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SISTEMA DAS EMOÇÕES

Pascal Bonitzer
Uma criança morta em primeiro plano não é uma criança
morta em plano geral e tampouco uma criança morta em
cores.
André Bazin

Freqüentemente se censura o cinema moderno de se ter afastado da emoção e de ter


cessado de querer – ou de poder – contar histórias. Essa censura é, às vezes, justificada
(Straub ou Godard, em um período recente, pareciam ter renunciado a contar histórias), às
vezes, é injusta (não se saberia dizer que Duras não conta histórias, simplesmente, ela não
as conta do modo habitual). Entretanto, certamente que o que se deixa designar como
“cinema moderno”, ou mais radicalmente (segundo a terminologia em vigor no festival de
Hyères, essa cidade cuja rainha é Duras), como “cinema diferente”, se assinala pelo pouco
público que é afetado, mas também pela espécie de perplexidade em que deixa
freqüentemente esse público, como se o modo de emprego desse cinema falhasse, ou como
se lhe faltasse alguma coisa; como se alguma coisa do que nós tomamos, insensivelmente,
por cinema, por hábito, sofresse algum defeito, nos deixasse em falta. Eu disse
“perplexidade”, mas freqüentemente, são reações de cólera, de exasperação que manifesta
um público não preparado diante de certos filmes. Essa cólera, aliás, não é própria do
cinema, ela é em geral o que assinala a arte moderna como tal desde, pelo menos, o
Olympia de Manet.

Então, o que faz falta, nesse cinema? Que necessidade se encontra aqui frustrada?

O rumor o diz, o tédio o denuncia: é a necessidade de história, a necessidade de


emoções. São as histórias que carregam as emoções, e uma história sem emoções parece tão
impossível, tão estéril, quanto emoções sem história.

Para dizer a verdade, quando os espectadores decepcionados reclamam por emoção,


trata-se de algumas emoções típicas que o cinema, desde as origens, soube produzir em
massa, e que são: o medo, o riso e as lágrimas. Existem outras? Fitzgerald, em The crack-
up, estigmatiza assim o cinema: esse poder “mais cintilante, mais vulgar” que a literatura, e
vencedor por isso mesmo; diz esse escritor para quem Hollywood foi o calvário, essa arte
incapaz de exprimir nada mais que os sentimentos mais comuns, as emoções mais comuns.
Hitchcock, ao contrário, se vangloriou de saber produzir “uma emoção de massa” (a
propósito de Psicose). Seria, então, a massa enquanto tal para quem a emoção é frustrada
no cinema moderno (desprezado por Hitchcock, como “cinema de arte”); seriam essas
“emoções comuns” ou essas “emoções de massa” – o riso da massa, o medo da massa e as
lágrimas da massa.

O “pouco público” do cinema moderno resulta, nesse sentido, de um mal-entendido


(é o erro de alguns em crer que é por culpa da “ideologia dominante” e da burguesia no
poder que a massa de trabalhadores e de camponeses não se precipitam para ver seus
2

filmes), mas de um fato de estrutura; aliás, é isso que perfeitamente compreenderam um


Godard ou uma Duras, um dizendo poder se interessar mais junto ao seu público desde sua
redução a dez mil espectadores (desde então, ele se pôs no circuito “normal” e encontrou
um pouco de massa), e a outra balizando sabiamente seu sistema de exibição para um
público minoritário.

De onde vem a emoção de massa cinematográfica? Caso se acredite na lenda, a


primeira emoção foi o medo, a sensação de medo produzida por um dos primeiros filmes
projetados, L’Arrivée d’un train en gare de la Ciotat. Como automaticamente, pelo próprio
efeito da projeção, o público se viu “projetado” na tela, sobre esse canto da plataforma na
qual se lançava o trem da profundidade em direção ao plano da frente. O riso nasceu
contemporaneamente, com L’Arroseur arrossé. Esses dois filmes são, como se sabe, os
dois maiores sucessos dos irmãos Lumière. O sucesso, parece, se deve, em cada um desses
dois filmes, a um efeito de jorro. Em L’Arrivée d’un train é o jorro do próprio trem em
direção ao plano da frente, suscitando o temor num vacilo do princípio de realidade. Em
L’Arroseur é o jato d’água na cara do jardineiro, mantido a distância pelo plano de
conjunto. Nos dois casos, alguma coisa salta para o rosto, mas não é o mesmo rosto; um é
o do próprio público (o trem, o medo), o outro aquele do personagem em distância. Assim,
isso se seguirá: as sensações de terror estão ligadas a uma manipulação terrorista do
primeiro plano, a uma “ascensão ao plano da frente”; o riso funciona no plano de conjunto,
os grandes cômicos são manipuladores do plano de conjunto – cidades de Tati, fachadas de
Jerry Lewis, camarote dos Marx...

