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Resumo: O gênero cômico tem atravessado as épocas sustentando traços que lhe garantem unidade
e permanência, o que se nota ao serem analisadas as peças A comédia da marmita, de Plauto, O avaro,
de Molière, e O santo e a porca, de Ariano Suassuna. Esses textos, por outro lado, diferenciam-se em
aspectos importantes que devemos sublinhar. Percebe-se neles o poder crítico do gênero, que
exagera e deforma o real com vistas a melhor representá-lo.
Palavras-chave: Comédia. Crítica de costumes. Convenções teatrais.
Abstract: The comedy genre has crossed the ages upholding features that ensure unity and
permanence, which is noted when analyzing the plays Plautus’ The pot of gold, Molière’s The miser
and The saint and the sow, by Ariano Suassuna. These texts, on the other hand, differ in significant
ways that we underline. It can be seen in them the critical power of the genre, which exaggerates and
distorts reality in order to better represent it.
Key words: Comedy. Criticism of customs. Theatrical conventions.
século XVII, no caso de Molière (1622- onde trabalha arduamente. Tem uma
1673), ou à humanidade brasileira, mais filha, Fedra, seu único patrimônio: moça
especificamente nordestina, no caso de bonita, Fedra e seu pai não possuem, no
Suassuna (1927). Existem não apenas entanto, dote a oferecer, de modo a atrair
afinidades, mas também diferenças um pretendente de posses que, com o
relevantes entre as peças nos planos da casamento, venha a minorar os problemas
forma e do conteúdo, o que buscaremos de Euclião, sempre às voltas com bens
ressaltar ao longo da análise. escassos. Fedra, nas festas de Ceres,
Plauto nasceu em torno de 254 tradicional ocasião de excessos, fora
a.C., tendo vivido cerca de 70 anos – mas seduzida por Licônides, de quem espera
as datas são incertas: há quem sustente um filho – circunstância que Euclião
que ele tenha nascido três décadas depois comicamente desconhece, apesar do
e vivido apenas 42 anos. A Aululária, para estado avançado da gravidez. Diga-se que
nós A comédia da marmita (ou Comédia da a própria garota não sabe quem foi seu
panela, na tradução de Agostinho da sedutor.
Silva), foi escrita em sua fase madura, O protagonista descobrira, em sua
entre 195 e 186 a.C., segundo calculam “os casa, a marmita cheia de ouro que dá
últimos estudiosos que se têm ocupado da nome à peça, informa o deus Lar,
cronologia” da peça, informa Walter de responsável pelo prólogo em que os
Medeiros em texto introdutório à sua antecedentes da história são contados ao
tradução da comédia (PLAUTO, 1994: 17). público. Euclião imagina ter, na marmita,
A Aululária figura, ao lado do a garantia de velhice menos sofrida, e essa
Anfitrião, entre as peças mais conhecidas ideia fixa faz dele um avarento
e imitadas de Plauto. O próprio autor destemperado, constantemente a
latino teria ido buscar tema e personagem desconfiar que todos à volta lhe querem
em texto grego da Comédia Nova, hoje roubar o tesouro. Assim ele nos é
perdido, mas provavelmente de autoria apresentado logo na primeira cena,
de Menandro. A imitação de modelos quando o vemos desancar e espancar a
gregos era procedimento comum entre os escrava Estáfila, que o velho julga poder
romanos e continuaria frequente, na Itália descobrir seu segredo – a marmita e o
e na França (mais do que na Espanha e na local onde ele a esconde.
Inglaterra), em fases posteriores. A cena será reaproveitada em
Euclião, o protagonista da Molière e Suassuna, que, como Plauto,
comédia, é homem pobre, já velho, dono com ela tornam transparente o caráter da
apenas de um pequeno pedaço de terra personagem, a quem a posse do tesouro
traz angústias de todo tipo. Como diz completamente patrocinada pelo noivo, já
Euclião para si mesmo, ao final da que Euclião, reafirmando a própria
passagem, depois de afastar a perplexa avareza, não compra mais do que
Estáfila, sem dúvida inocente das insignificâncias em sua visita à feira. A
intenções que seu senhor lhe atribui: chegada de Pitódico, escravo de
“Agora vou ver se o ouro está como o Megadoro, acompanhado de cozinheiros e
escondi. Esse ouro que, de tantas flautistas, à casa de Euclião para preparar
maneiras, atormenta um desgraçado o jantar de bodas irá provocar outros
como eu!...”. Em seguida, bate a porta, incidentes, sempre lastreados na sovinice
trancando-se em casa (1994: 30). e nos receios do pai de Fedra. Aqui, Plauto
A história avança com o pedido de recorre aos recursos farsescos que
casamento que Megadoro, vizinho também aparecem no Anfitrião, com as
maduro e rico de Euclião, faz a Fedra. Ou pancadas desferidas por Euclião contra
melhor, a moça não chega a ser um dos cozinheiros, que, por infelicidade,
consultada acerca do assunto, e o pedido, falara em marmita – instrumento de que
na prática, é dirigido a seu pai, que os profissionais da cozinha obviamente
relutantemente concorda em ceder a filha necessitam, mas que, para o avarento, só
ao vizinho. A hesitação do homem deve-se poderia ser a panela onde guarda o
a imaginar que Megadoro só quer se tesouro.
