NITERÓI
2017
THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI
Orientador:
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres (PPGS/UFF)
Niterói
2017
FICHA CATALOGRÁFICA
BANCA EXAMINADORA
Niterói
2017
5
Principalmente, em memória
ao camarada, maya e comunista,
Sócrates Tejaxún Sunic (Kame Tijax, ¡PRESENTE!),
“kaqchikel consecuente, antiimperialista,
promotor del pensamiento crítico,
que ahora se convierte en nuestro ancestro”
6
AGRADECIMENTOS
durante todo o meu período no México (alô, tio Rafa, “Memo” Kantún, William Mex, Sid
Hollander, Angela Fernandez e Ivan Vallado!) e na Guatemala (Julio Menchú, Carlos Cruz-
Gómez, Salvador Montufar, Oscar Rolando Gutiérrez, “Chaparro”, “Enano”…), nos pouco
mais de 78 dias em que estive fora do Brasil para a realização do trabalho de campo.
Em especial, agradeço ao camarada portuga e mayista, José Miguel Pimenta-Silva,
que me ofereceu abrigo e companhia na Guatemala como a de um irmão. Também à sua
companheira Elizabeth Elena Esperanza Escobar Sayes (Lizy), e toda a sua família,
especialmente os dois filhos do casal, William Benjamín Ezequiel Miranda Escobar (Benji) e
Iván Alberto Miranda Escobar, e à avó dos meninos, María Elena Sayes Barrientos. Vivi com
os quatro, mais cerca de dez companheiros (dois cachorros e todos os outros, gatos), na cidade
de Mixco, a menos de meia hora, com María como vizinha. Muchas gracias por terem me
acolhido em sua casa durante dois meses em que mudei sua rotina enquanto vocês faziam o
máximo para que eu me sentisse o mais acolhido possível, o que apenas aumentou em mim os
sentimentos de carinho e saudades quando de minha partida da Guatemala.
Meu maior respeito e agradecimento ao historiador, doutor em ciências sociais,
Edgar Arturo Esquit Choy (Oxlajuj E), maya kaqchikel que trabalha como investigador no
Instituto de Estudios Interétnicos (IDEI) da Universidad de San Carlos de Guatemala
(USAC). Edgar foi meu coorientador durante o meu período na Guatemala, e além participar
diretamente do processo de elaboração do questionário aplicado nesta pesquisa e, desejamos,
de desdobramentos desta pesquisa, trocamos impressões e informações sobre o movimento
maya, seus setores mais culturalistas e essencialistas e os usos contemporâneos dos
calendários mayas.
Durante o período em campo, no que se refere ao levantamento de dados para a
pesquisa, nenhuma pessoa foi mais importante, nos contextos fora da Academia de Lenguas
Mayas de Guatemala, do que Meme (Manuel de Jesús Poroj Abac), que além de meu
conselheiro fez contatos e conseguiu tempo para mim na agenda de Demetrio Cojtí e Amílcar
Pop. Aproveitei esta oportunidade, que tive graças a ele, para entrevistar estes que são, sem
dúvida, dois dos mayas mais conhecidos e influentes da Guatemala nos séculos XX e XXI, a
quem também agradeço por sua disponibilidade e atenção para comigo. Estendo meu
agradecimento também a Enrique Salguero, crítico da Academia Maya a quem também
entrevistei, apesar de a entrevista não ter sido utilizada nesta dissertação.
9
RESUMO
Esta dissertação trata o “maya” como uma construção que se dá, primeiro, entre os
mayanistas, e posteriormente é apropriado pelos indígenas guatemaltecos falantes de línguas
mayas. Uma contextualização acerca dos usos históricos do termo “maya” demonstra que ele
jamais teve as implicações que têm atualmente durante todo o período colonial. Os mayas são
definidos cultural e linguisticamente nos séculos XIX e XX, e durante a guerra civil na
Guatemala intelectuais indígenas começaram a se identificar como “mayas”. O movimento
maya cresceu ao longo dos anos 80, quando a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala
(ALMG) foi criada como a primeira ventanilla indígena ou uma autarquia federal junto ao
Estado guatemalteco. Busca-se historicizar os usos do termo “maya” e continuidades e
descontinuidades em relação às representações dos mayas, dando atenção aos intelectuais
mayas e mayanistas como produtores e reprodutores do “maya”. Além disto, a dissertação
dedica-se bastante à Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, principal instituição maya
contemporânea e que possui um evidente cunho intelectual e burocrático, estando imersa em
ambiguidades entre um discurso oficial de autonomia e uma dependência do Congresso para
reformar a si mesma na prática.
RESUMEN
Esa tesis trata lo “maya” como una construcción que ocurre, primeiro, entre los mayanistas, y
despues es apropriado por los indígenas guatemaltecos hablantes de lenguas mayas. Una
contextualización acerca de los usos historicos del término “maya” demuenstra que al largo de
todo el periodo colonial el jamás tuvo las implicaciones que actualmente tiene. Los mayas son
definidos cultural y linguisticamente en los siglos XIX y XX, y luego de la guerra civil en
Guatemala intelectuales indígenas empezaron a identificarse como “mayas”. El movimiento
maya creció durante los años 80, cuando la Academia de Lenguas Mayas de Guatemala fue
creada como la primera ventanilla indígena o una autarquia federal en el Estado guatemalteco.
Se busca historicizar los usos del término “maya” y sus continuidades y descontinuidades en
relación con las representaciones de los mayas, con atención a los intelectuales mayas y
mayanistas como productores de lo “maya”. Además, la tesis también se dedica mucho a la
Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, la principal institución maya contemporánea y
que tiene un claro cáracter intelectual y burocrático, estando en una ambigüedad entre un
discurso oficial de autonomia y una dependencia del Congreso para reformar a si misma en la
práctica.
ABSTRACT
This thesis treats “maya” as a construction, first made by mayanists and then appropriated by
guatemalan indigenous, speakers of mayan languages. A contextualization about the historical
uses of the “maya” term demonstrates that during the whole colonial period it never had the
implications it has today. The maya are culturally and linguistically defined in 19 th and 20th
centuries, and during the civil war in Guatemala indigenous intellectuals start identifying
themselves as “maya”. The maya movement grew during the 80’s, when Academia de
Lenguas Mayas de Guatemala was created as the first indigenous ventanilla or a federal
autarchy within the Guatemalan state. This thesis seeks to historicize the uses of the “maya”
term and continuity and discontinuity regarding representations of the maya, with particular
attention regarding maya and mayanist intellectuals as producers of the “maya”. This thesis is
also much dedicated to the Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, the most important
contemporary maya institution that has a clear intellectual and bureaucratic character, being in
an ambiguos situation between an official discourse of autonomy and a dependence of the
Congress to reform itself in practice.
SUMÁRIO
1 – INTRODUÇÃO……………………………………….………………………………….20
1.1 – NOTAS DISPERSAS……………………………..…………………………………28
1.2 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS…………………..………………………………….31
1.3 – JUN NO’J – PENSANDO E INICIANDO OS TRABALHOS……………………..33
2 – A INVENÇÃO DOS MAYAS…………………………………………………………….36
2.1 – “MAYAS” NO PERÍODO COLONIAL (SÉCS. XVI-XIX)…….………………….36
2.2 – A INVENÇÃO DOS MAYAS, O MAYANISMO E OS MAYANISTAS………..….44
2.2.1 – NOTAS SOBRE CONCEITOS DIVERGENTES DE MAYANISMO…….….57
2.3 – OS MAYAS…………..……………………………………………………………...61
3 – ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA (SÉCS. XX-XXI)……………………………71
3.1 – A ETNOGÊNESE MAYA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA POLÍTICA
GUATEMALTECA…………………………………………………………………..……….71
3.2 – ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA COMO PROJETO INTELECTUAL
INDÍGENA…………………………………………………………………………….……..77
3.3 – O “CAPITAL CULTURAL MAYA” E A RELAÇÃO ENTRE MOVIMENTO MAYA
E ESQUERDA…………………………………………………………….………………….84
4 – EXPERIÊNCIAS EM CAMPO E A ACADEMIA DE LENGUAS MAYAS DE
GUATEMALA…………………...…………………………………………………………...87
4.1 – O RETORNO À GUATEMALA E O TRABALHO DE CAMPO.………...……….91
4.2 – A CHEGADA À ALMG.…………………………………………………………....94
4.3 – A BUSCA PELA HISTÓRIA DA ALMG…………………………………...…...….95
4.4 – HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DA ALMG……………………………………….96
4.5 – A SEDE CENTRAL DA ALMG...……………………………………………...….105
4.6 – LOGOTIPO DA ALMG E IMAGEM DO INTELECTUAL MAYA...……………107
4.7 – WAJXAQIB’ B’ATZ’….……...……………………………………….….….….…109
4.8 – QUESTIONÁRIO……………………………………………………..….….….…113
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………….…...……....123
6 – BIBLIOGRAFIA…......…………………………………………………….….….….…126
ANEXO 1……………………………………………………..….….….….….….….….…..132
16
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
LISTA DE QUADROS
LISTA DE TABELAS
Karl Marx
20
1 – INTRODUÇÃO
Durante a seleção de mestrado, me defini como uma espécie de “nativo” de mim mesmo
naquele pré-projeto,4 alguém que se viu envolvido em disputas pela própria definição do que é
“maya” por mais de 10 anos; um “mayanista” – ou pelo menos alguém que se identificou
como tal durante todo este tempo. Como poderá ser visto ao longo do texto, não por acaso eu
acabo por revisitar criticamente minhas publicações anteriores, principalmente graças ao meu
uso, no passado, de um conceito de mayanismo bastante diferente daquele que é utilizado
nesta dissertação.
Ainda no fim do ensino fundamental, início do ensino médio, 5 tive meu primeiro
contato com os mayas enquanto pesquisador, na virada do milênio. Mesmo num grau de
formação incipiente, acredito que tenha sido uma excelente experiência que, sem dúvida,
mudou a minha vida. À época, tratou-se de uma oportunidade única: um trabalho livre e
interdisciplinar que servia como avaliação universal do bimestre na escola. Como autodidata,
elegi a astronomia para desenvolver três trabalhos distintos; um deles foi apresentado com o
título de “arqueoastronomia pré-colombiana”.
Durante as primeiras pesquisas para aquele trabalho, conheci a página holandesa
Maya Astronomy,6 em que, além da astronomia e dos calendários, pude ter alguma noção
sobre matemática maya (vigesimal) que, à época, recebeu minha atenção de maneira
concomitante à matemática inka (decimal). Muito tempo depois é que fui perceber mais
conscientemente que aquela ideia de “arqueoastronomia” implicava também nas de
“arqueociência” e, num termo talvez ainda mais abrangente, “etnociência”, para muito além
da astronomia e da matemática. Ao me aproximar de “outras” epistemologias cedo, por outro
lado, eu fui ao mesmo tempo assumindo um caminho distinto ao da naturalização das
fronteiras disciplinares acadêmicas.
Após um hiato relativamente longo, em 2005 voltei meus interesses novamente aos
mayas – e dessa vez somente aos mayas. Interessava-me a aplicação daquele conhecimento
matemático, com o qual já tinha alguma familiaridade, às contagens de tempo. A chamada
“conta longa”, o grande calendário de onde advém, de acordo com a correlação popularizada, 7
4 Disponível em http://let.tcavalcanti.in/arquivos.
5 Minha formação até a sexta série se deu quase toda no Colégio Marília Mattoso, onde tive uma bolsa de
estudos por vários anos; de lá, fui para o Colégio Estadual Aurelino Leal, o Instituto Fênix e o Colégio Plínio
Leite (estes dois últimos já nesta transição), terminando a maior parte do Ensino Médio entretanto no Centro
de Estudos Supletivos (todos situados em Niterói).
6 Disponível, até hoje, no mesmo endereço: http://www.michielb.nl/maya.
7 Cf. capítulo 2 desta dissertação.
22
o “ciclo de 2012”, que eu havia conhecido nas primeiras pesquisas, já que se trata de uma
aplicação mais intuitiva da matemática posicional dos mayas às contagens de tempo. Faltava-
me adentrar com maior detalhamento os calendários de 260 e 365 dias; não tardou para que as
reconhecesse como aquilo que são: as contas mais usadas em toda a Mesoamérica,8 e não
apenas entre os mayas.
Antes de realmente começar a entender aqueles ciclos, contudo, deparei-me com uma
triste realidade: praticamente inexistia conteúdo em português sobre o calendário maya na
rede mundial de computadores. Qualquer pesquisador interessado no assunto seria conduzido
a uma apropriação new age, então conhecida como “calendário da paz” (cdp) e que tem sua
versão sui generis (“neomaya”) dos calendários de 260, 364 e 365 dias, ainda hoje
propagando desinformação acerca dos mayas. Além disto, o único acadêmico “mayanista” 9
com carreira realmente estabelecida nas universidades de língua portuguesa até então, e que
eu viria a conhecer (por suas obras) alguns anos despois, Franz Joseph Hochleitner, 10 já estava
em idade avançada e vias de reclusão.
Acredito que o fato de conhecer a base da matemática maya e da “conta longa” foi
determinante para que eu soubesse diferenciar o calendário maya do cdp. Sabendo que este
conhecimento prévio é pouco comum, engajei-me em iniciativas de esclarecimento acerca das
diferenças entre aqueles calendários, produzindo conteúdo em português acerca do calendário
maya, o que fiz especialmente entre 2006 (ano da criação do Projeto CMAIA) e 2010
enquanto pesquisador independente. Ao afirmar que as apropriações new age do calendário
8 Mesoamérica é uma área cultural, definida inicialmente por Paul Kirchhoff em 1943 (KIRCHHOFF, 1943),
e caracterizada pelo cultivo do milho, o uso de um calendário de 260, dentre outros traços culturais
compartilhados entre mayas, mexicas (“astecas”), olmecas, toltecas (etc), que são portanto todos povos
considerados – e eventualmente chamados, inclusive fora da academia – de “mesoamericanos”. A
conformação dos estudos mayanistas está diretamente atrelada àquela dos estudos mesoamericanos, uma
área interdisciplinar que conta com mestrado e doutorado na principal universidade mexicana (UNAM), uma
vez que desde o século XIX é relativamente comum que os investigadores mayanistas busquem comparação
com outros povos mesoamericanos, isto quando não estudam os estudam diretamente e em paralelo aos
mayas – como é o caso de Hochleitner, por exemplo. Uma breve introdução ilustrada – com mapas – da
Mesoamérica pode ser encontrada no capítulo 2 nesta dissertação.
9 Neste caso, emprego o termo como referência ao acadêmico especialista em mayas mas, como pode ser visto
a seguir, meu uso de “mayanista” é bem mais abrangente e articula-se com um conceito de mayanismo
influenciado principalmente por Joel Wainwright (2008).
10 Suas obras não são muito conhecidas, seja para o público em geral, seja na academia. Hochleitner possui
inúmeras publicações em português relacionas aos mayas e à Mesoamérica, e grande responsável pela
criação do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA) na UFJF. Os próprios acadêmicos
mayanistas brasileiros ainda não deram conta de revisar seu trabalho e reconhecer sua importância e
pioneirismo de maneira apropriada. Eu cheguei a tentar conhecê-lo pessoalmente por volta de 2010, mas fui
informado de sua reclusão por conta da idade muito avançada.
23
maya, ao contrário da propaganda massiva, não são o calendário maya em si, 11 eu já buscava
definir – e principalmente, disputar a definição legítima – dos mayas.12
O simples fato de eu ter iniciado um projeto pioneiro e produzir conteúdo que
disputava um espaço (a internet) para esclarecer as diferenças entre o calendário maya e suas
apropriações “nova era”,13 permite-me dizer que, há dez anos, tenho participado de alguma
forma das disputas pela definição legítima dos mayas num sentido mais amplo. Mais do que
isso, assim como o antropólogo Matthias Gorissen (2006) confessou, eu também já quis “me
tornar maya” de alguma forma, com a diferença de que isto ocorreu comigo antes mesmo de
compreender e afetar-me pela imersão etnográfica.
Em 2011, após anos de relutância em relação à academia mas também insatisfeito
com a falta de reconhecimento pela falta de um diploma, iniciei o curso de ciências sociais na
UFF, no qual fiquei por um ano; e, entre 2012 e 2014, terminei os outros três quartos da
graduação no curso de antropologia na mesma universidade. Justamente na transição entre os
dois cursos, estive pela última vez na Guatemala antes do mestrado (2011/2012). 14 Em
outubro de 2012, publiquei meu primeiro livro (CAVALCANTI, 2012b) ainda como
graduando e, em dezembro de 2014, formei-me antropólogo.15
11 Além das próprias obras que deram início ao cdp e o chamam literalmente de “calendário maya”, existe
também um senso comum, em diversos espaços – como por exemplo em festivais de música eletrônica (Cf.
CAVALCANTI, 2012b) – de que o cdp é calendário maya, que é passado adiante e inclusive reproduzido em
teses e dissertações acadêmicas brasileiras que não têm como enfoque as questões aqui colocadas. Ademais,
as lideranças do cdp sempre tiveram espaço na grande mídia brasileira para falar sobre os mayas e o
calendário maya, pelo menos desde os anos 2000, o que se intensificou com a aproximação do “ciclo de
2012”. O cientista social Vitor Hertzog produziu os únicos estudos críticos ao cdp no Brasil (HERTZOG,
2013; HERTZOG, 2015), relatando inclusive a experiência (comunicação pessoal) de ter participado, junto
às lideranças do cdp, da gravação de uma reportagem posteriormente exibida TV Globo que induz os
espectadores a lê-lo como “calendário maya”.
12 O Projeto CMAIA (primeiro Calendário Maia Independente e Aberto, e logo depois “Maia” foi substituído
por “MesoAmericano”) é uma iniciativa independente, para produzir e divulgar conteúdo em português
sobre os calendários mesoamericanos, iniciada formalmente em Outubro de 2006. Àquela altura, eu já tinha
alguma percepção de que havia um amplo horizonte – “nativo” – sendo ignorado pelos “neomayas”. Um ano
e meio depois, em Abril de 2008, o conteúdo produzido no âmbito deste projeto foi incorporado a um sítio
criado por mim, o “Calendário Sagrado” (disponível em http://www.calendariosagrado.org), que trouxe
consigo uma inovadora ferramenta para conversão de ciclos mayas. A versão mais completa deste conversor
está acessível em http://maya.calendariosagrado.org/expert, e será incorporada ao meu projeto de doutorado
num novo sítio: http://www.calendariomaya.net/.
13 Em meu primeiro e incipiente artigo (CAVALCANTI, 2012a), escrito ainda no primeiro ano da graduação,
isto talvez ainda apareça bem claramente.
