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Cárcere, maternidade e infante: Uma análise dos desdobramentos da

política legislativa brasileira diante das Regras de Bangkok

Prison, maternity and infant: An analysis of the developments of the


Brazilian legislative law on the Bangkok rules

Letícia Viana Costa Assis1


Marlon Ricardo Lima Chaves2

Resumo: Considerando o aumento progressivo da população carcerária


feminina no Brasil e a falta de estrutura dos estabelecimentos prisionais para
atenderem suas peculiaridades, nos deparamos com a violação em massa de
direitos fundamentais, o que levou a declaração pelo Supremo Tribunal Federal
do Estado de Coisas Inconstitucional. Diante da gravidade do contexto fático e
com a finalidade de garantir os direitos da mulher-mãe presa e de sua prole,
houve a necessidade de formular e fortalecer as políticas públicas com o objetivo
de alcançar as necessidades estritas a estes sujeitos de direitos, que por hora
se encontravam longe do olhar do Estado, considerando se tratar de direitos
fundamentais trazidos pela Constituição Federal.

Palavras-chave: Maternidade, cárcere, Regras de Bangkok, prisão domiciliar.

Abstract: Considering the progressive increase of the female prison population


in Brazil and the lack of structure of prisons to meet their peculiarities, we are
faced with the massive violation of fundamental rights, which led to the
declaration by the Federal Supreme Court of the State of Things Unconstitutional.
In view of the gravity of the factual context and with the purpose of guaranteeing
the rights of the arrested mother woman and her offspring, there was a need to

1 Graduanda na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail:


let.vcosta@gmail.com
2 Professor orientador Marlon Ricardo Lima Chaves. Especialista em Direito Penal e Direito

Processual Penal pela Faculdade de Mato Grosso do Sul. Mestrando em Direito da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul. Professor de Direito Penal na Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul e Universidade Católica Dom Bosco. Palestrante e Consultor em Direito Penal. E-
mail: contato@marlonricardo.com.br
formulate and strengthen public policies in order to meet the strict needs of these
rights subjects, which hour were far from the State's view, considering that they
were fundamental rights brought by the Federal Constitution.

Keywords: Maternity, jail, Bangkok rules, house arrest.

1 INTRODUÇÃO
Ao analisar o sistema carcerário brasileiro é notório o reflexo das
desigualdades de gênero. O modelo penitenciário assim como as políticas
penais são estruturadas por homens e para homens, não atendendo as
peculiaridades de gênero das mulheres encarceradas.
É preciso analisar o contexto social em que a mulher submetida ao
cárcere se insere, levando em consideração a maternidade, suas relações
familiares, razões que a levaram a integrar os dados estatísticos da criminalidade
e suas necessidades e peculiaridades biológicas.
Para tanto, as Regras de Bangkok, foi reconhecida como o principal
marco normativo internacional a tratar das peculiaridades de gênero do
encarceramento de mulheres, dando ênfase e prioridade as medidas não
privativas de liberdade, a fim de obstar a inserção de mulheres no sistema
penitenciário.
As Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e
medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras (Regras de
Bangkok) foram aprovadas na Assembleia Geral das Nações, em 2010,
abordando a discussão sobre as peculiaridades inerentes ao gênero feminino,
tendo como proposta principal estabelecer a prioridade de medidas alternativas
à prisão de mulheres. Ademais, as regras trazem atenção especial as mulheres
em situação gestante e maternal, prevendo a alternativa de regime domiciliar a
substituir o regime fechado para cumprimento de pena, possibilidade imposta
através do Marco Legal da Primeira Infância, no caso de mulheres gestantes e
mães de crianças de até 12 anos.
Embora o Brasil tenha participado ativamente da elaboração das Regras
de Bangkok, sua publicação oficial em português só aconteceu em 2016, com o
apoio do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) e da Pastoral Carcerária,
os quais já eram reconhecidos historicamente pelo pleito de desencarceramento
de mulheres.
A tradução das Regras foi o marco inicial para implementação de
alternativas ao encarceramento no Brasil, porém, não é garantia de aplicação
em casos concretos. Logo, para que haja sua aplicação pelos poderes Judiciário
e Executivo é necessário que haja divulgação de qualidade com efetiva
participação estatal e também da sociedade civil.