tornar seu genro por conhecer o segredo Outra vítima de Euclião será
da marmita; o sujeito ambicionaria um Estrobilo, escravo de Licônides – este
bom dote, mais do que se ligar à menina. pretende casar-se com Fedra, afastando o
O encontro entre os dois homens dá-se na obstáculo representado por Megadoro,
segunda cena do segundo ato (a comédia, seu tio. Estrobilo recebe a incumbência de
como de praxe na época, tem cinco atos), sondar a quantas andam os preparativos
e a desconfiança de Euclião, contraposta para a festa, abrindo caminho para a
às gentilezas de Megadoro, oferece a base intervenção de Licônides. Àquela altura,
para a comicidade. Um jogo de porém, o avarento, apavorado com a
aproximações e afastamentos responde possibilidade de que lhe descubram o
pelo riso nessa passagem. esconderijo onde guarda o ouro, resolve
Depois de se certificar de que o mudá-lo de lugar e o leva de sua casa para
vizinho não sabe da existência da marmita o templo da Boa Fé, situado nas
nem almeja dote, Euclião admite o proximidades. Em seguida, vê o escravo,
casamento. A festa de bodas será quase que até o momento ignora a existência do
reconhecimento, pelo qual o protagonista essa lei, uma coisa pode ser outra, e esta
informa-se da situação da filha e da segunda pode ser uma terceira. Isso é
identidade daquele que, muito aquilo. No gênero cômico, o princípio de
brevemente, será pai de seu neto. identidade é, ao menos provisoriamente,
O reconhecimento não ocorrerá posto em suspenso, brinca-se com ele.
antes de o encontro entre Euclião e o As certezas sociais, mas também
futuro genro dar oportunidade a um as de ordem lógica, revelam-se suspeitas.
diálogo marcado pelo equívoco, também O mundo balança, vacila por alguns
objeto da imitação criadora de Molière e instantes, para depois tudo voltar a seu
Suassuna: o jovem se confessa lugar – mas transformado. O princípio de
responsável pela malfeitoria que aflige a identidade, enfim, restaura-se; os que
vida do avaro, imaginando que a tristeza cometeram enganos de percepção ou de
deste se ligue à descoberta da gravidez de apreensão intelectual costumam receber
Fedra (fato que Euclião, no entanto, ainda o seu castigo. Erros intelectuais e erros
desconhece). O equívoco se instala e morais confundem-se aqui (o que se
produz o riso: enquanto o rapaz fala da revela moral ou imoral depende também,
moça – “ela”, tocada por ele por “culpa do naturalmente, das inclinações ideológicas
vinho e do amor” –, Euclião pensa na do escritor). Esse tipo de exercício,
marmita. No decorrer da cena, a confusão propiciado pela comédia, tem a função de
irá desfazer-se (1994: 101-110). desopilar, de desobstruir os canais de
Plauto recorre constantemente pensamento e percepção, arejando-os.
aos equívocos para produzir o riso; o A comédia da marmita chegou
quiproquó torna-se mola da comédia. O incompleta à posteridade. Em fins do
autor organiza a ação de modo a século XV, “quando aumentava o interesse
promover os enganos e, com eles, pelas comédias latinas”, diz Walter de
desenvolver as situações engraçadas. Na Medeiros, o humanista Codro Urceo,
figura cômica do equívoco, dois sentidos professor em Bolonha, redigiu com base
se superpõem num só signo: uma palavra no prólogo e nos resumos do enredo, que
ou um gesto pode ter dois significados, sobreviveram com a peça, a sua parte
ambos aparentemente plausíveis, a final, possibilitando assim que o texto de
depender apenas do ponto de vista – ou Plauto fosse representado (1994: 18).
da falta de visão – do observador. Assim, O trecho final não consta da
uma lei básica de nosso conhecimento das tradução de Walter de Medeiros, mas
coisas é burlada: ao contrário do que diz pode ser lido na de Agostinho da Silva:
terminam vencedores: na peça francesa, se aqui formando uma cena só, a terceira
Mariane casa-se com Cléante, Élise com do primeiro ato em Molière. Um trecho:
Valère. Mostra-se a vitória dos
Harpagão – Vem cá. Quero ver.
sentimentos sobre as convenções, que
Mostra-me as mãos.
incluem a autoridade paterna, com seu La Flèche – Aqui estão.
arbítrio em geral pouco sensível aos Harpagão – As outras.
ímpetos juvenis. La Flèche – As outras?
descobrem irmãos), e está feliz por ter de Harpagão – É o que quero fazer.
(Revista os bolsos de La Flèche.)
volta a sua caixinha.
