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G. B. de Gracia*1
1
Universidade Estadual Paulista, Instituto de Física Teórica, São Paulo, SP, Brasil
The goal of the present article is to introduce the key concepts of the Ernst Mach’s philosophy of science as well
as to analyze its influence on gravitational theories. In order to do so, we show that it culminates in a criticism
about Newton’s absolute space idea. The mentioned criticism had considerable influence on Albert Einstein, an
enthusiastic follower of Mach’s ideas, such that it motivates him to create a theory that encompass great part
of its concepts. Finally, we study the Einstein’s originals papers in order to analyse the compabitility between
his gravitational theory and the E.Mach’s ideas. So, we also comment about one generalization that intend to
incorporate all the Machian epistemology.
Keywords: Philosophy of science, gravitation, Mach’s and Einstein’s ideas.
(contida no livro, A Ciência da Mecânica.) dos funda- isso, ele propôs uma experiência [7], [11] conhecida como
mentos da teoria Newtoniana [6], a qual tem suas ori- a do balde de Newton: Se mantivermos um balde com
gens remotas, ainda no século XV II, com as críticas de água em repouso em relação à Terra, a superfície da água
Leibniz e Berkeley [7]. Dessa maneira, apresentaremos estará plana. A experiência mostra que, se o balde for
a crítica de Mach ao conceito de espaço absoluto em posto a girar em relação a Terra, então, gradativamente,
oposição à noção de um espaço puramente referencial, a água também entrará em rotação e passará a se afastar
analisaremos teorias cosmológicas sob o seu ponto de do meio do recipiente e subir pelos seus lados, assumindo
vista, e o seu conceito relativista de massa inercial e uma forma côncava (ação de uma aparente força centrí-
gravitacional. Comentaremos a respeito da compatibi- fuga). De acordo com Newton, esse efeito só é possível
lidade entre a relatividade de Einstein e a perspectiva devido à rotação da água em relação ao espaço absoluto,
Machiana e, finalmente, sobre a teoria gravitacional de e não em relação ao balde, à Terra ou às estrelas fixas.
Brans-Dicke [8] a qual visa incorporar integralmente os Dessa maneira, se o balde com água estivesse em repouso
conceitos Machianos, algo que, como mostraremos, não em relação ao espaço absoluto e todo o restante do uni-
ocorre na teoria de Einstein . verso estivesse em rotação em relação a ele, a superfície
da água continuaria plana. Newton conclui então que
a formação da concavidade na água do balde é o dado
2. A experiência do balde experimental que nos permite distinguir entre um mo-
vimento relativo qualquer e aquele feito com relação ao
Logo após a publicação dos Principia Mathematica
espaço absoluto.
Philosophiae Naturalis [9], no final do século XV II, e
o seu grande sucesso em explicar a mecânica celeste do
A menção às estrelas fixas provavelmente se deu devido
sistema solar, Newton foi alvo de especulações filosóficas
ao fato de que os defensores de uma ciência referencial
a respeito dos fundamentos de sua teoria da mecânica.
supunham que o primeiro passo para refundar a teoria
Filósofos como Leibniz, homem de grande cultura que
atuou em diversas áreas, desde o direito até a matemá- Newtoniana era substituir o espaço absoluto por um sis-
tica, e o bispo Berkeley, com importante contribuição na tema de referência relativo às estrelas fixas, aquelas que
filosofia, não encontravam uma motivação teórica para estão muito distantes da terra e como a distância delas é
um espaço absoluto, conceito, esse, no qual Newton se muito grande em comparação às dimensões do sistema
baseou. solar, elas configurariam um referencial praticamente
De acordo com esses senhores, não há razão para se inercial.
supor propriedades ao espaço que não sejam puramente O argumento desenvolvido por Newton foi usado a fim
referenciais. Ou seja, não faria sentido empregar a noção de derrubar a concepção relacional do espaço. Esse argu-
espaço na presença de um único corpo, mas apenas com mento resistiu durante muito tempo e ao menos Leibniz
relação a algum sistema de referência. Assim, a realidade e Berkeley não conseguiram mais se opor eficientemente
física deveria ser sempre descrita por grandezas que rela- a ele. O sucesso experimental da teoria da gravitação
cionem um sistema a outro, sem a necessidade de postular universal também serviu para calar eventuais críticos.
