METAFÍSICA
(LIVRO I e LIVRO II)
Tradução direta do grego por Vincenzo Coeso
e notas de Joaquim de Carvalho
ÉTICA A NICÔMACO
Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim
da versão inglesa de W . D. Ross
POÉTICA
Tradução, comentários e índices analítico e onomástico de
Eudoro de Souza
1984
EDITOR: VICTOR CIVITA
Títulos originais:
T à (iíTà Tà $ixnKà (Metafísica)
Ilept IIotT]TiKT)s (Poética)
H diK à NiKop-axeía (Ética a Nicômaco)
do Egito, se organizaram pela primeira bida como tendo por objeto as causas
vez as artes matemáticas, porque aí se primeiras e os princípios; de maneira
consentiu que a casta sacerdotal vives que, como acima se notou, o empírico
se no ócio. (12) Já assinalamos na parece ser mais sabio que o ente que
Ética 9 a diferença que existe entre a unicamente possui uma sensação qual
arte, a ciência e as outras disciplinas quer, o homem de arte 1 0 mais do que
do mesmo gênero. O motivo que nos os empíricos, o mestre-de-obras mais
leva agora a discorrer é este: que a do que o operário, e as ciências teoré-
chamada filosofia é por todos conce- ticas mais que as práticas. Que a filo
sofia seja a ciência de certas causas e
9 N a Ética a Nicômaco, VI, 3-7, onde distingue e
caracteriza cinco “hábitos” pelos quais se pode de certos princípios é evidente.
aprender a verdade: entendimento, ciência, sabedo
ria (filosofia), prudência e arte. ' 0 Fonseca traduz: artjfex, isto é, perito.
C a p í t u l o I I 11
Ora, visto andarmos à procura desta lhemos por ela própria, e tendo em
ciência, devemos examinar de que cau vista o saber, é mais filosofia do que a
sas e de que princípios a filosofia é a que escolhemos em virtude dos resulta
ciência. Se considerarmos as opiniões dos; e uma [ciência] mais elevada é
que existem acerca do filósofo, talvez o mais filosofia do que uma subordi
problema se nos manifeste com maior nada, pois não convém que o filósofo
receba leis, mas que as dê, e que não
clareza. (2) Nós admitimos, antes de
obedeça ele a outro, mas a ele quem é
mais, que o filósofo conhece, na medi
menos sábio. (4) Tais e tantas são,
da do possível, todas as coisas, embora
pois, as opiniões que temos sobre a
não possua a ciência de cada uma filosofia e os filósofos. E quanto a
delas por si. Em seguida, quem consiga estes, o conhecimento de todas as coi
conhecer as coisas difíceis e que o sas encontra-se necessariarfiente na
homem não pode facilmente atingir, quele que, em maior grau, possui a
esse também consideramos filósofo ciência universal, porque ele conhece,
(porque o conhecimento sensível é de certa maneira, todos os [indivi
comum a todos, e por isso fácil e não- duais] sujeitos12. No entanto, é sobre-
científico). Além disto, quem conhece
as causas com mais exatidão, e é mais 12 Tradução literal, que o comum dos tradutores
explana, considerando por “ sujeitos” os indivíduos
capaz de as ensinar, é considerado em ou casos particulares abrangidos no conhecimento
qualquer espécie de ciência como mais do universal. Por outras palavras: dada a concep
filósofo. (3) E, das ciências, a que esco ção hierárquica do saber (3), a ciência mais geral
tem maior extensão, isto é, abrange maior número
de indivíduos, objetos ou casos singulares; pelo que,
11 Estabelecida no capítulo anterior a existência da quem o possui, conhece, de certa maneira, os indiví
filosofia (ou sabedoria), Aristóteles propõe-se neste duos, objetos ou casos abrangidos no conhecimento
capítulo indagar o que caracteriza. Em resumo é: do respectivo conceito.
ciência das causas primeiras; teórica, por excelên Fonseca adverte que por sujeitos (in nomine
cia; eminentemente livre; divina; a mais digna de rerum subiectarum) se deve entender não só sujeitos
apreço, gerando a sua aquisição um estado de espí de predicados universais, mas também efeitos de
rito contrário ao do pasmo da ignorância. causas universais.
14 ARISTÓTELES
C a p i t u l o III21
É pois manifesto que a ciência a causas; tal exame será portanto útil ao
adquirir é a das causas primeiras (pois nosso estudo, porque ou descobri
dizemos que conhecemos cada coisa remos uma outra espécie de causas, ou
somente quando julgamos conhecer a daremos mais crédito as que acabamos
sua primeira causa )2 2; ora, causa diz- de enumerar. A maior parte dos pri
se em quatro sentidos: no primeiro, meiros filósofos considerou como prin
entendemos por causa a substância e a cípios de todas as coisas unicamente
qüididade 23 (o “porquê” reconduz-se os que são da natureza da matéria. E
pois à noção última, e o primeiro “por aquilo de que todos os seres são consti
quê” é causa e princípio); a segunda tuídos, e de que primeiro se geram, e
[causa] é a matéria e o sujeito; a ter em que por fim se dissolvem, enquanto
ceira é a de onde [vem] o início do a substância subsiste, mudando-se uni
movimento; a quarta [causa], que se camente as suas determinações, tal é,
opõe à precedente, é o “fim para que” e para eles, o elemento e o princípit) dos
o bem (porque este é, com efeito, o fim seres. (3) Por isso, opinam que nada se
de toda a geração e movimento). Já gera e nada se destrói, como se tal
estudamos suficientemente estes prin natureza subsistisse indefinidamente,
cípios na Física2 4; todavia queremos da mesma maneira que não afirmamos
aqui associar-nos aos que, antes de que Sócrates é gerado, em sentido
nós, se aplicaram ao estudo dos seres e absoluto, quando ele se tom a belo ou
filosofaram sobre a verdade. (2 ) É, músico, nem que ele morre quando
com efeito, evidente que eles também perde estas qualidades, porque o sujei
falam em certos princípios e em certas to, o próprio Sócrates, permanece; e
assim quanto às outras coisas, porque
21 Este capítulo tem por objeto a indicação dos deve haver uma natureza qualquer, ou
quatro sentidos em que Aristóteles toma a palavra
causa — material, eficiente, formal e final — e a mais do que uma 2 5, donde as outras
referência histórica das opiniões dos pré-socráticos derivem, mas conservando-se ela inal
acerca da causa material. terada. (4) Quanto ao número e à natu
22 São várias as dificuldades destes parênteses e é
copiosa a bibliografia que lhes respeitai Primeira reza destes princípios 2 6, nem todos
causa deve entender-se em sentido relativo, isto é, pensam da mesma maneira. Tales 2 7, o
da causa que importa ao conhecimento próprio da fundador de tal filosofia28, diz ser a
coisa, e não no sentido absoluto, porque se assim
não fosse o conhecimento de cada coisa exigiria o água (é por isto que ele declarou tam
conhecimento do objeto formal da metafísica. Vid. bém que a terra assenta sobre a água),
Colle I, pp. 34-41.
2 3 Literalmente: qual era o ser. Eqüivale ao sentido levado sem dúvida a esta concepção
próprio de cada coisa enquanto pensada em si por observar que o alimento de todas
mesma, e que é designado pela definição essencial.
Fonseca traduz por: Quidditatem rei. 2 5 Isto é, uma natureza, que seja una, ou múltipla.
2 4 Especialmente, no liv. II, caps. 3 e 7. Hamelin 2 6 Isto é, princípios materiais fundamentais.
considera este parágrafo como resumo do que Aris 27 É o fundador da Escola Jônica; natural de Mile-
tóteles desenvolvera na Fís., II, 3. (Vid. Aristote, to, viveu entre 650-550 a.C.
Physique II. Trad. et commentaire ( —Paris, 2.a ed. 28 Isto é, da filosofia que confere significação
1931) p. 101. ontológica substantiva a elementos naturais.
M ETAFÍSICA — I 17
causa da mudança. Ora, procurar esta tros elementos análogos, como [se
outra coisa é procurar o outro princí possuíssem] uma [natureza] contrária.
pio donde, como dissemos, [provém] a (12) Depois destes, e de tais princípios,
origem do movimento. (10) Aqueles visto serem insuficientes para gerar a
que, primeiramente, se empenharam natureza das coisas, os filósofos, de
neste gênero de investigação e afirma novo constrangidos, como dissemos,
ram que o sujeito é único 41 não se pela própria verdade, foram à procura
deram conta desta dificuldade, mas do princípio que se lhe seguia 4 7. Com
alguns, pelo menos entre os que pro efeito, o existir ou o produzir-se da
clamavam esta unidade, quase que ordem e do belo nas coisas não é
vencidos pela própria questão, afir provavelmente originado nem pelo
mam que o uno é imóvel e que toda a fogo, nem pela terra, nem por outro
natureza o é 42, não só quanto à gera elemento deste gênero, e não é mesmo
ção e à corrupção (crença esta primi verossímil que eles o tivessem pensado.
tiva e que todos adotaram), mas tam Por outro lado, não era razoável atri
bém no que respeita a toda e qualquer buir ao acaso e à fortuna uma tão
outra mudança. Esta doutrina é-lhes grande obra. (13) Quem, portanto, afir
privativa43. (11) Entre os que afirma mou que existia na natureza, como
ram que o Universo é uno, a nenhum entre os animais, uma Inteligência,
ocorreu entrever tal causa, a não ser causa do mundo e da ordem universal,
talvez Parmênides 4 4, e este somente apareceu jejuno, em comparação dos
enquanto reconhece não uma única que anteriormente afirmaram coisas
causa, mas, em certo sentido, d u as 4 5. v ãs48. Quem alcançou abertamente
Quanto aos que admitem vários 4 6 [ele estas noções, sabemo-lo, foi Anaxágo-
mentos], acontece que dizem mais, ras, mas foi precedido, diz-se, por Her-
como, por exemplo, os que [admitem] mótimo de Clazômenes. (14) Os que,
o calor e o frio, ou o fogo e a terra. pois, assiiç pensaram fizeram uma
Eles, com efeito, servem-se do fogo mesma coisa da causa que é princípio
como se este possuísse uma natureza do bem nos seres e da causa donde
cinética, e da água, da terra e dos ou- vem aos seres o movimento49.
4' Aristóteles refere-se a Tales e a Anaxímenes. 4 7 Fonseca interpretou este passo no sentido de
42 Tem em vista os eleatas: Xenófanes, Melisso e que Aristóteles designa pela expressão — princípio
Parmênides. que se lhe seguia — a causa eficiente, non tamert
43 Refere-se aos eleatas, segundo os quais o Uni eam quaesiverunt sub rationefinalis, sed sub ratione
verso é uno, isto é, .somente conferiam realidade ao bene, recteque efficientis, id est, alicujus boni gratia.
ser no qual nada de novo advém à existência, e ja Bonitz sustentou que Aristóteles se referira à causa
mais cessa de existir ou sofre qualquer mudança final, e G. Colle é de opinião que se trata da causa
substancial e até acidental. eficiente, embora tais filósofos inquirissem a razão
A juízo de Aristóteles, os eleatas continuavam a da ordem no Universo.
orientação de Tales e de Anaxímenes, por admiti 48 Tradução literal. O sentido é: Quem primeira
rem somente a causa material. mente sustentou que no Universo existe uma inteli
4 4 Filósofo da Escola de Eléia, que floresceu pela gência que é causa da disposição de tudo o que nele
sexagésima nona olimpíada (504-501 a.C._). existe apareceu como em jejum perante os discursos
4 5 Passo obscuro, mas no qual se não vê contradi vãos dos filósofos que o precederam.
ção, de harmonia com o comentário de Alexandre: 49 Pode discutir-se (vid. nota 47) se “ a causa que é
sob o ponto de vista da verdade (razão), Parmênides princípio do bem” é a causa final ou a eficiente, pois
afirmava que o Universo é uno, sem começo e esfé como diz Colle (I, 57) " l’intelligence qui ordom een
rico, e portanto carecente unicamente da causa vue du bien, ou 1’a mour qui tend au bien ne sont
material; porém, sob o ponto de vista sensível (da point causesfinales, mais causes efficientes: c ’est le
natureza), não negava que houvesse outra causa, a bien lui-même que est cause finale ”, mas é indubi-
saber, a eficiente. E esta a explicação de Fonseca. tável que “ a causa donde vem aos seres o movimen
46 Talvez tenha em vista Empédocles. to” é a causa eficiente ou motora.
M ETAFÍSICA — I 19
C a p í t u l o IV50
de maneira não suficiente nem coeren ser não existe mais do que o não-ser,
te. Em muitos casos, com efeito, a ami porque nem o vazio [existe mais] que o
zade para ele separa e a discórdia une. corpo), e estas são as causas dos seres
Quando, pois, o Universo se dissolve enquanto matéria 6 5. (8 ) E como aque
nos seus elementos sob a ação da les que afirmam ser una a substância
discórdia, então o fogo e cada um dos como sujeito formam todos os outros
outros elementos reúnem-se num todo; seres das modificações dela, pondo o
inversamente, quando sob a ação da raro e o denso como princípios das
amizade, os elementos são reduzidos à modificações66, da mesma maneira
unidade, as partes são de novo força também estes filósofos pretendem que
das a separar-se de cada [elemento] 61. as diferenças são as causas das outras
(6) Empédocles foi, portanto, o pri coisas. São, segundo eles, estas três: a
meiro que, em oposição aos seus ante figura, a ordem e a posição. O ser,
cessores, introduziu esta divisão na dizem eles, só difere pelo “rismó” ,
causa em questão, admitindo não um “diatigé” e “tropé”, isto é, pela “figu
único princípio do movimento, mas ra” , “ordem” e “posição” . Assim A di
dois diferentes e contrários. Além fere de N pela figura, AN de NA pela
disto, foi o primeiro a afirmar que são ordem e Z de N pela posição 6 7. Quan
quatro os elementos atribuídos à natu to ao movimento, donde ou como se
reza material. Todavia não se serve
6 5 Na ontologia de Parmênides, o ser corpóreo era
deles como se fossem quatro, mas a única determinação da existência e, portanto, o
somente de dois: por um lado, o fogo ser absoluto. Donde a ilação de que o que não é cor
tomado em si, e por outro os seus póreo não existe, ou, por outras palavras, o não-ser
não existe, o Universo é o ser pleno, e o vazio em
contrários, considerados como uma parte alguma se dá porque é idêntico ao não-ser. O
natureza única, a terra, o ar e a água. emprego deste vocabulário por Leucipo e Demó
Poderá dar conta disto quem quer que crito não significa que lhe tivessem atribuído o
mesmo sentido e alcance. Para estes, a afirmação da
examine os seus poem as62. (7) Tais existência do ser e do não-ser, à primeira vista para
são, pois, como vimos dizendo, a natu doxal, quer dizer que os elementos necessários à
constituição dos corpos que compõem o Universo
reza e o número dos princípios admiti são o ser e o não-ser, entendendo por ser os átomos
dos por este filósofo. Leucipo63, pelo e as combinações que deles se formam, ou o pleno,
contrário, e o seu amigo Demócrito 6 4 e por não-ser, o vazio, isto é, o espaço onde eles se
movem. Portanto somente existem átomos e vazio.
reconhecem como elementos o pleno e 6 6 Neste passo, Aristóteles compara a concepção
o vazio, a que eles chamam o ser e o atomista com a dos filósofos que somente admitiam
uma única espécie de matéria, ou antes, de causa
não-ser; e ainda, destes princípios, o material, comum a todos os seres; donde o estabele
pleno e o sólido são o ser, o vazio e o cerem que entre os corpos somente havia diferenças
raro o não-ser (por isso afirmam que o acidentais e que o raro e o denso, isto é, o grau
maior ou menor de densidade, constituía o princípio
da diferenciação.
61 Isto é: o Universo é constituído pela mistura de 6 7 Colle, I, 64-5, desenvolve da seguinte maneira
elementos; quando estes se separam pela ação da este passo: A e N diferem entre si pela ordem diver
discórdia, os elementos homogêneos reúnem-se num sa das suas partes (supondo A e N de extensão
todo. É por isso que Aristóteles diz que a discórdia, igual, pois parece que na teoria atomista se faz abs
sob certo ponto de vista, separa, e, sob outro, reúne. tração da quantidade).
62 Em especial, o fragmento 62 da coletânea de A N e N A diferem entre si do mesmo modo que A
Diels. e N, se se considerarem A N e AM cada um como
63 Fundador da Escola Atomista, cuja naturali um todo, porque A N e N A assim considerados dife
dade se diz ter sido Abdera, Mileto e Eléia, e de cuja rem pela diversidade da disposição, isto é, a ordem
cronologia se desconhecem datas seguras. No diferente das suas partes.
entanto, pode dizer-se que foi contemporâneo de Não é, porém, assim que cumpre considerar, por
Empédocles e de Anaxágoras. que o que importa indagar é aquilo em que o A de
6 4 Foi discípulo de Leucipo. Natural de Abdera, A N difere do A de N A ou aquilo em que o N de A N
segundo a noticia mais aceita pelos antigos, parece difere do N de N A , porque há nisto uma diferença
ter nascido circa 460 a.C. de outra espécie. Com efeito, o A de A N não difere
M ETAFÍSICA — I 21
encontre nos seres, também estes, duas cau sas68, o ponto ao qual pare
como os outros, negligentemente des- cem ter chegado, a nosso ver, os que
curaram. (9) Tal é, pois, a respeito das investigaram anteriormente [a nós].
do A de N A pela ordem diferente das suas partes, partes de N. Na diferença precedente, bastava des
porque esta ordem é idêntica nos dois A ; mas o pri locar N para que A mudasse segundo a diferença
meiro A difere do segundo em que todas as partes considerada, mas as relações de A com os pontos
do primeiro A estão para todas as partes de N em do espaço, quaisquer que estes fossem, não sofriam
relação diferente das partes do segundo A . modificação alguma. Pelo contrário, para mudar Z
Z também não difere de N péla ordem diferente em N reverte-se Z até ao momento em que ele é N,
das partes porque, uma vez mais, as partes estão na o que se não faz sem mudar a relação de qualquer
mesma ordem em Z e em N, mas Z e N diferem em uma das partes de Z para qualquer uma das partes
que todas as partes de Z estão relativamente a todos da extensão real ou ideal.
os pontos do espaço numa relação diferente da das 68 Isto é, a causa material e a causa eficiente.
C a p í t u l o V 69
pelo contrário, pretendem que é imó esta causa, quer a causa de que provém
vel. (10) Ora, isto interessa de maneira o movimento, esta também única para
particular à presente investigação. Par- alguns 8 5, dupla para outros. (13) Até
mênides, com efeito, parece ter alcan os itálicos, exclusive, os outros [filó
çado o uno segundo a razão, Melisso, sofos] pronunciaram-se, portanto, com
segundo a matéria. Por isso, o primeiro certa insuficiência sobre tais [princí
declara-o finito, o segundo, infinito. pios] , se excetuarmos, como dissemos,
Xenófanes, no entanto, que foi o pri que recorreram a duas causas, sendo
meiro a admitir a unidade (pois Parmê- uma delas, a do movimento, conside
nides, ao que parece, foi seu discípulo), rada única por uns, dupla por outros,
nada esclareceu, nem parece ter atin Os pitagóricos igualmente falaram em
gido a natureza de alguma destas duas dois princípios 8 6, mas com este acres
[causas], mas, olhando para o con cento que lhes é peculiar: o finito, o
junto do Universo, afirma que o uno é infinito e o uno não seriam naturezas
Deus. (11) Estes, porém, como disse diferentes, tais como o fogo, a terra ou
mos, devem excluir-se da presente outra coisa parecida, mas o próprio
investigação: dois, Xenófanes 82 e Me infinito e o próprio uno são a subs
lisso83, por serem as suas concepções tância das coisas de que se predicam,
demasiado grosseiras. Quanto a Par- sendo portanto o número a substância
mênides, parece, de fato, ter visto me de todas as coisas. (14) Tal é a maneira
lhor o que diz. Convencido de que, como eles se pronunciaram, e a propó
além do ser, o não-ser não é coisa algu sito do “que é” começaram eles a falar
ma, ele pensa que, necessariamente, e a definir, mas procedendo com dema
existe uma única coisa, o ser, e nada siada simplicidade. Definiram, pois,
mais: questão esta acerca da qual já superficialmente, e aquilo em que a
falamos mais claramente nos livros da definição dada primeiro se encon
Física84. Constrangido, porém, a se trasse, consideravam-no eles como a
guir os fenômenos e a dizer que a uni substância da coisa: como se fosse
dade existe segundo a razão e a pluri- possível identificar a dualidade com o
dade segundo os sentidos, chegou a duplo pelo fato de o duplo se encontrar
estabelecer duas novas causas e dois primeiro na dualidade 8 7. Mas talvez
princípios: o quente e o frio, como se não seja a mesma coisa ser duplo e
dissesse o fogo e a terra. Destes, repor dualidade; doutra forma, o uno seria
ta o primeiro, o quente, ao ser, e o uma multiplicidade, conclusão esta à
outro, ao não-ser. (12) Do que se disse, qual eles também chegaram. É isto o
e dos filósofos que já se associaram ao que dos primeiros [filósofos] e seus
nosso estudo, é isto, portanto, o que sucessores podemos colher.
colhemos: os primitivos admitem um
princípio corpóreo (a água, o fogo e 8 5 Entre eles, Anaxágoras, que considerava a Inte
ligência causa eficiente.
coisas análogas são, pois, corpos), 86 Ou sejam: o finito e o infinito.
sendo este princípio corpóreo para uns, 8 7 Neste período, Aristóteles dirige aos pitagóricos
uno, para outros, múltiplo, mas consi duas críticas: darem definições demasiado simples,
fundadas em analogias superficiais, e, uma vez esta
derando-o uns e outros da natureza da belecida a definição, aplicaíem-na indiscrimina
matéria; outros, porém, admitem quer damente. É exemplo desta segunda crítica a identifi
cação da dualidade com o duplo, ou, por outras
palavras, definida a coisa dupla, qualquer que fosse
82 De Cólofon; parece ter florescido na segunda a definição, concluíam logo que a sua essência é a
metade do século V a.C. díada (2), o que conduz ao absurdo de todos os du
83 De Samos. Florescia por 444-440 a.C. plos (4-6-8-16. . .) serem o mesmo que 2, isto é, a
84 N oLiv. 1,3. díada. V. Colle, 1,93-94.
24 ARISTÓTELES
C a p i t u l o VI88
C a p i t u l o VII97
C a p í t u l o V I II102
C a p itu lo IX 114
Deixemos agora de falar dos pitagó princípio, as causas dos seres deste
ricos: baste o que deles dissemos. Os mundo, introduziram outros seres em
que põem as idéias como causas, número igual: como quem, procurando
enquanto pretendiam individuar, a fazer uma conta, julgasse que a não
poderia fazer com poucas cifras e as
’ 1 4 Este capítulo tem por objeto a crítica da teoria aumentasse para a poder fazer. As
platônica das idéias; pretende mostrar que é inad
missível e que não explica o mundo real. Alguns dos idéias, com efeito, são em número
seus períodos são idênticos aos do liv. X III (M). quase igual, ou pouco inferior, ao dos
30 ARISTÓTELES
idéias [do mesmo ser]: por exemplo, coisa, é evidente que também os pró
do homem seria o Animal, o Bípede e, prios números serão relações de uma
ao mesmo tempo, o Homem-em-si. coisa para outra. Quero dizer, se C á
(10) Demais, não é apenas dos sensí lias é uma razão numérica de fogo,
veis que as idéias seriam exemplares, terra, água e ar, também a idéia será
mas também das próprias idéias: o gê [razão] numérica de outros sujeitos
nero, por exemplo, [será,] enquanto gê diferentes, e o homem-em-si, quer seja
nero, [o exemplar] das espécies [conti um número ou não, será sempre uma
das no gênero], e a mesma coisa será, relação em números, e não número.
assim, exemplar e imagem. (11) Pare Não haverá, portanto, número
ce, além disto, impossível que existam algum 130. (15) Demais, de muitos nú
separadamente a substância e aquilo meros forma-se um número, mas de
de que ela é substância: neste caso, as [muitas] idéias, como [gerar] uma
idéias, que são as substâncias das coi idéia única? E se não é dos números,
sas, como existiram separadas delas? mas dos numeráveis131, por exemplo,
No Fédon, porém, afirma-se que as da miríada, [que o número se compõe,]
idéias são causas e do ser e do devir. qual será então a razão das mônadas?
(12) Todavia, ainda que as idéias exis Se elas são, com efeito, da mesma
tam, os seres que delas participam não espécie, seguir-se-ão muitos absurdos,
são gerados 128 se não houver um e se o não são, [igualmente se segui
[primeiro] m otor129, por outro lado, rão] quer sejam diferentes uma da
muitas outras coisas aparecem, uma outra, quer a respeito de todas. Com
casa, por exemplo, ou um anel, sem efeito, sendo impassíveis132, em que
que delas se afirme que há espécie. Por diferirão? Estes conceitos não são,
conseguinte, é evidente que também pois, conseqüentes, nem conformes à
outras coisas podem existir e devir, razão. (16) Será, além disto, necessário
mediante causas análogas às dos obje constituir outra espécie de números,
tos de que temos agora falado. (13) que será o objeto da aritmética e de
Além disto, se as idéias são números, todas aquelas [entidades] a que alguns
como seriam causas? Será porventura chamam intermédias. E estas, como
porque os seres são números diferen existem? E de que princípios provirão?
tes, e um tal número, por exemplo, é E por que haverá intermediários entre
homem, tal outro é Sócrates, tal outro os sensíveis e as idéias? (17) Demais,
Cálias? E porque, então, aqueles se as mônadas contidas na díada provi
riam causas destes? Que uns sejam rão, cada uma, de uma díada anterior,
eternos e os outros não, de certeza,
pouco importa. Se, pelo contrário, por
serem os sensíveis como as harmonias, 130 Este período dá ensejo a várias dificuldades.
uma razão de números, então é evi Esquematicamente, o raciocínio de Aristóteles é o
seguinte: se o número como idéia exprime uma rela
dente que deve haver alguma coisa da ção, não tem ser próprio, dado não haver, como já
qual são razões. (14) Se, portanto, esta disse acima, idéias de relativos; e como o número
sensível existe por participação ao número ideal,
alguma coisa, a matéria, é “qualquer” segue-se que um e outro número estão desprovidos
de onticidade.
' 31 Talvez mais explicitamente: se o número, por
exemplo a miríada, não é composto de números,
128 Fonseca traduz: nequaquamfiunt. mas de numeráveis, isto é, dos elementos ou unida
12 9 Isto é, algo que dê o movimento. Há quem tra des de número, qual será então a razão das môna
duza por causa motora, mas o sentido exato parece das, isto é, das unidades?
ser o de Fonseca, a que nos ativemos: nisi sit quod 132 Isto é, não afetadas por qualquer determina
moueat. ção.
M ETAFÍSICA — I 33
idéias também se deverão mover; e se ter achado, é uma ilusão 1 42. (27) Mas
não, donde é que ele veio 13 7? Cairia como poderia alguém chegar a conhe
assim o estudo inteiro da natureza138. cer os elementos de todas as coisas?
(24) Outra coisa que também parece Sem dúvida, não os pode conhecer
fácil de demonstrar, a saber, tudo o com anterioridade: assim, quem está a
que existe se reduz à unidade 1 3 9, efeti aprender geometria, pode já conhecer
vamente não o é. Com efeito, por ecte- outras coisas, mas não do objeto da
se 1 40, nem tudo se tom a uno, mas disciplina em questão, e que ele se pro
somente o próprio, se contudo nada lhe põe aprender. E da mesma forma para
tirarmos 1 41. Mas isto também não é tudo o m ais 1 43. (28) E se, por outro
admissível, a não ser que se conceda lado, existe, como alguns pretendem,
que o universal é um gênero, o que, em uma ciência de todas as coisas, então
certos casos, é impossível. (25) E tam [quem a aprende] nada poderá conhe
bém não têm explicação as noções cer antes de começar. No entanto, toda
posteriores aos números, a saber, os a disciplina se adquire por conheci
comprimentos, as superfícies e os sóli mentos prévios, total ou parcialmente,
dos, nem como elas existem ou pode quer ela proceda por demonstra
rão existir, nem qual é a sua função. ção 1 4 4, quer por definição, pois é pre
Com efeito, não podem ser idéias ciso que os elementos de que a defini
(visto que não são números), nem ção procede sejam pré-conhecidos e
intermédios (o que são somente as enti familiares. Igualmente para a ciência
dades matemáticas), nem corruptíveis; que existe por indução. Mas se, por
dar-se-ia, assim, novamente, um quar acaso, ela nos fosse inata 1 4 5, seria
to gênero diferente. (26) Em geral, pro maravilhoso que, sem o sabermos,
curar os elementos dos seres sem os possuíssemos a mais excelente das
distinguir, apesar de serem múltiplas ciências. (29) E demais, como seria
as suas acepções, é impossibilitar-se de
os encontrar, sobretudo se, desta 1 42 Neste parágrafo opõem-se duas concepções
forma, investigarmos de que [elemen diversas da ontologia. Os platônicos procuravam
tos] são constituídos. Assim, de quais determinar os elementos comuns a todos os seres,
que eram os elementos constitutivos dos números;
[resulta] o fazer, o padecer ou o direito Aristóteles afirma que isto não só não é fácil em
não é, por certo, fácil determinar; e, se relação ao que não tem substância concreta, como o
o fosse, somente o seria para as subs que é direito, senão que é necessário distinguir pre
viamente os seres, por não ser unívoco o termo ser.
tâncias. Portanto, procurar os elemen Por isso, isto é, se o Ser não é um gênero, é ilógico
tos de todos os seres, ou pensar em os procurar os princípios gerais dos seres sem previa
mente se haverem discriminado as diversas ontolo
gias próprias de cada espécie de ser.
1 43 No parágrafo anterior, Aristóteles mostrara
13 7 Isto é, as idéias nao dão a razão do movimento que era ilógica a investigação dos elementos, ou
e sem a explicação do movimento não é possível a princípios gerais do ser, tal como a conduziam os
física. platônicos; neste período e no seguinte, procura
’ 3* Isto é: a natureza não é concebível sem movi mostrar que é impossível aprender a conhecer tais
mento, e sem a explicação do movimento não há elementos ou princípios, porque quem empreendesse
ciência física. isso devia estar necessariamente desprovido de todo
' 3' Isto é, tudo é uno. e qualquer conhecimento.
1 40 Por ectese entendiam os platônicos a operação 144 Nos Segundos Analíticos, I, c. 2, Aristóteles
que atribui ser próprio aos atributos comuns; em 'desenvolveu esta idéia, mostrando que os axiomas
Aristóteles designa o ato de abstração lógica. devem necessariamente ser conhecidos pela pessoa
’ 41 Isto é: se se seguirem todos os graus que a ecte a quem é dirigida a demonstração.
se comporta. Ross traduz: " jf we grani ali the 1 4 5 Alusão à teoria platônica da reminiscência
assumptions como fundamentação do saber.
M ETAFÍSICA — I 35
possível conhecer de que resultam [as ção 1 4 6? Ora, isto deveria [ser possí
coisas], e como nos certificaríamos vel], se os elementos de todas as coi
disso? Também aqui há, pois, uma sas, dos quais [tudo deriva], são os
dificuldade. Poder-se-ia, com efeito, mesmos, como os sons compostos
discutir a propósito de certas sílabas. resultam dos [elementos] que lhes são
Uns dizem, por exemplo, que o ZA próprios.
vem do S, mais D e A; outros preten
dem que é um som diferente, e que não 1 4 * Eqüivale a dizer que não podem conhecer-se as
é nenhum dos conhecidos. (30) Enfim, coisas sensíveis somente pela. inteligência; se assim
fosse, a percepção sensível seria inútil. Com este
os sensíveis, como os poderíamos argumento conclui Aristóteles a refutação da teoria
conhecer, sem termos deles a sensa platônica das idéias.
C a p ít u l o X
C a p í t u l o I 151
dadeiro sem [conhecer] a causa 1 58. (5) nos seus posteriores 1 60 é a causa de
Demais, aquilo que, em grau maior, eles serem verdadeiros. Por isso é
participa [da natureza] dos outros necessário que os princípios dos seres
eternos sejam sempre veríssimos: não
[seres é aquilo] segundo o qual se dá
são pois verdadeiros somente em tal
neles o unívoco 1 " , como o fogo é o momento, nem há para eles alguma
quentíssimo por ser nos outros [seres] causa do seu ser; são, pelo contrário,
a causa do calor; e é o veríssimo o que eles próprios [a causa] para os ou
tro s 1 61. Por conseguinte, quanto cada
1 5® Quer dizer: a filosofia é a ciência da verdade e coisa tem de ser, tanto [tem] de
0 conhecimento da verdade implica o conhecimento verdade 1 62.
da causa. É próprio das ciências especulativas
investigarem a verdade por si mesma, como é pró
prio da atividade prática dirigir-se diretamente ao 1 60 Aristóteles tem em vista a seqüência de efeitos
que importa à ação; por isso, os homens práticôs que procedem da coisa que os produz como causa.
não têm em vista a verdade eterna mas a verdade 161 Nas linhas anteriores, Aristóteles estabeleceu
transitória, isto é, o momentâneo e o passageiro, o que a filosofia é a ciência da verdade e que as ciên
hic et nurtc das coisas que os preocupam. Este juízo cias práticas não são ciência da verdade eterna e
é de relacionar com o cap. I do Liv. I. Sobre a diver necessária; agora estabelece que a filosofia é por
sidade dos textos deste passo e correlativas interpre excelência a ciência teórica, por ter por objeto a
tações, vid. Bonghi, Met., I, 151-3. investigação da verdade mediante a investigação da
1 s* Isto é, sinônimo, ou, por outras palavras, as respectiva causa. Conseqüentemente, a filosofia tem
coisas que têm entre si a mesma denominação por objeto a mais verdadeira de todas as coisas.
comum e idêntico conceito de essência. Quer dizer, 1 62 Fonseca sintetiza este princípio fundamental
segundo a interpretação mais plausível: quando o da teoria do conhecimento e da ontologia de Aristó
mesmo nome é aplicável com o mesmo sentido a teles na seguinte frase: Quantum quidque habet ip-
coisas diversas, esse nome pertence com plena sius esse, tantum et veritatis habet.
propriedade à coisa que lhe deu origem e da qual Por outras palavras: ser e verdade são convertí-
outras coisas participam por comum designação e veis, porque o que é causa do ser de uma coisa é
essência. causa da verdade dessa mesma coisa.
C a p i t u l o I I 163
É, por outro lado, evidente que há isto proceda daquilo até ao infinito,
um princípio e que as causas dos seres por exemplo, a carne da terra, a terra
não são infinitas, nem em sentido reto, do ar, o ar do fogo e isto sem parar;
nem segundo a espécie 1 6 4. Com efeito, nem quanto àquilo donde é o movi
não é possível que, como da matéria, mento 1 6 5, sendo por exemplo o
homem movido pelo ar, o ar pelo sol, o
' 63 Este capítulo tem por objeto o assunto do seu sol pela discórdia, sem que disto haja
primeiro período: a existência necessária de um pri um limite 1 6 6. (2) Igualmente, também
meiro princípio e a impossibilidade de as causas
serem em número infinito ou de infinita variedade, e para a causa “para que” não podemos
portanto limitadas em número e na espécie. ir até o infinito [e afirmar que] o pas-
16 4 Aristóteles estabelece que é necessário admitir
a existência de um princípio e causa primeira, dado
que não é infinita a série de causas, quer na conti 1 6 5 Isto é, a origem do movimento.
nuidade ascendente, quer na diversidade de espé 1 6 6 A exemplificação deste parágrafo reporta-se à
cies. cosmologia de Empédocles. Aristóteles tem em
Sentido reto é tradução literal. Fonseca traduz: vista estabelecer a impossibilidade da existência de
progressione recta; Ross, m ittfintíe series; Tricot, uma série infinita de causas da mesma espécie,
série verticale infinie; Bonghi, le cause degli enti tanto na ordem da causalidade material como na da
non s Tqfilzano nè si spectficano ali Infinito. causalidade eficiente.
M E T A FÍSIC A — II 41
seio é em vista da saúde, esta, da felici se não entenda dizer “ isto” depois “da
dade, a felicidade doutra coisa, e que quilo”, como [se se dissesse] depois
tudo é assim sempre em vista de outra dos ístmicos os Jogos Olímpicos, ou
coisa. E analogamente para a qüidida- como, da criança, que se transforma, o
de 1 6 7 (3) Com efeito, postos os inter homem, ou da água, o a r 1 70. ( 6 ) Ora,
médios, fora dos quais existe um últi nós dizemos que o homem vem da
mo e um primeiro, o anterior é criança como o já gerado do que está a
necessariamente a causa dos que são ser gerado, ou o já completo do que se
depois dele. E se nós tivéssemos de está completando, pois sempre há um
dizer qual dos três é a causa, responde intermédio, como entre o ser e o não-
ríamos que o primeiro: não será segu ser, o devir, e o que se está gerando,
ramente o último, porque o último não entre o que é e o que não é. (7) É pois
é [causa] de nada, nem tampouco o quem aprende um [indivíduo] que
devém sábio, e isto significamos ao
intermédio, que o é de um só. (4)
dizer que do discípulo vem o sábio.