2 REGRAS DE BANGKOK
As Regras de Bangkok foram aprovadas em 2010, pela Assembleia Geral
da ONU com o objetivo de estender o alcance das Regras de Tóquio3 (Regras
Mínimas para o Tratamento do Preso e as Regras Mínimas para a Elaboração
de Medidas não Privativas de Liberdade), sendo estas criadas em 1955 e
aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1957, não considerando a
realidade da mulher encarcerada e suas necessidades inerentes ao gênero4.
Entre as diversas considerações trazidas, as Regras de Bangkok
apresentam diretrizes mínimas para o tratamento da mulher presa e medidas
não privativas de liberdade para as mulheres em situações estritas com a
maternidade, considerando o aumento alarmante do número de mulheres
encarcerada nos últimos anos e a falta de estrutura do sistema carcerário para
atender as demandas específicas às mulheres5.
Neste sentido, é evidente a influência patriarcal imposta ao sistema
penitenciário, o qual foi criado por homens e para homens, entretanto, as Regras
de Bangkok estabelece o dever de atender as necessidades das mulheres como
meio de garantir a igualdade material consagrada pela Constituição Federal de
1988, já em seu primeiro dispositivo:

3 Em face da preocupação das Nações Unidas com a humanização da justiça criminal e o


fortalecimento das ações capazes de garantir a proteção dos direitos humanos, as Regras de
Tóquio, foi emitida com a proposta de consolidar uma série de princípios comprometidos com a
promoção e estímulo à aplicação, sempre que possível, de medidas não privativas de liberdade,
sendo um marco entre uma cultura extremamente punitivista e a construção de um modelo mais
humanizado de distribuição da justiça, na medida em que propõem a valorização de formas e
resultados menos danosos do que aqueles decorrentes da utilização da prisão.
4 CERNEKA, Heidi Ann. Regras de Bangkok: está na hora de fazê-las valer. Boletim IBCCRIM,

2018, p. 18.
5 BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional

de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres - junho de 2018, p. 14.


Regra 1
A fim de que o princípio de não discriminação, incorporado na
regra 6 das Regras mínimas para o tratamento de reclusos, seja
posto em prática, deve-se ter em consideração as distintas
necessidades das mulheres presas na aplicação das Regras. A
atenção a essas necessidades para atingir igualdade material
entre os gêneros não deverá ser considerada discriminatória.6

A segunda importante questão abordada pelas regras, diz respeito ao


poder familiar exercido pela mãe presa na fase de ingresso ao sistema
carcerário, um direito subjetivo, o qual é conceituado pelo Estatuto da Criança e
do Adolescente como um binômio direito-dever na forma que dispõe o Código
Civil, onde fica implícito o dever de zelar pelos filhos, sendo responsável quanto
ao sustento, saúde, guarda e educação dos filhos pelo titular do poder familiar.
Diante da destituição do poder familiar, é previsto que a mãe tenha o direito de
tomar providências acerca de seus filhos:

Regra 2
2. Antes ou no momento de seu ingresso, deverá ser permitido
às mulheres responsáveis pela guarda de crianças tomar as
providências necessárias em relação a elas, incluindo a
possibilidade de suspender por um período razoável a medida
privativa de liberdade, levando em consideração o melhor
interesse das crianças.7

Mais adiante, traz na regra 42 orientações acerca do regime prisional


flexível, respaldando o estado da mulher gestante, lactante e mãe de crianças.
Além de impor que o sistema carcerário se estruture de maneira a poder receber
mulheres mães e seus filhos de forma digna.
Regra 42
1. Mulheres presas deverão ter acesso a um programa amplo e
equilibrado de atividades que considerem as necessidades
específicas de gênero.
2. O regime prisional deverá ser flexível o suficiente para atender
às necessidades de mulheres gestantes, lactantes e mulheres
com filhos/as. Nas prisões serão oferecidos serviços e

6 BRASIL. Câmara dos Deputados. Centro de Estudos e Debates Estratégicos. Primeira Infância:
Avanços do Marco Legal da Primeira Infância. Caderno de Trabalhos e Debates nº 11. Brasília:
SEGRAF, 2016, p.19
7 BRASIL. Câmara dos Deputados. Centro de Estudos e Debates Estratégicos. Primeira Infância:

Avanços do Marco Legal da Primeira Infância. Caderno de Trabalhos e Debates nº 11. Brasília:
SEGRAF, 2016, p.19
instalações para o cuidado das crianças a fim de possibilitar às
presas a participação em atividades prisionais.
3. Haverá especial empenho na elaboração de programas
apropriados para mulheres gestantes, lactantes e com filhos/as
na prisão.
4. Haverá especial empenho na prestação de serviços
adequados para presas que necessitem de apoio psicológico,
especialmente aquelas que tenham sido submetidas a abusos
físicos, mentais ou sexuais.8

Quando a garantia de uma instalação digna, trata-se de uma questão que


abrange não só a um ambiente saudável mas também o acesso a saúde,
segurança, orientações nutricionais, oferta regular de exercícios físicos,
estimulação da amamentação e oportunidade de convivência com seus filhos,
garantindo às crianças a supervisão de seu desenvolvimento por especialistas e
também a oferta de educação compatível com o modelo oferecido às crianças
fora do ambiente prisional9. Essas são disposições estabelecidas ao longo do
documento, de forma a orientar as políticas prisionais.
Dentre as regras, destaca-se a Seção III, a qual propõe a aplicação de
penas não privativas de liberdade e medidas alternativas, defendendo requisito
o conflito com a lei e o melhor interesse da criança, não importando o momento
da prisão, sendo compatível nos estágios de pré-julgamento, sentença e após a
sentença do processo criminal10.
Outrossim, em sua regra 64, ressalva a imposição da pena privativa de
liberdade em casos específicos, não afastando as medidas que garantam os
direitos dos infantes:

Regra 64
Penas não privativas de liberdade para as mulheres gestantes e
mulheres com filhos/as dependentes serão preferidas sempre
que for possível e apropriado, sendo a pena de prisão
considerada penas quando o crime for grave ou violento ou a
mulher representar ameaça contínua, sempre velando pelo
melhor interesse do/a filho/a ou filhos/as e assegurando as
diligências adequadas para seu cuidado.11

8 Ibdem, p.31
9 BRASIL. Câmara dos Deputados. Centro de Estudos e Debates Estratégicos. Primeira
Infância: Avanços do Marco Legal da Primeira Infância. Caderno de Trabalhos e Debates nº 11.
Brasília: SEGRAF, 2016, p. 32-33.
10 Ibdem, p. 19
11 Ibdem, p. 35
A regra citada estabelece que nos casos de condenação de mulheres
gestantes ou com filhos sob sua responsabilidade e cuidado, deve ser
considerado o princípio do melhor interesse do menor, o que leva a preferir nos
referidos casos a concessão de medidas não privativas de liberdade, para que
seja garantido ao menor o vínculo familiar de mãe e filho.
Diante do exposto, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro em
muito se assemelha as diretrizes e princípios das Regras de Bangkok, trazendo
como destaque o Código Penal, Código de Processo Penal, leis especiais e
decisões dos tribunais superiores, a serem analisados no presente trabalho.

3 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA: GARANTIAS E DIREITOS DAS


MÃES E DOS INFANTES

3.1 Princípios Constitucionais

A Constituição Federal de 1988, é tida como a consolidação dos princípios


de Direitos Humanos em diversas áreas. Ao que concerne aos direitos das
crianças e dos adolescentes, esta os garantiu serem sujeitos de direitos, que não
apenas tem a necessidade de vigilância do Estado, mas merecem atenção e
políticas públicas especiais, retirando do conceito de “menor” o status de
diminuição e menos importância que predominava nas narrativas até então.
Neste sentido, a Constituição Federal traz em seu texto o Título VIII,
capítulo VII, onde trata especificamente da ordem social no que diz respeito à
família, criança, adolescente, jovem e idoso, disciplina contida nos artigos 226 a
230.
A partir de uma nova interpretação inspirada na Declaração Universal dos
Direitos da Criança de 1959, a Constituição trouxe em seu artigo 227 que “É
dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”,
dando às crianças e adolescentes tratamento distinto, de maneira a suscitar
novas políticas públicas e legislações específicas que reverencie a igualdade
material trazida pela Constituição Federal, a fim de estabelecer o estado de bem-
estar social à estes sujeitos.
A partir da disposição constitucional supramencionada, se estabeleceu o
princípio da prioridade absoluta, a qual fornece as crianças e adolescentes a
garantia de prioridade para receber atendimento de serviços públicos; prioridade
quanto a criação de políticas públicas e destinação receitas públicas para
medidas de proteção à infância e à adolescência.12
Diante desta premissa, a prioridade constitucional traduz que, na
existência concomitante de direitos, há necessidade de organizá-los conforme
uma prioridade preestabelecida, não sendo factível que todos ocupem um
mesmo loco. Dentro desta perspectiva, a prioridade é determinada conforme a
necessidade dos titulares dos respectivos direitos fundamentais, neste caso, as
crianças e adolescentes, que como seres humanos em desenvolvimento,
merecem respaldo da prioridade que por sua vez é absoluta por ser compreender
ser um direito legítimo, pleno e incondicional.13 Este conceito, por sua vez, é
objeto do artigo 4° do Estatuto da Criança e do Adolescente:

Art. 4º É dever da família, da comunidade, da sociedade em


geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a
efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.
Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende:
a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias;
b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de
relevância pública;
c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais
públicas;
d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas
relacionadas com a proteção à infância e à juventude.14

Neste sentido, destaca-se também o inciso VII do parágrafo único do


artigo 100 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que foi introduzido pela Lei

12 VIEIRA, Cláudia Maria Carvalho do Amaral. CRIANÇAS ENCARCERADAS: A PROTEÇÃO


INTEGRAL DA CRIANÇA NA EXECUÇÃO PENAL FEMININA DA PENA PRIVATIVA DE
LIBERDADE, 2013, p. 171.
13Ibdem, p. 172.
14 _____. Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF:

Senado Federal, 1988.


12.010/09, alicerçado pelos princípios da prioridade e da proteção integral, onde
se exige que as autoridades ajam de maneira precoce diante do conhecimento
de situação de perigo, não esperando o status de trânsito em julgado de decisão
para efetivar atuação, de maneira a priorizar a segurança da criança e do
adolescente.
Outrossim, destaca-se como grande pilar da discussão abordada no
presente trabalho, o inciso L, do artigo 5º da Constituição Federal, trazendo
consigo princípios importantes, além da garantia de direitos da mãe submetida
ao cárcere e ao seus filhos: “às presidiárias serão asseguradas condições para
que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.
O dispositivo traz referência ao aleitamento materno, o qual é abrangido
pelas três gerações de direitos fundamentais, tutelando a vida, os direitos sociais
da saúde, da alimentação e da proteção à maternidade e à infância15, enquadrando dois
sujeitos de direitos, sendo estes, a mãe e seu filho, e por outro lado ocorre a vinculação
do Estado como responsável a garantir o direito positivado no ordenamento jurídico,
neste viés:

[...] a mulher reclusa tem o direito de amamentar o filho, e


a Administração Pública deverá adotar todas as medidas
necessárias para concretizar este objetivo, ainda que não
disponha de estrutura física de um berçário. Se, por
precariedade do estabelecimento, este direito mostrar-se
prejudicado, caberá ao juiz da execução determinar as
medidas a serem adotadas para que não seja prejudicado
o aleitamento de forma a comprometer o desenvolvimento
da criança.16

3.2 Lei nº 13.257/16: Marco Legal da Primeira infância

Responsável por relevantes conquistas quanto à proteção das crianças,


o Marco Legal da Primeira Infância, sancionado em 08 de março de 2016 através
da Lei nº 13.257/2016 é resultado de um movimento extremamente atenuante

15
CRISTINA TEIXEIRA, Maria ; FIGUEIREDO DE OLIVEIRA, Emilene. O direito fundamental
das presidiárias e seus filhos ao aleitamento materno. Revista do Curso de Direito da Faculdade
de Humanidades e Direito, São Paulo, v. 11 n.11 2014. p. 14.
16 BRITO (2011, p. 212) apud CRISTINA TEIXEIRA, Maria ; FIGUEIREDO DE OLIVEIRA,

Emilene. O direito fundamental das presidiárias e seus filhos ao aleitamento materno. Revista do
Curso de Direito da Faculdade de Humanidades e Direito, São Paulo, v. 11 n.11 2014. p. 14.
em prol da primeira infância, iniciado nos primórdios dos anos 2000 no Brasil 17,
promovendo por meio de políticas estratégicas o atendimento adequando às
crianças, considerando-as como sujeito de direitos fundamentais garantidos a
toda pessoa humana, contudo, levando em consideração as peculiaridades
quanto às formas de expressão, linguagem, compreensão da realidade que o
cerca, desenvolvimento corporal e biológico, entre outros.18

