Nem a terra opaca nem o negrume de uma noite nebulosa./ Tudo
que é, foi e será,/ Ele o vê de uma só vez;/ É a ele, pois somente ele vê
tudo,/ Que podemos chamar de verdadeiro Sol. (A Consolação da
Filosofia, Livro V, Verso 4, p. 135).
4
Como vimos na nota anterior, a referência ao deus grego Febo não é sem
propósito.
William de Siqueira Piauí 210
Não é de hoje que tais queixas são feitas à Providência; Marco Túlio
(Cícero), quando abordou as diferentes formas de divinação, discutiu com
veemência sobre essa questão, e tu mesmo [Boécio] por longo tempo e
detalhadamente também a estudaste, mas nenhum de vós pôde até agora
expô-la com suficiente cuidado e rigor. Se o problema continua obscuro é
que o encadeamento do raciocínio humano não se pode aplicar à
simplicidade da presciência divina, e, se ela pudesse ser pensada pelos
homens de alguma maneira, não restaria mais a menor dificuldade. (A
Consolação da Filosofia, Livro V, p. 141) 7 .
5
Definido por Alain De Libera como “aquele que passa por ser ao mesmo tempo o
primeiro filósofo da Idade Média ocidental e o último dos romanos”. (Alain De
Libera, A Filosofia Medieval, Cap. 5, p. 250).
6
Fruto de uma grande bagagem resultado de seus comentários à obra de
Aristóteles, talvez seja essa uma das características que mais diferenciam a sua
obra da agostiniana.
7
Utilizo aqui a tradução de William Li.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 211
8
Doravante denominados C. Menor, para o Comentário Menor, C. Maior, para o
Comentário Maior, e Consolação, para A Consolação da Filosofia.
William de Siqueira Piauí 212
9
Talvez correspondendo ao termo grego aoristós. Veja-se Aristóteles Física, Livro
II, 197a 8.
10
Veja-se Aristóteles Metafísica, Livro XI, Cap. VIII, 1064b 35; onde o eventual é
definido como aquilo que nem acontece o mais das vezes, nem sempre, nem por
necessidade, mas, como aquilo que acontece somente às vezes.
11
Certamente em correspondência com o termo grego: polý. Veja-se Aristóteles
Física, Livro II, 196b 10.
12
Certamente em correspondência com o termo grego:aplós. Veja-se Aristóteles De
Interpretatione 9, 19a 25.
13
Fato que parece ter sido desconsiderado por alguns tradutores.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 213
14
Veja-se Aristóteles Física, Livro II, 197a 8.
William de Siqueira Piauí 214
15
Haec si se recte et ex fide habent, ut me instruas peto; aut si aliqua re forte
diuersus et, diligentius intuere quae dicta sunt et fidem, si poteris, rationemque
conjunge (Peço que me confirmes se isso está exposto corretamente e de acordo
com a fé; mas, se, por acaso, estiveres em desacordo com alguma coisa, examina
mais diligentemente o que foi dito, e se, puderes, mantém a unidade entre fé e
razão). Se “Pai” e “Filho” e “Espírito Santo” predicam-se substancialmente da
divindade, p. 195 e p. 309. Utilizo aqui a tradução de Juvenal Savian Filho.
16
Como é o caso, dentre outros autores modernos, de Leibniz em seu Discurso de
Metafísica.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 215
Com efeito, não é sem mérito que Aristóteles conduza [essa questão] para
um raciocínio impossível, dizendo que a possibilidade, o acaso, e também
o livre-arbítrio deixam de existir, o que não deve ocorrer se de todas as
enunciações [que digam respeito] ao futuro uma delas for sempre
definidamente a verdadeira e a outra definidamente a falsa. De fato, a
partir desse tipo de verdade e falsidade segue-se a necessidade, e são
William de Siqueira Piauí 216
subtraídas tanto as coisas que ocorrem por acaso quanto pelo livre-
arbítrio. (C. Maior, p. 507 C) 17 .
17
Non igitur immerito Aristoteles ad impossibilitatem rationem perducit dicens, et
possibilitatem, et casum, et liberum arbitrium deperire, quod fieri nequit, si
omnium futurarum enuntiatonum uma semper vera est definite, falsa semper
altera definite. Harum enim veritatem et falsitatem necessitas consequitur, quae et
casum de rebus et liberum subducat arbitrium. A paginação que utilizamos se
refere ao volume da Patrologia Latina enunciada na bibliografia ao final desse
texto, com a intenção de marcar o uso de conceitos do C. Menor, a partir desse
momento traduziremos livremente a Consolação, utilizaremos o texto em latim da
edição bilíngüe de Louis J. de Mirandol, também citado na bibliografia.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 217
18
Boécio, explicitando a opinião de Aristóteles, diferencia as proposições que
dizem respeito a eventos simplesmente (simpliciter) necessários – necessidade
simples (simplex) -, como é o caso da proposição que enuncia o fato de que o Sol
passará na constelação de Áries, das que dizem respeito aos eventos necessários
temporais (necessarium temporale) – necessidade condicional (conditionis) -;
neste último caso as proposições são como que acompanhadas do quando e não
são simpliciter verdadeiras ou falsas, mas verdadeiras quando se dá o fato, como é
o caso da verdade da proposição que diz ‘estou sentado’ ou ‘estou andando’,
quando estou sentado ou andando ela é necessariamente verdadeira. Não se trata
de evento que vem a ser necessariamente, exigindo, portanto, o uso do quando; ou
seja, o evento que a proposição enuncia só se torna necessário quando o evento de
fato é. Veja-se C. Menor, p. 338 D-340 A e Consolação, p. 322.
William de Siqueira Piauí 218
Portanto, com respeito às coisas [para as quais] são não somente possíveis
ser, mas também [pode] acontecer de não serem; nessas, a afirmação e a
negação se tomam de maneira eventual; e como para a própria [coisa]
ocorre tanto ser quanto não ser, da mesma maneira a contradição
indefinidamente virá a ser verdadeira ou falsa. (C. Menor, p. 340 C).