14 Estive na Guatemala duas vezes, em ambas por pouco menos de um mês. Na primeira vez, em 2009, visitei
principalmente sítios arqueológicos; nesta segunda viagem, entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012,
visitei várias organizações mayas. A partir do observado em algumas delas é que esta atual proposta
começou a tomar corpo, ainda naquela época, como falarei mais adiante.
15 Aquele livro era um antigo projeto, que foi prudentemente adiado após minha entrada na universidade,
reformulado em muitos sentidos e finalmente publicado para acesso livre apenas algumas semanas antes do
24
“fim do mundo” (já que um de seus propósitos era tentar reparar desinformações relacionadas ao “ciclo de
2012”). Tanto o livro quanto a monografia no bacharelado em antropologia dão claro destaque ao
“calendário maya”, mas na monografia nota-se que ele “perde” bastante espaço para preocupações político-
epistemológicas e a necessidade em documentar a diversidade maya.
16 Cf. ARAUJO & LIMA, 2012.
17 Assim como o pré-projeto escrito em 2014, o projeto da qualificação encontra-se disponível na íntegra em
http://let.tcavalcanti.in/arquivos.
18 Também graças à crise orçamentária, e ao consequente acesso dificultado a qualquer auxílio institucional
enquanto estudante de mestrado, iniciei uma campanha de financiamento coletivo para a pesquisa e o
trabalho de campo, disponível no endereço http://let.tcavalcanti.in. Trata-se de uma página que serviu não
apenas como um espaço para captação de recursos financeiros para a ida ao campo, mas também um sítio
em que o próprio desenvolvimento da pesquisa pode ser acompanhado por qualquer pessoa interessada. Meu
compromisso histórico com o acesso livre à produção científica também é reforçado através desta iniciativa.
25
19 Em 2015, e enquanto fui obrigado a “furar greve” e portanto estar no Brasil, a Guatemala efervescia nas ruas
como há 15 ou 20 anos não se via; denúncias de corrupção, junto à pressão popular – impulsionada pela
classe média – nas ruas, em um consenso comparável ao dos “caras pintada” no Brasil, derrubaram primeiro
a então vice-presidenta e depois o presidente. Já em 2016, e enquanto a Dilma era afastada do cargo e
aguardava o golpe se concretizar no congresso nacional, eu estava justamente em campo, na Guatemala, de
maneira que sempre estive um pouco dividido por não poder estar nos lugares em que gostaria nos
momentos em que gostaria.
20 Cf. capítulo 2 desta dissertação.
26
23 A conta longa, um calendário de conhecimento mais restrito dado a sua complexidade, foi na verdade um
sistema que, através da progressão vigesimal – que “gera” ciclos ininterruptamente, (quase) sempre 20 vezes
maiores que o anterior, proporcionava um instrumento que, literalmente, poderia ser usado para registrar
qualquer momento no passado ou no futuro, ou mesmo a própria idade do universo.
30
24 Cf. Peres, 2013, sobre a conexão entre etnicidade e movimento indígena nos processos de construção
identitária e formação de uma rede associativista de mobilização e ativismo no Rio Negro.
32
Se a sociologia volta-se especialmente para o presente – ainda que não perca de vista
a história –, volta-se para o seu próprio tempo, isto é, aquele do Mundo Moderno, em que a
emersão do capitalismo é fato não apenas relevante, mas gradativamente determinante em
cada aspecto da vida e em cada rincão do mundo. A própria relação com o tempo passa a ser
mediada pelo capital, como relata Ianni: o capital também serve para demarcar relações e
distâncias entre presente e passado.
Como a citação anterior nos permite entrever, o mundo moderno é em boa medida
estruturado a partir do capital, da industrialização e aprofundamento da urbanização, da
formação dos Estados nacionais. A relação com o trabalho muda radicalmente e, com a
expansão do capital pelo mundo, é inevitável pensar que, em países de maioria indígena (mas
não somente), principalmente nos séculos XX e XXI, não é absurdo algum afirmar a
existência de uma massa de “proletários indígenas” – e, eventualmente, até a presença de
“burguesias indígenas”.25
É por isso que, analisando particularmente países como a Guatemala, torna-se ainda
mais difícil (ou de um anacronismo mais perceptível) qualquer defesa de uma definição
demasiado essencialista ou idealizada das populações indígenas enquanto isoladas e sem
25 A intelectual e acadêmica maya Irma Alicia Velásquez Nimatuj, por exemplo, emprega o termo “burguesia
indígena” para referir-se a uma pequena burguesia comercial guatemalteca (VELÁSQUEZ NIMATUJ,
2002). No interior, algumas famílias ascenderam socialmente desde o período colonial, inclusive como
intermediadoras do comércio com os invasores, quando não capitulando mais intensamente aos anseios dos
invasores. Ainda hoje existem famílias indígenas mais privilegiadas localmente e com maior acesso à
educação, deixando claro que o corte classe não apenas esteve presente desde o início do que se poderia
chamar de uma história maya mais palpável (justamente ao longo do primeiro milênio – no calendário
europeu – com a ascenção das antigas elites mayas, mas também durante todo o período após a invasão,
passando pela formação dos Estados nacionais e o desenvolvimento do capitalismo até os dias atuais.
33
contato com o mundo do “homem branco” – apesar das apologias históricas à miscigenação
em nome da unidade nacional. Dito de outra maneira: o indígena, seja morador de zonas
rurais ou urbanas, é visto como um indivíduo inserido no mundo moderno, e isto não
deslegitima por si a identidade indígena – mas certamente tende a torná-la mais dinâmica e
em relação a uma variedade de identidades outras.
Isto não significa que não exista, assim como no Brasil, um senso comum de que
quem veste roupas “ocidentais” (especialmente no caso das mulheres mayas) ou tem acesso a
tecnologias como computadores – e sua rede mundial – não é indígena, mas certamente em
países de maioria da população indígena isto não é tão visto como uma contradição. Ao
contrário, a identidade de “índios”, atribuída pelos invasores à maioria da população, foi não
invisibilizada como no Brasil, mas reforçada historicamente de maneira a reiterar
cotidianamente a inferioridade indígena na estrutura socioeconômica nacional. É também
como negação da representação inferiorizada e subalternizada, incutida na alcunha de “índio”,
que os mayas começaram a se identificar como mayas.
Esta dissertação tem como intuito uma análise do “maya” tal qual se entende hoje
como invenção moderna, e cuja definição é objeto de disputa tanto entre acadêmicos, quanto
entre mayas. Portanto, como antropólogo pesquisador dos mayas e autor deste projeto,
considero que eu próprio também estive envolvido nessas disputas de alguma maneira, pelo
menos nos últimos 10 anos, e que o senso comum acerca dos mayas (seja aquele forjado pelos
especialistas mayanistas, seja o do público em geral) pode interferir na maneira como os
mayas contemporâneos vêem a si mesmos e apresentam-se (ou não) para os outros enquanto
mayas. Esta hipótese é embasada na história do movimento maya, que se apropriou da
identidade maya inicialmente graças a dezenas de intelectuais mayas, em especial entre os
anos 1960 e 1980, e será também testada, no capítulo 4, a partir de dados levantados na
Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG),26 a mais importante instituição maya da
Guatemala.
26 K’ulb’il Yol Twitz Paxil é o nome da ALMG em língua maya, que acompanha o nome em espanhol em todos
os documentos oficiais da instituição. A ALMG mantém também um sítio na internet:
http://www.almg.org.gt/.
34
portuguesa.
É a partir daí, e especialmente do desenvolvimento da definição linguística dos
mayas, que se adquire a meu ver o substrato necessário para posteriormente situar os mayas
no mundo moderno e especialmente no contexto nacional guatemalteco, adentrando a
emergência da autoidentificação pan-maya, num processo em que participaram e participam
militantes, intelectuais, políticos e acadêmicos mayas que, como haveria de se esperar,
também podem valer-se de muitas das representações acadêmicas dos mayas que circulam
cotidianamente.
“reinvenção de etnias já reconhecidas” (Cf. OLIVEIRA, 1998), mas com uma implicação pan-étnica. A
reinvenção, neste caso, passaria também pela transformação ou ressignificação de uma categoria étnica
exógena em endógena.
36
Quem foram os mayas? Quem são os mayas? Perguntas tão elementares sequer
existiam nestes termos há menos de 200 anos. As respostas a estas perguntas envolvem
definições e representações elaboradas a partir do século XIX. Antes disso, e inclusive na
maior parte do século XIX, pouquíssimo referiu-se ao termo “maya”, e nunca com os
significados e abrangências atuais.
Este capítulo será dividido em três partes. Na primeira, buscarei contextualizar os
escassos usos do termo “maya” no período colonial (sécs. XVI a XIX), que pouco têm a ver
com a “invenção” dos mayas a partir do século XIX, tema da segunda parte. Por fim, buscarei
responder parcialmente à pergunta inicial, compreendendo a definição linguística dos mayas
como particularmente determinante na construção do que hoje se entende por maya e também
na noção de identidade pan-maya.
29 Segundo as notas de Alfred Tozzer, presentes em uma edição da Relación de las Cosas de Yucatán (LANDA,
s.d., pp. 359-360), “The earliest appearance of the word Maya or Maia seems to have been in a manuscript
of Bartholomew Columbus, brother of Christopher, written in Rome in 1505 or 1506. Describing a native
canoe encountered by Columbus on his fourth voyage in 1502 off the island of Guanaja, he speaks of it as
‘from a certain province called Maiam or Yucatam.’ Berendt informed Brinton (1882, 10) that the words vel
Iuncatan were superscribed over the word Maiam, thus showing a later hand. The first appearance of the
word Maya or Maia in print was in Peter Martyr [1516] (…) in describing the same expedition of Columbus
and the same encounter with the two canoes of traders. He writes, ‘This vast region is divided into two
districts, one called Taia and the other called Maia.’ Lothrop (1927) reviews all the evidence and advances
the theory which is probably the correct one that the Maia of Columbus was not on the eas coast of Yucatan
but in Honduras”.
37
frei franciscano,30 ao narrar a chegada dos invasores: “[en] el año de 1511, […] llegaron a la
costa de Yucatán, a una provincía que llaman de la Maya, de la cual la lengua de Yucatán se
llama mayathan, que quiere decir lengua de maya” (LANDA, 1982 [1566], p. 6).
Além da língua, Landa dedicou-se substancialmente a Mayapan, sendo dele o
primeiro registro europeu acerca desta cidade antiga. Apesar de a cidade de Mayapan, descrita
por ele como um antigo centro cosmopolita do Yucatán (MILBRATH e PERAZA LOPE,
2003), ter sido abandonada ainda na metade do século XV, suas lendas e histórias
sobreviveram mais de um século, ganhando especial atenção na Relación de las cosas de
Yucatán (1566). Isto poderia explicar a atribuição do nome “maya” à região.
Contudo, a existência tanto de uma língua maya, quanto de um topônimo Mayapan,
suscitou um debate em aberto ainda hoje, sobre a etimologia da palavra “maya”. O que veio
antes? Seria, por acaso, “maya” por causa de Mayapan, ou “Mayapan” por causa de maya?
Landa traduz “Mayapan” como pendón de la maya, imediatamente aclarando que
“maya” tratava-se da língua daquela terra. Desta maneira, ele afirma que Mayapan é que
derivado de “maya”. Entretanto, Matthew Restall, que fez um amplo levantamento dos
contextos em que o termo aparece no período colonial, afirma que nenhum outro topônimo no
Yucatán contém “maya” (RESTALL, 2004).31 Ele e Wolfgang Gabbert defendem, ao
contrário, que o termo “maya” é derivado de Mayapan, 32 e além de ressaltarem que esta
afirmação – contrária à de Landa – aparece também no século XVI, lançaram mão da seguinte
passagem do Chilam Balam de Chumayel:33
30 Mais tarde, mais perto do fim da vida, Landa chegou a ser bispo do Yucatán. Seu nome é bastante
controversa tanto entre mayanistas quanto mayas. Seu auto-de-fé em Maní destruiu muitos documentos
escritos na antiga escrita maya, sendo Landa portanto “(…) o maior dos destruidores [de que se tem
conhecimento] da história escrita maia em seus próprios termos hieroglíficos. O ‘auto de fé’ de Landa
contribuiu para que se conheça muito menos a história maia propriamente dita e do período pré-invasão; mas
também escreveu [por outro lado] a obra Relación de las Cosas de Yucatán (~1566), com registros [que se
provaram] úteis para a compreensão da escrita em hieróglifos” (CAVALCANTI, 2014, p. 36).
31 O autor ressalta que, num raro exemplo (que pode ser visto no quadro 1), o termo aparece junto à ilha de
Cozumel para denotar vínculos com Mayapan.
32 Esta hipótese suscita novas indagações acerca da etimologia de “maya” e “Mayapan”. Cf. RESTALL &
GABBERT, 2017, p. 97.
33 Alguns manuscritos são conhecidos como Chilam Balam, e o que os diferencia é a associação a diferentes
localidades na península do Yucatán, como Chumayel, Maní e Tzimin. “Balam or ‘Jaguar’ was the
surname of a chilan, a pre-Hispanic oracle or ‘prophet’ from the town of Maní (…) In Colonial
times (ca. AD 1540–1821) this Chilam Balam was believed to have foretold the arrival of the
Spanish conquistadors and the new religion they aggressively promoted, Christianity” (KNOWLTON,
2010, p. 2). Timothy Knowlton, neste trecho, fala sobre aquele que teria sido o Chilam Balam original, mas
dá a entender que existiram outros Chilam Balam, nas outras localidades.
38
13 Ahau foi o katun em que eles fundaram o cah de Mayapan; eles foram [então]
chamados homens mayas. Em 8 Ahau suas terras foram destruídas e eles foram
espalhados por toda a península. Seis katun depois eles foram destruídos[;] eles
deixaram de se chamar maya; 11 Ahau era o nome do katun em que os homens
mayas deixaram de se chamar mayas [e] foram chamados cristãos. (RESTALL &
GABBERT, pp. 94-96, tradução minha)
Este trecho evidencia a difusão do termo maya como “a product of the diaspora
created by the fall and abandonment of Mayapan” (RESTALL & GABBERT, 2017, p. 97). A
hipótese é reforçada pelo fato de que a recorrência do termo se dá especial no noroeste do
Yucatán, nas proximidades de Mayapan, de maneira que mesmo uma associação mais
ampliada para toda a península se torna problemática.
Considerando a passagem, os que viviam em Mayapan teriam sido os primeiros que
passaram a se chamar “mayas”; não por causa da língua, mas como decorrência da fundação
do cah de Mayapan – mais do que isso, de pertencimento ao cah. Entre os indígenas de língua
maya, a construção da identidade dos grupos sociais dava-se muito mais em relação ao
pertencimento a um cah e um chibal do que em torno de um sentimento de pertencimento
vinculado ao compartilhamento da língua maya ta’an.
aggregate ethnic identity. This argument is not altogether without merit, but it is
hard to reconcile with the three fundamental aspects of Maya identities: the
persistence of class differences within each cah, as discussed above; the open nature
of the cah (in that it was exogamous, permitted settlers from other cahob, and was
part of the complex pattern of Maya mobility, the cah was not a closed community);
and the diasporic nature of the chibal (that is, members of each chibal were found in
a variety of cahob, almost never in just one, and often not even in a single region).
Thus to categorize cah and chibal as types of ethnic identity would seem to stretch
the term too far. (RESTALL, 2004, p. 73)
principalmente a “invenção” dos mayas. Como visto, não há evidências históricas de que
tenha existido um processo de etnogênese maya naquele período, que tornasse o termo
“maya” – ou qualquer outro termo – uma identidade partilhada de maneira abrangente. Ao
contrário, de acordo com Matthew Restall (2004) os mayas teriam inclusive resistido, por
mais de três séculos, às etnogêneses que lhes tentavam impor. Não existiam, antes, as
(…) “nações” wichí ou toba (...), mapuche do sul dos Andes, aymara do planalto
boliviano, nahua do México ou tupi-guarani das florestas tropicais, tal como as
entenderiam as óticas nacionalistas oitocentistas, mas sim grupos etnolingüísticos
internamente diferenciados em grupos étnicos organizacionais, entendidos como
comunidades identitárias exclusivas, que podiam não ter maiores relações entre si.
Por isso, os rótulos étnicos generalizantes, ao delimitarem etnias classificatórias,
como Guarani, Quéchua, Maia, Zapoteco, Toba ou Mataco, sobretudo eram, e são,
atribuições identitárias externas em vez de etnônimos próprios, embora agora
mesmo os indígenas possam recorrer a eles para se designarem como coletividades
inclusivas e exclusivas (BARTOLOMÉ, 2006, p. 44).
A generalização deste termo, em que “maya” ganha os sentidos que hoje costuma
implicar, pouco tem a ver com os escassos usos coloniais do termo – pelo menos nos três
primeiros séculos de invasão europeia –, de maneira que sua história é muito mais recente do
que se poderia imaginar. Os “mayas” dos quais falamos no senso comum, e que estão
presentes tanto no imaginário popular quanto nos hibridismos nova era, remontam não à
invasão da América e ao longo período colonial, mas aos séculos XIX e XX.
Sob este mesmo marco temporal coincidem as últimas décadas do colonialismo, a
formação dos Estados nacionais e, especialmente, a institucionalização das próprias ciências
humanas e sociais na Europa, nos Estados Unidos e nos Estados nacionais cujas fronteiras
compreendem os antigos territórios mayas. Oportunamente, o “maya” passou a ser
incorporado de alguma maneira na construção de suas próprias identidades nacionais – em
Belize, El Salvador, Guatemala, Honduras e México. Aquele novo momento, por esta razão,
foi chamado por Wainwright de “segunda descoberta” dos mayas:
In the annals of European history, most indigenous people are discovered once. The
Maya were discovered twice. If we define these two moments in the arc of
conventional European historiography, we could say: the Maya were discovered
once at the beginning, and again near the end, of the age of empires. The Maya
were first discovered by Spanish conquistadores and Catholic fathers, who met
people and classed them “Maya” – and pronounced them potentially Christian even
as they fought and killed them. This was the first of two Maya “discoveries,” albeit
one that carried on for centuries and at different rates across Mesoamerica (the last
45
independent Maya kingdom, of the Itzaj’, did not fall until 1700 [1697]). But in the
mid-nineteenth century, toward the other end of the age of empire, the Maya were
rediscovered as the sons and daughters of a great civilization. The second discovery
of the Maya occurred under the banners of liberalism and science in the
midnineteenth century, when the Maya became ancient in ways that other nations
were not, and their importance for the human sciences became recognized. During
the same period, their lands – those that had not already been expropriated or
otherwise dispossessed – underwent a new round of conquest in Mexico, Belize, and
especially Guatemala. The violence accompanying the second discovery was no less
than the first. This new round of dispossession was accompanied by the emergence
of a new way of knowing the Maya – who they were, what it was to be “Maya” (...)
(WAINWRIGHT, 2008, p. 99).
