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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA

THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI

ENTRE MAYAS, MAYANISTAS E O ESTADO:


A INVENÇÃO DOS MAYAS, O MOVIMENTO MAYA E A ACADEMIA
DE LENGUAS MAYAS DE GUATEMALA

NITERÓI
2017
THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI

ENTRE MAYAS, MAYANISTAS E O ESTADO: A INVENÇÃO DOS MAYAS, O


MOVIMENTO MAYA E A ACADEMIA DE LENGUAS MAYAS DE GUATEMALA

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para obtenção do título
de mestre em Sociologia.

Orientador:
Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres (PPGS/UFF)

Niterói
2017
FICHA CATALOGRÁFICA

C376l Cavalcanti, Thiago José Bezerra.


Entre mayas, mayanistas e o Estado: a invenção dos mayas, o movimento maya
e a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala. / Thiago José Bezerra Cavalcanti –
Niterói, 2017. 132 f.
Orientador: Sidnei Clemente Peres.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal Fluminense,
Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Programa de Pós-Graduação em
Sociologia, 2017.
Bibliografia: f. 126-131.

1. maya. 2. mayanismo. 3. movimento maya. 4. ALMG. I. Peres,


Sidnei Clemente. II. Universidade Federal Fluminense, Instituto de
Ciências Humanas e Filosofia. III. Título.

CDD 300.306 C377


THIAGO JOSÉ BEZERRA CAVALCANTI

ENTRE MAYAS, MAYANISTAS E O ESTADO: A INVENÇÃO DOS MAYAS, O


MOVIMENTO MAYA E A ACADEMIA DE LENGUAS MAYAS DE GUATEMALA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para obtenção do título de mestre em
Sociologia.

Aprovada em 27 de abril de 2017 (6 Q’anil) e publicada em 9 de maio de 2017 (5 Junajpu)

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres – UFF


Orientador

Prof.ª Dr.ª Thereza Cristina Cardoso Menezes – UFRRJ

Prof. Dr. Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque – UERJ

Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga – UFF (suplente)

Niterói
2017
5

A todos os mayas e mayanistas dispostos


à reflexão sobre si e os outros para além
das prisões essencialistas e máscaras
do passado.

Principalmente, em memória
ao camarada, maya e comunista,
Sócrates Tejaxún Sunic (Kame Tijax, ¡PRESENTE!),
“kaqchikel consecuente, antiimperialista,
promotor del pensamiento crítico,
que ahora se convierte en nuestro ancestro”
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES), pela bolsa a mim concedida durante os 24 meses de mestrado,
fomento fundamental para minha manutenção cotidiana e frequência à universidade durante
as disciplinas e sempre que necessário, além de servir para a aquisição de materiais úteis à
pesquisa e custeio de viagens para a apresentação de trabalhos em eventos científicos de
extrema relevância não apenas para a área de sociologia, como a ANPOCS, como também
para os estudos mesoamericanos.
Com maior destaque, agradeço – em ordem alfabética – às mais de trinta pessoas que
contribuíram financeiramente com minha campanha de financiamento coletivo para ir à
Guatemala em 2016: Alex de Abreu (“Jesus”), Aline Stéfanie, Ana Paula Germano, Anderson
Santos Silva, Antonio Amaral Serra, Brasiliano Cavalcanti, Christoph Seeger, Clara Lucia
Delage Lemos, Daniel Clark Orey, Daniel Grecco Pacheco, Daniele Lemos Moreira, Ester
Bertoldi Germano, Flávio Almeida Reis, Irene Portela, José Germano, Juliana Willars,
Luciano Pita, Marcia Moraes, Maria Barroso, Mario Quiñones, Maristela Zancan, Patrick
Silva dos Santos, Pedro Henrique Jotta, Rafael de Sá Roque, Roberta Maia, Samara Braga do
Nascimento, Sandra Leite, Sandra Mara Jotta, Sibele Cazelli, Sidnei Peres, Sid Hollander,
Tania Jotta e Verônica Tavares de Freitas.
Sem a sua contribuição, esta pesquisa não teria sido possível, o que é ainda mais
verdadeiro tratando-se de um mestrado que coincidiu com os momentos mais delicados (isto
é, de maior retração) para o financiamento científico no Brasil neste século XXI (e talvez em
toda a história).
A grande maioria destas pessoas não está diretamente relacionada à academia em
geral ou aos estudos mayas e mesoamericanos em específico, aumentando a minha
responsabilidade no que se refere a uma tentativa de diálogo maior com o público para além
da academia, de quem nesta pesquisa mais do que nunca, sem dúvida, tornei-me debitário.
Agradeço, em seguida, à minha família, em especial à minha mãe, Sandra Mara, por
ter proporcionado a estrutura necessária para poder dedicar-me mais aos estudos e à formação
acadêmica continuada. Tornei-me o primeiro graduado por uma universidade pública na
família, e agora o primeiro mestre, o que certamente é uma grande conquista mas acima de
7

tudo um privilégio que é resultado de muitos anos de investimento da família e de amigos e


colaboradores em mim e nos projetos por mim propostos.
Às minhas desorientadoras da graduação, as Professoras Doutoras Sylvia Schiavo e
Marcia Moraes, reitero meu agradecimento por terem participado da minha trajetória de
formação. Ainda que nos últimos dois anos não tenhamos estado tanto juntos, tão próximos
quanto antes, certamente nossos encontros ainda renderão muitos bons frutos.
Ao meu orientador do mestrado, Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres, pela confiança e
pela aposta em mim e no meu crescimento enquanto um investigador capaz da autocrítica e de
repensar e abandonar posturas demasiado culturalistas e essencialistas. Por aceitar receber a
mim e quase um terço da minha turma do mestrado como orientandos, e comprar brigas
conosco quando necessário, prolongando seu período como membro do programa por nossa
causa, acreditando e apostando que seríamos capazes de escrever excelentes dissertações,
expectativa que felizmente se confirmou no momento oportuno.
A todos que contribuíram de alguma maneira no meu crescimento enquanto
investigador e pessoa, e que acompanharam minha trajetória como discente pela Universidade
Federal Fluminense, desde a graduação em Ciências Sociais, passando pela graduação em
Antropologia e agora pelo mestrado em Sociologia, em que se encerra um ciclo de mais de
seis intensos anos, construídos com muito “maya”, política e contradições.
A todos os colegas do mestrado com quem dividi os momentos de sala de aula, bar e
reuniões, especialmente Ana Cristina dos Santos Araújo, João Pedro de Lima Campos (Little
John), Rudolph Hasan Gomes, Felipe Bastos de Faria, Daniele Lemos Moreira, Patrick Silva
dos Santos, Giuliana Monteiro, Verônica Tavares de Freitas, Maurício Wilson Camilo da Silva
e Lohania Lacerda, além de Daniele Sandes Machado, que foi secretária do programa durante
a maior parte dos meus 24 meses de mestrado e com quem aprendi um bocado sobre as
burocracias da pós.
Às professoras que integraram a banca de qualificação por suas contribuições. À
Prof.ª Dr.ª Gláucia Oliveira da Silva, e especialmente à Prof.ª Dr.ª Maria Macedo Barroso, que
contribuiu diretamente também para a minha formação no mestrado e para pensar questões
éticas e o meu próprio lugar como um antropólogo-sociólogo que pode ser visto por setores
do movimento maya como um potencial mediador com outros agentes.
Minha eterna gratidão a todos os velhos e novos amigos que me acompanharam
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durante todo o meu período no México (alô, tio Rafa, “Memo” Kantún, William Mex, Sid
Hollander, Angela Fernandez e Ivan Vallado!) e na Guatemala (Julio Menchú, Carlos Cruz-
Gómez, Salvador Montufar, Oscar Rolando Gutiérrez, “Chaparro”, “Enano”…), nos pouco
mais de 78 dias em que estive fora do Brasil para a realização do trabalho de campo.
Em especial, agradeço ao camarada portuga e mayista, José Miguel Pimenta-Silva,
que me ofereceu abrigo e companhia na Guatemala como a de um irmão. Também à sua
companheira Elizabeth Elena Esperanza Escobar Sayes (Lizy), e toda a sua família,
especialmente os dois filhos do casal, William Benjamín Ezequiel Miranda Escobar (Benji) e
Iván Alberto Miranda Escobar, e à avó dos meninos, María Elena Sayes Barrientos. Vivi com
os quatro, mais cerca de dez companheiros (dois cachorros e todos os outros, gatos), na cidade
de Mixco, a menos de meia hora, com María como vizinha. Muchas gracias por terem me
acolhido em sua casa durante dois meses em que mudei sua rotina enquanto vocês faziam o
máximo para que eu me sentisse o mais acolhido possível, o que apenas aumentou em mim os
sentimentos de carinho e saudades quando de minha partida da Guatemala.
Meu maior respeito e agradecimento ao historiador, doutor em ciências sociais,
Edgar Arturo Esquit Choy (Oxlajuj E), maya kaqchikel que trabalha como investigador no
Instituto de Estudios Interétnicos (IDEI) da Universidad de San Carlos de Guatemala
(USAC). Edgar foi meu coorientador durante o meu período na Guatemala, e além participar
diretamente do processo de elaboração do questionário aplicado nesta pesquisa e, desejamos,
de desdobramentos desta pesquisa, trocamos impressões e informações sobre o movimento
maya, seus setores mais culturalistas e essencialistas e os usos contemporâneos dos
calendários mayas.
Durante o período em campo, no que se refere ao levantamento de dados para a
pesquisa, nenhuma pessoa foi mais importante, nos contextos fora da Academia de Lenguas
Mayas de Guatemala, do que Meme (Manuel de Jesús Poroj Abac), que além de meu
conselheiro fez contatos e conseguiu tempo para mim na agenda de Demetrio Cojtí e Amílcar
Pop. Aproveitei esta oportunidade, que tive graças a ele, para entrevistar estes que são, sem
dúvida, dois dos mayas mais conhecidos e influentes da Guatemala nos séculos XX e XXI, a
quem também agradeço por sua disponibilidade e atenção para comigo. Estendo meu
agradecimento também a Enrique Salguero, crítico da Academia Maya a quem também
entrevistei, apesar de a entrevista não ter sido utilizada nesta dissertação.
9

Agradeço profundamente a todos os trabalhadores da sede central da Academia de


Lenguas Mayas de Guatemala, principal espaço do meu trabalho de campo na Guatemala,
principalmente àqueles que aceitaram responder ao questionário proposto por mim. Em
especial, agradeço ao então presidente da instituição (gestão 2015/2016), Mario Roberto
Aguilón Crisóstomo, por ter concedido sua permissão oficial para a minha realização da
minha investigação naquele lugar.
Deixo dos y tres veces gracias àqueles que mais contribuíram para minha
ambientação na sede central e me fizeram companhia durante as semanas em que a frequentei,
com destaque para Marcelo Vicente, Arnulfo Juárez, Ana Graciela Alfaro Yanes, Julio
Vasquez, José Diego Chivalán Osorio, Rosario Tuyuc, Teodora Torres e Melva Mendoza.
Agradeço à minha companheira, Ana Paula Germano, pela paciência, carinho, apoio
e ajuda com a revisão do texto da dissertação, organização de referências, diagramação de
quadros e tabelas, etc, além das cervejas e momentos de lazer que ajudaram a me desestressar
nos piores momentos e segurar a barra, defendendo a dissertação com louvor e dentro do
prazo.
Meu mais sincero agradecimento, também, a Maristela Zancan por seu apoio de
quase dez anos, e por ter ajudado com a transcrição de entrevistas e na revisão do texto,
previamente ao envio para a banca. Por terem contribuído com esta mesma revisão, deixo
explícito meu reconhecimento aos mayistas Petras Antonelli e Daniel Piuma, que cederam
parte de seu tempo para ler, comentar e revisar o texto da qualificação também previamente
ao envio para a banca.
Já encaminhando para o final destes agradecimentos, mas não menos importante,
agradeço aos membros da banca de defesa desta dissertação, que dentre outras razões foi
completamente diferente da banca de qualificação por conta da incompatibilidade de horários.
Ao Prof. Dr. Felipe Berocan Veiga, como suplente e professor de uma disciplina obrigatória
durante o mestrado, por seu apoio e sua compreensão, especialmente no meio do curso;
tentarei retornar às suas indicações para futuras comparações com contextos de etnicidade
concernentes ao movimento negro, que em muitos aspectos é mais comparável ao movimento
maya do que o movimento indígena brasileiro.
À Prof.ª Dra.ª Thereza Cristina Cardoso Menezes, pelos comentários extremamente
positivos e o incentivo para retomar o projeto de fazer comparações entre instituições mayas
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de cunho “culturalista” e “materialista”, previsto na qualificação mas inviabilizado durante o


campo. Ao Prof. Dr. Marcos Alexandre dos Santos Albuquerque pelos comentários e
sugestões igualmente pertinentes, bem como para atentar para o horizonte comparativo com o
próprio contexto dos movimentos indígenas no Brasil e a “invenção do Nordeste”, assim
como.
Finalmente, agradeço aos mayas e aos 260 nawales, pois foi pelo fascínio em estudá-
los e pela vontade de fortalecer os estudos mayas no Brasil e em língua portuguesa que
cheguei até aqui. Espero que esta dissertação seja uma boa contribuição para que os mayas, os
guatemaltecos em geral, e inclusive os mayanistas, repensem e desnaturalizem o termo
“maya” e a incorporação de representações que favorecem apenas versões culturalistas e
essencialistas dos mayas e exaltam a antiga elite governante em detrimento da massa de
mayas do passado e do presente.
Isto mesmo é que me deixaria verdadeiramente grato, e com o sentimento de “dever”
cumprido; que o meu próprio esforço em me despir dos essencialismos e “elitismos” mayas
possa inspirar – ou pelo menos provocar – mais pessoas a perceberem para além dos
diácriticos mais valorizados e capitalizados historicamente pelos “outros” – e principalmente
pelos mayanistas – como índices “verdadeiros” ou “superiores” de mayanidade.
Ser maya pode ser, e é, muito mais do que um conjunto de traços culturais que,
quando averiguados, remetem ou não às antigas elites mayas. Sou grato, como sugeriu a
banca de defesa, por ter conseguido me despir bastante das minhas expectativas e
preconceitos essencialistas ou demasiado culturalistas/tradicionalistas, e desejoso de ter
produzido um texto sensível, que ao mesmo tempo é crítico mas evita conscientemente muitas
tensões do campo específico e do movimento em geral, na esperança de que sirva como uma
semente de diálogos sobre a importância da própria “invenção” dos mayas e as questões
intelectuais e ideológicas “embutidas” nas diversas apropriações possíveis deste termo
enquanto uma categoria identitária.
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“O samba reinou a noite inteira


de uma tal maneira…
Que espantou tristeza (…)
O samba é minha raiz (…)
Me guia na minha incerteza
Não me deixa tropeçar”

