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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, vol.

38, nº 2, e2314 (2016) Artigos Gerais


www.scielo.br/rbef cbnd
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2016-0017 Licença Creative Commons

Michell, Laplace e as estrelas negras:


uma abordagem para professores do Ensino Médio
Michell, Laplace, and the Dark Stars for high school teachers

R. R. Machado, A. C. Tort∗
Mestrado Profissional em Ensino de Fı́sica, Instituto de Fı́sica, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Recebido em 20 de janeiro de 2016. Revisado em 24 de fevereiro de 2016. Aceito em 29 de fevereiro de 2016

O conceito moderno de buraco negro como uma região do espaço–tempo da qual a luz não pode escapar
tem suas origens no século 18 com John Michell e Pierre Simon Laplace. Neste trabalho apresentamos as
abordagens destes dois cientistas buscando dar ao professor do ensino médio subsı́dios para a compreensão
das idéias precursoras do buraco negro moderno da teoria de Einstein da gravitação.
Palavras-chave: estrelas negras; buracos negros; gravitação; velocidade de escape.

The modern concept of a black hole as a region of spacetime from which light cannot escape owns its
origins to John Michell (1724–1793) and Pierre Simon Laplace (1749–1827). In the present work we review
the approaches of these distinguished scientists in an attempt to provide the high school teacher with tools
to understand those early ideas before the advent of the modern black hole of Einstein’s gravitational
theory.
Keywords: Dark stars; black holes; gravitation, escape velocity.

1. Introdução resultados concretos aplicáveis às observações expe-


rimentais. Ambos também eram adeptos do modelo
O conceito moderno de buraco negro como uma corpuscular da luz. A importância dos trabalhos ci-
região do espaço–tempo da qual a luz não pode entı́ficos de Michell como astronômo e sismólogo com
escapar tem suas origens no século 18 com o reve- contribuições importantes para estas áreas da ciência
rendo inglês John Michell (1724–1793) que propôs a só recentemente começou a ser reconhecida [1, 4].
existência de estrelas invisı́veis para o observador –
estrelas negras– porque a luz não poderia escapar da Em 1796, doze anos após o trabalho de Michell
atração gravitacional gerada por elas. A sugestão de ter sido apresentado por Cavendish perante a Royal
Michell está em um trabalho apresentado perante Society e publicado nas suas atas [3], Pierre Simon,
a Royal Society de Londres por Henry Cavendish Marquês de Laplace ou Pierre Simon Laplace (1749–
(1731–1810) em três sessões distintas: 11 e 18 de 1827) como é mais conhecido, escreve sem demons-
dezembro de 1783 e 15 de janeiro de 1784 [1, 2] e trar [5] :
publicado em 1784 nas atas da Royal Society [3].
Cavendish era considerado o mais importante cien- A atração gravitacional de uma estrela
tista teórico e experimental do Reino Unido em seu com um diâmetro de 250 vezes o diâmetro
tempo e a apresentação e leitura pública dos resulta- do Sol e comparável em densidade com a
dos de Michell atesta a afinidade cientı́ fica entre os [densidade] da Terra seria tão grande que
dois filósofos naturais, ambos newtonianos convic- a luz não poderia escapar da sua superfı́cie.
tos e adeptos da aplicação da teoria à obtenção de Os maiores corpos do Universo poderiam
ser invisı́veis por causa da sua magnitude

Endereço de correspondência: tort@if.ufrj.br. [da velocidade de escape] .

Copyright by Sociedade Brasileira de Fı́sica. Printed in Brazil.


e2314-2 Michell, Laplace e as estrelas negras: uma abordagem para professores do Ensino Médio

Em 1799, atendendo ao pedido do editor de uma


revista geográfica alemã, Laplace publica sua de-
monstração [6].

Aqui descreveremos a parte do trabalho de Michell


de 1784 concernente à possibilidade da existência
de estrelas negras e a versão de Laplace do mesmo
conceito. Para facilitar a compreensão, a linguagem
newtoniana essencialmente geométrica do original1
será traduzida para a linguagem dos textos moder-
nos de cálculo e mecânica clássica como sugerido
em [2]. O objetivo último do presente trabalho é
dar ao professor do Ensino Médio subsı́dios para a
compreensão das idéias precursoras do buraco negro
moderno da gravitação relativı́stica. Para isto, na
seção 2, seguimos a referência [2] e apresentamos
detalhadamente o cálculo de Michell e na seção 3,
a versão de Laplace. Na seção 4, tecemos alguns
comentários finais.