Pouco importa, aliás, que haja um ou
Pelo contrário, [a procedência] como a
mais [intermédios], e que sejam infini água do ar [dá-se] pela destruição de
tos ou finitos. Orá, dos infinitos assim um dos dois. Por isso, os [dois] primei
concebidos, e do infinito em geral, ros não se sobrepõem reciprocamente,
todos os termos são igualmente inter nem do homem se refaz a criança, por
médios até ao atual; de forma que, se que o gerado não vem da própria gera
nenhum é primeiro, não há absoluta ção, mas depois da geração171. É
mente causa alguma 1 68. (5) Mas tam assim, pois, que também o dia [é
bém a descer 1 69 não é possível chegar gerado] da aurora, porque vem depois
ao infinito (dado que existe um princí dela, e, por isso, a aurora não [vemj do
pio ascendente) por forma que a água dia. Os outros, pelo contrário, sobre-
proceda do fogo, a terra da água e, põem-se. ( 8 ) Mas, em ambos os casos,
assim de seguida, se gere sempre mais é impossível proceder até ao infinito:
algum gênero. Em duas maneiras, com no primeiro, havendo intermédios, há
efeito, “ isto” vem “daquilo” , quando
1 70 Pela expressão “isto vem daquilo”, Aristóteles
entende a causalidade material e não a relação tem
1 6 7 O raciocínio do período anterior é aqui apli poral, ou seja, “isto vem depois daquilo” ; e as duas
cado à causalidade final (causa “para que” ) e à espécies do “ isto vem daquilo” que ele tem em vista
causalidade formal (qüididade). são as seguintes; o desenvolvimento de uma coisa
1 68 Nestes dois parágrafos Aristóteles prova a cuja forma se conserva até o final do seu desenvol
impossibilidade ad infinitum da série das causas, vimento, e o nascimento de uma coisa de outra com
mediante um raciocínio que assim esquematizamos, a forma que lhe é própria. D a primeira destas espé
de harmonia com o comentário de Colle: cies dá como exemplo o homem que “vem da crian
A causa de uma série que contenha interme ça” ; da segunda, o ar que “vem” da água.
diários é necessariamente um termo anterior aos ’ 71 Este período e o que o precede explicitam a
mesmos intermediários; distinção das duas espécies do “isto vem daquilo” ,
Ora, uma série de causas infinitas em sucessão indicadas na nota anterior. Quer dizer: na criança
ascendente não pode ter princípio, mas somente que devém homem, a forma do homem feito já exis
intermediários; tia na criança que ia devindo homem; na água que
devém ar, a forma do ar não é o desenvolvimento da
Pelo que uma série de causas infinitas se não ter forma da água, pois é uma forma nova. Isto signi
mina numa causa. fica que quando há continuidade entre os dois extre
169 Isto é, a impossibilidade ad infinitum da série mos, o primeiro e o último, o termo final não retor
de causas tanto se dá na ordem ascendente da série na ao ponto de partida; e quando não há
causai, isto é, do efeito para a causa, como na continuidade, isto é, se dá o nascimento de uma
ordem descendente, isto é, da causa para o efeito. A forma nova, quando cessa a forma nova refaz-se a
demonstração desta última impossibilidade não é antiga, e vice-versa. Por isso, da água “vem” o ar, e
tão completa como a anterior, pois apenas incide o ar vem da água; e, pelo contrário, se do discípulo
sobre a causa material. “vem” o sábio, o discípulo não “vem” do sábio.
42 ARISTÓTELES
também a matéria é necessário pensá- não pode ser percorrido num tempo
la em qualquer coisa que se m ova 1 78. finito.
Porém, nenhum infinito pode existir,
doutra forma a infinidade Não pode ' 79 Na argumentação anterior, Aristóteles procu
ser infinita. (13) E, ainda que as espé rou provar a inexistência da causalidade ad infini
tum pelas conseqüências que ela implica; agora,
cies das causas fossem em número infi argumenta diretamente contra a existência de espé
nito, mesmo assim não seria possível o cies de causas ad iirfinitum por tom ar impossível o
conhecer, porquanto nós pensamos conhecimento seja do que for. Se conhecer uma
coisa é conhecê-la pelas suas causas, segue-se que,
saber quando conhecemos as cau se se der a existência de espécies de causas ad irrfini-
sas 1 79: ora o infinito por adição 180 tum, não é possível conhecer seja o que for.
Em conclusão: as causas são quatro (material,
formal, eficiente e final), e na causalidade de cada
' 78 Passo de interpretação difícil e para alguns uma delas não se dá a sucessão ad infinitum.
ininteligível. Parece que nele subjaz o argumento da 1 «o Infinito por adição opõe-se a infinito por divi
nota anterior: sob certo ponto de vista, a matéria é são: se este exprime a divisibilidade ao infinito de
infinita, porém somente é pensável em coisas que se uma linha dada, o infinito por ação exprime o
movam, e portanto limitadas. prolongamento ao infinito de uma linha dada.
C a p í t u l o III181
1094 a Admite-se geralmente que toda arte economia é a riqueza. Mas quando tais
e toda investigação, assim como toda artes se subordinam a uma única facul
ação e toda escolha, têm em mira um dade — assim como a selaria e as ou- i»
bem qualquer; e por isso foi dito, com tras artes que se ocupam com os apres-
muito acerto, que o bem é aquilo a que tos dos cavalos se incluem na arte da
, todas as coisas tendem. Mas observa- equitação, e esta, juntamente com
se entre os fins uma certa diferença: al todas as ações militares, na estratégia,
guns são atividades, outros são produ há outras artes que também se incluem
tos distintos das atividades que os em terceiras — , em todas elas os fins
j produzem. Onde existem fins distintos das artes fundamentais devem ser pre
das ações, são eles por natureza mais feridos a todos os fins subordinados,
excelentes do que estas. porque estes últimos são procurados a
Ora, como são muitas as ações, bem dos primeiros. Não faz diferença
artes e ciências, muitos são também os que os fins das ações sejam as próprias
seus fins: o fim da arte médica é a atividades ou algo distinto destas,
saúde, o da construção naval é um como ocorre com as ciências que aca
navio, o da estratégia é a vitória e o da bamos de mencionar.
Se, pois, para as coisas que fazemos apenas, o que seja ele e de qual das
existe um fim que desejamos por ele ciências ou faculdades constitui o obje
mesmo e tudo o mais é desejado no to. Ninguém duvidará de que o seu es
interesse desse fim; e se é verdade que tudo pertença à arte mais prestigiosa e
nem toda coisa desejamos com vistas que mais verdadeiramente se pode cha
20 em outra (porque, então, o processo se
mar a arte mestra. Ora, a política mos
repetiria ao infinito, e inútil e vão seria tra ser dessa natureza, pois é ela que
o nosso desejar), evidentemente tal fim determina quais as ciências que devem
será o bem, ou antes, o sumo bem.
Mas não terá o seu conhecimento, ser estudadas num Estado, quais são iowb
porventura, grande influência sobre a as que cada cidadão deve aprender, e
nossa vida? Semelhantes a arqueiros até que ponto; e vemos que até as
que têm um alvo certo para a sua pon- faculdades tidas em maior apreço,
2 s taria, não alcançaremos mais facil como a estratégia, a economia e a retó
mente aquilo que nos cumpre alcan rica, estão sujeitas a ela. Ora, como a
çar? Se assim é, esforcemo-nos por política utiliza as demais ciências e,
determinar, ainda que em linhas gerais por outro lado, legisla sobre o que s
50 ARISTÓTELES
devemos e o que não devemos fazer, a preservar. Embora valha bem a pena
finalidade dessa ciência deve abranger atingir esse fim para um indivíduo só, é
as das outras, de modo que essa finali mais belo e mais divino alcançá-lo
dade será o bem humano. Com efeito, para uma nação ou para as cidades-Es- 10
ainda que tal fim seja o mesmo tanto tados. Tais são, por conseguinte, os
para o indivíduo como para o Estado, fins visados pela nossa investigação,
o deste último parece ser algo maior e pois que isso pertence à ciência polí
mais completo, quer a atingir, quer a tica numa das acepções do termo.
homens de tipo mais vulgar, parecem sua virtude. Está claro, pois, que para so
is (não sem um çerto fundamento) identi eles, ao menos, a virtude é mais exce
ficar o bem ou a felicidade com o pra lente. Poder-se-ia mesmo supor que a
zer, e por isso amam a vida dos gozos. virtude, e não a honra, é a finalidade
Pode-se dizer, com efeito, que existem da vida política. Mas também ela pare
três tipos principais de vida: a que aca ce ser de certo modo incompleta, por
que pode acontecer que seja virtuoso
bamos de mencionar, a vida política e
quem está dormindo, quem leva uma
a contemplativa. A grande maioria dos
vida inteira de inatividade, e, mais
homens se mostram em tudo iguais a ainda, é ela compatível com os maiores i<m
20 escravos, preferindo uma vida bestial, sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo
mas encontram certa justificação para quem queira sustentar a tese a todo
pensar assim no fato de muitas pessoas custo, ninguém jamais considerará
altamente colocadas partilharem os feliz um homem que vive de tal
gostos de Sardanapalo2. maneira.
A consideração dos tipos principais Quanto a isto, basta, pois o assunto
de vida mostra que as pessoas de gran tem sido suficientemente tratado 3
de refinamento e índole ativa identi mesmo nas discussões correntes. A ter
ficam a felicidade com a honra; pois a ceira vida é a contemplativa, que
honra é, em suma, a finalidade da vida examinaremos mais tarde3.
política. No entanto, afigura-se dema Quanto à vida consagrada ao
siado superficial para ser aquela que ganho, é uma vida forçada, e a riqueza
buscamos, visto que depende mais de não é evidentemente o bem que procu
quem a confere que de quem a recebe, ramos: é algo de útil, nada mais, e
25 enquanto o bem nos parece ser algo ambicionado no interesse de outra
próprio de um homem e que dificil coisa. E assim, antes deveriam ser
mente lhe poderia ser arrebatado. incluídos entre os fins os que mencio
Dir-se-ia, além disso, que os homens namos acima, porquanto são amados
buscam a honra para convencerem-se por si mesmos. Mas é evidente que
a si mesmos de que são bons. Como nem mesmo esses são fins; e contudo,
quer que seja, é pelos indivíduos de muitos argumentos têm sido desperdi- 10
grande sabedoria prática que procu çados em favor deles. Deixamos, pois,
ram ser honrados, e entre os que os este assunto.
conhecem e, ainda mais, em razão da
^ 1177 a 12 - 1178 a 8; 1178 a 22 - 1179 a 32. (N.
2 Era um rei mítico da Assíria. (N. do E.) doT .)
6
Seria melhor, talvez, considerar o mais ajuizados dirão que é preferível e
bem universal e discutir a fundo o que que é mesmo nosso dever destruir o
se entende por isso, embora tal investi que mais de perto nos toca a fim de
gação nos seja dificultada pela amiza salvaguardar a verdade, especialmente 15
de que nos une àqueles que introdu por sermos filósofos ou amantes da
ziram as Form as4. No entanto, os sabedoria; porque, embora ambos nos
sejam caros, a piedade exige que hon
4 Outros traduzem por: Teoria das Idéias. (N. do
remos a verdade acima de nossos
E.) amigos.
ÉTICA A NICÔM ACO — I 53
Ou não haverá nada de bom em si claro que ele não poderia ser realizado
mesmo senão a Idéia do bem? Nesse nem alcançado pelo homem; mas o
caso, a Formâ se esvaziará de todo que nós buscamos aqui é algo de
sentido. Mas, se as coisas que indica atingível.
mos também são boas em si mesmas, o Alguém, no entanto, poderá pensar
conceito do bem terá de ser idêntico que seja vantajoso reconhecê-lo com a
em todas elas, assim como o da bran mira nos bens que são atingíveis e
cura é idêntico na neve e no alvaiade. realizáveis; porquanto, dispondo dele
Mas quanto à honra, à sabedoria e ao como de uma espécie de padrão,
prazer, no que se refere à sua bondade, conheceremos melhor os bens que real
os conceitos são diversos e distintos. O mente nos aproveitam; e, conhecendo-
bem, por conseguinte, não é uma espé os, estaremos em condições de alcan
cie de elemento comum que corres çá-los. Este argumento tem um certo ar
ponda a uma só Idéia. de plausibilidade, mas parece entrar
Mas que entendemos, então, pelo em choque com o procedimento adota
bem? Não será, por certo, como uma do nas ciências; porque todas elas, em
dessas coisas que só por casualidade bora visem a algum bem e procurem
têm o mesmo nome. Serão os bens uma suprir a sua falta, deixam de lado o
só coisa por derivarem de um só bem, conhecimento do bem. Entretanto, não
ou para ele contribuírem, ou antes é provável que todos os expoentes das
serão um só por analogia? Inegavel artes ignorem e nem sequer desejem
mente, o que a visão é para o corpo a conhecer auxílio tão valioso. Não se
razão é para a alma, e da mesma compreende, por outro lado, a vanta
forma em outros casos. Mas talvez seja gem que possa trazer a um tecelão ou a
preferível, por ora, deixarmos de lado um carpinteiro esse conhecimento do
esses assuntos, visto que a precisão “bem em si” no que toca à sua arte, ou
perfeita no tocante a eles compete mais que o homem que tenha considerado a
propriamente a um outro ramo da Idéia em si venha a ser, por isso
filosofia8. mesmo, melhor médico ou general.
O mesmo se poderia dizer no que se Porque o médico nem sequer parece
refere à Idéia: mesmo ainda que exista estudar a saúde desse ponto de vista,
algum bem único que seja universal mas sim a saúde do homem, ou talvez
mente predicável dos bens ou capaz de seja mais exato dizer a saúde de um
existência separada e independente, é indivíduo particular, pois é aos indiví
duos que ele cura. Mas quanto a isso,
8 Cf. Metafísica, IV, 2. (N. do T.) basta.
7
Voltemos novamente ao bem que resse se fazem todas as outras coisas.
estamos procurando e indaguemos o Na medicina é a saúde, na estratégia a
que é ele, pois não se afigura igual nas vitória, na arquitetura uma casa, em
distintas ações e artes; é diferente na qualquer outra esfera uma coisa dife
medicina, na estratégia, e em todas as rente, e em todas as ações e propósitos
demais artes do mesmo modo. Que é, é ele a finalidade; pois é tendo-o em
pois, o bem de cada uma delas? vista que os homens realizam o resto.
Evidentemente, aquilo em cujo inte- Por conseguinte, se existe uma finali
ÉTICA A NICÔM ACO — I 55
dade para tudo que fazemos, essa será Considerado sob o ângulo da auto-
o bem realizável mediante a ação; e, se suficiência, o raciocínio parece chegar
há mais de uma, serão os bens realizá ao mesmo resultado, porque o bem
veis através dela. absoluto é considerado como auto-su
Vemos agora que o argumento, ficiente. Ora, por auto-suficiente não
tomando por um atalho diferente, che entendemos aquilo que é suficiente
gou ao mesmo ponto. Mas procuremos para um homem só, para aquele que
expressar isto com mais clareza ainda. leva uma vida solitária, mas também
Já que, evidentemente, os fins são vá para os pais, os filhos, a esposa, e em
rios e nós escolhemos alguns dentre geral para os amigos e concidadãos,
eles (como a riqueza, as flautas9 e os visto que o homem nasceu para a cida
instrumentos em geral), segue-se que dania. Mas é necessário traçar aqui um
nem todos os fins são absolutos; mas o limite, porque, ge estendermos os nos
sumo bem é claramente algo de abso sos requisitos aos antepassados, aos
luto. Portanto, se só existe um fim descendentes e aos amigos dos amigos,
absoluto, será o que estamos procu teremos uma série infinita.
rando; e, se existe mais de um, o mais Examinaremos esta questão, porém,
absoluto de todos será o que busca em outro lugar1°; por ora definimos a
mos. auto-suficiência como sendo aquilo
Ora, nós chamamos aquilo que me que, em si mesmo, tom a a vida desejá
rece ser buscado por si mesmo mais vel e carente de nada. E como tal
absoluto do que aquilo que merece ser entendemos a felicidade, consideran
buscado com vistas em outra coisa, e do-a, além disso, a mais desejável de
aquilo que nunca é desejável no inte todas as coisas, sem contá-la como um
resse de outra coisa mais absoluto do bem entre outros. Se assim fizéssemos,
que as coisas desejáveis tanto em si é evidente que ela se tom aria mais
mesmas como no interesse de uma ter desejável pela adição do menor bem
ceira; por isso chamamos de absoluto que fosse, pois o que é acrescentado se
e incondicional aquilo que é sempre tom a um excesso de bens, e dos bens é
desejável em si mesmo e nunca no inte sempre o maior o mais desejável. A
resse de outra coisa. felicidade é, portanto, algo absoluto e
Ora, esse é o conceito que preemi- auto-suficiente, sendo também a finali
nentemente fazemos da felicidade. É dade da ação.
ela procurada sempre por si mesma e Mas dizer que a felicidade é o sumo
nunca com vistas em outra coisa, ao bem talvez pareça uma banalidade, e
passo que à honra, ao prazer, à razão e falta ainda explicar mais claramente o
a todas as virtudes nós de fato escolhe que ela seja- Tal explicação não ofere
mos por si mesmos (pois, ainda que ceria grande dificuldade seipudéssemos
nada resultasse daí, continuaríamos a determinar primeiro a função do
escolher cada um deles); mas também homem. Pois, assim como para um
os escolhemos no interesse da felici flautista, um escultor ou um pintor, e
dade, pensando que a posse deles nos em geral para todas as coisas que têm
tom ará felizes. A felicidade, todavia, uma função ou atividade, considera-se
ninguém a escolhe tendo em vista que o bem e o “ bem feito” residem na
algum destes, nem, em geral, qualquer função, o mesmo ocorreria com o
coisa que não seja ela própria. homem se ele tivesse uma função.
9 Cf. Platão, Eutidemo, 289. (N. do T.) '» I, 10-11; IX, 10. (N. do T.)
56 ARISTÓTELES
Dar-se-á o caso, então, de que o bom homem é uma boa e nobre reali
carpinteiro e o curtidor tenham certas zação das mesmas; e se qualquer ação u
funções e atividades, e o homem não é bem realizada quando está de acordo
30 tenha nenhuma? Terá ele nascido sem com a excelência que lhe é própria; se
função? Ou, assim como 0 olho, a realmente assim é], o bem do homem
mão, o pé e em geral cada parte do nos aparece como uma atividade da
corpo têm evidentemente uma função alma em consonância com a virtude, e,
própria, poderemos assentar que o se há mais de uma virtude, com a me
homem, do mesmo modo, tem uma lhor e mais completa.
função à parte de todas essas? Qual Mas é preciso ajuntar “numa vida
poderá ser ela? completa” . Porquanto uma andorinha
A vida parece ser comum até às pró não faz verão, nem um dia tampouco;
prias plantas, mas agora estamos pro e da mesma forma um dia, ou um
curando o que é peculiar ao homem. breve espaço de tempo, não faz um
Excluamos, portanto, a vida de nutri- homem feliz e venturoso.
1098a ção e crescimento. A seguir há uma Que isto sirva còmo um delinea- 20
vida de percepção, mas essa também mento geral do bem, pois presumivel
parece ser comum ao cavalo, ao boi e a mente é necessário esboçá-lo primeiro
todos os animais. Resta, pois, a vida de maneira tosca, para mais tarde pre
ativa do elemento que tem um princí cisar os detalhes. Mas, a bem dizer,
pio racional; desta, uma parte tem tal qualquer um é capaz de preencher e
princípio no sentido de ser-lhe obedien articular o que em princípio foi bem
te, e a outra no sentido de possuí-lo e delineado; e também o tempo parece
s de exercer o pensamento. E, como a ser um bom descobridor e colaborador
'‘vida do elemento racional” também nessa espécie de trabalho. A tal fato se
tem dois significados, devemos esclare devem os progressos das artes, pois 25
cer aqui que nos referimos a vida no qualquer um pode acrescentar o que
sentido de atividade; pois esta parece falta.
ser a acepção mais própria do termo.
Ora, se a função do homem é uma Devemos igualmente recordar o que
atividade da alma que segue ou que se disse antes11 e não buscar a preci
implica um princípio racional, e se são em todas as coisas por igual, mas,
dizemos que “um tal-e-tal” e “um bom em cada classe de coisas, apenas a pre
tal-e-tal” têm uma função que é a cisão que o assunto comportar e que
mesma em espécie (por exemplo, um for apropriada à investigação. Porque
tocador de lira e um bom tocador de um carpinteiro e um geômetra investi
io lira, e assim em todos os casos, sem gam de diferentes modos o ângulo reto.
maiores discriminações, sendo acres O primeiro o faz na medida em que o
centada ao nome da função a eminên ângulo reto é útil ao seu trabalho, 30
cia com respeito à bondade — pois a enquanto o segundo indaga o que ou
função de um tocador de lira é tocar que espécie de coisa ele é; pois o geô
lira, e a de um bom tocador de lira é metra é como que um espectador da
fazê-lo bem); se realmente assim é [e verdade. Nós outros devemos proceder
afirmamos ser a função do homem do mesmo modo em todos os outros
uma certa espécie de vida, e esta vida assuntos, para que a nossa tarefa prin
uma atividade ou ações da alma que cipal não fique subordinada a questões
implicam um princípio racional; e
acrescentamos que a função de um ” 1094 b 11-27. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔM ACO — I 57
8
10 Devemos considerá-lo, no entanto, car na felicidade também parecem per
não só à luz da nossa conclusão e das tencer todas à definição que demõs
nossas premissas, mas também do que dela. Com efeito, alguns identificam a
a seu respeito se costuma dizer; pois felicidade com a virtude, outros com a
com uma opinião verdadeira todos os sabedoria prática, outros com uma
dados se harmonizam, mas com uma espécie de sabedoria filosófica, outros
opinião falsa os fatos não tardam a en com estas, ou uma destas, acompa- 25
trar em conflito. nhadas ou não de prazer; e outros
Ora, os bens têm sido divididos em ainda também incluem a prosperidade
três classes12, e alguns foram descritos exterior. Ora, algumas destas opiniões
como exteriores, outros como relativos têm tido muitos e antigos defensores,
à alma ou ao corpo. Nós outros consi- enquanto outras foram sustentadas por
d erapioscom o mais propriamente e poucas, mas eminentes pessoas. E não
is verdadeiramente bens os que se rela é provável que qualquer delas esteja
cionam com a alma, e como tais classi inteiramente equivocada, mas sim que
ficamos as ações e atividades psíqui tenham razão pelo menos a algum res
cas. Logo, o nosso ponto de vista deve peito, ou mesmo a quase todos os
ser correto, pelo menos de acordo com respeitos.
esta antiga opinião, com a qual con Também se ajusta à nossa concep- 30
cordam muitos filósofos. É também ção a dos que identificam a felicidade
correto pelo fato de identificarmos o com a virtude em geral ou com alguma
fim com certas ações e atividades, pois virtude particular, pois que à virtude
desse modo ele vem incluir-se entre os pertence a atividade virtuosa. Mas há,
bens da alma, e não entre os bens talvez, uma diferença não pequena em
exteriores. colocarmos o sumo bem na posse ou
20 Outra crença que se harmoniza com no uso, no estado de ânimo ou no ato.
a nossa concepção é a de que o homem Porque pode existir o estado de ânimo
feliz vive bem e age bem; pois defini sem produzir nenhum bom resultado, 1099a
mos praticamente a felicidade como como no homem que dorme ou que
uma espécie de boa vida e boa ação. permanece inativo; mas a atividade
As características que se costuma bus- virtuosa, não: essa deve necessaria
mente agir, e agir bem. E, assim como
' 2 Platão, Eutidemo, 279; Filebo, 48; Leis, 743.
nos Jogos Olímpicos não são os mais
(N. do T.) belos e os mais fortes que conquistam
1
58 ARISTÓTELES
a coroa, mas os que competem (pois é cidade de julgar é tal como a descreve
dentre estes que hão de surgir os vence- mos. A felicidade é, pois, a melhor, a
•s dores), também as coisas nobres e boas mais nobre e a mais aprazível coisa do
da vida só são alcançadas pelos que mundo, e esses atributos não se acham
agem retamente. separados como na inscrição de Delos:
i
Sua própria vida é aprazível por si
Das coisas a mais nobre é a mais justa,
mesma. Com efeito, o prazer é um es
e a melhor é a saúde;
tado da àlma, e para cada homem é
M as a mais doce é alcançar o que
agradável aquilo que ele ama: não só
amamos.
um cavalo ao amigo de cavalos e um
espetáculo ao amador de espetáculos, Com efeito, todos eles pertencem às
/o mas também os atos justos ao amante mais excelentes atividades# e estas, ou
da justiça e, em geral, os atos virtuosos então, uma delas — a melhor — , nós a 30
9
Por este motivo, também se per- alguma outra espécie de adestramento, io
gunta se a felicidade deve ser adquirida ou se ela nos é conferida por alguma
pela aprendizagem, pelo hábito ou por providência divina, ou ainda pelo
ÉTICA A N1CÔMACO — I 59
acaso. Ora, se alguma dádiva os ho m os 1 4 que ela é uma atividade vir
mens recebem dos deuses, é razoável tuosa da alma, de certa espécie. Dos
supor que a felicidade seja uma delas, demais bens, alguns devem necessaria
e, dentre todas as coisas humanas, a mente estar presentes como condições
que mais seguramente é umà dádiva prévias da felicidade, e oútros são
divina, por ser a melhor. Esta questão naturalmente cooperantes e úteis como
talvez caiba melhor em outro estudo; instrumentos. E isto, como é de ver,
no entanto, mesmo que a felicidade concorda com o que dissemos no prin
15 não seja dada pelos deuses, mas, ao cípio 1 5, isto é, que o objetivo da vida
contrário, venha como um resultado política é o melhor dos fins, e essa 30
da virtude e de alguma espécie de ciência dedica o melhor de seus esfor
aprendizagem ou adestramento, ela pa ços a fazer com que os cidadãos sejam
rece contar-se entre as coisas mais bons e -capazes de nobres ações.
divinas; pois aquilo que constitui o É natural, portanto, que não chame
prêmio e a finalidade da virtude se nos mos feliz nem ao boi, nem ao cavalo,
afigura o que dtí melhor existe no nem a qualquer outro animal, visto que
mundo, algo de divino e abençoado. nenhum deles pode participar de tal
Dentro desta concepção, também atividade. Pelo mesmo motivo, um me- nooa
deve ela ser partilhada por grande nú nino tampouco é feliz, pois que, devido
mero de pessoas, pois quem quer que à sua idade, ainda não é capaz de tais
não esteja mutilado em sua capacidade atos; e os meninos a quem chamamos
para a virtude pode conquistá-la me felizes estão simplesmente sendo con
diante uma certa espécie de estudo e gratulados por causa das esperanças
20 diligência. Mas, se é preferível ser feliz que neles depositamos. Porque, como
dessa maneira a sê-lo por acaso, é dissemos 1 6, há mister não só de uma
razoável que os fatos sejam assim, virtude completa mas também de uma
uma vez que tudo aquilo que depende vida completa, já que muitas mudan- 5
da ação natural é, por natureza, tão ças ocorrem na vida, e eventualidades
bom quanto poderia ser, e do mesmo de toda sorte: o mais próspero pode ser
modo o que depende da arte ou de. vítima de grandes infortúnios na velhi
qualquer causa racional, especialmente ce, como se conta de Príamo no Ciclo
se depende da melhor de todas as cau Troiano; e a quem experimentou tais
sas. Confiar ao acaso o que há de me vicissitudes e terminou miseravelmente
lhor e de mais nobre seria um arranjo ninguém chama feliz.
muito imperfeito.
25 A resposta à pergunta que estamos 14 1098 a 16. (N. do T.)
fazendo é também evidente pela defini ' 5 1094 a 27. (N. do T.)
ção da felicidade, porquando disse- 1 « ' 1098 a 16-18. (N. do T.)
10
io Então ninguém deverá ser conside Mesmo que esposemos essa doutrina,
rado feliz enquanto viver, e será preci dar-se-á o caso de que um homem seja
so ver o fim, como diz Sólon 1 7? feliz depois de morto? Ou não será
perfeitamente absurda tal idéia, sobre
' 7 Heródoto, I, 32. (N. do T.) tudo para nós, que dizemos ser a felici-
60 ARISTÓTELES
pode ser nobre e boa); e, se se voltarem E tampouco será ele versátil e mutá- >°
contra nós, poderão esmagar e mutilar vel, pois nem se deixará desviar facil
a felicidade, pois que, além de serem mente do seu venturoso estado por
30 acompanhados de dor, impedem mui quaisquer desventuras comuns, mas
tas atividades. Todavia, mesmo nesses somente por muitas e grandes; nem, se
a nobreza de um homem se deixa ver, sofreu muitas e grandes desventuras,
quando aceita com resignação muitos recuperará em breve tempo a sua felici
grandes infortúnios, não por insensibi dade. Se a recuperar, será num tempo
lidade à dor, mas por nobreza e gran longo e completo, em que houver
deza de alma. alcançado muitos e esplêndidos suces
Se as atividades são, como disse sos.
mos, o que dá caráter à vida, nenhum Quando diremos, então, que não é »
homem feliz pode tornar-se desgra feliz aquele que age conforme à virtude
çado, porquanto jamais praticará atos perfeita e está suficientemente provido
35 odiosos e vis. Com efeito, o homem de bens exteriores, não durante um
verdadeiramente bom e sábio suporta período qualquer, mas através de uma
iioi a com dignidade, pensamos nós, todas as vida completa? Ou devemos acrescen
contingências da vidá, e sempre tira o tar: “E que está destinado a viver
maior proveito das circunstâncias, assim e a morrer de modo consentâneo
como um general quefaz o melhor uso com a sua vida” ? Em verdade, o futuro
possível do exército sob o seu coman nos é impenetrável, enquanto a felici
do ou um bom sapateiro faz os melho dade, afirmamos nós, é um fim e algo 20
res calçados com o couro que lhe dão; de final a todos os respeitos. Sendo
5 e do mesmo modo com todos os outros assim, chamaremos felizes àqueles
artífices. E, se assim é, o homem feliz dentre os seres humanos vivos em que
nunca pode tomar-se desgraçado, essas condições se realizem ou estejam
muito embora não alcance a beatitude destinadas a realizar-se — mas ho
se tiver uma fortuna semelhante à de mens felizes. Sobre estas questões dis
Príamo. semos o suficiente.
I I
afete de nenhum modo a felicidade pa bém existem diferenças entre os infor
rece ser uma doutrina cínica e contrá túnios de nossos amigos tomados em
ria à opinião comum. Mas, visto serem conjunto, e não dá no mesmo que os
25 numerosos os acontecimentos que diversos sofrimentos sobrevenham aos
ocorrem, e admitirem toda espécie de vivos ou aos mortos (com efeito, a dife
diferenças, e já que alguns nos tocam rença aqui é muito maior, até, do que
mais de perto e outros menos, anto- entre atos terríveis e iníquos pressu
lha-se uma tarefa longa — mais do postos numa tragédia ou efetivamente
que longa, infinita — discutir cada um representados na cena), essa diferença
em detalhe. Talvez possamos conten também deve ser levada em conta —
tar-nos com um esboço geral. ou antes, talvez, o fato de haver dúvida 35
Se, pois, alguns infortúnios pessoais sobre se os mortos participam de qual
dé um homem têm certo peso e quer bem ou mal. Pois parece, de acor- 1101 b
62 ARISTÓTELES
do com tudo que acabamos de ponde nem roubar a beatitude aos venturosos.
rar, que ainda que algo de bom ou mau Por conseguinte, a boa ou má fortu- j
chegue até eles, devem ser influências na dos amigos parece ter certos efeitos
muito fracas e insignificantes, quer em sobre os mortos, mas efeitos de tal
si mesmas, quer para eles; ou, então, espécie e grau que não tom am desgra
serão tais em grau e em espécie que çados os felizes nem produzem qual
não possam tornar feliz quem não o é, quer outra alteração semelhante.
13
s Já que a felicidade é uma atividade A seu respeito são feitas algumas
da alma conforme à virtude perfeita, afirmações bastante exatas, mesmo nas
devemos considerar a natureza da vir discussões estranhas à nossa escola; e
tude: pois talvez possamos com delas devemos utilizar-nos agora. Por
preender melhor, por esse meio, a natu exemplo: que a alma tem uma parte
reza da felicidade. racional e outra parte privada de
O homem verdadeiramente político razão. Que elas sejam distintas como
também goza a reputação de haver as partes do corpo ou de qualquer 30
estudado a virtude acima de todas as coisa divisível, ou distintas por defini
10 coisas, pois que ele deseja fazer com ção mas inseparáveis por natureza,
que os seus concidadãos sejam bons e como o côncavo e o convexo na
obedientes às leis. Temos um exemplo circunferência de um círculo, não inte
disso nos legisladores dos cretenses e ressa à questão com que nos ocupamos
dos espartanos, e em quaisquer outros de momento.
dessa espécie que possa ter havido Do elemento irracional, uma subdi
alhures. E, se esta investigação per visão parece estar largamente difun
tence à ciência política, é evidente que dida e ser de natureza vegetativa. Refi-
ela estará de acordo com o nosso ro-me à que é causa da nutrição e do
plano inicial.’ crescimento; pois é essa espécie de
Mas a virtude que devemos estudar faculdade da alma que devemos atri- 1102 b
é, fora de qualquer dúvida, a virtude buir a todos os lactantes e aos próprios
is humana; porque humano era o bem e embriões, e que também está presente
humana a felicidade que buscávamos. nos seres adultos: com efeito, é mais
Por virtude humana entendemos não a razoável pensar assim do que atribuir-
do corpo, mas a da alma; e também à lhes uma faculdade diferente. Ora, a
felicidade chamamos uma atividade de excelência desta faculdade parece ser
alma. Mas, assim sendo, é óbvio que o comum a todas as espécies, e não 5
político deve saber de algum modo o especificamente humana1 Além disso,
que diz respeito à alma, exatamente tudo está a indicar que; ela funciona
como deve conhecer os olhos ou a principalmente durante o sono, ao
totalidade do corpo aquele que se pro- passo que é nesse estado que menos se
20 põe a curá-los; e com maior razão manifestam a bondade e a maldade.
ainda por ser a política mais estimada Daí vem o aforismo de que os felizes
e melhor do que a medicina. Mesmo não diferem dos infortunados durante
entre os médicos, os mais competentes metade de sua vida; o que é muito
dão-se grande trabalho para adquirir o natural, em vista de ser o sono uma
conhecimento do corpo. inatividade da alma em relação àquilo w
O político, pois, deve estudar a alma que nos leva a chamá-la de boa ou má;
tendo em vista os objetivos que men a menos, talvez, que uma pequena
cionamos e quanto baste para o enten parte do movimento dos sentidos pene
dimento das questões que estamos tre de algum modo na alma. tomando
25 discutindo, já que os nossos propósitos os sonhos do homem bom melhores
não parecem exigir uma investigação que os da gente comum. Mas basta
mais precisa, que seria, aliás, muito quanto a esse assunto. Deixemos de
trabalhosa. lado a faculdade nutritiva, uma vez
64 ARISTÓTELES
que, por natureza, ela não participa da Por conseguinte, o elemento irracio
excelência humana. nal também parece ser duplo. Com 30
Parece haver na alma ainda outro efeito, o elemento vegetativo não tem
elemento irracional, mas que, em certo nenhuma participação num princípio
sentido, participa da razão. Com efei racional, mas o apetitivo e, em geral, o
to, louvamos o princípio racional do elemento desiderativo participa dele
is homem continente e do incontinente, em certo sentido, na medida em que o
assim como a parte de sua alma que escuta e lhe obedece. É nesse sentido
possui tal princípio, porquanto ela os que falamos em “ atender às razões” do
impele na direção certa e para os pai e dos amigos, o que é bem diverso
melhores objetivos; mas, ao mesmo de pondèrar a razão de uma proprie
tempo, encontra-se neles um outro ele dade matemática.
mento naturalmente oposto ao princí Que, de certo modo, o elemento irra
pio racional, lutando contra este a cional é persuadido pela razão, tam
20 resistindo-lhe. Porque, exatamente bém estão a indicá-lo os conselhos que
como os membros paralisados se vol se costuma dar, assim como todas as no3a
tam para a esquerda quando procura censuras e exortações. E, se convém
mos movê-los para a direita, a mesma afirmar que também esse elemento
coisa sucede na alma: os impulsos dos possui um princípio racional, o que
incontinentes movem-se em direções possui tal princípio (como também o
contrárias. Com uma diferença, que carece dele) será de dupla nature
porém: enquanto, no corpo, vemos za: uma parte possuindo-o em si
aquilo que se desvia da direção certa, mesma e no sentido rigoroso do termo,
na alma não podemos vê-lo. e a outra com a tendência de obede-
Apesar disso, devemos admitir que cer-lhe como um filho obedece ao pai.
também na alma existe qualquer coisa A virtude também se divide em espé
contrária ao princípio racional, qual cies de acordo com esta diferença, por
quer coisa que lhe resiste e se opõe a quanto dizemos que algumas virtudes
25 ele. Em que sentido esse elemento se são intelectuais e outras morais; entre $
distingue dos outros, é uma questão as primeiras temos a sabedoria filosó
que não nos interessa. Nem sequer pa fica, a compreensão, a sabedoria práti
rece ele participar de um princípio ca; e entre as segundas, por exemplo, a
racional, como dissemos. Seja como liberalidade e a temperança. Com efei
for, no homem continente ele obedece to, ao falar do caráter de um homem
ao referido princípio; e é de presumir não dizemos que ele é sábio ou que pos
que no temperante e no bravo seja sui entendimento, mas que é calmo ou
mais obediente ainda, pois em tais ho temperante. No entanto, louvamos 10
mens ele fala, a respeito de todas as também o sábio, referindo-nos ao hábi
coisas, com a mesma voz que o princí to; e aos hábitos dignos de louvor cha
pio racional. mamos virtudes.
LIVRO II
67
Sendo, pois, de duas espécies a vir- usá-las, e não entramos na posse delas
is tude, intelectual e moral, a primeira, pèlo uso. Com as virtudes dá-se exata
por via de regra, gera-se. è cresce gra mente o oposto: adquirimo-las pelo
ças ao ensino — por isso requer expe exercício, como também sucede com
riência e tempo; enquanto a virtude as artes. Com efeito, as coisas que
moral é adquirida em resultado do há temos de aprender antes de poder
bito, donde ter-se formado o seu nome fazê-las, aprendemo-las fazendo; por
( ijfliKTj ) por uma pequena modifica exemplo, os homens tornam-se arquite
ção da palavra eôoç (hábito). Por tudo tos construindo e tocadores de lira tan
isso, evidencia-se também que nenhu gendo esse instrumento. D a mesma 1103b
ma das virtudes morais surge em nós forma, tornamo-nos justos praticando
por natureza; com efeito, nada do que atos justos, e assim com a temperança,
a bravura, etc.