um espaço absoluto com significado intrínseco. Ao elevar O que Mach trouxe de novo à discussão foi uma ati-
isso como princípio, Leibniz afirmou que tanto a teoria tude radical à respeito da interpretação da experiência do
Ptolomaica, que punha a terra no centro do sistema solar, balde. Se não há motivações a priori para o espaço abso-
quanto a teoria heliocêntrica, eram igualmente válidas luto e se apenas podemos experienciar o espaço dado com
sendo esta última uma abordagem mais clara e simpli- relação aos demais corpos, deve existir sempre uma in-
ficada da situação física. Uma teoria construída nesses fluência mutuamente simétrica entre dois sistemas físicos.
moldes, no século XIX, foi a chamada eletrodinâmica de Tal princípio o levou a supor que se o próprio sistema de
Weber a qual utiliza apenas grandezas relacionais [7]. No estrelas fixas (usado a fim de fixar um referencial inercial
século XV III, o filósofo I. Kant, em seu livro Crítica da
adequado) fosse girado com relação ao balde, a situação
razão pura [10], argumenta que o espaço e o tempo são
física deveria ser simétrica e, portanto, a água do balde
conceitos que o ser humano necessita de antemão para
deveria tomar uma forma abaulada. Assim, foi possível ao
fixar o seu entendimento do mundo, mais especificamente,
menos dar uma resposta ao argumento de Newton. Uma
para intuir a sucessão e a simultaneidade. O que se pode
depreender disso é a natureza meramente relacional do conclusão que se pode tirar desta sua observação é a de
espaço e do tempo. Além disso, a concepção Kantiana que o movimento relativo entre diferentes observadores
de espaço e tempo os coloca num status muito parecido pode gerar efeitos físicos. Além disso, a física local deve
analogamente ao que viria a ser realizado na teoria da levar em conta a distribuição de massas no universo, o
relatividade Einsteniana. que numa perspectiva moderna seria a de massa-energia.
Newton, contemporâneo dos dois filósofos citados no A relatividade geral já leva em conta alguns aspectos
início desta seção, precisou dar uma resposta às suas das ideias de Mach, como a influência da distribuição de
indagações a fim de fundamentar epistemologicamente matéria-energia em fenômenos físicos e a criação de uma
a ideia de espaço absoluto que vinha empregando. Para física independente do referencial adotado.
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332
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3. O colapso da cosmologia Newtoniana lapso, Newton supôs que a matéria estaria distribuída
num espaço infinito de maneira uniforme [7]. Ele acredi-
tava que com isso resolveria a questão, mas na realidade
A teoria de Newton obteve sucesso em explicar o mo-
o colapso seria evitado apenas num dado referencial.
vimento dos corpos celestes no sistema solar. Tratava-se
Ao usar a teoria Newtoniana, concluímos que ao por
de uma teoria que descrevia desde fenômenos que ocor-
um corpo massivo na origem de nosso sistema de coorde-
riam na órbita da lua em torno da terra até outros que
nadas supondo um universo infinito com uma quantidade
ocorriam em regiões distantes do sistema solar, o que
de matéria infinita distribuída uniformemente, como pre-
justificou a nomenclatura de gravitação universal. Este
tendia Newton, o problema seria idêntico ao de uma
triunfo levou os teóricos a extrapolarem qualquer limite
massa circundada por um conjunto infinito de cascas es-
observacional e a usarem a gravitação universal como
féricas e a resultante sobre a partícula seria nula, levando
meio de se analisar toda a cosmologia. Um olhar mais
a uma situação de equilíbrio. Agora, se analisarmos a
pragmático e atento deveria levar em consideração que
mesma situação com a origem transladada na direção
esta teoria foi construída por meio de princípios pro-
de um dado vetor, obteremos uma força resultante na
postos por Galileu Galilei e das três leis de Kepler [12].
direção deste vetor. Este foi um paradoxo para o qual
Devido a esse fato, Newton pôde embasar sua teoria em
apenas anos mais tarde surgiram respostas satisfatórias.
dados experimentais muito confiáveis de Tycho Brahe,
Ao analisar esta situação sob a visão Machiana conclui-
nos quais as leis de Kepler se basearam.