Porque se alguém disser que todas as coisas vêm a ser por necessidade,
assim [torna] a benevolência (benevolentiam) de Deus necessária e a
subtrai; de fato, a benevolência dele nada produz, visto que a necessidade
administra todas as coisas, como se o fazer o bem do próprio Deus
também fosse por necessidade, e não por vontade própria; com efeito, se a
partir da própria vontade algumas [coisas] se fazem, como para o próprio
[agente] nenhuma necessidade está fechada, nem todas as coisas
acontecem por necessidade. Com efeito, quem é tão ímpio que a partir da
19
Veja-se: C. Menor, p. 340 D.
20
Veja-se: C. Menor p. 332 C e p. 340 B.
William de Siqueira Piauí 220
21
Quare si quis omnia ex necessitate fieri dicat, Deo quoque benevolentia subripiat
necessece est, nihil enim illius benignitatis parit, quandoquidem cuncta necessitas
administrat, ut ipsum Dei benefacere ex necessitate quodammodo sit, et non ex
ipsius voluntate, nam si ex ipse voluntate quaedam fiunt, ut ipse nulla necessitate
claudatur, non omnia ex necessitate contingunt. Quis igitur tam impie sapiens
Deus quoque necessitate constrigat?
Boécio e o problema dos futuros contingentes 221
Desse modo, se algo vai ocorrer sem que se saiba se é certo (certus) ou
necessário (necessarius) que se produza, como poderíamos saber que
ocorrerá? [...] Como Deus poderia conhecer previamente um futuro
incerto (incerta futura)? Pois, se ele julga que os acontecimentos os quais
também é possível não vir a ser (non evenire possibile est) irão se
produzir inevitavelmente, ele falha – e seria um sacrilégio 22 não apenas
sentir isso como proferi-lo com a voz. E se, por outro lado, ele vê esses
acontecimentos futuros como eles são, mas delimitando seu saber pelo
fato de eles poderem acontecer ou não, o que seria então essa presciência
que não compreende nada de certo (nihil certum) e nada de estável (nihil
stabile)? (A Consolação da Filosofia, Livro V, p. 290) 23 .
22
No sentido de uma impiedade.
23
Quare si quid ita futurum est, ut ejus certus ac necessarius non sit eventus, id
eventurum esse praesciri qui poterit? (...) Quonam modo Deus haec incerta futura
praenoscit? Nam si inevitabiliter eventura censet quae etiam que etiam non
evenire possibile est, fallitur: quod sentire non modo nefas est, sed etiam voce
proferere. At si, uti sunt, ita ea futura esse decernit, ut aeque vel fieri ea, vel non
fieri posse cognoscat, quae est haec praescientia, quae nihilo certum, nihil stabile
comprehendit?
William de Siqueira Piauí 222
Com efeito, assim como a própria natureza das coisas (ipsa natura rerum)
que vêm a ser é variada (est varia), assim também a outra parte da
contradição assume a verdade de forma variável (variabilem); é claro que
é verdadeira ou falsa, entretanto, não definidamente uma – como se isso
ou aquilo fosse verdadeiro determinadamente -, mas de maneira eventual.
E como o próprio estado de coisas é mutável (status rerum mutabilis est),
assim também a verdade ou falsidade das proposições é duvidosa
(dubitabilis sit). (C. Menor, p. 340 C).
Mas isso, dizes, é a própria dúvida, se daquelas coisas que não assumem
um êxito necessário, alguma possa ter uma noção prévia (praenotio). De
fato, não soa corretamente [...] e nada a ciência compreende exceto o
certo; segundo o que se [as coisas] as quais os êxitos são incertos (incerti
sunt exitus) de algum modo forem pré-sentidas como certas, trata-se das
trevas da opinião e não a verdade da ciência. (A Consolação da Filosofia,
Livro V, p. 300) 24 .
24
Sed hoc, inquis, ipsum dubitatur, an earum rerum quae necessarios exitus non
habent, ulla possit esse praenotio. Dissonare etenim videntur (...) nihilque
scientia comprehendit posse nisi certum; quod si, quae incerti sunt exitus, ea
quasi certa providentur, opinionis id esse caliginem, non scientiae veritatem.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 223
Donde, com efeito, se a coisa agora é branca, que seria branca [já] era
verdadeiro antes, graças ao que – não importando quais coisas tenham
sido feitas – do mesmo definidamente (definite) poderia ter sido predito
conforme a verdade (vere praedicere). Isto, de fato, o próprio êxito
(ipsius exitus) da coisa confirmou. (C. Menor, p. 334 B).
Com efeito, nem os sentidos (sensus) servem para o que é fora da matéria
(extra materiam), nem a imaginação (imaginatio) para [o que é fora da]
espécie universal (universales especie) e nem a razão (ratio) é capaz de
apreender a forma simples (simplicem formam). A inteligência, no
entanto, como que olhando (espectans) acima de todas as coisas, não
apenas distingue as formas [simples], as quais estão ocultas, como
também compreende todas a um só tempo, mas ao seu modo, segundo a
forma própria (formam ipsam), para o que nenhum outro conhecimento
(nota) pode existir. (A Consolação da Filosofia, Livro V, pp. 302, 304) 26 .
25
Si igitur, uti rationis participes sumus, ita divinae judicium mentis habere
possemus, sicut imaginationem sensumque rationi cedere oportere judicavimus,
sic divinae sese menti humanam submittere rationem justissimum censeremus.
Quare inillius summae intelligentiae cacumen, si possumus, erigamur; illic enim
ratio videbit quod in se non potest intueri. Id autem est, quonam modo etiam quae
certos exitus non habent, certa tamen videat ac definita praenotio; neque id sit
opinio, sed summae potius scientiae nullis terminis inclusa simplicitas.