Para que haja ainda mais sentido na afirmação de Wainwright de que os mayas foram
“descobertos” duas vezes – a primeira, à época da invasão espanhola, e a segunda, no século
XIX, talvez devamos nos ater ao final da citação; a partir dele, é possível compreender que
estas duas “descobertas” dos mayas correspondem também a duas formas colonialistas de
conhecer os mayas. Sendo assim, além de meras “descobertas”, tratam-se de duas maneiras
diferentes de definir quem é maya e o que é ser maya.
Wainwright defende que os mayas foram “descobertos” duas vezes, sempre em
contextos de violência e ocupação de territórios. Primeiro, pelos invasores “originais”
(Spanish conquistadores and Catholic fathers), que começaram a classificar alguns povos
como “maya”,42 e depois no meio do século XIX. O que Wainwright chama de “descobertas”
implica inclusive no que João Pacheco de Oliveira (1998) deixará em termos mais claros. Ao
falar sobre os índios do Nordeste, ele evoca duas noções com a mesma função heurística:
“presença colonial” e “territorialização”. Em resumo, a presença colonial “instaura uma nova
relação da sociedade com o território, deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua
existência sociocultural” (OLIVEIRA, 1998, p. 54), enquanto a territorialização dá ênfase a
42 Como visto anteriormente, não há indícios de que qualquer classificação sistemática de pessoas como
“mayas” durante o período em questão tenha de fato ocorrido.
46
“ruínas” grandiosas e a gente simples enxergaram neles tão somente a agricultura como
vínculo com os mayas do passado (WAINWRIGHT, 2008). Aqueles mayas, assim como os de
hoje, eram e continuam a ser vistos como símbolos da decadência maya, empurrando os
debates para uma polarização improdutiva entre continuidade cultural e aculturação, ou a
acusação de que os mayas contemporâneos são apenas oportunistas se apropriando do termo
“maya”.43 Portanto, já havia uma definição depreciativa dos mayas contemporâneos, que os
mayas tendem a rebater e refutar este tipo de diminuição que lhes foi – e, de certa maneira,
ainda pode ser – imputada por muitos acadêmicos nos dias de hoje.
The Mayanists were provoked by the mystery of the Maya: a great civilization grew
in the New World tropics, then suddenly disappeared. Mayanism emerged as a way
to explain this mystery while also defining who the Maya were – to explain how to
appreciate them aesthetically. Mayanism thereby made possible a way of speaking
of and for the Maya without the Maya. In the resulting discourse, the Maya are
framed as a fallen people: once great and worthy of admiration, they still receive
appreciation as relics of an ancient and mysterious civilization. Through Mayanism,
the Maya stand before the West as an allegory for the decline of our own
civilization, and thus the living Maya are an especially pertinent site for our own
moral investment. On this basis – in order to carry forward civilization in the face of
its potential demise – the Mayanist discourse points the way forward for the Maya
farm system: settling, territorialization, and capitalism qua development.
(WAINWRIGHT, 2008, p. 103)
Talvez tenhamos aqui mais indícios a considerar para pensar o apelo que os mayas
contemporâneos podem despertar ainda hoje, internacionalmente, no sentido da caridade e da
cooperação internacional, além do contínuo interesse cristão na conversão religiosa. A história
construída sobre os mayas é a de que eles perderam todo o esplendor do passado e estão
destinados à total assimilação através da superação de seu sistema agrícola, que seria não
apenas o único vínculo com o passado, mas com um certo “primitivismo” maya. Sempre
interessou muito mais exaltar os mayas do passado, e parecem existir também razões políticas
para tal. Wainwright (2008, p. 141, nota 10) afirma que o mayanismo foi facilitado pelo
fortalecimento do projeto imperialista dos EUA: “Mayanism emerges precisely around the
recognition of the very unfamiliarity, indigeneity, and 'Americanness' of the Maya”
(WAINWRIGHT, 2008, p. 102). Se os EUA emergiam como novo “império” na América, os
mayas representavam o mais próximo disso na expressão de uma grande civilização
43 Este é um senso comum entre alguns ladinos até os dias de hoje; eu mesmo ouvi coisas nesse sentido em
todas as minhas passagens pela Guatemala, de pessoas que depreciam a politização da identidade maya e
argumentam no sentido de desautorizar ou deslegitimar o direito à autoidentificação como “maya”.
47
prehispanic, ainda que hoje consideremos que ela não chegou a formar um império.
Não surpreende que o mayanismo, então, seja também um poderoso discurso que
exalta a elite maya do passado ao mesmo tempo em que diminui e deslegitima os povos
mayas do presente. Considerando os interesses e as ideologias imperialistas e
assimilacionistas que até hoje persistem, nada poderia ser mais conveniente do que contribuir
na diluição do que se via como “últimos costumes” mayas em favor de processos de
transformá-los em trabalhadores rurais e urbanos sem direitos específicos e desprovidos de
uma consciência (e consequentemente, incapazes de perpetuar a resistência) indígena.
Ao longo da segunda “descoberta” é que os mayas foram de fato “inventados”,
definições dos mayas começaram a ser elaboradas nos marcos de uma intensificação da
produção de discursos que Wainwright definiu como típicos do “mayanismo”, caracterizado
como um poder de autoridade para definição do que é maya, do que são os mayas
(WAINWRIGHT, 2008). Ao mesmo tempo, mayanismo refere-se a uma maneira de falar dos
mayas sem os mayas, portanto há um vínculo claro com discursos colonialistas nas ciências
humanas e sociais.
O “mayanismo” seria uma forma de arbitrar sobre os mayas, criar e disseminar
representações deles, ainda que de forma alheia a eles, reificando-os. Os “mayas” como os
entendemos hoje começam a ser inventados quando os mayas antigos (especialmente os
chamados mayas clássicos)44 foram “descobertos” e popularizados por exploradores como
John Lloyd Stephens, e desde então cada vez mais estudados, nomeados, definidos.
Prior to the Nineteenth Century, there were certainly people in the Western world
with an awareness of Pre-Columbian civilizations in Mesoamerica, but their
attention to Mesoamerican indigenous culture was secondary to concerns with
complex societies of the Old World (see Hamann 2008). Popular interest in ancient
Maya culture for its own sake was not provoked until John Lloyd Stephens’ (1841,
1843) Incidents of Travel books, a series of travel narratives published in the mid-
Nineteenth Century accompanied by Frederick Catherwood’s exquisite drawings of
archaeological sites in the Maya Lowlands. The wide distribution of Stephens’ books
(...) is said to have established the public‘s fascination with “lost cities in the
‘jungle’”, a romantic “characterization of the Maya as enigmatic and unique
among ancient civilizations” that persists today (McKillop 2004:41). While the
popularization of the ancient Maya brought about by Stephens fostered a niche for
professional scholars to conduct research at universities, amateur studies of ancient
Maya culture were concurrently emerging. (BLAINEY, 2011, p. 353)
44 Os “mayas clássicos”, de acordo com a cronologia da Mesoamérica (quadro 3) são aqueles que viveram
especialmente entre os anos de 300 e 900 da era comum (EC), e associados ao apogeu cultural e auge da
civilização maya e de sua influência.
48
The emphasis on big sites, elite architecture, and monumental art that dominated
Stephens and Catherwood’s work came to typify Maya studies for the next century
or so. These almost exclusive concerns with the elite aspects of ancient Maya
civilization were not successfully challenged until the 1950s with the rising interest
in Maya settlement patterns and growing attention to peasant lifeways and their
contribution to the development of Maya civilization. (Sabloff 1993:xiii apud
MORRIS, 2011)
Entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, numa data
impossível de precisar, ocorre quase uma aceitação generalizada de que os Maias
actuais são os descendentes dos antigos Maias construtores das cidades perdidas
50
engolidas pela selva. Contudo, este pensamento era apenas partilhado pelas elites
intelectuais, sendo que a maioria do público e uma pequena parcela dos académicos,
ainda ponderava a existência de outros habitantes. (PIMENTA-SILVA, 2012, p. 233)
Sem dúvida, não tardou muito para que mais continuidades culturais fossem
reconhecidas e estudadas no meio antropológico logo nas primeiras décadas do século XX, e
a mais valorizada enquanto “vínculo com o passado” talvez seja aquela referente aos
calendários. Especificamente, as contagens dos ciclos de 260 e 365 dias foram mantidas (em
separado ou combinadas) em diversas comunidades.45
Estes, entretanto, seriam apenas traços culturais mesoamericanos, não estivessem
aquelas comunidades vinculadas a uma espécie de unidade identitária macro maya ou pan-
maya. E a partir da linguística – mais especificamente, da definição de um “tronco linguístico
maya” – é que a identidade pan-maya de fato legitimou-se enquanto maya, a despeito de a
autoidentificação dos indivíduos como mayas ser um fenômeno recente.
A astronomia, incluindo a orientação arqueoastronômica de estruturas, bem como a
complexidade dos calendários mayas, ainda no século XIX desafiavam os modelos
eurocêntricos e evolucionistas, bem como os primeiros mayanistas acadêmicos profissionais.
A correlação da conta longa já era objeto inclusive de disputa acadêmica à época da virada
para o século XX. Hoje, são dezenas de teorias diferentes para reconstruir a conta longa,
excludentes entre si.
Como alguém que se identificava como mayanista, acredito atualmente que a disputa
em torno da correlação da conta longa é a mais antiga e duradoura entre os mayanistas, pois
persiste ainda hoje em parte do meio acadêmico. Além disto, acredito também que o clima de
teorias paralelas e excludentes acerca dos calendários contribuiu para a minha idealização
acerca de um único e verdadeiro calendário maya, que revelou-se bastante enganosa. Bem,
para aqueles dispostos a perpetuar a ideia de que só a elite maya clássica equivale aos
“verdadeiros mayas”, certamente isto continuará a valer…
Especialmente na primeira metade do século XX, destacaram-se no campo
mayanista, tratando de temas que iam desde a história maya até os hieróglifos e os
calendários, autores como John Teeple, Sylvanus Morley e John Eric Sidney Thompson.
Figura 1 – Lista de mayanistas ao longo da história, baseada em HOUSTON, CHINCHILLA & STUART, 2001.
52
marcariam ao mesmo tempo, talvez o maior acerto e o maior erro do campo mayanista. A
correlação mais aceita entre a conta longa e os calendários europeus, incorporada inclusive
pelo movimento maya, tem nele um de seus propositores, sendo conhecida pela sigla GMT
(Goodman-Martinez-Thompson). Foi a partir desta correlação que definiu-se o fim de um
grande ciclo maya para dezembro 2012, por ano.
Por outro lado, na epigrafia sua posição histórica revelou-se, ainda em vida,
obcecada pelos calendários. Durante pelo menos três décadas, ele nutriu publicamente a
convicção de que todos os hieróglifos continham, sempre, necessariamente, relação com os
calendários. Desta maneira, ele negava que os hieróglifos mayas constituíssem de fato uma
escrita plena, inclusive passível de leitura fonética, para resumir-se em boa medida a questões
matemática e de contagem de tempo. Sua grande influência nos estudos mayanistas
certamente contribuiu para retardar o avanço da decifração dos hieróglifos mayas.
Thompson teve certamente um lugar de destaque na construção – ou, talvez melhor
dito, fixação – de representações dos mayas presentes no senso comum. A obsessão dele com
os calendários reflete-se na ênfase em uma imagem dos mayas como particularmente
obcecados pelo tempo, tantas vezes reiterada pelos mayanistas – e inclusive por mim. Além
disto, Thompson reconheceu a continuidade cultural dos mayas, defendendo que os
descendentes dos antigos mayas ainda preservavam vários costumes e ideias (PIMENTA-
SILVA, 2017).
imagem dos mayas como evoluídos dentro dos marcos de uma ecologia anacrônica.
Thompson só foi superado no campo da epigrafia na década de 1950 quando, graças
aos estudos de Yuri Knorosov, ficou definitivamente comprovado que os hieróglifos não
tratavam apenas de calendários, mas também de uma forma de escrita passível de transcrição
fonética. Isto inaugurou uma nova era entre os mayanistas, uma vez que a decifração dos
hieróglifos passou a acontecer numa velocidade cada vez maior, em processo ainda corrente.
Mais ou menos na mesma época, e ao longo de toda a segunda metade do século XX,
os mayanistas se multiplicaram numa velocidade cada vez maior. Os acadêmicos mayas que
seriam grandes precursores do movimento maya começavam a ganhar destaque, como Adrián
Inés Chávez. O campo mayanista experimentou, portanto, a chegada dos próprios mayas aos
estudos mayas.
47 Este é um termo geralmente aplicado – principalmente até a década de 1970 – com o mesmo sentido de
mayanista acadêmico, profissional, como é o caso do contexto da citação.
55
Especialmente a partir dos anos 80 (coincidindo mais ou menos com a “era digital”
proposta por Pimenta-Silva), uma mulher ganhou notoriedade, depois de Proskouriakoff, entre
os mayanistas, após voltar-se para os estudos mayas tardiamente em sua formação acadêmica
(durante o doutorado). Linda Schele atuou direta e ativamente nos estudos mayas, e
especialmente na epigrafia, desde os anos 70, contribuindo também para a organização de
congressos científicos, workshops de epigrafia e exposições atrelados à popularização dos
mayas; sua morte talvez tenha deixado uma lacuna não preenchida.48
The workshop rapport cultivated from the late-1970s through the mid-1990s by
Mayanist Linda Schele, among others, entailed clear imaginations of a public
participating in the creation of Maya history (...) this recent style of valuing public
participation in hieroglyphic research began in 1973 when Mayanist art historian
Merle Greene Robertson founded the Palenque Mesa Redonda series. The kernels of
collaboration planted at the first Round Table and its successors in the 1970s
matured into the more thoroughgoing public engagement of the Maya Meetings. The
Maya Meetings entangled research, public outreach, and pedagogy, proving
successful enough to spawn similar workshops across the United States. This (…)
demonstrates how we can understand the Maya Meetings as an expression (…) [of]
“public science,” or a set of institutionalized knowledge practices in which
“imaginations of the public world, however that is construed, can be taken as
integral to scientific knowledge-generation, not simply as afterthoughts.”
(WATSON, 2010)
48 Há um documentário póstumo sobre Linda Schele, chamado Edgewalker: a conversation with Linda Schele
(2010). Como o próprio título sugere, Linda é apresentada como uma mulher que transitou por fronteiras
disciplinares para deixar sua marca na história da decifração dos hieróglifos mayas.
49 Aqui, compreendo como “documento” qualquer objeto ou suporte que contenha inscrições utilizando a
antiga escrita maya, seja em pedra (estela), cerâmica (vasos, pratos), etc.
50 Nikolai Grube é talvez o principal epigrafista vivo entre os mayanistas, e foi também meu coorientador
durante a graduação (CAVALCANTI, 2014). Ele lidera, atualmente, desde a Universidade de Bönn, um
projeto ambicioso e de longo prazo, Text Database and Dictionary of Classic Mayan, para a criação de
banco de dados e dicionário de glifos mayas. Mais informações podem ser obtidas no sítio do projeto, em
http://mayawoerterbuch.de.
56
por eles em Antigua Guatemala no ano de 1987, um dos participantes tornou-se o primeiro
maya a ler um texto maya antigo em séculos:
The first workshop was designed to teach the Maya participants some of the history
of the writing system, how to spell using syllable signs and logographs, the syntax of
the system, a set of common verbs and titles, and, on the last day, how to do a
structural analysis of the Tablet of 96 Glyphs from Palenque. Though this last work
was not finished, a team of Q’eqchi’ speakers led by Eduardo Pacay read their
translation of the first half of the tablet and thus became the first modern Maya to
read an ancient text in their own language (SCHELE & GRUBE, 1996, p. 132)
Este foi, sem dúvida, um momento histórico; o relato dá conta de que os mundos de
mayas e mayanistas se cruzaram definitivamente, e viriam a se confundir cada vez mais. Se,
àquela altura, já vários mayas tinham formação universitária, cada vez mais mayas
investigavam sobre os mayas, borrando a fronteira entre mayas e mayanistas, a partir daquele
momento os próprios mayas puderam ler e escrever, por si próprios, na antiga escrita maya.
Aquele workshop na Guatemala, interpretado de acordo com Matthew Clay Watson como “a
site of public science that was integral to constituting the concept of a coherent, trans-
historical Maya culture (…) the instructors understood the participants as vital contributors
to generating interpretations of the ancient Maya” (WATSON, 2010, p. 243).
[the workshop was a] (…) coproduction of present and past and reconstitution of the
hieroglyphic object, (...) [a] workshop-based alliance between United States and
European epigraphy scholars, on the one hand, and Maya linguists and activists, on
the other, [which] developed into a mutualism providing beneficial political
resources to the Maya activist-linguists and beneficial epistemological resources to
the epigraphers. The mutualism hinges on a collectively crafted narrative of
essential Maya identity. (WATSON, 2010, p. 39)
Como fica bastante evidente a partir do caso de Linda Schele, alguns mayanistas já
forneciam ferramentas e conhecimentos para ativistas mayas; por outro lado, Schele teve
acesso à espiritualidade maya contemporânea e articulou as informações de que dispunha para
afirmar que existe uma continuidade cultural milenar dos mayas. O conhecimento da escrita
57
antiga maya pode ser interpretado como um alto “capital cultural maya”, conceito este que
será abordado no próximo capítulo. Este é o exemplo de uma situação em que as relações
entre academia e movimento maya fazem circular o maya como capital, e isto deve ser
entendido também como um produto da invenção dos mayas pelos mayanistas.
Hoje, jovens epigrafistas mayas ensinam outros mayas, o que não seria possível sem
um encontro entre mayas e mayanistas. Sem este encontro, aliás, de acordo com o que
defendo aqui, sequer se falaria em “mayas”.
Portanto, “os mayas” foram inicialmente uma fabricação colonial, imperialista e ao
mesmo tempo científica, definidos em versões imaginadas e fixadas, informadas pelo
eurocentrismo e que só enxergavam centelhas do “maya primitivo” nos indígenas vivos. Com
o tempo e a politização da identidade maya, apoiada na valorização das representações
positivas e enaltecedoras dos mayas – e especialmente de diacríticos como os hieróglifos e os
calendários, tal qual os mayanistas –, os mayas afirmaram um orgulho que contrastava com a
inferiorização do “índio”.
Assim, os próprios mayanistas – mesmo aqueles que não se envolveram diretamente
com o movimento maya, como Schele – ajudaram a legitimar a identidade maya reivindicada
pelos mayas contemporâneos. A se observar os efeitos permanentes dos encontros entre
mayas e mayanistas nas próximas décadas.
movimentos da nova era que se apropriaram do maya e o mesclam a qualquer outra coisa que
ultrajaria um mayanista militante, produzindo as representações mais sem-pé-nem-cabeça dos
mayas como ETs, etc (CAVALCANTI, 2015).
