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A noção de boa-fé provém do mundo romano, consagrado na Lei das XII Tábuas a norma:
‘patronus si clienti fraudem fecerit, sacer esto’ (se um patrono tiver cometido alguma fraude contra
o seu cliente, que seja condenado).
Aponta-se, porém, que a ideia expressa na palavra fides – registrada nas XII Tábuas como
fraus (fraudem), seu valor antinômico – estaria ligada à própria fundação de Roma.
Fides – constitui o núcleo normativo da instituição de clientela – que será
entendida, amplamente:
Como confiança (fidem dare ou fidem accipere);
Como colaboração e auxílio mútuo, na relação de iguais (fidis e creditum)
Como amparo e proteção, na relação de desiguais (fidem implorare ou in
fidem alicuius venire).
Como lealdade e respeito à palavra dada (fidem promittere; fidem
accipere; fidem recipere).
Como fundamento da justiça e virtude cívica (fundamentum autem est
iustitia fides, id est dictorum conventorumque constantia et veritas).
Sua vigência se manifestou, portanto, de maneira fluida e elástica em todos os níveis jurídicos,
políticos e sociológicos da cultura romano, constituindo o seu valor ético fundante.
Esse valor será concretizado pela interpretação prudencial e recebido pelas fórmulas
processuais, traduzindo-se, concomitantemente:
- Como conceito valorativo (fidei bonae nomen);
- Como cláusula formular de tutela da atividade negocial (oportere ex fide
bona e iudicia bonae fidei).
- Como princípio de integração dos deveres contratuais (bonae fidei
interpretativo e bonum et aequum).
Na possível unicidade de sentido da fides, Mario Talamanca destaque que, no efetivo
operar dos prudentes e bona fides, alcançará a homogeneidade própria ao estilo dos juristas
romanos que, na sua atividade profissional se colocavam sempre – solidariamente ancorados
na lógica do concreto – no plano realístico em seu tempo, tendo presente os valores
correntes na sociedade e, mais precisamente, naquela classe dominante da qual são a
expressão e no âmbito da qual exerciam sua função.
Judith recorta destes sentidos três em especial:
Relações de Clientela: porque lhe marca a mais remota origem, conotando o
significado de proteção aos interesses de quem depende da ação do titular da
fides.
Negócios Contratuais: porque incide no Direito Obrigacional, de modo
especial nos contratos bilaterais.
Proteção possessória: porque atua nos Direito Reais, assinalando-se, outrossim,
o seu valor como procedimento hermenêutico, sob a denominação de bonae fidei
interpretativo.
As Relações de Clientela implicavam a existência de deveres de lealdade e obediência
por parte do cliens em troca da proteção que lhe era dada pelo cidadão. Derivação primitiva
que se baseava na distinção entre os patrícios, os clientes e a plebe. Ao lado de cada família
patrícia encontrava-se um número organizado de pessoas, sob proteção do paterfamilias, que
era seu ‘patrão’, sendo provável que os clientes formassem o gens do patrão – os nomem
gentilum, Esta clientela cria entre eles direitos e deveres: o patrão deve a seus clientes
socorro e assistência; em contrapartida, o cliente deve ao patrão respeito e obediência.
Traduzindo: tratava-se de uma relação desigual – o cidadão livre (patrício) e o
cliente -, essas relações são dominadas pela fides, compreendida tanto como poder
do patrão, como dever do cliente, como sob forma de promessas de proteção
(ato pelo qual uma pessoa era recebida na fides doutra).
A fides proteção verifica-se nas relações entre desiguais. Mas operava-se
igualmente entre iguais (societas inter ipsos), de modo que a fides como dever de
auxílio operava, em ambas, como lealdade mútua, consistindo em cumprir com o
máximo de forças os deveres de que se estava incumbido.
Nos Negócios Contratuais, a fides promessa atua como valor fundamental enquanto
‘garantia da palavra dada’, espraiando-se em vários institutos promissórios.
Como ‘lealdade à palavra dada’, que gera um estado de confiança em relação à conduta
do sujeito (titular da fides) – constitui a virtude cívica por excelência, qualidade geradora
do respeito social e da boa reputação.
O que se visa tutelar é o ‘estado de confiança’ de quem justamente confiou,
sancionando-se a conduta contrária à confiança do emissor da declaração.
No domínio das obrigações esse era o espaço da deusa Fides, sendo-lhe
consagrada a manus dextra, a palma da mão direita, o que está na origem do gesto
de dar as mãos, sacramentando o pactuado.
A dextrarum iunctio entre duas pessoas não era mera saudação, antes
servindo para demonstrar que, por seu intermédio, as pessoas se ligavam pelo
vinculum Fidei, vinculo sacro, divinizando a Fides de seu substrato.
