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CAZELLI, Felipe R.
Professor de Sociologia Jurídica e Filosofia do Direito da Faculdade Estácio de Sá de Vitória – ES
Mestrando em Educação pela Universidad del Salvador, Buenos Aires, Argentina
felipecazelli@hotmail.com
RESUMO
O discurso liberal (ou neoliberal, em sua roupagem mais contemporânea), enquanto pleiteia validade
política, atribui as causas da criminalidade apenas a desvios individuais de conduta. Assim, para que se
supere o problema, sob essa ótica, deve-se investir no controle social do indivíduo para que ele não se
desvie do “bom caminho”. Entretanto, pesquisas apontam que a criminalidade parece estar, em grande
parte, relacionada com desigualdades sócio-econômicas. De maneira que o discurso liberal oculta os
fatores que contribuem diretamente para a origem do problema, colaborando, assim, com a sua
reprodução e agravamento.
ABSTRACT
The liberal speech (or neoliberal, in its more contemporary take), while claims political validity, imputes
the causes of criminality only to an individual’s misconduct. Hence, in order to overcome the problem,
under that point of view, one must invest in social control of the individual for him not to miss the “good
way”. However, researches point that criminality seems to be, in great part, related to socioeconomic
inequalities. So that the liberal speech hides the factors that directly contribute to the origin of the
problem, helping, therefore, in its reproduction and escalation.
INTRODUÇÃO
vigente, demandam concordância, guardam em seu cerne a proposta de serem tomados como
base para práticas sociais ou até mesmo para ações por parte do Estado.
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Criminalidade se controla (e não se combate) em três fases: a fase primária,
cuja implementação se dá a médio e longo prazo, consiste no
desenvolvimento de um ambiente social desestimulante do caminho da
ilicitude, com fortalecimento de setores como a educação; a fase secundária é
fulcrada no investimento em mecanismos persecutórios impeditivos da
criminalidade, ou seja, investimento em segurança pública; a fase terciária
concentra-se no controle da reincidência, partindo da premissa de que o
cárcere é um dos mais significativos fatores criminógenos.
Em outras palavras: não se controle a criminalidade sem investir na
ressocialização. Do contrário, é do presídio que continuarão saindo os mais
perigosos delinquentes. (TONETTO, 2012)
No trecho acima, a Procuradora do Estado do Rio Grande do Sul elenca o que ela chama
de fases de combate à criminalidade. E, por mais que ainda se diga em “desenvolvimento de um
ambiente social desestimulante do caminho da ilicitude”, essa medida é associada
imediatamente à educação, o que nos leva a concluir que, em resumo, as fases são três: Educar
o indivíduo – para que todos vivam num ambiente social de indivíduos educados –, vigiar e
punir o indivíduo através do investimento em segurança pública e, por fim, ressocializar o
indivíduo, melhorando o sistema carcerário. Se a única possibilidade de combater o crime é
como exposto, a questão não passa por nenhum rearranjo social, mas a responsabilidade é
exclusivamente individual.
A identificação da existência desse tipo de discurso, por um lado, exige que se encontre
as raízes, ou seja, as ideias fundamentais que servem de base a essa ótica através da qual se
analisam o problema. A correlação imediata é com aquela corrente de pensamento denominada
“liberalismo”, que recebe uma nova roupagem principalmente a partir da década de 70, e passa
a ser chamado de “neoliberalismo”. Através de investigação bibliográfica, proceder-se-á uma
análise dos principais conceitos dessa teoria e suas articulações para a construção do discurso
político.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
1
IPEA, 2015.
e de que maneira as relações dos indivíduos entre si, e dos indivíduos para com o Estado, se
estruturam de maneira a promover a igualdade pela proteção dos direitos naturais
fundamentais.
A partir daí, segue-se uma investigação sobre a interpretação contemporânea do
Liberalismo Político, em sua faceta “neoliberal”, demonstrando sua força especialmente na
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década de 90, um período em que o Brasil está recém-saído de uma ditadura militar e também
há pouco tempo havia eleito seu primeiro presidente pela via democrática do sufrágio direto. O
impacto do pensamento neoliberal na política internacional e, em especial, na brasileira leva à
promoção de discursos sociais de caráter individualista, que podem ser relacionados
diretamente com uma visão sobre a natureza humana, sobre a moral e o comportamento social e
sobre as origens da criminalidade. Em se tratando especificamente do problema da
criminalidade, temos a perspectiva que se abre com relação às razões de sua propagação, e a
responsabilidade do Estado sobre ela.