20 existe naturalmente pode formar um
Isto é confirmado pelo que acontece
hábito contrário à sua natureza. Por
nos Estados: os legisladores tomam
exemplo, à pedra que por natureza se
bons os cidadãos por meio de hábitos
move para baixo não se pode imprimir
que lhes incutem. Esse é o propósito de s
o hábito de ir para cima, ainda que ten todo legislador, e quem não logra tal
temos adestrá-la jogando-a dez mil desiderato falha no desempenho da sua
vezes no ar; nem se pode habituar o missão. Nisso, precisamente, reside a
fogo a dirigir-se para baixo, nem qual diferença entre as boas e as más
quer coisa que por natureza se com constituições.
porte de certa maneira a comportar-se Ainda mais: é das mesmas causas e
de outra. pelos mesmos meios que se gera e se
Não é, pois, por natureza, nem destrói toda virtude, assim como tdda
contrariando a natureza que as virtu- arte: de tocar a lira surgem os bons e
25 des se geram em nós. Diga-se, antes, os maus músicos. Isso também vale
que somos adaptados por natureza a para os arquitetos e todos os demais;
recebê-las e nos tornamos perfeitos construindo bem, tomam-se bons ar- io
pelo hábito. quitetos; construindo mal, maus. Se
Por outro lado, de todas as cóisas não fosse assim não haveria necessi
que nos vêm por natureza, primeiro dade de mestres, e todos os homens te
adquirimos a potência e mais tarde riam nascido bons ou maus em seu
exteriorizamos os atos. Isso é evidente ofício.
no caso dos sentidos, pois não foi por Isso, pois, é o que também ocorre
30 ver ou ouvir freqüentemente que adqui com as virtudes: pelos atos que prati
rimos a visão e a audição, mas, pelo camos em nossas relações com os ho
contrário, nós as possuíamos antes de mens nos tomamos justos ou injustos;
68 ARISTÓTELES
2
Uma vez que a presente investiga atuantes devem considerar, em cada
ção não visa ao conhecimento teórico caso, o que é mais apropriado à oca
como as outras — porque não investi sião, como também sucede na arte da
gamos para saber o que é a virtude, navegação e na medicina.
mas a fim de nos tom arm os bons, do Mas, embora o nosso tratado seja
contrário o nosso estudo seria inútil desta natureza, devemos prestar tanto 10
3o — , devemos examinar agora a natu serviço quanto for possível. Comece
reza dos atos, isto é, como devemos mos, pois, por frisar que está na natu
praticá-los; pois que, como dissemos, reza dessas coisas o serem destruídas
eles determinam a natureza dos esta pela falta e pelo excesso, como se
dos de caráter que daí surgem. observa no referente à força e à saúde
Ora, que devemos agir de acordo (pois, a fim de obter alguma luz sobre
com a regra justa é um princípio coisas imperceptíveis, devemos recor
comumente aceito, que nós encampa rer à evidência das coisas sensíveis).
remos. Mais tarde19 havemos, de nos Tanto a deficiência como o excesso de u
ocupar dele, examinando o que seja a exercício destroem a força; e, da
regra justa e como se relaciona com as mesma forma, o alimento ou a bebida
no4a outras virtudes. Uma coisa, porém, que ultrapassem determinados limites,
deve ser assentada de antemão, e é tanto para mais como para menos, des-
. que todo esse tratamento de assuntos troem a saúde ao passo que, sendo
de conduta se fará em linhas gerais e tomados nas devidas proporções, a
não de maneira precisa. Desde o produzem, aumentam e preservam.
princípio2 0 fizemos ver que as explica O mesmo acontece com a tempe
ções que buscamos devem estar de rança, a coragem e as outras virtudes, 20
acordo com os respectivos assuntos. pois o homem que a tudo teme e de
Tal como se passa no que se refere à tudo foge, não fazendo frente a nada,
saúde, as questões de conduta e do que torna-se um covarde, e o homem que
é bom para nós não têm nenhuma fixi- não teme absolutamente nada, mas vai
^ dez. Sendo essa a natureza da explica ao encontro de todos os perigos, tor
ção geral, a dos casos particulares será na-se temerário; e, analogamente, o
ainda mais carente de exatidão, pois que se entrega a todos os prazeres e
não há arte ou preceito que os ábranja não se abstém de nenhum toma-se
a todos, mas as próprias pessoas intemperante, enquanto o que evita
I todos os prazeres, òomo fazem os rús
19 Livro VI, cap. 13. (N. do T.)
20 1 094 b 11-27. (N. do T.) ticos, se tom a de certo modo insensível.l
ÉTICA A NICÔMACO — II 69
3
Devemos tomar como sinais indica; efetuarem-se peíos contrários.
tivos do caráter o prazer ou a dor que Ainda mais: como dissemos não faz
acompanham os atos; porque o muito22, todo estado da alma tem uma
homem que se abstém dê prazeres cor natureza relativa e concernente à espé
porais e se deleita nessa própria abs cie de coisas que tendem a tom á-la me
tenção é temperante, enquanto o que se lhor ou pior; mas é em razão dos pra
aborrece com ela é intemperante; e zeres e dores que os homens se tomam
quem arrosta coisas terríveis e sente maus, isto é, buscando-os ou evitan-
prazer em fazê-lo, ou, pelo menos, não do-os — quer prazeres e dores que não
sofre com isso", é brayo, enquanto o . devem, na ocasião em que não devem
homem que sofre é covarde. Com efei ou da maneira pela qual não devem
to, a excelência m o ra l. relaciona-se buscar ou evitar, quer por errarem
com prazeres e dores; é por causa do numa das outras alternativas seme
prazer que praticamos más ações, e lhantes que se podem distinguir. Por
por causa da dor que nos abstemos de isso, muitos chegam a definir as virtu
ações nobres. Por isso deveríamos ser des como certos estados de impassivi-
educados de uma determinada maneira dade e repouso; não acertadamente,
desde a nossa juventude, como diz Pla porém, porque se exprimem de modo
tão21, a fim de nos deleitarmos e de absoluto, sem dizer “como se deve”,
sòfrermos com as coisas que nos “como não se deve”, “quando se deve
devem causar deleite ou sofrimento, ou não se deve” , e as outras condições
pois essa é a educação certa. que se podem acrescentar. Admitimos,
Por outro lado, se as virtudes dizem pois, que essa espécie de excelência
respeito a ações e paixões, é cada ação tende a fazer o que é melhor com res
e cada paixão é acompanhada de pra peito aos prazeres e às dores, e que o
zer ou de dor, também por este motivo vício faz o contrário.
a virtude se relacionará com prazeres e Os fatos seguintes também nos
dores. Outra coisa que está a indicá-lo podem mostrar que a virtude e o vício
é o fato de ser infligido o castigo por se relacionam com essas mesmas coi
esses meios; ora, o castigo é uma espé sas. Como existem três objetos de
cie de cura, e é da natureza das curas o eçcolha e três de rejeição — o nobre, o
21 Leis, 653 ss.; República, 401-402. (N. do T.) 22 1104 a 27 — 1104 b 3. (N. do T.)
f
70 ARISTÓTELES
6
Não basta, contudo, definir a virtu meio-termo, considerado em função do
de como uma disposição de caráter; objeto, porque excede e é excedido por
cumpre dizer que espécie de disposição uma quantidade igual; esse número é
éela. intermediário de acordo com uma pro
Observemos, pois, que toda virtude porção aritmética. Mas o meio-termo
ou excelência não só coloca em boa relativamente a nós não deve s»er consi
condição a coisa de que é a excelência derado assim: se dez librás é demais
como também faz com que a função para uma determinada pessoa comer e
dessa coisa seja bem desempenhada. duas libras é demasiadamente pouco,
Por exemplo, a excelência do olho não se segue daí que o treinador pres
tom a bons tanto o olho como a sua creverá seis libras; porque isso tam
função, pois é graças à excelência do bém é, talvez, demasiado para a pessoa
olho que vemos bem. Analogamente, a que deve comê-lo, ou demasiadamente
excelência de um cavalo tanto o tom a pouco — demasiadamente pouco para
bom em si mesmo como bom na corri Milo e demasiado para o atleta princi
da, em carregar o seu cavaleiro e em piante. O mesmo se aplica à corrida e
aguardar de pé firme o ataque do ini à luta. Assim, um mestre em qualquer
migo. Portanto, se isto vale para todos arte evita o excesso e a falta, buscando
os casos, a virtude do homem também o meio-termo e escolhendo-o — o
será a disposição de caráter que o meio-termo não no objeto, mas relati
torna bom e que o faz desempenhar vamente a nós.
bem a sua função. Se é assim, pois, que cada arte reali
Como isso vem a suceder, já o expli za bem o seu trabalho — tendo diante
camos atrás2 4, mas a seguinte conside dos olhos o meio-termo e julgando
ração da natureza específica da virtude suas obras por esse padrão; e por isso
lançará nova luz sobre o assunto. Em dizemos muitas vezes que às boas
tudo que é contínuo e divisível pode-se obras de arte não é possível tirar nem
tomar mais, menos ou uma quantidade acrescentar nada, subentendendo que o
igual, e isso quer em termos da própria excesso e a falta destroem a excelência
coisa, quer relativamente a nós; e o dessas obras, enquanto o meio-termo a
iguàl é um meio-termo entre o excesso preserva; e para este, como dissemos,
e a falta. Por meio-termo no objeto se voltam os artistas no seu trabalho
entendo aquilo que é eqüidistante de — , e se, ademais disso, a virtude é
ambos os extremos, e que é um só e o mais exata e melhor que qualquer arte,
mesmo para todos os homens; e por como também o é a natureza, segue-se
meio-termo relativamente a nós, o que que a virtude deve ter o atributo de
não é nem demasiado nem demasiada visar ao meio-termo. Refiro-me à virtu
mente pouco — e este não é um só e o de moral, pois é ela que diz respeito às
mesmo para todos. Por exemplo, se paixões e ações, nas quais existe exces
dez é demais e dois é pouco, seis é o so, carência e um meio-termo.
Por exemplo, tanto o medo como a
24 1104 a 11-27. (N. do T.) confiança, o apetite, a ira, a compai-
ÉTICA A NICÔM ACO — II 73
xão, e em geral o prazer e a dor, podem vícios, um por excesso e outro por
ser sentidos em excesso ou em grau falta; pois que, enquanto os vícios ou
insuficiente; e, num caso como no vão muito longe ou ficam aquém do
20 outro, isso é um mal. Mas senti-los na que é conveniente no tocante às ações 5
ocasião apropriada, com referência e paixões, a virtude encontra e escolhe
aos objetos apropriados, para com as o meio-termo. E assim, no que toca à
pessoas apropriadas, pelo motivo e da sua substância e à definição que lhe
maneira conveniente, nisso consistem estabelece a essência, a virtude é uma
o meio-termo e a excelência caracterís mediania; com referência ao sumo bem
ticos da virtude. e ao mais justo, é, porém, um extremo.
Analogamente, no que tange às Mas nem toda ação e paixão admite
ações também existe excesso, carência um meio-termo, pois algumas têm io
25 e um meio-termo. Ora, a virtude diz nomes que já de si mesmos implicam
respeito às paixões e açõés em que o maldade, como o despeito, o despudor,
excesso é uma forma de erro, assim a inveja, e, no campo das ações,, o
como a carência, ao passo que o adultério, o furto, o assassínio. Todas
meio-termo é uma forma de acerto essas coisas e outras semelhantes im
digna de louvor; e acertar e ser louva plicam, nos próprios nomes, que são
da são características da virtude. Em más em si mesmas, e não o seu excesso
conclusão, a virtude é uma espécie de ou deficiência. Nelas jamais pode
mediania, já que, como vimos, ela põe haver retidão, mas unicamente o erro.
a sua mira no meio-termo. E, no que se refere a essas coisas, tam- is
Por outro lado, é possível errar de pouco a bondade ou maldade depen
muitos modos (pois o mal pertence à dem de cometer adultério com a mu
3o classe do ilimitado e o bem à do limita lher apropriada, na ocasião e da
do, como supuseram os pitagóricos), maneira convenientes, mas fazer sim
mas só há um modo de acertar. Por plesmente qualquer delas é um mal.
isso, o primeiro é fácil e o segundo difí Igualmente absurdo seria buscar um
cil — fácil errar a mira, difícil atingir meio-termo, um excesso e uma falta
o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso em atos injustos, covardes ou libidino- 20
e a falta são característicos do vício, e sos; porque assim haveria um meio-
a mediania da virtude: termo do excesso e da carência, um
35 Pois os homens são bons de um modo excesso de excesso e uma carência de
só, e maus de muitos m odos2 5. carência. Mas, do mesmo modo que
A virtude é, pois, uma disposição de não existe excesso nem carência de
caráter relacionada com a escolha e temperança e de coragem, pois o que é
uo7a consistente numa mediania, isto é, a intermediário também é, noutro senti
mediania relativa a nós, a qual é deter do, um extremo, também das ações que
minada por um princípio racional pró mencionamos não há meio-termo, nem
prio do homem dotado de sabedoria excesso, nem falta, porque, de qualquer
prática. E é um meio-termo entre dois forma que sejam praticadas, são más.
Em suma, do excesso ou da falta não 25
2 5 Ver Diehl, Elégeia adéspota (Elegias Anôni há meio-termo, como também não há
mas), 16. excesso ou falta de meio-termo.
r
74 ARISTÓTELES
7
Não devemos, porém, contentar-nos ro, existem outras disposições: um
com esta exposição geral; é mister meio-termo, a magnificência (pois o
aplicá-la também aos fatos individuais. homem magnificente difere do liberal;
Com efeito, das proposições relativas à o primeiro lida com grandes quantias,
conduta, as universais são mais vazias, o segundo com quantias pequenas);
30 mas as particulares são mais verdadei um excesso, a vulgaridade e o mau
ras, porquanto a conduta versa sobre gosto; e uma deficiência, a mesqui
casos individuais e nossas proposições nhez; estas diferem das disposições 20
devem harmonizar-se com os fatos contrárias à liberalidade, e mais tarde
nesses casos. diremos em quê2 7.
Podemos tomá-los no nosso quadro Com respeito à honra e à desonra, o
geral. Em relação aos sentimentos de meio-termo é o justo orgulho, o exces
H07b medo e de confiança, a coragem é o so é conhecido como uma espécie de
meio-termo; dos que excedem, o que o “vaidade oca” e a deficiência como
faz no destemor não tem nome (muitas uma humildade indébita; e a mesma
disposições não o têm), enquanto o que relação que apontamos entre a liberali
excede na audácia é temerário, e o qjie dade e a magnificência, da qual a pri- 25
excede no medo e mostra falta de meira difere por lidar com pequenas
audácia é covarde. Com relação aos quantias, também se verifica aqui, pois
prazeres e dores — não todos, e menos há uma disposição que tem alguns
s no que tange às dores — o meio-termo pontos em comum com o justo orgu
é a temperança e o excesso é a intem- lho, mas ocupa-se com pequenas hon
perança. Pessoas deficientes no tocante ras, enquanto a este só interessam as
aos prazeres não são muito encontra- grandes. Porque é possível desejar a
diças, e por este motivo não receberam honra como se deve, mais do que se
nome; chamemo-las, porém, “ insensí deve e menos do que se deve, e o
veis”. homem que excede em tais desejos é
No que se refere a dar e receber chamado ambicioso, o que fica aquém
dinheiro o meio-termo é a liberalidade; é desambicioso, enquanto a pessoa
o excesso e a deficiência, respectiva intermediária não tem nome.
mente, prodigalidade e avareza. Nesta As disposições também não recebe- 30
io espécie de ações as pessoas excedem e ram nome, salvo a do ambicioso, que
são deficientes de maneiras opostas: o se chama ambição. Por isso, as pes
pródigo excede no gastar e é deficiente soas que se encontram nos extremos
no receber, enquanto o avaro excede arrogam-se a posição intermediária; e
no receber e é deficiente no gastar. (De nós mesmos às vezes chamamos as
momento, tudo que fazemos é dar um pessoas intermediárias de ambiciosas e
esboço ou sumário, e com isso nos outras vezes de desambiciosas, e ora
is contentamos; mais adiante essas dis louvamos a primeira disposição, ora a
posições serão descritas com mais segunda. A razão disso será dada mais nos a
exatidão2 6). adiante28; agora, porém, falemos
Ainda no que diz respeito ao dinhei-
27 1122 a 20-29; 1122 b 10-18. (N. do T.)
2 6 Ver Livro IV, cap. 1. (N. do T.) 2» 1108 b 11-26; 1125 b 14-18. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔM ACO — II 75
9
20 Está, pois, suficientemente esclare pende numa direção e outro em outra;
cido que a virtude moral é um meio- e isso se pode reconhecer pelo prazer e
termo, e em que sentido devemos pela dor que sentimos.
entender esta expressão; e que é um É preciso forçar-nos a ir na direção 5
meio-termo entre dois vícios, um dos do extremo contrário, porque chegare
quais envolve excesso e o outro defi mos ao estado intermediário afastan
ciência, e isso porque a sua natureza é do-nos o mais que pudermos do erro,
visar à mediania nas paixões e nos como procedem aqueles que procuram
atos. endireitar varas tortas.
Do que acabamos de dizer segue-se Ora, em todas as coisas o agradável
que não é fácil ser bom, pois em todas e o prazer é aquilo de que mais deve
as coisas é difícil encontrar o meio- mos defender-nos, pois não podemos
25 termo. Por exemplo, encontrar o meio julgá-lo com imparcialidade. A atitude
de um círculo não é para qualquer um, a tom ar em face do prazer é, portanto,
mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, a dos anciãos do povo para com Hele- 10
do mesmo modo, qualquer um pode na, e em todas as circunstâncias cum
encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro pre-nos dizer o mesmo que eles; por
— isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que, se não dermos ouvidos ao prazer,
que convém, na medida, na ocasião, correremos menos perigo de errar. Em
pelo motivo e da maneira que convém, resumo, é procedendo dessa forma que
eis o que não é para qualquer um e teremos mais probabilidades de acertar
tampouco fácil. Por isso a bondade com o meio-termo.
tanto é rara como nobre e louvável. Não há negar, porém, que isso seja
30 Por conseguinte, quem visa ao difícil, especialmente nos casos parti
meio-termo deve primeiro afastarrse do culares: pois quem poderá determinar 15
que lhe é mais contrário, como aconse com precisão de que modo, com quem,
lha Calipso: em resposta a que provocação e duran
Passa ao largo de tal ressaca e de tal te quanto tempo devemos encolerizar-
surriada30. Com efeito, dos extremos, nos? E às vezes louvamos os que ficam
um é mais errôneo e o outro menos; aquém da medida, qualificando-os de
portanto, como acertar no meio-termo calmos, e outras vezes louvamos os
é extraordinariamente difícil, devemos que se encolerizam, chamando-os de
contentar-nos com o menor dos males, varonis. Não se censura, contudo, o
35 como se costuma dizer; e a melhor homem que se desvia um pouco da
maneira de fazê-lo é a que descreve- bondade, quer no sentido do menos,
no9b mos. Mas devemos considerar as coi quer do mais; só merece reproche o
sas para as quais nós próprios somos homem cujo desvio é maior, pois esse 20
facilmente arrastados, porque um nunca passa despercebido.
Mas até que ponto um homem pode
30 Odisséia, X II, 2 19 ss. (N. do T.) desviar-se sem merecer censura? Isso
78 ARISTÓTELES
3o Visto que a virtude se relaciona com Tais atos, pois, são mistos, mas
paixões e ações, e é às paixões e ações assemelham-se mais a atos voluntários
voluntárias que se dispensa louvor e pela razão de serem escolhidos no
censura, enquanto as involuntárias me momento em que se fazem e pelo fato
recem perdão e às vezes piedade, é tal de ser a finalidade de uma ação rela
vez necessário a quem estuda a natu tiva às circunstâncias. Ambos esses
reza da virtude distinguir o voluntário termos, “voluntário” e “ involuntário”,
do involuntário. Tal distinção terá devem portanto ser usados com refe- /j
também utilidade para o legislador no rência ao momento da ação. Ora, o
que tange à distribuição de honras e homem age voluntariamente, pois nele
castigos. se encontra o princípio que move as
35 São, pois, consideradas involun partes apropriadas do corpo em tais
tárias aquelas coisas que ocorrem sob ações; e aquelas coisas cujo princípio
u ioa compulsão ou por ignorância; e é motor está em nós, em nós está igual
compulsório ou forçado aquilo cujo mente o fazê-las ou não as fazer.
princípio motor se encontra fora de Ações de tal espécie são, por conse
nós e para o qual em nada contribui a guinte, voluntárias, mas em abstrato
pessoa que age e que sente a paixão — talvez sejam involuntárias, pois que
por exemplo, se tal pessoa fosse levada ninguém as escolheria por si mesmas.
a alguma parte pelo vento ou por ho Por ações dessa espécie os homens
mens que dela se houvessem apodera são até louvados algumas vezes, quan
do. do suportam alguma coisa vil ou dolo
Mas, quanto às coisas que se prati- rosa em troca de grandes e nobres
5 cam para evitar maiores males ou com objetivos alcançados; no caso contrá
algum nobre propósito (por exemplo, rio são censurados, porque expor-se às
se um tirano ordenasse a alguém um maiores indignidades sem qualquer
ato vil e esse alguém, tendo os pais e os finalidade nobre ou por um objetivo
filhos em poder daquele, praticasse o insignificante é próprio de um homem
ato para salvá-los de serem mortos), é inferior.
discutível se tais atos são voluntários Algumas ações, em verdade, não
ou involuntários. Algo de semelhante merecem louvor, mas perdão, quando «
acontece quando se lançam cargas ao alguém faz o que não deve sem sofrer
io mar durante uma tempestade; porque, uma pressão superior às forças huma
em teoria, ninguém voluntariamente nas e que homem algum poderia supor
joga fora bens valiosos, mas quando tar. Mas há talvez atos que ninguém
assim o exige a segurança própria e da nos pode forçar a praticar e a que
tripulação de um navio, qualquer devemos preferir a morte entre os mais
homem sensato o fará. horríveis sofrimentos; e os motivos que
82 ARISTÓTELES
com que ele se relaciona. São justa tos mais importantes, que, na opinião
mente esses que merecem piedade e geral, são as circunstâncias e a finali
' m a perdão, porquanto a pessoa que ignora dade do ato. Além disso, a prática de
qualquer dessas coisas age involunta um ato considerado involuntário em
riamente. virtude de uma ignorância desta espé- 20
Talvez convenha determinar aqui a cie deve causar dor e trazer arrependi
natureza e o número de tais atos. Um mento.
homem pode ignorar quem ele próprio Como tudo o que se faz constrangido
é, o que está fazendo, sobre que coisas ou por ignorância é involuntário, o
ou pessoas está agindo, e às vezes tam- voluntário parece Ser aquilo cujo prin
s bém qual é o instrumento que usa, com cípio motor se encontra no próprio
que fim (pode pensar, por exemplo, que agente que tenha conhecimento das
está protegendo a segurança de al circunstâncias particulares do ato. É
guém) e de que maneira age (se com de presumir que os atos praticados sob
brandura ou com violência, por exem- o impulso da cólera ou do apetite não
plo). mereçam a qualificação de involuntá
Ora, nenhuma destas coisas um rios. Porque, em primeiro lugar, se fos- 25
homem pode ignorar, a não ser que es sem tais, nenhum dos outros animais
teja louco, e também é claro que não agiria voluntariamente, e as crianças
pode ignorar o agente, pois como é tam pouco; e, em segundo lugar, seria o
possível desconhecer a si mesmo? Mas caso de perguntar se o que se entende
é possível ignorar o que se está fazen por isso é que não praticamos volunta
do: costumamos dizer, com efeito, “ele riamente nenhum dos atos devidos ao
deixou escapar estas palavras sem que apetite ou à cólera, ou se praticamos
rer” , ou “não sabia que se tratava de voluntariamente os atos nobres e invo
um segredo”, como se expressou És- luntariamente os vis. Não é absurdo
10 quilo a respeito dos mistérios, ou como isso, quando a causa é uma só e a
aquele homem que disparou a cata mesma? Inegavelmente, seria estranho 30
pulta e desculpou-se alegando que só qualificar de involuntárias as coisas
queria mostrar o seu funcionamento e que devemos desejar; e é certo que
ela disparara por si. devemos encolerizar-nos diante de cer
Também é possível confundir nosso tas coisas e apetecer outras: por exem
filho com um inimigo, como ocorreu plo, a saúde e a instrução.
com Mérope, ou pensar que uma lança Por outro lado, o involuntário é
pontiaguda tem a ponta embotada, ou considerado doloroso, mas o que está
que uma pedra é pedra-pomes; e pode- de acordo com o apetite é agradável.
se dar a um homem uma poção para Ainda mais: qual a diferença, no que
curá-lo, e ao invés disso matá-lo; e tange à involuntariedade, entre os
também ferir um adversário quando se erros cometidos a frio e aqueles em que
» pretende apenas tocá-lo, como acon caímos sob a ação da cólera? Ambos
tece no pugilato. devem ser evitados, mas as paixões
A ignorância pode relacionar-se, irracionais não são consideradas
portanto, com qualquer dessas coisas menos humanas do que a razão; por
— isto é, qualquer das circunstâncias conseguinte, também as ações que pro
do ato; e do homem que ignorava uma cedem da cólera ou do apetite são
delas diz-se que agiu involuntaria ações do homem. Seria estranho, pois,
mente, sobretudo se ignorava os pon tratá-las como involuntárias.
84 ARISTÓTELES
2
Tendo sido delimitados desta forma nenhum efeito teriam os nossos esfor
5 o voluntário e o involuntário, devemos ços pessoais, como, por exemplo, que
passar agora ao exame da escolha, determinado ator ou atleta vença uma 25
que, para os espíritos discriminadores, competição; mas ninguém escolhe tais
parece estar mais estreitamente ligada coisas, e sim aquelas que julga pode
à virtude do que as ações. rem realizar-se graças aos seus esfor
A escolha, pois, parece ser voluntá ços.
ria, mas não se identifica com o volun Além disso, o desejo relaciona-se
tário. O segundo conceito tem muito com o fim e a escolha com os meios.
mais extensão. Com efeito, tanto as Por exemplo: desejamos gozar saúde,
crianças como os animais inferiores mas escolhemos os atos que nos tom a
participam da ação voluntária, porém rão sadios; e desejamos ser felizes, e
não da escolha; e, embora chamemos confessamos tal desejo, mas não pode
voluntários os atos praticados sob o mos dizer com acerto que “escolhe
impulso do momento, não dizemos que mos” ser felizes, pois, de um modo
foram escolhidos. geral, a escolha parece relacionar-se
io Os que a definem como sendo um com as coisas que estão em nosso
apetite, a cólera, um desejo ou uma poder.
espécie de opinião, não parecem ter Também por este motivo, não se 30
razão. Efetivamente, a escolha não é pode identificá-la com a opinião, uma
também comum às criaturas irracio vez que esta se relaciona com toda a
nais, mas a cólera e o apetite, sim. Por sorte de coisas, não menos as eternas e
outro lado, o incontinente age com as impossíveis do que as que estão em
apetite, porém não com escolha; o nosso poder; e, por outro lado, ela se
is continente, pelo contrário, age com distingue pela verdade ou falsidade, e
escolha, porém não com apetite. Ainda não pela bondade ou maldade, en
mais: há contrariedade entre apetite e quanto a escolha se caracteriza acima
escolha, mas entre apetite e apetite, de tudo por estas últimas.
não. E ainda: o apetite relaciona-se Ora, com a opinião em geral não há
com o agradável e o doloroso; a esco ninguém que a identifique. Nós, 1112a
lha, nem com um, nem com o outro. porém, acrescentamos que ela não é
Se assim acontece com o apetite, idêntica a nenhuma espécie de opinião.
tanto mais com a cólera; porquanto Com efeito, por escolher o que é bom
os atos inspirados por esta são consi ou mau somos homens de um determi
derados ainda menos objetos de esco nado caráter, mas não o somos por
lha do que os outros. sustentar esta ou aquela opinião. E
20 Nem tampouco o é o desejo, embora escolhemos obter ou evitar algo bom
pareça estar mais próximo dela. Com ou mau, mas temos opiniões sobre o
efeito, a escolha não pode visar a coi que seja uma coisa, para quem ela é
sas impossíveis, e quem declarasse boa e de que maneira é boa para ele; e
escolhê-las passaria por tolo e ridículo; não seria muito acertado dizer que
mas pode-se desejar o impossível — a “opinamos” obter ou evitar uma coisa 5
imortalidade, por exemplo. E o desejo qualquer.
pode relacionar-se com coisas em que Acresce que a escolha é louvada
ÉTICA A NICÔM ACO — III 85
pelo fato de relacionar-se com o objeto Não faz diferença que a opinião pre
conveniente, e não de relacionar-se ceda a escolha ou a acompanhe, pois
convenientemente com ele, ao passo não é isso que estamos examinando,
que a opinião é louvada quando tem mas sim se a escolha é idêntica a algu
uma relação verdadeira com o seu ma espécie de opinião.
objeto. E também escolhemos o que Que é ela, pois, e que espécie de
sabemos ser melhor, tanto quanto nos coisa é, se não se identifica com nenhu- ;5
é dado sabê-lo, mas opinamos sobre o ma daquelas que examinamos? Parece
que não sabemos exatamente; e não ser voluntária, mas nem tudo que é
são as mesmas pessoas que passam voluntário parece ser objeto de esco
por fazer as melhores escolhas e sus- lha. Será, pois, aquilo que decidimos
10 tentar as melhores opiniões, mas de numa análise anterior? De qualquer
algumas se diz que têm excelentes opi forma, a escolha envolve um princípio
niões, e no entanto padecem de um racional e o pensamento. Seu próprio
vício qualquer que as impede de esco nome parece sugerir que ela é aquilo
lher bem. que colocamos diante de outras coisas.
Mas delibera-se acerca de toda citas. Com efeito, nenhuma dessas coi
coisa, e toda coisa é um possível sas pode realizar-se pelos nossos esfor
assunto de deliberação, ou esta é ços.
impossível a respeito de algumas? Deliberamos sobre as coisas que 30
20 É de presumir que devamós chamar estão ao nosso alcance e podem ser
objeto de deliberação não àquilo que realizadas; e essas são, efetivamente,
um néscio ou um louco deliberaria, as que restam. Porque como causas
mas àquilo sobre que pode deliberar admitimos a natureza, a necessidade, o
um homem sensato. Ora, sobre coisas acaso, e também a razão e tudo que
eternas ninguém delibera: por exem depende do homem. Ora, cada classe
plo, sobre o universo material ou sobre de homem delibera sobre as coisas que
a incomensurabilidade da diagonal podem ser realizadas pelos seus esfor
com o lado do quadrado. E tampouco ços. E no caso das ciências exatas e
deliberamos sobre as coisas que envol auto-suficientes não há deliberação,
vi vem movimento, mas sempre aconte como, por exemplo, a respeito das le- 1112b
cem do mesmo modo, quer necessaria tras do alfabeto (pois não temos dúvi
mente, quer por natureza ou por das quanto à maneira de escrevê-las);
alguma outra causa, como os solstícios ao contrário as coisas que são realiza
e ò nascimento das estrelas; nem a res das pelos nossos esforços, mas nem
peito de coisas que acontecem ora de sempre do mesmo modo, essas sãQ
um modo, ora de outro, como as secas objetos de deliberação: os problemas
e as chuvas; nem sobre acontecimentos de tratamento médico e de comércio,
fortuitos, como a descoberta de um por exemplo. E deliberamos mais no 5
tesouro. E nem sequer deliberamos caso da navegação do que no da ginás
sobre todos os assuntos humanos: por tica, porque aquela está mais longe de
exemplo, nenhum espartano delibera ser exata. E nas outras coisas igual
sobre a melhor constituição para os mente; mais, porém, quanto às artes do
86 ARISTÓTELES
que quanto às ciências, pois que as pri O objeto da investigação são por
meiras comportam maiores dúvidas. vezes os instrumentos e por vezes o
Delibera-se a respeito das coisas que uso a dar-lhes; e analogamente nos ou- m
comumente acontecem de certo modo, tros casos: por vezes o meio, outras
mas cujo resultado é obscuro, e daque- vezes a maneira de usá-lo ou de
10 las em que este é indeterminado. E nas produzi-lo.
coisas de grande monta tomamos Parece, pois, como já ficou dito, que
conselheiros, por não termos confiança o homem é um princípio motor de
em nossa capacidade de decidir. ações; ora, a deliberação gira em tomo
Não deliberamos acerca de fins, mas de coisas a serem feitas pelo próprio
a respeito de meios. Um médico, por agente, e as ações têm em vista outra
exemplo, não delibera se há de curar coisa que não elas mesmas. Com efei
ou não, nem um orador se há de per to, o fim não pode ser objeto de delibe
suadir, nem um estadista se há de ração, mas apenas o meio. E tampouco
implantar a ordem pública, nem qual podem sê-lo os fatos particulares: por una
quer outro delibera a respeito de sua exemplo, se isto é pão e se foi assado
15 finalidade. Dão a finalidade por esta como devia, pois tais coisas são obje
belecida e consideram a maneira e os tos de percepção. Se quiséssemos deli
meios de alcançá-la; e, se parece poder berar sempre, teríamos de continuar
ser alcançada por vários meios, procu até o infinito.
ram o mais fácil e o mais eficaz; e se É a mesma coisa aquela sobre que
por um só, examinam como será alcan deliberamos e a que escolhemos, salvo
çada por ele, e por que outro meio estar o objeto de escolha já determi
alcançar esse primeiro, até chegar ao nado, já que aquilo por que nos decidi
primeiro princípio, que na ordem de mos em resultado da deliberação é o
descobrimento é o último.
objeto da escolha. Efetivamente, todos j
2o Com efeito, a pessoa que delibera
cessam de indagar como devem agir
parece investigar e analisar da maneira
depois que fizeram voltar o princípio
que descrevemos, como se analisasse
motor a si mesmos e à parte dirigente
uma construção geométrica (nem toda
investigação é deliberação: vejam-se, de si mesmos, pois é essa que escolhe.
por exemplo, as investigações matemá Isto se pode ver também nas antigas
ticas; mas toda deliberação é investiga constituições tais como no-las mostra
ção); e o que vem em último lugar na Homero, onde os reis anunciavam ao
ordem da análise parece ser primeiro povo o que haviam escolhido.
25 na òrdem da geração. E se chegamos a Sendo, pois, o objeto de escolha w
uma impossibilidade, renunciamos à uma coisa que está ao nosso alcance e
busca: por exemplo, se precisamos de que é desejada após deliberação, a
dinheiro e não há maneira de conse- escolha é um desejo deliberado de coi
gui-lo; mas se uma coisa parece possí- • sas que estão ao nosso alcance; por
vel, tratamos de fazê-la. Por coisas que, após decidir em resultado de uma
“possíveis” entendo aquelas que se deliberação, desejamos de acordo com
podem realizar pelos nossos esforços; o que deliberamos.
e, em certo sentido, isto inclui as que Consideremos, pois, como descrita
podem ser postas em prática pelos em linhas gerais a escolha, estabele
esforços de nossos amigos, pois que o cida a natureza dos seus objetos e o
■princípio motor está em nós mesmos. fato de que ela diz respeito aos meios.
ÉTICA A NICÔM ACO — III 87
Já mostramos que o desejo tem por desejo para o homem bom, e que qual
objeto o fim; alguns pensam que esse quer coisa pode sê-lo para o homem
fim é o bem, e outros que é o bem apa mau, assim como, no caso dos corpos,
rente. Ora, os primeiros terão de admi as coisas que em verdade são saudá
tir, como conseqüência de sua premis veis o são para os corpos em boas
sa, que a coisa desejada pelo homem condições, enquanto para os corpos
que não escolhe bem não é realmente enfermos outras coisas é que são
um objeto de desejo (porque, se o saudáveis, ou amargas, doces, quentes,
fosse, deveria ser boa também; mas no pesadas, e assim por diante? Com efei
caso que consideramos é má). Por to, o homem bom aquilata toda classe
outro lado, os que afirmam ser objeto de coisas com acerto, e em cada uma
de desejo o bem aparente devem admi delas a verdade lhe aparece com clare
tir que não existe objeto natural de za; mas cada disposição de caráter tem
desejo, mas apenas o que parece bom a suas idéias próprias sobre o nobre e o
cada homem é desejado por ele. Ora, agradável, e a maior diferença entre o
coisas diferentes e até contrárias pare homem bom e os outros consiste, tal
cem boas a diferentes pessoas. vez, em perceber a verdade em, cada
Se estas conseqüências desagradam, classe de coisas, como quem é delas a
deveremos dizer que em absoluto e em norma e a medida. Na maioria dos
verdade o bem é o objeto de desejo, casos o engano deve-se ao prazer, que
mas para cada pessoa em particular o parece bom sem realmente sê-lo; e por
é o bem aparente; que aquilo que em isso escolhemos o agradável como um
verdade é objeto de desejo é objeto de bem e evitamos a dor como um mal.
Sendo, pois, o fim aquilo que deseja do isso é vil. Logo, depende de nós pra
mos, e o meio aquilo acerca do qual ticar atos nobres ou vis, e se é isso que
deliberamos e que escolhemos, as se entende por ser bom ou mau, então
ações relativas ao meio devem concor depende de nós sermos virtuosos ou
dar com a escolha e ser voluntárias. viciosos.
Ora, o exercício da virtude diz respeito O aforismo “ninguém é voluntaria
aos meios. Por conseguinte, a virtude mente mau, nem involuntariamente
também está em nosso poder, do feliz” parece ser em parte falso e em
mesmo modo que o vício, pois quando parte verdadeiro, porque ninguém é
depende de nós o agir, também depen involuntariamente feliz, mas a malda
de o não agir, e vice-versa; de de é voluntária. Do contrário, teremos
modo que quando temos o poder de de contestar o que se acabou de dizer,
agir quando isso é nobre, também e negar que o homem seja um princípio
temos o de não agir quando é vil; e se motor e pai de suas ações como o é de
está em nosso poder o não agir quando seus filhos. Mas, se esses fatos são evi
isso é nobre, também está o agir quan- dentes e não podemos referir nossas
88 ARISTÓTELES
um sexto sentido, por assim dizer, que ações e as disposições de caráter não
nos permita julgar com acerto e esco são voluntárias do mesmo modo, por
lher o que é verdadeiramente bom; e que de princípio a fim somos senhores
realmente bem dotado pela natureza é de nossos atos se conhecemos as
quem o possui. Com efeito, isso é o tcircunstâncias;
•
mas, embora contro-
que há de mais nobre, e não podemos lemos o despontar de nossas disposi- ms.
adquiri-lo nem aprendê-lo de outrem, ções de caráter, o desenvolvimento
mas o possuímos sempre tal como nos gradual não é óbvio, como não o é tam
foi dado ao nascer; e ser bem e nobre- bém na doença; no entanto, como esta
io mente dotado dessa qualidade é a per va em nosso poder agir ou não agir de
feição e a cúpula de ouro dos dotes tal maneira, as disposições são volun
naturais. tárias.