se que antes de mais nada deve-se tomar um bom referen-
Não se pode ignorar o fato de que tais dados se refe-
cial inercial o qual, no caso, seria o das estrelas fixas. Os
riam basicamente a movimentos de planetas e demais
dois sistemas de referência citados anteriormente, dados
corpos no sistema solar. Isso significa que estender a
com relação ao das estrelas fixas são igualmente bons e
teoria Newtoniana para todo o universo seria um grande
não haveria como surgir forças de inércia apenas devido
salto, pois ela se baseou em leis e dados experimentais
a sua troca. Como não é isso que se verifica, notamos
que diziam respeito apenas ao sistema solar.
que ao extrapolar a física de Newton à nível cosmológico,
Quanto à elevação de sua teoria ao status de cosmo-
acabamos por ter uma nítida percepção de sua suposição
logia, Newton inicialmente acreditava que o espaço se
de espaço absoluto, evidenciada no caso desse paradoxo,
estendia infinitamente porém a distribuição de matéria
pois tem-se a impressão de que a referida massa, para
se dava numa região de volume finito. Podemos notar aí
não sofrer uma força resultante, deveria estar no centro
uma grande divergência do que viriam a ser as ideias de
do espaço absoluto. Ou seja, a teoria de Newton foi cons-
Mach e também de contemporâneos de Newton, como
truída sobre este conceito e acaba por implicar nele.
Leibniz, em que o espaço vazio de matéria, ou qualquer
Uma solução para este problema está em supor uma
tipo de referência simplesmente não faria sentido, pois
modificação do potencial gravitacional, proposta por C.
perderia seu aspecto relacional e seria então puramente
Neumann [7], para um do tipo V (r) = − GMre , no qual
−λr
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019
e20180332-4 A física na visão de Ernst Mach: De uma crítica a Newton às teorias gravitacionais
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332
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possui significado intrínseco, a menos que se faça consi- pode ser entendida como resultante de uma interação
derações metafísicas. Porém essas seriam considerações gravitacional (Princípio de equivalência forte [18]). Desse
não-mínimas, e se nos atermos apenas à realidade física modo, as forças de inércia deixam de ser um sinal da não
a que temos acesso, o princípio relacional parece o mais equivalência física entre sistemas de referência e passam a
adequado. ser incorporadas dentro do esquema relativista, passando
Um evento que relaciona dois sistemas poderia a prin- a ser entendidas como manifestação da gravitação, o que
cípio admitir qualquer parametrização caso seja possível eleva todos os referenciais ao mesmo status.
criarmos um mapa inversível entre esta descrição e uma Vale a pena observar que esta condição mencionada
outra qualquer. Ambas deveriam ser equivalentes pois acima deve ser entendida de modo mais abrangente se
suas funções são apenas as de descrever relações entre os levarmos em conta que no caso em que há uma densidade
mesmos eventos por meio de diferentes coordenadas. Esse de férmions no espaço tempo, a torção, inicialmente con-
princípio nos leva a considerar que a correta descrição da siderada nula, passa a ser proporcional a densidade de
realidade física deve se dar através de uma teoria invari- spin naquela região. Isso afeta as equações de Einstein e,
ante por transformações gerais de coordenadas (TGC). portanto, o campo gravitacional.
Assim, Einstein faz uso de considerações heurísticas Assim, a aceleração da gravidade não estaria relacio-
a fim de demonstrar a necessidade de uma teoria mais nada apenas a um efeito de referencial e sim, em parte, a
geral para a relatividade. Ele considera dois sistemas uma propriedade intrínseca de uma determinada região
R1 e R2 que giram em torno de uma linha imaginária do espaço-tempo. Mas se admitirmos que a região consi-
transversal à linha que os une, sendo que em cada um derada é muito pequena, a densidade de spin é a mesma
desses sistemas estão os corpos deformáveis inicialmente para dois referenciais contidos nela e suas diferenças di-
esféricos 1 e 2, respectivamente. A situação é evidente- nâmicas se deveriam novamente a efeitos de referencial.
mente simétrica, mas se um observador é colocado em Esta seria a conjectura de uma generalização do princí-
R1 , ele nota que o corpo 2 se move de modo não uniforme pio de equivalência. Estas questões estão relacionadas à
com relação a ele e que devido ao surgimento da força de abordagem de Einstein-Cartan da relatividade geral e
inércia, no caso a centrípeta, o segundo corpo passa a se são didaticamente introduzidas em [19]. Isso nos mostra
deformar, adquirindo a forma de um elipsóide. Esse é um que a teoria de Einstein tem uma boa fundamentação
resultado observável, corresponde a uma realidade física. macroscópica, porém em nível microscópico questões não
A primeira vista esta consideração parece violar a noção triviais podem surgir.