Dona Ivone Lara e Délcio Carvalho


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RESUMO

Esta dissertação trata o “maya” como uma construção que se dá, primeiro, entre os
mayanistas, e posteriormente é apropriado pelos indígenas guatemaltecos falantes de línguas
mayas. Uma contextualização acerca dos usos históricos do termo “maya” demonstra que ele
jamais teve as implicações que têm atualmente durante todo o período colonial. Os mayas são
definidos cultural e linguisticamente nos séculos XIX e XX, e durante a guerra civil na
Guatemala intelectuais indígenas começaram a se identificar como “mayas”. O movimento
maya cresceu ao longo dos anos 80, quando a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala
(ALMG) foi criada como a primeira ventanilla indígena ou uma autarquia federal junto ao
Estado guatemalteco. Busca-se historicizar os usos do termo “maya” e continuidades e
descontinuidades em relação às representações dos mayas, dando atenção aos intelectuais
mayas e mayanistas como produtores e reprodutores do “maya”. Além disto, a dissertação
dedica-se bastante à Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, principal instituição maya
contemporânea e que possui um evidente cunho intelectual e burocrático, estando imersa em
ambiguidades entre um discurso oficial de autonomia e uma dependência do Congresso para
reformar a si mesma na prática.

Palavras-chave: maya, mayanismo, movimento maya, ALMG.


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RESUMEN

Esa tesis trata lo “maya” como una construcción que ocurre, primeiro, entre los mayanistas, y
despues es apropriado por los indígenas guatemaltecos hablantes de lenguas mayas. Una
contextualización acerca de los usos historicos del término “maya” demuenstra que al largo de
todo el periodo colonial el jamás tuvo las implicaciones que actualmente tiene. Los mayas son
definidos cultural y linguisticamente en los siglos XIX y XX, y luego de la guerra civil en
Guatemala intelectuales indígenas empezaron a identificarse como “mayas”. El movimiento
maya creció durante los años 80, cuando la Academia de Lenguas Mayas de Guatemala fue
creada como la primera ventanilla indígena o una autarquia federal en el Estado guatemalteco.
Se busca historicizar los usos del término “maya” y sus continuidades y descontinuidades en
relación con las representaciones de los mayas, con atención a los intelectuales mayas y
mayanistas como productores de lo “maya”. Además, la tesis también se dedica mucho a la
Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, la principal institución maya contemporánea y
que tiene un claro cáracter intelectual y burocrático, estando en una ambigüedad entre un
discurso oficial de autonomia y una dependencia del Congreso para reformar a si misma en la
práctica.

Palabras-clave: maya, mayanismo, movimiento maya, ALMG.


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ABSTRACT

This thesis treats “maya” as a construction, first made by mayanists and then appropriated by
guatemalan indigenous, speakers of mayan languages. A contextualization about the historical
uses of the “maya” term demonstrates that during the whole colonial period it never had the
implications it has today. The maya are culturally and linguistically defined in 19 th and 20th
centuries, and during the civil war in Guatemala indigenous intellectuals start identifying
themselves as “maya”. The maya movement grew during the 80’s, when Academia de
Lenguas Mayas de Guatemala was created as the first indigenous ventanilla or a federal
autarchy within the Guatemalan state. This thesis seeks to historicize the uses of the “maya”
term and continuity and discontinuity regarding representations of the maya, with particular
attention regarding maya and mayanist intellectuals as producers of the “maya”. This thesis is
also much dedicated to the Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, the most important
contemporary maya institution that has a clear intellectual and bureaucratic character, being in
an ambiguos situation between an official discourse of autonomy and a dependence of the
Congress to reform itself in practice.

Keywords: maya, mayanism, maya movement, ALMG.


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SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO……………………………………….………………………………….20
1.1 – NOTAS DISPERSAS……………………………..…………………………………28
1.2 – CONSIDERAÇÕES INICIAIS…………………..………………………………….31
1.3 – JUN NO’J – PENSANDO E INICIANDO OS TRABALHOS……………………..33
2 – A INVENÇÃO DOS MAYAS…………………………………………………………….36
2.1 – “MAYAS” NO PERÍODO COLONIAL (SÉCS. XVI-XIX)…….………………….36
2.2 – A INVENÇÃO DOS MAYAS, O MAYANISMO E OS MAYANISTAS………..….44
2.2.1 – NOTAS SOBRE CONCEITOS DIVERGENTES DE MAYANISMO…….….57
2.3 – OS MAYAS…………..……………………………………………………………...61
3 – ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA (SÉCS. XX-XXI)……………………………71
3.1 – A ETNOGÊNESE MAYA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA POLÍTICA
GUATEMALTECA…………………………………………………………………..……….71
3.2 – ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA COMO PROJETO INTELECTUAL
INDÍGENA…………………………………………………………………………….……..77
3.3 – O “CAPITAL CULTURAL MAYA” E A RELAÇÃO ENTRE MOVIMENTO MAYA
E ESQUERDA…………………………………………………………….………………….84
4 – EXPERIÊNCIAS EM CAMPO E A ACADEMIA DE LENGUAS MAYAS DE
GUATEMALA…………………...…………………………………………………………...87
4.1 – O RETORNO À GUATEMALA E O TRABALHO DE CAMPO.………...……….91
4.2 – A CHEGADA À ALMG.…………………………………………………………....94
4.3 – A BUSCA PELA HISTÓRIA DA ALMG…………………………………...…...….95
4.4 – HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DA ALMG……………………………………….96
4.5 – A SEDE CENTRAL DA ALMG...……………………………………………...….105
4.6 – LOGOTIPO DA ALMG E IMAGEM DO INTELECTUAL MAYA...……………107
4.7 – WAJXAQIB’ B’ATZ’….……...……………………………………….….….….…109
4.8 – QUESTIONÁRIO……………………………………………………..….….….…113
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………….…...……....123
6 – BIBLIOGRAFIA…......…………………………………………………….….….….…126
ANEXO 1……………………………………………………..….….….….….….….….…..132
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Fig. 1 Lista de mayanistas ao longo da história, f. 51.

Fig. 2 Mapa da Mesoamérica, incluindo as atuais fronteiras nacionais e


subregiões mesoamericanas, com a área maya destacada em verde, f. 65.

Fig. 3 Mapa da área maya dividida em terras baixas (lowlands) e altas


(highlands), f. 67.

Fig. 4 Mapa da área maya subdivida em setentrional, central e


meridional, f. 68.

Fig. 5 Tronco linguístico maya, f. 69.

Fig. 6 Mapa linguístico da Guatemala, elaborado a partir do


regulamento da Ley de Idiomas Nacionales, f. 72.

Fig. 7 Sede central da ALMG vista de fora; entrada principal, f. 106.

Fig. 8 Indícios dos usos passados da sede central da ALMG pelos


militares , f. 108.

Fig. 9 Logotipo da ALMG, f. 109.

Fig. 10 Cerimônia de Wajxaqib’ B’atz’, f. 111.

Fig. 11 Após a cerimônia de Wajxaqib’ B’atz’, com a bandeira maya no


topo, à direita, f. 112.
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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Usos do termo “maya” em documentos coloniais em língua


maya, f. 43.
Quadro 2 Termos de autoidentificação utilizados pelos mayas com
potencial implicação étnica, f. 44.

Quadro 3 Cronologia simplificada da Mesoamérica, f. 67.


18

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Dados preliminares coletados a partir da aplicação do


questionário, f. 116.

Tabela 2 Diversidade étnica maya entre os trabalhadores mayas da


ALMG que responderam ao questionário, f. 117.

Tabela 3 Termos e sentidos usados pelos trabalhadores da ALMG para


(auto)definir os mayas, f. 121.

Tabela 4 Pessoas mayas nominalmente mencionadas como referências


pelos trabalhadores da ALMG, f. 122.
19

“Os homens fazem a sua própria história,


mas não a fazem segundo a sua livre vontade;
não a fazem sob circunstâncias de sua escolha
e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente,
legadas e transmitidas pelo passado.
A tradição de todas as gerações mortas
oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos.”

Karl Marx
20

1 – INTRODUÇÃO

A escrita é, ao mesmo tempo, estrutural e conjuntural. As letras organizadas e


significadas tendem a não mudar tanto com o passar das décadas, mas as situações históricas
em que pensamentos e discursos são produzidos sim, bem como o espírito de cada autor
diante do mundo e de si. Ademais, considerando que se trata de um trabalho de conclusão de
curso, há toda uma aura de formalidade, e de uma peça destinada a conferir autoridade ao
autor.
Por premissa, contudo, esta investigação parte justamente da necessidade de se
questionar qualquer autoridade absoluta, o que se aplica especialmente a mim e à academia
em geral. Aqui, fica uma sensação de que quanto maior a “comunidade imaginada”, 1 e quanto
maior a diversidade étnica e histórica que ela abranger, mais difícil imaginar a possibilidade
de uma única definição do que é ser pertencente a esta comunidade. Neste sentido, ser maya 2
ganhou, ao longo do tempo, inúmeros significados globais, nacionais, regionais, locais e, cada
vez mais, até subjetivos.3 Eu mesmo me vi direta e bastante envolvido nas inúmeras questões
que serão aqui levantadas.
Assim como já havia feito à ocasião do texto apresentado na qualificação como
versão preliminar desta dissertação, é pertinente expor minha trajetória, que influencia todas
as escolhas por mim feitas aqui e ao menos pode também explicar aos leitores parte delas.
1 Benedict Anderson conceitua comunidade imaginada da seguinte maneira: “In an anthropological spirit,
then, I propose the following definition of the nation: it is an imagined political community – and imagined
as both inherently limited and sovereign. It is imagined because the members of even the smallest nation will
never know most of their follow-members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the
image of their communion” (ANDERSON, 1983, pp. 5-6).
2 Em geral, o termo “maya” – salvo quando trato do período colonial – é sempre utilizado ao longo do texto
como sinônimo de “pan-maya”, isto é, refere-se genericamente ao grande agrupamento pertencente ao
tronco linguístico maya. Note-se que tal alternância entre “pan-maya” e “maya” como sinônimos é bastante
comum, especialmente no “movimento maya”, e que qualquer referência pouco contextualizada ao “maya”
acaba implicando na generalização “pan-maya”. Neste sentido, qualquer referência não explicada de outra
maneira ou não explicitada com o acompanhamento da categoria referente a cada comunidade linguística
(“maya k’iche’”, “maya mam” etc) sempre pode ser tomada de maneira mais abrangente. Além disto, o uso
da grafia “maya”, com a letra y e sem itálico, é uma escolha política tomada durante o trabalho de campo e
em consonância com meus interlocutores e com o próprio movimento maya. Esta grafia foi previamente
utilizada em português, até a imposição da grafia “maia”, e é minha intenção portanto resgatá-la, o que está
em consonância também com a própria etimologia da palavra e seus usos históricos. Não faz-se necessário,
entretanto, grafá-la como estrangeira, mas antes (re)incorporá-la na escrita sobre – e COM – os mayas em
língua portuguesa.
3 Ao estudar as relações raciais contemporâneas no contexto negro, Carlos Gadea conclui que “a experiência
negra e as relações raciais têm mudado seus contornos culturais, sociais e políticos, desenhando-se
identidades individuais distintas daquelas ancoradas na associação entre negritude e africanidade” (GADEA,
2013, p. 123). Neste sentido, as definições do que é “ser negro” ou “ser maya” podem ser, cada vez mais,
individualizadas.
21