90 ARISTÓTELES
6
Que a coragem é um meio-termo em gem quando está para ser açoitado.
relação aos sentimentos de medo e Com que espécie de coisas terríveis, 25
confiança já foi suficientemente escla então, se relaciona a bravura?
recido3 1; e, evidentemente, as coisas Seguramente, com as maiores, pois
que tememos são coisas terríveis, que ninguém como o homem bravo é capaz
qualificamos sem reservas de males; e de fazer frente ao que aterroriza o
por este motivo alguns chegam a defi- comum das pessoas. Ora, a morte é a
io nir o medo como uma expectação do mais terrível de todas as coisas, pois
mal. ela é o fim, e acredita-se que para os
Ora, nós tememos todos os males, mortos já não há nada de bom ou mau.
como o desprezo, a pobreza, a doença, Mas a bravura não parece relacionar-
a falta de amigos, a morte; mas não se se sequer com a morte em todas as
pensa que a bravura se relacione com circunstâncias — como no mar ou nas
todos eles, pois que temer certas coisas doenças, por exemplo. Em que circuns
é até justo e nobre, e vil o não se arre- tâncias, então?
cear delas. O desprezo, por exemplo: Sem a menor dúvida, nas mais 30
quem o teme é pessoa boa e recatada, e nobres. Ora, essas mortes são as que
desavergonhada quem não o teme. No ocorrem em batalha, pois é em face
entanto, alguns chamam bravo a um dos maiores e mais nobres perigos que
is tal homem, por uma transferência do se verificam. E por isso mesmo são
sentido da palavra, visto ter ele algo honradas nas cidades-Estados e nas
em comum com o homem bravo, que cortes dos monarcas. Propriamente
também é destemido. falando, pois, é chamado bravo quem
Quanto à pobreza e à doença, talvez se mostra destemido em face de uma
não devêssemos temê-las, nem, em morte honrosa e de todas as emergên
geral, às coisas que não procedem do cias que envolvem o perigo de morte; e
vício e não dependem de nós próprios. as emergências da guerra são, em
Mas tampouco o homem que não as sumo grau, desta espécie. is
receia é bravo. No entanto, aplica Mas também no mar e na doença o
mos-lhe o termo, também em virtude homem bravo é destemido, se bem que msb
20 de uma semelhança, pois alguns que não do mesmo modo que o mari
são covardes diante dos perigos da nheiro; porque ele renunciou à espe
guerra mostram-se liberais e corajosos rança de salvar-se e detesta a idéia
em face da perda de dinheiro. dessa espécie de morte, enquanto aque
Tampouco é covarde o homem que les se mantêm esperançosos devido à
teme os insultos à sua esposa e a seus sua experiência. Por outro lado, somos 5
filhos, a inveja ou qualquer coisa dessa corajosos em situações que nos permi
espécie; nem é bravo se mostra cora- tem mostrar o nosso valor ou em que a
morte seja nobre; mas nas formas de
morte que acabamos de apontar ne
31 1107 a 33 — 1107 b 4. (N. do T.) nhuma dessas condições se realiza.
ÉTICA A NICÔM ACO — III 91
As coisas terríveis não são as mes cede no destemor não tem nome (já «
mas para todos os homens. Dizemos, dissemos anteriormente que muitas
contudo, que algumas o são além das disposições de caráter não o têm32),
forças humanas. Essas, pois, são terrí mas seria uma espécie de louco ou de
veis para todos — ao menos para todo homem insensível se nada temesse,
homem no seu juízo normal; mas as nem os terremotos nem as ondas,
que não ultrapassam as forças huma- como dizem que são os celtas; en
10 nas diferem em magnitude e grau, quanto o homem que excede na con
assim como as coisas que inspiram fiança com respeito ao que é realmente
confiança. terrível é temerário. Considera-se, por
Ora, os bravos são tão indômitos isso, o homem temerário como um 30
quanto pode sê-lo um homem. Por jactanciòso e um mero simulador de
isso, embora temam também as coisas coragem. Seja como for, o que o bravo
que não estão acima das forças huma é com relação às coisas terríveis, o
nas, enfrentam-nas como devem e temerário deseja parecer; portanto,
como prescreve a regra, a bem da imita-o nas situações em que lhe é pos
sível fazê-lo. Daí também o serem, a
honra; pois essa é a finalidade da virtu maioria deles, uma mistura de temeri
de. Mas é possível temê-las mais ou dade e covardia; porque, embora mos
menos, e também temer coisas que não trem arrojo em tais situações, não se
15 são terríveis como se o fossem. Dos
mantêm firmes contra o que é real
erros que se podem cometer, um .con mente terrível.
siste em temer o que não se-deve, outro O homem que excede no medo é um
em temer como não se deve, outro
covarde, porque teme tanto o que deve js
quando não se deve, e assim por dian como o que não deve, e todas as carac
te; e da mesma forma quanto às coisas terísticas do mesmo gênero lhe são
que inspiram confiança. Por conse aplicáveis. Falta-lhe igualmente con- mis
guinte, o homem que enfrenta e que fiança, mas faz-se notar principal
teme as coisas que deve e pelo devido mente pelo excesso de medo em situa
motivo, da maneira e na ocasião devi ções difíceis. O covarde é, por isso, um
das, e que mostra confiança nas condi homem dado ao desespero, pois teme
ções correspondentes, é bravo; porque todas as coisas. O bravo, por outro
o homem bravo sente e age conforme lado, tem a disposição contrária, pois a
20 os méritos do caso e do modo que a confiança é a marca característica de
regra prescreve. um natural esperançoso.
Õra, o fim de toda atividade é a Em suma, a covardia, a temeridade
conformidade com a correspondente e a bravura relacionam-se com os mes
disposição de caráter. Ora, a coragem mos objetos, mas revelam disposições 5
é nobre; portanto, seu fim também é diferentes para com eles, pois as duas
nobre, pois cada coisa é definida pelo primeiras vão ao excesso ou ficam
seu fim. Donde se conclui que é com aquém da medida, ao passo que a ter
uma finalidade nobre que o homem ceira mantém-se na posição mediana,
bravo age e suporta conforme lhe que é a posição correta. Os temerários
aponta a coragem.
Dos que vão aos excessos, o que ex 32 1107 b 2; cf. 1107 b 29, 1108 a 5. (N. do T.)
92 ARISTÓTELES
atrás42, enquanto estes o são porque regra, mas os atos imprevistos devem
supõem serem os mais fortes e incapa estar de acordo com a disposição de
zes de sofrer o que quer que seja. (Os caráter do agente.
bêbedos também se portam dessa ma- (5) As pessoas que ignoram o peri
15 neira: tornam-se otimistas.) Quando, go também parecem bravas, e não dis
todavia, as suas aventuras terminam tam muito das de temperamento san
mal, rodam sobre os calcanhares; mas guíneo e otimista, mas são inferiores
a marca distintiva do homem bravo por não terem confiança em si mes
era enfrentar as coisas que são e pare mas, como as segundas. Também por
cem terríveis, porque é nobre fazê-lo e isso, os otimistas se mantêm firmes
vergonhoso não o fazer. Também por durante algum tempo, mas os que 25
isso, considera-se como marca distin foram enganados sobre a realidade dos
tiva de um homem mais bravo o mos- fatos fogem tão logo sabem ou suspei
trar-se destemido e imperturbável nos tam que estes são diferentes do que
alarmas repentinos do que nos perigos supunham, como sucedeu com os argi-
20 previstos; pois isso deve proceder mais vos quando travaram combate com os
de uma disposição de caráter e menos espartanos, tomando-os por siciônios.
da preparação: os atos previstos E com isto fica completada a descri
podem ser escolhidos por cálculo e ção do caráter tanto dos homens bra
vos como dos que são considerados
42 1115 b 11-24. (N. do T.) bravos.
9
Se bem que a coragem se relacione tâncias do caso, como também sucede
com sentimentos de medo e de confian nas competições atléticas; porquanto é
ça, não se relaciona igualmente com agradável o fim visado pelos pugilis
ambos, mas em grau maior com as coi- tas, isto é, a coroa e as honras; mas os
30 sas que inspiram medo. Com efeito, golpes que recebem são dolorosos e
aquele que permanece imperturbável e excruciantes para o corpo, como tam
se porta como deve em face dessas coi
bém o são os seus esforços; e, como os 5
sas é mais genuinamente bravo do que
golpes e os esforços são muitos, o fim,
o homem que faz o mesmo diante das
que é um só e pequeno, parece nada ter
coisas que inspiram confiança.
de agradável. E assim, se o mesmo se
Como dissemos43, pois, é por fazer
frente ao que é doloroso que os ho dá com a coragem, a morte e os feri
mens são chamados bravos. Portanto, mentos serão dolorosos para o homem
também a coragem envolve dor e é jus bravo e contrários à sua vontade, mas
tamente louvada por isso, pois mais ele os enfrentará porque é nobre fazê-
difícil é enfrentar o que é doloroso do lo e vil deixar de fazê-lo. E quanto 10
que abster-se do que é agradável. mais virtuoso e feliz for, mais lhe
35 Sem embargo, a finalidade que a doerá o pensamento da morte; pois é
coragem se propõe dir-se-ia que é agra- para tal homem que mais valor tem a
i7b dável, mas é encoberta pelas circuns- vida,7 e ele conscientemente *renuncia
ao maior dos bens, o que é doloroso.
1115b 7-13. (N. do T.) Mas nem por isso deixa de ser bravo, e
ÉTICA A NICÔMACO — III 95
talvez o seja ainda mais por escolher, a os que são menos bravos mas não pos
esse custo, a prática de atos nobres na suem outros bens; pois esses estão
guerra. prontos para enfrentar o perigo e ven
is Nem de todas as virtudes, portanto, dem suas vidas por uma ninharia.
o exercício é agradável, salvo na medi Quanto à coragem dissemos o sufi- 20
10
Depois da coragem, falemos da rantes; e contudo, parece que é possí- 5
temperança; pois estas parecem ser as vel deleitar-se com essas coisas tanto
virtudes das partes irracionais. Disse- como se deve quanto em excesso ou
25 m os44 que a temperança é um meio- em grau insuficiente.
termo em relação aos prazeres (porque O mesmo se pode dizer dos objetos
diz menos respeito às dores, è não do da audição: ninguém chama de intem
mesmo modo); e a intemperança tam perantes os que se deleitam em dema
bém se manifesta na mesma esfera. sia com a música ou as representações
Determinemos, pois, com que espécie teatrais, nem de temperantes os que o
de prazeres se relacionam ambas. fazem na medida justa.
Podemos admitir a distinção entre Também não aplicamos esses nomes
prazeres corporais e prazeres da alma aos que se deleitam com odores, a não 10
tais como o amor à honra e.o amor ao ser incidentalmente: não chamamos de
estudo; pois quem ama uma dessas intemperantes os que se deliciam com
30 coisas deleita-se naquilo que ama, não o cheiro de maçãs, de rosas ou de
sendo o corpo de nenhum modo afeta incenso, mas sim os que sentem prazer
do, e sim a mente; mas com relação a em cheirar molhos e acepipes: com
tais prazeres os homens não são cha efeito, os intemperantes deleitam-se
mados temperantes nem intempe- com essas coisas porque lhes lembram
rantes. E tampouco em relação aos ou os objetos de seu apetite. E até a outras
tros prazeres que não sejam do corpo: pessoas, quando têm fome, causa pra
os que gostam de ouvir e de contar his zer o cheiro de comida; mas compra- 15
tórias e passam o dia ocupados com zer-se nessa espécie de coisas é carac
35 tudo que acontece são chamados me- terístico do homem intemperante, pois
xeriqueiros e não intemperantes; e da elas são objetos de apetite para ele.
mesma forma os que sofrem com a Fora do homem, não há nos outros
perda de dinheiro ou de amigos. animais nenhum prazer relacionado
8a A temperança deve relacionar-se com esses sentidos, a não ser inciden
com os prazeres corporais; não, talmente. Porquanto os cães não se
porém, com todos, pois os que se delei deleitam com o cheiro das lebres, mas
tam com objetos da visão tais como as sim em comê-las; acontece, apenas, 20
cores, as formas e a pintura não são que o faro os avisou da presença de
chamados temperantes nem intempe- uma lebre. Nem o leão se deleita em
ouvir o mugido do boi, mas tão-so-
44 1107 b 4-6. (N. do T.) mente em comê-lo; percebeu, pelo
96 ARISTÓTELES
11
Dos apetites, alguns parecem co jeto tomado ao acaso. Ora, nos apeti- «
muns e outros, peculiares aos indiví tes naturais poucos se enganam, e
duos e adquiridos. Por exemplo: o ape- numa só direção, a do excesso; e
10 tite do alimento é natural, já que todos comer ou beber tudo que se tenha à
os que o sentem anseiam comer e mão, até a saciedade, é exceder a medi
beber, e às vezes ambas as coisas; e da natural, pois que o apetite natural
também pelo amor (como diz Home se limita a preencher o que nos falta.
r o 4 6), quando são jovens e vigorosos; Por isso tais pessoas são chamadas
mas nem todos anseiam por esta ou “deuses do estômago” , dando a enten
aquela espécie de alimento ou de amor, der que enchem o estômago além da 20
nem pelas mesmas coisas. medida. E só pessoas de caráter intei
Por isso, tal anseio parece ser uma ramente abjeto se tornam assim.
questão inteiramente pessoal. No en Mas no que se refere aos prazeres
tanto, é muito natural que assim seja, peculiares a indivíduos, muitas pessoas
pois diferentes coisas agradam a dife erram, e de muitas maneiras. Pois,
rentes indivíduos, e algumas são mais enquanto as pessoas que “gostam disto
agradáveis a todos do que qualquer ob- ou daquilo” são assim chamadas ou
porque se deleitam nas coisas que não
16 Ilíada, XXIV, 130. (N. do T.) devem, ou mais do que o comum dos
ÉTICA A NICÔMACO — III 97
12
A intemperança assemelha-se mais: destrói a natureza da pessoa que a
a uma disposição voluntária do que ai sente, ao passo que oprazer não tem
covardia, pois a primeira é atuada peloi tais efeitos. Logo, a intemperança é
prazer e a segunda pela dor; ora, a umi mais voluntária.
nós procuramos e à outra evitamos;; E por isso mesmo é ela mais passí
acresce ainda que a dor transtorna e vel de censura, pois é mais fácil acos-
98 ARISTÓTELES
2
Talvez convenha discutir agora a caráter é determinada pelas suas ativi
magnificência, que também parece ser dades e pelos seus objetos. Ora, os gas
uma virtude relacionada com a rique- tos do homem magnificente são vulto
20 za. Não se estende, porém, como a sos e apropriados. Por conseguinte,
liberalidade, a todas as ações que têm tais serão também os seus resultados; e
que ver com a riqueza, mas apenas às assim, haverá um grande dispêndio em
que envolvem gasto; e nestas, ultra perfeita consonância com o seu resul
passa a liberalidade em escala. Porque, tado. Donde se segue que o resultado 5
como o próprio nome sugere, é um deve corresponder ao dispêndio e este
gasto apropriado que envolve grandes deve ser digno do resultado, ou mesmo
quantias. Mas a escala é relativa, pois excedê-lo.
a despesa de quem guarnece uma trir- O homem magnificente, além disso,
w reme não se compara à de quem chefia gastará dinheiro tendo em mira a
uma embaixada sagrada. A magnifi honra, pois essa finalidade é comum a
cência, portanto, deve ser adequada todas as virtudes. Mais ainda: ele o
tanto ao agente como ao objeto e às fará com prazer e com largueza, visto
circunstâncias. O homem que em coi que os cálculos precisos são próprios
sas pequenas e medianas gasta de dos avarentos. E considerará os meios
acordo com os méritos do caso não é de tom ar o resultado o mais belo pos
chamado de magnificente (por exem sível e o mais apropriado ao seu obje
plo, aquele que pode dizer “muitas to, ao invés de pensar nos custos e nos
foram minhas dádivas ao peregri meios mais baratos de obtê-lo. É io
n o ” 49), mas unicamente aquele que o necessário, pois, que o homem magni
faz em grandes coisas. Porquanto o ficente seja também liberal. Com efei
magnificente é liberal, mas o liberal to, este também gasta o que deve e
30 nem sempre é magnificente. como deve, e é em tais assuntos que se
A deficiência desta disposição de manifesta a grandeza implicada pelo
caráter é chamada mesquinhez e o nome “magnificente”, já que a liberali
excesso vulgaridade, mau gosto, etc., o dade diz respeito a essas coisas; e, com
qual não se excede nas quantias des despesa igual, ele produzirá uma obra
pendidas com os objetos que convêm, de arte mais magnificente. Porquanto
mas pelos gastos ostentosos em cir uma posse e uma obra de arte não têm
cunstâncias indébitas e de maneira a mesma excelência. A posse mais /j
indébita. Mais adiante falaremos des valiosa é aquela que vale mais, como
ses vícios 50. por exemplo o ouro, mas a mais valio
O homem magnificente assemelha- sa obra de arte é a que é grande e bela
35 se a um artista, pois percebe o que é (pois a contemplação de uma tal obra
apropriado e sabe gastar grandes inspira admiração, e o mesmo faz a
1122b quantias com bom gosto. No princí magnificência); e uma obra possui
p io 51 dissemos que uma disposição de uma espécie de excelência — isto é,
uma magnificência — que envolve
* 9 Odisséia, XVII, 420. (N. do T.) grandeza.
1123 a 19-33. (N. do T.) A magnificência é um atributo dos
5' Cf. 1103 b 21-23, 1104 a 27-29. (N. do T.) gastos que chamamos honrosos, como
106 ARISTÓTELES
\
ÉTICA A NICÔMACO — IV 107
3
Pelo seu nome, a magnanimidade tos são grandes parece ser o mais inde-
parece relacionar-se com grandes coi bitamente humilde; pois que faria ele
sas. Que espécie de grandes coisas? Eis se merecesse menos?
3s a primeira pergunta que cumpre res O magnânimo, portanto, é um extre
ponder. mo com respeito à grandeza de suas
Não faz diferença que consideremos pretensões, mas um meio-termo no que
a disposição de caráter ou o homem tange à justeza das mesmas; porque se
1123b que a exibe. Ora, diz-se que é magnâ arroga o que corresponde aos seus mé
nimo o homem que com razão se ritos, enquanto os outros excedem ou
considera digno de grandes coisas; ficam aquém da medida.
pois aquele que se arroga uma digni Se, pois, ele merece e pretende gran- is
dade a que não faz jus é um tolo, e ne des coisas, e essas acima de todas as
nhum homem virtuoso é tolo ou ridícu outras, há de ambicionar uma coisa em
lo. O magnânimo, pois, é o homem que particular. O mérito é relativo aos bens
5 acabamos de definir. Com efeito, aque exteriores; e o maior destes, acredi
le que de pouco é merecedor e assim se tamos nós, é aquele que prestamos aos
considera é temperante e não magnâ deuses e que as pessoas de posição
nimo; a magnanimidade implica gran mais ambicionam, e que é o prêmio
deza do mesmo modo que a beleza conferido às mais nobres ações. Refi- 20
implica uma boa estatura, e as pessoas ro-me à honra, que é, por certo, o
pequenas podem ser bonitas e bem maior de todos os bens exteriores.
proporcionadas, porém não belas. Por Honras e desonras, por conseguinte,
outro lado, o que se julga digno de são os objetos com respeito aos quais o
grandes coisas sem possuir tais quali homem magnânimo é tal como deve
dades é vaidoso, se bem que nem todos ser. E, mesmo deixando de lado o
os que se consideram mais merece nosso argumento, é a honra que os
dores do que realmente são possam ser magnânimos parecem ter em mente;
chamados de vaidosos. pois é ela que se arrogam acima de
O homem que se considera menos tudo, mas de acordo com os seus méri
10 merecedor do que realmente é, é inde tos. O homem indevidamente humilde
vidamente humilde, quer os seus méri revela-se deficiente não só em con- 25
tos sejam grandes ou moderados, quer fronto com os seus méritos próprios,
sejam pequenos, mas suas pretensões mas também com as pretensões do
ainda menores. E o homem cujos méri- magnânimo. O vaidoso excede em
108 ARISTÓTELES
relação aos seus méritos próprios, mas Em primeiro lugar, pois, como dis
não excede as pretensões do magnâ semos 5 5, o homem magnânimo se inte
nimo. ressa pelas honras. Apesar disso, con-
Ora, o magnânimo, visto merecer duzir-se-á com moderação no que
mais do que os outros, deve ser bom no respeita ao poder, à riqueza e a toda
mais alto grau; pois o homem melhor boa ou má fortuna que lhe advenha, e
sempre merece mais, e o melhor de não exultará excessivamente com a
todos é o que mais merece. Logo, o boa fortuna nem se abaterá com a má.
homem verdadeiramente magnânimo Com efeito, nem para com a própria
deve ser bom. Além disso, a grandeza honra ele se conduz como se fosse uma
em todas as virtudes deve ser caracte coisa extraordinária. O poder e a
rística do homem magnânimo. E nada riqueza são desejáveis a bem da honra
haveria mais indecoroso para o (pelo menos, os que os possuem dese
homem altivo do que fugir ao perigo, jam servir-se deles para obtê-la); e,
abanando as mãos, ou fazer injustiça a para os que têm a própria honra em
um outro; pois com que fim praticaria pouca conta, eles também devem ser
atos vergonhosos aquele para quem coisa de somenos. Por isso os homens
nada é grande? Se o considerarmos magnânimos são considerados desde
ponto por ponto, veremos o perfeito nhosos.
absurdo de um homem magnânimo É opinião comum que os bens de
que não seja bom. E tampouco merece fortuna também contribuem para a
ria ele ser honrado se fosse mau; pois a magnanimidade. Com efeito, os ho
honra é o prêmio da virtude, e só é ren mens bem-nascidos são considerados
dida aos bons. merecedores de honra, e da mesma
A magnanimidade parece, pois, ser forma os que desfrutam de poder e
uma espécie de coroa das virtudes, riqueza; pois eles se encontram numa
porquanto as torna maiores e não é posição superior, e tudo que se mostra
encontrada sem elas. Por isso é difícil superior em algo de bom é tido em
ser verdadeiramente magnânimo, pois grande honra. Daí que até essas coisas
sem possuir um caráter bom e nobre tornem os homens mais magnânimos,
não se pode sê-lo. pois alguns os honram pelo fato de
De modo que é sobretudo por hon possuí-las. Mas, em verdade, só merece
ras e desonras que o magnânimo se ser honrado o homem bom; aquele,
interessa; e as honras que forem gran porém, que goza de ambas as vanta
des e conferidas por homens bons, ele gens é considerado mais merecedor de
as receberá com moderado prazer, honra.
pensando receber o que merece ou até No entanto, os homens que, sem
menos do que- merece, pois não pode serem virtuosos, possuem tais bens
haver honra que esteja à altura da vir nem têm por que alimentar grandes
tude perfeita; no entanto, ele a aceita pretensões, nem fazem jus ao nome de
rá, já que os outros nada têm de maior “magnânimos” ; porquanto essas coi
para lhe oferecer. Mas as honras que sas implicam virtude perfeita. Isso não
procedem de pessoas quaisquer e por impede, porém, que se tornem desde
motivos insignificantes, ele as despre nhosos e insolentes, pois sem virtude
zará, visto não ser isso o que merece; e não é fácil carregar com elegância os
do mesmo modo no tocante à desonra, I
que, aplicada a ele, não pode ser justa. 1123 b 15-22. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO — IV 109
bens da fortuna. Incapazes que sãò coisa difícil e grande marca de altivez
disso, e julgando-se superiores aos mostrar-se superior aos primeiros, em
1124b demais, desprezam-nos e fazem o que bora seja fácil com os segundos, e uma
bem lhes apraz. Imitam o homem mag conduta altiva no primeiro caso não é
nânimo sem serem semelhantes a ele, e sinal de má educação, mas entre pes
o fazem naquilo que podem; proceder soas humildes é tão vulgar quanto uma
como homens virtuosos está fora do exibição de força contra os fracos.
s seu alcance, mas desprezar os outros, Igualmente próprio do homem mag
não. Com efeito, o homem magnânimo nânimo é não ambicionar as coisas que
despreza com justiça (visto que pensa são vulgarmente acatadas, nem aque
acertadamente), mas o vulgo o faz sem las em que os outros se distinguem;
causa nem motivo sério. mostrar-se desinteressado e abster-se 25
O magnânimo não se expõe a peri de agir, salvo quando se trate de uma
gos insignificantes, nem tem amor ao grande honra ou de uma grande obra, e
perigo, pois estima poucas coisas; mas ser homem de poucas ações, mas gran
enfrentará os grandes perigos, e nesses des e notáveis.
casos não poupará a sua vida, sabendo Deve também ser franco nos seus
que há condições em que não vale a ódios e amores (porquanto ocultar os
pena viver. É também muito capaz de seus sentimentos, isto é, olhar menos à
io conferir benefícios, mas envergonha-se verdade do que à opinião dos outros, é
de recebê-los, pois aquilo é caracte próprio de um covarde); e deve falar e
rístico do homem superior e isto do agir abertamente. Com efeito, o mag
inferior. E costuma retribuir com gran nânimo expressa-se com franqueza por
des benefícios, pois assim o primeiro desdém e é afeito a dizer a verdade, 30
benfeitor, além de ser pago, incorrerá salvo quando fala com ironia às pes
em dívida para com ele e sairá lu soas vulgares.
crando na transação. Parece também Deve ser incapaz de fazer com que
lembrar-se de todos os serviços que sua vida gire em torno de um outro, a 1125*
prestou, mas não dos que recebeu (pois não ser de um amigo; pois isso é pró
quem recebe um serviço é inferior a prio de um escravo, e daí o serem ser
quem o presta, mas o magnânimo de- vis todos os aduladores, e aduladores
is seja ser superior). E ouve mencionar os todos aqueles que não respeitam a si
primeiros com prazer, e os segundos mesmos. Tampouco é dado à admira
com desagrado; foi talvez por isso que ção, pois, para ele, nada é grande. Nem
Tétis não falou a Zeus dos serviços que guarda rancor por ofensas que lhe
lhe havia prestado, nem os espartanos façam, já que não é próprio de um
enumeraram os seus serviços aos ate homem magnânimo ter a memória
nienses, mas apenas os que haviam longa, particularmente no que toca a
recebido. ofensas, mas antes relevá-las. Tam- s
É também característico do homem pouco é dado a conversas fúteis, pois
magnânimo não pedir nada ou quase não fala nem sobre si mesmo nem
nada, mas prestar auxílio de bom sobre os outros, porquanto não lhe
grado e adotar uma atitude digna em interessam os elogios que lhe façam
face das pessoas que desfrutam de alta nem as censuras dirigidas aos outros.
posição e são favorecidas pela fortuna, Por outro lado, não é amigo de elogiar
20 enquanto se mostram despretensiosos nem maledicente, mesmo no que se re
para com os de classe mediana; pois é fere aos seus inimigos, salvo por alti-
110 ARISTÓTELES
vez. Quanto às coisas que ocorrem que elas são boas. E contudo, tais pes
necessariamente ou que são de pouca soas não são consideradas tolas, mas
monta, é de todos os homens o menos antes excessivamente modestas. Dir-
dado a lamentar-se ou a solicitar favo se-ia, contudo, que semelhante reputa
res; pois só os que levam tais coisas a ção até as tom a piores, porque cada
sério se portam dessa maneira com res classe de pessoa ambiciona o que
peito a elas. É ele o homem que prefere corresponde aos seus méritos, en
possuir coisas belas e improfícuas às quanto esses se abstêm mesmo de no
úteis e proveitosas, pois isso é mais bres ações e empreendimentos, consi-
próprio de um caráter que basta a si derando-se indignos, e dos bens
mesmo. exteriores por igual forma.
Além disso, um andar lento é consi Os vaidosos, por outro lado, são
derado próprio do homem magnânimo, tolos que ignoram a si mesmos, e isso
uma voz profunda e uma entonação de modo manifesto. Porquanto, sem
uniforme; pois aquele que leva poucas serem dignos de tais coisas, aventu
coisas a sério não costuma apressar-se, ram-se a honrosos empreendimentos
nem o homem para quem nada é gran
que nao tardam a denunciá-los pelo
de se excita facilmente, ao passo que a
que são. E adomam-se com belas rou
voz estridente e o andar célere são fru
pas, ares afetados e coisas que tais, e
tos da pressa e da excitação.
desejam que suas boas fortunas se tor
Tal é, pois, o homem magnânimo; o
nem públicas, tomando-as para assun
que lhe fica aquém é indevidamente
to de conversa, como se desejassem ser
humilde e o que o ultrapassa é vaidoso.
Ora, nem mesmo esses são conside honrados por causa delas. Mas a
rados maus (pois não são maldosos), humildade indébita se opõe mais à
mas apenas equivocados. Com efeito, magnanimidade do que a vaidade,
o homem indevidamente humilde, que tanto por ser mais comum como por
é digno de boas coisas, rouba a si ser ainda pior do que esta.
mesmo daquilo que merece, e parece O magnânimo relaciona-se, pois,
ter algo de censurável porque não se com a honra em grande escala, como
julga digno de boas coisas e também já se disse 5 6.
parece não se conhecer; do contrário
desejaria as coisas que merece, visto 5 6 1107 b 26, 1123 a 3 4 — 1123 b 22. (N. do T.)
4
Também parece haver na esfera da grande escala, mas ambas nos dispõem
honra, como dissemos em nossas pri corretamente em relação a objetos de
meiras observações sobre o assunto 5 7, pouca ou mediana importância. Assim
uma virtude que guarda para com a como no receber e dar riquezas existe
magnanimidade a mesma relação que um meio-termo, um excesso e uma
a libéValidade para com a magnifi deficiência, também a honra pode ser
cência. Com efeito, nenhuma das duas desejada mais ou menos do que con
tem nada que ver com as coisas em vém, ou da maneira e das fontes que
convêm. Censuramos tanto o homem
5 7 Ibid., 24-27. (N. do T.) ambicioso por desejar a honra mais do
ÉTICA A NICÔMACO — IV 111
que convém e de fontes indébitas, Como não existe palavra para designar
como o desambicioso por não querer o meio-termo, os extremos parecem
ser honrado mesmo por motivos no disputar o seu lugar como se estivesse
bres. Mas às vezes louvamos o ambi vago por abandono. Mas onde há
cioso por ser varonil e amigo do que é excesso e falta, há também um meio-
nobre, e o desambicioso por ser mode termo. Ora, os homens desejam a
rado e auto-suficiente, como dissemos honra não só mais como também
menos do que devem; logo, é possível 20
na primeira vez que tocamos neste
assunto58. desejá-la também como se deve. Em
todo caso, é essa a disposição de cará
Evidentemente, como “gostar de tal ter que se louva e que é um meio-termo
ou tal objeto” tem mais de um signifi sem nome no tocante à honra. Em con
cado, não aplicamos sempre à mesma fronto com a ambição parece ser
is coisa o termo “ambição” ou “ amor à desambição, e vice-versa; e, em con
honra”, mas ao louvar a qualidade fronto com as duas conjuntamente,
pensamos no homem que tem mais parece, em certo sentido, ser ambas.
amor à honra do que a maioria das Isto sé afigura verdadeiro também das
pessoas, e ao censurá-la temos em outras virtudes, mas no caso que aca
mente aquele que a ama em demasia. bamos de examinar os extremos se
apresentam como contraditórios por- 25
58 1107 b 33. (N. do T.) que o meio-termo não recebeu nome.
tem nome. O excesso poderia ser cha- riam excitar sua ira são considerados
30 mado uma espécie de “ irascibilidade” , tolos, e da mesma forma os que não o
pois que a paixão é a cólera, ao passo fazem da maneira apropriada, na oca
que suas causas são muitas e diversas. sião apropriada e com as pessoas que
Louva-se o homem que se encoleriza deveriam encolerizá-los. Porquanto
justificadamente com coisas ou pes tais homens passam por ser insensí
soas e, além disso, como deve, na devi veis, e, como não se encolerizam, jul
da ocasião e durante o tempo devido. gam-nos incapazes de se defender; e
Esse será, pois, o homem calmo, já que suportar insultos tanto pessoais como
a calma é louvada. Um tal homem dirigidos aos nossos amigos é próprio
35 tende a não se deixar perturbar nem de escravos.
guiar pela paixão, mas a irar-se da O excesso pode manifestar-se em
n26a maneira, com as coisas e durante o todos os pontos que indicamos (pois é 10
tempo que a regra prescreve. Pensa-se, possível irar-se com pessoas ou coisas
todavia, que ele erra de certo modo no indébitas, mais do que convém, com
sentido da deficiência, pois o homem demasiada presteza ou por um tempo
112 ARISTÓTELES
Nas reuniões de homens, na vida so- quiosos, isto é, aqueles que para serem
ciai e no intercâmbio de palavras e agradáveis louvam todas as coisas eja-
atos, alguns são considerados obse- mais se opõem a quem quer que seja, is
ÉTICA A NICÔMACO — IV 113
julgando que é seu dever “não magoar Com efeito, ele parece interessar-se
as pessoas que encontram” ; enquanto pelos prazeres e dores da vida social; e
os que, pelo contrário, se opõem a tudo sempre que não for honroso ou que for
e não têm o menor escrúpulo de ma nocivo proporcionar tal prazer, ele se
goar são chamados grosseiros e alter- recusará a fazê-lo, preferindo antes
cadores. causar dor. Do mesmo modo, se sua
Que as disposições que acabamos de aquiescência ao ato de um outro trou
nomear são censuráveis, é evidente, xesse grande desonra ou dano a esse
assim como é digna de louvor a dispo outro, enquanto sua oposição lhe
sição intermediária — isto é, aquela causa um pouco de dor, ele se oporá ao ss
em virtude da qual um homem se con invés de aquiescer.
forma e se rebela ante as coisas que Tal homem se relacionará diferente
deve e da maneira devida. Nenhum mente com pessoas de alta posição e
20 nome, porém, lhe foi dado, embora se com pessoas comuns, com conhecidos 1127a
assemelhe acima de tudo à amizade. íntimos e outros mais distantes, e do
Com efeito, o homem que corresponde mesmo modo no que diz respeito a
a essa disposição intermediária aproxi todas as demais diferenças, tratando
ma-se muito daquele que, com o acrés cada classe como for apropriado; e
cimo da afeição, chamamos um bom embora, de um modo geral, prefira
amigo. Mas a disposição em apreço di proporcionar prazer e evite causar dor,
fere da amizade pelo fato de não impli guiar-se-á pelas conseqüências se estas 5
car paixão nem afeição para com as forem mais importantes — em outras
pessoas com quem tratamos, visto que palavras, pela honra e pela conve
não é por amor nem por ódio que um niência. E também infligirá pequenas
homem acolhe todas as coisas como dores tendo em vista um grande prazer
deve, e sim por ser um indivíduo de futuro.
25 determinada espécie. Com efeito, ele se O homem que alcança o meio-termo
conduzirá do mesmo modo com co é, pois, tal como descrevemos, embora
nhecidos e desconhecidos, com íntimos não tenha recebido um nome. Dos que
e com os que não o são, muito embora proporcionam prazer, o que procura
se conduza em cada um desses casos ser agradável sem nenhum objetivo
Como convém; pois não é certo interes- ulterior é obsequioso, mas aquele que o
sar-se igualmente por pessoas íntimas faz com o fim de obter alguma vanta
e por estranhos, nem tampouco são as gem em dinheiro ou nas coisas que o 10
mesmas condições que tornam justo dinheiro pode comprar é um adulador;,
magoá-los. enquanto o que se opõe a tudo é, como
Ora, nós dissemos de um modo dissemos60, grosseiro e altercador. E
geral que esse homem se relaciona com os extremos parecem ser contraditórios
as outras pessoas do modo que con um ao outro porque o meio-termo não
vém; mas é com referência ao que é tem nome.
honroso e conveniente que procura não
3o causar dor ou proporcionar prazer.' 60 1 125 b 14-16. (N. do T.)
114 ARISTÓTELES
Como a vida é feita não só de ativi com efeito, tais agudezas são conside
dade, mas também de repouso, e este radas movimentos do caráter, e aos
inclui os lazeres e a recreação, parece caracteres, assim como aos corpos,
haver aqui também uma espécie de costumamos distinguir pelos seus mo
intercâmbio que se relaciona com o vimentos.
bom gosto. Pode-se dizer — e também Não é, porém, difícil descobrir o
1128a escutar — o que se deve e o que não se lado ridículo das coisas, e a maioria
deve. A espécie de pessoa a quem fala das pessoas deleitam-se mais do que
mos ou escutamos influi igualmente no devem com gracejos e caçoadas; daí
caso. serem os próprios chocarreiros chama
Evidentemente, também neste dos espirituosos, pelo agrado que cau
campo existe uma demasia e uma.defi- sam; mas o que dissemos acima torna is
ciência em confronto com o meio- evidente que eles diferem em não
termo. Os que levam a jocosidade ao pequeno grau dos espirituosos.
5 excesso são considerados farsantes À disposição intermediária também
vulgares que procuram ser espirituosos pertence o tato. É característico de um
a qualquer custo e, na sua ânsia de homem de tato dizer e escutar aquilo
fazer rir, não se preocupam com a que fica bem a uma pessoa digna e
propriedade do que dizem nem em bem-educada; pois há coisas que fica
poupar as suscetibilidades daqueles bem a um tal homem dizer e escutar a
que tomam para objeto de seus chistes; título de gracejo; e os chistes de um 20
enquanto os que não sabem gracejar, homem bem-educado diferem dos de
nem suportam os que o fazem, são rús um homem vulgar, assim como os de
ticos e impolidos. Mas os que grace uma pessoa instruída diferem dos de
jam com bom gosto chamam-se espiri um ignorante. Isto se pode ver até nas
tuosos, o que implica um espírito vivo comédias antigas e modernas: para os
io em se voltar para um lado e outro; autores das primeiras a linguagem
116 ARISTÓTELES
1129a No que toca à justiça e à injustiça também se nos tom a conhecida; e (b) a
devemos considerar: (1) com que espé boa condição é conhecida pelas coisas
cie de ações se relacionam elas; (2) que que se acham em boa condição, e as
espécie de meio-termo é a justiça; e (3) segundas pela primeira. Se a boa con
entre que extremos o ato justo é inter-. dição for a rijeza de carnes, é neces
5 mediário. Nossa investigação se pro sário não só que a má condição seja â
cessará dentro das mesmas linhas que carne flácida, como que o saudável
as anteriores. seja aquilo que torna rijas as cames. E
Vemos que todos os homens enten segue-se, de modo geral, que, se um
dem por justiça aquela disposição de dos contrários for ambíguo, o outro
caráter que torna*as pessoas propensas também o será; por exemplo, se o
a fazer o que é justo, que as faz agir “justo” o é, também o será o “ injusto”. 25
justamente e desejar o que é justo; e do Ora, “justiça” e “injustiça” parecem
mesmo modo, por injustiça se entende ser termos ambíguos, mas, como os
a disposição que as leva a agir injusta- seus diferentes significados se aproxi
io mente e a desejar o que é injusto. Tam mam uns dos outros, a ambigüidade
bém nós, portanto, assentaremos isso escapa à atenção e não é evidente
como base geral. Porque as mesmas como, por comparação, nos casos em
coisas não são verdadeiras tanto das que os significados se afastam muito
ciências e faculdades como das dispo um do outro — por exemplo (pois aqui
sições de caráter. Considera-se que é grande a diferença de forma exterior),
uma faculdade ou ciência, que é uma como a ambigüidade no emprego de
só e a mesma coisa, se relaciona com i c \ e k para designar a clavícula de um 30
objetos contrários, mas uma disposi animal e o ferrolho com que trancamos
ção de caráter, que é um de dois uma porta. Tomemos, pois, como
contrários, não produz resultados ponto de partida os vários significados
is opostos. Por exemplo: em razão da de “um homem injusto”. Mas o
saúde não fazemos o que é contrário à homem sem lei, assim como o ganan
saúde, mas só o que é saudável, pois cioso e ímprobo, são considerados
dizemos que um homem caminha de injustos, de forma que tanto o respei
modo saudável quando caminha como tador da lei como o honesto serão
o faria um homem que gozasse saúde. evidentemente justos. O justo é, por
Ora, muitas vezes um estado é reco tanto, o respeitador da lei e o probo, e o
nhecido pelo seu contrário, e não injusto é o homem sem lei e ímprobo.
menos freqüentemente os estados são Visto que o homem injusto é ganan- 1129b
reconhecidos pelos sujeitos que os cioso, deve ter algo que ver com bens
manifestam; porque, (a) quando conhe- — não todos os bens, mas aqueles a
20 cemos a boa condição, a má condição que dizem respeito a prosperidade e a
122 ARISTÓTELES
Portanto, a justiça neste sentido não justiça neste sentido: são elas a mesma
é uma parte da virtude, mas a virtude coisa, mas não o é a sua essência.