26
Ita etiam quae praesentia Deus habet, dúbio procul existunt: sed eorum hoc
quidem de rerum necessitate descendit: illud vero de potestate facientium. Haud
igitur injuria diximus haec, si ad divinan notitiam referantur, necessária; si per se
considerentur, necessitatis esse nexibus absoluta. Sic uti omne quod sensibus
patet, si ad rationem referas, universale est: si ad seipsum respicias, singulare.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 225
27
Veja-se Platão Timeu 37d e Santo Agostinho Confissões, Livro XI, 10.
28
[...] nam secundum Philosuphum in IV Physicorum, secundum prius et posterius
in magnetudine est prius et posterius in moto et per se consequens in tempore. Si
ergo sint multi homines per viam aliquam transeuntes, quilibet eorum qui sub
ordine transeuntium continetur habet cognitionem de praecedentibus et
subsequentes; quod pertinet ad ordinem loci. [...] Si autem esset aliquis extra
totum ordinem transeuntium, utpote in aliqua excelsa turri, unde posset totam
viam videre, videret quidem simul omnes in via existentes, non sub ratione
praecedentis et subsequentis [...]
Boécio e o problema dos futuros contingentes 227
29
Em sua obra Novos Ensaios Leibniz é mais explícito, lá ele afirma: “É necessário
que além da diferença do tempo e do lugar, haja um princípio interno de distinção;
William de Siqueira Piauí 228
Conclusão
O expediente formulado por Boécio na Consolação, como parte da
resposta à questão levantada a partir do C. Menor, acaba por se
constituir em princípio fundamental de boa parte das soluções que
serão elaboradas para o problema dos futuros contingentes em
relação à onisciência divina. Esse princípio poderia ser
compreendido como o expediente fundamental que a filosofia
e embora haja várias coisas da mesma espécie, é todavia verdade que jamais
existem coisas inteiramente semelhantes; assim, se bem que o tempo e o lugar
(isto é, a relação com o que está fora) nos sirvam para distinguir as coisas que não
distinguimos bem por si mesmas, as coisas não deixam de ser distinguíveis em si.
O específico da identidade e da diversidade não consiste, por conseguinte, no
tempo e no lugar [...]”. (Novos Ensaios, Livro II, Cap. XXVII, Par. 1, p. 172).
Para mais detalhes desse assunto, veja-se nosso artigo: Leibniz e Tomás de
Aquino: o princípio de individuação, in: Ágora Filosófica, n. 1, 2006.
30
O que Tomás de Aquino expressa da seguinte maneira: “Assim como estas
substâncias dotadas de inteligência superam em grau, da mesma forma é
necessário que haja hierarquia de grau entre elas mesmas. Não podendo
diferenciar-se umas das outras em virtude da matéria, que não possuem, e sendo
que existe pluralidade entre elas, necessariamente a diferença que as distingue
provém da distinção formal, que constitui a distinção na espécie” (Compêndio de
Teologia, Cap. LXXVII, Par. 135, p. 86).
Boécio e o problema dos futuros contingentes 229
A razão humana sente tanto prazer em construir que já, por diversas
vezes, edificou e, em seguida, demoliu a torre para examinar a natureza
do seu fundamento. (Prolegômenos, Introdução, p. 12).
31
Veja-se: Estudos sobre a mística medieval e O conceito de tempo.
Boécio e o problema dos futuros contingentes 231
Referências
AGOSTINHO, Santo. A Cidade de Deus (parte I). Trad. introdução
e notas de Oscar Paes Leme. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.
________. O livre-arbítrio. Trad., introd. e notas Nair de Assis
Oliveira. São Paulo: Ed. Paulus, 1995.
BOÉCIO. A consolação da filosofia. Trad. de William Li. São
Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.
________. Escritos (Opuscula Sacra). Trad., introdução, estudo e
notas Juvenal Savian Filho. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2005.
________. Comentaria in Porphyrium, In Librum Aristotelis de
Interpretatione Commentaria minora e In eundem librum
Commentaria majora (tomo LXIV). Patrologia de J.-P. Migne.
Paris: J.-P Migne, 1891.
________. Consolation de la Philosophie, Trad. em prosa e verso de
Louis Judicis de Mirandol. Paris: Edições Maisnie, 1981.
________. On Aristotle’s On Interpretation 9. Trad. Norman
Kretzmann. Ithac, New York: Cornell University Press, 1998.
CÍCERO, Marco Túlio. Sobre o destino. Trad. e notas José
Rodrigues Seabra Filho. São Paulo: Ed. Nova Alexandria, 1993.
DE LIBERA, Alain. A Filosofia Medieval. Trad. Nicolás Nyimi
Campanário e Yvone Maria de C. T. da Silva. São Paulo: 1998.
GILSON, Etienne. A Filosofia na Idade Média. Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1995.
William de Siqueira Piauí 232
Abstract: One of the objectives of this article is analyses the thematic of politics
and secularization second the philosopher Kierkegaard (1813-1855). Two works of
this thinker will be specially analised here: The Individual and The Practice of
Christianity. The second objective is to make a dialogue between his thesis,
adverse to the secularization process, with the thesis of Gianni Vattimo (1936-),
italian thinker and enthusiast of secular world.. In spite of their differences, politics
and secularization be happen in the thought of two authors. Both initiate, in fact,
from near analyses, this is, from the pauline concept of kênósis. From this idea,
both construct his conceptions about politics and secularization. Otherwise, the
principal purpose of this article is analyses the Kierkegaard’s philosophy. The
Vattimo’s philosophy will be analised only secondary form and in dialogue with
Kierkegaard’s thesis.
Keywords: Christianity, Contemporary Philosophy, Ethics, Politics, Secularization
*
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. E-
mail: magipa@bol.com.br. Artigo recebido em 23.09.2007 e aprovado em
23.06.2008.
Referências
FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a essência da religião.
Tradução de José da Silva Brandão. 1ª edição. Campinas: Papirus
Editora, 1989.