Durante a seleção de mestrado, me defini como uma espécie de “nativo” de mim mesmo
naquele pré-projeto,4 alguém que se viu envolvido em disputas pela própria definição do que é
“maya” por mais de 10 anos; um “mayanista” – ou pelo menos alguém que se identificou
como tal durante todo este tempo. Como poderá ser visto ao longo do texto, não por acaso eu
acabo por revisitar criticamente minhas publicações anteriores, principalmente graças ao meu
uso, no passado, de um conceito de mayanismo bastante diferente daquele que é utilizado
nesta dissertação.
Ainda no fim do ensino fundamental, início do ensino médio, 5 tive meu primeiro
contato com os mayas enquanto pesquisador, na virada do milênio. Mesmo num grau de
formação incipiente, acredito que tenha sido uma excelente experiência que, sem dúvida,
mudou a minha vida. À época, tratou-se de uma oportunidade única: um trabalho livre e
interdisciplinar que servia como avaliação universal do bimestre na escola. Como autodidata,
elegi a astronomia para desenvolver três trabalhos distintos; um deles foi apresentado com o
título de “arqueoastronomia pré-colombiana”.
Durante as primeiras pesquisas para aquele trabalho, conheci a página holandesa
Maya Astronomy,6 em que, além da astronomia e dos calendários, pude ter alguma noção
sobre matemática maya (vigesimal) que, à época, recebeu minha atenção de maneira
concomitante à matemática inka (decimal). Muito tempo depois é que fui perceber mais
conscientemente que aquela ideia de “arqueoastronomia” implicava também nas de
“arqueociência” e, num termo talvez ainda mais abrangente, “etnociência”, para muito além
da astronomia e da matemática. Ao me aproximar de “outras” epistemologias cedo, por outro
lado, eu fui ao mesmo tempo assumindo um caminho distinto ao da naturalização das
fronteiras disciplinares acadêmicas.
Após um hiato relativamente longo, em 2005 voltei meus interesses novamente aos
mayas – e dessa vez somente aos mayas. Interessava-me a aplicação daquele conhecimento
matemático, com o qual já tinha alguma familiaridade, às contagens de tempo. A chamada
“conta longa”, o grande calendário de onde advém, de acordo com a correlação popularizada, 7
4 Disponível em http://let.tcavalcanti.in/arquivos.
5 Minha formação até a sexta série se deu quase toda no Colégio Marília Mattoso, onde tive uma bolsa de
estudos por vários anos; de lá, fui para o Colégio Estadual Aurelino Leal, o Instituto Fênix e o Colégio Plínio
Leite (estes dois últimos já nesta transição), terminando a maior parte do Ensino Médio entretanto no Centro
de Estudos Supletivos (todos situados em Niterói).
6 Disponível, até hoje, no mesmo endereço: http://www.michielb.nl/maya.
7 Cf. capítulo 2 desta dissertação.
22

o “ciclo de 2012”, que eu havia conhecido nas primeiras pesquisas, já que se trata de uma
aplicação mais intuitiva da matemática posicional dos mayas às contagens de tempo. Faltava-
me adentrar com maior detalhamento os calendários de 260 e 365 dias; não tardou para que as
reconhecesse como aquilo que são: as contas mais usadas em toda a Mesoamérica,8 e não
apenas entre os mayas.
Antes de realmente começar a entender aqueles ciclos, contudo, deparei-me com uma
triste realidade: praticamente inexistia conteúdo em português sobre o calendário maya na
rede mundial de computadores. Qualquer pesquisador interessado no assunto seria conduzido
a uma apropriação new age, então conhecida como “calendário da paz” (cdp) e que tem sua
versão sui generis (“neomaya”) dos calendários de 260, 364 e 365 dias, ainda hoje
propagando desinformação acerca dos mayas. Além disto, o único acadêmico “mayanista” 9
com carreira realmente estabelecida nas universidades de língua portuguesa até então, e que
eu viria a conhecer (por suas obras) alguns anos despois, Franz Joseph Hochleitner, 10 já estava
em idade avançada e vias de reclusão.
Acredito que o fato de conhecer a base da matemática maya e da “conta longa” foi
determinante para que eu soubesse diferenciar o calendário maya do cdp. Sabendo que este
conhecimento prévio é pouco comum, engajei-me em iniciativas de esclarecimento acerca das
diferenças entre aqueles calendários, produzindo conteúdo em português acerca do calendário
maya, o que fiz especialmente entre 2006 (ano da criação do Projeto CMAIA) e 2010
enquanto pesquisador independente. Ao afirmar que as apropriações new age do calendário

8 Mesoamérica é uma área cultural, definida inicialmente por Paul Kirchhoff em 1943 (KIRCHHOFF, 1943),
e caracterizada pelo cultivo do milho, o uso de um calendário de 260, dentre outros traços culturais
compartilhados entre mayas, mexicas (“astecas”), olmecas, toltecas (etc), que são portanto todos povos
considerados – e eventualmente chamados, inclusive fora da academia – de “mesoamericanos”. A
conformação dos estudos mayanistas está diretamente atrelada àquela dos estudos mesoamericanos, uma
área interdisciplinar que conta com mestrado e doutorado na principal universidade mexicana (UNAM), uma
vez que desde o século XIX é relativamente comum que os investigadores mayanistas busquem comparação
com outros povos mesoamericanos, isto quando não estudam os estudam diretamente e em paralelo aos
mayas – como é o caso de Hochleitner, por exemplo. Uma breve introdução ilustrada – com mapas – da
Mesoamérica pode ser encontrada no capítulo 2 nesta dissertação.
9 Neste caso, emprego o termo como referência ao acadêmico especialista em mayas mas, como pode ser visto
a seguir, meu uso de “mayanista” é bem mais abrangente e articula-se com um conceito de mayanismo
influenciado principalmente por Joel Wainwright (2008).
10 Suas obras não são muito conhecidas, seja para o público em geral, seja na academia. Hochleitner possui
inúmeras publicações em português relacionas aos mayas e à Mesoamérica, e grande responsável pela
criação do Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (MAEA) na UFJF. Os próprios acadêmicos
mayanistas brasileiros ainda não deram conta de revisar seu trabalho e reconhecer sua importância e
pioneirismo de maneira apropriada. Eu cheguei a tentar conhecê-lo pessoalmente por volta de 2010, mas fui
informado de sua reclusão por conta da idade muito avançada.
23

maya, ao contrário da propaganda massiva, não são o calendário maya em si, 11 eu já buscava
definir – e principalmente, disputar a definição legítima – dos mayas.12
O simples fato de eu ter iniciado um projeto pioneiro e produzir conteúdo que
disputava um espaço (a internet) para esclarecer as diferenças entre o calendário maya e suas
apropriações “nova era”,13 permite-me dizer que, há dez anos, tenho participado de alguma
forma das disputas pela definição legítima dos mayas num sentido mais amplo. Mais do que
isso, assim como o antropólogo Matthias Gorissen (2006) confessou, eu também já quis “me
tornar maya” de alguma forma, com a diferença de que isto ocorreu comigo antes mesmo de
compreender e afetar-me pela imersão etnográfica.
Em 2011, após anos de relutância em relação à academia mas também insatisfeito
com a falta de reconhecimento pela falta de um diploma, iniciei o curso de ciências sociais na
UFF, no qual fiquei por um ano; e, entre 2012 e 2014, terminei os outros três quartos da
graduação no curso de antropologia na mesma universidade. Justamente na transição entre os
dois cursos, estive pela última vez na Guatemala antes do mestrado (2011/2012). 14 Em
outubro de 2012, publiquei meu primeiro livro (CAVALCANTI, 2012b) ainda como
graduando e, em dezembro de 2014, formei-me antropólogo.15
11 Além das próprias obras que deram início ao cdp e o chamam literalmente de “calendário maya”, existe
também um senso comum, em diversos espaços – como por exemplo em festivais de música eletrônica (Cf.
CAVALCANTI, 2012b) – de que o cdp é calendário maya, que é passado adiante e inclusive reproduzido em
teses e dissertações acadêmicas brasileiras que não têm como enfoque as questões aqui colocadas. Ademais,
as lideranças do cdp sempre tiveram espaço na grande mídia brasileira para falar sobre os mayas e o
calendário maya, pelo menos desde os anos 2000, o que se intensificou com a aproximação do “ciclo de
2012”. O cientista social Vitor Hertzog produziu os únicos estudos críticos ao cdp no Brasil (HERTZOG,
2013; HERTZOG, 2015), relatando inclusive a experiência (comunicação pessoal) de ter participado, junto
às lideranças do cdp, da gravação de uma reportagem posteriormente exibida TV Globo que induz os
espectadores a lê-lo como “calendário maya”.
12 O Projeto CMAIA (primeiro Calendário Maia Independente e Aberto, e logo depois “Maia” foi substituído
por “MesoAmericano”) é uma iniciativa independente, para produzir e divulgar conteúdo em português
sobre os calendários mesoamericanos, iniciada formalmente em Outubro de 2006. Àquela altura, eu já tinha
alguma percepção de que havia um amplo horizonte – “nativo” – sendo ignorado pelos “neomayas”. Um ano
e meio depois, em Abril de 2008, o conteúdo produzido no âmbito deste projeto foi incorporado a um sítio
criado por mim, o “Calendário Sagrado” (disponível em http://www.calendariosagrado.org), que trouxe
consigo uma inovadora ferramenta para conversão de ciclos mayas. A versão mais completa deste conversor
está acessível em http://maya.calendariosagrado.org/expert, e será incorporada ao meu projeto de doutorado
num novo sítio: http://www.calendariomaya.net/.
13 Em meu primeiro e incipiente artigo (CAVALCANTI, 2012a), escrito ainda no primeiro ano da graduação,
isto talvez ainda apareça bem claramente.
14 Estive na Guatemala duas vezes, em ambas por pouco menos de um mês. Na primeira vez, em 2009, visitei
principalmente sítios arqueológicos; nesta segunda viagem, entre dezembro de 2011 e janeiro de 2012,
visitei várias organizações mayas. A partir do observado em algumas delas é que esta atual proposta
começou a tomar corpo, ainda naquela época, como falarei mais adiante.
15 Aquele livro era um antigo projeto, que foi prudentemente adiado após minha entrada na universidade,
reformulado em muitos sentidos e finalmente publicado para acesso livre apenas algumas semanas antes do
24

Ao longo da graduação, certamente meus horizontes foram se ampliando muito para


as possibilidades de “estudar os mayas”, de relacionar inúmeros autores, questões e
etnografias a contextos mayas – tanto os do passado, quanto os contemporâneos. Diferente do
senso comum com o qual me deparei, inclusive na academia, eu não pesquisava “só mayas”
em qualquer sentido que implique limitação a uma linha de pesquisa. Considerando os vastos
objetos e problemas que me interessavam e que poderiam ir da arqueologia à história do
tempo presente (e inclusive além dos mayas!), percebi com mais clareza meus interesses
enquanto multifacetados e transdisciplinares – ou, como diria Ciro Flamarion Cardoso, 16
descobri que “não sou monotemático”.
Neste espírito, abracei uma possibilidade impensada até semanas antes da seleção:
sair do bacharelado em antropologia para o mestrado em sociologia, com um projeto que
definitivamente me tiraria do meu lugar de conforto. Ainda que se possa dizer, com alguma
razão, que o “maya” continua aqui e isto me deu certo conforto, neste caso a familiaridade
com os mayas também pode ser especialmente complicadora, uma vez que minha escolha
implica em ir de encontro a muitas e delicadas tensões em potencial entre os próprios mayas,
além dos mayanistas.
Quase todo o período do mestrado, entretanto, foi bastante difícil para mim. O
primeiro ano (2015/2016), que se encerrava enquanto escrevia o projeto de qualificação,17 foi
talvez o mais difícil da minha vida (ainda mais no segundo semestre), especialmente no
âmbito familiar. Experimentei também os dissabores e as ambiguidades de ser estudante de
pós-graduação numa conjuntura de cortes orçamentários18 e que em boa parte do tempo
frequentou uma universidade vazia, com as aulas suspensas apenas para a graduação durante a
última e longa greve, evidenciando a histórica contradição de boa parte do corpo docente

“fim do mundo” (já que um de seus propósitos era tentar reparar desinformações relacionadas ao “ciclo de
2012”). Tanto o livro quanto a monografia no bacharelado em antropologia dão claro destaque ao
“calendário maya”, mas na monografia nota-se que ele “perde” bastante espaço para preocupações político-
epistemológicas e a necessidade em documentar a diversidade maya.
16 Cf. ARAUJO & LIMA, 2012.
17 Assim como o pré-projeto escrito em 2014, o projeto da qualificação encontra-se disponível na íntegra em
http://let.tcavalcanti.in/arquivos.
18 Também graças à crise orçamentária, e ao consequente acesso dificultado a qualquer auxílio institucional
enquanto estudante de mestrado, iniciei uma campanha de financiamento coletivo para a pesquisa e o
trabalho de campo, disponível no endereço http://let.tcavalcanti.in. Trata-se de uma página que serviu não
apenas como um espaço para captação de recursos financeiros para a ida ao campo, mas também um sítio
em que o próprio desenvolvimento da pesquisa pode ser acompanhado por qualquer pessoa interessada. Meu
compromisso histórico com o acesso livre à produção científica também é reforçado através desta iniciativa.
25

universitário e de muitos programas de pós-graduação.