10 inteira; nem é seu contrário, a injusti Aquilo que, em relação ao nosso próxi
ça, uma parte do vício, mas o vício mo, é justiça, como uma determinada
inteiro. O que dissemos põe a desco disposição de caráter e em si mesmo, é
berto a diferença entre a virtude e a virtude.
Seja, porém, como for, jo objeto de pela razão de lucrar com o seu ato.
nossa investigação é aquela justiça que Ainda mais: todos os outros atos injus
constitui uma parte da virtude; por tos são invariavelmente atribuídos a
quanto sustentamos que tal espécie de alguma espécie particular de-maldade;
justiça existe. E analogamente, é com a por exemplo, o adultério à intempe- 30
ts injustiça no sentido particular que nos rança, o abandono de um companheiro
ocupamos. em combate à covardia, a violência fí
Que tal coisa existe, é indicado pelo sica à cólera; mas, quando um homem
fato de que o homem que mostra em tira proveito de sua ação, esta não é
seus atos as outras formas de maldade atribuída a nenhuma outra forma de
age realmente mal, porém não ganan maldade que não a injustiça. É eviden
ciosamente (por exemplo, o homem te, pois, que além da injustiça no senti
que atira ao chão o seu escudo por do lato existe uma injustiça “particu
covardia, que fala duramente por mau
lar” que participa do nome e da
humor ou deixa de assistir com di-
natureza da primeira, porque sua defi
20 nheiro ao seu amigo, por avareza); e,
nição se inclui no mesmo gênero. Com 1130b
•por outro lado, o ganancioso muitas
efeito, o significado de ambas consiste
vezes não exibe nenhum desses vícios,
nem todos juntos, mas indubitavel numa relação para com o próximo,
mente revela uma certa espécie de mal mas uma delas diz respeito à honra, ao
dade (pois nós o censuramos) e de dinheiro ou à segurança — ou àquilo
injustiça. Existe, pois, uma outra espé que inclui todas essas coisas, se hou
cie de injustiça que é parte da injustiça vesse um nome para designá-lo — e
no sentido lato, e um dos empregos da seu motivo é o prazer proporcionado
palavra “ injusto” que corresponde a pelo lucro; enquanto a outra diz res
uma parte do que é injusto no sentido peito a todos os objetos com que se 5
amplo de “contrário à lei” . relaciona o homem bom.
Por outro lado, se um homem come Está bem claro, pois, que existe mais
te adultério tendo em vista o lucro e de uma espécie de justiça, e uma delas
25 ganha dinheiro com isso, enquanto um se distingue da virtude no pleno senti
outro o faz levado pelo apetite, embora do da palavra. Cumpre-nos determinar
perca dinheiro e sofra com o seu ato, o o seu gênero e a sua diferença especí
segundo será considerado intempe fica.
rante e não ganancioso, enquanto o O injusto foi dividido em ilegítimo e
primeiro é injusto, mas não intempe ímprobo e o justo em legítimo e probo.
rante. Está claro, pois, que ele é injusto Ao ilegítimo corresponde o sentido de
124 ARISTÓTELES
10 injustiça que examinamos acima. Mas, essa que tom a um homem bom em si,
como ilegítimo e ímprobo não são a fica para ser determinado posterior
mesma coisa, mas diferem entre si m ente67, se isso compete à arte polí
como uma parte do seu todo (pois tudo tica ou a alguma outra; pois talvez não
que é ímprobo é ilegítimo, mas nem haja identidade entre ser um homem
tudo que é ilegítimo é ímprobo), o bom e ser um bom cidadão de qual
injusto e a injutiça no sentido de quer Estado escolhido ao caso.
improbidade não se identificam com a D a justiça particular e do que é ■x
primeira espécie citada, mas diferem justo no sentido correspondente, (A)
dela como a parte do todo. Com efeito, uma espécie é a que se manifesta nas
a injustiça neste sentido é uma parte da distribuições de honras, de dinheiro ou
injustiça no sentido amplo, e, do das outras coisas que são divididas
mesmo modo, a justiça num sentido o entre aqueles que têm parte na consti
a é da justiça do outro. Portanto, deve tuição (pois aí é possível receber um
mos também falar da justiça e da injus quinhão igual ou desigual ao de um
tiça particulares, e da mesma forma a outro); e (B) outra espécie é aquela que
respeito do justo e do injusto. desempenha um papel corretivo nas
Quanto à justiça, pois, que corres transações entre indivíduos. Desta últi- im a
ponde à virtude total, e à correspon ma há duas divisões: dentre as transa
dente injustiça, sendo uma delas o ções, ( 1) algumas são voluntárias, e (2)
exercício da virtude em sua inteireza e outras são involuntárias — voluntá
a outra, o do vício completo, ambos - rias, por exemplo, as compras e ven
em relação ao nosso próximo, pode das, os empréstimos para consumo, as
mos deixá-las de parte. E é evidente o arras, o empréstimo para uso, os depó
modo como devem ser distinguidos os sitos, as locações (todos estes são cha
20 significados de “justo” e de “ injusto” mados voluntários porque a origem
que lhes correspondem, pois, a bem das transações é voluntária); ao passo 5
dizer, a maioria dos atos ordenados que das involuntárias, (a) algumas são
pela lei são aqueles que são prescritos clandestinas, como o furto, o adultério,
do ponto de vista da virtude conside o envenenamento, o lenocínio, o engo
rada como um todo. Efetivamente, a do a fim de escravizar, o falso testemu
lei nos manda praticar todas as virtu nho, e (b) outras são violentas, como a .
des e nos proíbe de praticar qualquer agressão, o seqüestro, o homicídio, o
25 vício. E as coisas que tendem a produ roubo a mão armada, a mutilação, as
zir a virtude considerada como um invectivas e os insultos.
todo são aqueles atos prescritos pela
lei tendo em vista a educação para o
6 7 1179 b 20 — 1181 b 12. Política, 1267 b 16 —
bem comum. Mas no que tange à edu 1277 b 32; 1278 a 40 — 1278 b 5; 1288 a 32 —
cação do indivíduo como tal, educação 1288 b 2; 1333 a 11,16; 1337 a 11-14. (N. do T.)
3
w (A) Mostramos que tanto o homem entre as duas iniqüidades cómpreen-
como o ato injustos são ímprobos ou didas em cada caso. E esse ponto é a
iníquos. Agora se torna claro que exis- eqüidade, pois em toda espécie de ação
te também um ponto intermediário em que há o mais e o menos também
ÉTICA A NICÔMACO — V 125
(B) A outra é a corretiva que surge em procura igualá-los por meio da pena,
relação com transações tanto voluntá tomando uma parte do ganho do acu
rias como involuntárias. Esta forma do sado. Porque o termo “ganho” aplica-
justo tem um caráter específico dife se geralmente a tais casos, embora não
rente da primeira. Com efeito, a justiça seja apropriado a alguns deles, como,
que distribui posses comuns está sem por exemplo, à pessoa que inflige um
pre de acordo com a proporção men ferimento — e “perda” à vítima. Seja
cionada acima (e mesmo quando se como for, uma vez estimado o dano,
trata de distribuir os fundos comuns de um é chamado perda e o outro, ganho.
uma sociedade, ela se fará segundo a Logo, o igual é intermediário entre o
mesma razão que guardam entre si os maior e o menor, mas o ganho e a
fundos empregados no negócio pelos perda são respectivamente menores e
diferentes sócios); e a injustiça contrá maiores em sentidos contrários; maior
ria a esta espécie de injustiça é a que quantidade do bem e menor quanti
viola a proporção. Mas a justiça nas dade do mal representam ganho, e o
transações entre um homem e outro é contrário é perda; e intermediário entre
efetivamente uma espécie de igualdade, os dois é, como vimos, o igual, que
e a injustiça uma espécie de desigual dizemos ser justo. Por conseguinte, a
dade; não de acordo com essa espécie justiça corretiva será o intermediário
de proporção, todavia, mas de acordo entre a perda e o ganho.
com uma proporção aritmética. Por Eis aí por que as pessoas em disputa
quanto não faz diferença que um recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é
homem bom tenha defraudado um recorrer à justiça, pois a natureza do
homem mau ou vice-versa, nem se foi juiz é ser uma espécie de justiça anima
um homem bom ou mau que cometeu da; e procuram o juiz como um inter
adultério; a lei considera apenas o mediário, e em alguns Estados os jui
caráter distintivo do delito e trata as zes são chamados mediadores, na
partes como iguais, se uma comete e a convicção de que, se os litigantes
outra sofre injustiça, se uma é autora e conseguirem o meio-termo, consegui
a outra é vítima do delito. rão o que é justo. O justo, pois, é um
Portanto, sendo esta espécie de meio-termo já que o juiz o é.
injustiça uma desigualdade, o juiz pro Ora, o juiz restabelece a igualdade.
cura igualá-la; porque também no caso É como se houvesse uma linha divi
em que um recebeu e o outro infligiu dida em partes desiguais e ele retirasse
um ferimento, ou um matou e o outro a diferença pela qual o segmento maior
foi morto, o sofrimento e a ação foram excede a metade para acrescentá-la ao
desigualmente destribuídos; mas o juiz menor. E quando o todo foi igualmente
ÉTICA A NICÔMACO — V 127
dividido, os litigantes dizem que rece linha A A ' o segmento AE, e acrescen-
beram “o que lhes pertence” — isto é, te-se à linha C C ' o segmento CD, de
receberam o que é igual. modo que toda a linha D C C ' exceda a
O igual é intermediário entre a linha linha EA' pelo segmento CD e pelo
maior e a menor de acordo com uma segmento C F; por conseguinte, ela ex
30 proporção aritmética. Por esta mesma cede a linha BB' pelo segmento CD.
razão é ele chamado justo (Súcatov), A E A'
devido a ser uma divisão em duas par i------------ 1---------------------------- 1
tes iguais ( 6í \ a ), como quem dissesse B B'
Síxaiw ; e o juiz ( 6u<aari?ç ) é aquele i----------------------------------------- 1
que divide em dois ( ôixaorrjç ). Com D C F c
i------------1---------- 1---------------------------- 1
efeito, quando alguma coisa é sub
traída de um de dois iguais e acres Estes nomes, perda e ganho, procedem
centada ao outro, este supera o pri das trocas voluntárias, pois ter mais do
meiro pelo dobro dela, visto que, se o que aquilo que é nosso chama-se
que foi tomado a um não fosse acres ganhar, e ter menos do que a nossa
centado ao outro, a diferença seria de parte inicial chama-se perder, como,
1132b um só. Portanto, o maior excede o por exemplo, nas compras e vendas e
intermediário de um, e o intermediário em todas as outras transações em que is
excede de um aquele de que foi sub a lei dá liberdade aos indivíduos para
traída alguma coisa. Por aí se vê que estabelecerem suas próprias condições;
devemos tanto subtrair do que tem quando, todavia, não recebem mais
mais como acrescentar ao que tem nem menos, mas exatamente o que lhes
menos; e a este acrescentaremos a pertence, dizem que têm o que é seu e
j quantidade pela qual o excede o inter que nem ganharam nem perderam.
mediário, e do maior subtrairemos o Logo, o justo é intermediário entre
seu excesso em relação ao interme uma espécie de ganho e uma espécie de
diário. perda, ã saber, os que são involuntá
Sejam as linhas A A ', BB' e C C ' rios. Consiste em ter uma quantidade 20
iguais umas às outras. Subtraia-se da igual antes e depois da transação.
5
Alguns pensam que a reciprocidade não se coaduna com a justiça correti
é justa sem qualquer reserva, como di va: por exemplo ( 1), se uma autoridade
ziam os pitagóricos; pois assim defi infligiu um ferimento, não deve ser fe
niam eles a justiça. Ora, “reciproci rida em represália, e se alguém feriu
dade” não se enquadra nem na justiça uma autoridade, não apenas deve ser 30
buição exatamente igual. Porquanto é pares de sapatos são iguais a uma casa
pela retribuição proporcional que a ci ou a uma determinada quantidade de
dade se mantém unida. Os homens alimento.
procuram pagar o mal com o mal e, se O número de sapatos trocados por
não podem fazê-lo, julgam-se reduzi uma casa (ou por uma determinada
dos ã condição de simples escravos — quantidade de alimento) deve, portan
e o bem com o bem, e se não podem to, corresponder à razão entre o arqui
fazê-lo não há troca, e é pela troca que teto e o sapateiro. Porque, se assim
eles se mantêm unidos. Por esse não for, não haverá troca nem inter
mesmo motivo dão uma posição proe câmbio. E essa proporção não se veri- 25
minente ao templo das Graças: promo ficará, a menos que os bens sejam
ver a retribuição dos serviços é carac iguais de um modo. Todos os bens
terístico da graça, e deveríamos servir devem, portanto, ser medidos por uma
em troca aquele què nos dispensou só e a mesma coisa, como dissemos
uma graça, tomando noutra ocasião a acima. Ora, essa unidade é na reali
iniciativa de lhe fazer o mesmo. dade a procura, que mantém unidas
5 Ora, a retribuição proporcional é todas as coisas (porque, se os homens
garantida pela conjunção cruzada. não necessitassem em absoluto dos
Seja A um arquiteto, B um sapateiro, bens uns dos outros, ou não necessi
C uma casa e D um par de sapatos. O tassem deles igualmente, ou não have
arquiteto, pois, deve receber do sapa ria troca, ou não a mesma troca); mas
teiro o produto do trabalho deste últi- o dinheiro tomou-se, por convenção, 30
io■ mo, e dar-lhe o seu em troca. Se, pois, uma espécie de representante da procu
há uma igualdade proporcional de ra; e por isso se chama dinheiro (vónia
bens e ocorre a ação recíproca, o resul lua ), já que existe não por natureza,
tado que mencionamos será efetuado. mas por lei ( vófioç ), e está em nosso
Senão, a permuta não é igual, nem vá poder mudá-lo e torná-lo sem valor.
lida, pois nada impede que o trabalho Haverá, pois, reciprocidade quando
de um seja superior ao do outro. os termos forem igualados de modo
Devem, portanto, ser igualados. que, assim como o agricultor está para
E isto é verdadeiro também das ou o sapateiro, a quantidade de produtos
tras artes, porquanto elas não subsisti- do sapateiro esteja para a de produtos
is riam se o que o paciente sofre não de agricultor pela qual é trocada. Mas
fosse exatamente o mesmo que o agen não devemos, colocá-los em proporção 1133b
te faz, e da mesma quantidade e espé depois de haverem realizado a troca
cie. Com efeito, não são dois médicos (do contrário ambos os excessos se
que se associam para troca, mas um juntarão num dos extremos), e sim
médico e um agricultor, e, de modo quando cada um possui ainda os seus
geral, pessoas diferentes e desiguais; bens. Desse modo são iguais e associa
mas essas pessoas devem ser iguala dos justamente porque essa igualdade
das. Eis aí por que todas as coisas que se pode efetivar no seu caso.
são objetos de troca devem ser compa Seja A um agricultor, C uma deter
ráveis de um modo ou de outro. Foi minada quantidade de alimento, B um
para esse fim que se introduziu o sapateiro e D o seu produto, que equi- 5
20 dinheiro, o qual se tom a, em certo sen paramos a C. Se não fosse possível efe
tido, um meio-termo, visto que mede tuar dessa forma a reciprocidade, não
todas as coisas e, por conseguinte, haveria associação das partes. Que a
também o excesso e a falta — quantos procura engloba as coisas numa unida-
ÉTICA A NICÔMACO — V 129
de só é evidenciado pelo fato de que, uma casa, a saber: cinco. Não há dúvi
quando os homens não necessitam um da que a troca se realizava desse modo
do outro — isto é, quando não há antes de existir dinheiro, pois nenhuma
necessidade recíproca ou quando um diferença faz que cinco camas sejam
deles não necessita do segundo — , não trocadas por uma casa ou pelo valor
realizam a troca, como acontece quan monetário de cinco camas.
do alguém deseja o que temos: por Temos, pois, definido o justo e o m
10 exemplo, quando se permite a exporta injusto. Após distingui-los assim um
ção de trigo em troca de vinho. È pre do outro, é evidente que a ação justa é
ciso, pois, estabelecer essa equação. intermediária entre o agir injustamente
E quanto às trocas futuras — a fim e o ser vítima de injustiça; pois um
de que, se não necessitamos de uma deles é ter demais e o outro é ter dema
coisa agora, possamos tê-la quando ela siado pouco. A justiça é uma espécie
venha a fazer-se necessária — , o de meio-termo, porém não no mesmo
dinheiro é, de certo modo, a nossa sentido que as outras virtudes, e sim
garantia, pois devemos ter a possibili porque se relaciona com uma quantia
dade de obter o que queremos em troca ou quantidade intermediária, enquanto
do dinheiro. Ora, com o dinheiro suce a injustiça se relaciona com os extre
de a mesma coisa que com os bens: mos. E justiça é aquilo em virtude do "
nem sempre tem ele o mesmo valor; qual se diz que o homem justo pratica,
apesar disso, tende a ser mais estável. por escolha própria, o que é justo, e
Daí a necessidade de que todos os bens que distribui, seja entre si mesmo e um
tenham um preço marcado; pois assim outro, seja entre dois outros, não de
/j haverá sempre troca e, por conse maneira a dar mais do que convém a si
guinte, associação de homem com mesmo e menos ao seu próximo (e s
homem. inversamente no relativo ao que não
Deste modo, agindo o dinheiro convém), mas de maneira a dar o que é
como uma medida, torna ele os bens igual de acordo com a proporção; e da
comensuráveis e os equipara entre si; mesma forma quando se trata de distri
pois nem haveria associação se não buir entre duas outras pessoas. A
houvesse troca, nem troca se não hou injustiça, por outro lado, guarda uma
vesse igualdade, nem igualdade se não relação semelhante para com o injusto,
houvesse comensurabilidade. Ora, ha que é excesso e deficiência, contrários
realidade é impossível que coisas tão à proporção, do útil ou do nocivo. Por
diferentes entre si se tornem comensu- esta razão a injustiça é excesso e defi
20 ráveis, mas com referência à procura ciência, isto é, porque produz tais coi
podem tomar-se tais em grau sufi sas — no nosso caso pessoal, excesso
ciente. Deve haver, pois, uma unidade, do que é útil por natureza e deficiência w
e unidade estabelecida por comum do que é nocivo, enquanto o caso de
acordo (por isso se chama ela dinhei outras pessoas é equiparável de modo
ro); pois é ela que torna todas as coisas geral ao nosso, com a diferença de que
comensuráveis, já que todas são medi a proporção pode ser violada num e
das pelo dinheiro. noutro sentido. Na ação injusta, ter
Seja A uma casa, B dez minas, C demasiado pouco é ser vítima de injus
uma cama. A é a metade de B, se a tiça, e ter demais é agir injustamente.
casa vale cinco minas ou é igual a elas; Seja esta a nossa exposição da natu
25 a cama, C, é um décimo de B; torna-se reza da justiça e da injustiça e, igual
assim evidente quantas camas igualam mente, do justo e do injusto em geral. /.<
130 ARISTÓTELES
Visto que agir injustamente não nem sempre se pode inferir que haja
implica necessariamente ser injusto, injustiça), e estas consistem em atri- 35
devemos indagar que espécies de atos buir demasiado a si próprio das coisas
injustos implicam que o autor é injusto boas em si, e demasiado pouco das coi
com respeito a cada tipo de injustiça: sas más em si.
por exemplo, um ladrão, um adúltero Aí está por que não permitimos que
ou um bandido. Evidentemente, a res um homem governe, mas o princípio
posta não gira em torno da diferença racional, pois que um homem o faz no
entre esses tipos, pois um homem seu próprio interesse e converte-se num 1134b
poderia até deitar-se com uma mulher, tirano. O magistrado, por outro lado, é
20 sabendo quem ela é, sem que no entan um protetor da justiça e, por conse
to o motivo de seu ato fosse uma esco guinte, também da igualdade. E, visto
lha deliberada, mas a paixão. Esse supor-se que ele não possua mais do
homem age injustamente, por conse que a sua partè, se é justo (porque não
guinte, mas não é injusto; e um homem atribui a si mesmo mais daquilo que é
pode não ser ladrão apesar de ter rou bom em si, a menos que tal quinhão
bado, nem adúltero apesar de ter seja proporcional aos seus méritos — 5
cometido adultério; e analogamente de modo que é para outros que traba
em todos os outros casos. lha, e por essa razão os homens, como
Ora, já mostramos anteriormente mencionamos anteriormente70, dizem
como o recíproco se relaciona com o ser a justiça “o bem de um outro”), ele
2s ju s to 69; mas não devemos esquecer deve, portanto, ser recompensado, e
que o que estamos procurando não é sua recompensa é a honra e o privilé
apenas aquilo que é justo incondicio gio; mas aqueles que não se contentam
nalmente, mas também a justiça políti com essas coisas tornam-se tiranos.
ca. Esta é encontrada entre homens A justiça de um amo e a de um pai
que vivem em comum tendo em vista a não são a mesma que a justiça dos
auto-suficiência, homens que são livres cidadãos, embora se assemelhem a ela,
e iguais, quer proporcionalmente, quer pois não pode haver justiça no sentido
aritmeticamente, de modo que entre os incondicional em relação a coisas que
que não preenchem esta condição não nos pertencem, mas o servo de um 10
existe justiça política, mas justiça num homem e o seu filho, até atingir certa
sentido especial e por analogia. idade e tornar-se independente, são,
3o Com efeito, a justiça existe apenas por assim dizer, uma parte dele. Ora,
entre homens cujas relações mútuas ninguém fere voluntariaménte a si
são governadas pela lei; e a lei existe mesmo, razão pela qual também não
para os homens entre os quais há injus pode haver injustiça contra si próprio.
tiça, pois a justiça legal é a discrimi Portanto, não é em relações dessa
nação do justo e do injusto. E, havendo espécie que se manifesta a justiça ou
injustiça entre homens, também há injustiça dos cidadãos; pois, como
ações injustas (se bem que do fato de vimos 71, ela se relaciona com a lei e
ocorrerem ações injustas entre eles
70 1 130 a 3. (N. do T.)
” 1132 b 21 — 1133 b 28. (N. do T.) 71 1134 a 30. (N. do T.)
ÉTICA A NICÔMACO — V 131
se verifica entre pessoas naturalmente Por isso é mais fácil manifestar verda-
sujeitas à lei; e estas, como também deira justiça para com nossa esposa do >s
vim os72, são pessoas que têm partes que para com nossos filhos e servos,
iguais em governar e ser governadas. Trata-se, nesse caso, de justiça domés
tica, a qual, sem embargo, também di-
12 1134 a 26-28. (N. do t . ) fere da justiça política.
7
D a justiça política, uma parte é ambas sejam igualmente mutáveis. E
natural e outra parte legal: natural, em todas as outras coisas a mesma dis
aquela que tem a mesma força onde tinção será aplicável: por natureza, a
20 quer que seja e não existe em razão de mão direita é mais forte; e no entanto é
pensarem os homens deste ou daquele possível que todos os homens venham
modo; legal, a que de início é indife a tomar-se ambidestros.
rente, mas deixa de sê-lo depois que foi As coisas que são justas em virtude
estabelecida: por exemplo, que o resga da convenção e da conveniência asse
te de um prisioneiro seja de uma mina, melham-se a medidas, pois que as 1135 a
ou que deve ser sacrificado um bode e medidas para o vinho e para o trigo
não duas ovelhas, e também todas as não são iguais ém toda parte, porém
leis promulgadas paja casos particula maiores nos mercados por atacado e
res, como a que m andava oferecer menores nos retalhistas. Da mesma
sacrifícios em honra de B rásidas73, e forma, as coisas que são justas não por
as prescrições dos decretos. natureza, mas por decisão humana,
Ora, alguns pensam que toda justiça não são as mesmas em toda parte. E as
é desta espécie, porque as coisas que próprias constituições não são as mes
2s- são por natureza, são imutáveis e em mas, conquanto só haja uma que é, por
toda parte têm a mesma força (como o natureza, a melhor em toda parte.
fogo, que arde tanto aqui como na Pér Das coisas justas e legítimas, cada 5
sia), ao passo que eles observam alte uma se relaciona como o universal
rações nas coisas reconhecidas como para com o seus casos particulares;
justas. Isso, porém, não é verdadeiro pois as coisas praticadas são muitas,
de modo absoluto mas verdadeiro em mas dessas cada uma é uma só, visto-
certo sentido; ou melhor, para os deu que é universal.
ses talvez não seja verdadeiro de modo Há uma diferença entre o ato de
algum, enquanto para nós existe algo injustiça e o que é injusto, assim como
que é justo mesmo por natureza, embo entre o ato de justiça e o que é justo.
ra seja mutável. Isso não obstante, Como efeito, uma coisa é injusta por
algumas coisas o são por natureza e natureza ou por lei; e essa mesma
outras, não. coisa, depois que alguém a faz-, é um 10
Com toda a evidência percebe-se ato de injustiça; antes disso, porém, é
3o que espécie de coisas, entre as que são apenas injusta. E do mesmo modo
capazes de ser de outro modo, é por quanto ao ato de justiça (se bem que a
natureza e que espécie não o é, mas expressão geralmente usada seja “ ação
por lei e convenção, admitindo-se que justa”, e “ ato de justiça” se aplique à
correção do ato de injustiça).
73 Tucídides, V, 1 1. (N. do T.) Cada uma destas coisas deve ser
132 ARISTÓTELES
Sendo os atos justos e injustos tais dade. Por conseguinte, aquilo que se
como os descrevemos, um homem age faz na ignorância, ou embora feito com
de maneira justa ou injusta sempre que conhecimento de causa, não depende
pratica tais atos voluntariamente. do agente, ou que é feito sob coação, é
Quando os pratica involuntariamente, involuntário (pois há, até, muitos pro
seus atos não são justos nem injustos, cessos naturais que nós cientemente
salvo por acidente, isto é, porque ele realizamos e experimentamos, e ne
fez coisas que redundam em justiças nhum dos quais, no entanto, se pode 1135b
ou injustiças. É o caráter voluntário ou qualificar de voluntário ou involun
involuntário do ato que determina se tário, como, por exemplo, envelhecer
ele é justo ou injusto, pois, quando é ou morrer).
voluntário, é censurado, e pela mesma Mas tanto no caso dos atos justos
razão se torna um ato de injustiça; de como dos injustos, a injustiça ou justi
forma que existem coisas que são ça pode ser apenas acidental; pois
injustas, sem que no entanto sejam pode acontecer que um homem restitua
atos de injustiça, se não estiver pre involuntariamente ou por medo um 5
sente também a voluntariedade. valor depositado em suas mãos, e
nesse caso não se deve dizer que ele
Por voluntário entendo, como já praticou um ato de justiça ou que agiu
disse antes74, tudo aquilo que um justamente, a não ser de modo aciden
homem tem o poder de fazer e que faz tal. Da mesma forma, aquele que sob
com conhecimento de causa, isto é, coação e contra a sua vontade deixa de
sem ignorar nem a pessoa atingida restituir o valor depositado, agiu injus
pelo ato, nem o instrumento usado, tamente e cometeu um ato de injustiça,
nem o fim que há de alcançar (por mas apenas por acidente.
exemplo, em quem bate, com que e Dos atos voluntários, praticamos al- w
com que fim); além disso, cada um guns por escolha e outros não; por
desses atos não deve ser acidental nem escolha, os que praticamos após deli
forçado (se, por exemplo, A toma a berar, e por não escolha os que prati
m ãa de B e com ela bate em C, B não camos sem deliberação prévia.
agiu voluntariamente, pois o ato não Há, por conseguinte, três espécies de
dependia dele). dano nas transações entre um homem e
A pessoa atingida pode ser o pai do outro. Os que são infligidos por igno
agressor, e este pode saber que bateu rância são enganos quando a pessoa
num homem ou numa das pessoas pre atingida pelo ato, o próprio ato, o
sentes, ignorando, no entanto, que se instrumento ou o fim a ser alcançado
trata de seu pai. Uma distinção do são diferentes do que o agente supõe:
mesmo gênero se deve fazer quanto ao ou o agente pensou que não ia atingir
fim da ação e à ação em sua totali- ninguém, ou que não ia atingir com
determinado objeto, ou a determinada
74 1 109 b 3 5 — 1111 a 24. ( N . d o T . ) pessoa, ou com o resultado que lhe
ÉTICA A NICÔMACO — V 133
15 parecia provável (por exemplo, se ati não; pois foi a sua aparente injustiça
rou algo não com o propósito de ferir, que provocou a ira. Com efeito, eles
mas de incitar, ou se a pessoa atingida não disputam sobre a ocorrência do >»
ou o objeto atirado não eram os que ato (como nas transações comerciais
ele supunha). Ora, ( 1) quando o dano em que uma das duas partes forçosa
ocorre contrariando o que era razoa mente agiu de má fé), a menos que o
velmente de esperar, é um infortúnio. façam por esquecimento; mas, estando
(2) Quando não é contrário a uma concordes a respeito do fato, disputam
expectativa razoável, mas tampouco sobre qual deles está com a justiça (ao
implica vício, é um engano (pois o passo que um homem que deliberada
agente comete um engano quando a mente prejudicou a outro não pode
falta procede dele, mas é vítima de um ignorar tal coisa); de forma que um
acidente quando a causa lhe é exte pensa estar sendo injustamente tratado
rior). (3) Quando age com o conheci e o outro discorda dessa opinião.
mento do que faz, mas sem deliberação Mas, se um homem prejudica a u36a
2o prévia, é um ato de injustiça: por outro por escolha, age injustamente; e
exemplo, os que se originam da cólera são estes os atos de injustiça que
ou de outras paixões necessárias ou caracterizam os seus perpetradores
naturais ao homem. Com efeito,quan como homens injustos, contanto que o
do os homens praticam atos nocivos e. ato viole a proporção ou a igualdade.
errôneos desta espécie, agem injusta Do mesmo modo, um homem é justo
mente, e seus atos são atos de injustiça, quando age justamente por escolha;
mas isso não quer dizer que os agentes mas age justamente se sua ação é ape
sejam injustos ou malvados, pois que o nas voluntária.
25 dano não se deve ao vício. Mas (4) Dos atos voluntários, alguns são ?
quando um homem age por escolha, é desculpáveis e outros não. Com efeito,
ele um homem injusto e vicioso. os erros que os homens cometem não
Por isso, é com razão que se consi apenas na ignorância mas também por
deram os atos originados da cólera ignorância são desculpáveis, enquanto
como impremeditados, pois a causa do os que não se devem à ignorância (em
mal não foi o homem que agiu sob o bora sejam cometidos na ignorância),
impulso da cólera, mas aquele que o mas a uma paixão que nem é natural,
provocou. Além disso, o objeto da nem se conta entre aquelas a que o gê
disputa não é se a coisa aconteceu ou nero humano está sujeito — esses são
deixou de acontecer, mas se é justa ou indesculpáveis.
9
io Dando como suficientemente defini Fizeste-lo por vosso querer, ou
dos o que sejam cometer injustiça e ser [compesar de am bos? 7 5
vítima dela, pode-se perguntar ( 1) se a
verdade está expressa nas palavras Será mesmo possível sermos tratados is
paradoxais de Eurípedes: injustamente por nosso querer, ou, pelo
contrário, será involuntária toda injus-
M atei minha mãe; eis o meu caso,
[em suma. 7 5 Fragmento 68 de Alcmêon, Nauck. (N. do T.)
134 ARISTÓTELES
ção de caráter, do mesmo modo que a alguns seres (como aos deuses, presu
exercer a medicina e curar não consiste mivelmente) não é possível ter uma
em aplicar ou deixar de aplicar a faca, parte excessiva de tais coisas, e a
nem em usar ou deixar de usar medica outros, isto é, os incuravelmente maus,
mentos, mas em fazer essas coisas de nem a mais mínima parte seria benéfi
certa maneira. ca, mas todos os bens dessa espécie
Os atos justos ocorrem entre pes são nocivos, enquanto para outros são
soas que participam de coisas boas em benéficos dentro de certos limites.
si e podem ter uma parte excessiva ou Donde se conclui que a justiça é algo
excessivamente pequena delas; porque essencialmente humano.
10
O assunto que se segue é a eqüidade justiça legal. A razão disto é que toda
e o eqüitativo (TÒénieiKéç) e respec lei é universal, mas a respeito de certas
tivas relações com a justiça e o justo. coisas não é possível fazer uma afirma
Porquanto essas coisas não parecem ção universal que seja correta. Nos
ser absolutamente idênticas nem diferir casos, pois, em que é necessário falar
genericamente entre si; e, embora lou de modo universal, mas não é possível
vemos por vezes o eqüitativo e o fazê-lo corretamente, a lei considera o
homem eqüitativo (e até aplicamos caso mais usual, se bem que não ignore
esse termo como expressão laudatória a possibilidade de erro. E nem por isso
a exemplo de outras virtudes, signifi tal modo de proceder deixa de ser cor
cando por ènieuiéoT epov que uma coisa reto, pois o erro não está na lei, nem no
é melhor), em outras ocasiões, pen legislador, mas na natureza da própria
sando bem, nos parece estranho que o coisa, já que os assuntos práticos são
eqüitativo, embora não se identifique dessa espécie por natureza..
com o justo, seja digno de louvor; por Portanto, quando a lei se expressa
que, se o justo e o eqüitativo são dife universalmente e surge um caso que
rentes, um deles não é bom; e, se são não é abrangido pela declaração uni
ambos bons, têm de ser a mesma coisa. versal, é justo, uma vez que o legisla
São estas, pois, aproximadamente, dor falhou e errou por excesso de
as considerações que dão origem ao simplicidade, corrigir a omissão — em
problema em torno do eqüitativo. Em outras palavras, dizer o que o próprio
certo sentido, todas elas são corretas e legislador teria dito se estivesse presen
não se opõem umas às outras; porque te, e que teria incluído na lei se tivesse
o eqüitativo, embora superior a uma conhecimento do caso.
espécie de justiça, é justo, e não é Por isso o eqüitativo é justo, supe
como coisa de classe diferente que é rior a uma espécie de justiça — não à
melhor do que o justo. A mesma coisa, justiça absoluta, mas ao erro prove
pois, é justa e eqüitativa, e, embora niente do caráter absoluto da disposi
ambos sejam bons, o eqüitativo é ção legal. E essa é a natureza do eqüi
superior. tativo: uma correção da lei quando ela
O que faz surgir o problema é que o é deficiente em razão da sua universali
eqüitativo é justo, porém não o legal dade. E, mesmo, é esse o motivo por
mente justo, e sim uma correção da que nem todas as coisas são determi-
ÉTICA NICÔMACO — V 137
nadas pela lei: em torno de algumas é do que uma espécie de justiça. Eviden
impossível legislar, de modo que se faz cia-se também, pelo que dissemos, 35
necessário um decreto. Com efeito, quem seja o homem eqüitativo: o
quando a coisa é indefinida, a regra homem que escolhe e pratica tais atos,
30 também é indefinida, como a régua de que não se aferra aos seus direitos em
chumbo usada para ajustar as moldu mau sentido, mas tende a tomar menos iu8>
ras lésbicas: a régua adapta-se à forma do que seu quinhão embora tenha a lei
da pedra e não é rígida, exatamente por si, é eqüitativo; e essa disposição
como o decreto se adapta aos fatos. de caráter é a eqüidade, que é uma
Toma-se assim bem claro o que seja espéòie de justiça e não uma diferente
o eqüitativo, que ele é justo e é melhor disposição de caráter.
11
atos específicos de injustiça; mas nin conseguinte, ser injustamente tratado é n38b
guém pode cometer adultério com sua menos mau, porém nada impede que
própria esposa, nem assaltar a sua pró seja acidentalmente um mal maior.
pria casa ou furtar os seus próprios Isso, contudo, não interessa à teoria,
bens. que considera a pleuris um mal maior
De um modo geral, a questão: “pode do que um tropeção, muito embora
um homem tratar injustamente a si este último possa tomar-se acidental
mesmo?” é também respondida pela mente mais grave, se a conseqüente
distinção que aplicamos a outra per queda é caüsa de ser o homem captu
gunta: “pode um homem ser injusta rado ou morto pelo inimigo.
mente tratado por seu querer? 78” Metaforicamente e em virtude de 5
É também evidente que são más uma certa analogia, há uma justiça
ambas as coisas: ser injustamente tra não entre um homem e ele mesmo, mas
tado e agir injustamente; porque uma entre certas partes suas. Não se trata,
significa ter menos e a outra ter mais no entanto, de uma justiça de qualquer
}o do que a quantidade mediana, que espécie, mas daquela que prevalece
desempenha aqui o mesmo papel que o entre amo e escravo ou entre marido e
saudável na arte médica e a boa condi mulher. Pois tais são as relações que a
ção na arte do treinamento físico. Não parte racional da alma guarda para
obstante, agir injustamente é pior, pois com a parte irracional; e é levando em
envolve vício e merece censura. E tal conta essas partes que muitos pensam io
vício ou é da espécie completa e irres que um homem pode ser injusto para
trita, ou pouco menos (devemos admi consigo mesmo, a saber: porque as
tir esta segunda alternativa, porque partes em apreço podem sofrer alguma
nem toda ação injusta voluntária im coisa contrária aos seus desejos. Pen
plica a injustiça como disposição de sa-se, por isso, que existe uma justiça
caráter), enquanto ser injustamente mútua entre elas, como entre gover
tratado não envolve vício e injustiça na nante e governado.