KIERKEGAARD, S.A. L’École du Christianisme- v.17/ Oeuvres
Complètes de S.Kierkegaard. Tradução de P.H. TISSEAU e Else-
Marie JACQUET-TISSEAU. 1ª edição. Paris: Éditions de L’Orante,
1982.
A kênósis entre o sagrado e o profano 253
Deyve Redyson *
Abstract: The present work has the thematic of presenting Arthur Schopenhauer
thought in what he tells respect the metaphysics as pessimism and to investigate the
reaction schopenhauriana coming of the kantismo and applied to a metaphysics
based in the will and in the representation of the things in itself.
Keywords: Metaphysics, Pessimism, Representation, Will
1
Schopenhauer, A. SW, I § 20. Sobre a Quádrupla raiz do principio da razão
Suficiente. Der Saß vom zureichenden Grunde auf als Gesetz der Kausalität, und
ich nenne ihn als solches den Saß von zureichenden Grunde des Werdens,
principium rationis sufficientis fiendi. Alle in der Gesammtvorstellung, welche
den Kompler der erfahrungsmäßigen Realität ausmacht, sich darstellenden
Objekte.
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 257
2
Idem. SW, II § 32. MVR, 242. Die Platonische idee hingegen ist nothwendig
objekt, ein erkanntes, eine vorstellung, und eben dadurch, aber auch nur dadurch,
von Ding an sich verscheiden. Sie hat bloß die untergeordneten Formen der
Erscheinung, welche alle wir unter dem Satz von Grunde begreifen, abgelegt, oder
vielmehr ist noch nicht in sie eingegangen; aber die erste und allgemeinste Form
hat sie beibehalten, die der vorstellung überhaupt, des Objektseyn für ein Subjekt.
258 Deyve Redyson
3
Mann, Thomas, 1967. p. 311 ou Mann, Thomas, 2001. p. 138.
4
Idem. p. 314. idem., p. 141.
5
Cf. mais sobre o assunto em Spierling, Volker, 1984. p. 234-237.
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 259
então que a dor e a destruição fazem parte da ordem das coisas, tudo
decretado pelo mundo da vontade, criminalmente indiferente ao
destino dos indivíduos. Além disso, a vida humana é dominada por
egoísmos rivais, a satisfação de um indivíduo necessariamente
acarreta o sofrimento do outro. O egoísmo é uma postura natural de
um ser em relação a outro. A razão disso está no seguinte raciocínio:
só um corpo é habitado pela vontade, capaz de desejo e frustração,
suscetível de prazer e dor; os outros, meros corpos, coisas
inanimadas, podem ser usados como meios para satisfazer
determinados fins. O que resulta, para a natureza como um todo,
fora ou dentro da sociedade, ser, essencialmente, o homem o lobo do
homem.
Essa concepção pessimista de Schopenhauer encontrou
expressão no livro de Machado de Assis, Memórias póstumas de
Brás Cubas. Nesse romance, Brás Cubas, o “defunto autor”, resolve
começar a escrever sua história a partir do fim, narrando o delírio
que o acometeu, antes de morrer. Nesse delírio, cavalga num
hipopótamo que o leva ao fim dos tempos, a um campo muito
branco, em que de súbito aparece a figura gigantesca de uma
mulher: Pandora. Ela quer levá-lo direto para a morte. Com a recusa
de Brás, Pandora o pega pelos cabelos e o faz ver toda a história
universal da humanidade até então.
O conceito de querer-viver de Schopenhauer parece se
enquadrar numa “ontologia do aniquilamento” dos seres. Seria o
caso de se pensar a partir dessas indicações uma contraposição entre
metafísica da vontade e a finitude humana que se encontraria na
verdade. Se o mundo é o espelho da vontade, se sua existência só
exprime o que a vontade quer, o sofrimento que nele se apresenta
provém tão só da vontade. Para saber o que valem moralmente os
homens, basta considerar seu destino de dor e sofrimento, ou seja,
“Naquilo que concerne à vida do indivíduo, cada história de vida é
uma história de sofrimento. Cada decurso de vida é, via de regra,
uma serie continua de pequenos e grandes acidentes, ocultados tanto
quanto possível pela pessoa, porque sabe que os outros raramente
260 Deyve Redyson
6
Schopenhauer, A. SW II, § 59. Was aber das Leben des Einzelnen betrifft, so ist
jede Lebensgeschichte eine Leidengeschichte: denn jeder Lebenslauf ist, in der
Regel, eine fortgesetzte Reihe großer und kleiner Unfälle, die zwar jeder
möglichst verbirgt, weil er weiß, daß Andere selten Theilnahme oder Mitleid.
7
Idem. SW II, § 54. Der Wille, welche rein an sich betrachtet, erkenntnißlos und
nur ein blinden.
8
Quem primeiro faz a distinção entre fenômeno e coisa em si é Kant na Crítica da
Razão Pura relacionando as categorias de entendimento enquanto forma estrutural
de vontade.
9
Idem. SW II, § 1. Die welt ist meine vorstellung.
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 261
10
Cf. Sobre a Quádrupla Raiz do princípio da razão suficiente SW 1. p. 66. Para
Schopenhauer os princípios da razão suficiente do conhecer são: verdade
empírica, verdade lógica, verdade transcendental e verdade metalógica.
11
Schopenhauer, A. Der Handschiritliche Nachlaß. Vol. I . 1968. p. 170.
12
Idem. SW, II §54. Und da was der wille will immer das leiben ist, eben weil
dasselbe nichts weiter, als die Dasterlung jenes wollens für die vorstellung ist, so
ist es einerlei und nur ein Pleonasmus, wenn wir statt schlechthin zu sagen, “der
wille”, sagen “der wille zum leben”.
262 Deyve Redyson
13
Kant, Immanuel, 1980. B 305-306.
14
Schimidt, Alfred., 1986. p. 71.
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 263
15
Relatos de Schopenhauer sobre o pensamento de Fichte. SW, II § 7. Cf. MVR, p.