O segundo ano do mestrado (2016/2017), que encerra-se com a produção e defesa
desta dissertação foi igualmente difícil, especialmente após o meu retorno da Guatemala.
Desde a greve mencionada, passei a questionar cada vez mais o meu próprio lugar na
academia, se tenho “estômago” pra prosseguir sem me submeter ou me omitir diante das
contradições e injustiças perpetuadas nos espaços instituicionais de produção de
conhecimento acadêmico. A qualidade da produção na universidade tende a cair diante de
ambientes de disputas que, por vezes, tornam-se exageradamente pessoais e se somam de
forma maçante ao estresse da vida cotidiana, corroendo espaços de interlocução e realçando a
desesperança diante da falta da coerência na práxis em tempos pré e pós-golpe no Brasil.
Ainda que não tenha coincidido com o momento ideal em praticamente todos os
aspectos,19 certamente no mestrado pude ter contato com colegas docentes e discentes que
contribuíram para um lento, mas constante amadurecimento do pré-projeto, que só nos
últimos meses passou a tomar o corpo que tem. Foi ao longo do mestrado, por exemplo, que
conheci a ideia de “capital cultural maya” (WARREN, 2000) e os diferentes conceitos de
“mayanismo”,20 e também que resolvi iniciar a dissertação pela “invenção” exógena dos
mayas.
Apesar de a minha monografia apresentar preocupações que dão certo sentido de
continuidade a este projeto de dissertação, pela primeira vez os calendários deixam de ser meu
interesse central. Além disto, as minhas referências aos mayas contemporâneos, até agora,
eram demasiado incipientes e geralmente envolviam informações que se resumiam aos
calendários.
Ao propor as “disputas pela identidade maya na Guatemala” como pré-projeto de
mestrado, eu definitivamente saí da minha zona de conforto. Não apenas no sentido de
pesquisar sobre (e com) os mayas de “carne e osso”, mas também para tomar conhecimento
de muitos autores que têm uma vasta produção sobre as questões que envolvem a identidade

19 Em 2015, e enquanto fui obrigado a “furar greve” e portanto estar no Brasil, a Guatemala efervescia nas ruas
como há 15 ou 20 anos não se via; denúncias de corrupção, junto à pressão popular – impulsionada pela
classe média – nas ruas, em um consenso comparável ao dos “caras pintada” no Brasil, derrubaram primeiro
a então vice-presidenta e depois o presidente. Já em 2016, e enquanto a Dilma era afastada do cargo e
aguardava o golpe se concretizar no congresso nacional, eu estava justamente em campo, na Guatemala, de
maneira que sempre estive um pouco dividido por não poder estar nos lugares em que gostaria nos
momentos em que gostaria.
20 Cf. capítulo 2 desta dissertação.
26

maya contemporânea. Tais referências são praticamente desconhecidas e ignoradas na rede de


pesquisadores na qual havia me inserindo nos últimos dez anos, composta por pessoas mais
interessadas nos mayas antigos, seus traços culturais e, quando muito, a continuidade e/ou o
resgate cultural entre os mayas contemporâneos.
Dito de outra forma, até recentemente eu estive muito mais imerso no que Peter
Hervik e Hilary Kahn definiram como “academic structure that also tends to categorize and
label deliberate and localized performances and actions as cosmological, ritual or
traditional, which distracts ‘us from their active, intentional, and productive character’”
(HERVIK & KAHN, 2006, p. 200). Tomando isto em consideração, teria sido muito mais
fácil dedicar-me a análises distanciadas dos calendários mayas, valendo-me da epigrafia, da
arqueologia, da astronomia (etc). Em resumo, dedicar-me-ia à “alta cultura” maya com
eventuais e convenientes referências a continuidades culturais dos rituais e simbolismos
vinculados aos dias. Não seria preciso empreender qualquer análise da identidade maya e
menos ainda percebê-la enquanto uma construção acadêmica.
Sem dúvida, a identidade maya, a definição do que é maya ou não, é objeto de
disputa tanto na academia (especialmente nos sentidos “cosmológicos, rituais e tradicionais”),
quanto entre os indígenas contemporâneos. Neste sentido, não há nada de confortável em
desnaturalizar a construção da categoria étnica maya, historicizando-a primeiro como
exógena, depois em sua apropriação endógena e pan-étnica, que se deu na construção da
identidade maya contemporânea. Ao longo desta dissertação, deverei proceder com muito
cuidado, para não legitimar ou deslegitimar arbitrariamente qualquer uso contemporâneo do
“maya”, mas buscar compreender distintos cenários e modalidades de construção social da
etnicidade maya.

O emprego [do conceito] de etnicidade coloca em destaque não exatamente a


unidade social, o grupo étnico, mas a atitude ou performance dos sujeitos quando
estes atuam em situação de alteridade. Ainda que, conforme afirma Barth (1969), as
categorias de adscrição étnica sejam criadas para regular a ação, sendo
significativamente afetadas pela interação e não pela contemplação, o uso de
etnicidade aponta para a possibilidade de que tal regulação possa não recortar um
grupo, pensado como uma unidade sociológica concreta e discernível. Liberto o
grupo étnico dos conteúdos culturais, a etnicidade tende a libertar-se também do
“recipiente organizacional”. Muitas das análises que lançam mão da categoria de
etnicidade buscam descrever realidades nas quais a atitude étnica já não corresponde
a um grupo étnico, pensado como uma comunidade real. No seu lugar permanecem,
porém, a sua imaginação e os valores e vínculos morais a que ela dá ensejo. Assim,
27

se a categoria etnicidade está firmemente assentada na teoria dos grupos étnicos de


Barth, ela também a ultrapassa. Cabe determinar, então, sobre quais bases teóricas
poderíamos compreender como isso se dá (ARRUTI, 2014, p. 207).

Como observou Peres, “o campo semântico da etnicidade pressupõe a possibilidade


de emergência de várias políticas étnicas” e, nesta perspectiva, pretendeu-se “enfocar as
conexões complexas entre cultura e política” (PERES, 2013, p. 33).

A imbricação entre política e cultura é o cerne também das pesquisas antropológicas


sobre movimentos e políticas de identidade em várias partes do mundo. A chamada
“teoria da invenção de tradições” explorou as contradições entre as retóricas ou
ideologias étnicas — formuladas por uma elite nativa, urbana e intelectualizada — e
as ontologias étnicas vivenciadas pelas pessoas comuns na vida cotidiana. As
tradições não correspondem a conjuntos de valores e instituições existentes desde
sempre, desde tempos remotos, imutáveis, intocados pelas dinâmicas históricas, mas
construções coletivas, imaginações sociais elaboradas para lidar com questões e
demandas atuais, e referentes em geral a contextos politicamente carregados. Esta
abor dagem não implica um modelo de ator orientado exclusivamente por uma
lógica pragmática ou instrumentalista, que os sujeitos não possam acreditar
sinceramente na “autenticidade” de costumes e crenças “inventadas”, mas que lhe
fornecem os parâmetros normativos e comunicativos com os quais se formam suas
concepções do mundo e de si mesmo. As tradições são “genuínas” exatamente na
medida em que os agentes assim a consideram, ao se engajarem afetivamente com
elas, constituindo sua experiência cotidiana, seus projetos de vida, suas certezas, seu
senso de normalidade; e não por qualquer vínculo entre uma “cultura” e uma
“coletividade”, determinado previamente pelo pesquisador. O problema reside no
fato do antropólogo separar formas culturais autênticas daquelas que não são,
produzindo a imagem de uma sociedade depurada de elementos exógenos e
espúrios, advindos do contato com os “brancos”. Não é a causalidade que rege a
relação entre os dois termos, mas sim a imanência; as fronteiras entre “nós” e “eles”
é estabelecida no bojo das operações simbólicas através das quais os sujeitos
(re)definem o real, em condições de circulação de significados mais ou menos
intensa. Logo, são os próprios atores sociais que decidem quais os signos que
expressam os limites, flexíveis e mutáveis, definidores do pertencimento coletivo.
Mas a contribuição antropológica fundamental para os estudos sobre as conexões
entre “cultura” e “política” nos movimentos sociais é a análise da dinâmica
comunicativa estabelecida entre os militantes e o seu público. Isto permite relativizar
avaliações etnocêntricas, baseadas em modelos supostamente universais de
cidadania e democracia (...) (PERES, 2013, pp. 30-31).

Neste sentido, a etnicidade é entendida como

(...) um processo de organização das diferenças sociais, portanto é dinâmica,


situacional e relacional. Os grupos étnicos não deveriam ser reificados pelo
pesquisador em “etnias” fechadas e definitivas como se fossem divisões naturais do
mundo social, pois as fronteiras entre “nós” e “eles” são maleáveis e móveis,
possibilitando trânsitos, comunicações e metamorfoses; ou seja, trocas de identidade
(PERES, 2013, p. 36).
28

A etnicidade, assim, seria um conceito que comportaria uma ampla variedade de


relações e posições. Mais do que apenas “trocas de identidade” étnica, podemos pensar
também em acúmulo de múltiplas identidades ao longo destes trânsitos. Ou seja, diferente de
um paradigma em que as “etnias” representariam grupos “fechados e definitivos” através de
critérios meramente culturalistas, torna-se mais pertinente e até desejável – por tratar-se de
um caso pan-étnico – pensar para além das fronteiras étnicas, e desta maneira a existência de
“mayas de esquerda”, “mayas de direita”, “mayas feministas” (etc) tende a não ser vista
necessariamente como uma contradição em si, e nem enquanto uma evidência de aculturação
dos mayas, que seria usada para tratá-los como pessoas “cooptadas” por uma “ideologia
estrangeira”.
Neste caso específico, trata-se de afirmar que existem tantas maneiras de ser maya,
com inúmeras nuances locais, regionais, nacionais e transnacionais, que qualquer definição
absoluta e fechada do “maya” torna-se ainda mais arbitrária do que em outros casos. Como
venho reiterando em diversas oportunidades,21 isto se deve muito à diversidade étnica e
linguística maya, mas atento aqui também para a recentíssima etnogênese maya, em que a
identidade maya passou a ser reivindicada por muitos grupos historicamente distintos e
eventualmente até opostos. Sendo a identidade maya na verdade pan-étnica, faz mais sentido
ainda pensá-la a partir da articulação com a noção de etnicidade, já que a identidade “maya”
pode ser articulada a “tudo”, sendo difícil percebê-la como uma etnia fechada.

1.1 NOTAS DISPERSAS

A célebre passagem d’O 18 de Brumário, de Karl Marx, presente na epígrafe que


abre esta dissertação, prossegue fazendo menção ao império romano, mas poderia
perfeitamente tratar-se do “império” maya.22 Como lembrou o Mouro, em tempos de crise
podemos observar a conjuração mais frequente ou eloquente em busca da ajuda dos espíritos
do passado. O temor de uma derrota, e mais ainda de uma derrota definitiva em tempos de
adversidade tremenda, coloca em dúvida a continuidade de qualquer ordem vigente e ameaça

21 Cf., por exemplo, CAVALCANTI, 2014 e CAVALCANTI, 2015.


22 Na verdade, a concepção de que a noção de um “império maya” tornou-se obsoleta é relativamente antiga,
uma vez que, as antigas elites governantes jamais estabeleceram um poder unificado que abrangesse todos
os territórios mayas, por exemplo, mas certamente a imagem de um “império maya” ainda seria compatível
com a época.
29

legados de elites históricas. A reivindicação histórica é também uma reivindicação de


autoridade, ainda mais no caso de uma continuidade mais evidente (ou que se evidenciou ao
longo do tempo), como o do sobrinho de Napoleão ou, no caso dos mayas, como primeiro
evidenciado pelos mayanistas e depois incorporado e politizado pelos indígenas, de uma
continuidade dos mayas contemporâneos em relação aos mayas antigos.
Não é surpresa que os documentos produzidos pelas antigas elites maya, escritos na
admirada língua escrita hieroglífica, estejam repletos de nomes de divindades e governantes
tomados emprestados do passado. Mais do que um comportamento em tempos de crise
latente, as próprias memórias, tradições e seus legados são, por supuesto, assim forjados
historicamente.
No caso daquelas antigas elites mayas, a conjuração dos deuses e antepassados em
tempos de crise costumava vir acompanhada de afirmações de domínio não apenas sobre o
espaço – o território – a ser defendido, mas especialmente sobre o próprio tempo. Tais
discursos foram hábeis em demonstrar uma capacidade de contar ciclos virtualmente
infinitos,23 reivindicando não apenas um vínculo histórico com o passado mítico, como
principalmente a continuidade de seu domínio em um futuro muito distante, a despeito de
eventuais adversidades do presente.
A surpresa, talvez, seja a constatação de que os registros históricos conhecidos que
mencionaram o famoso “ciclo de 2012” nada dizem sobre o “fim do mundo”, mas eram antes
uma manifestação discursiva de poder. A grandiosidade do passado, que ampara e legitima a
força dos governantes e seus herdeiros, era projetada para o futuro longínquo, em que seu
poder continuaria sendo renovado e consagrado.
A passagem de Marx, apesar de ser mais abrangente e não se referir às situações
específicas que me interessam, me fez refletir acerca do fardo da própria reivindicação de
passados gloriosos, mas que no caso dos mayas parece ser muito mais complicado do que os
próprios exemplos que o Mouro elenca. No que se refere aos mayas, muitos deles podem ver-
se obrigados a performar o que seria o mais próximo possível da antiga elite maya. Quando
assume-se uma identidade maya demasiado essencializada e em acordo com representações

23 A conta longa, um calendário de conhecimento mais restrito dado a sua complexidade, foi na verdade um
sistema que, através da progressão vigesimal – que “gera” ciclos ininterruptamente, (quase) sempre 20 vezes
maiores que o anterior, proporcionava um instrumento que, literalmente, poderia ser usado para registrar
qualquer momento no passado ou no futuro, ou mesmo a própria idade do universo.
30

romantizadas, sobrevalorizam-se os calendários e especialmente a escrita hieroglífica como