2. A estrela negra de Michell e a veloci- Figura 1: Figura original do trabalho de 1784 de J. Michell.
dade de escape

No diagrama que acompanha o trabalho original de


A velocidade radial em um ponto da reta AC,
Michell – ver Figura 1 – O cı́rculo de raio R = |CD|
digamos d, pode ser calculada com a Proposição 39
representa uma estrela de massa M , a semirreta ver-
dos Principia de Newton [8] pela qual fica demons-
tical AdC representa a distância radial r ao centro
trado que o quadrado da velocidade do corpo em d
da estrela, ponto C, e os segmentos de reta horizon-
é igual ao dobro da área do retângulo rdC, e como
tais representam o módulo da força gravitacional
rdC é a quadratura de BAdr, também é igual ao
F (r) ou da aceleração gravitacional a(r)2 . Por exem-
dobro da área BAdr, isto é:
plo, como o comprimento do segmento de reta dr é
menor do que o comprimento de DR, a intensidade
da força/aceleração gravitacional em r = |Cd| é v 2 = 2 × rdC = 2 × BAdr. (1)
menor do que em r = R = |CD|. Em linguagem
moderna, o diagrama de Michell representa o gráfico A demonstração deste resultado em notação mo-
da força/aceleração gravitacional como função da derna encontra-se no Apêndice. Por outro lado, a
distância radial ao centro da estrela. área do retângulo rdC é igual a
A ideia de Michell é calcular a velocidade radial
terminal de um corpo de massa m que parte com GM GM
rdC = ×r = . (2)
velocidade inicial nula de uma distância radial r tal r2 r
que r  R, quando este atinge a superfı́cie da estrela
Na superfı́cie da estrela, r = R, a área do retângulo
em r = R. Esta velocidade será igual à velocidade
CDR será igual a
de escape no problema do movimento inverso, isto é:
ela será a resposta à pergunta: com que velocidade
deve ser lançado um corpo se quisermos que ele GM
CDR = , (3)
chegue ao infinito com velocidade nula? R
que por sua vez é igual à área sob a curva BADR.
1
“Mesmo o estilo geométrico de raciocı́nio de Michell é pro- Segue então que
fundamente newtoniano” , W. Israel em [1]
2
Newton, logo, Michell, sabia que a massa inercial e a massa 2GM
gravitacional do corpo de prova eram equivalentes. v 2 = 2 × BADR = . (4)
R

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De um ponto de vista moderno, este resultado


segue do teorema trabalho-energia cinética:

mv2 mv02
W = ∆K = − , (5)
2 2
onde Z r
GM m
W =− 02
dr 0 . (6)
∞ r
Como no caso a velocidade inicial é nula, obtemos
para um r arbitrário:

2GM
v2 = . (7)
r
Voltemos à abordagem de Michell e suponhamos
agora que a estrela tenha uma densidade uniforme ρ,
isto é: ρ = 4πM/3R3 . Então, para um r arbitrário,
a velocidade radial se escreve,

R3 Figura 2: Órbita parabólica que roça a superfı́cie do Sol


v 2 = γρ , (8) no ponto de retorno.
r
onde
8π a hipérbole. A órbita circular é um caso particular
γ≡ G. (9)
3 da elipse. Para uma órbita parabólica, o corpúsculo
Na superfı́cie da estrela, a velocidade radial terminal parte do repouso de uma distância inicial r muito
é maior do que o raio do Sol, i.e.: podemos tomar o
limite r → ∞ na equação para a energia. Mas ob-
v 2 = γρ R2 . (10) serve que na órbita parabólica, o momento angular
` não pode ser nulo, logo devemos impor a condição
Para completar o cálculo da velocidade terminal
θ̇ → 0 no limite r → ∞ de tal modo que o produto
é preciso rescrevê-la em termos de quantidades mais
r2 θ̇ seja constante. Como na órbita parabólica, a
convenientes à observação astronômica. Michell sa-
energia mecânica inicial E é nula e como a atração
bia que a velocidade radial terminal de um corpo
gravitacional newtoniana é uma força conservativa,
em queda livre a partir do repouso e de uma altura
a energia mecânica será nula durante todo o mo-
infinita é igual àquela que ele teria em uma órbita
vimento, e mais ainda, como no ponto em que a
parabólica osculante à superfı́cie do Sol no ponto de
parábola tangencia a superfı́cie do Sol, a velocidade
retorno, o ponto no qual a velocidade radial é zero.
radial é nula, podemos escrever
De fato, a energia de um corpúsculo de massa m no
problema de Kepler se escreve [7]: (Rθ̇)2
− GM + = 0. (13)
mṙ2 `2 GM m 2R
E= + 2
− , (11) Mas, Rθ̇ é a velocidade tangencial V do corpo no
2 2mr r
onde supusemos que m  M e ponto de retorno, logo

