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Panteras Negras, 29 de fevereiro de 1969 - Capitólio em Olympia (WA)

CRÍTICA DO DIREITO | 06 de abril a 02 de agosto de


2015

Só leia se estiver seguro para abandonar o conforto


de suas certezas
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

FICHA CATALOGRÁFICA

Revista Crítica do Direito nº 5, vol. 65


São Paulo, 2015
Quadrimestral
ISSN 2236-5141
QUALIS B1
Vários editores
1. Teoria do Direito - produção científica
CDD 341.1

Índice para catálogo sistemático


1. Teoria do direito 341

EDITOR RESPONSÁVEL
Vinícius Magalhães Pinheiro

CONSELHO EDITORIAL
Alysson Leandro Barbate Mascaro
Clarissa Machado
Daniel Francisco Nagao Menezes
Júlio da Silveira Moreira
Roberta Ibañez
Thiago Ferreira Lion
Tiago Freitas
Vinicius Magalhães Pinheiro
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

DIREITO DA ANTIDISCRIMINAÇÃO, CRIMINALIZAÇÃO DA


HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL - Roger Raupp Rios1 e
Lawrence Estivalet de Mello2

RESUMO
Este artigo objetiva analisar a proposta de criminalização da homofobia de
modo crítico, mediante o exame dos argumentos abolicionistas e da
necessidade de medidas antidiscriminatórias. Em um primeiro momento,
apresenta a crítica abolicionista à criminalização da homofobia e propõe a
defesa de uma política criminal alternativa. A seguir, arrola as
consequências da não-criminalização na perspectiva do direito da
antidiscriminação. Conclui pela necessidade de criminalização da
homofobia, em respeito ao princípio constitucional da liberdade e
igualdade sexual, bem como ao avanço da consciência social a respeito
da discriminação homofóbica.
Palavras-chave: homofobia, criminalização, antidiscriminação.

INTRODUÇÃO

Esta reflexão propõe uma abordagem jurídica crítica em face de


um dos debates mais acirrados na sociedade brasileira contemporânea: a
criminalização da homofobia. Crítica, ao menos, em duas frentes: tanto
diante dos argumentos nutridos no abolicionismo penal, quanto frente à
omissão legislativa decorrente da resistência parlamentar a medidas
penais que enfrentem a violência homofóbica. Para tanto, são
apresentadas crítica abolicionista e, a seguir, a política criminal alternativa
e a criminologia queer (parte 1). Considerada a necessidade de

1
Mestre e Doutor em Direito/UFRGS. Juiz Federal e Professor do Curso de
Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter (roger.raupp.rios@gmail.com).
2
Mestre em Direito (PPGD/UFPR). Advogado inscrito na OAB/PR e
Professor do curso de Direito da UNIGUAÇU (Faculdades Integradas do Vale
do Iguaçu). Pesquisador do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania,
PPGD/UFPR (lawestivalet@gmail.com).
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

enfrentamento da homofobia, procede-se à análise da criminalização da


homofobia no horizonte do direito da antidiscriminação (parte 2).

1. CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E ABOLICIONISMO PENAL:


contextualização e resposta antidiscriminatória

Esta parte examina a crítica do abolicionismo penal à


criminalização da homofobia, bem como suas limitações. A análise se
subdivide em duas seções: a crítica abolicionista (1.1), a política criminal
alternativa e a criminologia queer (1.2).

1.1. A crítica abolicionista à criminalização da homofobia

Dois textos são tomados como paradigma da crítica abolicionista à


criminalização da homofobia. Um primeiro, mais geral, é o clássico “A
esquerda punitiva”, de Maria Lúcia Karam, de 1996. O segundo, recente e
específico, é da lavra de Aline Passos Santana, denominado
“Criminalização das opressões: a que estamos sendo levados a servir?”,
lançado em janeiro de 2014.
Karam afirma que o interesse da esquerda pela repressão é
datado, com origem em meados da década de 1970. Localiza esse
interesse no movimento feminista, que teria como objetivo “a busca de
punições exemplares de atos violentos contra mulheres”, em “febre
repressora” que a seguir se estenderia ao movimento ecológico3.
Descreve o fundamento da criminalização como busca de
“identificação exemplar” dos criminosos, para que “emprestem sua
imagem à personificação da figura do mau, do inimigo, do perigoso”. A
punição exemplar esconderia os perigos e males que sustentam a
estrutura de dominação e poder4.
Afirma que a lógica do sistema penal é a da pena pela
seletividade. Individualiza-se e demoniza-se o criminoso, como
característica inerente à chamada “reação punitiva”. Gera-se, assim,
“satisfação e alívio”, com dispensa de investigação das razões ao fundo
das “situações negativas”. Tornam-se invisíveis as fontes geradoras da
criminalidade. Em seu lugar, toma assento a superficialidade da resolução
falsa5.

3
KARAM, 1996, p. 79.
4
KARAM, 1996, p. 82.
5
KARAM, 1996, p. 82.
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O motivo principal da crítica à “esquerda punitiva” é seu


“abandono da utopia da transformação social, cedendo lugar a desejos
mais imediatos”. Por um lado, afirma-se o objetivo de reprodução do
senso comum, para conquista de cargos políticos. Por outro, sugere-se
“processo de envelhecimento e estabilização material”, que resultaria em
ideais de “paz” e “tranquilidade”6.
Como exemplo dessa postura, vale-se do discurso da guerra às
drogas em favelas do Rio de Janeiro. Em reprodução da ideologia
repressora, setores da esquerda defenderiam maior intervenção do
sistema penal. Para tanto, trabalhariam com o “fantasma da criminalidade
organizada”, que seria o responsável pela desorganização de movimentos
populares. Desse modo, forjar-se-ia uma espécie de complacência com a
“violenta educação das classes subalternizadas para a submissão”, que
incluiria revistas pessoais até mesmo contra crianças7.
Trata-se, segundo Karam,

de quem não hesita em dar sua adesão a uma


pretendida ‘paz’ classista e excludente, de quem,
priorizando o combate à criminalidade, parece
ter definitivamente relegado a segundo plano as
medidas mais profundas e de longo prazo que,
aptas a criar melhores condições de vida e
maiores oportunidades sociais para as classes
subalternizadas, simultaneamente contribuam
para o rompimento com os mecanismos
excludente (tão eficazmente reproduzidos pelo
sistema penal) e conduzam a uma – não importa
quão distante – transformação social (...)8.