Justamente por me sentir ultrajado pelas deturpações do calendário maya é que o
conceito de Hoopes pareceu-me tão atraente. Para mim, atualmente, este conceito de
mayanismo implica, necessariamente, em uma crítica que pode ser demasiado ácida e mesmo
agressiva ou, ainda, essencialista.
Logo após publicar o meu livro, ainda em 2012, apresentei – no seminário
organizado pelo mesmo programa de pós-graduação no qual este mestrado foi cursado – um
relato precoce e parcial, ainda pouco reflexivo, sobre as experiências em ONGs mayas (Cf.
Capítulo 4 abaixo), em que eu tentava enquadrar estas instituições no escopo do
“mayanismo”, que foi então definido como “ideologia político-religiosa que sincretiza new
age e maya” e vinculado aos “movimentos da nova era”. Por mais que eu estivesse tratando
de instituições mayas, meu uso do conceito de mayanismo teve um claro componente
essencialista, como se implicasse no meu julgamento (enquanto um defensor autoproclamado
da cultura) de que aqueles mayas eram tão diferentes do que eu esperava – e principalmente
do que meus interlocutores mayas tradicionalistas esperam – que eu via mais similitudes entre
eles e a nova era, supostamente justificando este uso do conceito, do qual me arrependo.
À época, contudo, e principalmente no livro, defendi o conceito de Hoopes, e
inclusive reproduzi a estratégia de desvincular “mayanismo” de “mayanista”,52 cunhando dois
conceitos radicalmente diferentes e que certamente tendem à confusão. Isto se deve ao fato de
que mayanist em inglês é um termo geralmente aplicado como referência aos mayanistas
acadêmicos, profissionais, e esta é uma prática que o próprio Hoopes ratifica. Portanto fez-se
necessário, tentar contornar e justificar um conceito de mayanismo incompatível com o de
mayanista.
Apesar das minhas críticas históricas às apropriações nova era dos mayas, e de
continuar situando o mayanista independente John Major Jenkins como um autor pertencente
ao escopo nova era – mas, assim como Hoopes, com boas contribuições para os mayanistas
em geral –, é necessário reconhecer que Jenkins (2014) tem razão quando afirma que
“mayanismo” tem sentidos que precedem sua associação com a nova era, aparecendo
53 Não tenho nenhum interesse particular nas desavenças entre os dois, com quem tenho contato amistoso há
vários anos, mas sendo este um conceito de fundamental importância para a dissertação trata-se de uma
questão de justiça reconhecer as diferentes aplicações do termo.
54 O verbete pode ser acessado através do endereço http://en.wikipedia.org/wiki/Mayanism.
55 Em espanhol, o termo costumeiramente utilizado para referência aos mayanistas acadêmicos é mayista.
60
esoteric convictions they attribute to ancient Maya culture” (BLAINEY, 2011, p. 352). O
mayanismo para ele também é entendido como uma “moda euroamericana”, que poderia ser
colocada em termos de “mayamania”.56 O conceito de Blainey se torna mais elástico a partir
da compreensão de que o mayanismo tem características diferentes através do tempo; seu
conceito articula-se a partir da ideia de que existem três “ondas”:
(…) “first-wave” Mayanism (as contrasted with later forms) consisted of well-
meaning adventurers accumulating and interpreting ethnographic, ethnohistoric,
and archaeological data before the respective academic disciplines of the same
name had fully matured. (...) Practitioners of first-wave Mayanism include Count
Jean Frédéric Maximilien Waldeck (…) [and] his writings about the Maya (...) are
discredited by his emphatic belief that “Maya civilization had been derived from the
Chaldeans, Phoenicians, and especially the ‘Hindoos,’ (...)” (Coe 1992:77).
Additionally, we can classify Abbé Charles Étienne Brasseur de Bourbourg as a
model of first-wave Mayanism in that (…) [he] was convinced (...) that the
Caribbean region was the location of the fabled Atlantis civilization, and that
folklore of living indigenous people like the Maya preserved the details of the
Atlantis legend (Short 1880:498–499). However, this first-wave lacked later
Mayanism’s focus on the researchers’ personal identification with cosmological
beliefs they simultaneously claim as those of the ancient Maya.
A subsequent escalation of popular interest in the mystical qualities of ancient Maya
culture, what is labelled herein as second-wave Mayanism, appeared as an amateur
parallel to professional Maya scholarship (…). These self-appointed practitioners of
Mayanism put even less emphasis on scholarly rigor than their first-wave forebears,
resulting in a substantially weakened status relative to the professionals. The
prototypical character of second-wave Mayanism (...) is William S. Burroughs. (...)
According to Hamann (2008:3–5), Burroughs’ “discussions of Maya hieroglyphs”
show remarkable “conformity to dominant interpretations of Maya writing and
culture in the 1950s—interpretations that, in that same ten-year span, were
subjected to revolutionary critiques”. Hamann (2008:3–5) further notes that
“Thompson‘s mystical approach,” which had then dominated professional
epigraphy for decades, was comparable to the intuitive methodology of Mayanism
before it was replaced by a concentration on an effective phonetic reading of glyphs.
Another prominent figure in second-wave Mayanism is Erich von Däniken, whose
Chariots of the Gods? (1999[1968]) was an international bestseller. In this book,
von Däniken details his theory that the technological achievements of the world‘s
great ancient civilizations, like the Maya, were the result of these people‘s
communing with extraterrestrials.
Finally, what is labelled here as “third-wave” Mayanism is the most topical variety
of this movement, having gained ascendency of late as the 2012 Bak‘tun end-date
approaches. Its foundations can be traced to two books: Frank Waters’ Mexico
Mystique: The Coming Sixth World of Consciousness (1975) and José Argüelles’ The
Mayan Factor (1987) (…). The origins of the third-wave are clearly rooted in the
fertile soil of folkloric conjecture that had been amassing public interest since the
mid-19th century, especially amongst what are termed “New Age” groups. Paul
Heelas’ characterizes the New Age as “Self-Spirituality.” New Agers share this
“monistic assumption that the Self itself is sacred” (Heelas 1996:2), as well as the
belief that “the earth is a conscious, living organism” (Hanegraaff 1996:157). Thus,
New Age Mayanism encourages individuals to focus on their personal links with
56 Este termo teria uso análogo ao de egiptomania, mas aplicado ao contexto maya.
61
2.3 OS MAYAS
Como visto, os mayas deixaram de ser, especialmente a partir do século XIX, apenas
aqueles “de Mayapan” para serem aqueles de Palenque, Tikal, Copán (...), e tantos outros
grandes centros urbanos e cidades antigas – muitas das quais mais antigas que Mayapan –,
dotados de ciência e cultura próprias que os mayas contemporâneos já teriam perdido. Este
discurso favorecia o clima “assimilacionista” que pairou entre intelectuais nacionalistas da
57 No contexto do cdp, o termo “mayas galácticos” aparece ao mesmo tempo como um sinônimo para a elite
maya clássica e mesmo como uma identidade reivindicada por alguns de seus seguidores mais convictos.
62
região à época, como Miguel Ángel Astúrias (Cf. WAINWRIGHT, 2008), em que a
incorporação à sociedade nacional era vista como a única alternativa viável para os mayas
contemporâneos.
Esta parte da dissertação tem como objetivo proporcionar uma breve introdução a
definições gerais – e atuais – dos mayas, com destaque para aspectos linguísticos e
geográficos, que ilustram a diversidade maya.
A partir do estudo comparado, estrutural das línguas, que como observado começa
ainda no período colonial, foi possível sugerir a existência de uma língua original, “proto-
maya”, que passou a ser a “raiz” do tronco linguístico maya. Através dos séculos (e bem antes
dos próprios mayas clássicos), tal língua se diversificou, dando origem a cada vez mais
línguas diferentes, até chegarmos às pouco mais de 30 línguas mayas que são faladas até os
dias de hoje.
O estabelecimento de um tronco linguístico maya é debitário especialmente de
Norman McQuown e Terrence Kaufman entre os anos de 1940 e 1960, com o tronco proposto
por Kaufman em 1964 servindo como modelo principal para explicar as relações entre as
línguas mayas por mais de cinquenta anos (LAW, 2013; CAMPBELL, 2017). O avanço do
estudo comparativo moderno serviu para redefinir os mayas de vez como um grande grupo
macrolinguístico. “Maya”, então, passou a implicar em “pan-maya”, isto é, em uma vasta
diversidade de povos mayas, em lugar de apenas um.
A partir especialmente desta redefinição dos mayas amparada numa “virada
linguística” é que torna-se possível dimensionar o quão vago e generalista o “maya” pode ser.
A identidade maya contemporânea tem nas línguas mayas os seus grandes pilares, que
embasam a apropriação do termo para autoidentificação inclusive desde uma perspectiva
científica. Definitivamente, existem muitos mayas diferentes entre si e muitas maneiras
diferentes de ser maya.
O tronco linguístico maya é mostrado na figura 5, e sua linha do tempo serve para
sugerir um pouco da própria história das migrações mayas, que se reflete nas diferenciações
mais precoces e tardias em relação à língua “proto-maya”. Das línguas mayas faladas no
período colonial, duas são consideradas extintas. Das mais de 30 línguas mayas faladas
atualmente, em pelos menos 16 comunidades linguísticas 58 há evidência de uma língua pan-
58 “Comunidades linguísticas” é um termo utilizado oficialmente na Guatemala, e especialmente na ALMG,
para referir-se a cada uma das populações falantes de cada língua maya. Também pode ser utilizado como
63
maya de sinais;59 os antigos hieróglifos foram utilizados em especial pelas oito indicadas pelo
triângulo verde. Entre as 34 comunidades linguísticas, 22 compõem a diversidade linguística
guatemalteca contemporânea, como se vê na figura 6.
A área maya, de um modo generalista, 60 compreende os territórios das atuais nações
de Belize e Guatemala, além de parte de Honduras, El Salvador e México (península do
Yucatán e Chiapas), como pode ser visto na figura 2. Portanto, a área maya – que pode ser, ela
própria, uma subárea da Mesoamérica – é bastante diversa geograficamente, também,
motivando várias subdivisões possíveis:
A história maya estende-se até três ou quatro mil anos no passado, mas o período que
é objeto de maior atenção é chamado período clássico (~300-900 EC), 61 que coincide
substituto à noção de “etnia”.
59 Esta língua de sinais é conhecida como meemul tziij. Cf. TREE, 2009.
60 E entendida portanto para além da península do Yucatán.
61 Para datações, utilizo AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum).
64
justamente com o “auge” maya, a época das antigas elites mayas e das cidades-Estado. A
cronologia da Mesoamérica utilizada por arqueólogos e historiadores gira em torno dos
mayas, pois tem como principal referencial justamente o período clássico.
Os períodos anterior e posterior são nomeados em função do período clássico (“pré-
clássico” e “pós-clássico”), como pode ser visto no quadro 3, evidenciando a importância e a
influência dos mayas e dos mayanistas na própria escrita da história mesoamericana e para a
conformação dos estudos mesoamericanos. O período “clássico” não corresponde aos
olmecas ou a Teotihuacán, estão vinculados às origens da civilização “mesoamericana” e cujo
domínio precedeu os próprios mayas, mas sim ao período em que a elite maya antiga esteve
em seu auge.
Neste sentido, muito do que se atribui como “maya”, como por exemplo os
calendários, não tem, necessariamente, uma origem maya. Situar os mayas dentro do
panorama histórico mesoamericano revela-se também num esforço em desimaginá-los; por
exemplo, os diferentes grupos mayas tiveram e mantiveram contato com outras etnias, e
podem até ter sofrido uma influência maior de outros grupos étnicos do que de falantes de
alguma língua maya.
Assim, lembrar o conceito de Mesoamérica e as suas bases, ainda que também
pautadas na observação de traços culturais comuns, serve para lembrar fundamentalmente que
os mayas não estão e nunca estiveram isolados, e os mayas nunca existiram enquanto um
povo hermeticamente isolado, ou jamais teriam se desdobrado em mais de 30 grupos étnicos
distintos. Ademais, inclusive durante o período clássico os mayas receberam influência
exterior como, por exemplo, a teotihuacana.
O mesmo pensamento deve se aplicar também, claro, para além da própria noção de
65
Mesoamérica, que apesar de ser pensada em contraste a outras regiões – e também por isto
mesmo – têm fronteiras incertas e disputadas, especialmente se forem consideradas as
histórias das migrações e seus aspectos sociolinguísticos.
Como será visto a seguir, os mayas passaram a se identificar como mayas quando
estavam inseridos em um contexto nacional absolutamente conturbado. Isto se refletiu
também em diferentes articulações da identidade maya que respondem a interesses que não
são necessariamente apenas os interesses mayas.
Figura 2 – Mapa da Mesoamérica, incluindo as atuais fronteiras nacionais e subregiões mesoamericanas, com a
área maya destacada em verde. Fonte: FAMSI.
66
Figura 3 – Mapa da área maya dividida em terras baixas (lowlands) e altas (highlands). Fonte:
latinamericanstudies.org.
68
Figura 4 – Mapa da área maya subdivida em setentrional, central e meridional. Fonte: latinamericanstudies.org.
69
Figura 6 – Mapa linguístico da Guatemala, elaborado a partir do regulamento da Ley de Idiomas Nacionales.
Fonte: CAVALCANTI, 2014.
71
A Guatemala do século XIX teve diversos conflitos locais, uma independência que
72
pouco se diferenciou da estrutura colonial, sendo uma época caracterizada como Estado
criollo,62 até que uma revolução liberal teve lugar, mas desdobrou-se depois em mais uma
onda de expropriação de terras comunais:
Estas leyes liberales estuvieron funcionando hasta 1944, poco más de 70 años, en
los cuales gobernaron militares como el general Manuel Estrada Cabrera y Jorge
Ubico. Durante estos años se utilizó la represión, cárcel, trabajos forzados, golpes,
tortura e incluso fusilamiento, para someter a la población que se rebelaba contra
las injusticias. Se estableció el Servicio Militar Forzoso para reclutar jóvenes
pobres, principalmente en el campo, para que sirvieran como soldados en el
ejército. Se entregaron los recursos del país a empresas extranjeras, principalmente
norteamericanas, para su explotación. Entre ello, la producción agrícola de banano
y el control de los medios de comunicación como la telefonía, el telégrafo, el
ferrocarril y la electricidad.
Durante la Segunda Guerra Mundial, Guatemala se alinea con Estados Unidos y
expulsa a los alemanes que habían impulsado la producción de café en el país y sus
fincas son nacionalizadas. (CUC, s.d., p. 26)
Ainda no final da segunda guerra, entretanto, a Guatemala teve seus melhores dias, a
partir da chamada revolução de outubro em 1944. Rompendo com a longa era de governos
liberais e de submissão aos interesses externos – principalmente estadunidenses –, os novos
62 Historicamente, a Guatemala é dominada por criollos, nascidos na América mas de suposto “sangue puro”
(europeu), e depois criollos e ladinos (mestiços que deixaram de lado suas raízes indígenas e ascenderam
socialmente), sempre em detrimento dos indígenas.
73
escalated into major massacres of indigenous communities and massive violations of human
rights in the 1980s” (MONTEJO, 2005, p. 178). A luta armada começou em 1960, quando
surgiram as primeiras guerrilhas , inspiradas na revolução cubana no ano anterior (CUC, s.d.).
Neste sentido, seria possível afirmar que já existiam “mayas comunistas” ou “mayas
de esquerda” antes mesmo de eles se entenderem como “mayas” – o que, suponho, já não
seria surpresa alguma desde a revolução de 1944. Entretanto, para entender melhor o contexto
é preciso também relativizar, por outro lado, esta visão de uma relação harmônica entre as
guerrilhas e os mayas, de maneira a evitar qualquer generalização. Dito de outra forma,
existiram mayas de todos os lados da guerra: no exército, nas guerrilhas e em nenhum dos
dois. Mayas comunistas e mayas anticomunistas, e mayas tentando se livrar dos dois rótulos
75
The early forms of pan-Maya associations can be traced to the special teacher
institutes that train Maya women and men. Among these institutions have been the
Instituto Indígena “Santiago and the Instituto Indígena “Nuestra Señora del
Socorro” (the latter for women). These institutes for secondary and vocational
education were run as boarding schools by religious orders. The establishment of
these Indian institutes was a result of the struggle against Communism in
Guatemala by Bishop Mariano Rossell y Arellano after the downfall of the Arbenz
government. This was a measure to stop Maya from falling into the traps of
Communist manipulation. It is interesting to note that some of the most proeminent
Maya leaders of the present were trained in these institutes. (MONTEJO, 2005, p.
74)
Alguns dos estudantes mayas formados nesses institutos católicos tornaram-se, nas
décadas seguintes – e principalmente durante o conflito armado interno – os acadêmicos
mayas que, segundo Montejo, “construct an ethnic identity that encouraged pride in the
Maya herritage (…) [and] after about 1950 began to rethink their position as mediators and
interlocutors between the two worlds” (MONTEJO, 2005, p. 75). Este exemplo demonstra
como, durante a tensão política na Guatemala dos anos 50, os próprios mayas eram disputados
tanto pela esquerda quanto pelos anticomunistas. Neste caso, a própria gestação dos
intelectuais e da identidade maya se deu em diversos contextos locais e regionais, e
principalmente associados a culturas políticas divergentes.
Como é possível perceber, diferentes apropriações do termo “maya” como categoria
identitária pelos indígenas ocorrem antes mesmo da constituição de um movimento maya
mais organizado nos anos 80, e não está ao meu alcance documentá-la à ocasião desta escrita.
O “maya” está em disputa desde sempre, e a penetração da identidade maya entre os
indígenas guatemaltecos se deu através de diversos agentes e instituições estatais,
contraestatais, liberais, revolucionárias e religiosas, cada qual com suas agendas políticas
distintas.
A guerra civil guatemalteca durou oficialmente de 1960 a 1996, e portanto também
não posso dar conta aqui de muitos de seus pormenores, bastando para o interesse imediato a
76
compreensão mais geral da complexidade deste conflito, e de que os mayas – que eram
maioria do contingente tanto da guerrilha quanto do exército – estiveram em diversas
posições no cenário da política nacional, muitas vezes opostas. A construção da identidade
maya e principalmente o senso de pertencimento maya não se dá de maneira alheia à
experiência do auge da guerra civil, a não ser em abstrações culturalistas que negam a
política.