70.
16
Cacciola, Maria Lúcia M. O., 1994, p. 175.
17
Uma lembrança criticismo deriva de crítica, que provém do grego Kinesis,
substantivo do verbo kines que significa: distinguir, discernir, separar, escolher.
18
Schopenhauer, A. SW, II § 23. MVR, 171. Der wille als Ding an sich ist von
seiner Erscheinung gänzlich verschieden und völlig frei allen Formen derselben.
19
Idem. SW, II § 71. MVR, 517. Denn die welt ist die Selbsterkenntniß des willens.
264 Deyve Redyson
20
Idem. SW, II § 38. MVR, 270. Die welt als vorstellung ist dann allen noch übrig,
und die welt als wille ist verschwunden.
21
Idem. SW, II § 17. MVR, 152. Zudem ist den Saß von Grund, auf den man sich
dabei beruft, uns ebenfalls nur Form der vorstellung, nämlich de gesetzmäßige
Verbindung einer vorstellung mit einer andern, nicht aber die Verbindug der
gesammten, endlichen ober endlosen Reibe der Vorstellungen mit etwas, das gar
nicht vorstellung wäre also auch gar nicht vortelbar seyn kann.
22
Idem. SW, II § 54. MVR, 365. Den willen zum leben ist das leben gewiß; die
Form des lebens ist Gegenwart ohne Ende; gleichviel wie die Individuen,
Erscheinungen der Idee in der Zeit entstchn und vergehn, flüchtigen Träumen zu
vergleichen. – Der Selbstmord erscheint uns also schon hier als vergebliche und
darum thörichte Handlung
23
Idem. SW, II § 66. MVR, 469. Nur die Richtung des willens, nie ihn selbst
ändern.
24
Cf. SW, II § 56. MVR, 400. Toda vida é sofrimento. (leben leiden ist); SW, II §
60. MVR, 420. Afirmação do querer-viver (Die Bejahrung des willens Leben);
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 265
SW, II § 68. MVR, 480. Negação do querer-viver (Beneinung des willens zum
Leben nenne)
25
Idem. SW, II § 63. MVR, 451. Dem wahren Wesen der Dinge nach hat Jeder alle
Leiden der Welt als die seingen, ja alle nur möglichen als für ihr wirklich zu
betrachten, solange er der feste Wille zum leiden ist, d. h. mit aller Kraft das
Leben bejaht.
26
Idem. SW, II § 9. MVR, 94. Weil dieses neuzehnte jahrhundet ein
philosophischen ist; womit nicht sowohl gesagt seyn soll, daß es Philosophie
besitze, oder Philosophie in ihm herrschend sei, als vielmehr, daß es zur
Philosophiereif und eben deshalb ihrer durchaus bedürftig ist.
27
Idem. SW, III Kap. 41. Metafísica do Amor/Metafísica da Morte, 59. 68. Der Tod
ist der eigentliche inspirirende Genius, oder der Musaget der Philosophie, weshalb
Sokrates diese auch yanatou mel°h definirt hat. Schwerlich sogar würde, auch
ohne den Tod... daß wann wir sind, der Tod nicht ist, und wann der Tod ist, wir
nicht sind
266 Deyve Redyson
28
Cf. Mattos, Andréia A. L., 1990. p. 24.
29
Schopenhauer, A. SW, VI Kap. 12 § 148. Parerga e Paralipomena II, p. 216.
Wenn nicht der nächste und unmittelbare zweck unseres Lebens das Leiden ist; so
ist unser Dasenn das zweckwidrigste auf der Welt. Denn es ist absurd,
anzuenhmen, daß der endlose, aus der den Leben wesentlichen Roth entsprinende
Schmerz, devon die welt überall voll ist zwecklos und rein zufälling senn sollte.
Unsere Empfindlichkeit für den Schmerz ist fast unendlich, die für den Genuß hat
euge Gränzen. Jedes einzelne Unglück erscheint zwar als eine Ausnahme; über
das Unglück überhaupt ist die regel.
Schopenhauer e a metafísica do pessimismo 267
Referencias
BARBOSA, Jair. Schopenhauer: A decifração do enigma do mundo.
São Paulo: Moderna, 1997.
_______ Schopenhauer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2003.
30
Idem SW, II § 59. MVR, 419. Man denke nur já nicht etwas, daß die Christliche
Glaubenslehre dem Optimismus günstig sei; da im Gegentheil in den Evangelien
Welt und Uebel beinahe als synonyme Ausdrücke gebraucht werden.
31
Idem. SW, II § 56. MVR, 399-400. Wie die Erkenntniß zur Deutlichkeit gelangt,
das Bewuußtseyn sich steigert, wächst auch die Quaal, welche folglich ihren
höchsten Grad im Menschen erreicht. Schopenhauer usa “Quaal” para exprimir
tormento, que também pode significar agonia, tortura e em alguns casos até dor e
sofrimento. Diferente de quando ele quer expressar a palavra dor usando Leiden
ou mesmo Schmerz que significa além de dor, pena e mágoa.
32
Idem. SW, V Kap, II. Aphorismen zur Lebensweiheit. Aforismos para a
Sabedoria da vida. 141. Und daß unter <glück lich leben> nur zu verstehn ist
<weniger unglücklich>, also erträglich leben.
33
Idem. SW, V Kap. II. Aphorismen zur Lebensweiheit. Aforismos para a
Sabedoria da vida, 274. Quien larga vida vive mucho mal vive. Provérbio
espanhol citado no original em espanhol.
34
Idem. SW, II § 61. MVR, 427. Auf seinen eigenen Tod blickt Jeder als auf der
Welt Ende, während er dem seiner Bekannten als eine ziemlich gleichgültige
Sache vernimmt, wenn er nicht etwas persönlich dabei betheiligt ist.
