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A redenção que há em Cristo Jesus

Júlio Paulo Tavares Zabatiero

A Escritura repetidas vezes afirma que a humanidade vive debaixo da escravidão,


por exemplo: “E nós, igualmente, quando éramos crianças sujeitas aos elementos do
mundo, éramos escravos” (Gálatas 4,3); “outrora, quando não conhecíeis a Deus,
estáveis escravizados a deuses que, por sua própria natureza, não o são...” (Gálatas
4,8); “Mas a Escritura sujeitou tudo ao pecado num cativeiro comum, a fim de que, pela
fé de Jesus Cristo, a promessa fosse cumprida para os que crêem. Antes da chegada
da fé, nós éramos mantidos em cativeiro, sob a lei, em vista da fé que devia ser
revelada” (Gálatas 3,22s). A condição humana de escravidão é de tal natureza que não
nenhum ser humano pode se auto-libertar, precisando, portanto, de um Libertador ou
Redentor - que nos outorgue o resgate, a alforria, a própria liberdade.
Jesus Cristo, o Filho de Deus, eternamente entregue em nosso benefício (Ef 1,4;
1Pd 1,18-20), assumiu a condição humana a fim de nos libertar (João 1,1-18; Filipenses
2,5-11) e nos fazer retornar à comunhão e submissão ao Pai Eterno. Foi da vontade e
decisão de Deus que o Libertador vivesse uma vida plenamente humana e consagrada
ao Pai (Hebreus 2,5-18), de forma a revelar não só o amor do Pai, como também a
plena humanidade desejada pelo Criador. Assim, a redenção é conferida à humanidade
mediante a integralidade da vida, morte e ressurreição de Cristo. Devido ao hábito de
falarmos da morte salvífica de Jesus Cristo na cruz, comumente negligenciamos o
caráter salvífico de toda a carreira terrena de Jesus. Nesta reflexão, gostaria, portanto,
de apontar brevemente os aspectos salvíficos principais da vida, morte e ressurreição
de Jesus Cristo.

1. Jesus Cristo liberta mediante a sua solidariedade com a humanidade


escravizada, assumindo a nossa condição de escravos - Gálatas 4,4-7; Filipenses
2,5ss. Jesus, nascido de mulher e sujeito à Lei é quem nos pode libertar. Jesus é o
Libertador mediante a sua solidariedade conosco na escravidão que caracteriza a nossa
humanidade. Sendo o Filho de Deus, Jesus assume solidariamente a nossa escravidão
para que possamos, nEle, sermos tornados filhos adotivos de Deus - deixamos de ser
escravos e nos tornamos filhos e herdeiros de Deus - herdamos a vida!
De forma semelhante à perspectiva paulina de solidariedade, encontramos no
Evangelho de Marcos a apresentação da solidariedade de Jesus com as pessoas
impuras. O batismo é o primeiro sinal concreto dessa solidariedade, pois Jesus não
tinha pecados de que se purificar, mas se deixa batizar representativamente pelos
impuros e pecadores. O início de se ministério na Galiléia também é expressão da
solidariedade com pessoas impuras, uma vez que a Galiléia era região desprezada pelo
judaísmo oficial, conforme atesta o próprio ditado popular “De Nazaré pode vir alguma
coisa boa?”. Os sinais realizados por Jesus - curas, milagres e exorcismos - podem ser
vistos, também, como expressões de sua solidariedade com as pessoas impuras. Em
especial o exorcismo é manifestação dessa solidariedade, pois, na linguagem dos
Evangelhos, Jesus liberta as pessoas possessas por “espíritos impuros”. A comunhão
de mesa com publicanos e pecadores é outra das expressões da solidariedade de
Jesus com pessoas impuras, e Lhe rendeu polêmicas severas com as autoridades
judaicas. Por fim, devemos destacar as ocasiões em que Jesus ou seus discípulos
quebravam a “lei” conforme interpretada pelos fariseus de seu tempo. Os relatos dos
atos de Jesus em Marcos 1,16-45 e o conjunto de controvérsias de Jesus com o
judaísmo oficial em Marcos 2,1-3,6 são testemunho textual suficiente para
compreendermos a solidariedade de Jesus com pessoas impuras, e com os pecadores
em geral.