La Flèche – O diabo carregue a
O texto irá valer-se de outras
avareza e os avarentos!
sugestões colhidas em Plauto. A passagem
Harpagão – Como? Que estás
em que o protagonista de A comédia da
dizendo?
marmita bate na escrava Estáfila e aquela La Flèche – O que estou dizendo?
em que, ainda nessa peça, quer ver “a Harpagão – Sim: que disseste sobre
terceira mão” de Estrobilo, julgando que a avareza e os avarentos?
este esconde a panela consigo, combinam- La Flèche – Eu disse que o diabo
carregue a avareza e os avarentos.
Harpagão – A quem te referes?
a ler a carta, com medo de seu conteúdo, e saber, lendo os “Dados biobibliográficos
se convence de que Eudoro pensa em lhe do autor” redigidos por José Laurenio de
dar uma facada antes mesmo de se Melo para a edição de O santo e a porca,
certificar do que se passa: o velho Eudoro que “caracteriza esse período a
quer casar-se com Margarida. O sovina é preocupação de conciliar a influência dos
incapaz de ouvir observações sensatas, e clássicos ibéricos, sobretudo Lope de
suas palavras remetem à crítica social: Vega, Calderón de la Barba e Gil Vicente,
com os temas e formas hauridos no
Caroba – Mas Seu Euricão, Seu romanceiro popular nordestino” (2011:
Eudoro é um homem rico! 10). Preparava-se o chão de onde o Auto
Euricão – E é por isso mesmo que eu da Compadecida iria brotar em 1955.
estou com medo. Você já viu pobre
Outro aspecto a observar, agora
pedir dinheiro emprestado? Só os
de volta a O santo e a porca, liga-se às
ricos é que vivem com essa
sugestões contidas no texto, relacionadas
safadeza! Santo Antônio, Santo
a certa visão do mundo. Envolvido pelas
Antônio!
Margarida – Mas papai já leu a maquinações de Caroba, que pretende ver
autor latino, a solução otimista mostrava “as três histórias de avarentos, por
um homem que, depois dos golpes que métodos diferentes, aproximam-se na
sofreu – o susto com o furto da marmita e, defesa de uma melhor condição humana”.
em seguida, com a notícia de que a filha Sábato lembra ainda que “o quiproquó
lhe daria um neto –, é capaz de corrigir-se, básico”, ou seja, a confusão que, a certa
entregando a Fedra e ao genro os bens altura, os três textos apresentam,
que guardava de maneira obsessiva. No encontra-se no diálogo em que o jovem
francês, Harpagão termina tão apaixonado fala ao velho sobre a filha
mercenário e avaro quanto era no começo deste, quando o sovina entende tratar-se
da história. Em Suassuna, pateticamente, não da menina, mas da marmita, da
Euricão não apenas descobre que sempre caixinha ou da porca – momento em que a
foi pobre, conservando cédulas sem valor, avareza induz a atentar antes às coisas do
como percebe o quanto a sua vida tem que às pessoas. Temos dúvidas com
sido vazia de sentido. Ele saberá, agora, relação ao que diz o crítico, no entanto,
voltar-se para Santo Antônio? em suas restrições a O santo e a porca.
A avareza ganha, portanto, Afirma Sábato Magaldi:
ressonância ética e existencial mais ampla
As confusões de identidade de
na peça brasileira – sem que se esqueça a
pessoas no escuro é que se mostram
crítica social, afirmada, por exemplo, demasiado simplórias na obra de
quando Pinhão reclama da exploração Suassuna. E era também quase
impossível encontrar solução para a
imposta a ele e à família: “Mas onde está o dicotomia do avarento. Foi o
salário de todos estes anos em que dramaturgo hábil, pintando-o como
estrangeiro, já que o tipo não se
trabalhamos, eu, meu pai, meu avô, todos
ajusta muito ao feitio nacional. Mas,
na terra de sua família, Seu Eudoro? Onde para fazê-lo ficar com o santo,
necessitava de um verdadeiro
está o salário da família de Caroba, na
milagre. E o milagre não logrou
mesma terra, Seu Eudoro? Não resta credibilidade: é inverossímil que
nada!” (2011: 148). A questão da terra e Euricão Engole-Cobra guardasse na
porca dinheiro há muito tempo
da relação entre as classes, no Brasil, recolhido. A abjuração final da peça
aparece de modo mais pungente e menos resulta demagógica, conduzida em
demasia pelo dedo do autor. O
lúdico na seção final do texto. avarento permaneceu toda a trama
Sábato Magaldi mencionou, no no mal aspirando ao bem – porca e
santo que Ariano Suassuna não
Panorama do teatro brasileiro, as mesmas
soube juntar (MAGALDI, 1997: 244).
palavras que acabamos de citar.
Concordamos com ele quando diz, logo O dramaturgo, no prefácio a sua
depois de mencionar a fala de Pinhão, que peça, refere-se provavelmente a essas