268 Deyve Redyson
A Existência de Deus
Richard Swinburne *
*
Emeritus Nolloth Professor of the Philosophy of the Christian Religion,
University of Oxford. [Conferência apresentada no Departamento de Filosofia da
UFRN, no dia 22 de novembro de 2007. Título original: “The Existence of God”.
Tradução de Edrisi Fernandes.]
1
Por exemplo, Jeremias 33. 25-26.
2
Romanos 1. 20.
274 Richard Swinburne
3
Veja John Calvin, Institute of the Christian Religion, Livro 1, Capítulo 5.
A Existência de Deus 275
bom fazer, e posto que ele é onisciente, ele sempre saberá o que é
bom, ele sempre fará o que é bom. Ele será perfeitamente bom.
Que deva existir qualquer coisa (anything at all), sem
mencionar (let alone) um universo tão complexo e ordenado como o
nosso, é excessivamente (exceedingly) estranho. Mas se existe um
Deus, não é vastamente improvável que ele deveria criar um
universo assim. Um universo como o nosso é uma bela coisa (a
thing of beauty), e um teatro no qual os humanos (e, por uma
extensão limitada, outras criaturas) podem crescer e produzir (work
out) seu destino. A ordem do Universo o torna um belo Universo,
mas, de modo ainda mais importante, ela faz dele um Universo que
os humanos podem aprendera controlar e mudar. Um bom Deus
desejará criar criaturas tais como seres humanos possuindo uma
livre escolha entre o bem e o mal, uma profunda responsabilidade
por si mesmos e um pelo outro e uma habilidade para formarem seu
próprio caráter de um modo tal a amarem a Deus, e para isso
necessitamos de corpos, lugares onde podemos interagir (put hold
of) um com o outro e assim machucar ou beneficiar um ao outro.
Mas os seres humanos apenas podem cuidar (look after) de si
mesmos e um do outro (ou escolher não fazê-lo) se existem leis
simples governando um universo no qual os seres humanos estão
corporificados. Se temos corpos, então existem modos pelos quais
podemos machucar ou beneficiar um ao outro. No entanto, apenas se
essas forem leis simples da natureza que podemos vir a aprender
haverá modos pelos quais isso ou aquilo que faço fará uma
previsível diferença para mim ou para você. Apenas se os humanos
souberem que, semeando certas sementes, removendo as ervas
daninhas e aguando as sementes, eles colherão milho, eles poderão
desenvolver uma agricultura. E apenas se eles souberem que
atritando bastões eles podem fazer fogo eles poderão queimar os
suprimentos alimentares de outros. Leis apreensíveis (graspable) da
natureza permitem aos agentes uma escolha sobre como tratar um ao
outro. Assim, Deus tem uma boa razão para fazer um universo
ordenado e, ex hypothesi, sendo onipotente ele tem o poder para
fazê-lo. Assim, a hipótese de que existe um Deus torna a existência
A Existência de Deus 287
4
Veja, por exemplo, a descrição simples dessa evidência em J. Leslie, “Anthropic
Principle, World Ensemble, Design”, American Philosophical Quarterly, 19.
(1982), pp. 141-152, e em seu Universes, Routledge, 1989, capítulos 1-3.
290 Richard Swinburne
Richard Swinburne *
Resumo: Argumento neste artigo que embora existam muitas maneiras diferentes
de descrever o mundo ou algum segmento dele, qualquer maneira que deixe de
acarretar logicamente uma separabilidade do corpo e da alma como os dois
componentes de cada ser humano conhecido (o corpo sendo uma parte contingente
e a alma a parte essencial do homem) deixará de fornecer uma descrição completa
do mundo.
Abstract: I argue in this paper that although there are many different ways of
describing the world or some segment thereof, any way which fails to entail a
logically separable body and soul as the two constituents of each known human
being (the body being a contingent part and the soul the essential part of the
human) will fail to give a full description of the world
1 Definições
Começo com algumas definições estipulativas 1 . Entendo por uma
propriedade um universal monádico ou relacional, e por um evento a
instanciação de uma propriedade numa substância ou em substâncias
(ou em propriedades ou eventos) em um tempo. Qualquer definição
de uma substância tende a tomar como provadas as questões
filosóficas, mas eu trabalharei com uma definição que, penso, não
toma como provado o problema em questão neste artigo. Uma
substância é uma coisa (diferente que um evento) que pode (é
logicamente possível) existir independentemente de todas as outras
coisas daquela categoria metafísica (i.e. de todas as outras
*
Professor emérito de Filosofia da Religião Cristã na Universidade de Oxford.
[Título original do artigo: “What makes me me? A Defense os Substance
Dualism”. Apresentado no I Seminário Internacional de Filosofia Analítica
Contemporânea, realizado em Natal de 19 a 21 de novembro de 2007. Tradução
provisória de Jaimir Conte.]
1
Este artigo é uma versão resumida do artigo “From Mental/Physical Identity to
Substance Dualism” publicado in (ed.) P. van Inwagen e D. W. Zimmerman,
Persons: Human and Divine, Oxford University Press.
2
“A noção de uma substância é exatamente esta – que ela pode existir por si
mesma sem o suporte de outra substância”. R. Descartes, Replies to the Fourth
Set of Objections, in (trans.) J. Cottingham, R. Stoothof e D. Murdoch, The
Philosophical Writings of Descartes, 2: 159.
3
Existem na literatura outras maneiras de entender a oposição mental/físico, as
mais comuns delas são as oposições intencional/não-intencional e ciência
física/ciência não física. Exponho isso somente em termos dos eventos. Na
primeira abordagem um evento mental é um evento que envolve uma atitude em
relação a alguma coisa sob uma descrição – ele está temendo, pensando,
acreditando nisto ou naquilo; quando o sujeito necessariamente não teme, não
pensa, não acredita em alguma coisa idêntica a isso ou aquilo; um evento físico é
um evento diferente de um evento mental. Na segunda abordagem o físico é o que
pode ser explicado por meio de uma física estendida, e o mental é o que não pode
ser explicado desta forma.