Para a autora, “a ideia de pena, de afastamento do convívio


social, de punição, baseia-se no maniqueísmo simplista, que divide as
9
pessoas entre boas e más” . A defesa da criminalização, desse modo,
concerne à adesão à ideologia da repressão, da lei e da ordem.
Compatibiliza-se com um tempo de “medo coletivo difuso”, “isolamento
individual”, bem como “decepção enfraquecedora das utopias” e
“necessidade de criação de novos inimigos”10.

6
KARAM, 1996, p. 83.
7
KARAM, 1996, pp. 86 e 87.
8
KARAM, 1996, p. 87.
9
KARAM, 1996, p. 88.
10
KARAM, 1996, p. 90.
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Defende, em contraposição, uma “síntese que incorpore os ideais


libertários, asseguradores da livre expressão e realização dos direitos da
personalidade de cada indivíduo, (...) [com] indispensável garantia da
liberdade individual e do direito à diferença”11.
Aline Passos, em texto mais recente, especifica a crítica
abolicionista à criminalização das opressões, estas entendidas como
racismo, machismo e homofobia. Sistematiza seis principais críticas à
criminalização.
A primeira crítica se refere à persistência das condutas, mesmo
após a criminalização. Revela, portanto, a falsidade de um suposto caráter
preventivo. O segundo motivo é o caráter de classe do sistema penal.
Afirma-se que apenas “os de baixo” são atingidos pela criminalização de
condutas; com nova criminalização, portanto, “é exatamente isso que ele
[o sistema penal] continuará fazendo”12. O terceiro argumento informa que
há opressões no interior das prisões, o que significa que “empurrar para
dentro delas os opressores é autorizar que eles se multipliquem e se
espalhem”13.
A quarta crítica caracteriza criminalizações como “abrir mão da
juventude pobre”. Relaciona crime com ato infracional e questiona o
caráter “pedagógico” de internações em instituições destinadas ao
aprisionamento de jovens em conflito com a lei. O quinto argumento
afirma insensibilidade de umas opressões em relação a outras. Detalha-se
que negros podem ser machistas e homofóbicos, gays podem ser
machistas e racistas e mulheres podem ser homofóbicas e racistas. Por
esse motivo, criminalizar opressões se caracteriza como um “fogo
cruzado”, que pode levar à hierarquização entre as opressões, em
“problemática reciprocidade”, que atesta a “sofisticação da estratégia
punitiva”.
Por fim, o sexto motivo contrário à criminalização das opressões é
o de que criminalizar cria “empregos úteis”. Citam-se “secretarias
especiais, ONGs, especialistas, parlamentares, institutos de pesquisa,
departamentos de polícia especializados”, que forjariam “não só o
criminoso, mas também, o policial e o carceireiro, mais ou menos
intelectualizado, fardado ou não, cuja existência material depende da
constante renovação dos processos de criminalização e aprisionamento”
14
.

11
KARAM, 1996, p. 92.
12
SANTANA, 2014, s/n.
13
SANTANA, 2014, s/n.
14
SANTANA, 2014, s/n.
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Ambas as autoras, portanto, sustentam o caráter ideológico do


combate à discriminação por meio da criminalização. Caracterizam a
posição contrária à delas como classista, adaptada à paz e à ordem,
rebaixada ao senso comum, insuficiente para o combate à discriminação,
bem como passível de efeito reverso, isto é, de aumentar a discriminação.
Sugerem, inclusive, má-fé por parte de quem defende a criminalização,
com suposto interesse em cargos políticos, empregos e afins.
São, portanto, duas ordens de argumentos. A primeira, a respeito
do caráter de classe do sistema penal e sua impermeabilidade a
apropriações contra-hegemônicas. A segunda, concernente à insuficiência
da referida tática para o combate à discriminação.

1.2. A política criminal alternativa e a criminologia queer

Há alternativas de pensamento à crítica desferida à criminalização


da homofobia na seção anterior, como a possibilidade de uma política
criminal das classes subalternas e a ideia de uma criminologia queer.
Exemplos disso são as reflexões de Alessandro Baratta e a defesa de
Salo de Carvalho sobre a possibilidade de uma criminologia queer. Ambos
defendem a permeabilidade de contradições no caráter de classe do
sistema penal, como se verá.
Baratta, em “Criminologia crítica e crítica do direito penal”,
sustenta a possibilidade de uma política criminal alternativa, baseada em
“quatro indicações ‘estratégicas’ para uma ‘política criminal’ das classes
subalternas”. São elas (a) a distinção entre comportamentos socialmente
negativos que se encontram nas classes subalternas e aqueles que se
encontram nas classes dominantes, (b) o uso alternativo do direito penal
em favor dos interesses coletivos e uma obra radical e corajosa de
despenalização, (c) o objetivo da abolição da instituição carcerária, com
as múltiplas e diferenciadas etapas de aproximação deste objetivo; e (d)
“uma batalha cultural e ideológica para o desenvolvimento de uma
15
consciência alternativa no campo do desvio e da criminalidade” .
A primeira indicação estratégica concerne à função do direito
penal na estrutura da sociedade capitalista. Os comportamentos
socialmente negativos das classes subalternas são "expressões
específicas das contradições que caracterizam a dinâmica das relações
de produção e de distribuição, (...) na maioria dos casos uma resposta
individual e politicamente inadequada àquelas contradições” 16. Os das
classes dominantes, em outro sentido, referem-se a “processos legais e

15
BARATTA, 2002, p. 205.
16
BARATTA, 2002, p. 201.
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ilegais da acumulação e da circulação do capital e entre estes processos e


a esfera política”17. Diferencia-se programaticamente, assim, política penal
de política criminal. Esta é uma “política de transformação social e
institucional”; aquela é uma resposta circunscrita ao âmbito do “exercício
da função punitiva do Estado” 18.
A adoção da perspectiva da política criminal, portanto,

Não pode ser uma política de ‘substitutivos


penais’, que permaneçam limitados a uma
perspectiva vagamente reformista e humanitária,
mas uma política de grandes reformas sociais e
institucionais para o desenvolvimento da
igualdade, da democracia, de formas de vida
comunitária e civil alternativas e mais humanas
(...)19.