Portanto, a autoidentificação maya ocorre nesta conjuntura nacional marcante, e a
grosso modo “etnogênese maya” implica em “movimento maya”. A Guatemala sofreu o
primeiro da onda de golpes de Estado com suporte estadunidenses em 1954, e ao mesmo
tempo foi a última a sair dos conflitos desencadeados pelo golpe. Mais ou menos no meio
deste período de mais de 42 anos (1954-1996), ainda antes de as comunidades mayas
sofrerem os maiores massacres e genocídios patrocinados pela ditadura militar no final dos
anos 70 e começo dos 80, alguns intelectuais mayas já reivindicavam a identidade maya, mas
ela também passou a ser politizada em relação ao conflito e a discursos marxistas.
colonialistas pelos ativistas mayas. Se, no século XIX, uma elite maya do passado foi
“descoberta”, no século XX foi também uma elite intelectual maya, contemporânea, que
fomentou a “redescoberta” maya de si mesma.
E, para valorizar esta identidade no Mundo Moderno, demonstrou-se
estrategicamente interessante fomentar um “capital cultural maya” que remetesse,
precisamente, aos traços culturais mais valorizados nos mayas clássicos. Daí,
fundamentalmente, a preocupação com o estudo e o fomento dos calendários e da escrita em
hieróglifos. Ver mayas reaprendendo a escrita de seus antepassados após tantos séculos seria,
literalmente, um milagre, um símbolo do ressurgimento da grandeza dos mayas.
Acredito que estes intelectuais, que podemos considerar espécies de fundadores do
movimento pan-maya, souberam perceber e aproveitar o que Sidney Tarrow (2011) definiria
como “oportunidade política”. Na verdade, podemos entender que a emersão da identidade
maya entre os indígenas contemporâneos gerou e continua gerando inúmeras oportunidades
políticas para os mais diferentes atores mayas. Isto pode ser melhor compreendido a partir dos
fatores que o autor usou para definir em que situações se pode falar em oportunidade política:
Most important among such factors are (1) opening of access to participation for
new actors; (2) evidence of political realignment within the polity; (3) availability
of influential allies; and (4) emerging splits within the elite. For the same reason, it
seems most useful to limit the concept of threat to the state’s and other actors’
(TARROW, 2011, pp. 164-165)
Penso que, dentre os aliados influentes dos mayas, está a própria autoridade dos
acadêmicos – sejam eles intelectuais mayas ou não –, que construíram a partir do século XIX
uma categoria “maya” que legitima a reivindicação pan-étnica por parte dos indígenas
contemporâneos, particularmente amparada na linguística e, mais do que isso, estiveram
presentes no debate guatemalteco durante o período de conflito reafirmando a legitimidade da
reivindicação identitária do termo “maya”.
Defendo que as representações acadêmicas dos mayas contribuíram para a
construção do próprio “capital cultural maya” que é fomentado e reproduzido em boa parte do
movimento indígena pan-maya atualmente. Se, para o mundo, a “cultura maya” que interessa
e à qual se atribui maior valor é aquela das elites mayas clássicas, não surpreende que uma
revalorização étnica maya contemporânea, que tem raízes na própria academia, possa partir
dos mesmos preceitos.
Mais do que isto, a própria história do termo “maya” e sua construção a meu ver
serve para explicar os rumos mais culturalistas que o movimento maya assumiu quando foi
este se instituindo, em contraste com as manifestações que articulavam o componente étnico e
o classista, após a diminuição do conflito interno e início das negociações de paz a partir do
meio dos anos 80. Neste sentido, tenho a impressão de que naquela época o “maya” era mais
politizado e articulado a uma perspectiva marxista da luta de classes, ainda que esteja claro
que o “maya” já era apropriado de maneira concomitante também pelos anticomunistas. Esta
impressão se deve principalmente à profusão, a partir dos anos 90, de instituições mayas
(especialmente ventanillas indígenas e ONGs) que se adequaram às estruturas do Estado e às
demandas do capitalismo e da captação de recursos através da cooperação internacional, numa
verdadeira “capitalização” do maya.
O Estado guatemalteco passou a reconhecer os direitos dos mayas contemporâneos
através de diversas leis e acordos ao longo dos anos 90, como o acordo de paz em 1996, que
serviram para abrir mais o Estado à presença indígena. Este momento coincide com uma
conjuntura de neoliberalismo ascendente, e a ausência de uma referência na Guatemala como
o zapatismo, capaz de articular as identidades mayas com unidade política forte, explica em
parte a grande proliferação de ONGs mayas na Guatemala. Para alguns autores (Cf. BASTOS
& CUMES, 2007), os anos 90 marcaram o triunfo na Guatemala em uma transição de talvez a
83
Así, tras 1996, con la Firma de la Paz y un Acuerdo de Identidad Indígena, llega un
momento político en que parece que van poder hacerse realidad los sueños del
movimiento maya. Por un lado, todas las fuerzas políticas se ha unificado en pro del
Pueblo Maya. Además, a partir del Acuerdo los mayas ya noson los únicos que
manejan este término y el discurso asociado. Al menos, el conglomerado de actores
involucrados en la paz, las partes, las Naciones Unidas, los diversos acompañantes
y sociedad civil, van a ir asumiendo la idea de un Pueblo Maya en una Guatemala
multicultural como parte de esta anhelada sociedad postbélica.
(…) Este reconocimiento se refuerza por el hecho de que el Gobierno de Guatemala
deberá negociar directa y paritariamente con las organizaciones mayas una serie
de políticas públicas concretas que deberían reflejarse en reformas constitucionales.
(…) Culminando un proceso que había empezado hacía algún tiempo, lo étnico -y
en concreto lo maya- pasa a formar parte del escenario y el discurso político de la
Guatemala de la paz, en un proceso simultáneo de compresión y extensión de lo que
va a significar “lo maya”.
(…) En definitiva, entre 1996 y 1999-2000 se van a dar los años de máxima
presencia de lo maya y el discurso multicultural en Guatemala. Parece que es
posible que en Guatemala se pongan las bases para lograr una nación multicultural
en que todos sus ciudadanos logren el respeto que se merecen. Esto traerá toda una
serie de acciones desarrolladas por actores de muy diversa índole, que en parte
rodean, pero en parte superan a los mayas del movimiento. Y es esta misma
articulación con todo el proceso de paz la que hace que termine el espejismo,
cuando en la Consulta Popular de 1999, una mayoría ajustada de los escasos
votantes deciden no aprobar las reformas constitucionales necesarias para la
redefinición étnica de Guatemala, entre otras cosas. Al año siguiente, el Frente
Republicano Guatemalteco –FRG- de Ríos Montt vence en las elecciones, y
COPMAGUA, la organización que había agrupado y dirigido y todas las energías,
se desintegra entre acusaciones mutuas de manipulación política o malversación de
fondos. Es el fin del periodo de la ilusión. (BASTOS, 2004, pp. 6-7)
Se, à altura do final dos anos 90, ainda resistia algum otimismo em relação a um
projeto nacionalista maya, após aquele momento “acabou a ilusão”. Evidenciou-se o limite da
reivindicação étnica na Guatemala e da tentativa de politizar a identidade maya por um
caminho pautado em reformas significativas do Estado, que hoje parecem apenas horizontes
distantes.
Apesar das derrotas nos anos 90, o “maya” já estava instituído em lei e reconhecido
pelo Estado de diversas formas, e por isto continuou a ser importante no cenário político e
econômico da Guatemala. Nos anos, 2000 houve uma intensificação na criação de instituições
mayas não apenas na Guatemala, mas em todos os países da zona maya. A partir deste novo
momento, aparentemente há uma grande mobilidade de militantes do movimento maya, que
passam a assumir cargos no funcionalismo público no que seria um processo de
Até o meio do século XX, os mayas antigos eram idealizados como uma sociedade
em que uma grande massa de camponeses vivia em harmonia e servindo de bom grado a uma
pequena elite, o que os marxistas poderiam perfeitamente compreender como uma tentativa
de escamotear qualquer coisa parecida a uma “luta de classes” (ou mesmo uma luta pelo
poder entre as elites). Se, como sugere Wainwright, os mayas clássicos foram “inventados”
sob os marcos de uma ciência de ideologia liberal, então a esquerda guatemalteca poderia ter
razões para criticar qualquer tentativa de meramente revitalizar abstrações da “cultura maya”
enquanto uma maneira de forjar uma nova elite maya.
Warren (2000), ao tratar de suas experiências em campo com os mayas no fim dos
anos 80 e começo dos anos 90, argumenta que diversos setores da esquerda perderam a
oportunidade de considerar classe e etnia como política e culturalmente interativas,
reforçando a dicotomia material versus cultural. Ao pretender que a interpretação do mundo
85
Tal oposição persistiria, por exemplo, para tradicionalistas que negam a disputa pelo
Estado ou qualquer participação na política nacional, dominada pelos outros e que nada teria a
ver com a cultura maya.
Desta maneira, há uma série de debates que potencializam conflitos de diferentes
tipos no movimento maya. Se Warren nos dá uma brecha para pensar além da ideia de um
único “capital cultural”, a natureza diversa e dinâmica do movimento maya nos faz imaginar
que não exista sequer um único “capital cultural maya”, mas vários. E, assim, devemos
considerar não apenas diferentes tipos de liderança maya, mas consequentemente diferentes
tipos de movimento maya e mesmo de organizações que, agrupadas num mesmo campo – no
sentido de que orbitam o termo “maya” –, disputam espaço entre si; tudo isto dificulta a
compreensão de como se dá a mayanização e a política maya na Guatemala, que estão em
constante movimento.
87
Entre Dezembro de 2011 e Janeiro de 2012, estive na Guatemala pela segunda vez, a
primeira com anseios mais “sociológicos”. Sem tempo disponível para qualquer investigação
de campo mais aprofundada, decidi visitar algumas organizações mayas que conheci ouvindo
falar, na internet, ou por indicação de pessoas que me receberam na Guatemala, como o amigo
e historiador maya Julio Menchú.68
Visitei instituições principalmente nas duas principais cidades da Guatemala: a
capital (Ciudad de Guatemala) e Quetzaltenango (popularmente chamada Xela). Mas a visita
a duas organizações na capital é que me marcariam particularmente: a Asociación de
Sacerdotes Mayas de Guatemala (ASMG) e o Confederación Nacional de Ministros de la
Espiritualidad Maya Ajq’ijab’ Oxlajuj Ajpop (Oxlajuj Ajpop). Em ambas, fui recebido por
lideranças das respectivas organizações e também ajq'ijab'69 e apresentado como antropólogo
mayista, mas tive a sensação de ser mais um turista para eles.
No caso do discurso de uma então liderança da ASMG, ficou evidente o que à época
eu chamaria de “horoscopização” do calendário maya. No trato do sacerdote comigo – e ao
explicar os significados do meu dia –, a tradução de todos os termos para o espanhol
acontecia sem qualquer mediação ou preocupação com os termos em (alguma) língua maya.
A situação chocou-me um pouco, especialmente a utilização do termo “signo” como
referência ao meu dia de nascimento.70 Eu me vi diante de uma situação em que as fronteiras
entre os mayas e os movimentos “nova era” que eu combatia e com os quais já era
“familiarizado” pareciam confundir-se. Seria possível um maya usar termos como “signo”,
que a princípio para mim eram menos adequados do que aqueles utilizados inclusive pelos
neomayas?71
68 Julio me recebeu, ainda quando ambos éramos estudantes, na Guatemala. Trata-se de um jovem historiador
maya k'iche', formado na universidade pública do país, a Universidad San Carlos de Guatemala (USAC). Foi
o meu principal interlocutor naquela viagem de 2012, e também quem fez a gentileza de me apresentar às
duas organizações mencionadas.
69 O que equivale a especialistas ou guardiões dos calendários mayas (ajq'ij, no singular), ou mais
popularmente no contexto da espiritualidad maya, “sacerdotes mayas”.
70 O termo geralmente utilizado na Guatemala para referir aos dias do calendário maya é o de nawal, e para
alguns ajq'ijab' maya k'iche' o termo mais apropriado seria uwach q'ij – “rosto do sol”, “rosto do dia” (Cf.
CAVALCANTI, 2014). É comum também a referência ao seu dia de nascimento como seu nombre maya.
71 Por “neomaya”, refiro-me aos seguidores de calendários da nova era que se apropriaram parcialmente do
calendário maya (Cf. DE LA TORRE & CAMPECHANO, 2014; BASTOS, TALLY & ZAMORA, 2013; e
BASTOS, ZAMORA & TALLY, 2016).
88
Fica evidente que, desde a minha perspectiva então, a “mayanidade” estava muito
atrelada à língua. Como eu perceberia depois, não apenas podem existir “mayas nova era”
como, dependendo do contexto, isto não representaria qualquer contradição na reivindicação
da identidade maya.
Isto tudo me ajudou a perceber a “disputa pelo maya” como algo muito mais
abrangente – que pode ir muito além dos mayas propriamente ditos – e sem fronteiras claras,
a não ser aquelas definidas pelos agentes diretamente envolvidos em um determinado
contexto e em disputas concretas.
Na Oxlajuj Ajpop, fui recebido por um homem que se apresentou como ancião
principal da organização. Desta vez, o que me incomodou foi menos o apelo irrestrito a um
vocabulário em espanhol, mas um hibridismo sui generis, em que determinado documento
mexica (“azteca”) era utilizado como se fosse maya. É claro que tal frustração naquele
momento foi consequência da minha expectativa em encontrar um “maya autêntico”, em vez
de buscar compreender as estratégias identitárias geradas e acionadas em contextos urbanos
de ativismo cultural. Neste caso, incorporava-se ao “maya” (mais do que isso, enquanto
“maya”) elementos mais abrangentes, “mesoamericanos”.
Portanto, se de um lado fiquei com a impressão de uma “assimilação” à língua
espanhola, de outro percebi que o próprio conceito de “maya” poderia ser ressignificado de
maneira a “caber” muito mais do que aquilo que seria “maya” desde uma perspectiva
culturalista, mayista ou mayanista. Ainda sem me dar muita conta, eu havia visitado duas das
organizações mayas de maior alcance nacional (MORALES SIC, 2004) e talvez das mais
voltadas para os ajq'ijab' e consequentemente os calendários.
Ainda como um graduando convicto de que escreveria sua monografia sobre
calendários mayas, aproveitei para descobrir o que as lideranças daquelas organizações
tinham a me dizer sobre o assunto. Na ASMG, usa-se o calendário maya k'iche', cujo ano
novo iniciou-se no dia 21 de Fevereiro nos últimos anos.72 Já na Oxlajuj Ajpop, a contagem
anual começa sempre no dia 21 de Dezembro.
A liderança da ASMG foi particularmente enfática acerca da importância do seu
72 Após cada ano bissexto, a data é antecipada em um dia. Neste caso, o ano novo entre 2017 e 2020, iniciará
em 20 de Fevereiro. Este “ano novo” parece ser o mais utilizado entre os mayas contemporâneos,
especialmente na Guatemala, onde esta ordem dos dias tem sido mais reafirmada pelo Ministerio de Cultura
y Deporte na última década.
89
calendário e da sua data de ano novo. Para ela, alcançar uma unidade maya é importante, e
para que este objetivo seja cumprido seria necessário unificar também o calendário maya,
especialmente no que se refere à sua data de ano novo. Esta apologia da unidade maya foi a
grande faísca para o projeto que culminou nesta dissertação.
De fato, presenciar pela primeira vez a defesa de que os mayas usem um único
calendário influenciou-me para a visita à Oxlajuj Ajpop, de maneira que eu fiquei ainda mais
curioso para indagar sobre questões calendáricas. Para minha surpresa, o ancião principal da
segunda organização não apenas repetiu discurso similar e que apela para uma espécie de
“unidade calendárica” maya, como também deslegitimou a versão do calendário utilizada pela
ASMG como sendo uma mera influência dos gringos, antropólogos sobre aqueles que já
haviam perdido a tradição dos calendários.
A diversidade calendárica maya é ampla e existe desde antes da invasão da América.
Considerando que os calendários mayas são, estruturalmente, mesoamericanos, a diversidade
calendárica remonta a alguns milênios. Isto tem sido documentado por antropólogos,
arqueólogos e etno-historiadores (etc) como Munro Edmonson (1982). Especialmente no que
se refere ao calendário de 365 dias, podemos afirmar que a autonomia de comunidades
regionais e locais no que se refere a esta conta existe há muito tempo, ou seja, dependendo da
comunidade indígena as datas de “ano novo” chegaram até o século XX e foram mantidas ou
revitalizadas com o passar dos anos.
Hoje, entretanto, e também como parte importante na tentativa de “unificar” os
mayas, diferentes grupos disputam, entre si, a instituição de um único calendário para todos
os mayas. Esta disputa se dá especialmente em torno do mesmo calendário de 365 dias, então
observa-se que há uma disputa para definir qual seria o “verdadeiro ano novo maya”. Apesar
de bastante diferente das disputas que envolvem o “problema da correlação” na academia há
mais de 100 anos, elas coincidem em uma coisa: tanto na academia, quanto entre os mayas
contemporâneos, existe uma busca pelo “único e verdadeiro calendário maya”.
A partir destas experiências, construí alguns dos pressupostos da presente
investigação. Ficou claro que: (1) existem disputas em torno do que é “maya” e (2) o
calendário pode ser um dos principais diacríticos disputados na busca por uma espécie de
“hegemonia cultural” e de definição legítima dos mayas pelos mayas, mas também dos mayas
pelos mayanistas.
90
73 Que abrange a totalidade dos territórios dos atuais Estados nacionais de Guatemala e Belize, e partes de
México (península do Yucatán, Chiapas), Honduras e El Salvador.
74 Isto se aplica também no que se refere à definição de Mesoamérica e de área maya, cujas fronteiras não são
absolutas.
91
Acredito que esta pergunta que Sidnei Clemente Peres sugere, para ser respondida
neste caso, exige um esforço para compreender as razões político-epistemológicas que torna
alguém (ou algum programa de ação) “maya” ou não. Sua aceitação ou recusa estaria
relacionada a uma determinada forma de conhecer – e representar – os “mayas”, bem como
aos interesses implícitos a essas formas de conhecer e representá-los.
Os antropólogos (poderiam ser os arqueólogos, os linguistas, os cientistas e até
“outros” em geral) são situados dentro destas disputas pela representação e legitimação dos
mayas. Analisando retrospectivamente o que ocorreu na Oxlajuj Ajpop, eu já tinha ali uma
forte indicação de que as disputas pelo “maya” jamais poderiam ser tratadas como algo que
ocorre apenas entre os mayas e que, como Peres sugere, alimenta-se também das noções de
senso comum. Portanto, a própria etnogênese maya na Guatemala é motivada pela
reivindicação de um vínculo a um passado (“auge”) maya, que há mais de um século era
imaginado na academia. Os antropólogos do século XX chamaram os mayas de “mayas”
antes mesmo de eles assumirem tal identidade.
Os dois meses que passei na Guatemala foram bastante diferentes de tudo o que eu
havia feito antes, por inúmeras razões. Primeiro, pois passei antes pelo México, que eu ainda
não conhecia, e depois por, na Guatemala, ter passado todo o tempo na região da capital, e
não visitando sítios arqueológicos ou o interior.