Neste sentido, a Lei nº 13.257/2016 tem por objetivo principal a


consolidação das normas que versem sobre os direitos da criança e do
adolescente, tendo como pressupostos o princípio do melhor interesse do menor
e o princípio da prioridade absoluta, legislando sobre a execução de políticas
públicas destinadas às crianças na fase da primeira infância e estabelecendo
instrumentos que possam garantir o direito à saúde, alimentação, educação
infantil, convivência familiar e comunitária, assistência social à família da criança,
cultura e proteção contra toda forma de violência.19

A consolidação dá-se através de princípios e diretrizes para a criação e


execução de políticas públicas com foco aos direitos especiais da criança na
primeira infância e também na ação de enfatizar normas já existentes no
ordenamento jurídico acerca dos direitos das crianças.20

Entretanto, ao considerar a realidade do cárcere, nos deparamos com um


conflito entre o direito de punir e a proteção integral da criança, considerando
entre os entraves a estrutura deficiente do sistema prisional, a cultura do
encarceramento considerada por alguns doutrinadores e a desídia quanto às
mulheres presas.

No que se refere ao objeto de análise do presente trabalho, o Marco Legal


da Primeira infância trouxe a reflexão acerca do quadro jurídico que engloba as
crianças que possuem mães submetidas ao sistema carcerário, estabelecendo
a potencialização da garantia dos direitos fundamentais nestes casos,

17 EGAS, Heloiza. O Marco Legal da Primeira Infância na perspectiva dos Direitos Humanos.
Parte II – Políticas Nacionais e Primeira Infância. p. 257
18 Ibdem, p. 260.
19 BARBOSA, Gabriela Urbano. Das novas hipóteses de prisão domiciliar com o advento da Lei

nº 13.257 de 2016, Brasília, 2017. p. 25


20 Ibdem, p. 26.
principalmente ao que concerne à convivência e contato com a mãe, sendo este
de caráter fundamental21, considerando que o vínculo mãe-filho é de supra
importância ao desenvolvimento da criança, sendo a ruptura deste um fator que
compromete a vida adulta, por interromper e impossibilitar um desenvolvimento
sadio. Quanto a este aspecto, Silva22 cita os estudos de Bowlby23, os quais,
relata que uma criança quando privada de cuidados maternos, tende a sofrer um
retardo no seu desenvolvimento, sendo visível por vezes sintomas de doença
física e mental, havendo casos em que os danos se manifestam de forma grave
e permanente.

Para tanto, diante dos princípios da prioridade absoluta e da proteção


integral do infante; da constatação das dificuldades da permanência das crianças
com suas mães no cárcere devido a estrutura deficitária; o abandono de
mulheres-mães por parte da família e companheiros e a dificuldade do contato
físico entre mães e filhos, a ONU, sensível a estas questões elaborou as Regras
de Bangkok apontando alternativas para mães presas, propondo medidas não
privativas de liberdade às mulheres infratoras.24 Em consonância ao tratado,
nossos legisladores a partir da Lei 13.257/2016 realizaram importantes
alterações em alguns ordenamentos, entre eles destaca-se quanto ao estudo do
presente trabalho o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de
Processo Penal25, a serem abordados posteriormente.

3.3 Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), foi criado com a


finalidade de dar ênfase a condição peculiar da criança e do adolescente como
pessoa em desenvolvimento, estabelecendo uma condição especial que impõe
prioridade na garantia de direitos e proteção integral.

Ao que tange a problemática do presente trabalho, a Lei nº 12.962/14


trouxe nova redação ao ECA (Lei nº 8.069/1990) no que diz respeito à

21 SILVA, Bruno César da. A prisão domiciliar como a melhor forma de garantir os direitos dos
filhos de mães presas no período da primeira infância. p. 279
22 Ibdem., p. 279.
23 BOWLBY, J. Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes; 1981. p.225.
24 SILVA, op. cit., p.279.
25 BARBOSA, Gabriela Urbano. Das novas hipóteses de prisão domiciliar com o advento da Lei

nº 13.257 de 2016, Brasília, 2017. p. 27.


convivência da criança e do adolescente com os pais privados de liberdade,
estabelecendo a garantia desta convivência e ainda protegendo o titular do poder
familiar da ameaça de destituição deste direito, conforme leitura do artigo 23, §
2°: “a condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder
familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de
reclusão, contra o próprio filho ou filha.”