2. Jesus Cristo nos liberta mediante a sua fidelidade (fé) a Deus - Gálatas 2,16 (cp.
Gálatas 3,22; Romanos 3,22.26): “Sabemos entretanto que o homem não é justificado
pelas obras da lei, mas somente pela fé em Cristo, a fim de sermos justificados pela fé
de Cristo e não pelas obras da Lei, porque pelas obras da lei ninguém será justificado”.
A tradução acima destaca a preposição de que, normalmente, é traduzida por “em”, o
que torna o versículo redundante e pode conduzir a uma interpretação da fé em que
esta se torna uma nova obra meritória para ganhar a salvação. A fé é nossa resposta à
oferta graciosa da salvação por Deus, mas não é a base de nossa salvação. A base de
nossa resposta é a fidelidade de Jesus Cristo ao Pai. O fundamento vétero-
testamentário desta afirmação paulina é duplo: (1) Paulo interpreta a Lei como posterior
à promessa de Deus à Abraão de que nele seriam abençoadas todas as famílias da
terra - Gálatas 3,17s; (2) Paulo interpreta a vida justa - livre - como a vida do fiel a Deus,
seguindo Habacuque 2,4 - no idioma hebraico, o termo que traduzimos por fé denota,
igualmente fé e fidelidade.
Em que consistiu a fidelidade (fé) de Cristo, mediante a qual somos justificados
(libertados)? Em sua completa e plena submissão à missão que lhe foi confiada pelo
Pai que o enviou (Gálatas 4,4ss). O fundamento de nossa liberdade é a fidelidade de
Cristo, e isto é determinante para uma correta compreensão de nossa libertação e
justificação. Corremos o risco de confundir a fé em Cristo com o fundamento da
salvação - a fé é o meio pelo qual recebemos a salvação. O fundamento da libertação é
a fidelidade de Cristo a Deus o Pai, que torna presente na história (vindo a plenitude
dos tempos), a graça libertadora de Deus, agora disponível a todos os povos.

3. Jesus é o nosso Libertador porque Ele assume a nossa condição de malditos


sob a Lei e morre representativamente por toda a humanidade (Gálatas 3,12-14). O
domínio da Lei escraviza porque obriga a pessoa a guardar todas as suas prescrições e
determinações, o que é impossível à humanidade carnal. Incapazes de obedecer todas
as prescrições da Lei, a humanidade recai sob a maldição da Lei. Em sua morte na
Cruz, Jesus torna-se o maldito por nós, libertando-nos da maldição da Lei: a morte e
morte de cruz. Mediante a Sua morte na cruz, Jesus assume a maldição da lei sobre Si
mesmo, e torna, assim, aberto o caminho da promessa, da bênção abraâmica, a todas
as nações. Doravante, o acesso à promessa é efetuado mediante a fé, pela qual
recebemos o Espírito Santo prometido (cf. Gálatas 3,1-5).
A polêmica paulina contra a Lei é ampla, e nem sempre bem-compreendida.
Parece-me que o ponto principal dessa polêmica é que a Lei, embora inspirada por
Deus, não serve como base para a salvação. A Lei não pode ocupar o lugar da graça,
pois se assim o fizesse, a salvação teria como base o esforço humano e não a dádiva
divina. Podemos pensar na Lei como um mapa para conhecermos a vontade de Deus,
mas não como o caminho no qual realizamos nossa jornada. Jesus é o caminho, a Lei é
apenas um mapa para nos ajudar a encontrar Jesus Cristo, o único Senhor e Salvador
da humanidade e de toda a criação divina.