índices de uma “alta cultura maya”.
Assim, os mayas mais essencialistas, a meu ver, estariam como que numa potencial
“prisão identitária”, em que a tradição das gerações mortas, mas especialmente as elites
mortas, seria a imagem do maya legítimo ou, ao menos, do maya que é “mais maya” do que
os outros, uma vez que é principalmente da curadoria da alta cultura e seu resgate que retiram
seu prestígio. A antiga elite maya é como a tradição morta que foi fundamental para a
valorização e até popularização inicial da identidade maya, como será visto. Vale ressaltar que
este tipo de essencialismo mais exacerbado não é tão difundido, contudo Marx já apontava
um caminho: existe algo muito além de se agarrar ao passado, e no caso dos mayas é preciso
também lançar um olhar crítico às próprias elites antigas, sem romantizá-las e esmiuçando
suas contradições, trabalho que ainda deverá se prolongar por muitas décadas e um esforço
coletivo de mayas e mayanistas.
Conforme observado, os calendários, articulados à conta longa em narrativas
históricas, foram fundamentais para a legitimação do discurso da antiga elite maya. Os
registros escritos que as antigas elites mayas deixaram, com um sistema de contagem do
tempo infinito, são uma materialização da “eternidade”. Entretanto, esta conta longa que
caracterizou o conhecimento da antiga elite maya foi perdida, mas não por acaso os principais
calendários mesoamericanos (de 260 e 365 dias) foram mantidos até os dias de hoje em
dezenas de comunidades mayas.
O “resgate” da conta longa e a correlação apropriada entre os calendários mayas e
europeus foi objeto de disputas acadêmicas desde o século XIX e continua sendo, apesar de a
teoria dominante (que definiu o “ciclo de 2012”) ter sido quase que universalmente aceita
pelo movimento maya, uma vez que coincide parcialmente (no ciclo de 260 dias) com as
contagens tradicionais. Voltarei ao assunto de modo a ilustrar a complexidade da própria
relação entre mayas e mayanistas, mas evitarei oportunamente o “2012” e aprofundar em
questões calendáricas nesta dissertação uma vez que este seria um assunto demasiado extenso
para este espaço e seu desígnio.
De qualquer maneira, além das línguas, a continuidade cultural do calendário ritual
de 260 dias é particularmente relevante, tratando-se de uma fonte inesgotável de história, uma
vez que tratam-se também de 260 nomes calendáricos distintos, cada qual com características
31

e personalidades próprias. Os próprios deuses do passado, incluindo os do tempo da antiga


elite, têm nomes calendáricos, que podem ser também o “meu” ou o “seu” dia. Neste sentido,
todos têm um nome calendárico, que é também um nome emprestado, um nome de “deus”,
uma “face do Sol” que nos anima mas que também pode ser conjurada com toda sorte de
intenção política e, principalmente, para afirmar a mayanidade.

1.2 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para além de uma dissertação em sociologia, almeja-se fomentar debates inter ou


transdisciplinares, em que diálogos com a história e a linguística, por exemplo, serão
fundamentais para muitas contextualizações caras à investigação. Ainda que possa questionar
as fronteiras disciplinares, sem dúvida é justo reconhecer que é devido à sociologia dos
movimentos sociais (TARROW, 2011), em diálogo com a história (HOBSBAWM, 1988) e
antropologia (BARTH, 2000) que este projeto parte do pressuposto de que a “civilização
maya” é uma invenção particularmente moderna.24
A sociologia é, antes de mais nada, um produto de seu tempo. Quiçá isto não fosse
tão claro em seus primórdios, ou entre seus precursores justamente, por esta ser em boa
medida uma percepção também sociológica – e muito nos escapa das influências de nosso
tempo sobre nós. Diante de novos dilemas, emergiu esta nova ciência, supostamente capaz de
fornecer explicações apropriadas para este tempo que se vislumbra. Seria a própria sociologia
um relevante marco no tempo, uma guinada para novas posturas diante do real e,
especialmente, do social?
Octavio Ianni, ao revisar a história da Sociologia no fim da década de 1980, fornece
o seguinte ponto de partida:

A Sociologia nasce e desenvolve-se com o Mundo Moderno. Reflete as suas


principais épocas e transformações. (...) Os impasses e as perspectivas desse Mundo
tanto percorrem a Sociologia como ela percorre o mundo. Se nos debruçamos sobre
os temas clássicos da Sociologia, bem como sobre as suas contribuições teóricas,
logo nos deparamos com as mais diversas expressões desse Mundo. Sob diversos
aspectos, ela nasce e desenvolve-se com ele. Mais do que isso, o Mundo Moderno
depende da Sociologia para ser explicado, para compreender-se. Talvez se possa
dizer que sem ela esse Mundo seria mais confuso, incógnito.

24 Cf. Peres, 2013, sobre a conexão entre etnicidade e movimento indígena nos processos de construção
identitária e formação de uma rede associativista de mobilização e ativismo no Rio Negro.
32

A Sociologia não nasce no-nada. Surge em um dado momento da história do Mundo


Moderno. Mais precisamente, em meados do século XIX, quando ele está em franco
desenvolvimento, realizando-se. Essa é uma época em que já se revelam mais
abertamente as forças sociais, as configurações de vida, as originalidades e os
impasses da sociedade civil, urbano-industrial, burguesa ou capitalista. Os
personagens mais característicos estão ganhando seus perfis e movimentos: grupos,
classes, movimentos sociais e partidos políticos; burgueses, operários, camponeses,
intelectuais, artistas e políticos; mercado, mercadoria, capital, tecnologia, força de
trabalho, lucro, acumulação de capital e mais-valia; sociedade, estado e nação;
divisão internacional do trabalho e colonialismo; revolução e contra-revolução.
Um dos seus principais símbolos, o capital, parece estabelecer os limites e as
sombras que demarcam as relações e as distâncias entre o presente e o passado, a
superstição e a ilustração, o trabalho e a preguiça, a nação e a província, a tradição e
a modernidade. Em suas conotações sociais, políticas e culturais, além das
econômicas, o capital parece exercer uma espécie de missão civilizatória, em cada
país e continente, no mundo. (IANNI, 1989, p. 7)

Se a sociologia volta-se especialmente para o presente – ainda que não perca de vista
a história –, volta-se para o seu próprio tempo, isto é, aquele do Mundo Moderno, em que a
emersão do capitalismo é fato não apenas relevante, mas gradativamente determinante em
cada aspecto da vida e em cada rincão do mundo. A própria relação com o tempo passa a ser
mediada pelo capital, como relata Ianni: o capital também serve para demarcar relações e
distâncias entre presente e passado.
Como a citação anterior nos permite entrever, o mundo moderno é em boa medida
estruturado a partir do capital, da industrialização e aprofundamento da urbanização, da
formação dos Estados nacionais. A relação com o trabalho muda radicalmente e, com a
expansão do capital pelo mundo, é inevitável pensar que, em países de maioria indígena (mas
não somente), principalmente nos séculos XX e XXI, não é absurdo algum afirmar a
existência de uma massa de “proletários indígenas” – e, eventualmente, até a presença de
“burguesias indígenas”.25
É por isso que, analisando particularmente países como a Guatemala, torna-se ainda
mais difícil (ou de um anacronismo mais perceptível) qualquer defesa de uma definição
demasiado essencialista ou idealizada das populações indígenas enquanto isoladas e sem
25 A intelectual e acadêmica maya Irma Alicia Velásquez Nimatuj, por exemplo, emprega o termo “burguesia
indígena” para referir-se a uma pequena burguesia comercial guatemalteca (VELÁSQUEZ NIMATUJ,
2002). No interior, algumas famílias ascenderam socialmente desde o período colonial, inclusive como
intermediadoras do comércio com os invasores, quando não capitulando mais intensamente aos anseios dos
invasores. Ainda hoje existem famílias indígenas mais privilegiadas localmente e com maior acesso à
educação, deixando claro que o corte classe não apenas esteve presente desde o início do que se poderia
chamar de uma história maya mais palpável (justamente ao longo do primeiro milênio – no calendário
europeu – com a ascenção das antigas elites mayas, mas também durante todo o período após a invasão,
passando pela formação dos Estados nacionais e o desenvolvimento do capitalismo até os dias atuais.
33

contato com o mundo do “homem branco” – apesar das apologias históricas à miscigenação
em nome da unidade nacional. Dito de outra maneira: o indígena, seja morador de zonas
rurais ou urbanas, é visto como um indivíduo inserido no mundo moderno, e isto não
deslegitima por si a identidade indígena – mas certamente tende a torná-la mais dinâmica e
em relação a uma variedade de identidades outras.
Isto não significa que não exista, assim como no Brasil, um senso comum de que
quem veste roupas “ocidentais” (especialmente no caso das mulheres mayas) ou tem acesso a
tecnologias como computadores – e sua rede mundial – não é indígena, mas certamente em
países de maioria da população indígena isto não é tão visto como uma contradição. Ao
contrário, a identidade de “índios”, atribuída pelos invasores à maioria da população, foi não
invisibilizada como no Brasil, mas reforçada historicamente de maneira a reiterar
cotidianamente a inferioridade indígena na estrutura socioeconômica nacional. É também
como negação da representação inferiorizada e subalternizada, incutida na alcunha de “índio”,
que os mayas começaram a se identificar como mayas.

1.3 JUN NO’J – PENSANDO E INICIANDO OS TRABALHOS

Esta dissertação tem como intuito uma análise do “maya” tal qual se entende hoje
como invenção moderna, e cuja definição é objeto de disputa tanto entre acadêmicos, quanto
entre mayas. Portanto, como antropólogo pesquisador dos mayas e autor deste projeto,
considero que eu próprio também estive envolvido nessas disputas de alguma maneira, pelo
menos nos últimos 10 anos, e que o senso comum acerca dos mayas (seja aquele forjado pelos
especialistas mayanistas, seja o do público em geral) pode interferir na maneira como os
mayas contemporâneos vêem a si mesmos e apresentam-se (ou não) para os outros enquanto
mayas. Esta hipótese é embasada na história do movimento maya, que se apropriou da
identidade maya inicialmente graças a dezenas de intelectuais mayas, em especial entre os
anos 1960 e 1980, e será também testada, no capítulo 4, a partir de dados levantados na
Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG),26 a mais importante instituição maya da
Guatemala.

26 K’ulb’il Yol Twitz Paxil é o nome da ALMG em língua maya, que acompanha o nome em espanhol em todos
os documentos oficiais da instituição. A ALMG mantém também um sítio na internet:
http://www.almg.org.gt/.
34

Entender o “maya” como uma construção não se trata, de maneira alguma, de


deslegitimar as demandas políticas dos indígenas mayas nos dias de hoje, mas antes de
perceber em que sentidos a identidade maya tem sido politicamente articulada, de diversas
formas e em determinados contextos, especialmente na Guatemala. Menos ainda os mayas
contemporâneos, como gostariam seus detratores, devem ser encarados como “índios
oportunistas” e sem direito a reivindicar-se mayas.
Mas é verdade que a identidade maya não existia entre os indígenas, sejam
mexicanos ou guatemaltecos, até bem pouco tempo (considerando o larguíssimo espectro da
“história maya” reconstruída pelos mayanistas), e que aquilo que entendemos por mayas hoje
é, em boa medida, uma construção acadêmica (quando não, também, de autores esotéricos e
da “nova era”), o que pode dar ainda mais brechas para inúmeras apropriações. Se fomos
“nós” – acadêmicos, ocidentais, modernos... – quem inventamos ou imaginamos os mayas, a
própria ciência acadêmica já havia legitimado, de antemão, a posterior incorporação do termo
“maya” como categoria identitária contemporânea.
Esta invenção dos mayas, me parece, pode ser compreendida também em diálogo
com o conceito genérico de orientalismo: “O orientalismo é o termo genérico que venho
usando para descrever a abordagem ocidental do Oriente; é a disciplina por meio da qual o
Oriente é abordado sistematicamente, como um tema de erudição, de descobertas e de prática”
(SAID, 1996, p. 82). Para o caso maya, existe também o conceito de mayanismo de Joel
Wainwright (2008), que é diretamente influenciado pelo de orientalismo e será tratado
adiante.
Por isto é que o próximo capítulo propõe tratar desta “invenção” dos mayas
(especialmente dos “grandes mayas” do passado) a partir do século XIX. Acredito que esta
abordagem seja necessária, buscando também esboçar uma espécie de “arqueologia da
categoria”27 antes de mais nada, dada a importância disto para compreender a “etnogênese
maya”,28 e a ausência de um maior debate sobre a categoria maya, especialmente em língua
27 Aqui, penso em “arqueologia” no sentido de Michel Foucault (1987), que propõe-se a analisar os arquivos –
as possibilidades históricas. A arqueologia se fundamenta sobre uma série de noções que Foucault (1987, p.
155) define como “formações discursivas, positividade e arquivo” e se dirige a um domínio que é o campo
enunciativo e das práticas discursivas. A arqueologia preocupa-se com a pluralidade, exercendo sua pesquisa
na multiplicidade de registros. Neste sentido é que me propus, por exemplo, a compilar as informações
coletadas por Matthew Restall e Wolfgang Gabbert (RESTALL, 2004; RESTALL & GABBERT, 2017) e no
que se refere à presença do termo “maya” nos arquivos e documentos coloniais.
28 Com o termo “etnogênese”, refiro-me a processos históricos de formação de identidades que abrange, neste
caso, a emergência de uma nova identidade maya que, por sua vez, não deixa de ser também uma
35

portuguesa.
É a partir daí, e especialmente do desenvolvimento da definição linguística dos
mayas, que se adquire a meu ver o substrato necessário para posteriormente situar os mayas
no mundo moderno e especialmente no contexto nacional guatemalteco, adentrando a
emergência da autoidentificação pan-maya, num processo em que participaram e participam
militantes, intelectuais, políticos e acadêmicos mayas que, como haveria de se esperar,
também podem valer-se de muitas das representações acadêmicas dos mayas que circulam
cotidianamente.