A segunda indicação estratégica se refere à crítica do direito penal


como direito desigual, sob dois perfis. Primeiro, diz respeito “à ampliação
e ao reforço da tutela penal, em áreas de interesse essencial para a vida
dos indivíduos e da comunidade: a saúde, a segurança no trabalho, a
integridade ecológica etc.” 20. Configura-se, assim, um uso alternativo do
direito penal, com necessário cuidado para não-reprodução da ideologia
da defesa social.
O segundo perfil, por outro lado, tem como objetivo uma “obra
21
radical e corajosa de despenalização” . Busca-se a contração ao máximo
do sistema punitivo, com alívio da pressão negativa sobre as classes
subalternas. Significa, também, a busca por meios alternativos de
resolução de conflitos, com a substituição das sanções penais por formas
de controle legal não-estigmatizantes. Dentre estas, são citadas sanções
administrativas ou civis, entre outras22.
A terceira indicação estratégica afirma o objetivo da abolição da
instituição carcerária, com as múltiplas e diferenciadas etapas de
aproximação deste objetivo. Ou seja, busca-se dar concretude à defesa
da abolição, por meio de táticas adequadas para este fim. Entre elas,
encontram-se o “alargamento do sistema de medidas alternativas”, a

17
BARATTA, 2002, p. 201.
18
BARATTA, 2002, p. 201.
19
BARATTA, 2002, p. 201.
20
BARATTA, 2002, p. 202.
21
BARATTA, 2002, p. 202.
22
BARATTA, 2002, p. 202.
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“ampliação das formas de suspensão condicional da pena e de liberdade


condicional”, a “reavaliação do trabalho carcerário” e, em especial, “a
abertura do cárcere para a sociedade, também mediante a colaboração
das entidades locais e, mais ainda, mediante a cooperação dos presos e
das suas associações com as organizações do movimento operário” 23. O
objetivo é de constituir uma alternativa ao “mito burguês da reeducação e
da reinserção do condenado”24.
A quarta indicação estratégica, enfim, defende a necessidade de
“máxima consideração na função da opinião pública e dos processos
ideológicos e psicológicos que nela se desenvolvem”25. Opinião pública,
para o autor, possui três sentidos: primeiro, o de construção de
estereótipos de criminalidade; segundo, o de portar e legitimar a ideologia
dominante; e terceiro, o de projetar “culpa” e “mal” a certas atitudes, em
cumprimento às “funções simbólicas da pena”26.
Encontra importância, desse modo, “uma batalha cultural e
ideológica para o desenvolvimento de uma consciência alternativa no
campo do desvio e da criminalidade”27. Para reverter as relações de
hegemonia cultural, é necessário um “decidido trabalho de crítica
ideológica, de produção científica, de informação” 28. Somente assim a
crítica pode atingir um patamar de “discussão de massa” e fugir à
destinação de permanência como “utopia de intelectuais iluministas” 29.
Salo de Carvalho, por outro lado, fundamenta a constituição de
uma criminologia queer, cujo objeto é a violência homofóbica30. Identifica
duas pautas do movimento LGBT no plano da política-criminal. Uma
primeira é negativa, referente à limitação da intervenção penal nas esferas

23
BARATTA, 2002, p. 203.
24
Para o autor, “(...) a verdadeira ‘reeducação’ do condenado é a que
transforma uma reação individual e egoísta em consciência e ação política
dentro do movimento da classe. O desenvolvimento da consciência da
própria condição de classe e das contradições da sociedade, por parte do
condenado, é a alternativa posta à concepção individualista e ético-religiosa
da expiação, do arrependimento, da Suhne” (BARATTA, 2002, p. 204).
25
BARATTA, 2002, p. 205.
26
BARATTA, 2002, p. 205.
27
BARATTA, 2002, p. 205.
28
BARATTA, 2002, p. 205.
29
BARATTA, 2002, p. 205.
30
A violência homofóbica, para Salo de Carvalho, possui três dimensões:
interpessoal, institucional e simbólica (CARVALHO, 2012, p. 197).
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

do direito e da psiquiatria. Uma segunda, positiva, direcionada à


criminalização da violência homofóbica31.
A pauta negativa se fundamenta na “repressão histórica da
diversidade sexual”. Apresenta-se a necessidade de descriminalização de
atos homossexuais, ainda presente em 40% dos países membros da
ONU32 e no Código Penal Militar brasileiro33. Outrossim, sem ignorar
avanços no processo de despatologização das sexualidades e identidades
de gênero não-hegemônicas, ressalta-se que a transexualidade
permanece tipificada como transtorno de identidade de gênero 34.
Acerca da pauta positiva, Carvalho releva aspectos penais e
criminológicos. Do ponto de vista penal, o autor considera a demanda pela
criminalização legítima, mas equivocada a estratégia político-criminal
eleita (PL 122/2006)35. Defende que a mera especificação de condutas já
criminalizadas não produz aumento de repressão penal 36. Sustenta
presença de discriminação na tutela insuficiente contra a violência
homofóbica, em comparação à tutela contra a violência racista e
machista37. Ressalva, no entanto, que a mera especificação da violência
homofóbica (nomen juris) não resolve o problema. É necessário debater
“os instrumentos legais e os efeitos jurídico-penais decorrentes desta
diferenciação”38. Da escolha dos instrumentos legais decorre sua
conclusão de equívoco na estratégia utilizada pelo movimento LGBT 39.