A primeira abordagem tem a conseqüência infeliz de que qualidades
como dores e cores não são eventos mentais; contudo, estas qualidades são as
causadoras de problemas paradigmáticos para a identidade entre “mente-cérebro”,
e devemos considerá-las como mentais se quisermos lidar de alguma maneira com
o problema tradicional mente/corpo. A segunda abordagem é desesperadamente
vaga, pois é totalmente ininteligível o que constituiria uma ciência que
incorporasse a atual física como ainda sendo uma física. Daí minha preferência
pela minha maneira de definir as propriedades “mentais” e “físicas”, os eventos, e
– de maneira análoga – as substâncias.
Uma defesa do dualismo de substâncias 293
4
Agradeço a David Armstrong por mostrar que minha definição original de “acesso
privilegiado” sem a cláusula inicial “dado que” tinha a conseqüência de que,
como animais e bebês não poderiam descobrir se “estão tendo uma imagem
vermelha” etc. instanciada neles porque eles não têm os conceitos necessários
para obter conhecimento por introspecção, não poderiam ter acesso privilegiado a
essas propriedades; e disso se seguiria que não poderia haver propriedades
mentais segundo meu sentido. A cláusula adicional torna o caráter mental de uma
propriedade uma questão de se alguém que tem o conceito daquela propriedade
tem uma maneira de ter conhecimento a seu respeito que não é disponível aos
outros.
294 Richard Swinburne
5
Mais precisamente, se você tem conhecimento lingüístico das regras para usar um
designador informativo de um objeto (substância, propriedade, ou o que quer que
seja), então você pode aplicá-lo corretamente a qualquer objeto se e somente se
(1) você está favoravelmente posicionado, (2) suas faculdades estão funcionando
perfeitamente, e (3) você acredita que (1) e (2). Assim, ‘verde’ ser um designador
informativo significa que alguém que sabe o que ‘verde’ significa pode aplicá-lo a
um objeto de maneira correta quando (1) a luz é luz do dia e ele não está muito
longe do objeto, (2) seus olhos estão funcionando perfeitamente, e ele acredita
que (1) e (2). Alguém está sujeito à ilusão se ou {(1) e (2)} e não-(3) ou {ou não-
(1) ou não-(2)} e (3). Por oposição, (as palavras designadoras tendo seus
significados pré-modernos) por mais favoravelmente posicionado que você se
encontre e por mais bem que suas faculdades estejam funcionando, você pode não
ser capaz de identificar corretamente algum líquido em nossos rios e mares como
“água”, ou algum planeta no céu ao entardecer como ‘Hesperus’.
296 Richard Swinburne
2. Propriedades
Comecemos com as propriedades. Para satisfazer meu metacritério é
necessário e suficiente que cada propriedade nomeada por meio de
designadores informativos que não são logicamente equivalentes
conte como uma propriedade diferente; não obstante, visto que
algumas acarretam outras, não precisaremos mencioná-las todas a
fim de oferecer um relarto completo do mundo. É importante
distinguir uma descrição de uma propriedade P em termos de
alguma propriedade que ele possui, de um designador rígido
(informativo ou não-informativo) de P. “Verde” é um designador
informativo da propriedade de ser verde; ele se aplica a ela em todos
os mundos possíveis, e uma pessoa que sabe o que “verde” significa
sabe a que um objeto deve ser semelhante para ser verde. “A cor
favorita de Amanda” ou “a cor da grama” pode funcionar como
descrições da propriedade verde em termos de suas propriedades,
possivelmente (em nosso mundo) somente identificando descrições.
Essas palavras podem ser usadas para descrever a propriedade de ser
verde ao designar de maneira informativa uma propriedade diferente
– a propriedade de ser a cor favorita de Amanda ou a propriedade de
ser da mesma cor da grama – cujas propriedades a propriedade de
ser verde possui. “Verde é a cor favorita de Amanda” é então uma
sentença com sujeito-predicado onde “A cor favorita de Amanda”
designa de maneira informativa a propriedade de ser a cor favorita
de Amanda e desse modo (em nosso mundo) descreve a propriedade
verde. Ela diz que a propriedade “verde” tem, ela mesma, a
propriedade de ser a cor favorita de Amanda. Se ela afirmasse (de
maneira incomum) existir um enunciado de identidade entre as duas
propriedades designadas de maneira informativa, ela seria falsa. Mas
qualquer nome de propriedade pode ser convertido num designador
rígido não informativo de outra propriedade que tem a primeira
propriedade. “A cor favorita de Amanda” pode ser usada para
designar de maneira rígida aquela cor que no mundo real é a cor
favorita de Amanda. Neste caso “Verde é a cor favorita de Amanda”
será um enunciado (verdadeiro) de identidade. O expediente da
298 Richard Swinburne
6
Ver Peter van Inwagen, Material Beings, Cornell University press, 1990, seção
13; e Trenton Merricks Objects and Persons, Clarendon Press, 2001.Van Inwagen
considera que agregados mereológicos, artefatos e objetos gerrymandered
existem, e naturalmente eles não podem ser substâncias.
300 Richard Swinburne
7
Para uma abordagem mais detalhada da ecceidade e de qual seria a evidência de
que os objetos materiais têm ou não têm ecceidade, ver meu artigo “Thisness”,
Australasian Journal of Philosophy, 73 (1995), 389-400. Este artigo tem sido
objeto de algumas críticas detalhadas por parte de John O’Leary-Hawthorne e J.
A. Cover in “Framing the Thisness Issue”, Australasian Journal of Philosophy 75
(1997), 102-8. Uma crítica completamente injustificada que ele faz é que (p. 104)
meu “princípio diz respeito à duplicação solo numero intra-mundo” e que “é
surpreendente que Swinburne não apresente explicitamente versões intra-mundo
de seu princípio”. Entretanto, eu deixo explicitamente claro (p. 390) que todos os
princípios que eu discuti (incluindo, portanto, aquele princípio nos termos dos
quais eu defini ecceidade), “dizem respeito não meramente a identidade de
indivíduos num dado mundo, mas em todos os mundos possíveis”.