“reinvenção de etnias já reconhecidas” (Cf. OLIVEIRA, 1998), mas com uma implicação pan-étnica. A
reinvenção, neste caso, passaria também pela transformação ou ressignificação de uma categoria étnica
exógena em endógena.
36

2 – A INVENÇÃO DOS MAYAS

Quem foram os mayas? Quem são os mayas? Perguntas tão elementares sequer
existiam nestes termos há menos de 200 anos. As respostas a estas perguntas envolvem
definições e representações elaboradas a partir do século XIX. Antes disso, e inclusive na
maior parte do século XIX, pouquíssimo referiu-se ao termo “maya”, e nunca com os
significados e abrangências atuais.
Este capítulo será dividido em três partes. Na primeira, buscarei contextualizar os
escassos usos do termo “maya” no período colonial (sécs. XVI a XIX), que pouco têm a ver
com a “invenção” dos mayas a partir do século XIX, tema da segunda parte. Por fim, buscarei
responder parcialmente à pergunta inicial, compreendendo a definição linguística dos mayas
como particularmente determinante na construção do que hoje se entende por maya e também
na noção de identidade pan-maya.

2.1 “MAYAS” NO PERÍODO COLONIAL (SÉCS. XVI-XIX)

O termo “maya” aparece desde os primeiros anos da invasão da América pelos


europeus.29 Durante todo o período colonial, a ocorrência da palavra é relativamente rara, e
não há indícios de que tenha servido como categoria identitária amplamente compartilhada.
Sua utilização no século XVI era mais comum em referência à língua, ao topônimo de
Mayapan e mesmo a objetos, do que para discriminar pessoas (RESTALL, 2004; RESTALL
& GABBERT, 2017).
Desde o século XVI, “maya” aparece em diversos documentos na península do
Yucatán, atual México. Isto se deve, principalmente, ao fato de a língua indígena da região já
era previamente chamada mayathan (maya ta’an), como registrado por Diego de Landa, um

29 Segundo as notas de Alfred Tozzer, presentes em uma edição da Relación de las Cosas de Yucatán (LANDA,
s.d., pp. 359-360), “The earliest appearance of the word Maya or Maia seems to have been in a manuscript
of Bartholomew Columbus, brother of Christopher, written in Rome in 1505 or 1506. Describing a native
canoe encountered by Columbus on his fourth voyage in 1502 off the island of Guanaja, he speaks of it as
‘from a certain province called Maiam or Yucatam.’ Berendt informed Brinton (1882, 10) that the words vel
Iuncatan were superscribed over the word Maiam, thus showing a later hand. The first appearance of the
word Maya or Maia in print was in Peter Martyr [1516] (…) in describing the same expedition of Columbus
and the same encounter with the two canoes of traders. He writes, ‘This vast region is divided into two
districts, one called Taia and the other called Maia.’ Lothrop (1927) reviews all the evidence and advances
the theory which is probably the correct one that the Maia of Columbus was not on the eas coast of Yucatan
but in Honduras”.
37

frei franciscano,30 ao narrar a chegada dos invasores: “[en] el año de 1511, […] llegaron a la
costa de Yucatán, a una provincía que llaman de la Maya, de la cual la lengua de Yucatán se
llama mayathan, que quiere decir lengua de maya” (LANDA, 1982 [1566], p. 6).
Além da língua, Landa dedicou-se substancialmente a Mayapan, sendo dele o
primeiro registro europeu acerca desta cidade antiga. Apesar de a cidade de Mayapan, descrita
por ele como um antigo centro cosmopolita do Yucatán (MILBRATH e PERAZA LOPE,
2003), ter sido abandonada ainda na metade do século XV, suas lendas e histórias
sobreviveram mais de um século, ganhando especial atenção na Relación de las cosas de
Yucatán (1566). Isto poderia explicar a atribuição do nome “maya” à região.
Contudo, a existência tanto de uma língua maya, quanto de um topônimo Mayapan,
suscitou um debate em aberto ainda hoje, sobre a etimologia da palavra “maya”. O que veio
antes? Seria, por acaso, “maya” por causa de Mayapan, ou “Mayapan” por causa de maya?
Landa traduz “Mayapan” como pendón de la maya, imediatamente aclarando que
“maya” tratava-se da língua daquela terra. Desta maneira, ele afirma que Mayapan é que
derivado de “maya”. Entretanto, Matthew Restall, que fez um amplo levantamento dos
contextos em que o termo aparece no período colonial, afirma que nenhum outro topônimo no
Yucatán contém “maya” (RESTALL, 2004).31 Ele e Wolfgang Gabbert defendem, ao
contrário, que o termo “maya” é derivado de Mayapan, 32 e além de ressaltarem que esta
afirmação – contrária à de Landa – aparece também no século XVI, lançaram mão da seguinte
passagem do Chilam Balam de Chumayel:33

30 Mais tarde, mais perto do fim da vida, Landa chegou a ser bispo do Yucatán. Seu nome é bastante
controversa tanto entre mayanistas quanto mayas. Seu auto-de-fé em Maní destruiu muitos documentos
escritos na antiga escrita maya, sendo Landa portanto “(…) o maior dos destruidores [de que se tem
conhecimento] da história escrita maia em seus próprios termos hieroglíficos. O ‘auto de fé’ de Landa
contribuiu para que se conheça muito menos a história maia propriamente dita e do período pré-invasão; mas
também escreveu [por outro lado] a obra Relación de las Cosas de Yucatán (~1566), com registros [que se
provaram] úteis para a compreensão da escrita em hieróglifos” (CAVALCANTI, 2014, p. 36).
31 O autor ressalta que, num raro exemplo (que pode ser visto no quadro 1), o termo aparece junto à ilha de
Cozumel para denotar vínculos com Mayapan.
32 Esta hipótese suscita novas indagações acerca da etimologia de “maya” e “Mayapan”. Cf. RESTALL &
GABBERT, 2017, p. 97.
33 Alguns manuscritos são conhecidos como Chilam Balam, e o que os diferencia é a associação a diferentes
localidades na península do Yucatán, como Chumayel, Maní e Tzimin. “Balam or ‘Jaguar’ was the
surname of a chilan, a pre-Hispanic oracle or ‘prophet’ from the town of Maní (…) In Colonial
times (ca. AD 1540–1821) this Chilam Balam was believed to have foretold the arrival of the
Spanish conquistadors and the new religion they aggressively promoted, Christianity” (KNOWLTON,
2010, p. 2). Timothy Knowlton, neste trecho, fala sobre aquele que teria sido o Chilam Balam original, mas
dá a entender que existiram outros Chilam Balam, nas outras localidades.
38

13 Ahau foi o katun em que eles fundaram o cah de Mayapan; eles foram [então]
chamados homens mayas. Em 8 Ahau suas terras foram destruídas e eles foram
espalhados por toda a península. Seis katun depois eles foram destruídos[;] eles
deixaram de se chamar maya; 11 Ahau era o nome do katun em que os homens
mayas deixaram de se chamar mayas [e] foram chamados cristãos. (RESTALL &
GABBERT, pp. 94-96, tradução minha)

Este trecho evidencia a difusão do termo maya como “a product of the diaspora
created by the fall and abandonment of Mayapan” (RESTALL & GABBERT, 2017, p. 97). A
hipótese é reforçada pelo fato de que a recorrência do termo se dá especial no noroeste do
Yucatán, nas proximidades de Mayapan, de maneira que mesmo uma associação mais
ampliada para toda a península se torna problemática.
Considerando a passagem, os que viviam em Mayapan teriam sido os primeiros que
passaram a se chamar “mayas”; não por causa da língua, mas como decorrência da fundação
do cah de Mayapan – mais do que isso, de pertencimento ao cah. Entre os indígenas de língua
maya, a construção da identidade dos grupos sociais dava-se muito mais em relação ao
pertencimento a um cah e um chibal do que em torno de um sentimento de pertencimento
vinculado ao compartilhamento da língua maya ta’an.

In addition to expected micro-identities such as gender, age, class, and occupation,


there were two fundamental units of social organization which served as the basis of
group and individual identity for colonial Mayas—the municipal community (which
the Mayas called the cah), and the patronym-group (which they called the chibal).
Mayas organized their lives and activities around these two units and consistently
identified themselves and other Mayas according to cah and chibal affiliations.
The cah was a geographical entity, consisting of its residential core (what we would
call a village or town) and its agricultural territory (the combination of the
cultivated and forested lands held by cah members). But it was also a political and
social entity, being the focus of Maya political activity (regional politics was a
Spanish monopoly during colonial times), and the locus of social networks. At the
primary level of the extended family, identity and social activity was generated at
the meeting point of cah and chibal—built, in other words, around the members of a
particular chibal in a particular cah. As chibalob were exogamous (in accordance
with a deep-rooted Maya taboo that was broken only occasionally by dynasticdozen
couples), their members tended to form multi-chibal alliances that were inevitably
class-based and related to political factionalism in the cah. As almost every aspect
of a Maya individual’s life was determined by cah and chibal affiliations, it is not
surprising that these units formed the native identity nexus, and provided the
references for identification; thus someone might be Ah Pech or Ah Pechob,“of the
Pech [ch ibal],” and Ah Motul,“of Motul [cah]” […]
One might argue that cah and chibal formed the basis of a kind of ethnic identity, or
a multiplicity of micro-ethnic identities, a notion reminiscent of an older
historiographical tradition that saw the pre-Conquest Mayas as divided into various
“tribes.” Furthermore, if all Mayas shared the same type of identity, as well as
sharing the experience of colonial subjection, then arguably they shared a kind of
39

aggregate ethnic identity. This argument is not altogether without merit, but it is
hard to reconcile with the three fundamental aspects of Maya identities: the
persistence of class differences within each cah, as discussed above; the open nature
of the cah (in that it was exogamous, permitted settlers from other cahob, and was
part of the complex pattern of Maya mobility, the cah was not a closed community);
and the diasporic nature of the chibal (that is, members of each chibal were found in
a variety of cahob, almost never in just one, and often not even in a single region).
Thus to categorize cah and chibal as types of ethnic identity would seem to stretch
the term too far. (RESTALL, 2004, p. 73)

A grosso modo, a identidade dos grupos sociais era articulada principalmente em


relação ao pertencimento a um “lugar” ou “comunidade” (cah) e a uma “família” (chibal),
que na maioria das vezes se estendia a mais de um cah. Desta maneira, dois indivíduos
podiam identificar-se, por exemplo, como moradores do mesmo cah, mas diferentes chibalob,
ou como pertencentes ao mesmo chibal e diferentes cahob.34
Neste sentido, e considerando literalmente o discurso acerca da fundação de
Mayapan, produzido séculos depois, a identidade “maya” talvez pudesse ter sido,
inicialmente, uma adaptação de “Ah Mayapan” ou “AhMaya”,35 que formalmente seria como
um membro do cah de Mayapan se identificaria originalmente. Consequentemente, tratar-se-
ia de uma identidade bastante localizada e concernente a um único – apesar de importante –
cah em meio a tantos. Aaparentemente, após a dissolução do cah de Mayapan e antes da
chegada dos invasores, contudo, a categoria “maya” passou a ser acionada com a conotação
de um passado mítico, além de servir ocasionalmente para identificar indivíduos como
oriundos da diáspora de Mayapan e descendentes de antigos membros do cah.
Portanto, se durante o período colonial os invasores, em toda a América, preferiram o
termo mais genérico de “índios” para se referirem a todos os povos indígenas, a
autoidentificação maya se dava em torno do cah e do chibal, e não por uma categoria
abrangente como “maya”, que assumisse o caráter de uma identidade étnica. Assim, também
não é possível considerar que a diáspora de Mayapan tenha de fato desencadeado o que
poderia ser considerado como uma etnogênese.
Vale ressaltar que, apesar das interessantíssimas questões relacionadas a Mayapan,
diversos autores36 demonstram que a ocorrência do termo “maya” no período colonial era

34 O sufixo “ob”, em língua maya, confere o sentido de plural às palavras.


35 Cf. LANDA, s.d., p. 360.
36 Cf. por exemplo RESTALL, 2004, RESTALL & GABBERT, 2017 e principalmente CAMPBELL, 2017 e
LAW, 2013.
40

mais comum em menção à língua maya, e em dicionários bilíngues, e que os primeiros


estudos que comparavam as línguas indígenas, desde pelo menos o século XVII,
mencionavam as relações entre ela e as outras línguas que atualmente compõem o tronco
linguístico maya.37
De antemão, então, “maya” é um termo que, em resumo e até o século XIX, observa-
se especialmente no noroeste da península do Yucatán e nestes contextos: como referência a
um idioma e a um lugar. Apesar de Mayapan ter sido a última grande referência política
regional maya anterior à invasão, o que se entende por maya atualmente implica numa
abrangência geográfica e histórica que não esteve vinculada ao “maya” durante o período
colonial.
Antes de o “maya” começar a tomar os sentidos que tem hoje, outro termo apareceu
em um dicionário maya-espanhol no meio do século XVIII, traduzido como indio: macehual
(masewal), que tanto em língua maya quanto em nawatl 38 significa “gente comum”
(commoner). De acordo com Restall (2004, p. 75), “macehual” teve implicações étnicas no
período colonial pois europeus e africanos não podiam ser macehualob, sugerindo que esta
categoria inicialmente foi cunhada em oposição a dzul (“estrangeiro”) em língua maya e
vecino em espanhol (RESTALL, 2004), tratando-se de categorias arbitrárias para diferenciar
mayas e não-mayas.39 Macehual foi um termo incorporado pelas elites indígenas, mas antes
como um recurso retórico do que propriamente uma identidade incorporada; com o tempo,
entretanto, passou a ser incorporada pelos indígenas em geral, numa transição em que o termo
mudou de uma conotação de classe para outra, étnicorracial (RESTALL & GABBERT, 2017).
Especialmente a partir do século XIX, diversas categorias e subcategorias serviram –
e algumas ainda servem – para ressaltar diferenças de raça, classe e etnia (Cf. HERVIK,
2013). No que se refere aos falantes de língua maya, destacam-se os termos macehual e
mestizo, que passaram a ser utilizados como categorias de autoidentificação e estão em uso até