31
CARVALHO, 2012, p. 194.
32
“(…) aproximadamente 60% dos membros da ONU (113 de 193) aboliram
(e alguns nunca o fizeram) as legislações que criminalizavam atos
homossexuais consentidos entre pessoas adultas do mesmo sexo, enquanto
cerca de 40% (78 de 193) das nações ainda se agarram de forma equivocada
– assim como criminosa – na tentativa de preservar suas ‘identidades
culturais’ frente à globalização (...). As punições variam de um número de
chibatadas (como o Irã), dois meses de prisão (por exemplo, Argélia), a
sentença de prisão perpétua (e. g. Bangladesh) ou até mesmo a morte (Irã,
Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iémen)” (ILGA apud CARVALHO, 2012, p.
194.
33
Ver RIOS, SCHAFER e BORBA, 2012.
34
CARVALHO, 2012, p. 195.
35
CARVALHO, 2012, p. 206.
36
CARVALHO, 2012, p. 200.
37
CARVALHO, 2012, pp. 200 e 201.
38
O autor procede à descrição e diferenciação entre a Lei 7.716/1989
(preconceito racial) e a Lei 11.343 (violência doméstica). No seu
entendimento, a primeira apenas nomina e insere condutas discriminatórias
no tradicional sistema repressivo, isto é, realiza a inovação de tipos
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

Do ponto de vista criminológico, refutam-se as posições que


violam a Lei de Hume, isto é, retiram uma norma (plano do dever ser) de
uma situação concreta (plano do ser). Os dados sobre o funcionamento do
sistema prisional, no seu entendimento, não podem levar a uma conclusão
normativa, senão em reprodução de argumentos típicos do positivismo
científico40.
Critica o idealismo ingênuo, segundo o qual uma criminalização
possa, por si mesma, diminuir violências. Em contraposição, sustenta que
a possibilidade de redução de violências “implica em um processo
complexo de análise de cada situação-problema em seu local de
emergência”, na qual “a lei penal é apenas uma – e provavelmente a
menos eficaz e mais falha – das estratégias”41.
Destaca, entretanto, que a criminalização da homofobia pode
possuir forte efeito simbólico, com capacidade de “desestabilizar a cultura

incriminadores no âmbito do direito penal. Já a segunda constrói um novo


modelo de gestão de conflitos, tendo a criminalização como questão
periférica em sua estrutura normativa, embora “transformada em tema central
no debate político e acadêmico” (CARVALHO, 2012, p. 203).
39
“Assim, desde o meu ponto de vista, o problema da criminalização da
homofobia no Brasil reside na estratégia utilizada pelo movimento LGBTs.
(…) Neste sentido, acredito que a via eleita pelo movimento LGBTs, ao optar
pela inclusão da homofobia na Lei 7.716/1989, foi extremamente inadequada.
Primeiro porque dilui a ideia de preconceito e discriminação por orientação
sexual e identidade de gênero nas questões de raça, cor, religião, etnia e
procedência nacional. Por mais que a homofobia possa ser enquadrada
teoricamente nos crimes de ódio (hate cases) e guarde uma significativa
identificação com a xenofobia, o racismo e o antissemitismo, cada um destes
fenômenos guarda uma complexidade própria que merece ser analisada
individualmente. Segundo, porque as condutas tipificadas pela Lei
7.716/1989, acrescidas de outras propostas no PL 122/2006, referem, e sua
maioria, obstaculizações ou impedimentos de acesso a oportunidades, bens,
serviços ou locais, situações que, desde uma perspectiva
garantista/minimalista, poderiam ser geridas de forma mais adequada fora do
âmbito do direito penal, como, por exemplo, nas esferas civil, trabalhista,
consumeirista ou administrativista. Em terceiro¸e de forma mais contundente,
porque o PL 122/2006 não nomina, como crime homofóbico, as condutas
violentas praticadas contra lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e
transgêneros motivadas por preconceito ou discriminação” (CARVALHO,
2012, p. 205).
40
CARVALHO, 2012, p. 207.
41
CARVALHO, 2012, p. 208.
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015
42
homofóbica enraizada no tecido social” . Neste aspecto, lembra o
processo desencadeado pela Lei Maria da Penha. Com base em dados
IBOPE/THEMIS, sublinha que:

o estatuto provocou importantes mudanças


culturais (IBOPE/THEMIS, 2008), inclusive pelas
reações que o movimento de mulheres e a
própria lei sofreram. Pesquisas evidenciam que
o nível de consciência do problema da violência
doméstica na sociedade brasileira ganhou
densidade, sofisticação (IBOPE/THEMIS, 2008).
Sobretudo na forma pela qual os meios de
comunicação e de entretenimento passaram a
noticiar os atos de violência contra mulheres. E
inegavelmente a Lei Maria da Penha
desempenhou um papel estratégico central
nesta mudança cultural43.