302 Richard Swinburne
8
Se as partes simples têm a mesma ecceidade, então a substância composta delas
terá uma ecceidade constituída por estas e vice-versa. Eu, por conseguinte, rejeito
uma visão que Galois chama “haecceitism forte”, a visão de que dois objetos (O
Uma defesa do dualismo de substâncias 303
num mundo m, e O* num mundo m*) poderiam não obstante ser diferentes,
mesmo se eles tivessem absolutamente as mesmas propriedades e fossem
compostos de constituintes idênticos. Ver A. Galois, Occasions of Identity,
Clarendon Press, 1998, p. 250-51.
9
Ver meu artigo “Thisness” sobre como a física pode fornecer evidência sobre se
os objetos materiais têm ecceidade.
304 Richard Swinburne
4. Substâncias Mentais
Suponha agora que nenhuma substância tem ecceidade, e, portanto,
que a opinião de que todas as substâncias são feixes seja correta.
Substâncias mentais são aquelas substâncias que têm essencialmente
propriedades mentais. Por conseguinte, se há substâncias mentais
depende de como um feixe reune feixes de propriedades em
substâncias. Propriedades mentais com partes físicas (tal como a
propriedade de intencionalmente levantar um dos braços) são
naturalmente consideradas como pertencendo à substância a qual a
parte física pertence. Mas alguém pode colocar propriedades
Uma defesa do dualismo de substâncias 305
10
Como proposto, por exemplo, por Jerome Shaffer, “Could Mental Processes be
Brain Processes”, Journal of Philosophy 58 (1961).
11
“A verdadeira idéia de uma mente humana é a que a considera um sistema de
diferentes percepções ou diferentes existências, encadeadas pela relação de causa
e efeito, e que mutuamente produzem, destroem, influenciam e modificam-se
umas às outras”. David Hume, Tratado da Natureza Humana, 1.4.6.
306 Richard Swinburne
tanto em um tempo como num outro tempo, cujos limites não são
mais estreitos que aqueles dos correlatos físicos daquilo que um
sujeito co-experiencia.
Será evidente que não fará diferença para o caso que
existam substâncias mentais se a teoria dos feixes de todas as
substâncias físicas for falsa, e os objetos materiais inanimados,
incluindo as moléculas-cerebrais, tiverem ecceidade (e assim sendo
a mesma substância não é somente uma função das propriedades,
mas da matéria em que as propriedades são instanciadas). Pois ainda
não se seguiria disso que as propriedades mentais seriam
coexperienciadas. Podemos descrever as ocorrências de co-
experiências só se admitirmos a existência de substâncias mentais.
Esta conclusão é reforçada quando consideramos alguns
dados neurofisiológicos e experimentos mentais bastante
conhecidos. A questão crucial quando os hemisférios do cérebro de
um paciente são separados é se (na hipótese de que as experiências
sejam produzidas por ambos os hemisférios cerebrais) as
experiências produzidas pelo hemisfério esquerdo de seu cérebro
são co-experienciadas com as experiências produzidas pelo
hemisfério direito de seu cérebro. Não se trata simplesmente de que
algumas maneiras de separar o cérebro ou de definir quando ele
começa ou deixa de existir forneceriam explicações mais simples do
que outras de como o cérebro ou o corpo se comporta, mas que
algumas maneiras acarretariam a não ocorrência de um dado da
experiência, cuja ocorrência seria evidente para seu sujeito ou
sujeitos – que um sujeito teve ambas as séries de experiências, ou
que ele teve somente uma série. Se existe uma pessoa ou duas não é
algo acarretado por quais experiências são conectadas a quais
hemisférios cerebrais, ou a alguma coisa física diferente. Para
descrever o que está acontecendo precisamos individuar as pessoas
em parte pelas experiências que elas têm, e não pela extensão da
unidade de um cérebro. Somente para descrever a experiência, não
para explicá-la, necessitamos de substâncias mentais individuadas
pelo menos em parte segundo esta maneira.
308 Richard Swinburne
12
Apresentei argumentos bastante sucintos a favor da necessária indivisibilidade da
alma ao argumentar contra a possibilidade de fissão de pessoas em The Evolution
of the Soul (revised edition, Clarendon Press, 1997) p. 149-50, e contra a
possibilidade de fusão de pessoas em minha contribuição a (ed.) Sydney
Shoemaker and Richard Swinburne Personal Identity (Basil Blackwell, 1984) p.
44-5.
Uma defesa do dualismo de substâncias 309
13
R. Descartes Discourse on the Method, (tradução para o inglês de E.S. Haldane e
G.R.T. Ross), Collected works of Descartes, Vol. I. Cambridge University Press,
1972, p. 101.
310 Richard Swinburne
14
Sydney Shoemaker, “Introspection and the Self” in (ed.) Q. Cassam, Self-
Knowledge, Oxford University Press, 1994, p. 82.
15
A necessidade de algum tipo de qualificação a respeito da frase de Shoemaker é
o assunto da recente discussão. Ver Analisa Coliva, “The first person: Error
through Misidentification, the Split Between Speaker’s and Semantic Reference,
and The Real Guarantee”, Journal of Philosophy, 100 (2003), p. 416-31.
Uma defesa do dualismo de substâncias 311
Glenn W. Erickson *
*
Professor titular do Departamento de Filosofia da UFRN. E-mail:
ericksons@ufrnet.br.
*
Graduado em Direito pela PUC Campinas. E-mail: maicibs@hotmail.com
**
Professor da Faculdade de Direito da PUC Campinas. Membro do grupo
Paidéia/FE/UNICAMP. E-mail: samuelms@gmail.com
Princípios, Natal, v.15, n.23, jan./jun. 2008, p. 319-322.
320 Maici Barboza dos Santos e Samuel Mendonça