35 própria pessoa. Em si mesmo, por E aqui termina a nossa exposição da is
justiça e das outras virtudes — isto é,
78 Cf. 1136 a 31 — 1 1 3 6 b 5 .(N .d o T .) das outras virtudes morais.
LIVRO VI
141
Como dissemos anteriormente que que se defina o que sejam aju sta regra
se deve preferir o meio-termo e não o e o padrão que a determina.
excesso ou a falta, e que o meio-termo Dividimos as virtudes da alma, js
é determinado pelos ditames da reta dizendo que algumas são virtudes do
20 razão, vamos discutir agora a natureza caráter e outras do intelecto. Agora
desses ditames. que acabamos de discutir em detalhe 1139a
Em todas as disposições de caráter as virtudes morais, exponhamos nosso
que mencionamos, assim como em ponto de vista relativo às outras da
todos os demais assuntos, há uma maneira que segue, começando por
meta a que visa o homem orientado fazer algumas observações a respeito
pela razão, ora intensificando, ora da alma.
relaxando a sua atividade; e há um Dissemos anteriormente que esta
padrão que determina os estados me tem duas partes: a que concebe uma
dianos que dizemos serem os meios- regra ou princípio racional, e a privada 5
termos entre o excesso e a falta, e que de razão. Façamos uma distinção sim
estão em consonância com a reta ples no interior da primeira, admitindo
25 razão. Mas, assim dita a coisa, embora que sejam duas as partes que concebe
verdadeira, não é de modo algum evi ram um princípio racional: uma pela
qual contemplamos as coisas cujas
dente; pois não só aqui como em todas
causas determinantes são invariáveis, e
as outras ocupações que são objetos de
outra pela qual contemplamos as coi
conhecimento é correto afirmar que
sas variáveis; porque, quando dois
não devemos esforçar-nos nem relaxar
objetos diferem em espécie, as partes io
nossos esforços em demasia nem de da alma que correspondem a cada um
masiadamente pouco, mas em grau deles também diferem em espécie, visto
mediano e conforme dita a reta razão. ser por uma certa semelhança e afini
Entretanto, se um homem possuísse dade com os seus objetos que elas os
apenas esse conhecimento, não saberia conhecem. Chamemos científica a uma
mais nada: por exemplo, não sabe- dessas partes e calculativa à outra,
3o ríamos que espécies de medicamento pois o mesmo são deliberar e calcular,
aplicar ao seu corpo se alguém disses mas ninguém delibera sobre o invariá
se: “todos aqueles que a arte médica vel. Por conseguinte, a calculativa é
prescreve e que estão de acordo com a uma parte da faculdade que concebe
prática de quem possui a arte” . É um princípio racional. Devemos, is
necessário, pois, com respeito às dispo assim, investigar qual seja o melhor es
sições da alma, não só que se faça essa tado de cada uma dessas duas partes,
declaração verdadeira, mas também pois nele reside a virtude de cada uma.
142 ARISTÓTELES
2
A virtude de uma coisa é relativa ao nação de intelecto e de caráter. O inte- 35
seu funcionamento apropriado. Ora, lecto em si mesmo, porém, não move
na alma existem três coisas que contro coisa alguma; só pode fazê-lo o inte
lam a ação e a verdade: sensação, lecto prático que visa a um fim qual
razão e desejo. quer. E isto vale também para o inte- ll39b
Destas três, a sensação não é princí- lecto produtivo, já que todo aquele que
20 pio de nenhuma ação: bem o mostra o produz alguma coisa o faz com um fim
fato de os animais inferiores possuírem em vista; e a coisa produzida não é um
sensação, mas não participarem da fim no sentido absoluto, mas apenas
ação. um fim dentro de uma relação particu
A afirmação e a negação no racio lar, e o fim de uma operação particu
cínio correspondem, no desejo, ao bus lar. Só o que se pratica é um fim irres
car e ao fugir; de modo que, sendo a trito; pois a boa ação é um fim ao qual
virtude moral uma disposição de cará visa o desejo.
ter relacionada com a escolha, e sendo Portanto, a escolha ou é raciocínio
a escolha um desejo deliberado, tanto desiderativo ou desejo raciocinativo, e s
2s deve ser verdadeiro o raciocínio como a origem de uma ação dessa espécie é
reto o desejo para que a escolha seja um homem. (Deve-se observar que
acertada, e o segundo deve buscar exa nenhuma coisa passada é objeto de
tamente o que afirma o primeiro. escolha; por exemplo, ninguém escolhe
Ora, esta espécie de intelecto e de ter saqueado Tróia, porque ninguém
verdade é prática. Quanto ao intelecto delibera a respeito do passado, mas só
contemplativo, e não prático nem pro a respeito do que está para acontecer e
dutivo, o bom e o mau estado são, pode ser de outra forma, enquanto o
respectivamente, a verdade e a falsi que é passado não pode deixar de
dade (pois essa é a obra de toda a parte haver ocorrido; por isso Agatão tinha
30 racional); mas da parte prática e inte razão em dizer:
lectual o bom estado é a concordância Pois somente isto é ao próprio Deus 10
da verdade com o reto desejo. [vedado:
A origem da ação — sua causa efi O fa zer não sucedido o que uma vez
ciente, não final — é a escolha, e a da [aconteceu.
escolha é o desejo e o raciocínio com Como acabamos de ver, a obra de
um fim em vista. Eis aí por que a esco ambas as partes intelectuais é a verda
lha não pode existir nem sem razão e de. Logo, as virtudes de ambas serão
intelecto, nem sem uma disposição aquelas disposições segundo as quais
moral; pois a boa ação e o seu contrá cada uma delas alcançará a verdade
rio não podem existir sem uma combi em sumo grau.
3
Comecemos, pois, pelo princípio, ções. Dê-se por estabelecido que as
discutindo mais uma vez essas disposi- disposições em virtude das quais a
ÉTICA A NIC ÔM AC O — VI 143
alma possui a verdade, quer afirman bém nos Analíticos19. Com efeito, o
do, quer negando, são em número de ensino procede às vezes por indução e
cinco: a arte, o conhecimento cientí outras vezes por silogismo. Ora, a
fico, a sabedoria prática, a sabedoria indução é o ponto de partida que o
filosófica e a razão intuitiva (não próprio conhecimento do universal
incluímos o juízo e a opinião porque pressupõe, enquanto o silogismo pro
estes podem enganar-se). cede dos universais. Existem, assim,
Ora, o que seja o conhecimento pontos de partida de onde procede o
científico, se quisermos exprimir-nos silogismo e que não são alcançados so
com exatidão e não nos guiar por por este. Logo, é por indução que são
meras analogias, evidencia-se pelo que adquiridos.
segue. Todos nós supomos que aquilo Em suma, o conhecimento científico
20 que sabemos não é capaz de ser de é um estado que nos tom a capazes de
outra forma. Quanto às coisas que demonstrar, e possui as outras caracte
podem ser de outra forma, não sabe rísticas limitativas que especificamos
mos, quando estão fora do nosso nos Analíticos*0, pois é quando um
campo de observação, se existem ou homem tem certa espécie de convic
não existem. Por conseguinte, o objeto ção, além de conhecer os pontos de
de conhecimento científico existe ne partida, que possui conhecimento cien
cessariamente; donde se segue que é tífico. E, se estes não lhe forem mais
eterno, pois todas as coisas que exis bem conhecidos do que a conclusão,
tem por necessidade no sentido abso sua ciência será puramente acidental.
luto do termo são eternas, e as coisas Com isto damos por terminada 35
eternas são ingênitas e imperecíveis. nossa exposição do conhecimento
25 Por outro lado, julga-se que toda científico.
ciência pode ser ensinada e seu objeto,
aprendido. E todo ensino parte do que 79 Segundos Analíticos, 71 a 1. (N. do T.)
já se conhece, como sustentamos tam- »° Ibid., 71 b 9-23. (N. do T.)
com as que o fazem de acordo com a o acaso, e o acaso ama a arte” . Logo, 20
natureza (pois essas têm sua origem como já dissemos, a arte é uma dispo
em si mesmas). sição que se ocupa de produzir, envol
Diferindo, pois, o produzir e o agir, vendo o reto raciocínio; e a carência de
a arte deve ser uma questão de produ arte, pelo contrário, é tal disposição
zir e não de agir; e em certo sentido, o acompanhada de falso raciocínio. E
acaso e a arte versam sobre as mesmas ambas dizem respeito às coisas que
coisas. Como diz Agatão: “A arte ama podem ser diferentemente.
5
No que tange à sabedoria prática, que se pode fazer é capaz de ser
podemos dar-nos conta do que seja diferentemente, nem arte, porque o agir
considerando as pessoas a quem a e o produzir são duas espécies diferen
atribuímos. tes de coisa. Resta, pois, a alternativa
Ora, julga-se que é cunho caracte de ser ela uma capacidade verdadeira e
rístico de um homem dotado de sabe raciocinada de agir com respeito às 5
doria prática o poder deliberar bem coisas que são boas ou más para o
sobre o que é bom e conveniente para homem.
ele, não sob um aspecto particular, Com efeito, ao passo que o produzir
como por exemplo sobre as espécies de tem uma finalidade diferente de si
coisas que contribuem para a saúde e o mesmo, isso não acontece com o agir,
pois que a boa ação é o seu próprio
vigor, mas sobre aquelas que contri
fim. Daí o atribuirmos sabedoria prá
buem para a vida boa em geral. Bem o
tica a Péricles e homens como ele, por
mostra o fato de atribuirmos sabedoria
que percebem o que é bom para si mes
prática a um homem, sob um aspecto
mos e para os homens em geral: 10
particular, quando ele calculou bem
pensamos que os homens dotados de
com vistas em alguma finalidade boa
tal capacidade são bons administra
30 que não se inclui entre aquelas que são
dores de casas e de Estados. (E por
objeto de alguma arte.
isso mesmo damos à temperança o
Segue-se daí que, num sentido geral, nome de am^poaivri, subentendendo que
também o homem que é capaz de deli ela preserva a nossa sabedoria oúÇovoa
berar possui sabedoria prática. Ora, rt}v tppóvrjoiv.
ninguém delibera sobre coisas que não Ora, o que a temperança preserva é
podem ser de outro modo, nem sobre um juízo da espécie que descrevemos.
as que lhe é impossível fazer. Por Porquanto nem todo e qualquer juízo é
conseguinte, como o conhecimento destruído e pervertido pelos objetos
científico envolve demonstração, mas agradáveis ou dolorosos: não o é, por
não há demonstração de coisas cujos exemplo, o juízo a respeito de ter ou
primeiros princípios são variáveis não ter o triângulo seus ângulos iguais
(pois todas elas poderiam ser diferente- a dois ângulos retos, mas apenas os 15
35 mente), e como é impossível deliberar juízos em torno do que se há de fazer.
sobre coisas que são por necessidade, a Com efeito, as causas de onde se origi
iMOb sabedoria prática não pode ser ciência, na o que se faz consistem nos fins visa
nem arte: nem ciência, porque aquilo dos; mas o homem que foi pervertido
ÉTICA A NICÔMACO — VI 145
pelo prazer ou pela dor perde imediata assim como nas outras virtudes, é exa
mente de vista essas causas: não perce tamente o contrário que acontece.
be mais que é a bem de tal coisa ou de Toma-se evidente, pois, que a sabe
vido a tal coisa que deve escolher e doria prática é uma virtude e não uma
fazer aquilo que escolhe, porque o arte. E, como são duas as partes da 25
vício anula a causa originadora da alma que se guiam pelo raciocínio, ela
ação.) deve ser a virtude de uma dessas duas,
20 A sabedoria prática deve, pois, ser isto é, daquela parte que forma opi
uma capacidade verdadeira e racioci niões; porque a opinião versa sobre o
nada de agir com respeito aos bens variável, e da mesma forma a sabedo
humanos. Mas, por outro lado, embora ria prática. Sem embargo, ela é mais
na arte possa haver uma excelência, na do que uma simples disposição racio
sabedoria prática ela não existe; e em nal: mostra-o o fato de que tais dispo- so
arte é preferível quem erra voluntaria sições podem ser esquecidas, mas a
mente, enquanto na sabedoria prática, sabedoria prática, não.
6
O conhecimento científico é um princípios objetos de sabedoria filosó
juízo sobre coisas universais e necessá fica, pois é característico do filósofo
rias, e tanto as conclusões da demons buscar a demonstração de certas coi
tração como o conhecimento científico sas. Se, por conseguinte, as disposições
decorrem de primeiros princípios (pois da mente pelas quais possuímos a ver
ciência subentende apreensão de uma dade e jamais nos enganamos a res
base racional). Assim sendo, o pri peito de coisas invariáveis ou mesmo
variáveis — se tais disposições, digo,
meiro princípio de que decorre o que é são o conhecimento científico, a sabe
cientificamente conhecido não pode doria prática, a sabedoria filosófica e a >
ser objeto de ciência, nem de arte, nem razão intuitiva, e não pode tratar-se de
35 de sabedoria prática; pois o que pode nenhuma das três (isto é, da sabedoria
ser cientificamente conhecido é passí prática, do conhecimento científico ou
vel de demonstração, enquanto a arte e da sabedoria filosófica), só resta uma
ii4ia a sabedoria prática versam sobre coi alternativa: que seja a razão intuitiva
sas variáveis. Nem são esses primeiros que apreende os primeiros princípios.
7
A sabedoria, nas artes, é atribuída campo particular ou sob qualquer
io aos seus mais perfeitos expoentes, por outro aspecto limitado, como diz Ho
exemplo, a Fídias como escultor e a mero no Margites:
Policleto como retratista em pedra; e Nem lavrador, nem mesmo cavador is
por sabedoria, aqui, não entendemos
fizeram os deuses este homem,
outra coisa senão a excelência na arte.
Nem sábio em outra coisa qualquer.
Mas a certas pessoas consideramos sá
bias de modo geral e não em algum É pois evidente que a sabedoria deve
146 ARISTÓTELES
8
A sabedoria política e a prática são Se como parte do numeroso exército
a mesma disposição mental, mas sua [obteria sem esforço
essência não é a mesma. D a sabedoria Um quinhão igual? . . . j
que diz respeito à cidade, a sabedoria Pois os que visam alto demais e
prática que desempenha um papel [fazem muitas coisas. . . 81
25 controlador é a sabedoria legislativa,
enquanto a que se relaciona com os Os que assim pensam buscam o seu
assuntos da cidade como particulares próprio bem e acham que todos deve
dentro do seu universal é conhecida riam fazer o mesmo. Daí vem a opi
pela denominação geral de “ sabedoria nião de que tais homens possuem sabe
política” e se ocupa com a ação e a doria prática; e no entanto, o bem
deliberação, pois um decreto é algo a pessoal de cada um talvez não possa
ser executado sob a forma de um ato existir sem administração doméstica e
individual. Eis aí por que só dos sem alguma forma de governo. Além w
expoentes dessa arte se diz que disso, a maneira de pôr em ordem os
“tomam parte na política” ; porque só seus negócios não é clara e precisa ser
eles “produzem coisas”, como as pro estudada.
duzem os trabalhadores manuais. O que se disse acima é confirmado
A sabedoria prática também é iden pelo fato de que, embora os moços
tificada especialmente com aquela de
possam tomar-se geômetras, matemá
suas formas que diz respeito ao pró- ticos e sábios em matérias que tais,
3o prio homem, ao indivíduo; e essa é não se acredita que exista um jovem
conhecida pela denominação geral de dotado de sabedoria prática. O motivo
“ sabedoria prática” . D as outras espé é que essa espécie de sabedoria diz res
cies, uma é cham ada administração peito não só aos universais mas tam
doméstica, outra, legislação, e a tercei bém aos particulares, que se tomam
ra, política, e desta última uma parte se conhecidos pela experiência. Ora, um
chama deliberativa e a outra, judicial. jovem carece de experiência, que só o h
Ora, saber o que é bom para si é tempo pode dar.
ii42a uma espécie de conhecimento, mas di Caberia aqui também esta outra per
fere muito das outras espécies; e ao gunta: por que um menino pode tor-
homem que conhece os seus interesses
nar-se matemático, porém não filósofo,
e com eles se ocupa atribui-se sabedo nem físico? É porque os objetos da
ria prática, ao passo que os políticos
matemática existem por abstração,
são considerados metediços. Daí as
enquanto os primeiros princípios das
palavras de Eurípides:
M as para que dar-me ao trabalho de 81 Prólogo de Filoctetes, fragmentos 787 e 782.2
[ser sábio, Nauck. (N. do T.)
148 ARISTÓTELES
9
outras matérias mencionadas provêm diato, visto que a coisa a fazer é dessa
da experiência; e também porque os jo natureza.
vens não têm convicção sobre estes úl Ela opõe-se, por outro lado, à razão 25
timos, mas contentam-se em usar a lin intuitiva, que versa sobre as premissas
guagem apropriada, ao passo que a limitadoras das quais não se pode dar
essência dos objetos da matemática a razão, enquanto a sabedoria prática
lhes é bastante clara. se ocupa com o particular imediato,
20 Além disso, o erro na deliberação que é objeto não de conhecimento cien
pode versar tanto sobre o universal tífico mas de percepção — e não da
como sobre o particular, isto é: tanto é percepção de qualidades peculiares a
possível ignorar que toda água pesada um determinado sentido, mas de uma
percepção semelhante àquela pela qual
é má como que esta água aqui presente
sabemos que a figura particular que
é pesada.
temos diante dos olhos é um triângulo;
Que a sabedoria prática não se iden porque tanto nessa direção como na da
tifica com o conhecimento científico, é premissa maior existe um limite. Mas 30
evidente; porque ela se ocupa, como já isso é antes percepção do que sabedo
se disse82, com o fato particular ime- ria prática, embora seja uma percep
ção de outra espécie que não a das
82 1141 b 14-22. (N. do T.) qualidades peculiares a cada sentido.
9
Há uma diferença entre investigação lenta. Do mesmo modo, a vivacidade
e deliberação, pois esta última é a intelectual também difere da exce
investigação de uma espécie particular lência na deliberação; é ela uma espé
de coisa. Devemos apreender igual cie de habilidade em conjeturar.
mente a natureza da excelência na deli Não se pode, por outro lado, identi
beração: se ela é uma forma de conhe ficar a excelência na deliberação com
cimento científico, uma opinião, a uma opinião de qualquer espécie que
habilidade de fazer conjeturas ou algu seja. Mas, como o homem que delibera
ma outra espécie de coisa. mal comete um erro, enquanto o que
1142b Não se trata de conhecimento cienti delibera bem o faz corretamente, claro
fico, porque os homens não investigam está que a excelência no deliberar é
as coisas que conhecem, ao passo que uma espécie de correção — não, w
a boa deliberação é uma espécie de porém, de conhecimento ou de opinião.
investigação, e quem delibera investiga Com efeito, conhecimento correto é
e calcula. coisa que não existe, assim como não
Tampouco é habilidade em fa zer existe conhecimento errado; e a opi
conjeturas, pois, além de implicar nião correta é a verdade. Ao mesmo
ausência de raciocínio, esta é uma qua tempo, tudo que é objeto de opinião já
lidade que opera com rapidez, ao se acha determinado.
passo que os homens deliberam longa Mas, por outro lado, a excelência da
mente, e diz-se que a conclusão do que deliberação envolve raciocínio. Resta,
se deliberou deve ser posta logo em pois,‘ a alternativa de que ela seja a
3 prática, mas a deliberação deve ser correção do raciocínio. Com efeito,
ÉTICA A NICÔMACO — VI 149
esta ainda não é asserção, mas a opi tampouco isso é a excelência no delibe
nião o é, tendo já ultrapassado a fase rar — essa disposição em virtude da
da investigação; e o homem que delibe- qual atingimos o que devemos, se bem
15 ra, quer o faça bem, quer mal, busca que não pelo meio correto.
alguma coisa e calcula. Por outro lado (3), é possível alcan- 25
Mas a excelência da deliberação é çá-lo por uma longa deliberação en
certamente a deliberação correta. Por quanto um outro homem chega a ele
isso devemos indagar primeiro o que rapidamente. Por conseguinte, no pri
seja a deliberação e qual o seu objeto. meiro caso não possuímos ainda a
E, uma vez que existe mais de uma excelência no deliberar, que é a corre
espécie de correção, evidentemente a ção no que diz respeito ao conveniente
excelência no deliberar não é uma — a correção tanto no que toca ao fim
espécie qualquer; porque ( 1) o homem como ao meio e ao tempo.
incontinente e o homem mau, se forem (4) Além disso, é possível ter delibe
hábeis, alcançarão como resultado do rado bem, quer no sentido absoluto,
seu cálculo o que propuseram a si mes quer com referência a um fim particu
mos, de forma que terão deliberado lar. A excelência da deliberação no
corretamente, mas o que terão alcan- sentido absoluto é, pois, aquilo que
20 çado é um grande mal para eles. Ora, logra êxito com referência ao que é o
ter deliberado bem é considerado uma fim no sentido absoluto, e a excelência
boa coisa, pois é essa espécie de delibe da deliberação num sentido particular 30
ração correta que constitui a exce é o que logra um fim particular.
lência da deliberação — isto é, aquela Se, pois, é característico dos homens
que tende a alcançar um bem. dotados de sabedoria prática o ter deli
Entretanto (2), é até possível alcan berado bem, a excelência da delibera
çar o bem e chegar ao que se deve ção será a'correção no que diz respeito
fazer mediante um silogismo falso — àquilo que conduz ao fim de que a
não, todavia, pelo meio correto, sendo sabedoria prática é a apreensão verda
falsa a premissa menor; de forma que deira.
10
A inteligência, da mesma torma, e a nas sobre aquelas que podem tomar-se
perspicácia, em virtude das quais se assunto de dúvidas e deliberação. Por
diz que os homens são inteligentes ou tanto, os seus objetos são os mesmos
iu3a perspicazes, nem se identificam de que os da sabedoria prática; mas inteli
todo com a opinião ou o conhecimento gência e sabedoria prática não são a
científico (pois nesse caso todos seriam mesma coisa. Esta última emite or
homens inteligentes), nem são elas uma dens, visto que o seu fim é o que se
das ciências particulares, como a me deve ou não se deve fazer; a inteli- 10
11
causa é natural. [Donde se segue que a tica. Com efeito, essas pessoas enxer
razão intuitiva é tanto um começo gam bem por que a experiência lhes
como um fim, pois as demonstrações deu um terceiro olho.
partem destes e sobre estes versam.] Acabamos de mostrar, portanto, que u
Por isso devemos acatar, não menos coisas são a sabedoria prática e a sabe
que as demonstrações, os aforismos e doria filosófica, em que consistem uma
opiniões não demonstradas de pessoas e outra, e acrescentamos que cada uma
experientes e mais velhas, assim como é a virtude de uma parte diferente da
das pessoas dotadas de sabedoria prá alma.
12
Mas alguém poderia perguntar de outros que a têm, e seria suficiente
que servem essas faculdades da mente, fazer o que costumamos fazer com res
já que ( 1) a sabedoria filosófica não peito à saúde: embora desejemos gozar
considera nenhuma das coisas que tor saúde, não nos dispomos por isso a
nam um homem feliz (pois não diz res- aprender a arte da medicina.
2o peito às coisas que se geram); e quanto (3) Por outro lado, pareceria estra
à sabedoria prática, embora trate des nho que a sabedoria prática, sendo
sas coisas, para que necessitamos inferior à filosófica, tivesse autoridade
dela? A sabedoria prática é a disposi sobre ela, como parece implicar o fato
ção da mente que se ocupa com as coi de que a arte que produz uma coisa
sas justas, nobres e boas para o qualquer exerce o mando e o govemo
homem, mas essas são as coisas cuja relativamente a essa coisa.
prática é característica de um homem São estas, pois, as questões que js
bom, e não nos tom amos mais capazes cumpre discutir, pois até agora nos
2s de agir pelo fato de conhecê-las se as limitamos a expor as dificuldades.
virtudes são disposições de caráter, do ( 1) Antes de tudo, diremos que n44a
mesmo modo que não somos mais essas disposições de caráter, devem ser
capazes de agir pelo fato de conhecer dignas de escolha porque são as virtu
as coisas sãs e saudáveis não no senti des das duas partes da alma respecti
do de produzirem a saúde, mas no de vamente, e o seriam ainda que nenhu
serem conseqüência dela. Efetiva ma delas produzisse o que quer que
mente, a simples posse da arte médica fosse.
ou da ginástica não n o s'to m a mais (2) Em segundo lugar, elas de fato
capazes de agir. produzem alguma coisa — não,
Mas (2) se dissermos que um porém, como a arte médica produz
homem deve possuir sabedoria prática, saúde, mas como a saúde produz
não para conhecer as verdades morais, saúde. É assim que a sabedoria filosó
mas para tornar-se bom, a sabedoria fica produz felicidade; porque, sendo J
prática nenhuma utilidade terá para os ela uma parte da virtude inteira, tom a
jo que já são bons; e, por outro lado, de um homem feliz pelo fato de estar na
nada serve ela para os que não pos sua posse e de atualizar-se.
suem virtude. Com efeito, nenhuma (3) Por outro lado, a obra de um
diferença faz que eles próprios tenham homem só é perfeita quando está de
sabedoria prática ou que obedeçam a acordo com a sabedoria prática e com
152 ARISTÓTELES
a virtude moral; esta faz com que seja não as aprendemos da virtude e sim de
reto o nosso propósito; aquela, com outra faculdade. Devemos deter-nos
10 que escolhamos os devidos meios. (Da um pouco nestes assuntos e falar deles •
quarta parte da alma, a nutritiva, não mais claramente.
existe nenhuma virtude dessa espécie, Existe uma faculdade que se chama
pois não depende dela fazer ou deixar habilidade, e tal é a sua natureza que 25
de fazer o que quer que seja.) tem o poder de fazer as coisas que con
(4) Quanto a não sermos mais ca duzem ao fim proposto e a alcançá-lo.
pazes de operar coisas nobres e justas Ora, se o fim é nobre, a habilidade é
devido à sabedoria prática, devemos digna de louvor, mas se o fim for mau,
voltar um pouco atrás e partir do a habilidade será simples astúcia; por
seguinte princípio: isso chamamos de hábeis ou astutos os
Assim como dizemos que algumas próprios homens dotados de sabedoria
pessoas que praticam atos justos não prática. Esta não é a faculdade, porém
são necessariamente justas por isso — não existe sem ela, e esse olho da alma
referimo-nos às que praticam os atos não atinge o seu perfeito desenvolvi
prescritos pela lei, quer involuntaria- mento sem o auxílio da virtude, como 30
15 mente, quer devido à ignorância ou por já dissemos83 e como, aliás, é evidente.
alguma outra razão, mas não no inte E a razão disto é que os silogismos em
resse dos próprios atos, embora seja torno do que se deve fazer começam
certo que tais pessoas fazem o que assim: “visto que o fim, isto é, o que é
devem e todas as coisas que o homem melhor, é de tal e tal natureza. . . ”
bem deve fazer — , parece que, do Admitamos, no interesse do argumen
mesmo modo, para alguém ser bom é to, que ela seja qual for, mas só o
preciso encontrar-se em determinada homem bom a conhece verdadeira
disposição quando pratica cada um mente, porquanto a maldade nos per- 3S
2o desses atos: numa palavra, é preciso verte e nos leva a enganar-nos a res
praticá-los em resultado de uma esco peito dos princípios da ação. Donde
lha e no interesse dos próprios atos. está claro que não é possível possuir
Ora, a virtude torna reta a escolha, sabedoria prática quem não seja bom.
mas que coisas sejam aptas por natu
reza a pôr em prática a nossa escolha 83 Linhas 6-26. (N. do T.)
13
1144b Devemos, por isso, voltar mais uma desde o momento de nascer somos jus
vez a considerar a virtude, pois nela se tos, ou capazes de nos dominar, ou
observa uma relação do mesmo gêne bravos, ou possuímos qualquer outra
ro: assim como a sabedoria prática qualidade moral. Não obstante, anda
está para a habilidade (não sendo a mos em busca de outro bem que
mesma coisa, mas semelhante), a virtu propriamente seja tal — queremos que
de natural está para a virtude na acep essas qualidades existam em nós de
ção estrita do termo. Com efeito, todos outro modo. Pois que tanto as crianças
os homens pensam que, em certo senti como os brutos têm as disposições
do, cada tipo de caráter pertence por naturais para essas qualidades, mas,
5 natureza aos que o manifestam, e que . quando desacompanhadas da razão,
ÉTICA A NICÔMACO — VI 153
um homem temperante não tem apeti rado quando não quer imobilizar-se,
tes excessivos nem maus. O homem porque a conclusão não o satisfaz; e
continente, porém, não pode deixar de não pode avançar porque é incapaz de
tê-los; porque, se os apetites são bons, refutar o argumento). Há um silogismo
a disposição de caráter que nos inibe do qual se conclui que a loucura conju
de segui-los é má, de forma que nem gada com a incontinência é virtude,
15 toda continência será boa; e, se eles pois um homem faz o contrário do que
são fracos sem serem maus, não há julga devido à incontinência, mas por
nada de admirável em refreá-los; e, se outro lado, o que é bom lhe parece
são fracos e maus, tampouco é grande mau e algo a ser evitado; e, por conse- so
proeza resistir-lhes. guinte, fará o bem e não o mal.
(3) Além disso, se a continência (5) E ainda: aquele que, por convic
torna um homem propenso a sustentar ção, faz, busca e escolhe o que é agra
tenazmente qualquer opinião, a conti dável seria considerado melhor do que
nência é má — isto é, se o leva a sus quem o faz não em resultado do cálcu
tentar mesmo as opiniões falsas; e se a
lo, mas da incontinência; porque o pri
incontinência faz com que um homem
meiro é mais fácil de curar, dada a
abandone facilmente qualquer opinião,
possiblidade de persuadi-lo a mudar de
haverá uma boa espécie de inconti
idéia. Mas ao incontinente pode-se
nência, de que temos exemplo em
Neoptólemo tal como nos é apresen aplicar o provérbio: “Quando a água 35
to tado no Filoctetes de Sófocles. Com sufoca, com que a faremos descer?” Se
efeito, ele é digno de louvor por não ele tivesse sido persuadido da retidão
haver cumprido o que Ulisses o per do que faz, desistiria quando o persua
suadira a fazer, e isso porque lhe dissem a mudar de idéia; mas acontece 1146b
repugnava mentir. que tal homem age, embora esteja per
(4) Por outro lado, o argumento suadido de algo muito diferente.
sofistico apresenta uma dificuldade. O (6) E finalmente: se a continência e
silogismo inspirado no desejo de expor a incontinência dizem respeito a qual
os resultados paradoxais decorrentes quer espécie de objeto, que vem a ser o
da opinião de um adversário, a fim de incontinente no sentido absoluto? Nin
conquistar a admiração dos ouvintes guém possui todas as formas de incon
para o refutador quando este logra o tinência, mas de algumas pessoas dize
seu desiderato, nos coloca em grande mos que são incontinentes em s
25 embaraço (pois o raciocínio fica amar absoluto.
produzir acessos de loucura. Claro cada uma d|as partes de nosso corpo); e
está, pois, que dos incontinentes se sucede, assim, que um homem age de
pode dizer que se encontram num esta maneira incontinente sob a influência
do semelhante ao dos homens adorme (em certo sentido) de uma razão e de
ço cidos, loucos ou embriagados. O fato uma opinião que não é contrária em si
de usarem uma linguagem própria do mesma, porém apenas acidentalmente, ii47b
conhecimento não prova nada, pois os à reta razão (pois que o apetite lhe é
homens que se acham sob a influência contrário, mas não o é a opinião).
dessas paixões podem até articular Donde se segue que é esse também o
provas científicas e declamar versos de motivo de não serem incontinentes os
Empédocles, e os que apenas começa animais inferiores: com efeito, eles não j
ram a aprender uma ciência podem ali possuem juízo universal, mas apenas
nhavar as suas proposições sem, toda imaginação e-memória de particulares.
via, conhecê-la. Para ser realmente A explicação de como se dissolve a
conhecida, é preciso que se torne uma ignorância e o homem incontinente
parte deles, e isso requer tempo. Logo, recupera o conhecimento é a mesma
é de supor que o uso da linguagem por que no caso dos embriagados e ador
parte de homens em estado de inconti mecidos e não tem nada de peculiar a
nência não signifique mais que as esta condição. Devemos pedi-la aos
declamações de atores em cena. estudiosos de ciência natural. Ora,
25 (d) Também podemos encarar o sendo a segunda premissa, ao mesmo
caso da maneira que segue, com refe
tempo, uma opinião a respeito de um
rência às peculiaridades da natureza
objeto perceptível e aquilo que deter- io
humana. Uma das opiniões é universal,
mina as nossas ações, ou um homem
a outra diz respeito a fatos particula
não a possui quando se encontra no es
res, e aqui nos deparamos com algo
que pertence à esfera da percepção. tado de paixão, ou a possui no sentido
Quando das duas opiniões resulta uma em que ter conhecimento não significa
só, numa espécie de caso a alma afir conhecer, mas apenas falar, como um
m ará a conclusão, enquanto no caso bêbedo que declama versos de Empé
de opiniões relativas à produção ela docles. E, como o. último termo não é
agirá imediatamente (por exemplo, se universal, nem tampouco um objeto de
“tudo o que é doce deve ser provado” e conhecimento científico a mesmo títu
30 “ isto é doce” , no sentido de ser uma lo que o termo universal, parece is
das coisas doces particulares, o mesmo resultar daí a posição que Só
homem que pode agir e não é impedido crates procurou estabelecer; pois não é
procederá imediatamente de acordo em presença daquilo que consideramos
com a conclusão). Quando, pois, está conhecimento propriamente dito que
presente em nós a opinião universal surge a afecção da incontinência (nem
que nos proíbe provar, mas também é verdade que ele seja “arrastado” pela
existe a opinião de que “tudo que é paixão), mas o que se acha presente é
doce é agradável” e de que “isto é apenas o conhecimento perceptual.
doce” (e é esta a opinião ativa), e quan Que isto baste como resposta à
do sucede estar presente em nós o ape questão ao ato acompanhado ou não
tite, uma das opiniões nos manda evi- de conhecimento e de como é possível
35 tar o objeto, mas o apetite nos conduz agir de maneira incontinente com
para ele (pois tem o poder de mover conhecimento de causa.
162 ARISTÓTELES
faz o mesmo levado por apetites pode- cognominado “o filial”, que foi consi
20 rosos: pois que faria o primeiro se os derado um grande tolo por esse moti
seus apetites fossem dessa sorte e se a vo.)
falta dos objetos “necessários” o fizes Com respeito a esses objetos não há,
se sofrer violentamente? pois, maldade pela razão indicada, isto
Ora, dos apetites e prazeres, alguns é: cada um deles é por natureza algo
pertencem à classe das coisas generica digno de escolha em si mesmo. Sem
mente nobres e boas — pois algumas embargo, o excesso em relação a eles é
coisas agradáveis são por natureza mau e deve ser evitado. Analogamente, j
dignas de escolha, enquanto outras não há incontinência no que toca a
lhes são contrárias e outras ainda ocu esses objetos, pois a incontinência não
pam uma posição intermédia, para só deve ser evitada como merece cen
adotar a distinção que estabelecemos sura; mas, em razão de uma seme
25 anteriormente. Exemplos da primeira
lhança quanto ao sentimento, aplica-
classe são a riqueza, o lucro, a vitória,
a honra. E com referência a todos os se-lhes o nome de incontinência
objetos desta espécie ou da interme precisando em cada caso o respectivo
objeto, assim como chamamos de mau
diária não são censurados os homens
por desejá-los e amá-los, mas por faze médico ou mau ator a um homem que
não qualificaríamos de mau em si.
rem-no de certo modo — isto é, indo
ao excesso. Visto, pois, que neste caso não apli
(Em face disto, não são maus todos camos o termo em sentido absoluto
os que, contrariando a reta razão, se porque cada uma dessas condições não
deixam avassalar por um dos objetos é maldade, mas apenas se assemelha à
náturalmente nobres e bons e o bus maldade, é claro que também no outro io
cam em detrimento de tudo mais, caso só se deve considerar como conti
como, por exemplo, os que se ocupam nência e incontinência o que se rela
3o mais do que devem com a honra, ou ciona com os mesmos,objetos que a
com os filhos e os pais. Com efeito, temperança e a intemperança. Aplica
essas coisas são bens e os que delas se mos, porém, o termo à cólera em virtu
ocupam são louvados. Mesmo aí, con de de uma semelhança, precisando
tudo, pode haver um excesso: se, como desta forma: “incontinente no que se
Níobe, por exemplo, alguém lutasse refere à cólera”, como também dize
M48b contra os próprios deuses, ou se fosse mos: “incontinente no que se refere à
tão devotado ao pai quanto Sátiro, honra ou ao lucro”.
6
Veremos agora que a incontinência dizendo “ sim, mas ele batia no seu, e
relativa à cólera é menos vergonhosa seu pai, por sua vez, batia no seu; e
do que aquela que diz respeito aos este menino (apontando para o seu ,0
apetites. filho) baterá em mim quando for
25 ( 1) A cólera parece ouvir o racio homem; isso é de família” ; ou o
cínio até certo ponto, mas ouvi-lo mal, homem que estava sendo levado de
como os servos apressados que partem rastos pelo filho e lhe pediu que paras
correndo antes de havermos acabado se à porta, pois ele próprio só havia
de dizer o que queremos e cumprem a arrastado seu pai até ali.
ordem às avessas, ou os cães que la (3) Por outro lado, os mais afeitos a
dram apenas ouvem bater à porta, sem conspirar contra outros são mais cri
procurar ver primeiro se se trata de minosos. Ora, um homem colérico não
uma pessoa amiga; e da mesma forma se inclina a conspirar, nem o faz a pró- is
3o a cólera, devido à sua natureza ardente pria cólera, que é aberta e franca; mas
e impetuosa, embora ouvindo, não es a natureza do apetite é elucidada pelo
cuta as ordens e precipita-se para a que os poetas chamam Afrodite, “ insi-
vingança. Porque o raciocínio ou a diosa filha de Chipre”, e pelos versos
imaginação nos informa de que fomos de Homero sobre o seu “cinto borda
desprezados ou desconsiderados, e a do” :
cólera, como que chegando à conclu E ali estão os sussurros de amor,
são de que é preciso reagir contra qual Tão sutis que roubam a razão aos
quer coisa dessa espécie, ferve imedia [sábios, por prudentes que sejam89.
tamente; enquanto o apetite, mal o
raciocínio ou a percepção lhe dizem Logo, se esta forma de incontinência é
3s que determinado objeto é agradável, mais criminosa e vergonhosa que a da
1149b corre a desfrutá-lo. Por conseguinte, a cólera, ela é ao mesmo tempo inconti
cólera obedece em certo sentido ao nência no sentido absoluto e também
raciocínio, mas o apetite não. Por isso vício.
é ele mais censurável, pois o homem (4) Ainda mais: ninguém comete 20
incontinente com respeito à cólera é desregramentos com um sentimento de
vencido em certo sentido pelo raciocí dor, mas a cólera é sempre acompa
nio, ao passo que o outro o é pelo ape nhada de dor, enquanto o que comete
tite e não pelo raciocínio. desregramentos age com prazer. Se,
(2) Além disso, perdoamos mais pois, os atos que mais justamente inci
facilmente às pessoas que seguem dese- tam à cólera são mais criminosos do
s jos naturais, ou seja, os apetites co que os outros, mais criminosa é a
muns a todos os homens, na medida incontinência que se deve ao apetite;
em que são comuns. Ora, a cólera e a porquanto na cólera não há desregra-
irritabilidade são mais naturais do que mento.
o apetite pelos excessos, isto é, por Fica bem claro, pois, que a inconti
objetos desnecessários. Sirva de exem nência causada pelo apetite é mais ver-
plo o homem que se defendeu da acu
sação de haver batido no próprio pai 89 Ilíada, XIV, 214, 217. (N. do T.)