Embora os números de violência doméstica persistam, foram


realizados avanços significativos. Em especial, no campo da consciência
social das vítimas, que passam a denunciar os atos de violência, com
algum acolhimento pelos serviços de atendimento especializados. Abre-se
terreno, desse modo, “para que se possa mapear o problema e atuar
positivamente, através de políticas públicas não punitivas, para a sua
44
redução” .
Nessa senda, torna-se inequívoca a possibilidade de construção
de uma política criminal alternativa para o combate à discriminação
homofóbica. O reconhecimento do caráter de classe do sistema penal não
obstaculiza essas políticas. Em outro sentido, caracteriza suas limitações
e sua função no interior de uma determinada totalidade social.
Em cumprimento às quatro táticas indicadas por Baratta, não é
incoerente que as classes subalternas:
(a) compreendam que a discriminação homofóbica colabora
para os “processos legais e ilegais de acumulação do capital”, ao
precarizar as condições de vida de parte da população, com a costumeira
retirada da proteção familiar e os diferentes dispositivos que a tornam
força de trabalho mais vulnerável a todo tipo de ataque e retirada de
direitos;

42
CARVALHO, 2012, p. 208.
43
CARVALHO, 2012, p. 208.
44
CARVALHO, 2012, p. 208.
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

(b) caracterizem como seus valores comunitários, que


merecem a “tutela penal essencial”, o reajuste histórico de instituições e
relações homofóbicas, na defesa de valores como igualdade e dignidade
da pessoa humana;
(c) identifiquem que, no interior das “diferentes etapas” da
abolição do sistema penal, a criminalização da homofobia constitui um
primeiro passo, que viabiliza a construção de políticas públicas e o
supramencionado reajuste histórico da homofobia institucional, para sua
posterior despenalização. Destaca-se, neste ponto, que sem esse passo
permanece dificultada a construção de políticas públicas e, portanto, o
combate à discriminação; e
(d) utilizem o sistema penal para combater e reverter a
opinião pública hoje predominante, que não apenas naturaliza, mas até
mesmo difunde a ideologia homofóbica, em processo similar ao ocorrido
em torno da criminalização do racismo e da violência doméstica, conforme
já citado.

A refutação sem ressalvas da possibilidade de adoção crítica da


estratégia de criminalização alimenta uma série de simplismos e
homofobias. Destacam-se cinco deles abaixo.
Primeiro, subestima e invisibiliza a capacidade crítica do
movimento LGBT, classificando-o como classista, elitista, punitivista, sem
propor junto a ele políticas de combate à homofobia, isolando-o mesmo no
interior do campo crítico. Segundo, distorce um movimento de defesa
(contra a violência homofóbica), mistificando-o como um movimento de
ataque (contra as classes subalternas, de que a população LGBT faz
parte). Terceiro, afirma uma adesão à “paz e à ordem”, para uma
população cuja realidade cotidiana é em tudo o contrário, de insegurança,
conflito, medo, e invisibilidade. Quarto, sugere um “rebaixamento ao senso
comum punitivista”, ignorando que a disputa presente no senso comum é
entre homofóbicos e não-homofóbicos, e não entre punir ou não a
homofobia. Quinto, por fim, sustenta que a criminalização não resolve a
situação, reduzindo a política contra a discriminação ao debate do direito
penal.
É sobre este último ponto que segue a próximo parte. Nela,
busca-se inverter o presente debate. Isto é: analisa-se a criminalização
sob o ponto de vista do direito antidiscriminatório, e não o contrário.

2. A NÃO-CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA E O DIREITO DA


ANTIDISCRIMINAÇÃO
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A homofobia é uma modalidade de discriminação reprovada


constitucionalmente, cuja persistência e enfrentamento requerem o
cumprimento de deveres constitucionais de proteção, dada a intensidade
da violação a direitos fundamentais que dela resulta. De modo particular, a
homofobia qualifica-se, juridicamente, como ofensa ao princípio da
igualdade, compreendido como mandamento antidiscriminatório.
Com efeito, no âmbito do direito da antidiscriminação, entendido
como conjunto de conteúdos e institutos jurídicos relativos ao princípio da
igualdade enquanto proibição de discriminação e como mandamento de
promoção e respeito da diversidade, pode-se indagar sobre a omissão na
criminalização da homofobia.

2.1. Conceito jurídico de discriminação e a não-criminalização da


homofobia

O termo discriminação designa a materialização, no plano


concreto das relações sociais, de atitudes arbitrárias, comissivas ou
omissivas, originadas do preconceito, capazes de produzir violação de
direitos contra indivíduos e grupos estigmatizados. A abordagem da
discriminação por meio de uma perspectiva jurídica não implica
desconhecer ou menosprezar o debate sociológico sobre o tema. Como
indica Marshall (1998), os estudos sociológicos sobre discriminação,
inicialmente vinculados à investigação do etnocentrismo, atualmente se
concentram em padrões de dominação e opressão, como expressões de
poder e privilégio.
Nesta perspectiva, o conceito de discriminação aponta para a
reprovação jurídica das violações ao princípio isonômico 45, atentando para
os prejuízos experimentados pelos destinatários de tratamentos desiguais.
A discriminação aqui é visualizada através de uma perspectiva mais
substantiva que formal 46: importa enfrentar a instituição de tratamentos

45
A propósito, deve-se registrar que o termo “discriminação” tem sido
amplamente utilizado numa acepção negativa, tanto no direito nacional
quanto no direito comunitário e internacional, ao passo que o termo
“diferenciação” tem sido empregado para distinções legítimas. Ver Marc
Bossuyt (1976, p. 8) e Rhoodie (1984, p. 26).
46
Como refere Patmore (1999, p. 126), a discriminação substantiva se
caracteriza pela referência a uma distinção prejudicial diante de uma pessoa
ou grupo relacionada a um fator de diferenciação ilegítimo, ao passo que a
discriminação formal pressupõe a ilegitimidade de toda e qualquer distinção.
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015
47
desiguais prejudiciais e injustos. Como demostra Fredman , uma
abordagem meramente formal poderia levar à rejeição de um pleito de
proteção jurídica (fundado na proibição de discriminação sexual) diante de
um empregador que praticasse assédio sexual contra homens e mulheres
simultaneamente.
Neste contexto, afirma-se o conceito de discriminação
desenvolvido no direito internacional dos direitos humanos, cujos termos
podem ser encontrados na Convenção Internacional sobre a Eliminação
de todas as Formas de Discriminação Racial 48 e na Convenção sobre a
49
Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher .
Segundo estes dizeres, discriminação é “qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência que tenha o propósito ou o efeito de anular ou
prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos econômico,
social, cultural ou em qualquer campo da vida pública”.
Colocado este conceito, importa agora perguntar-se sobre as
consequências, para o direito da antidiscriminação, da não-criminalização
da homofobia. Antes de demonstrar tais repercussões jurídicas, é preciso
salientar as formas de violência pelas quais a homofobia se manifesta.