2GM
` = mr2 θ̇, (12) V2 = , (14)
R
é o momento angular do corpúsculo em relação ao isto é, a mesma que teria em queda livre a partir
centro geométrico do Sol. Aqui θ é o ângulo en- do repouso ao atingir a superfı́cie do Sol! Portanto,
tre o vetor posição do corpúsculo com origem no V = v.
centro de força e o eixo principal de simetria da Michell a seguir relaciona a velocidade radial ter-
órbita – Figura 2. A solução do problema de Ke- minal do corpo em queda livre com a velocidade
pler é dada por três famı́lias de órbitas conhecidas tangencial da Terra em sua órbita ao redor do Sol.
coletivamente como cônicas: a elipse, a parábola e Isto pode ser feito da seguinte forma: considere a

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órbita aproximadamente circular3 de raio D da Terra


em torno do Sol. A força sobre a Terra é fornecida c R0
= = 498, (23)
pela força de atração gravitacional, logo v R
isto é, se uma estrela tiver um raio igual a 498 vezes
GM V⊕2 o raio do Sol, a sua velocidade de escape será igual
= , (15)
D2 D a velocidade da luz! Nas palavras de Michell:
onde V⊕ é a velocidade tangencial da Terra em torno
.. se o semi-diâmetro de uma esfera com a
do Sol. Portanto,
mesma densidade do Sol excedesse o semi-
GM diâmetro do Sol na proporção de 500 para 1,
V⊕2 =. (16)
D um corpo que caı́sse de uma altura infinita
O raio da órbita da Terra pode ser escrito como um em direção a ela [a esfera] teria na sua
múltiplo simples do raio do Sol, isto é: D = λR, superfı́cie uma velocidade maior do que
onde λ = 214, 64, logo, podemos escrever: a velocidade da luz, e consequentemente,
supondo que a luz fosse atraı́da pela mesma
GM 2 × GM v2 força em proporção com sua vis inertiae
V⊕2 = = = . (17)
λR (2λ) × R 2λ [massa], como outros corpos, toda a luz
Segue que: emitida por tal corpo [a esfera] retornaria
a ele em razão da sua própria gravidade [3].
v 2 = 429, 28 V⊕2 , (18) A estrela negra de Michell é a versão newtoniana
ou, extraindo a raiz quadrada de ambos os lados dos buracos negros previstos pela teoria relativı́stica
desta equação: da gravitação de Einstein.