Quanto ao dispositivo supramencionado, pelo fundamento da proteção da


criança, houve alteração posterior do dispositivo pela Lei 13.715/2018, a qual,
traz ao parágrafo nova literatura, aumentando o rol taxativo de exceção:

§ 2º A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a


destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação
por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem
igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha
ou outro descendente.26
Ainda com o intuito de fortalecer a redação do Estatuto da Criança e do
Adolescente, mesmo sendo uma lei que se restringe à primeira infância, a lei
13.257/16 trouxe nova redação ao ECA ao adicionar o parágrafo único ao seu
artigo 3º, no sentido de estender a proteção trazida pelo estatuto a todos os
sujeitos de até 18 (dezoito) anos incompletos, de modo a não importar a
condição social e familiar:

Parágrafo único. Os direitos enunciados nesta Lei aplicam-se a


todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de
nascimento, situação familiar, idade, sexo, raça, etnia ou cor,
religião ou crença, deficiência, condição pessoal de
desenvolvimento e aprendizagem, condição econômica,
ambiente social, região e local de moradia ou outra condição que
diferencie as pessoas, as famílias ou a comunidade em que
vivem.27
Outra mudança, é a inserção de políticas de saúde direcionadas as
mulheres gestantes ou mães e seus filhos, contendo orientações cerca da saúde
nutricional, aleitamento infantil, crescimento e desenvolvimento. A nova redação
dada pelo artigo 19 da Lei da Primeira Infância se apresenta no artigo 5° da Lei
nº 8.069/1990, assegurando “a todas as mulheres o acesso aos programas e às
políticas de saúde da mulher e de planejamento reprodutivo e, às gestantes,

26 _______. Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990: Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do


Adolescente e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 1990.
27 Ibdem.
nutrição adequada, atenção humanizada à gravidez, ao parto e ao puerpério e
atendimento pré-natal, perinatal e pós-natal integral no âmbito do Sistema Único
de Saúde.”28

Prevê ainda, a estrito modo, que o Estado deve fazer cumprir seu papel
em estabelecer essas garantias às mulheres submetidas ao cárcere, sem que
haja discriminação pelo estado de privação de liberdade:

§ 10º Incumbe ao poder público garantir, à gestante e à mulher


com filho na primeira infância que se encontrem sob custódia em
unidade de privação de liberdade, ambiência que atenda às
normas sanitárias e assistenciais do Sistema Único de Saúde
para o acolhimento do filho, em articulação com o sistema de
ensino competente, visando ao desenvolvimento integral da
criança.29

Constata-se no parágrafo citado a busca pela igualdade material trazida


pela Constituição Federal em seu texto legal, de forma a ficar claro que embora
a Lei da Primeira Infância tenha trazido benesses no sentido da proteção da mãe
e da criança submetida a realidade do cárcere, a busca pela proteção integral e
o melhor interesse do menor são preceitos herdados da Magna Carta, com o
objetivo de ampliar o alcance dessas garantias e direitos. Deste modo a Lei nº
13.257/2016 se impõe como um instrumento para efetivação dos princípios de
proteção estabelecidos pela Constituição Federal.

3.4 Código de Processo Penal

Reconhecidos os riscos apresentados pela estrutura carcerária ao


desenvolvimento infantil e o necessário papel da maternidade para garantia do
desenvolvimento saudável da criança, o Estado então possui o dever de garantir
a proteção integral às crianças e adolescentes que vivem a realidade de ter suas
mães submetidas à pena de restrição de liberdade, considerando para tanto que
seja estabelecida alternativas a este regime de cumprimento de pena, a fim de
promover o convívio entre mães e filhos.

28
Lei 13.257 de 8 de março de 2016: Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira
infância. Brasília: Senado Federal, 2016.
29
Ibdem.
Não aleatoriamente, o Marco Legal da Primeira Infância trouxe
modificações ao Código de Processo Penal, a fim de garantir um ambiente e
condições adequadas ao convívio familiar e social da criança, sem afetar o
poder-dever30 punitivo do Estado, trazendo alternativas às penas restritivas de
liberdade, condizentes com as orientações trazidas pelas Regras de Bangkok.

