Você está na página 1de 11
‘Trabalho desde 1955 na Clinica de La Borde; fui con- vidado a colaborar nessa experiéncia por meu amigo Jean Outy que é seu fundador ¢ 0 principal animador. O castelo de La Borde esté situado a 15km ao sul de Blois na comuna de Cour-Cheverny. Durante esses primeiros anos, foi real- mente apaixonante participar da instalagao das instituigoes ¢ dos equipamentos do que deveria se tornar a primeira ex periéncia de “Psicoterapia institucional” no ambito de um estabelecimento privado. Nossos meios materiais eram ainda mais fracos do que atualmente, porém maior era nossa li- berdade de agio. Nao existia, naquela época, hospital psi- quiétrico no departamento® de Loir et Cher, tendo sido 0 de Blois fechado durante a guerra. Assim as autoridades viam com muito bons olhos 2 implantacio dessa clinica “niio como as outras”, que supria quase por si s6 as neces- sidades do departamento. Foi entio que aprendi a conhecer a psicose € 0 impac- to que poderia ter sobre ela o trabalho institucional. Esses dois aspectos esto profundamente ligados, pois a psicose, no contexto dos sistemas carcerérios tradicionais, tem seus tcagos essencialmente marcados ou desfigurados. B somen- te com a condigio de que seja desenvolvida em torno dela ‘uma vida coletiva no seio de insticuigdes apropriadas que ela pode mostrar seu verdadeiro rosto, que nao é 0 da estranhe- za e da violéncia, como tao freqilentemente ainda se acre- dita, mas o de uma relagio diferente com o mundo. ‘Nos anos cingiienta, a psiquiatria francesa — deixan- do de lado algumas experiéncias-piloto como a de Saint Alban, em Lozére, ou em Fleury les Aubrais, no Loiret, ti- nha a sordidez que se encontra ainda, por exemplo, na ilha de Leros na Grécia, ou no hospital de Dafne, préximo a Ate~ nas, Os psicéticos, objetos de um sistema de tratamento qu * Divieto administatva do terticério francs (N. das T.) Priticas Analticas e Priticas Sociais 183 se animal, assumem necessariamente uma postura bestial, andando em circulos 0 dia inteiro, batendo a cabega contra as paredes, gritando, brigando, aviltando-se na sujeira e nos excrementos. Esses doentes, cuja apreensio e relacao com © outro esto perturbadas, perdem pouco a pouco, em um tal contexto, suas caracteristicas humanas, tornando-se sur- dos ecegos a qualquer comunicagao social, Seus guardiges, que nao possuiam nessa época nenhuma formacdo, eram obrigados a se proteger sob um tipo de couraca de desuma- nidade, se quisessem eles mesmos escapar do desespero e da depressao, Passei entio a conviver com Jean Outy desde 0 inicio dos anos cingjiienta. Ele havia aprendido o oficio de psiquia- tra com Frangois Tosquelles, em Saint Alban, onde se pro- duzira, durante a guerra, uma verdadeira revolucao inter- na através da Iuta pela sobrevivéncia coletiva, a abertura para o exterior, a introdugdo de métodos de grupo, de ate- ligs, de psicoterapias... Também eu, antes de encontrar Jean Oury, acreditava que a loucura encamnava um tipo de aves- so do mundo, estranho, inquictante e fascinante. No estilo de vida comunitaria que era entio 0 de La Borde naqueles anos, 08 doentes me apareceram sob um Angulo compleca mente diferente: familiares, amigaveis, humanos, dispostos 4 participar da vida coletiva em todas as ocasides onde isso era possivel. Uma verdadeira emulacao existia no seio das teunides cotidianas do pessoal (As seis horas da tarde) para levar ao conhecimento de todos que havia sido feito e dito 20 longo do dia. Tal doente cataténico acabava de falar pela primeira vez. Um outro fora, ele mesmo, trabalhar na cozi- nha, Uma maniaco-depressiva havia causado algumas per- turbagdes durante as compras em Blois, Jean Oury pedira que me reunisse & sua equipe — e, com isso, que interrompesse meus estudos de filosofia — ois precisava, pensava ele, de minha ajuda para deseavol- ms ‘Caosmose vet 0 Comité intra-hospitalar da Clinica, em particular 0 Clube dos pensionistas. Minha suposta comperéncia nesse dominio vin dofto de que, desde os devessis anos, eu mio cesar de “itr” em organzagies ais como “os Al bergues da Juventude”etoda ume gama de movimearos de extrema-esquerda. E verdade que eu sabia animar ane rew- ni, estrtrar um debate, soliitar que as pessons silencio- sas tomassem a palavra, fazer surgir decisGes préticas, re- tomar as tarefas anteriormente decididas... Em alguns me ses, contribuf assim para a instalagio de miltiplas instncias Coletivas: assembléis gevas, secretariado, comiss6es pa- scdriaspensionistar- pessoal, subcomissfo de animasio para o dia, escrito decoordenasio dos encargs individuals « “tateliée” de todas os tipos: jornal, desenho, costura, gali- Be