A conquista das lágrimas foi mais tardia, pois ela exige um sistema mais elaborado,
uma verdadeira narração. O grande mestre das lágrimas foi, inicialmente, Griffith,
inspirado por Dickens. As lágrimas dependem da invenção de um elemento feminino, de
uma elaboração feminina do rosto, ou seja, do star system, cujo Griffith é o inventor como
o é da montagem. Sadoul escrevia: “O cinema que nasce com Griffith se torna um teatro de
fisionomia [...] O cinema quer um rosto nu, ou pelo menos, desembaraçado das maquiagens
excessivas. O rosto se torna o essencial no cinema que Griffith cria; o reino da vedete vai
então começar: o público desejará nomear esse rosto que ele verá tão freqüentemente
respirar contra o seu”.1 As vedetes femininas de Griffith, como se sabe, são
sistematicamente vítimas, as primeiras estrelas são mulheres espancadas, violadas,
perseguidas, assassinadas; os rostos abatidos, frágeis e tremidos de Lillian Gish, de Mae
Marsh. A ação é em plano médio, acentuada pelos primeiros planos “elaborados” dos rostos
frágeis, expostos aos movimentos das emoções. É preciso aqui falar, mais do que primeiros
planos, de planos aproximados, que acentuam o rosto nu como na pintura de Magritte, Le
viol, onde um corpo de mulher nua forma um rosto obsceno, como uma condensação de
dois planos de visão, plano médio e primeiro plano. As lágrimas nascem dessa
condensação, dessa compressão sádica de dois planos, sobre o rosto.

Então, toda a questão é, sempre, saber o que se quer fazer do plano, ou dos planos.
As emoções são planos, planos de intensidade. O que se censura no cinema moderno,
essencialmente, é de inventar planos perversos, que anulam a emoção de massa. O público
não está mais na tela, na distância do plano de conjunto onde se pode rir do personagem

1
George Sadoul, Histoire générale du cinéma, Éditions Denöel, t. II.
3

mistificado; na proximidade do primeiro plano onde é terrificado pelo rosto horrível, pela
“maçaneta da porta que gira lentamente”; na condensação do plano aproximado onde chora
a heroína martirizada. O público é como que rejeitado para fora do jogo, testemunha de
eventos equívocos e constrangido à hesitar entre dois planos separados, como nos efeitos de
transflex, as transparências frontais disjuntivas de Syberberg, ou os planos de voz de Duras,
ou os planos triturados e fragmentados de Godard.

O cinema moderno elimina os planos de emoção, ele inventa novas relações entre os
planos, ele descola o cinema das “emoções comuns” para produzir sensações novas, menos
identificáveis, menos identificatórias.

Quando Welles, em A marca da maldade2, fez surgir na luz intermitente do aviso


luminoso a cabeça invertida, com os olhos exorbitados, do homem estrangulado, se produz,
com um simples choque, o efeito de horror do primeiro plano, e nós recebemos o golpe do
mesmo modo, ou quase, que Janet Leigh. Os rostos deformados pelo expressionismo da
grande angular e do claro-escuro ressaltado atingem o seu lugar em uma narrativa de terror,
de violência. A oposição entre os planos segundo a sucessão narrativa produz as variações
emocionais; o público é, então, dirigido, como num trem-fanstama (essa comparação
convém sobretudo a Welles, grande amante de Luna Parks, de galerias de espelhos, de
labirintos fantásticos, de tobogãs e de rodas gigantes). Dirigir o público, esse sempre foi a
preocupação dos grandes metteurs-en-scène das “emoções de massa”: Griffith, Lang,
Eisenstein, Hitchcock. Por toda parte, repassam neles essa obsessão, “educar o espectador”,
diz Eisenstein; “fazer direção de espectadores”, diz Hitchcock; “criar uma emoção de
massa”. Eles operam pelo terror, pela violência, pelo primeiro plano. Os rostos
alquebrantados de Griffith, os rostos deformados de Welles, os rostos desfigurados de
Lang, os rostos extirpados de Hitchcock. “Conto de terror, mas o rosto é um conto de
terror”.3

Sair do terror do rosto, tal poderia ser um dos programas do cinema moderno. Os
primeiros planos de Godard sempre são erráticos, enigmáticos. O terror do primeiro plano é
como que parodiado em Week-end à francesa4, a cabeça do coelho esfolado que verte
sangue parodia Eisenstein. Não se encontra, como em Hitchcock ou em Lang, primeiros
planos de objetos estranhos, inquietantes ou terríveis em Godard: são primeiros planos de
canetas-tinteiro, xícaras de café ou cinzeiros; os objetos os mais comuns. “Não há
mistério”, diz o garçom do café de Duas ou três coisas que eu sei dela5, e a câmera faz um
mergulho direto sobre o café na xícara, até que esta se transforme em noite sideral, bolhas-
galáxias, o metralhar de planos: a noite sideral de Kubrick aqui contida em um café
expresso, em três centímetros de profundidade. O que são esses planos? Onde nós estamos?
Em que distância, que medida da realidade?