v = 20, 72 V⊕ . (19) 2.1. A massa da estrela negra de Michell


Michell sabia que a velocidade da luz, c, era igual De acordo com a descrição de Michell, uma estrela
a 10 310 vezes a velocidade tangencial da Terra em com um raio aproximadamente igual a 500 vezes
torno do Sol, 4 isto é: o raio do Sol e mesma densidade (ρ = 1, 41 ×
103 kg/m3 ) terá uma massa igual a
c = 10 310 V⊕ . (20)
Mestrela negra = (500)3 M = 1.25 × 108 M , (24)
Segue que
onde M = 1, 99 × 1030 kg é a massa do Sol. Como
c 10 310 comparação, tenhamos em mente que um buraco
= ≈ 498. (21)
v 20, 72 negro estelar tem uma massa entre 5 e 30 massas
Suponha agora que c seja a velocidade terminal de solares. A estrela negra de Michel tem uma massa
um corpúsculo de luz que atinge a superfı́cie de uma da ordem de um buraco negro supermassivo cuja
estrela de raio R 0 que tem a mesma densidade que massa está entre 106 e 109 massas solares.
o Sol. Então, podemos escrever:
3. A estrela negra de Laplace
c2 = γρ R 0 2 . (22)
Vejamos agora como Laplace construiu sua versão
Segue que
newtoniana de uma estrela negra. Eis aqui em
notação moderna, o cálculo de Laplace ao longo
3
A excentricidade da órbita da Terra em torno do Sol é muito das linhas esboç adas em [2].
pequena: ε = 0, 00335, a aproximação de órbita circular funci-
ona muito bem no que diz respeito aos aspectos pedagógicos. Seja m a massa do corpúsculo de luz5 . Por simpli-
4
A velocidade da luz foi medida por James Bradley (1693– cidade, consideremos apenas o seu movimento radial.
1762) em 1728. Bradley usou o método da aberração este-
5
lar (descoberta por ele) e obteve o valor: c = 301 000 km/s. Laplace, assim como Michell, adota o modelo corpuscular
Este valor significa que a velocidade tangencial da Terra é: para a luz. Mais tarde, como consequência dos experimentos
29, 19 km/s. O valor moderno da velocidade tangencial média de Young que favoreceram o modelo ondulatório, abandonaria
(velocidade orbital) é 29, 78 km/s. o modelo corpuscular e o cálculo da velocidade de escape.

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Fazendo uso da lei newtoniana do movimento escre- forte que quando r → ∞ o corpúsculo de luz tenha
vemos: velocidade radial nula, isto é: v 0 = 0. Segue que

dv dr dv dv 2GαM
F =m =m = mv . (25) c2 = . (34)
dt dt dr dr R0
Mas, como o corpúsculo está sujeito à lei de atração Agora vejamos o ponto crucial do argumento de
universal, o lado esquerdo da equação acima se es- Laplace: a determinação de α. Se supusermos que as
creve: estrelas têm densidade uniforme podemos escrever:

GM m M ρ R3
F =− . (26) = , (35)
r2 M0 ρ 0R 0 3
O sinal negativo indica que a força gravitacional onde ρ e ρ 0 são as densidades da primeira e da
atua no sentido oposto ao movimento radial do segunda estrela, respectivamente. Laplace agora faz
corpúsculo de luz. Portanto, podemos escrever uso da suposição apresentada na primeira parte
de [5]: o raio da segunda estrela é 250 vezes maior
GM do que o raio da primeira6 , isto é: R 0 = 250R. Segue
− dr = v dv. (27)
r2 que:
Integrando ambos os lados desta equação:
1 ρ
= , (36)
2GM α (250)3 ρ 0
+ 2A = v 2 , (28)
r ou
onde A é uma constante de integração a ser de-
ρ0
terminada. Suponha agora que c seja o módulo da α = (250)3 . (37)
velocidade da luz na superfı́cie da estrela cujo raio ρ
é R, isto é: Substituindo este resultado na equação para c2 ob-
temos:
2GM
+ 2A = c2 , (29)
R ρ0 c2 R
= . (38)
logo, ρ 2(250)2 M
Observe que a densidade relativa da segunda estrela
2GM
2A = c2 − , (30) depende da massa e do raio da primeira, o que
R
sugere a escolha de uma estrela conhecida para a
e a velocidade radial em função de r se escreve: determinação da densidade da segunda estrela, a
2GM 2GM estrela negra. Laplace escolhe então o Sol como
v 2 = c2 − + . (31) a primeira estrela, isto é: R = R e M = M .
R r
A seguir, Laplace relaciona c com as observações
Considere uma segunda estrela de massa M 0 = αM , relativas ao movimento da Terra em torno do Sol.
onde α é um número real maior do que a unidade. Do diagrama 1 da Figura 3, podemos escrever
Suponhamos que o corpúsculo de luz tenha a mesma
velocidade radial inicial que no caso anterior. Então GM M⊕ V2
= M ⊕ , (39)
é fácil ver que podemos escrever, D2 D
onde D é a distância média entre o Sol e a Terra
2GαM 2GαM e V é a velocidade tangencial desta última. Segue
v 0 2 = c2 − + , (32)
R0 r0 que a massa do Sol pode ser escrita como
onde R 0 é o raio da segunda estrela. Suponhamos
agora que r 0 → ∞, então: V 2D
M = . (40)
G
2GαM Substituindo na expressão para a densidade relativa
v 0 2 = c2 − . (33)
R0 temos finalmente:
Agora façamos a suposição adicional de que para 6
Pelo exposto antes, no contexto, o termo diâmetro deve ser
a segunda estrela, a atração gravitacional seja tão interpretado como o raio