37 Ver tronco linguístico maya na figura 5.


38 A língua nawatl, à época da invasão, era falada principalmente no México central e no império mexica.
Falantes desta língua estiveram também entre os principais aliados indígenas dos invasores europeus, e
ajudaram a invadir batizar (com nomes que se perpetuariam) diversas regiões e cidades na Guatemala; a
própria etimologia de Guatemala é derivada de Quauhtlemallan, ou “lugar de muitas árvores” em língua
nawatl (CRUZADO, SCHWARTZ & TZUL, 2011). Neste sentido, historicamente é possível observar
muitas migrações, comércio e emprestímos linguísticos na Mesoamérica, antes e depois da invasão.
39 Existia uma distinção “legal e social” entre as categorias indio e vecino, que servia para designar todo e
qualquer não-índio (HERVIK, 2013, p. 41).
41

os dias de hoje entre os mayas yukatekos.40


O principal evento histórico na península no século XIX foi a chamada “guerra das
castas” (1847-1901), que ganhou a conotação de “casta” primeiro por vontade dos líderes
hispânicos da península, pois inicialmente tratou-se de uma guerra civil. Diversos autores
defendem que a guerra depois, de fato, ganhou um caráter racial ou de liberação étnica
(RESTALL & GABBERT, 2017), mas o fato é que especialmente nos primeiros anos – os
mais movimentados da guerra, especialmente entre 1847 e 1853 – ela envolveu virtualmente
toda a península. A guerra não foi dos mayas contra os outros, ao contrário: de acordo com
Restall & Gabbert (2017), ela dificultou qualquer tendência no sentido de emergir um
sentimento de pertencimento identitário comum a todos os falantes de língua maya.
Esta guerra foi, fundamentalmente, consequência da exaustão, em uma nova onda de
territorialização (após a independência) após séculos de expropriação de terras e migrações
forçadas; os “rebeldes” são na verdade tanto mayas quanto campesinos, que em alguns casos
mantiveram-se o mais afastados possível do poder colonial. Por isto, não é surpresa que
“rebeldes” mayas tenham enfrentado inclusive outros mayas, que serviam e defendiam os
interesses dos invasores e seus descendentes.
Durante a guerra, os mayas portanto estiveram sempre divididos. O termo masewal
passou a ser mais associado aos – e reivindicado pelos – “rebeldes”, enquanto os mayas que
eram mestizos ou até passaram a receber o título honorífico de hidalgos.41 Respectivamente,
masewal e mestizos eram oficialmente chamados de indios sublevados bravos e sublevados
pacíficos (HERVIK, 2013).
Assim como durante todo o período colonial, o termo “maya” não recebe atenção
particular durante a “guerra das castas”, mas a guerra e alguns dos líderes rebeldes foram
incorporados às memórias de resistência maya que são fomentadas pelos mayas
contemporâneos. Esta situação permaneceu entre os mayas no México, isto é, ao que tudo
indica eles continuaram sem se identificar coletivamente como mayas, mas sim utilizando
outros termos – como dito, principalmente masewal ou mestizo a partir do século XIX.
40 Como o interesse principal aqui é a categoria “maya”, não me alongarei muito mais acerca do Yucatán, mas
na península em muitos lugares é mais comum encontrar estes dois termos em uso, em contextos de
autorreferência, por parte dos indígenas, do que propriamente o uso do termo “maya”.
41 Parte dos rebeldes ficou conhecida também, ao longo e principalmente depois da guerra, como Cruzob’. O
termo faz menção a um “culto à cruz” que emergiu durante a guerra, em que uma cruz falante aconselhava a
lideranças rebeldes a prosseguirem com a guerra. Para mais sobre a guerra da península do Yucatán Cf., por
exemplo, REED, 1964 e PINTO, 1965.
DOCUMENTO(S):
TERMO/FRASE TIPO DE DATA GÊNERO, CIDADE
REFERÊNCIA (REGIÃO)
(INCIDÊNCIA)
mayathan cultural: “a língua Maya” Colonial Fontes notariais e quasi-
notariais (numerosa)
maya cuzamil topônimo (Cozumel) Colonial Livro do Chilam Balam,
Chumayel (Xiu) (3x)
mayapan topônimo (Mayapan) Colonial Fontes notariais e quasi-
notariais (numerosa)
uchben maya xoc cultural/material: “a antiga Colonial Livro de Chilam Balam,
conta Maya” Tizimin (leste) (1x)
maya pom cultural/material: “incenso 1669 Petição cabildo, Calkini
de copal Maya” (Calkini) (1x)
maya ciie cultural/material: “vinho Colonial Livro de Chilam Balam,
Maya” Chumayel (Xiu) (1x)
maya zuhuye cultural/material: “virgem Colonial Livro de Chilam Balam,
Maya” Chumayel (Xiu) (1x)
maya ah ytzae referência aos outros: Colonial Livro de Chilam Balam,
“aqueles Mayas Itzá” Chumayel (Xiu) (1x)
maya ah kinob referência aos outros: Colonial Livro de Chilam Balam,
“sacerdotes Maya” Chumayel (Xiu) (1x)
maya uinicob(i) referência aos outros: “o/a Colonial Livro de Chilam Balam,
homem/pessoa Maya” Chumayel (Xiu) (8x):
Títulos dos Pech,
Chicxulub e Yaxkukul
(Pech) (2x)
maya uinicob referência aos outros: à Colonial Titles of the Pech,
gente comum pelos (1769) Chicxulub and Yaxkukul
nobres. (Pech) (1x)
maya uinicob referência aos outros: de Colonial Títutlos dos Pech,
outra região yukateka (1769) Chicxulub e Yaxkukul
(Pech) (1x)
maya uinicob referência aos outros: aos 1567/ Título de Acalan-Tixchel
Mayas Yukatekos pelos 1612 (região Chontal) (1x)
Mayas Chontal
coon maya uinice autorreferência: “nós 1662l Petição individual,
homens/pessoas Maya” Yaxakumche (Xiu) (1x)
coon maya uinice autorreferência 1669 Petição cabildo, Baca
(Pech) (1x)
con maya uinice autorreferência Colonial Livro de Chilam Balam,
Chumayel (Xiu) (1x)
coon ah maya autorreferência (como Colonial Título de Calkini
uinice nobres do chibal Canul) (1595/1821) (Calkini) (1x)
Quadro 1 – Usos do termo “maya” em documentos coloniais escritos em língua maya; adaptado de RESTALL &
GABBERT, 2017.
TERMOS E VARIANTES SIGNIFICADOS CONTEXTOS DE USO
ah cahnal, cahnal, (ah) cahal/ membro, residente do cah referente a pessoas de todos os

cahalnal, h cahala [tardio] gêneros, frequentemento em


contraste a vecino (“Espanhol”)
ah otochnal nativo o mesmo mesmo que ah cahnal
macehual, masehual plebeu uso retórico implicando “Maya”
mehen meninos (crianças homens) O mesmo que macehual
almehen nobre para descrever a elite maya
uinic homem, pessoa às vezes refere-se a pessoa
pessoa
kuluinic, u nucil uinic, noh uinic um dirigente ou ancião referência a pessoa maya
maya uinic homem / pessoa maia raro: somente fonte quase
notarial
mayathan Yucatec Maya a língua
ah [nome do cah] pessoa de [cah] referência a pessoa maya
ah [patrônimo] pessoa de [chibal] referência a pessoa maya
Quadro 2 – Termos de autoidentificação utilizados pelos mayas com potencial implicação étnica;
adaptado de RESTALL & GABBERT, 2017.

Como será visto, principalmente a partir do capítulo 3, apesar de o termo


“maya” ser original da península do – e da língua falada no – Yucatán, e lá ocorrer em
documentos do período colonial, foi apenas com o surgimento de um movimento maya
na Guatemala que a identidade maya passou a ser apropriada pelos mayas, ganhando a
conotação que “maya” tem hoje como categoria utilizada para autoidentificação.

2.2 A INVENÇÃO DOS MAYAS, O MAYANISMO E OS MAYANISTAS

Joel Wainwright (2008) define a época do período colonial como a da


“primeira descoberta” dos mayas, que começa com a invasão da América mas se alonga
até o século XIX – a grosso modo, se estende até a constituição dos Estados nacionais e
44

principalmente a “invenção” dos mayas. Como visto, não há evidências históricas de que
tenha existido um processo de etnogênese maya naquele período, que tornasse o termo
“maya” – ou qualquer outro termo – uma identidade partilhada de maneira abrangente. Ao
contrário, de acordo com Matthew Restall (2004) os mayas teriam inclusive resistido, por
mais de três séculos, às etnogêneses que lhes tentavam impor. Não existiam, antes, as

(…) “nações” wichí ou toba (...), mapuche do sul dos Andes, aymara do planalto
boliviano, nahua do México ou tupi-guarani das florestas tropicais, tal como as
entenderiam as óticas nacionalistas oitocentistas, mas sim grupos etnolingüísticos
internamente diferenciados em grupos étnicos organizacionais, entendidos como
comunidades identitárias exclusivas, que podiam não ter maiores relações entre si.
Por isso, os rótulos étnicos generalizantes, ao delimitarem etnias classificatórias,
como Guarani, Quéchua, Maia, Zapoteco, Toba ou Mataco, sobretudo eram, e são,
atribuições identitárias externas em vez de etnônimos próprios, embora agora
mesmo os indígenas possam recorrer a eles para se designarem como coletividades
inclusivas e exclusivas (BARTOLOMÉ, 2006, p. 44).

A generalização deste termo, em que “maya” ganha os sentidos que hoje costuma
implicar, pouco tem a ver com os escassos usos coloniais do termo – pelo menos nos três
primeiros séculos de invasão europeia –, de maneira que sua história é muito mais recente do
que se poderia imaginar. Os “mayas” dos quais falamos no senso comum, e que estão
presentes tanto no imaginário popular quanto nos hibridismos nova era, remontam não à
invasão da América e ao longo período colonial, mas aos séculos XIX e XX.
Sob este mesmo marco temporal coincidem as últimas décadas do colonialismo, a
formação dos Estados nacionais e, especialmente, a institucionalização das próprias ciências
humanas e sociais na Europa, nos Estados Unidos e nos Estados nacionais cujas fronteiras
compreendem os antigos territórios mayas. Oportunamente, o “maya” passou a ser
incorporado de alguma maneira na construção de suas próprias identidades nacionais – em
Belize, El Salvador, Guatemala, Honduras e México. Aquele novo momento, por esta razão,
foi chamado por Wainwright de “segunda descoberta” dos mayas:

In the annals of European history, most indigenous people are discovered once. The
Maya were discovered twice. If we define these two moments in the arc of
conventional European historiography, we could say: the Maya were discovered
once at the beginning, and again near the end, of the age of empires. The Maya
were first discovered by Spanish conquistadores and Catholic fathers, who met
people and classed them “Maya” – and pronounced them potentially Christian even
as they fought and killed them. This was the first of two Maya “discoveries,” albeit
one that carried on for centuries and at different rates across Mesoamerica (the last
45

independent Maya kingdom, of the Itzaj’, did not fall until 1700 [1697]). But in the
mid-nineteenth century, toward the other end of the age of empire, the Maya were
rediscovered as the sons and daughters of a great civilization. The second discovery
of the Maya occurred under the banners of liberalism and science in the
midnineteenth century, when the Maya became ancient in ways that other nations
were not, and their importance for the human sciences became recognized. During
the same period, their lands – those that had not already been expropriated or
otherwise dispossessed – underwent a new round of conquest in Mexico, Belize, and
especially Guatemala. The violence accompanying the second discovery was no less
than the first. This new round of dispossession was accompanied by the emergence
of a new way of knowing the Maya – who they were, what it was to be “Maya” (...)
(WAINWRIGHT, 2008, p. 99).