2.2. A discriminação homofóbica: contrariedade ao direito e formas


de violência

47
FREDMAN, 2004, p. 95.
48
Aprovada pelas Nações Unidas em 21.12.1965 e ratificada pelo Brasil em
27.03.1968. Reza seu artigo 1º, I: “Qualquer distinção, exclusão, restrição ou
preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou
étnica que tenha o propósito ou o efeito de anular ou prejudicar o
reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos
e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou
em qualquer outro campo da vida pública.”
49
Aprovada pelas Nações Unidas em 18.12.1979, ratificada pelo Brasil em
31.03.1981. Diz seu art. 1º, ao definir discriminação: “toda distinção, exclusão
ou restrição baseada no sexo que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou
anular o reconhecimento, gozo, exercício pela mulher, independentemente de
seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos
humanos e das liberdades fundamentais nos campos político, econômico,
social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

Dado que a indivíduos e grupos distantes dos padrões


heterossexistas é destinado um tratamento diverso daquele
experimentado por heterossexuais ajustados a tais parâmetros, a
“homofobia” implica, sem sombra de dúvida, discriminação, uma vez que
envolve distinção, exclusão ou restrição prejudicial ao reconhecimento, ao
gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades
fundamentais. O pressuposto para a qualificação jurídica de uma relação
social como discriminatória é a contrariedade ao direito. Com efeito, não
haverá discriminação se a diferenciação de tratamento for considerada
conforme o direito, como se dá, por exemplo, diante da proteção jurídica à
mulher no mercado de trabalho. Sendo assim, a qualificação jurídica da
homofobia como expressão discriminatória exige que se destaquem, ao
menos, dois aspectos: (1) a contrariedade ao direito dos tratamentos
homofóbicos e (2) as modalidades de violência pelas quais a
discriminação homofóbica se manifesta.
Quanto ao primeiro tópico, revela-se necessário salientar a
injustiça dos tratamentos discriminatórios homofóbicos50. De fato,
persistem posturas que pretendem legitimar tais discriminações,
diversamente do que ocorre, em larga medida, diante do anti-semitismo,
do racismo ou do sexismo. Com efeito, a teoria e a jurisprudência dos
direitos humanos e dos direitos fundamentais afirmam, de modo cada vez
mais claro e firme, a ilicitude da discriminação por orientação sexual.
Tanto tribunais internacionais de direitos humanos, quanto tribunais
constitucionais nacionais (inclusive o fez, de forma unânime, o Supremo
Tribunal Federal, ao julgar a Arguição de Descumprimento Fundamental n.
132), afirmam como ofensa a diversos direitos humanos e fundamentais a
discriminação dirigida contra identidades, práticas e expressões
divorciadas do heterossexismo. Nestes casos, direitos básicos como a
privacidade, a liberdade individual, o livre desenvolvimento da
personalidade, a dignidade humana, a igualdade e a saúde são
concretizados e juridicamente protegidos em demandas envolvendo
51
homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais .
A homofobia viola de modo intenso e permanente uma série de
direitos básicos, reconhecidos tanto pelo direito internacional dos direitos
humanos, quanto pelo direito constitucional. Ao lesionar uma gama tão

50
Lopes (2003) analisa a injustiça da discriminação por orientação sexual no
contexto dos debates atuais de filosofia moral, demonstrando as implicações
para a prática do direito.
51
Um panorama desta evolução no direito internacional dos direitos
humanos, ver Wintemute (1995) e Heinze (1995); no direito brasileiro, Rios
(2001) e Golin (2003).
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

ampla de bens jurídicos, a homofobia manifesta-se por meio de duas


formas de violência: física e não-física.
A violência física, mais vísivel e brutal, atinge diretamente a
integridade corporal, quando não chega às raias do homicídio. A segunda
forma de violência, não-física, mas não por isso menos grave e danosa,
consiste no não-reconhecimento e na injúria. O não-reconhecimento,
configurando uma espécie de ostracismo social, nega valor a um modo de
ser ou de viver, criando condições para modos de tratamento degradante
e insultuoso. Já a injúria, relacionada a esta exclusão da esfera de direitos
e impedimento da autonomia social e possibilidade de interação, é uma
das manifestações mais difusas e cotidianas da homofobia52. Nas
palavras de Didier Eribon (apud Lopes, 2003),

O que a injúria me diz é que sou alguém anormal


ou inferior, alguém sobre quem o outro tem
poder e, antes de tudo, o poder de me ofender.
A injúria é, pois, o meio pelo qual se exprime a
assimetria entre os indivíduos. [...]. Ela tem
igualmente a força de um poder constituinte.
Porque a personalidade, a identidade pessoal, a
consciência mais íntima, é fabricada pela
existência mesma desta hierarquia e pelo lugar
que ocupamos nela e, pois, pelo olhar do outro,
do ‘dominante’, e a faculdade que ele tem de
inferiorizar-m insultando-me, fazendo-me saber
que ele pode me insultar, que sou uma pessoa
insultável e insultável ao infinito.
A injúria homofóbica inscreve-se em um
contínuo que vai desde a palavra dita na rua que
cada gay ou lésbica pode ouvir (veado sem-
vergonha, sapata sem-vergonha) até as palavras
que estão implicitamente escritas na porta de
entrada da sala de casamentos da prefeitura:
‘proibida a entrada de homossexuais’ e,
portanto, até as práticas profissionais dos
juristas que inscrevem essa proibição no direito,
e até os discursos de todos aqueles e aquelas
que justificam essas discriminações nos artigos
que apresentam como elaborações intelectuais
(filosóficas, teológicas, antropológicas,

52
LOPES, 2003, p. 20.
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

psicanalíticas etc.) e que não passam de


discursos pseudocientíficos destinados a
perpetuar a ordem desigual, a reinstituí-la, seja
invocando a natureza ou a cultura, a lei divina ou
as leis de uma ordem simbólica imemorial.
Todos estes discursos são atos, e atos de
violência.