A última etapa visa à utilização de pesquisas recentes que objetivam demonstrar, através
de estudos estatísticos, de que maneira os indicadores de desigualdade social e econômica estão
intimamente relacionados com as taxas de criminalidade, de maneira que, proporcionalmente,
quanto mais aumenta a desigualdade, maiores são as taxas de criminalidade, especialmente
considerando crimes contra o patrimônio. Além disso, com números relativos às taxas de
crescimento da população carcerária brasileira e também relativos à porcentagem de
reincidentes entre os encarcerados – dados obtidos com as autoridades competentes –
objetiva-se demonstrar a incongruência de qualquer tese que afirme ser a impunidade a “causa”
ou a “origem” da criminalidade.
3. RESULTADOS ALCANÇADOS
década de 90 não apenas como modelo de Estado, mas também dominando os discursos
políticos no seio da sociedade.
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As ideias de John Locke presentes neste artigo têm como referência CAZELLI (2015).
Cabe a cada indivíduo o bom desenvolvimento de sua capacidade da razão para que
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possa, adequadamente, desfrutar daqueles direitos que lhe são naturais: o direito à vida, à
liberdade e à propriedade.
No estado de natureza, segundo Locke, os homens têm direitos que lhes são
atribuídos por sua própria natureza, e não são outorgados por outrem e,
portanto, não podem ser revogados. O direito à vida, à liberdade, à
propriedade e, por consequência, o direito de preservar aquilo que lhes
pertence. A vida e sua conservação, bem como a liberdade de desfrutar dela,
são direitos a cuja percepção chegamos imediatamente pelo puro exercício
racional (ibidem, p. 24).
Tais direitos, portanto, são individuais. Cada sujeito, por pertencer ao gênero humano,
os possui como parte integrante de sua constituição. A faculdade da razão, entretanto, existe
naturalmente no homem como um potencial a ser desenvolvido; os sujeitos não nascem
racionais, mas apenas com a capacidade de desenvolver a racionalidade. Ou, como diria Locke,
o sujeito nasce uma tabula rasa. Para que se torne realmente livre e, assim, possa desfrutar de
sua própria individualidade, é necessário que o homem adquira, através da experiência, os
conhecimentos necessários para o bom desenvolvimento da razão.
Ninguém pode garantir, porém, que, vivendo no estado de natureza, todos os indivíduos
desenvolvam sua racionalidade a contento e, a partir daí, passem a viver numa harmonia que
derivaria do respeito que todos teriam um pelos direitos do outro. Significa dizer que, em sendo
o homem um produto do meio e considerando que ele é bom ou mau segundo seu aprendizado,
que vem com a experiência, não há como se certificar que um indivíduo não tentará lesar o
direito do outro, nem que aquele que sofreu a tentativa de lesão não vá responder
desproporcionalmente. Há que surgir a sociedade civil, a partir de um contrato social – definido
como um acordo tácito, fruto da manifestação da vontade livre dos cidadãos – que vai se
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realizar no momento da instituição de um poder estatal, que tem o dever de se tornar um terceiro
imparcial a garantir a proteção dos direitos naturais individuais.
Essa organização estatal se encontraria submetida a essa função que lhe foi atribuída por
aqueles que contrataram ou pactuaram pela sua existência, a saber: proteger o direito a vida, à
liberdade e à propriedade. Assim, o Estado liberal é, primeiramente, considerado um
“funcionário do povo” e uma de suas principais obrigações se torna a de punir aqueles que
venham a tentar lesar os direitos naturais de seus concidadãos. A punição imposta pelo Estado
teria, dentro desse projeto, um papel educacional de desestimular o desvio de comportamento
nos demais indivíduos, ou seja, a doutrina liberal clássica aponta para o combate à
criminalidade através de ferramentas de controle social.
O Estado liberal é, assim, um modelo teórico que visa limitar o poder do governante: por
um lado, a noção de “Estado de Direito” limitaria sua atuação, ou seja, seria uma barreira com
relação à sua interferência na vida dos particulares; enquanto o “Estado mínimo” seria a ideia
por trás da limitação das funções estatais (MORAES, 1996).