4. Jesus Cristo liberta a humanidade mediante a sua vida livremente entregue,


abrindo para nós o acesso a uma vida de plena liberdade: “É para sermos
verdadeiramente livres que Cristo nos libertou. Permanecei pois, firmes e não vos
deixeis sujeitar de novo ao jugo da escravidão” (Gálatas 5,1-2). A morte de Jesus Cristo
é a coroação de sua vida e ministério terrenos. Ele morreu a morte do fiel a Deus, do
solidário com impuros e pecadores, do rebelde aos reinos humanos que prometem
salvação e usurpam o lugar de Deus. Na morte, e morte de Cruz, a culpa e a
condenação da humanidade foram também crucificadas, e pagas todas as dívidas que
contra nós pesam. Cruz é plena libertação, pois é a expressão máxima da solidariedade
de jesus com a humanidade pecadora. Nela, “aquele que não conheceu pecado, Deus o
fez pecado” (II Co 5,21) e o fez em nosso benefício!
A natureza humana é de tal modo frágil que, no caminho árido da liberdade (cp. o
período de peregrinação dos hebreus no deserto após o êxodo), as tentações para
voltar ao seguro e confortável caminho da escravidão são poderosamente sedutoras -
seja a escravidão da Lei, seja a escravidão aos deuses que não o são de fato!
Libertados por Cristo, podemos viver em plena liberdade da fé. E a liberdade dos que
crêem é a liberdade para amar, pois a fé “age pelo amor” (Gálatas 5,6). Ainda por causa
da nossa condição carnal, é necessária sempre a exortação: “Vós, irmãos, é para a
liberdade que fostes chamados. Contanto, que esta liberdade não dê nenhuma
oportunidade à carne! Mas pelo amor estejais a serviço uns dos outros. Pois toda a lei
encontra o seu cumprimento nesta única palavra: Amarás a teu próximo como a ti
mesmo.” (Gálatas 5,12-13) Livres da lei e dos ídolos, podemos viver na liberdade do
amor - que é o fruto do Espírito da promessa, e o verdadeiro cumprimento da Lei.

5. Jesus Cristo liberta mediante a sua ressurreição dentre os mortos (Romanos


4,23-25). A ressurreição é o selo divino sobre a vida e morte do Filho, garantindo para a
criação a sua filiação divina e sua realidade salvífica em nosso favor (Romanos 1,1-4).
A ressurreição de Jesus é a ressurreição do encarnado, vivo, e crucificado. Evento
histórico-escatológico, a ressurreição dá sentido definitivo e definidor à história da
criação e das relações de Deus com sua criação. “Da história de Cristo resultam os

seguintes horizontes de alvo e sentido: 1o. alvo: fé justificadora (cf. Romanos 4,25); 2o.

alvo: domínio sobre mortos e vivos (cf. Romanos 14,9); 3o. alvo: superação da morte e

nova criação (cf. I Co 15,25-28); 4o. alvo: Glorificação de Deus por meio de um mundo
redimido (cf. Filipenses 2,9-11). O objetivo imediato é a justificação dos homens, mas o
objetivo superior é a justificação de Deus; o objetivo comum consiste na justificação
recíproca de Deus e dos homens e em sua vida comum em justiça. ... Com o
ressuscitamento do Cristo assassinado por crucificação por Deus começa um processo
universal de teodicéia que pode ser consumado pelo ressuscitamento escatológico de
todos os mortos e pela destruição do poder da morte e, portanto, pela nova criação de
todas as coisas. Então esse processo de teodicéia se transforma em doxologia cósmica
universal.” (MOLTMANN, J. O caminho de Jesus Cristo. Cristologia em dimensões
messiânicas, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 250

Minha intenção, com esta breve reflexão sobre a vida de Jesus Cristo como base de
nossa salvação, é apenas a de destacar a importância e a necessidade de ampliarmos
nossa visão e nossa reflexão a respeito da salvação. Uma doutrina da salvação
baseada apenas na “cruz” de Cristo corre o risco de tornar a fé e a vida cristãs apenas
questões de assentimento doutrinário e da vida privada, da vida do indivíduo com Deus.
A fé cristã e a vida cristãs afetam a totalidade de nossa vida, pessoal, social,
econômica, cultural, política. Ampliando a nossa visão, crescerá o nosso discernimento.
Maior discernimento, maior será a eficácia de nosso testemunho pessoal e ministerial.
Maior será, então, a glorificação de Deus através de nossas vidas!

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