166 ARISTÓTELES
gonhosa do que aquela que se rela- Esses não têm a faculdade de escolher
25 ciona com a cólera; e tanto nem de calcular, mas são realmente jj
continência como incontinência dizem desvios da norma natural, como os
respeito aos apetites e prazeres do loucos entre nós.
corpo. Mas é preciso distinguir entre Ora, a bruteza é um mal menor do uso»
estes últimos, porque, como dissemos que o vício, se bem que mais assusta
no começo90, alguns são humanos e dor, pois que a parte pervertida não foi
naturais tanto em espécie como em a melhor, como no homem: os brutos
grandeza, outros são brutais, e outros simplesmente não têm uma parte me
ainda se devem a lesões e doenças lhor. É, pois, como se comparássemos
30 orgânicas. Só com os primeiros têm uma coisa inanimada com um ser vivo
que ver a temperança e a intempe quanto à maldade; porque a maldade
rança, e esse é o motivo por que não daquilo que não possui uma fonte
chamamos temperantes nem intempe originadora de movimento é sempre
rantes aos animais inferiores, a não ser menos daninha, e a razão é uma fonte s
em linguagem figurada e só quando al originadora dessa espécie. E é também
guma raça de animais supera uma o mesmo que comparar a injustiça em
outra na libidinosidade, nos instintos abstrato com um homem injusto. Cada
de destruição e na avidez onívora. um dos dois é em certo sentido pior,
pois um homem mau causará dez
90 1148 b 15-31. (N. do T.) vezes mais dano do que um bruto.
zida a eles pela promessa de prazer e a quando picado pela serpente, ou o Cer-
outra por fugir à dor nascida do apeti cíon de Cárcino na Álope, e como as
te, de modo que esses tipos diferem pessoas que procuram conter o riso e
entre si. Ora, todos fariam pior opinião irrompem numa gargalhada, como
de um homem que, sem apetite ou com ocorreu a Xenofanto. Mas causa sur
um apetite fraco, cometesse algum ato presa que um homem não possa resis
vergonhoso, do que se o fizesse sob a tir e seja derrotado por prazeres e
influência de um forte apetite, e pior do dores que a maioria arrosta sem gran
homem que ferisse um outro sem cóle de dificuldade, quando isso não se deve
ra do que se o fizesse levado pela cóle à hereditariedade on à doença, como a is
ra; pois que faria ele então se a sua ira moleza que é hereditária entre os reis
30 fosse grande? Eis aí por que o homem
dos citas ou aquela que distingue o
intemperante é pior do que o inconti sexo feminino do masculino.
nente.)
O amigo de diversões é também
Das disposições indicadas, pois, a
considerado intemperante, mas na rea
segunda é antes uma espécie de mole
lidade é mole. Porque a diversão é um
za, enquanto a primeira é intempe-
rança. Ao passo que ao homem incon relaxamento da alma, um descanso do
tinente se opõe o continente, ao mole trabalho; e o amigo de diversões é uma
opõe-se o homem dotado de fortaleza; pessoa que vai ao excesso em tais
pois a fortaleza consiste em resistir, coisas.
enquanto a continência consiste em D a incontinência, uma espécie é
35 vencer, e resistir e vencer diferem um impetuosidade e outra é fraqueza. Com
do outro assim como não perder difere efeito, alguns homens, após terem deli- 20
de ganhar; e por isso mesmo a conti berado, não sabem manter, devido à
nência é também mais digna de esco emoção, as conclusões a que chega
lha do que a fortaleza, ram, enquanto outros, por não terem
íuob Ora, o homem deficiente no tocante deliberado, são levados pela sua emo
às coisas a que a maioria resiste, e o ção. E outros (assim como os que
faz com êxito, é mole e efeminado; tomam a iniciativa de fazer cócegas
pois a efeminação também é uma espé eles próprios), quando percebem com
cie de moleza. Um tal homem deixa antecedência e vêem o que vai aconte
arrastar o seu manto para evitar o cer, despertam a tempo e fazem funcio
esforço de erguê-lo e simula doença nar a sua faculdade calculadora, não
sem se considerar infeliz, ao passo que sendo vencidos pela emoção, quer esta
o homem a quem ele imita é realmente seja agradável, quer dolorosa. São as 25
infeliz. pessoas de humor vivaz e de tempera
5 O caso é análogo no que tange à mento excitável as mais sujeitas à
continência e à incontinência. Com forma impetuosa de incontinência;
efeito, não é coisa de causar admiração porque as primeiras, devido à vivaci
que um homem seja derrotado por pra dade, e as segundas, por motivo da vio
zeres ou dores violentos e excessivos, e lência das paixões, não esperam pelo
até nos dispomos a perdoar se ele resis- raciocínio e tendem a seguir a sua
i o tiu como faz o Filoctetes de Teodectes imaginação.
168 ARISTÓTELES
8
O homem intemperante, como disse sos, mas praticam atos criminosos.
mos, não costuma arrepender-se por Ora, como o homem incontinente
que se atém ao que escolheu; mas qual tende a buscar, não por convicção,
quer homem incontinente pode prazeres corporais que são excessivos
30 arrepender-se. Por isso, a posição não e contrários à reta razão, enquanto o
é tal como a expressamos ao formular intemperante está convencido por ser a
o problema, mas o intemperante é espécie de homem feita para buscá-los,
incurável e o incontinente, curável. é o primeiro que facilmente se deixa
Porquanto a maldade se assemelha a dissuadir, ao passo que com o segundo
uma doença como a hidropisia ou a tí nãó acontece assim. Com efeito, a vir- is
sica, enquanto a incontinência é como tude e o vício preservam e destroem,
a epilepsia: a primeira é permanente e respectivamente, o primeiro princípio,
a segunda, intermitente. E, de um e na ação a causa final é o primeiro
3s modo geral, a incontinência e o vício princípio, como as hipóteses o são na
diferem em espécie: o vício não tem matemática. Nem naquele caso, nem
consciência de si mesmo, a inconti- neste é o raciocínio que ensina os pri
1151a nência tem (dos homens incontinentes, meiros princípios — o que ensina a
os que temporariamente perdem o reta opinião a seu respeito é a virtude,
domínio próprio são melhores do que quer natural, quer produzida pelo hábi
os que possuem o princípio racional to. Um homem assim é, pois, tempe
mas não se atêm a ele, visto que os rante, e o seu contrário é o intempe
segundos são derrotados por uma pai rante.
xão mais fraca e não agem sem prévia Mas há uma espécie de homem que 20
deliberação, como os outros); porque o é arrastado pela paixão contrariando a
homem incontinente é como os que se regra justa — um homem a quem a
embriagam depressa e com pouco paixão domina por tal forma que é
vinho — isto é, com menos do que a incapaz de agir de acordo com a reta
maioria das pessoas. razão, mas não ao ponto de fazê-lo
s Vê-se claramente, pois, que a incon acreditar que deva buscar tais prazeres
tinência não é vício (se bem que talvez sem reservas. Esse é o incontinente,
o seja num sentido particularizado). que é superior ao intemperante e não é
Com efeito, a incontinência é contrária mau no sentido absoluto, pois nele se 25
à escolha, enquanto ó vício segue o que conserva o que te,m de melhor, o pri
escolheu. Isso, porém, não impede que meiro princípio. E contrária a ele é
se assemelhem nas ações a que condu outra espécie de homem, que se man
zem. Como disse Demódoco dos milé- tém firme nas suas convicções e não se
sios, “que não eram privados de razão, deixa arrastar, ao menos pela paixão.
mas faziam as mesmas coisas que Toma-se claro, pelo que acabamos
fazem os insensatos” , também os de dizer, que a segunda é uma boa
io incontinentes não são crimino- disposição e a primeira é má.
ÉTICA A NICÔMACO — VII 169
É continente o homem que se atém a ciadas pelo prazer e pela dor, pois
toda e qualquer regra, a toda e qual deleitam-se com a sua vitória quando
quer escolha, ou aquele que se atém à não se deixam persuadir a mudar e so- is
reta escolha? E é incontinente o que frem quando as suas decisões se tor
abandona toda e qualquer escolha, nam nulas, como sucede às vezes com
assim como toda e qualquer regra, ou os decretos: de modo que se asseme
o que abandona a regra e a escolha jus lham mais ao homem incontinente do
tas? Foi assim que colocamos ante que ao seu contrário.
riormente92 o problema. Ou será aci Mas há alguns que abandonam as
dentalmente a toda e qualquer escolha, suas resoluções não por efeito da
mas, em si, à regra e à escolha justas incontinência, como o Neoptólemo de
que um se atém e o outro não? Quando Sófocles. Sem embargo, foi sob a
alguém escolhe ou busca isto no inte influência do prazer que ele tergiversou
resse daquilo, em si busca e escolhe o — mas de um prazer nobre; pois, para 20
segundo, mas acidentalmente o primei ele, dizer a verdade era nobre, e contu
ro. Mas quando falamos em absoluto, do Ulisses o persuadira a mentir. Com
entendemos o que é buscado em si. efeito, nem todos os que fazem alguma
Logo, em certo sentido um sustenta e o coisa tendo em vista o prazer são
outro abandona toda e qualquer opi intemperantes, maus ou incontinentes,
nião; mas, em sentido absoluto, só a mas só os que a fazem por um prazer
reta opinião. vergonhoso.
H á alguns que tendem a sustentar a Como também existe uma espécie
sua opinião e que são chamados teimo de homem que se deleita menos do que
sos, a saber: os que de um modo geral deve com as coisas do corpo e não
são difíceis de persuadir e, em particu olha à reta razão, o intermediário entre 25
lar, que não se deixam persuadir facil ele e o incontinente é o homem conti
mente a mudar de idéia. Esses têm algo nente. Com efeito, o incontinente não
de semelhante ao homem continente, se atém à reta razão porque se deleita
assim como o pródigo se assemelha de em excesso com tais coisas, e este
certo modo ao liberal e o temerário ao homem porque se deleita demasiada
confiante; mas diferem a muitos res mente pouco com elas; ao passo que o
peitos. Com efeito, é à paixão e ao ape homem continente se atém à razão e
tite que um não quer ceder, já que ou não muda por nada deste mundo. Ora,
tras vezes o homem continente se se a continência é boa, ambas as dispo
mostra fácil de persuadir; mas é ao sições contrárias devem ser más, como
raciocínio que os outros resistem, por realmente parecem ser; mas, como o 30
que cultivam seus apetites e muitos outro extremo é observado em muito
deles são conduzidos pelos prazeres. poucos e raramente, pensa-se que a
Ora, as pessoas teimosas são as continência só tem um contrário, a
opiniáticas, as ignorantes e as rústicas incontinência, do mesmo modo que a
— as opiniáticas, porque são influen- temperança só tem um contrário, que é
a intemperança.
92 1146 a 16-31. (N. do T.) Como muitos nomes são aplicados
170 ARISTÓTELES
por analogia, é também por analogia trário à reta razão, enquanto o pri
que viemos a falar da “continência” do meiro é tal que sente prazer mas não se
homem temperante; pois tanto o conti deixa conduzir por ele. E o inconti
nente como o temperante são de tal ín nente e o intemperante também se
dole que jamais contrariam a regra assemelham num ponto: ambos bus
1152a justa levados pelos prazeres corporais; cam os prazeres corporais; diferem,
mas o primeiro possui e o segundo não contudo, pelo fato de o segundo pensar
possui apetites maus. Além disso, o que deve proceder assim, enquanto o
segundo é tal que não sente prazer con primeiro pensa de modo contrário.
10
11
12
Estas são mais ou menos as coisas como mostram as seguintes considera
que se costuma dizer. De tais premis ções:
sas não se segue que o prazer não seja (A) (a) Primeiro, visto que aquilo
um bem, ou mesmo o maior dos bens, que é bom pode sê-lo num de dois sen-
172 ARISTÓTELES
tidos (uma coisa é simplesmente boa, rem entre si, também diferem os praze
enquanto outra é boa para determi res que elas proporcionam.
nada pessoa), as constituições e dispo (c) Por outro lado, não é necessário
sições naturais do ser, com os corres que exista algo melhor do que o prazer
pondentes movimentos e processos, simplesmente por dizerem alguns que o
serão divisíveis da mesma forma. fim é melhor do que o processo. Com
Dos que são considerados maus, al- efeito, os prazeres não são processos,
30 guns o serão em absoluto, porém não nem todos eles envolvem processos: io
para uma pessoa determinada, mas são atividades e fins. E tampouco os
merecedores da sua escolha; e alguns experimentamos quando nos estamos
não merecerão sequer a escolha de tornando alguma coisa, mas quando
uma pessoa determinada, a não ser exercemos alguma faculdade; e nem
numa ocasião particular e por breve todos os prazeres têm um fim diferente
período, e assim mesmo com restri deles mesmos, mas só os prazeres das
ções; outros, enfim, não chegam a ser pessoas que estão sendo conduzidas ao
prazeres, mas apenas parecem tais. aperfeiçoamento de sua natureza. Eis
Refiro-me aos que envolvem dor e cujo por que não é certo dizer que o prazer
fim é curativo, como os processos que seja um processo perceptível, mas
ocorrem nas pessoas doentes. antes deveríamos chamá-lo atividade
(b) Além disso, sendo uma espécie
do estado natural e, em vez de “percep
de bem atividade e outra espécie, esta tível”, “desimpedida”. Alguns o consi- u
do, os processos que nos restituem ao deram um processo simplesmente por
nosso estado natural só são agradáveis que pensam que ele é bom no sentido
35 acidentalmente. Aliás, a atividade ca- estrito do termo; pois julgam, equivo-
nalizáda para os apetites que têm esses cadamente, que a atividade seja um
bens por objeto é a atividade daquela processo.
parte de nosso estado e natureza que (B) A opinião de que os prazeres são
permaneceu incólume; pois em verda maus porque algumas coisas agradá
de há prazeres que não envolvem dor veis são malsãs eqüivale a dizer que as
1153a nem apetite (como os da contempla coisas saudáveis são más porque algu
ção, por exemplo), estando a natureza mas coisas saudáveis nos impedem de
intata nesses casos. Que os outros são ganhar dinheiro. Ambas são más nos
acidentais, indica-o o fato de algumas casos particulares mencionados, mas
pessoas não se deleitarem, quando sua não são más em si mesmas por essa
natureza se encontra no estado normal, razão; e até pode suceder, às vezes, que 20
com os mesmos objetos agradáveis que pensar faça mal à saúde.
lhes causam prazer quando ela está Nem a sabedoria prática, nem qual
sendo refeita; mas no primeiro caso quer estado do ser é impedido pelo pra
deleitam-se com coisas que são agra zer que ele proporciona. São os praze
dáveis no sentido absoluto, e no segun res estranhos que têm um efeito
do, também com os contrários destas, impeditivo, visto que os prazeres ad
5 inclusive com coisas acres e amargas, vindos do pensar e do aprender nos
nenhuma das quais é agradável quer fazem pensar e aprender ainda mais.
por natureza, quer em sentido absolu (C) N ada mais natural do que o fato
to. Os estados que elas produzem, por de nenhum prazer ser o produto de
conseguinte, não são prazeres natural uma arte qualquer. Não existe arte de
mente nem no sentido absoluto; pois, nenhuma outra atividade tampouco,
assim como as coisas agradáveis dife mas apenas da faculdade correspon- 25
ÉTICA A NICÔMACO — VII 173
dente, embora seja certo que as artes que sentido outros não são bons. Ora,
do perfumista e do cozinheiro são tanto os brutos como as crianças bus
consideradas artes de prazer. cam prazeres da segunda espécie (e o
(D) Os argumentos baseados nas homem de sabedoria prática busca
premissas de que o homem temperante uma tranqüila isenção dos prazeres
evita os prazeres, e de que o homem dessa espécie): referimo-nos aos que
dotado de sabedoria prática busca a implicam apetite e dor; isto é, os praze
vida sem dor e de que as crianças e os res corporais (pois estes é que são de
brutos buscam o prazer são todos refu tal natureza), e aos excessos dos mes
tados pela mesma consideração. Já mos, em virtude dos quais se diz que
mostramos9 7 em que sentido alguns um homem é intemperante. Eis aí por
prazeres são bons em absoluto e em que o homem* temperante evita esses
prazeres; porquanto ele também tem
97 1 1 5 2 b 2 6 — 1153 a 7 . ( N . d o T . ) os seus prazeres próprios.
13
Mas, além disso (E), todos concor mais digna de nossa escolha; e essa ati
dam em que a dor é má e deve ser evi vidade é prazer. E assim, o sumo bem
tada; porquanto algumas dores são seria alguma espécie de prazer, embora
más em sentido absoluto, e outras são a maioria dos prazeres fossem talvez
más porque de algum modo nos ser maus em sentido absoluto.
vem de impedimento. Ora, o contrário Por essa mesma razão todos os ho
do que deve ser evitado, enquanto mens pensam que a vida feliz é agradá
coisa vitanda e má, é bom. O prazer, vel e entremeiam o prazer no seu ideal
por conseguinte, é necessariamente um da felicidade — o que, aliás, é bastante
bem. E a resposta de Espeusipo, dizen sensato, jà que nenhuma atividade é
do que o prazer é contrário tanto à dor perfeita quando impedida, e a felici
como ao bem, assim como o maior é dade é uma coisa perfeita. Eis aí por
contrário tanto ao menor como ao que o homem feliz necessita dos bens
igual, não consegue convencer, pois corporais e exteriores, isto é, os da for
que o próprio Espeusipo não diria que tuna, a fim de não ser impedido nesses
o prazer é, essencialmente, uma sim campos. Os que dizem que o homem
ples espécie de mal. torturado no cavalete ou aquele que
E (F), se certos prazeres são maus, sofre grandes infortúnios é feliz se for
isso não impede que o sumo bem seja bom estão disparatando, quer falem a
algum prazer, assim como o sumo bem sério, quer não.
pode ser alguma espécie de conheci E pelo fato de necessitarmos da for
mento, não obstante certas espécies de tuna como de outras coisas, alguns
conhecimento serem más. Talvez seja identificam a boa fortuna com a felici
até necessário, se a cada disposição dade; mas sucede que a própria boa
pode corresponder uma atividade de fortuna, quando em excesso, é um
simpedida, que, não sendo a felicidade obstáculo, e talvez já não mereça o
outra coisa senão a atividade desimpe nome de boa fortuna, pois que o seu li
dida de todas as nossas disposições ou mite é fixado com referênçia à felici
de algumas delas, seja essa a coisa dade..
174 ARISTÓTELES
14
(G) Com respeito aos prazeres cor rosos, com vinhos e com a união
porais, os que dizem que alguns praze sexual, mas nem todos o fazem como
res são muito dignos de escolha, a devem). Com a dor dá-se o contrário,
saber, os nobre, porém não os corpo pois ele não evita o seu excesso: evita-a 20
rais, isto é, aqueles a que se dedica o de todo; e isso lhe é peculiar, já que o
homem intemperante, devem examinar excesso de prazer não tem como alter
10 por que, nesse caso, as dores contrá nativa a dor, salvo para o homem que
rias são más. Porquanto o contrário do busca esse excesso.
mau é bom. Serão bons os prazeres Como devemos expor não somente a
necessários no sentido em que mesmo verdade, mas também a causa do erro
aquilo que não é mau é bom? Ou serão — pois isso contribui para convencer,
bons até certo ponto? Dar-se-á o caso uma vez que quando se dá uma expli
que, se de alguns estados e processos cação razoável de por que o falso pare
não pode haver demasia, tampouco a ce verdadeiro, isso tende a fortalecer a
pode haver do prazer correspondente, e crença na opinião verdadeira — , cum- 25
quando aqueles comportam excesso, pre-nos mostrar agora a razão de os
is também o comportam estes? prazeres corporais parecerem mais
Ora, é certo que pode haver excesso dignos de escolha.
de bens corporais, e o homem mau é (a) Em primeiro lugar, pois, é por
mau por buscar o excesso e não por que eles expulsam a dor: devido aos
buscar os prazeres necessários (pois excessos de dor que experimentam, os
todos os homens deleitam-se de um homens buscam prazeres excessivos e,
modo ou de outro com acepipes sabo em geral, de natureza corporal como
ÉTICA A NICÔMACO — VII 175
30 remédio para a dor. Ora, os meios a dor é expulsada não só pelo prazer
curativos provocam intenso senti contrário como por qualquer prazer,
mento (e é este o motivo de serem bus contanto que seja forte; e por esta is
cados), pelo contraste entre eles e a dor razão elas se tornam intemperantes e
contrária. (E, em verdade, considera-se más.
que o prazer não é bom por estas duas Os prazeres que não envolvem dor,
razões, como já d issem o s", a saber: pelo contrário, não admitem excesso; e
(a) que alguns deles são atividades esses se contam entre as coisas agradá
pertinentes a uma natureza má — quer veis por natureza e não por acidente.
congênita no caso de um bruto, quer Por coisas acidentalmente agradáveis
devida ao hábito, isto é, a dos homens entendo as que agem como meios cura
maus: ao passo que (0) outros se desti tivos (pelo motivo de serem as pessoas
nam a curar uma natureza deficiente; curadas por elas, mediante alguma
ora, é melhor gozar saúde do que ação da parte que permanece sadia, o
1154b estar-se curando, mas esses prazeres processo é considerado agradável); e
surgem durante o processo de cura e, por coisas naturalmente agradáveis
por conseguinte, são bons apenas aci entendo as que estimulam a ação da
dentalmente.) natureza sã.
(b) Além disso, eles são buscados Não existe coisa alguma que seja 20
devido à sua violência pelos que não sempre agradável, já que nossa natu
podem desfrutar outros prazeres. (Em reza não é simples, mas existe em nós
todo caso, dão-se ao trabalho de fabri também um outro elemento por sermos
car sedes, por assim dizer, para si mes criaturas mortais; de modo que, se um
mos; quando estas são inofensivas, a elemento produz determinado efeito,
prática é inocente, e quando são preju- este é antagônico à outra natureza; e
s diciais, é má.) Tais pessoas não têm quando os dois elementos estão equili
nada mais que gozar e, além disso, brados o efeito não parece agradável
para a natureza de muitas pessoas um nem desagradável; porquanto, se a
estado neutro é doloroso. Com efeito, a natureza de um ser fosse simples, a
natureza animal está em constante mesma coisa lhe seria sempre agradá- 25
labuta, e isto é também confirmado vel no mais alto grau. É por isso que
pelos estudiosos de ciência natural Deus sempre goza um prazer único e
quando dizem serem dolorosas a visão simples: com efeito, não existe apenas
e a audição, sucedendo apenas que nos uma atividade do movimento, mas
acostumamos a elas. também uma atividade do repouso, e
Do mesmo modo, as pessoas jovens, experimenta-se mais prazer no repouso
devido ao processo de crescimento, do que no movimento. Mas “ a mudan
encontram-se numa condição seme ça é aprazível em todas as coisas” ,
lhante à dos embriagados, e a moci- como diz o poeta100, em razão de
io dade é um estado agradável. As pes algum vício; pois, assim como o
soas de natureza excitável, por outro homem vicioso se caracteriza pela
lado, necessitam constantemente de mutabilidade, a natureza que necessita 30
alívio; o seu próprio corpo vive ator de mudar é viciosa, por não ser simples
mentado por efeito de seu tempera nem boa.
mento, e elas estão sempre sob a Aqui termina a nossa discussão da
influência de um desejo violento; mas continência e da incontinência, do pra-
99 1152 b 26 33. (N. do T.) 100 Eurípides, Orestes, 234. (N. do T.)
176 ARISTÓTELES
zer e da dor. Mostramos tanto o que alguns são bons e outros maus. Resta
cada um é em si como em que sentido agora falar da amizade.
LIVRO VIII
179
1155a Depois do que dissemos segue-se os homens; por isso louvamos os ami
naturalmente uma discussão da amiza gos de seu semelhante. Até em nossas
de, visto que ela é uma virtude ou viagens podemos ver quanto cada
implica virtude, sendo, além disso, homem é chegado e caro a todos os
5 sumamente necessária à vida. Porque outros. A amizade também parece
sem amigos ninguém escolheria viver, mantçr unidos os Estados, e dir-se-ia
ainda que possuísse todos os outros que os legisladores têm mais amor à
bens. E acredita-se, mesmo, que os amizade do que à justiça, pois aquilo a
ricos e aqueles que exercem autoridade que visam acima de tudo é à unanimi
e poder são os que mais precisam de dade, que tem pontos de semelhança 25
amigos; pois de que serve tanta prospe com a amizade; e repelem o faccio-
ridade sem um ensejo de fazer bem, se sismo como se fosse o seu maior inimi
este se faz principalmente e sob a go. E quando os homens são amigos
forma mais louvável aos amigos? Ou não necessitam de justiça, ao passo
como se pode manter e salvaguardar a que os justos necessitam também da
prosperidade sem amigos? Quanto amizade; e considera-se que a mais
io maior é ela, mais perigos corre. genuína forma de justiça é uma espécie
Por outro lado, na pobreza e nos de de amizade.
mais infortúnios os homens pensam Não é ela, contudo, apenas necessá
que os amigos são o seu único refúgio. ria, mas também nobre, porquanto lou
A amizade também ajuda os jovens a vamos os que amam os seus amigos e
afastar-se do erro, e aos mais velhos, considera-se uma bela coisa ter muitos
atendendo-lhes às necessidades e su deles. E pensamos, por outro lado, que 30
prindo as atividades que declinam por as mesmas pessoas são homens bons e
efeito dos anos. Aos que estão no vigor amigos.
da idade ela estimula à prática de no- Ora, certos pontos atinentes à ami
is bres ações, pois na companhia de ami zade são matéria de debate. Alguns a
gos — “dois que andam juntos101 ” — definem como uma espécie de afini
os homens são mais capazes tanto de dade e dizem que as pessoas seme
agir como de pensar. lhantes são amigas, donde os aforis
E também os pais parecem senti-la mos “igual com igual”, “cada ovelha 35
naturalmente pelos filhos e os filhos com sua parelha”, etc.; outros, pelo
pelos pais, não só entre os homens, contrário, dizem que “dois do mesmo 1155 b
mas entre as aves e a maioria dos ani- ofício nunca estão de acordo”. E inves
20 mais. Membros da mesma raça a sen tigam esta questão buscando causas
tem uns pelos outros, e especialmente mais profundas e mais físicas, dizendo
Eurípedes que “ a terra resseca ama a
101 Odisséia, XVII, 218. (N. do T.) chuva, e o majestoso céu, quando pre-
180 ARISTÓTELES
nhe de chuva, adora cair sobre a mos deixá-los de parte, pois não per
5 terra102”, e Heráclito: “o que se opõe tencem à presente investigação. Exa
é que ajuda”, e “de notas diferentes minemos os que são humanos e
nasce a melodia mais bela” , e ainda: envolvem caráter e sentimento, por 10
“todas as coisas são geradas pela exemplo: se a amizade pode nascer
luta” 103; ao passo que Empédòcles, entre duas pessoas quaisquer, se
juntamente com outros, exprime a opi podem ser amigos os maus, e se existe
nião contrária de que o semelhante uma só espécie de amizade, ou mais.
busca o semelhante. Os que pensam que só existe uma por
Quanto aos problemas físicos, pode- que a amizade admite graus baseiam-
se num indício inadequado, visto que
mesmo as coisas que diferem em espé
102 Fragmento 898, 7-10, Nauck. (N. do T.) cie admitem graus. Este assunto já foi i5
103 Fragmento 8, Diels. (N. do T.) discutido por nós anteriormente.
3
Ora, essas razões diferem umas das pessoas buscam não o agradável, mas
outras em espécie; portanto, é em espé o útil) e, dos jovens e dos que estão no
cie que diferem também as correspon vigor dos anos, entre os que buscam a
dentes formas de amor e de amizade. utilidade. E tampouco tais pessoas
Há, assim, três espécies de amizade, convivem muito umas com as outras,
iguais em número às coisas que são pois às vezes nem sequer se vêem com
estimáveis; pois com respeito a cada agrado, e por isso não sentem necessi
uma delas existe um amor mútuo e dade de tal companhia, a menos que
conhecido, e os que se amam desejam- sejam mutuamente úteis: o convívio só
se bem a respeito daquilo por que se lhes é agradável na medida em que
amam. despertam uma na outra a esperança 30
10 Ora, os que se amam por causa de de algum bem futuro.
sua utilidade não se amam por si mes Entre essas amizades alguns classi
mos, mas em virtude de algum bem ficam também a que se observa entre
que recebem um do outro. Idêntica hospedeiro e hóspede. A amizade dos
coisa se pode dizer dos que se amam jovens, por outro lado, parece visar ao
por causa do prazer; não é devido ao prazer, pois eles são guiados pela emo
caráter que os homens amam as pessoas ção e buscam acima de tudo o que lhes
espirituosas, mas porque as acham é agradável e o que têm imediatamente
agradáveis. Logo, os que amam por diante dos olhos; mas com o correr dos
causa da utilidade, amam pelo que é anos os seus prazeres tomam-se dife
bom para eles mesmos, e os que amam rentes. É por isso que fazem e desfa
por causa do prazer, amam em virtude zem amizades rapidamente: sua ami- 35
« do que é agradável a eles, e não na me zade muda com o objeto que lhes
dida em que o outro é a pessoa amada, parece agradável, e tal prazer se altera
mas na medida em que é util ou bem depressa.
agradável. Os jovens são também amorosos, 1156b
De forma que essas amizades são pois, em sua maior parte, a amizade
apenas acidentais, pois a pessoa amada que existe no amor depende da emoção
não é amada por ser o homem que é, e visa ao prazer; é por isso que tão
mas porque proporciona algum bem depressa se apaixonam como esque
ou prazer. Eis por que tais amizades se cem a sua paixão, muitas vezes mu
20 dissolvem facilmente, se as partes não dando no espaço de um dia. Mas é
permanecem iguais a si mesmas: com certo que tais pessoas desejam passar
efeito, se uma das partes cessa de ser juntas os seus dias e a sua vida inteira,
agradável ou útil, a outra deixa de pois só assim alcançam o propósito da s
amá-la. sua amizade.
Ora, o útil não é permanente, mas A amizade perfeita é a dos homens
muda constantemente. E assim, quan que são bons e afins na virtude, pois
do desaparece o motivo da amizade, esses desejam igualmente bem um ao
esta se dissolve, pois que existia apenas outro enquanto bons, e são bons em si
para os fins de que falamos. Essa espé- mesmos. Ora, os que desejam bem aos
25 cie de amizade parece existir principal seus amigos por eles mesmos são os
mente entre velhos (pois na velhice as mais verdadeiramente amigos, porque
182 ARISTÓTELES
o fazem em razão da sua própria natu- zade desta espécie as outras qualidades
10 reza e não acidentalmente. Por isso sua também são semelhantes em ambos; e
amizade dura enquanto são bons — e o que é irrestritamente bom também é
a bondade é uma coisa muito durável. agradável no sentido absoluto. do
E cada um é bom em si mesmo e para termo, e essas são as qualidades mais
o seu amigo, pois os bons são bons em estimáveis que existem. O amor e a
absoluto e úteis um ao outro. E da amizade são, portanto, encontrados
15 mesma forma são agradáveis, por principalmente e em sua melhor forma
quanto os bons o são tanto em si mes entre homens desta espécie.
mos como um para o outro, visto que a Mas é natural que tais amizades não 25
cada um agradam as suas próprias ati sejam muito freqüentes, pois que tais
vidades e outras que lhes sejam seme homens são raros. Acresce que uma
lhantes, e as ações dos bons são as amizade dessa espécie exige tempo e
mesmas ou semelhantes. familiaridade. Como diz o provérbio,
Uma tal amizade é, como seria de os homens não podem conhecer-se
esperar, permanente, já que éles encon mutuamente enquanto não houverem
tram um no outro todas as qualidades “provado sal juntos” ; e tampouco
que os amigos devem possuir. Com podem aceitar um ao outro como ami
efeito, toda a amizade tem em vista o gos enquanto cada um não parecer
20 bem ou o prazer — bem ou prazer, estimável ao outro e este não deposita^
quer em abstrato, quer tais que possam confiança nele. Os que não tardam a 30
ser desfrutados por aquele que sente a mostrar mutuamente sinais de amizade
amizade — , e baseia-se numa certa desejam ser amigos, mas não o são a
semelhança. E à amizade entre homens menos que ambos sejam estimáveis e o
bons pertencem todas as qualidades saibam; porque o desejo da amizade
que mencionamos, devido à natureza pode surgir depressa, mas a amizade
dos próprios amigos, pois numa ami não.
4
Essa espécie de amizade, pois, é per gos recebem a mesma coisa um do
feita tanto no que se refere à duração outro (o prazer, por exemplo) — e não s
como a outros respeitos, e nela cada só a mesma coisa, mas também da
um recebe de cada um a todos os res mesma fonte, como ocorre entre pes
peitos o mesmo que dá, ou algo de soas espirituosas, e não como sucede
semelhante; e é exatamente isso a que entre amante e amado. Porquanto estes
35 deve acontecer entre amigos. não recebem prazer das mesmas fon
A amizade que visa ao prazer tem tes, mas o amante compraz-se em ver o
certa parecença com esta espécie, por- amado e este em receber atenções do
1157 a quanto as pessoas boas são de fato seu amante; e quando começa a passar
agradáveis umas às outras. O mesmo o viço da mocidade a amizade também
se pode dizer da amizade que busca a se desvanece (porque um não experi
utilidade, pois os bons também são menta prazer em ver o outro, e o
úteis uns aos outros. Entre os homens segundo não mais recebe atenções do
destas espécies inferiores as amizades primeiro). Muitos amantes, porém, são >0
são mais permanentes quando os ami- constantes, quando a familiaridade os
ÉTICA A NICÔMACO — VIII 183
5
Assim como, no tocante às virtudes, um com o outro e conferem-se mútuos
alguns homens são chamados bons benefícios, mas os que dormem ou que
com referência a uma disposição de se acham separados no espaço não rea
caráter e outros com referência a uma lizam, mas estão dispostos a realizar
atividade, também o mesmo sucede no os atos da amizade. A distância não
que diz respeito à amizade. Efetiva rompe a amizade em absoluto, mas
mente, os que vivem juntos deleitam-se apenas a sua atividade. Todavia, se a
184 ARISTÓTELES
i U8a Entre pessoas idosas e acrimoniosas se tom am amigas facilmente. Mas tais
é menos fácil formar-se amizade, por homens podem sentir benevolência uns
quanto tais pessoas são menos bem- pelos outros, desejando-se bem e aju
humoradas e se comprazem menos na dando-se quando um precisa do outro.
companhia umas das outras; e estas Mal se pode dizer, no entanto, que
são consideradas as maiores marcas de sejam amigos, porque não passam os
amizade e as que mais contribuem dias juntos nem se deleitam na compa
para produzi-la. É por isso que, en nhia um do outro; e estas são conside
quanto os jovens são rápidos em fazer radas as maiores marcas da amizade.
J amizades, o mesmo não se dá com os Não se pode ser amigo de muitas 10
velhos: os homens não se tom am ami pessoas no sentido de ter com elas uma
gos daqueles em cuja companhia não amizade perfeita, assim como não se
se comprazem. E, da mesma forma, pode amar muitas pessoas ao mesmo
também as pessoas acrimoniosas não tempo (pois o amor é, de certo modo,
ÉTICA A NICÔMACO — VIII 185
vez não lhe deseje todos os maiores quer outro, que cada homem deseja o
bens, pois é a si mesmo, antes de qual- bem.
A maioria das pessoas parecem, de perar; e amam os seus filhos mesmo
vido à ambição, preferir ser amada a quando estes, por ignorância, não lhes
amar. E é por isso que os homens, em dão nada do que se deve a uma mãe.
geral, amam a lisonja. Com efeito, o E assim, como a amizade depende
lisonjeiro é um amigo em posição infe- mais do amar que do ser amado, e são
15 rior, ou finge ser tal ao mesmo tempo os que amam os seus amigos que são
que simula amar mais do que é amado; louvados, o amar parece ser a virtude 35
e ser amado parece ter bastante seme característica dos amigos, de modo
lhança com ser honrado, e isso é o que que só aqueles que amam na medida
a maioria das pessoas ambicionam. justa são amigos duradouros, e só a
Entretanto, dir-se-ia que elas não amizade desses resiste ao tempo.
preferem a honra em si, mas apenas É deste modo, mais que de qualquer 1159b
acidentalmente; porquanto a maioria outro, que até os desiguais podem ser
gosta de ser honrada pelos que ocupam amigos, pois é possível estabelecer-se
2o posição de autoridade, em razão de uma igualdade entre eles. Ora, igual
suas esperanças (pois pensam que, se dade e semelhança são amizade, e
necessitarem de alguma coisa, conse especialmente a semelhança dos que
gui-las-ão com eles, e por isso se com são afins pela virtude. Com efeito, s
prazem na honra como prenuncio de sendo constantes por natureza, eles
favores futuros). Os que desejam ser mantêm-se fiéis um ao outro e não soli
honrados por homens bons e sábios, citam nem prestam serviços baixos,
por seu lado, querem confirmar a boa mas pode-se dizer que até previnem
opinião que fazem de si mesmos; e, por tais ocorrências, pois é característico
conseguinte, deleitam-se em ser honra dos homens bons não fazer o mal eles
dos porque acreditam na sua própria próprios, nem permitir que seus ami
bondade estribados no julgamento dos gos o façam. Os maus, porém, não têm
que falam a seu respeito. constância, visto que nem sequer a si
O ser amado, por outra parte, mesmos
é se mantêm semelhantes, mas
25 deleitável em si mesmo, e por isso afi- são amigos durante breve tempo, por
gura-se preferível ao ser honrado; e a se deleitarem na maldade um do outro. 10
amizade parece digna de ser desejada As amizades úteis ou agradáveis
por si mesma. Mas dir-se-ia que ela re duram mais, isto é, subsistem enquanto
side antes em amar do que em ser qs amigos proporcionam prazeres ou
amado, como mostra o deleite que as vantagens um ao outro.
mães sentem em amar; pois algumas A amizade com vistas na utilidade
mães entregam os filhos a outros para parece ser a que mais facilmente se
serem educados, e, enquanto conhecem forma entre contrários, como, por
só o destino deles, amam-nos sem procu exemplo, entre pobre e rico, entre igno
rar ser amadas em troca (se não lhes rante e letrado; porque um homem
são possíveis ambas as coisas), mas ambiciona- aquilo que lhe falta e dá
parecem contentar-se em vê-los pros algo em troca. Mas nesta classe tam- 15
188 ARISTÓTELES
9
25 Como dissemos no começo de nossa e os dos irmãos entre si, nem os dos
discussão106, a amizade e a justiça camaradas ou dos concidadãos; e o
parecem dizer respeito aos mesmos mesmo no que toca às outras espécies
objetos e manifestar-se entre as mes de amizade.
mas pessoas. Com efeito, em toda Há também uma diferença, por
comunidade pensa-se que existe algu conseguinte, entre os atos que são
ma forma de justiça, e igualmente de injustos para com cada uma dessas
amizade; pelo menos, os homens diri classes de associados, e a injustiça
gem-se como amigos aos seus compa cresce de ponto quando se manifesta
nheiros de viagem ou camaradas de para com os que são amigos num sen
armas, e da mesma forma aos que se tido mais pleno; por exemplo, é mais
lhes associam em qualquer outra espé detestável defraudar um cam arada do
cie de comunidade. E até onde vai a que um concidadão, mais odioso dei- 5
xar de ajudar um irmão do que um
30 sua associação vai a sua amizade, estranho, e mais abominável ferir o
como também a justiça que entre eles próprio pai do que a qualquer outro. E
existe. E o provérbio segundo o qual as imposições da justiça também pare
“os amigos têm tudo em comum” é a cem aumentar com a intensidade da
expressão da verdade, pois a amizade amizade, o que implica que a amizade
depende da comunhão de bens. e a justiça existem entre as mesmas
Ora, os irmãos e os camaradas pos pessoas e são coextensivas.
suem todas as coisas em comum, mas Ora, todas as formas de comunidade
esses outros a quem nos referimos pos são como partes da comunidade políti
suem em comum certas coisas — al ca. Por exemplo: é tendo em vista algu
guns mais e outros menos: porque das ma vantagem particular que os homens
35 amizades, também algumas são verda viajam juntos, e a fim de proverem al- 10
deiras amizades em maior e outras em guma coisa necessária à vida; e é por
menor grau. E as imposições da justiça causa da vantagem que a comunidade
também diferem: não são os mesmos política parece ter-se formado e perdu
i i60a os deveres dos pais para com os filhos rar, pois esse é o objetivo que os legis
ladores se propõem, e chamam justo o
10 6 1 155 a 22-28. (N .do T .) que concorre para a vantagem comum.