de espaço referencial, fortemente defendido por E.Mach, As observações anteriores nos levam à conclusão de
filósofo da ciência que influenciou muito as ideias de Eins- que o princípio da relatividade demandaria uma física
tein, pois a física em R1 , em relação ao qual o corpo invariante por TGC cujas forças de inércia são elevadas
1 está em repouso, é diferente da de R2 . Seria preciso ao status de interação gravitacional, sendo que veremos
derivar essa força como algo oriundo do próprio princípio que ela está codificada no desvio da geometria atual com
da relatividade (O espaço tempo não é intuído de modo relação à Minkowskiana. A necessidade de se abandonar a
absoluto, mas sim a depender do sistema de referência.), métrica de Minkowski num caso geral é devido ao fato de
pois assim esta força estaria incorporada ao ferramental que ao considerar sistemas animados de movimento rela-
teórico da mecânica, o que permitiria tratar qualquer tivo não uniforme pode-se inferir que o espaço-tempo, do
referencial em status de igualdade. Assim, a física de fato ponto de vista deles, deixa de ser plano e Minkowskiano e
seria a mesma para todos eles. passa a ser curvo. Então, uma consideração importante é
Para responder a esta questão Einstein propôs outra a de que é preciso um objeto tensorial Rµνρσ construído
reflexão. Supõe dois sistemas K e K 0 que estão se sepa- apenas com derivadas da função métrica (que define o
rando por uma aceleração constante. Como o movimento produto escalar generalizado representado pelo intervalo
é relativo, um observador em repouso em K 0 não poderia ds2 ) e que portanto se anula caso ela for constante (ou
deduzir o seu estado de movimento, ou seja, perceber-se seja, numa região com geometria plana). Como um tensor
acelerado, pois essa aceleração é um conceito relativo nulo o é em todos os sistemas de referência, caso dispor-
entre dois sistemas e não algo intrínseco ao mencionado mos de uma métrica com dependência espaço-temporal,
referencial. Para esse observador é K que se move de mas que é gerada por meio de uma TGC agindo sobre
modo acelerado. a de Minkowski, a nulidade do tensor Rµνρσ acusaria
Partiremos do princípio de que as massas gravitacio- o fato de que não há campo gravitacional real e que o
nais e inerciais são as mesmas (princípio de equivalência desvio com relação ao espaço plano se dá de modo artifi-
fraco [16]), o que possui verificação experimental dada cial, meramente um efeito de se descrevê-lo por meio de
por Eötvos e nos dias atuais por [17]. Sendo assim, numa um sistema de coordenadas mais complicado. Este é o
região infinitamente próxima à K 0 , onde não se pode tensor de Riemann-Christofell. Por enquanto, inferiremos
medir gradientes da aceleração gravitacional [14], a fe- a mencionada necessidade de se abandonar, num caso
nomenologia observada neste sistema com relação ao geral, a geometria pseudo-euclidiana de Minkowski.
movimento de K pode ser entendida como oriunda de Tal conclusão foi obtida por Einstein por meio de um
um campo gravitacional, ou seja a aceleração observada experimento mental. Ele considerou dois observadores,
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019
e20180332-6 A física na visão de Ernst Mach: De uma crítica a Newton às teorias gravitacionais
sendo que um estava na origem de um dado sistema Einstein se propôs fazer algumas reflexões que serão
de coordenadas e o outro fazia um movimento circular abordadas nas próximas seções.