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e2314-6 Michell, Laplace e as estrelas negras: uma abordagem para professores do Ensino Médio

Este valor é 10 vezes menor do que o valor obtido


por Michell: 1, 25 × 108 M e está em desacordo
com o valor citado em [2].
Como curiosidade, podemos obter o valor da velo-
cidade da luz usada por Laplace e compará-la com o
valor moderno. A expressão para c2 pode ser rescrita
na forma:

2 (250)2 GM ρrel ao Sol


c2 = . (46)
R
Dividindo ambos os lados pelo quadrado do valor
aceito para o módulo da velocidade da luz, identifi-
cando o raio de Schwarzschild do Sol, extraindo a
raiz quadrada e inserindo o valor 4 para a densidade
relativa ao Sol da estrela negra, temos:
Figura 3: Diagramas para o cálculo de Laplace. s
c RS
= 500 × . (47)
catual R
Como para o Sol: RS = 2, 95 km, e R = 696 000 km,
ρ0
2 
8 a R
 
≡ ρrel ao Sol = . (41) obtemos:
ρ (1000)2 V D
Desprezando os efeitos gravitacionais que o Sol c = 1, 029 catual . (48)
exerce sobre o corpúsculo luminoso, Laplace faz uso Este é o módulo da velocidade limite. Para um va-
das medidas conhecidas na época da aberração da lor infinitesimalmente inferior a este limite, a luz
luz solar não consegue escapar da atração gravitacional da
c 1 estrela negra. Isto não significa necessariamente que
= . (42) o corpúsculo de luz não possa ser emitido da su-
V tan 20, 2500
perfı́cie da estrela, mas acabará por ser atraı́do e
Por outro lado, do diagrama 2 da Figura 3, e usando voltará. Um observador distante não perceberia a
os resultados observacionais da época: radiação e a estrela para ele seria negra.
R
= tan 16 0 2 00 . (43)
D 4. Comentários finais
Portanto, a densidade da segunda estrela – a estrela
negra – é O cálculo pioneiro de John Michell nos mostra que
para uma estrela com uma densidade igual à densi-
dade do Sol, mas raio 500 vezes maior, a velocidade
8 tan 16 0 2 00
ρrel ao Sol = ≈ 4. (44) de escape é igual à velocidade da luz, logo, é capaz
(1000 tan 20, 2500 )2 de aprisionar a luz. Tal estrela seria invı́sivel aos
Este valor está próximo ao valor da densidade da observadores aqui na Terra o que levou Michell a
Terra, isto é ρrel Terra/ Sol = 5 513/1 420 ≈ 4. Portanto, ponderar sobre a existência de muitas delas:
a estrela negra de Laplace deve ter um diâmetro
500 vezes maior do que o diâmetro do Sol e uma Se na Natureza existem realmente cor-
densidade igual a densidade média da Terra. Em pos cuja densidade não é menor do que
termos de massas solares, a massa dessa estrela seria: a [densidade] do Sol, e cujos diâmetros
[raios] são 500 vezes maiores do que o
diâmetro [raio] do Sol, como sua luz não
M 3 3 poderia chegar até nós; ou se existem ou-
Mestrela negra = 4 × 3 × (250) R =
R tros corpos de menor tamanho que são
6, 25 × 107 M . (45) naturalmente não–luminosos, sobre suas