Essa ligação se faria sentir no contratos, pois a fides (virtude romana por excelência), não
poderia deixar de se refletir na seara contratual interna e externa dos romanos no que tange
aos contratos internacional com os ius gentium; à sua atuação estrutural e taxionômica em
negócios tipicamente romanos (compra e venda, mandatum), conduzindo à criação de um
instrumento processual especial – os bonae fidei iudicia; a função do Fides adjetivada
como bona – como cânone hermenêutico e integrativo dos contratos.
4. Surgimento em ‘tratados internacionais’ – Roma e Cartago – do qual cada uma das
partes prometia, sobre a própria fé – publica fides – sobre a fé que liga a coletividade ao
respeito das convenções livremente pactuadas.
Ou seja, a assistência ao cidadão da outra cidade para a proteção dos interesses
nascidos dos negócios privados, entrando na esfera do Estado.
Assim, os primeiros adquiriam a coercibilidade própria da garantia estatal em razão de
um fator externo aos contratantes, qual seja a autoridade do Estado que firmava o tratado,
enquanto os segundos adquiriam esta qualidade já por si, isto é, em sede anterior àquela
configurada pela autoridade do Estado, tendo extrema importância aos quatro contratos
denominadas consensuais – a compra e venda; a locação; a sociedade e o mandato; e,
também aos três contratos reais não solenes – o mútuo, o depósito e o comodato.
5. O fides surge assim em duas esferas:
Fides nas relações intrassubjetivas – como núcleo das relações internas de uma
coletividade – entre elas a relação de clientela. O fides tem a função aqui de
autolimitação (fides promessa) e intento protetivo – relações de apoio e
cooperação.
Fides nas relações intersubjetivas – numa esfera que, por se tratar de relações
entre sujeitos pertencentes a coletividades entre si distintas. Aqui o fides surge com
a função de garantia pela palavra dada.
Observa-se aí a transmutação do campo semântico, de um prisma primeiramente
conotado à esfera das relações de clientela às relações negociais privadas – qual seja, a
do fides como garantia da adstrição à confiança legitimamente criada no alter por
palavras, ações e comportamentos.
Para entender o significado adquirido à ideia de garantia na esfera das relações
negociais; importa referir que os valores atribuídos à expressão estavam situados,
primitivamente, no campo das relações que o Estado não podia proteger
processualmente, porque despida da veste formal que ensejava a possibilidade da
actio, formalidade à qual era emprestado o caráter de juridicidade.
Este campo vem demarcado pelos contratos consensuais, os quais, em exceção à
regra geral, não fundamentavam a sua vinculabilidade obrigacional na
observância de uma fórmula.
Assim, essa variedade de negócios institucionalmente não-formais e bilaterais, nascia
do ambiente institucionalmente não-formal e obediente à noção de reciprocidade, própria
ao ambiente do intercâmbio internacional.
É nessa ambiência que vem elaborado o ius gentium – como o ‘conjunto de regras, usos
e costumes próprios de todos os povos civis’ – isento do formalismo típico do ius civile,
dando à fides uma fisionomia própria, muito em prol da expansão comercial de roma.
A difusão de negócios despidos de uma força vinculativa formal no ordenamento
romano e a própria inexistência da formalidade conduz a que a fides, então, se
apresente como uma fides não-formal, pouco a pouco despida de elementos
religiosos e voltada à subsistência do negócio e do comportamento das partes,
avaliados segundo a prática dos negócios comerciais.
Tornada como um modo de tornar possível uma relação de confiança comercial.
Seu lema poderia ser: ‘age quod agis’ – informa o teu comportamento àquele
desenho de ação a qual tu e tua contraparte consentiram.
A essa fides será agregado o qualificativo bona – porque se torna uma fides que constringe
a quem prometeu manter sua promessa não segundo a letra, mas segundo o espírito;
não tendo em vista o texto da fórmula promissória, mas ao próprio organismo
contratual posto em si mesmo: não segundo um valor normativo externo ao negócio
concretamente posto em si, mas fazendo do próprio ‘concreto intento negocial’ a
medida da responsabilidade daqueles que a fizeram nascer.
Este deslocamento do fides-garantia para o fides-lealdade é indicativo do papel criador
da fides, valor nuclear da sociedade romana cuja extensão semântica e territorial operará por
via do ius gentium.
Assim, a fides adjetivada de bona se opera num núcleo semântico, qual seja, a
lealdade à palavra dada por parte de quem é titular da fides (como de um crédito).
De fato, a palavra crédito tem origem da aproximação de fides e res, transformando-se o
primeiro significado de fides como lealdade a palavra dada para a ideia de ‘ter confiança em
alguém’.
- Sentido ativo de ‘dar confiança a alguém’.