Estando manifesta a contrariedade ao direito da homofobia, bem


como a violência de suas manifestações, deve-se atentar para o quanto a
discriminação homofóbica está disseminada em nossa cultura
heterossexista. De fato, ao lado de expressões intencionais de homofobia,
convivem discriminações não-intencionais, mas nem por isso menos
graves ou injustas. Uma análise destas modalidades de discriminação
homofóbica pode ser desenvolvido a partir das modalidades direta e
indireta do fenômeno discriminatório, elaboradas no seio do direito da
antidiscriminação. Na presente reflexão, apresentadas essas
modalidades, perguntamo-nos quanto aos efeitos da omissão na
criminalização da homofobia.

2.3. Modalidades de discriminação: homofobia direta e indireta

A homofobia, como expressão discriminatória intensa e cotidiana,


ocorre sempre que distinções, exclusões, restrições ou preferências
anulam ou prejudicam o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de
igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos
econômico, social, cultural ou em qualquer campo da vida pública. Assim
compreendida, a qualificação de um ato como homofóbico não depende
da intencionalidade do ato ou da situação ocasionadora da lesão aos
direitos humanos e liberdades fundamentais afetados. Deste modo, há
discriminação homofóbica sempre que, de modo proposital ou não, houver
tal espécie de lesão a direitos, decorrente da concretização de preconceito
diante de estilos de ser e de viver divorciados do heterossexismo. Daí a
relevância da análise das formas intencionais (discriminação direta) e não-
intencionais (discriminação indireta) de discriminação homofóbica, uma
vez que ambas lesionam direitos de modo grave e disseminado, em cujo
quadro será analisada a não-criminalização como manifestação
discriminatória.

2.3.1. Discriminação direta e homofobia


Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

Na modalidade direta, cuida-se de evitar discriminação


intencional. Três são as suas principais manifestações: a discriminação
explícita, a discriminação na aplicação e a discriminação na elaboração da
medida ou tratamento.
Na primeira, tem-se a mais clara e manifesta hipótese: trata-se
de diferenciação injusta explicitamente adotada. Uma manifestação
homofóbica que ilustra a primeira situação são os cartazes espalhados por
grupos neonazistas pregando o extermínio de homossexuais.
Discriminação explícita também ocorre quando a diferenciação é
imediatamente extraída da norma, ainda que esta não o tenha referido
literalmente. É o que ocorre, por exemplo, na discriminação perpetrada
contra homossexuais no regime legislativo da Previdência Social: neste
caso, a redação da legislação de benefícios, ao arrolar os dependentes,
almejou excluir companheiros homossexuais, como revelou de modo
53
inconteste a Administração .
A discriminação na aplicação ocorre quando,
independentemente das intenções do instituidor da medida, a
diferenciação ocorre, de modo proposital, na execução da medida. Isto
ocorre quando a Administração Pública emprega, em concurso público,
um critério constitucionalmente proibido através de um procedimento, em
tese, neutro: o exame psicotécnico. Em litígios judiciais concretos, por
exemplo, constata-se que a Administração Pública já se valeu, de forma
deliberada e intencional, deste expediente para discriminar por orientação
sexual na seleção de agentes policiais, em que pese inexistir qualquer
determinação administrativa oficial neste sentido.
Por fim, a discriminação pode ocorrer ainda na própria
concepção da legislação ou da medida (discrimination by design), ainda
que do seu texto não se possa inferir, literal e diretamente, a
diferenciação. Isto ocorre quando a medida adota exigências que,
aparentemente neutras, foram concebidas, de modo intencional, para
causar prejuízo a certo indivíduo ou grupo. Pode-se citar,
exemplificativamente, uma regra instituidora de uma exigência
desnecessária de escolaridade superior num dado concurso público com o

53
Ver, para um histórico do caso e peças processuais mais importantes,
Leivas (2003).
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

propósito de excluir pessoas negras, dado que os indicadores escolares


variam substancialmente em prejuízo da população negra. Outro exemplo
mais cotidiano da realidade brasileira foi a utilização, por largo tempo, da
referência “boa aparência” em anúncios de emprego, objetivando, na
concepção, a exclusão de negros. É importante ressaltar aqui que, não
obstante a neutralidade aparente da regra, ela foi concebida com o
propósito de excluir do certame ou do emprego pessoas negras, donde a
sua classificação como hipótese de discriminação direta.
No quadro conceitual da discriminação direta, portanto, a não-
criminalização da homofobia encontra previsão na proibição de
discriminação proposital explícita. Resultante de decisões políticas que
explicitamente objetivam deixar fora da proteção jurídico penal tal espécie
de discriminação, estamos diante de discriminação direta, pela intencional
exclusão do âmbito de proteção de determinado grupo de indivíduos.

2.3.2. Discriminação indireta e homofobia

Independentemente da intenção, a discriminação é um fenômeno que


lesiona direitos humanos de modo objetivo. Seu enfrentamento exige, além
da censura às suas manifestações intencionais, o cuidado diante de sua
reprodução involuntária. Mesmo onde e quando não há vontade de
discriminar, distinções, exclusões, restrições e preferências injustas nascem,
crescem e se reproduzem, insuflando força e vigor em estruturas sociais
perpetuadoras de realidades discriminatórias.
Diante destas realidades, o conceito de discriminação indireta ganha
especial relevo e importância. De fato, muitas vezes a discriminação é fruto
de medidas, decisões e práticas aparentemente neutras, desprovidas de
justificação e de vontade de discriminar, cujos resultados, no entanto, têm
impacto diferenciado perante diversos indivíduos e grupos, gerando e
fomentando preconceitos e estereótipos inadmissíveis.
Quando se examina a homofobia, fica ainda mais clara a pertinência
e a relevância desta preocupação. De fato, em uma cultura heterossexista,
condutas individuais e dinâmicas institucionais, formais e informais,
reproduzem o tempo todo, freqüentemente de modo não-intencional e
despercebido, o parâmetro da heterosssexualidade hegemônica como norma
social e cultural. A naturalização da heterossexualidade acaba por distinguir,
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