uniforme em torno dessa origem. Ao aplicar conceitos
da relatividade restrita conclui-se que aquele observador
que gira, devido à sua velocidade tangencial à circun- 5.2.1. A análise da cosmologia de Newton
ferência que ele perfaz, nota um perímetro maior que
Em geral, nas aplicações da gravitação Newtoniana
aquele que seria medido pelo observador em repouso na
assume-se um potencial gravitacional constante no infi-
origem pois este vê o espaço contraído. Como sua veloci-
nito espacial. Assim, tendo em vista a equação de Poisson
dade é ortogonal ao raio da esfera este não varia. Logo,
e o fato de que uma derivada espacial ao menos dimensi-
o observador na origem conclui que a razão entre esse
onalmente é algo do tipo ∇2 ∼ r12 para que
perímetro e o raio vale π, enquanto que aquele animado
φ(r → ∞) ∼ limr→∞ 4πGρr2 tenda a um valor constante
de velocidade angular conclui que esta razão é maior
é necessário que a densidade de matéria se comporte como
que π, pois ambos concordam com relação ao raio, mas
ρ (r → ∞) ∼ r12 com γ ≥ 1. Assim, a densidade de
γ
aquele que está em repouso nota um perímetro menor que
matéria se desvanece até se tornar assintóticamente nula
aquele verificado pelo primeiro. Portanto, é preciso assu-
para grandes distâncias. É preciso ter em mente que ρ
mir geometrias mais abrangentes que englobem espaços
nas presentes considerações representa a densidade média
que podem possuir uma curvatura intrínseca. Ao admitir
de matéria para escalas muito maiores que as distâncias
sistemas animados de todos os tipos de movimento rela-
interplanetárias mas muito menores que as dimensões do
tivo, deve-se abandonar também a ideia da constância
universo. Essas condições de contorno implicam que o
da velocidade da luz, pois se para um observador ela se
universo possui um centro absoluto, de densidade má-
propaga em linha reta, para outro ela se move de maneira
xima, a partir do qual a densidade de matéria passa a
curva, modificando sua velocidade. Essa possibilidade dá
diminuir. Esta característica é problemática do ponto de
margem a fenômenos como os das lentes gravitacionais
vista relativista e nos chama a atenção para o fato de
que nada mais são que fenômenos de desvio gravitacional
que para baixas velocidades a relatividade geral tende
da luz.
à teoria Newtoniana e portanto passaria a violar seu
próprio princípio fundamental. Chega-se a conjecturar
5.2. A cosmologia de Einstein e as idéias de modificações da equação de Poisson. Um comentário in-
Ernst Mach teressante é que tal universo é espacialmente finito, pois
Com a intenção de erigir uma teoria cosmológica [20], se o espaço é puramente relacional e como a matéria está
Einstein analisa primeiramente a cosmologia de New- distribuída numa região finita, ali deve se delimitar o
ton. Dessa maneira, ele comenta que além da equação universo, pois o espaço totalmente vazio é uma entidade
de Poisson2 ∇2 φ = 4πGρ para o potencial gravitacional puramente metafísica, da qual não se pode extrair ne-
φ(x),uma estrutura local para a gravitação universal ne- nhuma informação física.
cessitaria de considerações sobre o comportamento do Logo, se este universo é finito, o potencial φ assume
potencial no infinito espacial. Na relatividade geral a um dado valor constante em sua fronteira e, a princí-
situação é análoga, se conjecturarmos um universo espa- pio, um planeta de massa mp animado de uma energia
cialmente infinito, precisamos conhecer qual forma a mé- cinética suficiente para superar a barreira de potencial
trica3 gµν (x) assume para grandes distâncias. Ao analisar mp φ, escaparia da região onde se definiria tal universo.
o movimento de planetas no sistema solar considerou-se Ao levar em conta a física estatística e, portanto, a pos-
que a métrica tendia a um valor constante para uma sibilidade de flutuações na distribuição de velocidades
região muito distante dessa distribuição de massa. Mas dos corpos celestes, esta situação ocorreria fatalmente
para extensões maiores do mundo astral, seria legítimo com uma dada frequência e ocorreria o desvanecimento
assumir estas mesmas condições, ou elas levariam a ocor- gradual da matéria do universo. Para evitar tal situação
rência de alguma situação cosmológica absurda? Como se poderia pensar em impor um valor muito alto para
não há razão a priori para se assumir essas condições esse potencial no extremo do universo. Mas deve-se pres-
tar atenção no fato de que haveria assim uma grande
2 Nesta
diferença de potencial entre o centro do universo e sua
expressão G designa a constante de interação gravitacional
e ρ(x) a densidade local de matéria.
fronteira, o que condicionaria os corpos celestes a apre-
3 A teoria da relatividade geral prevê a necessidade de se adotar sentarem grandes velocidades, fato que não se observa
um espaço tempo não-Euclidiano como se infere dos experimentos experimentalmente.