Como visto, a península do Yucatán é o berço do termo “maya”, mas o movimento
maya – que faz reivindicações autoidentificando-se como maya – não é tão presente no
México, sendo difícil uma comparação com a Guatemala. Apesar disto, eu passei por lá com
bastante expectativa de entrar em contato com mayas yukatekos pelo caminho. Ao planejar
uma visita à cidade antiga de Chichén Itzá, escolhi uma alternativa à maioria dos turistas e me
instalei em Pisté no dia anterior, para ficar duas noites.
A caminhada do centro de Pisté – em que é relativamente comum encontrar pessoas
falando maya – até Chichén Itzá é altamente recomendada e curta, e evidencia uma diferença
brutal de ambientes. Ainda que, aproveitando-me do plano, tenha chegado bastante cedo ao
sítio, deparei-me com um sítio cheio de barracas de artesanato, vendido e produzido por
mayas, lado a lado com as estruturas antigas. Não tardou para que muitos turistas e
compradores aparecessem, a maioria gringos vindos de Cancún e da Riviera Maya apenas
para visitar o sítio e retornar para a praia.
Nunca havia observado coisa parecida, em que o sítio arqueológico tornou-se, ele
próprio, também um mercado a céu aberto. Foi uma magnífica experiência, apesar do
desconforto com a multidão, mas o mais interessante ocorreria ao final do dia, servindo como
um exemplo interessante de articulação da identidade maya.
Durante algum tempo, cogitei dar maior atenção à noção de interseccionalidade em
diálogo com a identidade maya, uma vez que não são tão raros os essencialismos étnicos que
colocam como menos importantes – ou mesmo excluem completamente – questões de gênero
e classe, por exemplo.
Ao interagir com os presentes em um bar a 50m da praça central de Pisté, e começar
a expor minhas razões de estar ali e meus interesses de pesquisa, tive a oportunidade de
conhecer a mulher que me servia. Ela apresentou-se não apenas como maya, mas também
como uma mulher trans.
Aquele encontro foi surpreendente e, ao mesmo tempo, serviu para reiterar as minhas
convicções de que a identidade maya pode ser articulada de inúmeras maneiras e com outras
93
identidades. Não existe contradição per se no fato de alguém ser uma mulher maya trans, por
exemplo, ou uma maya que também se reivindica feminista ou de esquerda/direita, a não ser
que nos pautemos por parâmetros de definição mais essencialista das identidades.
Neste sentido, minha experiência no México, a caminho da Guatemala, teve
principalmente um choque em relação ao turismo, que é muito maior e literalmente predatório
na península, e uma grata surpresa num bar e em conhecer a pequena cidade de Pisté, cuja
praça central é repleta de símbolos mayas, abusando da arquitetura neomaya. 75 A identidade
maya, ainda que menos reivindicada no México e em muitos casos atrelada ao turismo, talvez
seja também por isso mais maleável ou negociável em determinados contextos locais do que
na Guatemala.
Quando cheguei à Guatemala, tinha inicialmente a intenção de comparar a ALMG e
o Consejo del Pueblo Maya (CPO) respectivamente enquanto uma instituição de cunho
culturalista, a princípio mais voltadas para o fomento da cultura maya, e outra materialista,
que prioriza a luta pelo direito à terra e teve papel importante em recentes consultas
comunitárias contra o assédio do Estado e empresas transnacionais.76
Entretanto, ao visitar a sede do partido Convergencia CPO-CRD,77 ubicada na zona 1
(centro) da capital guatemalteca, descobri que o CPO não tinha qualquer sede ou presença
relevante na capital. Por isto, resolvi manter apenas a ALMG como instituição a ser visitada
de maneira recorrente durante a viagem.
O trabalho de campo consistiu principalmente em visitas sistemáticas à sede central
da ALMG78 e na aplicação de um questionário (anexo 1) a 60 (¾) de seus trabalhadores,
realizada durante as duas últimas semanas na Guatemala. Além disto, tive a oportunidade de
entrevistar Amílcar de Jesús Pop Ac, advogado e deputado maya q’eqchi’, 79 e o intelectual
maya kaqchikel e doutor em comunicação social Demetrio Cojtí Cuxil, dois dos principais
expoentes da política maya e guatemalteca, ambos críticos à ALMG nos últimos anos.
75 Neste contexto, “neomaya” refere-se não a movimentos da nova era, mas sim a um estilo arquitetônico que
busca inspiração nas estruturas mayas antigas.
76 Especialmente no que se refere à exploração mineradora no século XXI. Mais informações podem ser
encontradas na página do CPO, em www.cpo.org.gt.
77 O partido é novo e, como o próprio nome sugere, trata-se de uma convergência pela revolução democrática
(CRD) em que o CPO aparece como em destaque como principal organização.
78 A sede central da ALMG funciona de segunda a sexta, das 8 às 16h e, salvo em ocasião de algum evento,
fecha aos finais de semana.
79 Pelo partido WINAQ, ao qual se juntou cedo por convite de Rigoberta Menchú Tum. Sobre o significado do
termo winaq, Cf. nota 110 nesta dissertação e seus contextos.
94
Eu visitei a sede central da ALMG pela primeira vez em 2012, portanto na minha
segunda ida à Guatemala. Se bem me lembro, passei algo entre 1 e 2 horas por ali e fiz um
breve recorrido, guiado por um trabalhador da ALMG. Desta visita, não lembrava muito, a
não ser da fortificação num estilo militar, do salão logo à entrada do prédio principal, do altar
num jardim interno80 e do estúdio da TV Maya.
Quando retornei àquele lugar, em maio de 2016, e fui logo apresentando minha
intenção em acompanhar um pouco do cotidiano da instituição pelos dois meses seguintes,
minha experiência foi um bocado diferente. Desta vez, eu não saí circulando pela instituição,
e demoraria até voltar a visitar o estúdio. Primeiro, ganhei um crachá de visitante e fui
encaminhado para a recepção, que por sua vez me encaminhou para a DIPLINC, 81 onde fui
orientado a escrever uma carta requisitando permissão do presidente da ALMG, o que fiz ali
mesmo e depois protocolei junto à secretaria da presidência.
Entre idas e vindas durante quase duas semanas, circulei pouco pela instituição e
conversei bastante com meu amigo Marcelo Vicente, que estava sempre trabalhando na
unidade de caja (responsável pelo controle de caixa financeiro) da ALMG, e até minha
chegada estava também cumprindo a função de ajq’ij e conduzindo as cerimônias mayas
realizadas na sede central.82 enquanto enfrentava uma burocracia inesperada e aguardava uma
permissão oficial e definitiva para estar ali. Algumas vezes pensei estar resolvido, mas faltava
algum documento ou uma reconfirmação do que já havia sido confirmado por parte da
instituição brasileira. Esta experiência serviu logo como primeira impressão, no retorno à
instituição, de que eu estava lidando com uma “burocracia maya-estatal”.83
80 Esta parte da sede central é chamada oficialmente de Área Ceremonial (Loq’alaj Xukulib’al).
81 A DIPLINC (Dirección de planificación lingüística y cultural) é o departamento da ALMG que concentra os
especialistas e autoridades mayas em linguística e espiritualidad maya, fomentando também investigações
científicas em campos diversos. É o departamento mais mencionado, pelos próprios trabalhadores da
ALMG, como principal referência principal no que se refere a assuntos mayas dentro da instituição.
82 Infelizmente, pouco depois Marcelo sofreu um acidente e teve de ficar em casa o resto do tempo em que
estive na sede central. Por outro lado, a ausência dele me motivou a circular mais na instituição, já que
minha pendência com a presidência da ALMG estava se resolvendo à mesma época.
83 O que hoje justifica-se melhor, conhecendo a história da ALMG, sua organização e relação com o Estado.
Além disto, pelo que relataram meus interlocutores, aquela era a primeira vez em que a ALMG – pelo menos
durante aquela gestão – tinha de lidar com um investigador interessado em fazer trabalho de campo em sua
sede central. A impressão de que eu tive é de que, neste processo e nesta espera, não apenas a burocracia e a
morosidade pareciam adequados a uma instituição estatal, mas principalmente que os próprios gestores
95
Minha relação com o espaço mudou drasticamente, uma vez que havia me sentido
bastante à vontade em 2012. Toda a burocracia foi determinante, e demorou até sentir-me um
pouco mais ambientado. Foi no dia Oxlajuj No’j84 (31/05/2016) que recebi a permissão oficial
para o trabalho de campo, e constatei que finalmente esta etapa havia passado e eu me sentia
melhor – numa posição um pouco menos liminar, pelo menos.
Durante aquelas primeiras semanas, e numa situação mais retraída em campo, acabei
ficando muito pela biblioteca (batizada em homenagem a Antonio Pop Caal, de quem até
então eu não havia ouvido falar), e buscando sobre a história da ALMG, o que sempre pensei
ser importante incluir nesta dissertação. Entretanto, mesmo isto revelou-se dificultoso, pois
não havia disponível uma publicação sobre a história da academia a não ser parágrafos e
menções dispersas. Naquele momento, cheguei a pensar que minha contribuição poderia ser
compilar uma história mais substancial da ALMG.
A intenção de escrever a história da ALMG ganhou força por alguns dias, quando
soube que já há alguns anos há um movimento – articulado com a DIPLINC – para que cada
uma das 22 comunidades linguísticas produzissem documentos sobre sua história local.
Afinal, a história da ALMG não pode – ou pelo menos não deveria – ser reduzida à sede
central ou às relações com o legislativo e o executivo da Guatemala.
Mas cedo percebi que este projeto era um empreendimento bem mais ambicioso do
que minhas possibilidades em campo, como estrangeiro que estava ali havia menos de três
semanas. Minha chance de ter acesso aos documentos já produzidos sobre a história das
comunidades linguísticas era através da DIPLINC, entretanto me deparei novamente com as
burocracias e com a reticência em confiar-me documentos não publicados.
Foi então que me dei conta de que eu deveria abandonar aquela ambição, movida
foram decidindo, ao longo das duas semanas, as etapas – por vezes redundantes – que eu tive de cumprir
para ser formalmente aceito pela presidência da ALMG, bem como os documentos necessários até
finalmente receber uma resposta oficial. Nos últimos dias deste período, exigiu-se ainda uma nova
confirmação do meu vínculo institucional no curso mestrado, retardando ainda mais meu “alvará” de
investigação enquanto esperava-se mais uma posição da burocracia universitária no Brasil.
84 Os nomes dos dias estão sem itálico pois são tratados como nomes próprios. Oxlajuj No’j é também o dia
que está no logotipo da ALMG, e a coincidência de ter recebido a permissão do presidente no mesmo dia
não passou despercebida por mim.
96
pelo incômodo de ainda não existir uma compilação mais alongada da história da ALMG.
Mais do que isso, concluí que a própria ALMG deve fazer elaborar coletivamente esta
compilação, e que talvez meu impulso estivesse atropelando agendas internas, de modo que
insistir nisto poderia eventualmente até prejudicar interlocutores.
Para complicar ainda mais, se em 2012 conheci uma bela livraria na sede central da
ALMG, com publicações de virtualmente todas as comunidades linguísticas, isto
simplesmente já não existia. Após alguns dias, encontrei algumas publicações mais gerais da
ALMG no almoxarifado da sede central. Explicou-me um interlocutor que em algum
momento (possivelmente entre 2013 e 2015) resolveram que cada comunidade linguística
ficaria com seu próprio acervo de publicações.
Esta descentralização, entretanto, parece ter sido radical, pois revelou-se bastante
prejudicial não apenas para mim, mas para qualquer pessoa interessada na história da ALMG
e no corpo de publicações da instituição independente de qual comunidade linguística. Neste
sentido, eu teria de ir às sedes de todas elas para realmente fazer um levantamento profundo.
A situação foi tão inesperada, que eu me vi diante de uma situação em que eu tinha em casa –
no Brasil – publicações da ALMG, adquiridas ali há quatro anos, que a própria biblioteca da
sede central não possui atualmente em seu acervo.
Ainda que exista uma lei de acesso à informação da Guatemala, que por vezes é
enfatizada na ALMG, todos estes fatores, a começar pela descentralização da instituição,
fizeram-me crer que até ela poderia tornar-se mais um obstáculo para mim. Perdeu-se todo o
sentido em prosseguir tentando reunir materiais da ALMG sobre sua história, mas continuava
sendo importante resumir um pouco dela.
linguista maya Adrián Inés Chávez e precursora da ALMG. Na historiografia e ainda hoje,
ele é o mais lembrado quando se trata da história prévia da ALMG e os principais entusiastas
e articuladores de sua criação.
A academia k’iche’ foi uma iniciativa tão pioneira, que foi contemporânea aos
linguistas que introduziram o método comparativo moderno ao estudo das línguas mayas e
ajudaram a conformar o tronco linguístico maya tal como ele é hoje.
Um outro precursor do movimento maya e da ALMG foi o advogado maya Q’eqchi’
Antonio Pop Caal,85 que em sua histórica Réplica del indio a una disertación ladina, texto
apresentado em 1974, não apenas reivindicava o “maya” como, durante o conflito armado
interno, articulava sua crítica ao colonialismo e as perspectivas étnicas à crítica ao capitalismo
e à propriedade privada desde uma perspectiva de classe.
A criação propriamente dita da ALMG deu em 1985, de acordo com Montejo (2005,
p. 76), mas tratou-se na verdade de todo um processo que se deu ao longo da década de 1980.
Narciso Cojtí relata como desde os anos 60, e ao longo dos anos 70 e 80, intensificaram-se
iniciativas e congressos linguísticos. Num desses congressos, realizado em 1984 numa
universidade privada guatemalteca, elaborou-se uma recomendação ao ministério da educação
para a criação da ALMG, mas a criação de fato, de acordo com Cojtí, se deu com a
constituição de uma junta diretiva provisória com representantes de diversas instituições, em
9 de outubro de 1986 (COJTÍ, 2006).
With the awareness of their cultural heritage, Maya intellectuals began to organize
their efforts for cultural revival and revitalization. The work of Maya writers was
important; they concentrated on the use of the language as a means of ensuring that
Maya culture and worldviews would be passed on effectively from one generation to
the next. At the beginning of the 1980s, this organized effort led to the creation of
the Academy of Mayan languages of Guatemala (ALMG). The recognition of the
ALMG in 1985 as an autonomous institution funded by the government was one of
the major achievements of the Maya working for self-representation. The ALMG is a
pan-Maya institution in which the twenty-one Mayan linguistic communities of
Guatemala are represented (…) (MONTEJO, 2005, p. 76)
A citação de Montejo fala por si só, no que se refere ao destaque dado à ALMG na
85 Antonio Pop Caal, assassinado em 2003, foi também tio de Amílcar Pop, cujo relato sobre a época prévia à
criação da ALMG aparece logo abaixo. Cheguei ao nome de Antonio ao acaso: ele batiza a biblioteca da
ALMG, mas praticamente nenhum trabalhador da sede central sabia de quem se tratava, e mesmo Amílcar
não tinha conhecimento de que a biblioteca da sede central levava o nome de Antonio Pop Caal. Para
Amílcar, a principal contribuição política de seu tio foi saber articular e equilibrar as questões étnicas com as
de classe (POP, 2016).
98
história do próprio movimento maya, especialmente dos intelectuais mayas que já vinham se
organizando e reivindicando mais sistematicamente a identidade maya. A ALMG tal como
existe hoje é, por supuesto, resultado de um processo que se estende principalmente por todos
os anos 80, culminando na aprovação da lei da ALMG no ano de 1990.
É importante ressaltar que tanto a criação da academia quanto a aprovação da lei
foram resultado direto da mobilização maya nas ruas e pressionando governos e legislaturas
do congresso, com atuação não só de intelectuais, deputados e servidores públicos mayas, mas
de comunidades que vinham do interior para manifestações históricas. O hoje deputado maya
qeqchi’ Amílcar Pop, em entrevista concedida a mim, lembrou que esteve em algumas dessas
manifestações, acompanhando sua família durante a infância:
Bueno, yo estuve ahi afuera [por las calles de la capital guatemalteca], a los 9 anos
marchando y caminando 3 dias, peleando por la academia con mis padres, con mi
papa y con mi tio (...) 82… desde del 82 empezamos a pelear la academia. Quizás la
gran marcha, no me acuerdo, habrá sido en 85, ya en esa transición de gobierno
(...) y se mal no lo recuerdo, en 86 juridicamente nasce la academia. Y todos los
qeqchi venimos bajo la amenaza que venian diez mil indigenas con machetes y
palos a exigir, porque habíamos como 10 mil acá! entonces hubo miedo a los
diputados en ese entonces, de que se habían 10 mil aqui, venian otros 10 mil ya era
problema (...) bajo esa única venanza (...) y lo digo porque asi fue, y ahí están los
viejos vivos, mi tio está muerto, mi papa, y otro par de personas que fueron los que
se pararon ahi , dijeron “vienen otros 10 mil indigenas” y de aqui no nos vamos si
no tenemos la academia... claro, desde entonces acá [la ALMG] era la única
ventana del Estado. ¡Era todo! En la academia recuperamos nuestra espiritualidad,
en academia quisemos recuperar nuestro sistema político, en la academia
[quisemos recuperar todo] (…) la academia se convertió en el espacio totalmente
integrador de nuestras aspiraciones como indígenas (…) (POP, 2016)
Sem dúvida alguma, o período dos anos 80 é particularmente rico para a história da
ALMG, e ao mesmo tempo aparentemente o menos documentado; como trata-se de um
período ainda recente, possivelmente nos próximos anos parte destas memórias serão
resgatadas e os estudos da própria ALMG publicizados.
A lei (ALMG, 2005) criou a ALMG como uma entidade estatal autônoma, com
personalidade jurídica própria e “capacidad para adquirir derechos y contraer obligaciones,
patrimonio propio y jurisdicción administrativa en toda la República en materia de su
competencia” (ALMG, 2005, p. 8). Define originalmente 21 comunidades linguísticas, 86 bem
como os seus fins, objetivos, atribuições e estrutura de organização da ALMG. O âmbito de
sua autonomia é definido no artigo 3 da seguinte maneira:
86 São elas: Achi, Akateka, Awakateka, Ch’orti’, Chuj, Itza’, Ixil, Jakalteka, Kaqchikel, K’iche’, Mam, Mopán,
Poqomam, Poqomchi’, Q’anjob’al, Q’eqchi’, Sakapulteka, Sipakapense, Tektiteka, Tz’utujil, Uspanteka.
Como será observado a seguir, uma outra comunidade linguística, a Chalchiteka, foi incorporada em 2003.
100
Until the 1980s it [the calendar] was not used openly in the Cuchumatán region, but
in response to the quincentenary commemoration, the elders decided to revive their
hidden Maya rituals, and for the first time in modern history two hundred Maya
priests from different linguistic communities congregated at the Maya sites of
Zaculeu and Iximche in Guatemala to perform their ceremonies in public.