ÉTICA A NICÔMACO — VIII 189
10
Existem três espécies de constitui pois o contrário do melhor é que é o
ção e igual número de desvios — pior.
perversões daquelas, por assim dizer. A monarquia degenera em tirania, w
As constituições são a monarquia, a que é a forma pervertida do governo de
aristocracia, e em terceiro lugar a que um só homem, e o mau rei converte-se
se baseia na posse de bens e que seria em tirano. A aristocracia, por seu lado,
talvez apropriado chamar timocracia, degenera em oligarquia pela ruindade
embora a maioria lhe chame governo dos governantes, que distribuem sem
s s do povo. A melhor delas é a monar eqüidade o que pertence ao Estado —
quia, e a pior é a timocracia. todas ou a maior parte das coisas boas
O desvio da monarquia é a tirania, para si mesmos, e os cargos públicos
pois que ambas são formadas de sempre para as mesmas pessoas,
n60b governo de um só homem, mas há olhando acima de tudo a riqueza; e 15
entre elas a maior diferença possível. O destarte os governantes são poucos e
tirano visa à sua própria vantagem, o maus, em lugar de serem os mais
rei à vantagem de seus súditos. Com dignos.
efeito, um homem não é rei a menos A timocracia, por seu lado, dege
que baste a si mesmo e supere os seus nera em democracia. Ambas são coex-
súditos em todas as boas coisas. Ora, tensivas, já que a própria timocracia
um homem em tais condições de mais tem como ideal o governo da maioria,
nada precisa, e por isso não olhará aos e os que não têm posses são contados
s seus interesses, mas aos de seus súdi como iguais aos outros. A democracia 20
tos; pois o rei que assim não for terá é a menos má das três espécies de
da realeza apenas o título. Ora, a tira perversão, pois no seu caso a forma de
nia é o contrário exato de tudo isso: o constituição não apresenta mais que
tirano visa ao seu próprio bem. E é evi um ligeiro desvio.
dente ser esta a pior forma de desvio, São estas pois as mudanças a que
190 ARISTÓTELES
11
10 Mostra a observação que cada uma filhos, a qual todos consideram o
das constituições comporta amizade maior dos bens, assim como provê à
na exata medida em que comporta a sua alimentação e educação. Tudo isso
justiça. A amizade entre um rei e seus se costuma atribuir também aos avós.
súditos depende de um excesso de E acresce que, por natureza, um pai
benefícios conferidos, porquanto o rei tende a governar seus filhos, os avós
os confere aos seus súditos quando, aos descendentes e os reis aos seus sú
sendo ele um homem bom, zela pelo ditos. Estas amizades implicam supe- 20
bem-estar destes, como faz o pastor rioridade de uma parte sobre a outra,
com as suas ovelhas (e por isso Home sendo essa a razão das honras que se
ro chamou a Agamenon “pastor dos prestam aos antepassados.
15 povos108”). E tal é também a amizade Portanto, a justiça que existe entre
de um pai, embora este exceda o outro pessoas assim relacionadas não é a
na grandeza dos benefícios dispensa mesma de parte a parte, mas sempre
dos, pois é a causa da existência dos proporcional ao mérito; porquanto
isso é verdadeiro também da própria
10 8 Por exemplo, Ilíada II, 243. (N. do T.) amizade.
ÉTICA A NICÔMACO — VIII 191
A amizade entre marido e mulher, uma vez que não há justiça. Por exem- 3s
por outro lado, é a mesma que se pio, entre artífice e ferramenta, alma e
observa na aristocracia, já que está de corpo, amo e escravo, os segundos ter
acordo com a virtude: o melhor recebe mos de cada uma dessas dualidades
maior quinhão de bens e cada um rece são beneficiados por aqueles que os n6ib
be o que lhe compete; e o mesmo se utilizam, mas não existe amizade nem
pode dizer da justiça nessas relações. justiça para com coisas inanimadas.
25 A amizade de irmãos é como a de Mas tampouco existe amizade para
camaradas, porquanto são iguais e com um cavalo, um boi ou um escravo
próximos uns dos outros pela idade; e enquanto escravo, pois não há nada de
comum entre as duas partes: o escravo s
tais pessoas, em geral, assemelham-se
é uma ferramenta viva e a ferramenta é
nos sentimentos e no caráter. E tam
um escravo inanimado. Enquanto es
bém é semelhante a esta a amizade
cravo, pois, não se pode ser seu amigo,
apropriada ao governo timocrático; mas enquanto homem isso é possível,
pois numa tal constituição o ideal é pois parece haver uma certa justiça
serem os cidadãos iguais e eqüitativos, entre um homem qualquer e outro
e por isso o governo é assumido por homem qualquer que tenham condi
turnos numa base de igualdade. E a ções para participar de um sistema
amizade apropriada a esta constituição jurídico ou ser partes num ajuste: logo,
corresponde à que descrevemos. pode haver amizade com ele na medida
30 Nas formas de desvio, porém, como em que é um homem.
mal existe justiça, também é rara a Por conseguinte, embora nas tira
amizade. E onde menos existe é na pior nias mal existam a amizade e a justiça, w
das formas: na tirania há pouca ou nas democracias elas têm uma exis
nenhuma amizade. Com efeito, onde tência mais plena, pois onde há igual
nada aproxima o governante dos go dade entre os cidadãos estes possuem
vernados não pode haver amizade, muito em comum.
12
Como dissemos 109, pois, toda a for depender em todos os casos da amiza
ma de amizade envolve associação. Po- de patemo-filial; porquanto os pais
der-se-ia, no entanto, distinguir das ou amam os filhos como partes de si mes
tras a amizade dos familiares e a dos mos, e os filhos amam os pais por
camaradas. As dos concidadãos, contri- serem algo que se originou deles. Õra
/j bais, companheiros de viagem, etc., se (1), os pais conhecem os filhos melhor
assemelham mais às amizades de asso do que estes se conhecem como seus
ciação, pois parecem repousar sobre filhos, e (2) o procriador sente os filhos 20
uma espécie de pacto. Nesta classe po como seus mais do que os filhos sen
deríamos incluir a amizade entre hóspe tem os pais como seus, pois o produto
de e hospedeiro. pertence a quem o produziu (como, por
A própria amizade dos familiares, exemplo, um dente, um fio de cabelo
embora seja de várias espécies, parece ou qualquer outra coisa pertence ao
seu dono), mas o produtor não per
1159b 29-32. (N .doT .) tence ao seu produto, ou pertence em
192 ARISTÓTELES
ser a mesma questão que a de determi mos deveres para com um amigo, um
nar qual seja a sua conduta justa, por estranho, um cam arada e um condiscí
que um homem não parece ter os mes pulo.
13
Existem três espécies de amizade, baseadas no prazer surgem muitas
como dissemos no começo de nossa queixas, porque ambos recebem simul
investigação11°, e com respeito a cada taneamente o que desejam, se se com
uma delas alguns são amigos em ter prazem em passar o tempo juntos; e
mos de igualdade e outros em virtude mesmo o homem que se queixasse de is
de uma superioridade (pois não só ho outro por não lhe proporcionar prazer
mens igualmente bons podem tomar-se seria ridículo, uma vez que depende
amigos, mas um homem melhor pode dele não passar seus dias em compa
fazer amizade com outro pior, e tam nhia desse outro.
bém nas amizades que se baseiam no Mas a amizade que se baseia na uti
prazer ou na utilidade os amigos lidade é repleta de queixas; porquanto,
podem ser iguais ou desiguais quanto como cada um se utiliza do outro em
aos benefícios que conferem). Assim seu próprio benefício, sempre querem
sendo, os iguais devem ser amigos lucrar na transação, e pensam que saí
numa base de igualdade quanto ao ram prejudicados e censuram seus
amor e a todos os outros respeitos, ao amigos porque não recebem tudo o que
passo que os desiguais devem benefi “necessitam e merecem” ; e os que
ciar-se proporcionalmente à sua supe fazem bem a outros não podem ajudá-
rioridade ou inferioridade. los tanto quanto eles querem. 20
As queixas e censuras surgem unica
mente ou principalmente nas amizades Ora, é de supor que, sendo a justiça
que se baseiam na utilidade, e isso está de duas espécies, uma não escrita e a
conforme ao que seria de esperar. Com outra legal, haja também uma espécie
efeito, os que são amigos com base na moral e outra legal de amizade basea
virtude anseiam por fazer bem um ao da na utilidade. E assim, as queixas
outro (pois que isso é uma marca de surgem principalmente quando os ho
virtude e de amizade), e entre homens mens não dissolvem a relação dentro
que emulam entre si nessas coisas não do espírito do mesmo tipo de amizade
pode haver queixas nem disputas. Nin em que a contraíram.
guém é ofendido por um homem que o O tipo legal é aquele que assenta 25
ama e lhe faz bem — e, se é uma pes sobre termos definidos. Sua variedade
soa de nobres sentimentos, vinga-se puramente comercial baseia-se no pa
fazendo bem ao outro. E o homem que gamento imediato, enquanto a varie
supera o outro nos serviços prestados dade mais liberal dá uma certa mar
não se queixará do seu amigo, visto gem de tempo, mas estipula uma troca
que obtém aquilo que tinha em vista: definida. Nesta variedade a dívida é
com efeito, cada um deles deseja o que clara e não ambígua, mas a sua prote
é bom. E tampouco nas amizades lação contém um elemento de amiza
de; e por isso alguns Estados não 30
110 1156 a 7. (N. do T.) admitem ações judiciais em tomo de
194 ARISTÓTELES
tais acordos, mas pensam que os ho nos é possível. Mas de início devemos
mens que transacionaram numa base considerar o homem por quem estamos
de crédito devem aceitar as conseqüên sendo beneficiados e em que termos ele
cias. procede, a fim de aceitar o benefício
O tipo moral não assenta em termos nesses termos, ou então recusá-lo.
fixos. Faz uma dádiva, ou o que quer É discutível se devemos medir um w
que seja, como se fosse a um amigo; serviço pela sua utilidade para o bene
mas espera receber outro tanto ou ficiado e retribuí-lo nessa base, ou pela
mais, como se não tivesse dado e sim benevolência do benfeitor. Com efeito,
emprestado; e, se a situação de um os que recebem dizem ter recebido de
deles é pior após dissolver-se a relação seus benfeitores o que custou pouco a
do que antes de havê-la contraído, esse estes e que eles poderiam ter obtido de
3s homem se queixará. Isso acontece por outros — subestimando dessa forma o
que todos os homens ou a maioria serviço; ao passo que os benfeitores,
deles desejam o que é nobre mas esco pelo contrário, afirmam ter feito o má
lhem o que é vantajoso; ora, é nobre ximo que podiam e o que não poderia 15
fazer bem a um outro sem visar a qual ter sido obtido de outros, e que o servi
quer compensação, mas receber benefí ço foi prestado em ocasião de perigo
cios é que é vantajoso. ou de necessidade.
u63. Portanto, cabe-nos retribuir, se pos Ora, se a amizade é do tipo que visa
sível, com o equivalente do que recebe à utilidade, certamente a vantagem
mos (porque não devemos fazer de um para o beneficiado é a medida, por
homem nosso amigo contra a sua von quanto é ele quem solicita o serviço e o
tade; é preciso reconhecer que nos outro o ajuda na suposição de que
enganamos de começo, aceitando um receberá o equivalente. Destarte, a
benefício de uma pessoa de quem não ajuda foi exatamente igual à vantagem
devíamos aceitá-lo, já que não era do beneficiado, o qual, por conse- 20
nosso amigo, nem de alguém que o fez guinte, deve retribuir com o equiva
simplesmente por fazer; e cumpre-nos lente do que recebeu, ou mais (pois
saldar as contas exatamente como se isso seria mais nobre).
tivéssemos sido beneficiados com base Nas amizades que se baseiam na
5 em termos fixos). Em verdade, tería virtude, por outro lado, não surgem
mos concordado em retribuir se pudés queixas, mas o propósito do benfeitor é
semos (do contrário, o próprio benfei uma espécie de medida; pois no propó
tor não contaria com isso); e, por sito reside o elemento essencial da vir
>conseguinte, devemos retribuir, se isso tude e do caráter.
Também nas amizades que se ba- espera a mesma coisa. E dizem que um
25 seiam na superioridade surgem dissen- homem inútil não deve receber tanto
sões, pois cada qual espera obter mais quanto eles, visto que nesse caso a
proveito delas, mas, quando isso acon amizade deixa de ser amizade para
tece, a amizade se dissolve. Não só o converter-se num serviço público 30
homem melhor pensa que lhe cabe quando os seus proveitos não corres
receber mais, de vez que um homem pondem ao valor dos benefícios confe
bom faz jus a mais, como o mais útil ridos. Porque tais pessoas pensam que,
É T IC A A N I C Ô M A C O — VIII 195
112 Cf. 1132 b 31-33, 1158 b 27 1159 a 35 — 113 1156b 9-12. (N do T.)
1159 b 3, 1162 a 34 — 1162 b 4, 1 163 b 11. (N. do 11 4 Hesíodo, Trabalhos e Dias, 370, Rzach. (N. do
T.) T.)
200 ARISTÓTELES
Os que, tendo recebido o dinheiro mas foi feita com a mira na retribui
com antecipação, não fazem nada do ção, é certamente preferível que se
que haviam prometido por causa da retribua de maneira que pareça justa a
extravagância de suas promessas são ambas as partes; mas, se isso não for
30 naturalmente objetos de queixa porque possível, não apenas será necessário
não cumprem o que pactuaram fazer. mas também justo que o primeiro
Os sofistas são talvez forçados a agir beneficiado fixe a recompensa. Com w
assim porque ninguém lhes daria efeito, se o outro receber em troca o
dinheiro em troca das coisas que eles equivalente da vantagem auferida por
realmente sabem. Essas pessoas, por ele, ou o preço que teria pago pelo pra
conseguinte, se não fazem aquilo para zer, terá recebido o que é justo da parte
que foram pagas, são naturalmente do primeiro beneficiado.
objetos de queixa. Vemos acontecer o mesmo com as
Mas quando não há contrato de ser coisas que são postas à venda, e em al
viço, aqueles que renunciam a alguma guns lugares a lei proscreve as deman
coisa no interesse da outra parte não das originadas de contratos voluntá
podem, como dissemos11 s, ser acusa- rios, partindo do princípio de que cada
35 dos, porquanto essa é a natureza da um deve ajustar suas contas com aque- is
1164b amizade baseada na virtude; e a retri les a quem deu crédito, dentro do
buição lhes deve ser feita de acordo mesmo espírito em que transacionou
com o seu propósito (pois o propósito com eles. A lei considera mais justo
é o que caracteriza tanto um amigo ctip as condições sejam fixadas pelo
como a virtude). E da mesma forma, jmem a quem se concedeu crédito do
segundo parece, deveriam ser retri que pelo outro, pois que a maioria das
buídos aqueles com quem estudamos coisas não são estimadas no mesmo
filosofia, pois o seu valor não pode ser valor pelos que as possuem e pelos que
medido pelo dinheiro, nem há honra necessitam delas. Cada classe dá gran
que esteja à altura de seus serviços; de valor ao que é seu e que ela oferece;
s entretanto, é talvez suficiente, como no não obstante, a retribuição é feita nos
caso dos deuses c de nossos pais, dar- termos fixados pelo que recebe. Mas, 20
lhes aquilo que podemos. sem dúvida, este deve avaliar uma
Se a dádiva não era dessa espécie coisa não pelo que lhe parece valer
quando a possui e sim pelo valor que
" 5 1162 b 6-13. (N .do T .) lhe atribuía antes de possuí-la.
ção é mais fácil quando as pessoas per isso devemos furtar-nos à tarefa, mas
tencem à mesma classe, e mais traba- cumpre-nos decidir a questão como
35 lhosa quando são diferentes. Nem por melhor pudermos.
3 -
Outra .questão que se apresenta é nem pode nem deve ser amado, pois
sobre se convém ou não romper a ami ninguém tem o dever de amar o mau,
zade quando a outra parte não perma- nem de tomar-se semelhante a ele; e já
n65b nece a mesma. Talvez se possa dizer temos dito119 que o semelhante é caro
que não há nada de estranho em rom ao semelhante.
per uma amizade baseada na utilidade Deve, então, ser a amizade imedia
ou no prazer quando nossos amigos já tamente rompida? Ou não será assim
não possuem tais atributos. Pois foi em todos os casos, mas apenas quando
por causa destes que nos tomamos nossos amigos são incuráveis em sua
amigos; e quando eles deixam de exis maldade? Se são passíveis de reforma,
tir, é razoável que não se sinta mais deveríamos antes procurar ajudá-los
5 amor. Mas poderíamos queixar-nos de no que toca ao seu caráter ou aos seus
um outro se, tendo-nos ele amado pela bens materiais, tanto mais que isso é
nossa utilidade ou aprazibilidade, si melhor e mais característico da amiza- 20
mulou amar-nos pelo nosso caráter. de. Mas ninguém acharia estranho que
Porque, como dissemos no começo118, alguém rompesse semelhante amizade,
as mais das vezes surgem os desenten pois não era amigo de um homem
dimentos entre amigos quando não são dessa espécie; uma vez que seu amigo
amigos .dentro do espírito em que pen mudou e ele não pode salvá-lo, é justo
sam sê-lo. E assim, quando um homem que o abandone.
iludiu a si mesmo julgando que era Mas se um dos amigos permane
amado pelo seu caráter e isso não cesse o mesmo e o outro se tomasse
correspondia em absoluto à verdade, melhor e o ultrapassasse grandemente
não pode ele censurar a ninguém senão em virtude, deveria o segundo tratar o
a si próprio; mas quando foi iludido primeiro como amigo? Seguramente,
io pelas simulações da outra pessoa, é isso não é possível. A verdade do que 25
justo que se queixe de quem o enganou dizemos se evidencia sobretudo quan
— mais justo, até, do que quando nos
do o intervalo é grande, como no caso
queixamos de falsificadores de moe
das, porquanto o mal diz respeito a das amizades de infância: se um dos
amigos permaneceu uma criança quan
uma coisa mais valiosa.
Mas quando aceitamos um homem to ao intelecto, ao passo que o outro se
como bom e ele se revela e patenteia tomou um homem na inteira acepção
mau, devemos continuar a amá-lo? da palavra, como podem continuar
Isso é certamente impossível, visto que amigos se não aprovam as mesmas
não se podem amar todas as coisas, coisas, nem se deleitam ou contristam
is mas apenas o que é bom. O que é mau com as mesmas coisas? Porquanto
nem mesmo com respeito um ao outro com ele como se nunca tivéssemos sido
haverá concordância entre os seus gos seu amigo? Certamente nos recorda
tos, e sem isso (como já vimos120), não remos de nossa antiga intimidade, e
pode haver amizade, pois impossível é como somos de opinião que convém
viverem os'dois juntos. Já discutimos, obsequiar nossos amigos de prefe
porém, estes assuntos121. rência a estranhos, também no caso 3S
Devemos, então, conduzir-nos para dos que foram nossos amigos devemos
levar em consideração a amizade de
’ 2° 1157 b 22-24. (N. do T.) outrora, se o rompimento não se deveu
’ 2 1 Ibid. 17-24, 1158 b 33-35. (N. do T.) a um excesso de maldade.
1166 a As relações amigáveis com seu toda a sua alma as mesmas coisas; por
semelhante e as marcas pelas quais são conseguinte, deseja para si o que é bom
definidas as amizades parecem proce e o que parece sê-lo, e o faz (pois é is
der das relações de um homem para característico do homem bom pôr em
consigo mesmo. Com efeito ( 1), defini prática o bem), e assim procede no seu
mos um amigo como aquele que deseja próprio interesse (isto é, no interesse
e faz, ou parece desejar e fazer o bem do elemento intelectual que possui em
no interesse de seu amigo, ou (2) como si e que é considerado como sendo o
aquele que deseja que seu amigo exista próprio homem); e a si mesmo deseja a
5 e viva, por ele mesmo; e isso é o que as vida e a preservação, em especial do
mães fazem aos seus filhos e o que elemento em virtude do qual ele pensa.
fazem os amigos que entraram em Porquanto a existência é boa para o
conflito122. E (3) outros o definem homem virtuoso, e cada um deseja
como aquele que vive na companhia de para si o que é bom, ao passo que nin- 20
um outro e (4) tem os mesmos gostos guém desejaria possuir o mundo intei
que ele, ou (5) o que compartilha os ro se para tanto lhe fosse preciso tor-
pesares e alegrias de seu amigo; e isso tiar-se uma outra pessoa (quanto a
também é encontrado principalmente isso, Deus é quem tem a posse atual do
nas mães. É por alguma destas carac bem). Tal homem só deseja essas coi
terísticas que a amizade é definida. sas com a condição de continuar sendo
Ora, cada uma delas é verdadeira do o que é; e o elemento pensante parece
homem bom em relação a si mesmo (e ser o próprio indivíduo, ou sê-lo mais
de todos os outros homens na medida do que qualquer outro dos elementos
em que se consideram bons; a virtude e que o formam. E ele deseja viver consi
o homem bom parecem, como disse go mesmo, e o faz com prazer, já que
m os123, ser a medida de todas as clas se compraz na recordação de seus atos
ses de. coisas). Com efeito, as suas opi passados e suas esperanças para o fu- 25
niões são harmônicas e ele deseja de turo são boas, e portanto agradáveis.
Tem, do mesmo modo, a mente bem
’ 22 Alguns editores eliminam esta parte final. Mas provida de objetos de contemplação. E
o sentido deve ser: Houve uma controvérsia que sofre e se alegra, mais do qualquer
lhes prejudica a união, mas ainda os deixa com boa
disposição de um para com o outro. (N. do E.) outro, consigo mesmo; porquanto a
123 1113 a 22-33, cf. 1099 a 13.(N .doT .) mesma coisa é sempre dolorosa, e a
204 ARISTÓTELES
5
A benevolência é uma espécie de com a amizade, pois que tanto pode-
relação amigável, rpas não se identifica mos senti-la para com pessoas a quem
ÉTICA A NICOMACO — IX 205
não conhecemos como sem que elas antes não sentiram benevolência uma
próprias o saibam, ao passo que com a para com a outra, mas pelo simples
amizade não sucede assim. Isto, aliás, fato de sentirem benevolência não se
já ficou dito atrás12 4. Mas a benevo pode dizer que sejam amigas, por
lência não é sequer um sentimento quanto apenas desejam bem ao outro,
amistoso, já que não envolve intensi mas não cooperariam em nada com ele
dade ou desejo, enquanto o sentimento nem se dariam ao trabalho de ajudá-lo.
de amizade é acompanhado desses ele- E assim, por uma extensão do termo w
35 mentos. Além disso, amizade implica amizade, poder-se-ia dizer que a bene
intimidade, enquanto á benevolência volência é uma amizade inativa, se
pode surgir repentinamente, como bem que passe a ser amizade verda
acontece para com os adversários deira quando se prolonga e chega ao
ii67a numa competição: sentimos benevo ponto da intimidade. Não se trata aqui,
lência para com eles e compartilhamos porém, da amizade baseada na utili
os seus desejos, mas não coopera dade nem da que tem por objeto o pra
ríamos em nada com eles; porque, zer, pois tampouco a benevolência
como dizíamos, esse sentimento nos surge em tais condições.
vem de súbito e nós só os amamos O homem que recebeu um benefício
superficialmente. retribui com benevolência, e nisso não is
faz senão o que é justo, enquanto o que
A benevolência parece, pois, ser um deseja a prosperidade de alguém por
começo de amizade, como o prazer que espera enriquecer através dele não
dos olhos é o começo do amor. Porque parece sentir benevolência para com
5 ninguém am a se não se deleitou de iní tal pessoa, mas antes para consigo
cio com a forma do ser amado; mas mesmo, assim como um homem não é
nem por isso o que se deleita com a amigo de outro se o estima apenas por
forma de um outro o ama: é também causa de algum proveito que possa
preciso que sinta a sua falta quando tirar dele. Em geral, a benevolência
está ausente e que anseie pela sua pre surge em virtude de alguma excelência
sença. Do mesmo modo, não é possível ou mérito, quando um homem parece a
que duas pessoas sejam amigas se outro belo, bravo ou algo de seme
lhante, como fizemos ver no caso dos 20
'2 * 1155 b 3 2 — 1156 a 5. (N .d o T .) adversários numa competição.
A unanimidade também parece ser mas dizemos que uma cidade é unâ
uma relação amigável. Por este motivo nime quando os homens têm a mesma
não é ela identidade de opinião, a qual opinião sobre o que é de seu interesse,
poderia ocorrer mesmo entre pessoas escolhem as mesmas ações e fazem em
que não se conhecem. E tampouco comum o que resolveram.
dizemos que os qüe têm a mesma opi É, portanto, a respeito das coisas a
nião sobre todo e qualquer assunto fazer que se diz que as pessoas são
sejam unânimes, como por exemplo os unânimes; e, entre elas, dos assuntos
que concordam no tocante aos corpos importantes em que é possível a ambas
25 celestes (pois a unanimidade à esse res ou a todas as partes obterem o que pre- 30
peito não é uma relação amigável); tendem; por exemplo, uma cidade é
206 ARISTÓTELES
que emprestaram dinheiro nem sequer ação, enquanto o paciente não vê nada
30 apresenta analogia com este. Com efei de nobre no agente, mas no máximo
to, os credores não têm nenhum senti algo de vantajoso; e isso é menos agra
mento amistoso para com os seus dável e estimável. O que é agradável é
devedores, mas apenas desejam vê-los a atividade do presente, a esperança do
em segurança por causa do que têm a futuro e a memória do passado; mais
receber deles; enquanto os que presta agradável que tudo, porém, e também
ram um serviço a outrem sentem ami mais estimável, é o que depende da ati
zade e amor por aqueles a quem servi vidade. Ora, para o homem que fez al- is
ram, mesmo que estes não lhes sejam guma coisa a sua obra permanece (pois
de nenhuma utilidade nem jam ais pos o nobre é duradouro), mas para aquele
sam vir a sê-lo. É o que acontece tam que foi objeto da ação a utilidade não
bém com os artífices, por exemplo: tarda a passar. E a lembrança das coi
35 cada um ama o trabalho saído de suas sas nobres é agradável, enquanto a das
mãos muito mais do que o am aria este coisas úteis não costuma sê-lo, ou o é
se pudesse adquirir vida. E mais que menos. No caso da expectação, contu
ii68a ninguém, talvez, os poetas, que devo do, o contrário disso é que parece ser
tam excessivo amor aos seus poemas, verdiadeiro.
idolatrando-os como se fossem seus Acresce que o amor é como a ativi
filhos. dade, e ser amado assemelha-se à
A posição dos benfeitores é seme passividade; e o amor e os seus conco- 20
lhante: a pessoa a quem fizeram bem é mitantes são os atributos dos mais ati
como se fosse sua obra, que eles amam vos dentre os homens.
■s mais do que a obra ama o seu artífice. E finalmente, todos os homens têm
Isso, porque a existência é para todos maior amor ao que ganharam como
os homens uma coisa digna de ser fruto do seu trabalho. Por exemplo, os
escolhida e amada; ora, nós existimos que fizeram a sua fortuna amam-na
em virtude da atividade (isto é, vivendo mais do que aqueles a quem ela veio
e agindo), e a obra é, em certo sentido, por herança; e ser bem tratado não pa
uma produtora de atividade; portanto, rece envolver trabalho, enquanto fazer
o artífice ama a sua obra porque ama a bem a outrem é tarefa laboriosa. São
existência. E isso tem raízes profundas estas também as razões por que as
na natureza das coisas, pois o que ele é mães têm mais amor a seus filhos do
em potência, sua obra o manifesta em que os pais; pô-los no mundo lhes 25
ato. custou mais dores e elas sentem mais
io Ao mesmo tempo, para o benfeitor é profundamente que os filhos lhes per
nobre aquilo que depende da sua ação. tencem. Este último ponto parece apli
E assim se deleita com o objeto da sua car-se igualmente aos benfeitores.
for. É acusado, por exemplo, de não nhão maior de riquezas, honras e pra
fazer nada espontaneamente, enquanto zeres corporais, pois essas são as coi
o homem bom age tendo em vista a sas que a maioria deseja e pelas quais
honra, sacrificando os seus interesses se esforça como se fossem as melhores
pessoais, e isso tanto mais quanto me de todas; e também por esse motivo se
lhor ele for. tom am objetos de competição. E os 20
3s Mas os fatos estão em conflito com que são cúpidos com respeito a elas
estes argumentos, o que aliás não é de satisfazem os seus apetites e, de modo
surpreender. Com efeito, dizem os ho geral, os seus sentimentos e o elemento
mens que deveríamos amar acima de irracional de sua alma.
u68b tudo o nosso melhor amigo, e o melhor Ora, a maioria dos homens são
amigo de um homem é aquele que lhe dessa natureza, e esse é o motivo de ser
deseja bem por ele mesmo, ainda que usado o epíteto em tal acepção: ele re
ninguém venha a ter conhecimento cebe o seu significado do tipo predomi
disso; e esses atributos são encon nante de autofilia, que é mau. Ê justo,
trados principalmente na atitude de um por conseguinte, que os homens que
homem para consigo mesmo, como amam a si mesmos desse modo sejam
todos os outros atributos pelos quais é objetos de censura.
s definido um amigo; porque, Como E é evidente que a maioria das pes
dissemos12 7, foi a partir desta relação soas costumam chamar amigos de si
que todas as características da amiza mesmos aqueles que se dão preferência
de se estenderam aos nossos semelhan com respeito a objetos dessa espécie; 25
tes. E isto é confirmado pelos provér porque, se um homem fizesse sempre
bios, como “uma só alm a128”, “os questão de que ele mesmo, acima de
amigos possuem todas as coisas em todas as coisas, agisse com justiça e
comum”, “ amizade é igualdade” e “ a temperança ou de acordo com qual
caridade começa por casa”, pois todas quer outra virtude, e em geral procu
essas características são encontradas rasse sempre assumir para si a conduta
principalmente na relação de um mais nobre, ninguém cham aria amigo
homem para consigo mesmo. Ele pró de si mesmo a um tal homem e nin
prio é o seu melhor amigo, e por isso guém o censuraria.
deveria amar a si mesmo acima de No entanto, ele parece ser mais
w tudo. É, pois, razoável indagar quál amigo de si mesmo do que o outro.
das duas opiniões seguiremos, porque Pelo menos, atribui a si as coisas mais
ambas são plausíveis. nobres e melhores, satisfaz o elemento 30
Talvez convenha distinguir esses mais valioso de sua natureza e obede
argumentos uns dos outros e determi ce-lhe em todas as coisas. E, assim
nar em que medida e a que respeito como uma cidade ou qualquer outro
cada uma das opiniões é verdadeira. todo sistemático é, com toda a justiça,
Ora, a verdade poderá tomar-se evi identificada com o seu elemento mais
dente se apreendermos o sentido em valioso, o mesmo sucede com o indiví
que cada escola usa a expressão duo humano; e, por conseguinte, o
15 “amigo de si mesmo” . Os que a usam homem que am a esse elemento e o
como termo de censura atribuem a satisfaz é mais amigo de si mesmo que
autofilia aos que abocanham um qui- qualquer outro.
Ainda mais: diz-se que um homem
117 Cap. 4. (N. do T.) tem ou não tem domínio próprio con
12 * Eurípides, Orestes, 1046. (N. do T.) forme a razão domine ou deixe de
ÉTICA A NICÔMACO — IX 209
dominar nele, o que implica que ela é o Do homem bom também é verda
js próprio homem; e as coisas que os ho- deiro dizer que pratica muitos atos no
n69a mens fazem de acordo com um princí interesse de seus amigos e de sua pá
pio racional são consideradas mais tria, e, se necessário, dá a vida por eles.
legitimamente atos seus, e atos volun Com efeito, um tal homem de bom 20
tários. grado renuncia à riqueza, às honras e
É evidente, pois, que esse é o próprio em geral aos bens que são objetos de
homem, ou que o é mais do que qual competição, ganhando para si a nobre
quer outra coisa, e também que o za, visto que prefere um breve período
homem bom am a acima de tudo essa de intenso prazer a uma longa tempo
sua parte. Donde se segue que ele é no
rada de plácido contentamento, doze
mais legítimo sentido da palavra um meses de vida nobre a longos anos de
amigo de si mesmo, e de um tipo dife
existência prosaica, e uma só ação
rente daquele que é alvo de censura, grande e nobre a muitas ações triviais. 25
tanto quanto o viver de acordo com Ora, os que morrem por outrem certa
um princípio racional difere do viver
mente alcançam esse resultado; é ele,
5 segundo os ditames da paixão, e dese
pois, um grande prêmio que escolhem
jar o que é nobre de desejar o que pare
para si mesmos.
ce vantajoso.
Os homens bons também se desfa
Por isso, todos os homens aprovam
zem de suas riquezas para que os seus
e louvam os que se ocupam em grau
amigos possam ganhar mais, pois,
excepcional com ações nobres; e se
enquanto o amigo de um homem
todos ambicionassem o que é nobre e
adquire riqueza, ele próprio alcança
dedicassem o melhor de seus esforços
à prática das mais nobres ações, todas nobreza: é a ele, portanto, que cabe o
as coisas concorreriam para o bem maior bem. O mesmo se pode dizer das
comum e cada um obteria para si os honras e cargos públicos: tudo isso ele jo
io maiores bens, já que a virtude é o bem sacrificará ao seu amigo, porque tais
maior que existe. atos são nobres e louváveis nele.
Portanto, o homem bom deve ser Com razão, pois, é um homem
amigo de si mesmo (pois ele próprio assim considerado bom, visto que
escolhe a nobreza acima de tudo. E
lucrará com a prática de atos nobres,
ao mesmo tempo que beneficiará os pode ele, inclusive, deixar a ação ao
seu amigo: em certas ocasiões é mais
seus semelhantes); mas o homem mau
não o é, porque, com o abandono às nobre sermos a causa da ação de um
suas más paixões, ofende tanto a si amigo do que agirmos nós mesmos.
15 mesmo como aos outros. Para o Ve-se, pois, que em todos os atos «
homem mau, o que ele faz está em con que atraem louvores aos homens, o
flito com o que deve fazer, enquanto o homem bom reserva para si o maior
homem bom faz o que deve; porque a quinhão do que é nobre. E neste senti
razão, em cada um dos que a possuem, do, como já dissemos, um homem deve
escolhe o que é melhor para si mesma, ser amigo de si mesmo, porém não no n«9b
e o homem bom obedece à razão. sentido em que a maiora o é.
210 ARISTÓTELES
9
Também se discute sobre se o primeira pessoa que apareça. Logo, o
homem feliz necessita ou não de ami- homem feliz necessita de amigos.
s gos. Diz-se que os que são sumamente Que significa, então, a asserção da
felizes e auto-suficientes não precisam primeira escola, e em que sentido
deles, pois tais pessoas possuem tudo corresponde ela à verdade? Dar-se-á o
que é bom e, auto-suficientes como caso de que a maioria dos homens
são, dispensam o resto; enquanto um identifiquem os amigos com as pessoas
amigo, que é um outro “eu” , provê o úteis? De tais amigos, é certo que o
que um homem não pode conseguir homem sumamente feliz não tem ne
pelos seus próprios esforços. Daí as cessidade, visto já possuir todas as coi- 25
palavras: “quando a fortuna nos sorri, sas boas; e tampouco necessitará da
para que precisamos de amigos? 129” queles com quem fazemos amizade por
Mas parece estranho, quando se causa do prazer que nos proporcio
atribui tudo o que é bom ao homem nam, ou só precisará deles em grau
io feliz, recusar-lhe amigos, que são con muito restrito (pois, sendo aprazível a
siderados os maiores bem; exteriores. sua vida, ele dispensa prazeres adventí-
E, se é mais próprio de um amigo fazer cios); e, como não necessita de tais
bem a outrem do que ser beneficiado, e amigos, julga-se que não necessita de
se dispensar benefícios é característico amigos em absoluto.
do homem bom e da virtude, e é mais Mas isto, seguramente, não é verda
nobre fazer bem a amigos do que a deiro, porquanto no começo130 disse
estranhos, o homem bom necessitará mos que a felicidade é uma atividade; e
de pessoas a quem possa fazer bem. E a atividade, evidentemente, é algo que
por esta razão se pergunta se necessi se faz e que não está presente desde o
tamos mais de amigos na prosperidade princípio, como uma coisa que nos
is ou na adversidade, subentendendo que pertencesse. Se ( 1) a felicidade consiste
não só um homem na adversidade pre em viver e em ser ativo, e a atividade so
cisa de quem lhe confira benefícios, do homem bom é virtuosa e