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existências nessas circuntâncias não po- Monde, ela já não aparece. O motivo parece ter sido
derı́amos ter informações provindas da luz a comprovação experimental de que a natureza da
[emitida]; ainda assim, se outros corpos luz é ondulatória e, naturalmente, nessa época um
luminosos revolvessem em torno deles. P comportamento dual da luz estava fora de cogitação.
oderı́amos talvez a partir do movimento re-
volvente desses corpos inferir a existência Apêndice: a Proposição 39
dos corpos centrais com um certo grau
de probabilidade, já que isto poderia dar Na Proposição 39, Newton considera o movimento
uma pista para algumas das irregularidades retilı́neo sob a ação de uma força centrı́peta (central)
dos corpos revolventes, as quais não pode- arbitrária. Eis a proposição 39 na tradução dos
riam ser explicadas facilmente com outras autores:
hipóteses... [3].
Supondo [a existência de] uma força
É notável a confiança de Michell nos métodos da centrı́peta de qualquer tipo e assegurando
mecânica newtoniana e sua antecipação de um dos as [existências das] quadraturas [integrais]
métodos modernos de detectar buracos negros. Uma das figuras curvilı́neas, pede-se encontrar
descrição pedagógica sobre a detecção do buraco a velocidade de um corpo, ascendente ou
negro no centro da Via Láctea que faz uso da ter- descendente sobre a linha reta nos vários
ceira lei de Kepler não–relativı́stica, ver Figura 4, pontos pelos quais [o corpo] passa; assim
uma consequência das leis da mecânica newtoniana, como o [instante de] tempo nos quais che-
é apresentada em [9]. Longe do buraco negro, a ter- gará em qualquer ponto [sobre a linha reta];
ceira de Kepler pode dar-nos um resultado aceitável e vice versa.
para a sua massa que, no caso, foi estimada em
4 × 106 M , isto é: 4 billhões de massas solares. Aqui apresentamos uma versão simplificada em
Como vimos também, o grande fı́sico–matemático notação moderna ao longo das linhas sugeridas por
francês Pierre Simon Laplace apresentou também a Chandrasekhar em [10] da parte da demonstração
sua versão newtoniana de uma estrela negra, [5, 6], desta proposição que é relevante para o cálculo de
mas na terceira edição da Exposition du Sistème du Michell.

Considere a Figura 5 que mostra uma versão


simplificada do diagrama que acompanha a demons-
tração de Newton, pois nele vemos apenas os elemen-
tos geométricos que estão diretamente relacionados
com o resultado que Michell utilizou, isto é: a pri-
meira parte da Proposição 39. A semirreta AEC
representa a coordenada radial r que cresce no sen-
tido de C para A. A semirreta AB representa a

Figura 4: O buraco negro no centro da nossa galáxia. A


estrela amarela no centro da imagem marca a posição do
buraco negro. Órbitas de várias estrelas são mostradas. Figura 5: Versão simplificada do diagrama que acompanha
(Imagem Telescópio Keck/UCLA Galactic Center Group.) a Proposição 29.

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intensidade da aceleração centrı́peta como função [6] P.S. Laplace, Allegemeine Geographische Ephemeri-
da coordenada radial, a(r). Portanto, a curva BF G den 4, 1 (1799).
é o gráfico de a(r). Segue que [7] R.D. Gregory, Classical Mechanics (CUP, Cam-
bridge, 2006).
[8] I. Newton, The Principia, translated by A. Motte
DF GE = a(E) ∆E; (Prometheus Books, New York, 1995).
mas [9] M.J. Ruiz, Phys. Teach. 46, 10 (2008).
[10] S. Chandrasekhar: Newton’s Principia for the Com-
∆E = v(E) ∆t;
mon Reader (Clarendon Press, Oxford, 1995).
logo,

DF GE = a(E) v(E)∆t;
De acordo com a Segunda Lei de Newton:

1
a(E)∆t = ∆[v(E)] = ∆[v 2 (E)].
2
logo,

1
DF GE = v(E)∆v(E) = ∆[v 2 (E)].
2
Portanto, a área ABGE pode ser calculada inte-
grando o resultado acima, isto é:
Z
ABGE = DF GE.

Segue então que

1 2
ABGE = [v (E)],
2
ou ainda,

v 2 (E) = 2 × ABGE,
que é o resultado que se queria demonstrar.

Agradecimentos

Os autores agradecem aos colegas Filadelfo C. San-


tos e Mariana Francisquini pela leitura atenta do
manuscrito original.

Referências
[1] W. Israel, in: Three Hundred Years of Gravitation,
edited by S.W. Hawking and W. Israel (CUP, Cam-
bridge, 1987).
[2] C. Montgomery, W. Orchiston and I. Whittingham,
J. of Astron. Hist. and Her. 12, 90 (2009).
[3] J. Michell, Phil. Transc. Roy. Soc. of London 74, 35
(1784).
[4] G. Gibbons, New Scientist, 28, 1101 (1979).
[5] P.S. Laplace, Exposition du Sistéme du Monde (Du-
prat, Paris, 1796), partes I e II.

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