Ceremonies were also performed by spiritual elders from differente Maya ethnic
groups when the members of the Academy of Mayan Languages of Guatemala took
office in December 1992, “a solemn act during the transfer of the symbolic staff to
the new board of directors of the Academia” (MONTEJO, 2005, pp. 151-152)
A menção à posse das primeiras autoridades eleitas da ALMG neste contexto deixa
implícito um papel importante que a instituição cumpria naquele momento em relação aos
calendários e à espiritualidade maya nas cerimônias, ainda mais em se tratando deste
momento chave (1992) em que muitos mayas viviam o ápice da crítica e da resistência à
celebração dos 500 anos da invasão da América.
O que vem após isto é, em sua maior parte, um mistério para mim, mas
87 Tratam-se das mesmas instituições que compuseram a junta diretiva provisória de 1986, que são também
discriminadas na lei da ALMG. No sítio da instituição, a junta formada em 1991 aparecia como sendo a
primeira – por ser posterior à oficialização da instituição, acredito. Não sei até que ponto, entretanto, os
indivíduos que compuseram a junta de 1986 são rigorosamente, ou majoritariamente, os mesmos que
compuseram a junta em 1991.
102
especialmente no que concerne a esta investigação, cujo campo restringe-se à sede central, e
com base na própria organização da ALMG, a constante é uma grande alternância na
presidência da junta diretiva do conselho superior (isto é, na presidência da ALMG), cujo
trabalho na prática dura menos de um ano, e uma alta rotatividade de trabalhadores na sede
central (já que um bom percentual deles sai quando muda a presidência). Por isto mesmo, me
abstive de tentar aprofundar na história política dos seis conselhos superiores (1992-2016),
que elegeram quatro presidentes cada, bem como os vários desdobramentos na instituição.
Em uma análise superficial da lista histórica de presidentes da ALMG, 88 entretanto,
foi possível constatar dois dados interessantes de serem mencionados. Apesar de não haver
restrições formais, as comunidades linguísticas quase nunca tiveram mulheres na
presidência,89 e mais do que isso a ALMG jamais teve uma mulher como presidenta geral da
instituição até os dias de hoje.
Considerando os 24 presidentes eleitos, mais o primeiro presidente da junta diretiva
provisória (1991-2017), doze comunidades linguísticas já estiveram representadas. As
comunidades linguísticas que mais elegeram presidentes foram a Poqomchi e a Mam, com
cinco (20%) cada, seguidas das comunidades Q’eqchi’ e Tzutujil (três cada), Chuj (dois), e
Jakalteka, Chorti, Sakapulteka, Achi, K’iche’, Sipakapense e Awakateko com um cada. No
final de 2016, foi eleito e empossado o sétimo conselho superior da ALMG, que sairá em
quatro anos, bem como o novo presidente para o ano de 2017 – o segundo ano seguido com
um presidente da comunidade linguística Mam.
Os momentos mais importantes na história mais recente da ALMG parecem ter sido
em 2003 e 2004. Em maio de 2003, foi aprovada a ley de idiomas nacionales (decreto 19-
2003), que deu reconhecimento oficial às línguas e o direito à educação nas línguas,
incorporando-as ao patrimônio nacional guatemalteco.90 No mês seguinte, a lei da ALMG foi
reformada para incluir sua 22ª comunidade linguística, a Chalchiteka. Este período foi
lembrado com carinho por Cojtí na entrevista a mim concedida:
88 A maior parte dessa lista foi levantada numa página arquivada do sítio oficial da ALMG (2009):
http://web.archive.org/web/20090429223021/http://www.almg.org.gt:80/portal/index.php?id=69.
89 Tive notícia de umas quatro ou cinco mulheres ocupando tal cargo, nem todas entretanto eleitas para ele
originalmente. Um número exato demandaria o levantamento das juntas diretivas ao longo da história de
todas as 22 comunidades linguísticas.
90 O regulamento da ley de idiomas nacionales, entretanto, saiu mais de oito anos depois, em 2011,
discriminando os municípios em que cada uma das línguas mayas – além da xinka e da garífuna – é falada,
de maneira a incorporar as línguas locais na educação formal em cada cidade.
103
(…) luego [cuando hubo la aprobación de] la ley de idiomas nacionales, que yo
estaba como vice-ministro de educacion, fue un momento (…) fue una buena
lección, un buen proceder, porque se hizo una alianza entre academia de las lenguas
mayas, diputados indígenas en el congresso (…) fue una alianza entre indígenas del
congresso, indígenas del ejecutivo, e indígenas de la academia de las lenguas
mayas, los tres trabajamos en equipo y con el apoyo de los indigenas del congresso
(…) (COJTÍ, 2016)
In terms of alternative television, the former military channel was given to the
Academy of Mayan languages as part of the Peace Accords, and is now known as
TV Maya. Expectations and demand were high, yet TV Maya is currently being kept
in an economic limbo, as – being a public channel – it is not allowed to sell
advertising space, yet it receives little public funding and cannot broadcast beyond
its neighbourhood. (SUCHENWIRTH & KEEBLE, 2011)
91 A trajetória de Chivalán na ALMG iniciou-se em 2004, tornando-se diretor da TV Maya em 2014, cargo que
exerceu até o final de 2016. Durante este período, em 2015, defendeu mestrado em política e comunicação
sobre a própria TV Maya (CHIVALÁN OSORIO, 2015). Neste sentido, Chivalán é um raro exemplo de
intelectual maya que, além de trabalhar na ALMG, dedicou-se também a desenvolver trabalhos acadêmicos
diretamente relacionados à ALMG.
92 O canal 5, enquanto administrado pelo ministério da defesa, a partir de 1979 e com o nome de “ televisión
cultural y educativa – TV-CE” (CHIVALÁN OSORIO, 2015, p. 5), chegava aos lares guatemaltecos.
104
publicidade. Quando de meu período em campo, a solução buscada pela direção da TV Maya
era negociar com o congresso.
O próprio documento da comunidade linguística Kaqchikel define a ALMG como
“una institución políticamente autónoma pero dependiente del financiamiento del Estado”
(CLK, 2015, p. 41). A criação da ALMG como instituição autônoma, mas dependente do
financiamento estatal, evidencia que a lei da ALMG serviu como instrumento que, ao mesmo
tempo, afirmou uma autonomia cultural, mas a associou a uma dependência econômica e
política.
Contrariando a afirmação do documento da CLK, mas em acordo com o ex-diretor
da TV Maya, a lei da ALMG se desdobra não apenas em uma dependência econômica, mas
também numa dependência política do congresso e numa adequação à burocracia estatal.93 O
congresso é responsável por exemplo por liberar verbas para além do orçamento inicial
destinado à instituição a cada ano. Sem o congresso, também não se reforma a lei da ALMG
e, sem reformar a lei, a autonomia e a estrutura política institucional existe apenas nos termos
definidos em 1990. Não por acaso, apenas reformas pontuais foram feitas na lei até hoje,
sendo a mudança mais drástica a proibição de reeleição para o conselho superior em 1995.
Ainda que a ALMG possa fazer parcerias científicas e educacionais que geram
receita ou financiam eventos, publicações (etc), além de captar dinheiro da cooperação
internacional ou de ONGs, talvez o caminho mais curto – e tenho a impressão de que o único,
atualmente – para aumentar substancialmente o caixa da instituição seja através do congresso
guatemalteco. Ao longo da última década, a cota anual da ALMG no orçamento do Estado
tem sido em média de menos de 30 milhões de quetzales, cerca de 4 milhões de dólares.94
Considerando o tamanho da sede central – não apenas fisicamente, mas em número
de empregados – da ALMG, e a manutenção da TV Maya, na prática parece ser difícil
imaginar que alguma comunidade linguística disponha de um milhão de quetzales ou mais
para um ano, pelo menos se depender apenas da injeção estatal. Portanto, diante deste quadro
a situação da TV Maya é realmente delicada, devido ao alto custo de manutenção, que saltaria
muito com a transmissão por satélite para adequar-se ao orçamento ordinário atual da
93 Alguns interlocutores guatemaltecos com passagem pela ALMG denunciaram para mim a prática, no
passado, de negociações entre algumas autoridades da ALMG e deputados em que, por exemplo, empregos
na instituição eram concedidos por indicação de parlamentares.
94 Em 2014, por exemplo, o orçamento da ALMG foi de 25 milhões de quetzales (BLAS, 2014).
105
ALMG.95
Junto com a concessão do canal, a antiga casa crema também foi concedida
oficialmente em usufruto por Portillo, em dezembro de 2003, para transformar-se na sede do
canal e seus estúdios, bem como da própria ALMG. A atual sede central da ALMG naquele
local foi inaugurada em fevereiro de 2004, em evento que, além da realização de cerimônias
mayas, colocava em destaque também a TV Maya, com grande repercussão à época. Naquele
entonces, os responsáveis pelo planejamento da TV falavam em contratar e treinar “unas cien
personas” (LINARES MEJÍA, 2004, p. 49). Na prática, a TV passou a transmitir apenas em
2008 e, em 2016, mal tinha em sua equipe 10% das cem pessoas desejadas há 13 anos – talvez
nunca tenha contado com 20 ou mais pessoas.
A aquisição ou construção de sedes locais das comunidades linguísticas também tem
sido importante no século XXI. Isto ajuda a fortalecer a instituição no interior e as
comunidades linguísticas localmente, aumentando o potencial da ALMG como referência
local, ao promover eventos, oficinas e cursos sobre as línguas mayas.
A primeira sede da ALMG parece ter sido na cidade de Tecpán, o que infiro a partir
de documentos assinados pela junta diretiva provisória no fim dos anos 80. Em algum
momento, sua sede central passou a ser na zona 1 da capital guatemalteca, até mover-se
definitivamente para atual sede, situada à zona 10, em 2004. A edificação corresponde a um
quarteirão inteiro, estrategicamente posicionado à esquina de duas avenida largas, sendo
vizinha à FLACSO-Guatemala, aos ministério das relações exteriores e da educação, às
embaixadas dos EUA e do México, e ao Estado Mayor de la Defensa Nacional.
Seu aspecto é claramente militar, especialmente quando vista do exterior, como pode
ser observado na figura 7. Seus muros altos construídos com guaritas no topo permitiriam
ainda hoje um controle de todo o entorno. Do lado de dentro, a arquitetura não deixa esquecer
que lugar é aquele, e a memória do passado militar do prédio persiste nos cantos mais
abandonados da sede da ALMG.
95 Paradoxalmente, de acordo com Chivalán (comunicação pessoal, 2016 e 2017) todos os anos alguns milhões
de quetzales do orçamento deixam de ser utilizados, e neste caso o seu projeto para a TV Maya já poderia ter
sido implementado.
106
A edificação teve historicamente diversos usos estatais, de maneira que sua própria
história merecia melhor atenção do que me cabe agora. De qualquer maneira, é fundamental
destacar que o logradouro já foi residência oficial do presidente da Guatemala, e
posteriormente – como é mais de conhecimento comum aos interlocutores no campo –
residência oficial do ministro da defesa.
Figura 7 – Sede central da ALMG vista de fora; entrada principal. Fotografia do autor.
Esta memória mais recente parece particularmente determinante e muito mais viva –
não por acaso. O uso do prédio por autoridades do alto comando militar coincidiu com o
período de conflito armado interno na Guatemala. Por lá, não é novidade e conta-se
abertamente que ele abrigou diversas sessões de tortura – inclusive tortura de “rebeldes”
mayas. A complexidade do caso e os detalhes fogem às minhas possibilidades no momento e
ao conhecimento geral das pessoas da ALMG, entretanto esta memória, mesmo que vaga,
engendrou uma situação que se apresentou para mim no campo.
Em uma primeira conversa um pouco mais demorada com uma pessoa no campo, ela
contou-me voluntariamente acerca de suas experiências na sede. Relatou-me ter visto
fantasmas duas ou três por ali; mais do que isto, afirmou categoricamente que diversas
107
cerimônias mayas já haviam sido realizadas ali de maneira a apaziguar estes espíritos que
teriam sido torturados e mortos naquele mesmo lugar.
O episódio serviu para evidenciar que a memória acerca do passado do prédio não
passa desapercebida, e especialmente que as consequências do que ocorreu ali de alguma
maneira estão sempre em negociação com a cosmovisão maya e a ocupação atual do prédio
pela ALMG. Isto apenas aumentou minha curiosidade e o meu desejo em circular mais por
aquele espaço, principalmente os espaços vazios, em que não se costuma ver ninguém circular
– os mais propícios para encontrar os fantasmas do passado daquele lugar.
Não cabe a mim julgar os aspectos espirituais da questão, mas pude verificar que
mesmo após tantos anos ainda é possível encontrar objetos dos tempos dos militares, como
um alvo para a prática de tiro, visto na figura 8. É possível que haja outros resquícios no
prédio, restos de um passado indigesto.
Figura 8 – Indícios dos usos passados da sede central da ALMG pelos militares. Fotografia do autor.
Este passado teria inclusive servido como uma forte motivação para que se
construísse um altar fixo na sede da ALMG, destinado à realização de cerimônias mayas. De
fato, pude perceber menções a isto em uma ou duas cerimônias que presenciei ali.
publicações, etc. A imagem, que pode ser vista na figura 9, serve para reforçar o caráter da
ALMG como uma instituição criada por e identificada com os intelectuais mayas. O logotipo
pode ser descrito como a representação de um antigo escriba maya, que por sua vez está
pintando o glifo do dia Oxlajuj No’j, que proporcionalmente é bastante grande em
comparação à personagem maya.
Desta maneira, o logotipo articula a escrita antiga maya – os hieróglifos –, através da
personagem-escriba, com os calendários. Estes são justamente os dois diacríticos mayas mais
valorizados, como observado. O terceiro diacrítico, representado pelas línguas mayas, está
explícito no próprio nome da instituição e, desta maneira, o logotipo poderia ser interpretado
como a síntese de um ideal maya intelectualizado, em um tripé língua-epigrafia-calendário.
Além disto, o dia Oxlajuj No’j pode ser traduzido como “treze pensamento”; sendo
109
treze o mais alto número do calendário ritual maya, este dia seria o mais “forte” dia associado
ao pensamento e à sabedoria. O símbolo ideal para uma instituição de intelectuais mayas
voltada ao fomento e ao resgate linguístico e cultural do maya.
Neste sentido, o logotipo da ALMG permite inferir ainda que Oxlajuj No’j é o nome
calendárico da ALMG.
símbolo q’anil100 feito de açúcar, coberto por uma erva, e depois o círculo totalmente
preenchido com pom,101 antes de decorar com velas coloridas e outros materiais que ajudam a
alimentar o fogo. Os 20 dias do calendário ritual foram invocados, um de cada vez, pelo ajq’ij
que conduziu a cerimônia em diálogo com sua interpretação de cada um dos 20 dias do
calendário, além de coordenar a distribuição e oferenda de materiais a serem ofertados por
todos os presentes.
Figura 11 – Após a cerimônia de Wajxaqib’ B’atz’, com a bandeira maya no topo, à direita. Fotografia do autor.
Cada um dos 20 dias é invocado 13 vezes, 102 de maneira que os nomes de todos os
100 Um círculo com uma cruz que o divide em quatro partes, com um pequeno círculo feito dentro de cada uma
das quatro partes.
101 Como pode ser visto no quadro 1, uma das ocorrências do termo “maya” no período colonial foi “maya
pom”, que pode ser traduzido como “incenso de copal maya”. O pom é um material fundamental para as
cerimônias mayas com fogo, sendo talvez o material mais oferendado depois das velas.
102 Sempre começando a partir do dia atual. Por exemplo, se o dia da cerimônia coincidir com o dia Q’anil,
(independente do número que o acompanha) no calendário maya, conta-se “1 Q’anil, 2 Q’anil, 3 Q’anil (…)
13 Q’anil”, seguindo para o próximo dia (Toj) e repetindo a conta de 1 a 13 respeitando mesma estrutura, até
chegar ao dia que antecede Q’anil (Kej), completando um giro pelos 20 dias desdobrados em 260.
112
260 dias do calendário ritual são mencionados. Entre os discursos do ajq’ij sobre um dia e
outro, diversas pessoas – eu incluso – aproximam-se da fogueira para jogar candelitas ao
fogo, geralmente de cores específicas associadas ao dia que acabava de ser mencionado. Boa
parte daqueles que conhecem o seu nawal103 ofertaram ao menos umas das candelitas
disponíveis quando chegava a sua vez.
Eu pessoalmente esperava mais desta cerimônia, no sentido de mais ofertas
espontâneas serem feitas pelos presentes. Ao contrário, poucas pessoas levaram algo além do
que havia sido proporcionado de antemão, e acabou faltando velinhas de uso comum antes da
hora. Minha expectativa foi frustrada, mas se devia especialmente ao fato de a ALMG ser a
principal instituição maya e eu saber que lá as questões calendáricas – e cerimônias em dias
específicos – eram estimuladas, principalmente esta.
Além disto, participei de cerimônias que, com menos estrutura, recursos e poucas
pessoas, em dias “normais” (sem a importância do Wajxaqib’ B’atz’), eram capazes de fazer
fogueiras bem maiores. As cerimônias deste dia especificamente, então, costumam ser
grandiosas em centenas de altares pela Guatemala, tanto em meio urbano quanto rural, daí eu
ter esperado mais, em se tratando também do meu primeiro Wajxaqib’ B’atz’ na Guatemala.
Uma vez que a noção de reciprocidade é central na espiritualidade maya, e os
ajq’ijab’ sempre dão ênfase na importância de acender suas candelitas e pagar ao nawal, esta
cerimônia me fez refletir sobre algumas questões. A experiência me fez questionar não a
autenticidade ou a espontaneidade da ocasião, mas antes a própria eficácia simbólica das
cerimônias mayas – especificamente daquela, e das cerimônias realizadas na ALMG. A sede
central já vinha revelando-se como um ambiente em que o afastamento da espiritualidade
maya por parte dos trabalhadores e da própria instituição é algo comum, algo que se evidencia
também a partir dos dados relativos à religião,104 coletados nos questionários.
Os momentos das conversas com os trabalhadores na academia foram
particularmente interessantes, não apenas revelando muito sobre as trajetórias de vida de
103 Cf. nota 70 nesta dissertação.
104 Apesar de alguns dos trabalhadores evitarem a noção de “religião”, foi interessante integrá-la ao
questionário. No fim das contas, a maioria revelou-se religiosa, e por outro lado a noção de “espiritualidade
maya” foi consideravelmente acionada, por vezes explicitando-a como uma noção que, ainda que possa
parecer, análoga à de religião, “espiritualidade” serve para marcar diferença em relação à religião: “ Las
prácticas ceremoniales religiosas sagradas en el Movimiento Maya han tenido diferentes matices. Se llaman
celebraciones espirituales mayas, porque garantizan supuestamente ‘originalidad’ maya, diferenciándola de
las ceremonias religiosas consuetudinarias sincréticas locales. Está ‘originalidad’ nace a raíz de que se
reivindica públicamente las ceremonias mayas” (MORALES SIC, 2004, p. 48).