É preciso notar que o primeiro plano, utilizado por Godard no mergulho sobre o
café, é, muito particularmente, desde a origem marcado de equívoco. Desde o começo, o

2
Touch of evil (EUA; 1958) (N. do T.).
3
Deleuze e Guattari, Mille plateaux, Éditions de Minuit.
4
Week-end (França/Itália; 1967) (N. do T.).
5
Deux ou trois choses que je sais d’elle (França; 1967) (N. do T.).
4

primeiro plano apareceu no cinema como marcado por esse equívoco: “Eu não sei mais –
dizia Blaise Cendrars em 1919 – se eu olho a via láctea ou uma gota d’água num
microscópio”.6 E Epstein dizia: “O primeiro plano limita e dirige a atenção. Ele me força,
indicador de emoção. [...] Eu não tenho o direito de pensar em nada mais do que esse
telefone. É um monstro, uma torre e um personagem”.7 O primeiro plano é, então, ‘cheio’
das ambigüidades paranóicas realizadas na poética de Lautréamont ou na pintura de Dali;
alfinetes-pilares ou rostos-paisagens, mas é cheio também de uma perda de referência da
medida humana, de um deslocamento do espaço.

Sabe-se, com efeito, que histórica e constitutivamente, os nomes dos planos, as


diferentes dimensões de plano estão ligadas à uma referência ao corpo humano; são
diferentes decupagens do espaço centrados sobre o corpo humano. Quando Eisenstein fala
de “suas baratas em primeiro plano”, ele não quer necessariamente falar de um primeiro
plano do olho ou da antena de uma barata, embora tenha realizado tais primeiros planos
(primeiros planos da pata de um grilo, em O velho e o novo8); uma barata está sempre em
primeiro plano, desde que ocupe a tela inteira. A referência é o corpo humano teórico com
o qual poderia ser posto. Jamais se toma uma barata em plano médio, e muito menos em
plano de conjunto.

Mesmo que um filme não mostrasse nenhum humano, desde que ele se compõe de
planos, a estatura humana está implicitamente presente; ela é o olho da câmera. Está no
corpo unificado, organizado, que os planos de emoção são afetados aos órgãos. Um filme é
um conjunto orgânico que apreende organicamente pedaços de realidade. Christian Metz
escreve: “Mesmo o plano mais parcial e o mais fragmentário (ou seja, isso que as pessoas
de cinema chamam de primeiro plano) apresenta ainda um pedaço completo de realidade”9.
Encontra-se nesse juízo todas as ambigüidades que caracterizam o primeiro plano, até nesse
“pedaço completo” que se assemelha a um oximoro.10 Ora, não é verdade que os planos à
Godard ou à Syberberg “apresentam um pedaço completo de realidade”, pelo menos não se
pode dizer assim de todos os casos. Essa frase tem sentido apenas se as filmagens são
encaradas como uma subtração ou uma extração de realidade, mas não é o caso de cineastas
que, ao contrário, acrescentam ou superpõem planos contraditórios, desfazendo o
sentimento unitário de realidade, e isso, aliás, jamais foi o caso dos grandes metteurs-en-
scène. Eles sempre traíram a realidade, ou pelo menos, a dissimularam. A grande mão no
revólver em Quando fala o coração11, as câmeras lentas e as inversões de Cocteau, as
transparências de Syberberg, as difrações, sobreimpressões e perspectivas truncadas de
Ruiz, os planos de voz e os planos negros de Duras, etc., não podem de nenhum modo ser
percebidos como “pedaços completos de realidade”, e o crítico que mais se preocupou do
papel da “realidade” no cinema, André Bazin, sabia perfeitamente que a profundidade de

6
Citado por Mitry, Esthétique et psychologie du cinéma, t. I.
7
“Bonjour cinéma”, 1921, in Écrits sur le cinéma, Éditions Seghers.
8
Staroie i novoie (URSS; 1929) de S. M. Eisenstein (N. do T.).
9
Christian Metz, Éssais sur la signification au cinéma, Éditions Klincksieck..
10
“Oximoro” ou “oximorón” = figura de linguagem, que consiste em reunir palavras que se excluem
mutualmente. Exemplo canônico: “Esta obscura clareza...” (N. do T.).
11
Spellbound (EUA; 1945) de Alfred Hitchcock. (N. do T.).
5

campo, por exemplo, é uma produção positiva da mise-en-scène e não da recepção passiva
da realidade.12

O cinema moderno, separando os planos, inventando novas relações entre os planos,


certamente rareou seu público, mas tem, de um certo modo, suspendido a maldição de
Fitzgerald, “uma arte incapaz de exprimir outra coisa que os sentimentos mais comuns, as
emoções mais comuns”; o cinema moderno desfez as emoções orgânicas para trabalhar
planos mais sutis, abriu o cinema sobre dimensões maiores e menores.

Tradução: Fabián Núñez


BONITZER, P. Le champ aveugle: essais sur le réalisme au cinéma.
Paris: Cahiers du Cinéma, 1999. pp. 95-102.

12
André Bazin, Qu’est-ce que le cinéma? (une esthétique de la réalité: le néoréalisme), passim, e
notadamente as considerações sobre o “tato cinematográfico”, sobre o fato que, no cinema, “realidade não
deve naturalmente ser entendida quantitativamente”, que “a unidade da narrativa cinematográfica em Paisà
não é o “plano”, ponto de vista abstrato sobre a realidade que se analisa, mas o “fato”.” etc.

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