mentais de Einstein. Assim o elemento de linha generalizado passa a Agora, se considerarmos o universo como um gás no
ser dado pelo teorema de Pitágoras quadridimensional generalizado
ds2 = gµν (x)dxµ dxν com o quadrivetor dxµ = (cdt, d~ x), gµν (x)
qual os corpos celestes fazem o papel das suas moléculas
é chamada de métrica do espaço tempo e sua forma depende da e aplicarmos a lei de Boltzmann [21] para elas, chega-
distribuição local de matéria. Ou seja, de acordo com Einstein, a ríamos numa situação de absurdo. A densidade de um
matéria curva o espaço-tempo. Estamos considerando a convenção gás é condicionada pelo potencial de interação entre suas
de Einsten na qual índices repetidos acima e abaixo estão sendo
”moléculas”e pela temperatura ρ = ρ0 e− KT . Como entre
φ
somados, e µ = 1, ..., 4 sendo que 4 designa a componente temporal
dos quadrivetores. o centro absoluto do universo e sua fronteira há uma
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332
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diferença de potencial finita, a razão entre as densidades implicação um referencial com status privilegiado. Do
nestas duas regiões é finita e dada pela expressão: ponto de vista fenomenológico, obviamente a motivação
para tal modificação ja foi dada no fim da seção anterior.
ρc φc −φf
= e− KT (2) O que é interessante de se observar é que ao retomarmos
ρf a discussão sobre as condições do potencial no infinito
Em que K designa a constante de Boltzmann e φ(x) é o espacial, elas simplesmente deixam de ter cabimento,
potencial gravitacional. haja vista que se supõe a homogeneidade da distribuição
Como a densidade na fronteira tende a um valor nulo, de matéria e do potencial. Assim, Einstein é levado a
para manter a razão finita é preciso que ρc tenda a zero, supor um universo espacialmente fechado para o qual ele
o que contradiz toda a construção teórica deste modelo acreditava que as condições assintóticas do potencial não
cosmológico. seriam relevantes.
Estas observações demonstram que a teoria de Newton A fim de reforçar esta última ideia, Einstein lança mão
necessita ser modificada para que sua cosmologia não de considerações epistemológicas a respeito da relativi-
sofra inconsistências. Para tal, postularemos a seguinte dade da inércia, conceito de caráter Machiano compatível
modificação da equação de Poisson: com a fundação conceitual de sua teoria relativista. Ba-
sicamente trata-se do princípio de que para avaliarmos
uma massa, é preciso de ao menos outro corpo a fim de
∇2 φ − λφ = 4πGρ (3) colidi-los, sob um referencial inercial adequado e, assim
inferir a razão entre tais massas por meio da razão in-
A adição do novo termo λφ à equação acima permite versa de suas acelerações. Isso significa que o conceito de
que para uma densidade média de matéria constante massa depende do referencial e também da presença de
ρ = ρ0 exista uma solução do tipo: demais massas a fim de gerar efeitos observáveis que nos
permitam inferir sua existência.
4πG A relatividade geral seria compatível com a possibili-
φ=− ρ0 (4) dade de que uma partícula perderia sua inércia ao ser
λ
isolada de todas as demais? É a esta questão que Eins-
Novamente é preciso ter em mente que se trata de tein se põe a considerar e veremos que ela está ligada às
uma aproximação, em largas escalas ρ ∼ ρ0 porém, local- condições assintóticas do potencial, assunto relevante de
mente, a distribuição ρ é altamente não uniforme. Assim, seu trabalho sobre cosmologia.
próximo a um planeta, o potencial φ se assemelhará No contexto da relatividade geral, o momento espacial
muito a um campo Newtoniano se λφ << 4πGρ, o que é dado por:
asseguraria que a gravitação universal de Newton, assim
como as observações experimentais, seriam recuperadas √ dxα
localmente. Quanto à solução do potencial φ para largas pi = m −ggiα (5)
escalas, ela implica na ausência de um centro do universo ds
a partir do qual a densidade de matéria desvanece, o Em que g designa o determinante da métrica e m designa
que agrada muito as ambições relativistas4 , e também a massa de repouso.