A prisão domiciliar já possuía previsão nas normas de processuais penais,


vindo a substituir a prisão preventiva, quando imprescindível, no caso de
gravidez, ou quando esta apresentasse alto risco à presa. No entanto, a Lei nº
13.257/2016 ampliou o rol de aplicação do instituto de prisão domiciliar, sendo
sujeitos deste direito toda mulher grávida e mulheres e homens com filhos
menores de 12 anos ou deficientes, desde que sendo responsáveis por estes:

Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela


domiciliar quando o agente for:
I – maior de 80 (oitenta) anos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de
2011).
II – extremamente debilitado por motivo de doença grave;
(Incluído pela Lei nº 12.403,
de 2011).
III – imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de
6 (seis) anos de idade
ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV – gestante;
V – mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade
incompletos;
VI – homem, caso seja o único responsável pelos cuidados
do filho de até 12 (doze)
anos de idade incompletos.31 (Grifo nosso)

Não menos importante e seguindo o preceito do melhor interesse do


menos, o artigo 6º e 304º, ambos do Código de Processo Penal, traz
respectivamente um rol de providencias a serem tomadas pelo delegado de
polícia diante do conhecimento do ato de infração e determina a constar no auto

30 Nas palavras de Ishida: “O jus puniendi é o direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada
no preceito secundário da norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão
descrita no preceito primário, causando um dano ou lesão jurídica. O jus puniendi pertence ao
Estado, como uma das expressões da soberania.”
31 _______. Código de Processo Penal. Decreto Lei nº 3.689 de 3 de outubro de 1941.
de inquérito policial as informações acerca da maternidade da mulher presa em
flagrante.32

Contudo, mesmo que louvável o avanço da norma processual penal neste


sentido, o dispositivo não foi abrangente a ponto de alcançar o direito das mães
em cumprimento de pena e ainda a possível substituição do regime prisional.33
Neste sentido, entende-se que ainda há a necessidade de uma
interpretação mais ampla, de forma a efetivar o ideal proposto pelas Regras de
Bangkok como representado na Lei da Primeira Infância, onde se direciona a
interpretação para que não apenas se aplique a prisão domiciliar aos casos de
prisão preventiva, mas que também alcance as prisões definitivas em quaisquer
dos seus tipos de regime, tendo respaldo do princípio da proteção integral
(trazido como direito fundamental no art. 227 da Constituição Federal) e também
da legislação internacional (Regra 64 das Regras de Bangkok).

4 CONCLUSÃO
Ao analisar a legislação brasileira em face da Doutrina da Proteção
Integral e do Princípio do melhor interesso da criança, percebe-se que antes
mesmo da participação ativa do Brasil como membro da ONU na criação das
Regras de Bangkok, estes princípios já integravam o ordenamento jurídico
brasileiro. Sendo inclusive direitos fundamentais trazidos pela Magna Carta de
1988.

Entretanto, apesar de conceber os princípios de proteção e garantias as


mães e seus filhos, a legislação brasileira, de forma omissiva, passou a permitir
a violação de direitos fundamentais por não prever de forma expressa políticas
públicas que garantissem às mães presas e seus filhos os seus direitos
fundamentais de viver de forma digna, com desenvolvimento sadio e tendo
convivência familiar e social.

Desta forma, a Lei da Primeira Infância, espelhada nas Regras de


Bangkok, reconhece a deficiência no poder-dever de punir do Estado e da sua
estrutura prisional, relembrando e exigindo seu dever de proteção. Neste
sentido, traz a ampliação das garantias trazidas no ordenamento brasileiro,

32
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SILVA, Bruno César da. A prisão domiciliar como a melhor forma de garantir os direitos dos filhos de
mães presas no período da primeira infância, p. 284.
alcançando os sujeitos de direitos que viviam as sombras, longe do olhar do
Estado.

A alteração do art. 318 do Código de Processo Penal, implementada pela


Lei da Primeira Infância, nos mostra um grande avanço social do Estado,
entretanto, de acordo com a interpretação da Constituição Federal e dos
Tratados internacionais, conclui-se que o dispositivo limita a aplicação do regime
domiciliar, o qual deveria ser disposto a alcançar além das prisões preventivas,
as prisões definitivas, independente de regime de pena, podendo assim cumprir
de forma efetiva a Doutrina da Proteção Integral da Criança, garantindo um
desenvolvimento saudável da criança, fora da estrutura carcerária, sem que haja
a perda da convivência familiar com a mãe, além de garantir o direito desta de
exercer o poder familiar.
Referências
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