113
alguns de meus interlocutores – que não são objeto desta dissertação – mas especialmente
reiterando algumas das questões que o campo havia apontado ao longo de quase dois meses
frequentando a instituição e o altar de Oxlajuj Aq’ab’al, enquanto seguia a contar os dias
mayas.
4.8 – QUESTIONÁRIO
105 Em alguns casos raros raros, sobre os quais tomei conhecimento na Guatemala, articula-se espiritualidade
maya e protestantismo. Fui informado pelo Meme (comunicação pessoal), inclusive, de que em alguns
lugares há notícia inclusive de ajq’ijab’ que são também evangélicos.
106 “Los especialistas religiosos apegados a las costumbres son aquellos que han mantenido un ritual
compaginado con el cristianismo, vinculados a una religiosidad sincrética y a una jerarquía político-
religiosa de respeto en muchos casos acoplados al sistema de cofradías. El trabajo de los especialistas que
manejan la costumbre durante mucho tiempo fue semioculto, clandestino o en muchas ocasiones relegados
en la marginalidad” (MORALES SIC, 2004, p. 91).
115
Quase 15% (8) destes indivíduos negaram serem mayas, hesitaram em identificar-se
assim (preferindo o termo “indígena”, “originário” ou “descendente”) ou declararam-se
“50/50” (remetendo à ideia de mestiçagem, e a uma representação de “parcialmente maya”).
Isto significa que 48 declaram-se mayas, 80% do total de 60, que inclui ainda 4 trabalhadores
que se identificaram como ladinos.
Ainda referente aos que afirmaram pertencimento a uma comunidade linguística,
cerca de 30% deles declarou não ter pleno domínio da língua maya e/ou estar estudando para
dominá-la. No caso daqueles que não dominam bem uma língua maya, há uma demanda no
116
COMUNIDADE QUANTIDADE DE
LINGUÍSTICA TRABALHADORES
Kaqchikel 33,92% (19)
K’iche’ 23,21% (13)
Mam 14,29% (8)
Sakapulteko 7,15% (4)
Tzutujil 7,15% (4)
Q’eqchi’ 1,785% (1)
Q’anjobal 1,785% (1)
Poqomchi 1,785% (1)
Poqomam 1,785% (1)
Ixil 1,785% (1)
Achi 1,785% (1)
Poqomchi/Q’eqchi’107 1,785% (1)
Kaqchikel/K’iche’ 1,785% (1)
Tabela 2 – Diversidade étnica maya entre os trabalhadores mayas da ALMG que responderam ao questionário.
107 Duas pessoas identificaram-se como pertencentes a duas comunidades linguísticas ao mesmo tempo, no caso
Poqomchi/Q’eqchi e Kaqchikel/K’iche’, evidenciando casamentos interétnicos como parte da construção da
mayanidade para alguns mayas. Outro exemplo interessante, que vai além das comunidades linguísticas
mayas inclusive, é o de Lorena Cabnal, que se identifica como uma feminista comunitária e maya-xinka.
117
a 13);108 17 não deram uma resposta parcial e não souberam dizer o número e cinco negaram-
se a informar o nawal parcial ou totalmente.109
Um aspecto interessante em relação ao nawal é que cerca de 13% (7 pessoas)
declararam que o conheceram na própria ALMG, número que possivelmente é maior que o
aferido uma vez que inicialmente o questionário não contemplava este detalhe. Isto confirma
a importância da ALMG enquanto circuladora de conhecimentos mayas, o que já era
esperado, mas por outro lado indica que muitos começam a adquirir “capital cultural maya”
apenas após começarem a trabalhar na ALMG, o que eu jamais imaginaria anteriormente.
Mais do que isso, a mesma tendência foi observada – de maneira ainda mais forte –
no que se refere à utilização do termo “maya” com implicações de autoidentificação. Se 7
pessoas declararam terem conhecido seu nawal na ALMG, nada menos do que 12 (21,8%) das
55 pessoas que responderam quando/como passaram a se identificar ou reconhecer como
mayas mencionaram a ALMG como determinante. Das 12 pessoas, nove nasceram nos anos
80 e 90, e as outras três tiveram contato com a ALMG não muito depois de sua formação
(durante o fim dos anos 80 ou o começo dos anos 90).
Isto revelou uma terceira tendência no que se refere à relação dos mais jovens com o
termo “maya”. Como mencionado, em geral pessoas deste grupo passaram a se identificar
como mayas na família ou durante a formação escolar (seja na escola ou na universidade).
Aqui, foi possível perceber que é até bastante comum – como eu também não esperava –
pessoas que se identificam como mayas após começarem a trabalhar na ALMG, ou durante a
seleção para o posto de trabalho. Neste caso, há a impressão de que reivindicar-se maya ou
adquirir uma consciência maya facilita a própria entrada na ALMG.
108 Em pelo menos 10% desses casos, entretanto, o nawal completo não coincidia com a data de nascimento (no
calendário gregoriano) fornecida no início do questionário.
109 O nawal de uma pessoa é também popularmente conhecido como seu “nombre maya”. Apesar de se tratar de
uma minoria, desde 2009 eu já havia me deparado na Guatemala com pessoas que se negam a contar seu
nawal, especialmente por proteção e desconfiança. Para estas pessoas, revelar sua identidade no calendário
ritual é como expor seu íntimo, sua alma, é revelar quem você é e te expor inclusive em suas debilidades,
podendo este conhecimento de sua intimidade ser usado contra você. Nestes casos, saber o nawal de alguém
que encara a questão desta maneira é uma verdadeira demonstração de confiança, que certamente eu não
poderia exigir em alguns minutos de conversa. Das pessoas que não quiseram revelar seu nawal, a mais nova
era nascida no começo dos anos 70, o que a meu ver é uma evidência de que a relação com os nomes
calendáricos mudou entre as novas gerações. Mesmo vários mayas bem mais experientes demonstraram não
encarar a revelação de seus nombres mayas como um tabu, nem minha pergunta como invasiva. É curioso
contrastar a postura de quem parece proteger o seu nawal em segredo, com a de intelectuais mayas como
Demetrio Cojtí, por exemplo, que não apenas não esconde seu nombre maya como usa-o na capa de seu
livro, incorporando-o à sua identidade e principalmente à identificação da autoria.
118
Na verdade, neste caso a ALMG aparece como o lugar mais associado à construção
da mayanidade dos trabalhadores, e fica atrás apenas da família, que 17 pessoas (30,9%)
mencionaram. Os ambientes escolares – em qualquer grau de formação – foram citados por
10 indivíduos (18,2%), sendo a terceira associação mais lembrada.
Quatro pessoas nascidas antes da década de 80 lembraram momentos históricos
importantes. Três delas (5,45%) mencionaram especificamente os acordos de paz (dezembro
de 1996) como um momento em que passaram a se identificar como mayas, e uma (1,8%)
rememorou a época dos 500 anos da invasão da América (1992).
Uma única pessoa citou a experiências nas lutas sociais como determinante para que
passasse a se identificar como maya, após os 30 anos de idade. Outras onze pessoas (20%)
responderam em termos temporais, relatando há quanto tempo se identificam como mayas ou
quantos anos tinham. Todas elas tinham entre 13 e 29 anos, e portanto todas estavam
virtualmente em uma idade escolar ou universitária. Delas, três (5,45%) são nascidas antes da
década de 80, e sua juventude coincidiu com o começo dos anos 90 (com a aprovação da lei
da ALMG, com os 500 anos da invasão, etc), e oito (14,55%) são nascidas nos anos 80, todas
elas descobrindo-se mayas no começo dos anos 2000.
O questionário terminou com quatro questões sobre a própria ALMG, que tinham por
objetivo estimular os interlocutores a dividirem suas impressões e opinarem sobre a
instituição. Ao serem perguntados sobre o que mais gostam na ALMG, a maioria mencionou o
ambiente com os colegas, a possibilidade de aprenderem mais o seu – ou outros – idioma(s)
maya(s) e praticarem falando no ambiente de trabalho.
Ademais, a sede central foi apontada como um ambiente livre de racismo e em que
as pessoas podem se expressar e vestir roupas indígenas sem problemas. Esta impressão geral
foi contrariada apenas pontualmente, em relatos de trabalhadores sobre a dificuldade de entrar
e estar na ALMG sendo ladino ou kaxlan (não-maya), ou sobre a barreira do traje para as
mulheres, que às vezes gostariam de vestir uma roupa “ocidental” mas não se sentem à
vontade para isto, como se isto colocasse sua mayanidade em risco frente aos outros colegas.
Posteriormente, indaguei sobre o que menos gostam na ALMG. Para além de alguns
problemas pontuais e comuns em ambientes de trabalho, a maioria falou acerca da instituição
e reclamou, seja da burocracia ou da estrutura da ALMG. A organização política da academia,
especialmente o fato de que todos os anos muda-se a presidência (além de toda a junta
119
diretiva), foi objetivo de críticas. Isto, por sua vez, reflete-se no senso comum de meus
interlocutores, de que há uma alta rotatividade de trabalhadores na sede central, sendo difícil
encontrar pessoas que estão ali ininterruptamente há quatro anos (período de mandato do
conselho superior da ALMG) ou mais. Estas críticas foram reiteradas espontaneamente tanto
por Amílcar Pop, quanto por Demetrio Cojtí, em suas entrevistas comigo. Ao mesmo tempo,
há uma consciência mais ou menos geral de que mudar isto implica necessariamente em
reformar a lei da ALMG junto ao congresso guatemalteco.
Menos de um quarto dos trabalhadores (14) disseram acreditar que a academia
representa bem os mayas sem fazer quaisquer ressalvas; 14 preferiram falar que a ALMG
representa, mas em termos percentuais a partir de 5%, que raramente chegaram aos 70%.
Mais de um terço (22), contudo, disse que a ALMG não representa bem os mayas, e metade
destes atribuiu isto mais enfaticamente à própria estrutura organizacional da ALMG, a uma
ausência da instituição no interior e junto às comunidades, e à omissão das lideranças nas
questões políticas nacionais.
No que se refere à representação (e autorrepresentação) dos mayas, apenas três dos
60 trabalhadores (5%) não deram qualquer resposta à pergunta “¿que es ser maya para
usted?”. Para minha surpresa, a definição do “ser maya” atrelada à língua foi mencionada
apenas 14 vezes (por 23,33% das pessoas), um número abaixo do que eu esperava por tratar-
se de uma academia de línguas. O termo mais mencionado foi “cultura”, 16 vezes (por
26,66% das pessoas). Destacaram-se também as definições implicando modo de vida e
cosmovisão, o vínculo com os antepassados e o uso dos trajes típicos.
Ainda implicando em aspectos relacionados à cosmovisão, nove trabalhadores
mencionaram uma relação de harmonia ou equilíbrio com a natureza como algo que
caracteriza os mayas. Este talvez seja um caso emblemático, que evidencia uma representação
dos mayas próxima à de Thompson, isto é, pacíficos e em harmonia com a natureza.
Apesar de que, em quase todos os casos, os trabalhadores responderam à pergunta
enquanto mayas (isto é, incluindo-se em sua percepção do que é ser maya desde uma
perspectiva “nativa”), inclusive nos contextos de menção aos mayas antigos. um conceito em
língua maya foi acionado uma única vez. Winaq seria o mais próximo ao conceito de
“pessoa”, que é também um termo costumeiramente associado ao número vinte (winiq).110
110 Neste sentido, winaq é associado a winiq, assumindo um significado de pessoa humana (de 20 dedos).
120
indivíduos. Os demais (23, ou 38,33%) citaram nominalmente intelectuais mayas, bem como
heróis históricos, como pode ser observado na tabela 4. Destacaram-se Rigoberta Menchú
Tum, citada por 5 pessoas, e Adrián Inés Chávez, fundador histórico da ALMK (k’iche’) e da
ALMG, e Atanasio Tzul,111 lembrados por 3 trabalhadores cada.
REFERÊNCIAS NÚMERO DE
MAYAS MENÇÕES
Rigoberta Menchú 5
Adrián Inés Chávez 3
Atanasio Tzul 3
Demetrio Cojtí 2
Andres Cuz 1
Antonio Pop Caal 1
Daniel Matul 1
Humberto Akabal 1
Irma Alicia 1
Lolita Chavez 1
Marcelo Vicente 1
Modesto Baquiax 1
Narciso Cojtí 1
Rosalina Tuyuc 1
Rosario Tuyuc 1
Tecun Uman 1
Tabela 4 – Pessoas mayas nominalmente mencionadas como referências pelos trabalhadores da ALMG.
Das 16 pessoas citadas, pelo menos 8 (50%) tiveram ou têm algum envolvimento
direto com a ALMG, seja no contexto da luta por sua criação, seja trabalhando na instituição
no passado ou no presente, incluindo até ex-autoridades do conselho superior. Quase todos
são relativamente bem conhecidos fora da ALMG, e no movimento maya visto de maneira
mais ampla, o que se aplica a todas as outras pessoas mencionadas e que não têm vínculo
histórico com a ALMG.
Acredito que os dados coletados são relevantes e poderão continuar servindo, no
111 Atanasio Tzul foi uma liderança indígena maya k’iche’, símbolo do levantamento indígena de Totonicapán
(Guatemala) em 1820, que estabeleceu governo próprio por quase um mês.
122
futuro, para pensar a ALMG e dar atenção especial a alguns aspectos que ficaram de lado,
quando eu próprio puder assentar mais as informações compartilhadas por meus
interlocutores. Entretanto, ficou claro tanto pelo tempo em campo, quanto pelos questionários
e entrevistas, que há demanda por uma reforma da lei para corrigir o que muitos mayas – eu
incluso – entendem como uma brecha que dificulta a continuidade dos trabalhos da ALMG,
especialmente na sede central e na presidência.
123
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação buscou uma análise dos usos históricos do termo “maya”, bem como
de sua apropriação que permitem afirmar que (1) os “mayas” são uma invenção moderna,
sendo necessário para entendê-la voltar, como sugere Wainwright (2008), a atenção à
arqueologia do mayanismo e à história do campo acadêmico mayanista; (2) que a definição e
representação de quem é maya e do que é ser maya esteve, desde o século XIX, em disputa na
academia; (3) que portanto, as disputas pela definição ou representação dos mayas existem
com e sem os mayas, em que a ciência mayanista – em especial a linguística –, bem como as
representações mayanistas podem desempenhar um papel importante na afirmação e
legitimação da apropriação do termo “maya” enquanto categoria identitária entre os mayas
contemporâneos; (4) que os intelectuais mayas tiraram proveito de uma tremenda
oportunidade política (TARROW, 2011) com a saída dos militares do poder e a transição para
a paz, conseguindo dentre outras coisas criar a Academia de Lenguas Mayas e incorporá-la ao
Estado; (5) que existem muitas disputas em torno do “maya”, e mais controvérsia do que
espaço e tempo nesta dissertação.
Se hoje existem “disputas pela identidade maya”, questão que me afetou primeiro no
campo e razão para escrever esta dissertação, certamente é também pelo fato de que a
definição ou representação dos mayas sempre esteve em disputa, tanto na academia quanto no
caldeirão guatemalteco da segunda metade do século XX.
As representações dos mayas antigos, como sugere Wainwright (2008), foram
também cunhadas a partir de uma ciência liberal desde o século XIX, no momento em que as
ciências humanas e sociais estavam se institucionalizando nas universidades, e as próprias
disputas se deram naquele contexto. Está evidente que, neste mesmo contexto, a definição do
maya tornou-se objeto de disputa desde muito cedo, com atenção especial dada os calendários
– à astronomia – e à escrita hieroglífica. Muitos mayanistas construíram uma história
grandiosa para os mayas, concedendo a eles um passado comparável aos dos gregos ou
egípcios; ao mesmo tempo, vários deles não viam nos indígenas seus contemporâneos
qualquer brilho do passado ou qualquer futuro que não fosse a assimilação.
Mayanistas como Thompson e Schele ajudaram a mudar o paradigma preconceituoso
de muitos mayanistas do passado, que diminuíam os mayas contemporâneos. Trabalharam
para evidenciar a continuidade cultural maya e, no caso de Schele e Grube, interferiram
124
112 O principal injetor de recursos no movimento maya historicamente é a Noruega. Sobre a cooperação
internacional norueguesa, de financiamento de movimentos e organizações indígenas na América Latina, Cf.
BARROSO-HOFFMAN, 2009.
125
do século XX e ainda está em curso. Os mayas seguem reconstruindo e dando novos sentidos
ao que é ser maya. Se a reivindicação da identidade maya começou a tomar corpo e conquistar
espaço permanente na agenda nacional – e dentro do Estado –, a partir de uma elite intelectual
e universitária, o movimento pan-maya é uma abstração de algo muito mais amplo a partir do
momento em que a identidade maya generaliza-se na Guatemala.
Isto fez com que uma série de problemas e mesmo conflitos internos surgissem,
indicando que trata-se de um movimento identitário ao mesmo tempo muito diverso, disperso
e atravessado por outras lutas e movimentos sociais – que, como visto, precedem a própria
conformação de um movimento maya. A unidade política em torno da identidade pan-maya é
buscada por diversos grupos, com projetos diferentes ou mesmo conflitantes que devem ser
situados na estrutura social guatemalteca. No âmbito das estratégias de unidade por via
culturalista, são recorrentes tentativas de “unificar o calendário maya” e assim estabelecer
uma espécie de “hegemonia”.
Entretanto, a posição mais honesta que eu deixaria aos mayas nestas palavras finais é
a de que é preciso buscar uma unidade para além da solidariedade étnica ou da celebração do
ano novo no mesmo dia. Os essencialismos, ainda mais no caso de uma identidade tão diversa
e ao mesmo tempo tão capitalizável quanto a maya, servem apenas para dividir ainda mais os
mayas a partir do momento em que se prioriza disputas pela definição do que é maya, e de
quem é mais maya do que o outro, em detrimento das lutas coletivas. Os mayas do passado
serão sempre lembrados, e os calendários até eu seguirei contando, mas eles não têm poder
para mudar o Estado e a estrutura que perpetua a desigualdade, e usá-los para reiterar
desigualdades é ainda pior.
126
6 – BIBLIOGRAFIA
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132
ANEXO 1
MODELO DE QUESTIONÁRIO
QUESTIONÁRIO Nº ____
DATA: ____/____/______
LOCAL: ___________________
NOME: ____________________________________________________________
DATA DE NASCIMENTO: ____/____/______
CARGO NA ALMG: _________________________________________