restringir, excluir ou preferir, com a conseqüente anulação ou lesão, o


reconhecimento, o gozo ou o exercício de direitos humanos e liberdades
fundamentais de tantos quantos não se amoldarem ao parâmetro
heterossexista.
Nesta linha, a discriminação indireta se relaciona com a chamada
discriminação institucional. Enfatiza-se a importância do contexto social e
organizacional como efetiva raiz dos preconceitos e comportamentos
discriminatórios. Ao invés de acentuar a dimensão volitiva individual, ela se
volta para a dinâmica social e a “normalidade” da discriminação por ela
engendrada, buscando compreender a persistência da discriminação mesmo
em indivíduos e instituições que rejeitam conscientemente sua prática
intencional (Korn, 1995). Conforme a teoria institucional, as ações individuais
e coletivas produzem efeitos discriminatórios precisamente por estarem
inseridas numa sociedade cujas instituições (conceito que abarca desde as
normas formais e as práticas informais das organizações burocráticas e dos
sistemas regulatórios modernos, até as pré-compreensões mais amplas e
difusas, presentes na cultura e não sujeitas a uma discussão prévia e
sistemática) atuam em prejuízo de certos indivíduos e grupos, contra quem a
discriminação é dirigida54.
O estudo da discriminação indireta demonstra a relação entre
homofobia e heterossexismo. Não só porque há instituições e práticas,
formais e informais, em nossa cultura, que historicamente excluem ou
restringem o acesso a certas posições e situações apenas a heterossexuais
(realidade cujos casos do casamento e do acesso às Forças Armadas
ilustram), como também porque fica patente a supremacia heterossexista no
convívio social.
Com efeito, a percepção da discriminação indireta põe a nu a posição
privilegiada ocupada pela heterossexualidade como fator decisivo na
construção das instituições sociais, cuja dinâmica está na base do fenômeno
discriminatório, nas suas facetas individual e coletiva. Este privilégio
heterossexista faz com que a cosmovisão e as perspectivas próprias de um
certo grupo sejam concebidos como “neutros do ponto de vista sexual”,
constitutivos da “normalidade social”, considerada “natural”: tudo aquilo que é

54
Sobre as dinâmicas institucionais e seus efeitos concretos independente da
vontade dos indivíduos que nelas atuam, ver Douglas (1998).
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

próprio e identificador da heterossexualidade enquanto expressão sexual


específica é efetivamente percebido como neutro, genérico e imparcial.
Esta pseudoneutralidade heterossexista, que encobre relações de
dominação e sujeição, pode ser entendida, segundo Flagg (1998), por meio
do “fenômeno da transparência”. Vale dizer, a tendência de heterossexuais
desconsiderarem sua orientação sexual como fator conformador e
normatizador da realidade, conduzindo-os a uma espécie de inconsciência de
sua heterossexualidade. Este fenômeno só é possível pelo fato de
heterossexuais serem socialmente dominantes e faz com que a
heterossexualidade seja norma sexual e a homossexualidade transformada
em diferença.
No caso da omissão quanto à criminalização da homofobia,
abstraídas as decisões políticas que objetivam de modo consciente deixar
sem proteção indivíduos e grupos vítimas dessa modalidade de
discriminação (que configuram hipótese de discriminação direta explícita),
vislumbra-se, ao menos, situação de discriminação indireta.
Com efeito, assumir, ainda que de forma inconsciente, a
heterossexualidade como padrão e como norma inquestionada, sem qualquer
atenção para a violência perpetrada pela homofobia, concretiza discriminação
indireta, compreendida tanto como manifestação institucional, quanto como
efeito do fenômeno da transparência. Trata-se de legitimar, por negligência,
insensibilidade, ignorância ou quiçá assentimento, um estatuto privilegiado
para a heterossexualidade cuja confirmação implica tolerar a discriminação
homofóbica, seja qual for de suas manifestações.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É preciso combater a discriminação sem cair no risco do


populismo penal, nem em uma postura punitivista, que deve ser
rechaçada. A violência homofóbica perpassa múltiplas esferas da vida
interpessoal, manifestando-se no seio familiar, institucional e trabalhista,
entre outros.
Nesse contexto, não se deve confundir punitivismo e proteção
antidiscriminatória. Resguardando-se do perigo de apenas reproduzir
elementos e estruturas de opressão, deve-se postular meios de proteção,
Revista Crítica do Direito, n. 5, vol. 65, abr. jul. 2015

inclusive penais, no enfrentamento da homofobia. Daí não ser correta a


mera adjetivação negativa das reivindicações por respostas penais diante
da violência homofóbica, com a desconsideração da possibilidade de
constituição de uma política criminal alternativa.
Um sem-número de medidas podem ser tomadas no combate à
homofobia. A criminalização da homofobia não se esgota em si mesma.
Ela é apenas uma das medidas legítimas de combate à discriminação,
considerando, inclusive, os resultados quando adotadas medidas penais
contrárias a outras discriminações, tais como aquelas decorrentes do
sexismo e do racismo. As vítimas avançaram em capacidade de denúncia
e reação aos ataques sofridos. Dados foram gerados e sistematizados,
possibilitando maior clareza a respeito do problema e das políticas
públicas necessárias para seu combate. Sem dúvida, o problema ganhou
maior visibilidade e densidade.
A homofobia, em suas modalidades direta e indireta, é ainda um
grande desafio político e jurídico, que exige medidas concretas. Do ponto
de vista jurídico, a criminalização é uma delas, cuja visibilidade,
simbolismo e ganhos à consciência social não devem ser subestimados.

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