- Sentido passivo de ‘confiança obtida’, de modo que quem conseguia a concessão
da fides, era porque era merecedor de confiança derivada do creditum gozado em
relação ao concedente – o creditum, causa e consequência da fides.
Assim, a presença do crédito dependerá fundamentalmente da credibilidade que possa ter
uma pessoa por ser alguém que cumpre a palavra dada, a oralidade – exige-se o
documento escrito somente daquelas pessoas destituídas de creditum.
Em Cícero, a ligação entre fides e a presença de um patrimônio apto a garantir o crédito
(fides e res) começa a se aproximar semanticamente.
- Nesse grande espectro de funções e significados que a boa-fé, basilar do ethos romano,
será chamada a atuar para a determinação, explicitamente consignada no Digesto, do
reconhecimento de tudo quanto actum sit entre as partes.
Fixava-se, assim, o nexo entre bona fides e id quod inter contraentes actum est (aquilo
que foi realizado entre os contraentes).
A boa-fé orientava a interpretação no sentido de determinar o conteúdo da obligatio – na
máxima aderência ao acordo concluído, privilegiando a substância da conventio (actum)
sobre o teor literal da declaração (dictum).
Daí que a bona fides intervinha para lograr a máxima incidência do quanto fora
realmente perseguido pelas partes (o id quod actum) relativamente à valoração
e à execução do negócio que haviam pactuado, de modo tal que também em relação
ao teor formal de tal negócio resultasse prevalecente a pesquisa a valorização da
subsistência do acordo realizado.
Em outras palavras, indagando acerca do que as partes realmente perseguiam (id quod
actum), a boa-fé atuava como critério de congruência para aferir-se a medida do
adimplemento, servindo como instrumento do que hoje chamaríamos de concreção,
sempre tendo em conta a natureza do negócio.
Atuava a boa-fé como instrumento de pesquisa objetivante, acerca das
implicações naturais da estrutura do negócio, resultando proposta relativamente à
pesquisa individualizante das particulares configurações do negócio realizado entre
as partes.
A boa-fé operava, igualmente, como parâmetro para integração do acordo. Diante de
lacunas e ambiguidades não resolúveis com base no próprio contrato, encaminha o intérprete
a uma solução marcada pela exequibilidade, pois, a ausência específica de uma previsão das
partes não comportava, necessariamente, a exclusão de um dever processualmente
coercível.
2. Consensus e sollemia – a boa-fé provoca uma subversão do adágio Ulpiano do ex nudo actio
non nascitur – na qual os Glosadores e Comentadores, retomando a formula, elaboram a teoria
das vestes do pacto, distinguindo-as em categorias: contratos verbis (vestimenta é a palavra),
contrato litteris (a forma escrita) e os contratos consensuais (compra e venda, cujo forma é o
consentimento).
A igreja atribuía valor moral à promessa – ou ao consentimento – porque a mentira é pecado.
Daí o princípio estatuído, posteriormente, passando à Compilatio, para fundar o direito do
marido de quebrar o juramento da fidelidade conjugal se a mulher o traísse, bem como o direito
de resolução, em matéria contratual, em razão do inadimplemento do cocontratante.
Agir de boa-fé, no âmbito obrigacional, significa, pois, respeitar fielmente ao pactuado, sob
pena de pecar. A solenidade da forma não será mais que um signo que facilitador da prova,
estando o promitente obrigado pela sua promessa.
Com efeito, a igreja modela o espírito do direito laico, que incide sobre a estrutura de uma série
de institutos, relações e fenômenos jurídicos, constrangendo-os a apresentar-se em acordo a
determinados esquemas supremos e imutáveis da sociedade eclesial, com um sacrifício da
lógica formal – um conjunto de particularidades que incidem e transformam na anima dos
institutos jurídicos romanos.
- Assim, enquanto o Direito Romano, considerando sua dimensão técnico jurídica da boa-fé,
promoveu a sua bipartição (obrigações – garantia - e posse) – o Direito Canônico operou sua
unificação conceitual sob o signo da referência ao pecado, equivalendo-se a dizer da ausência
de pecado, numa dimensão ética-axiológica.
A boa-fé vêm revestida, assim, pela honestas chistianas, dissolvendo-se em vínculo de
osmose com a aequitae canônica – equidade fortemente subjetiva.
São Tomás Aquino: ‘iustitia pensatis omnibus circumstantiis particularibus dulcore
misericórdia temperata’ – ‘a justiça ajustada/medida em todas as suas
particularidades pela doçura da misericórdia temperada’.
No que tange a usucapião, a boa-fé torna-se estado de ciência indicividual – de uma consciência
intima e subjetiva da ausência de pecado, isto é, de se estar agindo corretamente (não de lesar
uma regra jurídica ou direito de outrem).