podemos inferir o fato de que há apenas pequenos gra- Como nesta discussão tem-se em vista aplicações cos-
dientes locais do potencial, o que está de acordo com a mológicas lança-se mão do fato experimental de que a
pequena velocidade observada dos corpos celestes com velocidade dos corpos celestes é muito menor que a da
relação à velocidade da luz. Além disso, como a densi- luz no vácuo. Assim, ds2 = gµν dxµ dxν ∼ g44 dx24 5 , sendo
dade de matéria é constante nesse universo, a aplicação que de modo geral, ao considerarmos isotropia espacial,
da distribuição de Boltzmann não leva à ocorrência de temos:
uma contradição.
ds2 = −A(dx21 + dx22 + dx23 ) + Bdx24 (6)
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019
e20180332-8 A física na visão de Ernst Mach: De uma crítica a Newton às teorias gravitacionais
distribuição de matéria que esteja em equilíbrio e que Tal solução apresenta um caráter harmônico e parece
não implique num centro absoluto do universo e também, adequada a cumprir o papel mencionado, pois ela se
6 O tensor de energia momento é uma quantidade conservada devido propaga por todo o espaço ao invés de desvanecer. A
à invariância do sistema por quadri-translações. Suas componentes interpretação seria a de uma interação gravitacional cuja
T44 (x) e Ti4 (x) representam energia e o vetor momento respec-
tivamente sendo que i = 1, .., 3. Ele é a fonte de curvatura do
intensidade dependeria da posição e da distribuição de
espaço-tempo. matéria. De fato, na teoria de Brans-Dicke, verifica-se a
7 ρ(x) designa a densidade média de matéria. relação:
Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332
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DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332 Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019
e20180332-10 A física na visão de Ernst Mach: De uma crítica a Newton às teorias gravitacionais
lência forte, comentando-se que sua base experimental é [16] R. Von Eötvös, in: Roland Eotvos Gesammelte Arbeiten,
bem menos fundamentada do que a de sua versão fraca. editado por P. Selenyi (Akademiai Kiado, Budapest,
Para finalizar, é interessante citarmos que existem 1953).
testes e limites experimentais para a observação de efei- [17] C.C. Speake e C.M. Will, Class. Quant. Grav. 29, 180301
tos Machianos na natureza. Por exemplo, o mencionado (2012).
[18] E. Barausse, arXiv:1703.05699 (2017).
referencial das estrelas fixas (que são os quasares e galá-
[19] V. Sabbata e M. Gasperini, Introduction to Gravitation
xias distantes.) não gira com relação ao nosso, ou seja (World Scientific Publishing Co, Singapore, 1985).
constitui um bom referencial inercial, com a precisão [20] A. Einstein,The principle of relativity (Dover, New York,
de 0, 00025 arcseg/ano. Como discutido no parágrafo 1952), p. 175.
anterior, existem resultados experimentais que limitam [21] S.R.A. Salinas, Introdução à física estatística (Edusp,
a validade do princípio de equivalência de Einstein, que São Paulo, 1999), 2ª ed.
dentre outras coisas, prevê que localmente podemos sem- [22] D. Soares, Rev. Bras. Ens. Fís.34, 1 (2012).
pre assumir uma métrica Minkowskiana. Esse princípio [23] R. Aldrovandi e J.G. Pereira, Teleparallel Gravity, an
parece se opor ao conceito Machiano de que até mesmo as introduction (Springer, Heidelberg, 2013), v. 1.
distribuições de matéria distante são capazes de influen- [24] H.C. Ohanian, arXiv:1010.5557 (2010).
ciar a física local. Assim, conhecer os limites de validade [25] J. Barbour e H. Pfister, in: Mach’s Principle; From New-
ton’s Bucket to Quantum Gravity, edited by D. Howard
experimentais dos princípios de equivalência pode for-
e J. Stachel (Boston University, Boston, 1995), v. 6.
necer informações sobre qual a escala em que os efeitos
Machianos poderiam começar a ser observados [25].
Agradecimentos
O autor, G. B. de Gracia, agradece à CAPES pelo suporte
financeiro e ao B. M. Pimentel pela orientação e pelas
importantes discussões sobre os fundamentos da física.
Referências
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dian Edition, Pearson, 2010).
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Revista Brasileira de Ensino de Física, vol. 41, nº 3, e20180332, 2019 DOI: http://dx.doi.org/10.1590/1806-9126-RBEF-2018-0332