3.2. O Neoliberalismo
Neoliberalismo, como o próprio nome sugere, se trata de um resgate dos ideais liberais
adaptados a uma nova realidade social e econômica: o capitalismo pós-industrial, de mercado.
Sua expressão mais significativa é aquela defendida principalmente por duas Escolas de
Economia: a Austríaca (com Von Mises e Hayek) e a de Chicago (com Stigler e Friedman).
Suas teorias influenciaram a política do governo ditatorial do general Pinochet, no Chile, na
década de 70 e os de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher respectivamente nos EUA e
Inglaterra dos anos 80. No Brasil, o neoliberalismo encontra espaço na década de 90, com a
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Pensamento expresso com muita propriedade pelo Deputado Federal Jair Bolsonaro em entrevista coletiva em
fevereiro de 2014, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N6EzPxhRfCU
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KLEINSCHMITT, S.; LIMA, J.; WADI, Y. (2011).
CONCLUSÕES
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RESENDE, J.; ANDRADE, M. (2011).
capacidades racionais, não fazem parte da mesma categoria de indivíduos que os demais e são,
portanto, excluídos das relações e dos processos sociais.
Ao direcionar sua perspectiva para a individualidade, o que a doutrina em questão faz é
ocultar a relação entre os indicadores sócio-econômicos e a produção da criminalidade; uma
relação que já foi demonstrada. Ocultando-a, o (neo)liberalismo impossibilita qualquer
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perspectiva que a considere, o que contribui diretamente para a manutenção da criminalidade
como fruto da exclusão social e, consequentemente, funciona como um reprodutor, e quem
sabe, intensificador daquele fenômeno que se gostaria de ver extinto.
Eximir o Estado das responsabilidades sobre os indivíduos em situação social mais
vulnerável só favorece aqueles que estão bem inseridos socialmente, o que provoca, como se
pode ver, um tecido social cada vez mais roto e, portanto, insustentável. De que adianta educar
o indivíduo e não lhe oferecer condições dignas de sobrevivência material? Como falar em
ressocialização do indivíduo através da melhoria do sistema carcerário, se ao sair do sistema
esse indivíduo retorna para a mesma realidade material que o levou para a ilicitude
originalmente?
Há que se pensar numa outra forma de se ver o problema, há que se buscar uma outra
teoria que sirva de fundamento para discursos e políticas públicas que não escondam os fatores
sociais envolvidos na produção e reprodução da criminalidade, mas que proponham formas de
lidar com eles, de encará-los de frente. Caso contrário, corre-se o risco não apenas de
manutenção de uma situação insustentável, mas de sua piora gradual.
REFERÊNCIAS
CAZELLI, Felipe R. (2015) John Locke e o problema da tutela dos direitos dos pobres. In:
Revista JurES, v. 7, nº 14. Vitória: Estácio de Sá, junho 2015, pp. 20-37.
KLEINSCHMITT, Sandra C.; LIMA, Jandir F. de; WADI, Yonissa M. (2011) Relação entre o
crescimento da desigualdade social e dos homicídios no Brasil: o que demonstram os
indicadores? In: Interseções, v. 13, nº 1. Rio de Janeiro: UERJ, junho 2011, pp. 65-90.
MORAES, Antonio C. de. (1996) O projeto neoliberal e o mito do estado mínimo. In: Lutas
Sociais, v. 1. São Paulo: PUC-SP, novembro 1996.
NEGRÃO, João J. (1996) O governo FHC e o neoliberalismo. In: Lutas Sociais, v. 1. São 53
Paulo: PUC-SP, novembro 1996.
REINCIDÊNCIA criminal no Brasil: relatório de pesquisa. Brasília: IPEA, 2015. Disponível em:
www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal.
pdf, 02/10/2015.
RESENTE, João P. ANDRADE, Mônica V. (2011) Crime social, castigo social: desigualdade
de renda e taxas de criminalidade nos grandes municípios brasileiros. In: Estudos Econômicos,
v. 41, nº 1. São Paulo: USP, janeiro-março 2011, pp. 173-195.
TONETTO, Fernanda. Criminalidade: uma doença social? In: ASPERGS. Disponível em:
http://www.apergs.org.br/site/apergs_na_midia_detalhe.php?cd_publicacao=395, 02/10/2015.