ee ie uma tal cnpliitade de eserura- 125, nfo era sufcente mobilizat os doenes era necesscio também poder contar com o maximo de membros do pes- soal Ibo nao tania nenhuma dificuldade com a equipe animadores mais antigos, que haviam sido cooptados, como na base de um projeto comum ¢ de um certo “atvismo” anterior. Mas nfo acontecia 0 mesmo com os novos membros do pessoal, que vinham das proximida- des, qoehaviam abandonado um emprego ow um meio ag cola, para se engajt na clinica como corinhiros, jardinet 10s, faxineiras, recceadores. Como iniciar esses recém-che gados em nossos métodos psiquidtricos, como evitar que néo jasse uma cisio entre as tarefas supostamente nobres mmanutencio? (Esse limos, dependende do Angulo em que se colocavam, consderavam entretanto que soments 0 ti talho material ea efeivo, 0 pass qu os “monterey jam tagarelar em reunides initeis, “a ay de seu desenvolvimento, o processo insti- eu mesmo 0 fora, 185 Privicas Anaiticas ¢ Peitcas Sociais tucional exigia que fosse operada uma mini-revoluca mManutencao se integrasse no trabalho de atendimento, = em contraparid a enfermagem aetatse tala Sosinis talscomo a arumacio, a coznha lou, a recreagio ete. Persdoralmente, 0 segundo aspecto dessa mini-revolucdo ‘aca meno pro lemas do que o primeiro, Os “técnicos” scram sem mit seat colaborar por “revezamen- eacontos ede dilogo com os penonists, Em conrenae tida, foi muito mais dificil obter das pessoas que avian ei contratadas como lavaderas,fxinecas, ou come contador, ue colaborassem nos euiados médica ena ativdades co- letivas. Uns tinham medo de aplicar injegdes, outros nai podiam suportaro trabalho noturno, muitos nfo sebiam se Sepa ainaruma eno ou um eo Fenetanto, gm alguns meses pager instincional da ic se trans icalmente. ‘Uma antiga lavadeira havia se reve- lado muito habil para animar o atelié de impressio e 0 aoe de redacio do jornal, outra destacava-se nas vtivide. les esportivas, um antigo metaliirgico mostrava grande ha- bilidade como animador de pantomimas. es sree ts Pessoal se complexificava 4 medida ae ae liferenciavam. Doravante nao padiamos payee ‘ar com um simples planejamento de empre- 190 € dos dias de folga. Uma “grade” muito ela- borada, quer dizer, um quadro com dupla entrada, para tempo e para as qualifcases das tareas se dinputha pany ied pags enenAT ani daquelas que haviam sido coloca- revezamento” ¢ também para tornar compativeis as atividades de tratamento, as de animagao e as relativas a Vida cotidiana. E, para gerir uma tal “grade”, tormou-se ms. cessério eriar um grupo de monitores capazes de ter uma visio de conjunto acerca das necessidades da instituigao e, 186 de cera forma, para suprir uma fungao de chefe de pessoal que jamais existiu em La Borde. ‘Uma descrigdo tao condensada poderia fazer acreditar em um desenvolvimento linear, a0 passo que na pratica as dificuldades mais imprevistas nao cessaram de surgir devi- doa tesisténcias, inabilidades, obstaculos materiais de todo tipo. Cada problema devia ser incessantemente retomado, rediscutido, sem jamais perder de vista a orientagio essen- cial que consistia em caminher no sentido de uma desse~ sgregacdo das relacdes atendente-atendido assim como das relagdes internas ao pessoal. Essa atividade incessante de {questionamento, aos olhos de um organizador-conselho, pa- receria indtil, desorganizadora ¢, entretanto, € somente atra- vvés dela que podem ser instauradas tomadas de responsa- bilidade individuais e coletivas, nico remédio para a roti- na bueocratica ¢ para a passividade geradas pelos sistemas de hiecarquia tradicionais. ‘Uma palavra que estava ento na moda era “serialida- de", que definia, segundo Jean-Paul Sartre, o cardter epe- titivo e vazio de um estilo de existéncia concernente a um funcionamento de grupo “pratico-inerte”. O que visivamos, através de nossos miltiplos sistemas de atividade e sobse~ tudo de tomada de responsabilidade em relagao a si mesmo ¢ aos outros, era nos libertamos da serialidade ¢ fazer com que os individuos e os grupos se reapropriassem do sentido ide sua existéncia em uma perspectiva ética ¢ no mais tec- nocrética. Tratava-se de conduzir simultaneamente modos de atividades que favorecessem uma tomada de responsa- bilidade coletiva ¢ fundada entretanto em uma re-singula- rizagio da relagao com o trabalho e, mais geralmente, da existéncia pessoal. A méquina institucional que instaldva~ ‘mos no se contentava em operar urna simples remodelagem das subjetividades existentes, mas se propunha, de fato, a produzir um novo tipo de subjetividade. Os monitores for~ Peiticas Analiticas e Priteas Sociais 167

Você também pode gostar