Para que haja ainda mais sentido na afirmação de Wainwright de que os mayas foram
“descobertos” duas vezes – a primeira, à época da invasão espanhola, e a segunda, no século
XIX, talvez devamos nos ater ao final da citação; a partir dele, é possível compreender que
estas duas “descobertas” dos mayas correspondem também a duas formas colonialistas de
conhecer os mayas. Sendo assim, além de meras “descobertas”, tratam-se de duas maneiras
diferentes de definir quem é maya e o que é ser maya.
Wainwright defende que os mayas foram “descobertos” duas vezes, sempre em
contextos de violência e ocupação de territórios. Primeiro, pelos invasores “originais”
(Spanish conquistadores and Catholic fathers), que começaram a classificar alguns povos
como “maya”,42 e depois no meio do século XIX. O que Wainwright chama de “descobertas”
implica inclusive no que João Pacheco de Oliveira (1998) deixará em termos mais claros. Ao
falar sobre os índios do Nordeste, ele evoca duas noções com a mesma função heurística:
“presença colonial” e “territorialização”. Em resumo, a presença colonial “instaura uma nova
relação da sociedade com o território, deflagrando transformações em múltiplos níveis de sua
existência sociocultural” (OLIVEIRA, 1998, p. 54), enquanto a territorialização dá ênfase a

“(...) uma intervenção da esfera política que associa — de forma prescritiva e


insofismável — um conjunto de indivíduos e grupos a limites geográficos bem
determinados. É esse ato político — constituidor de objetos étnicos através de
mecanismos arbitrários e de arbitragem (...) que estou propondo tomar como fio
condutor da investigação antropológica.” (OLIVEIRA, 1998, p. 56)

No século XIX foi que os primeiros exploradores e arqueólogos “descobriram” que


existiam os mayas contemporâneos da modernidade, também, mas diante do contraste entre as

42 Como visto anteriormente, não há indícios de que qualquer classificação sistemática de pessoas como
“mayas” durante o período em questão tenha de fato ocorrido.
46

“ruínas” grandiosas e a gente simples enxergaram neles tão somente a agricultura como
vínculo com os mayas do passado (WAINWRIGHT, 2008). Aqueles mayas, assim como os de
hoje, eram e continuam a ser vistos como símbolos da decadência maya, empurrando os
debates para uma polarização improdutiva entre continuidade cultural e aculturação, ou a
acusação de que os mayas contemporâneos são apenas oportunistas se apropriando do termo
“maya”.43 Portanto, já havia uma definição depreciativa dos mayas contemporâneos, que os
mayas tendem a rebater e refutar este tipo de diminuição que lhes foi – e, de certa maneira,
ainda pode ser – imputada por muitos acadêmicos nos dias de hoje.

The Mayanists were provoked by the mystery of the Maya: a great civilization grew
in the New World tropics, then suddenly disappeared. Mayanism emerged as a way
to explain this mystery while also defining who the Maya were – to explain how to
appreciate them aesthetically. Mayanism thereby made possible a way of speaking
of and for the Maya without the Maya. In the resulting discourse, the Maya are
framed as a fallen people: once great and worthy of admiration, they still receive
appreciation as relics of an ancient and mysterious civilization. Through Mayanism,
the Maya stand before the West as an allegory for the decline of our own
civilization, and thus the living Maya are an especially pertinent site for our own
moral investment. On this basis – in order to carry forward civilization in the face of
its potential demise – the Mayanist discourse points the way forward for the Maya
farm system: settling, territorialization, and capitalism qua development.
(WAINWRIGHT, 2008, p. 103)

Talvez tenhamos aqui mais indícios a considerar para pensar o apelo que os mayas
contemporâneos podem despertar ainda hoje, internacionalmente, no sentido da caridade e da
cooperação internacional, além do contínuo interesse cristão na conversão religiosa. A história
construída sobre os mayas é a de que eles perderam todo o esplendor do passado e estão
destinados à total assimilação através da superação de seu sistema agrícola, que seria não
apenas o único vínculo com o passado, mas com um certo “primitivismo” maya. Sempre
interessou muito mais exaltar os mayas do passado, e parecem existir também razões políticas
para tal. Wainwright (2008, p. 141, nota 10) afirma que o mayanismo foi facilitado pelo
fortalecimento do projeto imperialista dos EUA: “Mayanism emerges precisely around the
recognition of the very unfamiliarity, indigeneity, and 'Americanness' of the Maya”
(WAINWRIGHT, 2008, p. 102). Se os EUA emergiam como novo “império” na América, os
mayas representavam o mais próximo disso na expressão de uma grande civilização
43 Este é um senso comum entre alguns ladinos até os dias de hoje; eu mesmo ouvi coisas nesse sentido em
todas as minhas passagens pela Guatemala, de pessoas que depreciam a politização da identidade maya e
argumentam no sentido de desautorizar ou deslegitimar o direito à autoidentificação como “maya”.
47

prehispanic, ainda que hoje consideremos que ela não chegou a formar um império.
Não surpreende que o mayanismo, então, seja também um poderoso discurso que
exalta a elite maya do passado ao mesmo tempo em que diminui e deslegitima os povos
mayas do presente. Considerando os interesses e as ideologias imperialistas e
assimilacionistas que até hoje persistem, nada poderia ser mais conveniente do que contribuir
na diluição do que se via como “últimos costumes” mayas em favor de processos de
transformá-los em trabalhadores rurais e urbanos sem direitos específicos e desprovidos de
uma consciência (e consequentemente, incapazes de perpetuar a resistência) indígena.
Ao longo da segunda “descoberta” é que os mayas foram de fato “inventados”,
definições dos mayas começaram a ser elaboradas nos marcos de uma intensificação da
produção de discursos que Wainwright definiu como típicos do “mayanismo”, caracterizado
como um poder de autoridade para definição do que é maya, do que são os mayas
(WAINWRIGHT, 2008). Ao mesmo tempo, mayanismo refere-se a uma maneira de falar dos
mayas sem os mayas, portanto há um vínculo claro com discursos colonialistas nas ciências
humanas e sociais.
O “mayanismo” seria uma forma de arbitrar sobre os mayas, criar e disseminar
representações deles, ainda que de forma alheia a eles, reificando-os. Os “mayas” como os
entendemos hoje começam a ser inventados quando os mayas antigos (especialmente os
chamados mayas clássicos)44 foram “descobertos” e popularizados por exploradores como
John Lloyd Stephens, e desde então cada vez mais estudados, nomeados, definidos.

Prior to the Nineteenth Century, there were certainly people in the Western world
with an awareness of Pre-Columbian civilizations in Mesoamerica, but their
attention to Mesoamerican indigenous culture was secondary to concerns with
complex societies of the Old World (see Hamann 2008). Popular interest in ancient
Maya culture for its own sake was not provoked until John Lloyd Stephens’ (1841,
1843) Incidents of Travel books, a series of travel narratives published in the mid-
Nineteenth Century accompanied by Frederick Catherwood’s exquisite drawings of
archaeological sites in the Maya Lowlands. The wide distribution of Stephens’ books
(...) is said to have established the public‘s fascination with “lost cities in the
‘jungle’”, a romantic “characterization of the Maya as enigmatic and unique
among ancient civilizations” that persists today (McKillop 2004:41). While the
popularization of the ancient Maya brought about by Stephens fostered a niche for
professional scholars to conduct research at universities, amateur studies of ancient
Maya culture were concurrently emerging. (BLAINEY, 2011, p. 353)

44 Os “mayas clássicos”, de acordo com a cronologia da Mesoamérica (quadro 3) são aqueles que viveram
especialmente entre os anos de 300 e 900 da era comum (EC), e associados ao apogeu cultural e auge da
civilização maya e de sua influência.
48

Stephens e Frederick Catherwood são os nomes mais recorrentes na historiografia da


invenção e – especialmente – popularização dos mayas, mas dezenas de outros nomes,
incluindo aqueles que serviram como referência para eles poderiam ser lembrados
(PIMENTA-SILVA, 2017). Os relatos de seus incidentes de viagem em terras mayas por
Stephens, e a descrição de diversos sítios arqueológicos, acompanhadas pelas ilustrações de
Catherwood – cuja qualidade era bastante superior à de publicações de exploradores
anteriores (EVANS, 2004) –, tornaram-se bastante populares, praticamente apresentando os
mayas antigos ao ocidente.
Neste sentido, eles se tornaram os primeiros “exploradores mayas” a ganharem uma
grande popularidade, influenciando leitores até os dias de hoje. Stephens é considerado por
alguns o próprio pai da arqueologia maya (MORRIS, 2011), inaugurando uma ênfase que
caracterizaria os estudos mayanistas por muito tempo – diria eu, em boa medida, até os dias
de hoje:

The emphasis on big sites, elite architecture, and monumental art that dominated
Stephens and Catherwood’s work came to typify Maya studies for the next century
or so. These almost exclusive concerns with the elite aspects of ancient Maya
civilization were not successfully challenged until the 1950s with the rising interest
in Maya settlement patterns and growing attention to peasant lifeways and their
contribution to the development of Maya civilization. (Sabloff 1993:xiii apud
MORRIS, 2011)

O discurso de Stephens propagou de maneira recorrente comparações com os gregos,


egípcios e outras grandes civilizações conhecidas pelos europeus (EVANS, 2004, p. 63). Tais
comparações são feitas desde o século XVI, como é possível observar nos escritos de
Bartolomé de Las Casas, por exemplo (CAVALCANTI, 2014), evidenciando como o
imaginário acerca de uma “alta cultura” maya é bastante antigo, ao mesmo tempo limitado
pela referência a comparações com civilizações do “velho mundo”, uma marca antiga de
autores mayanistas.
Ademais, na época prévia à profissionalização, alguns autores bastante influentes
naquele entonces associaram os mayas, por exemplo, a Atlântida e a tribos perdidas de Israel
(PIMENTA-SILVA, 2012). A especulação sobre a origem dos mayas, em geral, os tiravam da
América, os colocavam à parte e “acima” dos demais povos indígenas da América.
49

Em sua tese inédita, José Miguel Pimenta-Silva (PIMENTA-SILVA, 2017) conceitua


a construção das imagens dos mayas no pensamento ocidental de maneira ligeiramente
diferente. Ele separa essa construção em eras distintas. A primeira era, da descrição (1746-
1822) abrange desde a primeira expedição científica até o fim do período colonial. A segunda
é a era da representação (1822-1860), que tem como maiores expoentes Stephens e
Catherwood.
A terceira é chamada por ele de “era do real” (1860-1980), marcada principalmente
por um período atribuído como uma época de profissionalização do saber mayanista,
marcadamente da arqueologia (1860-1945). A partir de 1980, de acordo com o historiador
português, entramos na “era digital”, que talvez pudesse ser antecipada em alguns anos, uma
vez que os mayanistas começaram a se apropriar da informática já nos anos 1970.
Claramente, tanto eu quanto o Miguel nos inserimos na era digital, um fator aliás
determinante para que possamos estudar sobre os mayas, uma vez que da perspectiva do
campo mayanista viemos de uma periferia praticamente inexistente, enquanto investigadores
lusófonos.
De qualquer maneira, diversos cronistas, exploradores e acadêmicos (inclusive
anteriores ao século XVIII) podem ser colocados no rol dos “mayanistas”, como se vê na
figura 1 abaixo. Apesar de inspirada particularmente na história da epigrafia maya – e,
portanto, da tentativa de decifração dos hieróglifos mayas –, ela serve como um resumo
particularmente interessante de mayanistas ao longo da história, ainda mais pertinente neste
caso uma vez que este não é o espaço apropriado para me alongar acerca de uma “história do
mayanismo”.
Foi apenas nas últimas décadas do século XIX, e coincidindo com o começo da
conformação de um campo mayanista composto por acadêmicos profissionais, que uma ideia
mais geral do que seriam os “mayas antigos” ou “mayas clássicos” começou a tomar a forma
que tem hoje. Ou seja, foi quando os “mayas” que permanecem ainda hoje no senso comum –
aos quais associamos as grandes pirâmides, os hieróglifos, uma “astronomia avançada” e
calendários “perfeitos”, etc – começaram a ser forjados.

Entre os últimos anos do século XIX e os primeiros do século XX, numa data
impossível de precisar, ocorre quase uma aceitação generalizada de que os Maias
actuais são os descendentes dos antigos Maias construtores das cidades perdidas
50

engolidas pela selva. Contudo, este pensamento era apenas partilhado pelas elites
intelectuais, sendo que a maioria do público e uma pequena parcela dos académicos,
ainda ponderava a existência de outros habitantes. (PIMENTA-SILVA, 2012, p. 233)

Sem dúvida, não tardou muito para que mais continuidades culturais fossem
reconhecidas e estudadas no meio antropológico logo nas primeiras décadas do século XX, e
a mais valorizada enquanto “vínculo com o passado” talvez seja aquela referente aos
calendários. Especificamente, as contagens dos ciclos de 260 e 365 dias foram mantidas (em
separado ou combinadas) em diversas comunidades.45
Estes, entretanto, seriam apenas traços culturais mesoamericanos, não estivessem
aquelas comunidades vinculadas a uma espécie de unidade identitária macro maya ou pan-
maya. E a partir da linguística – mais especificamente, da definição de um “tronco linguístico
maya” – é que a identidade pan-maya de fato legitimou-se enquanto maya, a despeito de a
autoidentificação dos indivíduos como mayas ser um fenômeno recente.
A astronomia, incluindo a orientação arqueoastronômica de estruturas, bem como a
complexidade dos calendários mayas, ainda no século XIX desafiavam os modelos
eurocêntricos e evolucionistas, bem como os primeiros mayanistas acadêmicos profissionais.
A correlação da conta longa já era objeto inclusive de disputa acadêmica à época da virada
para o século XX. Hoje, são dezenas de teorias diferentes para reconstruir a conta longa,
excludentes entre si.
Como alguém que se identificava como mayanista, acredito atualmente que a disputa
em torno da correlação da conta longa é a mais antiga e duradoura entre os mayanistas, pois
persiste ainda hoje em parte do meio acadêmico. Além disto, acredito também que o clima de
teorias paralelas e excludentes acerca dos calendários contribuiu para a minha idealização
acerca de um único e verdadeiro calendário maya, que revelou-se bastante enganosa. Bem,
para aqueles dispostos a perpetuar a ideia de que só a elite maya clássica equivale aos
“verdadeiros mayas”, certamente isto continuará a valer…
Especialmente na primeira metade do século XX, destacaram-se no campo
mayanista, tratando de temas que iam desde a história maya até os hieróglifos e os
calendários, autores como John Teeple, Sylvanus Morley e John Eric Sidney Thompson.

45 Cf. MILES, 1967.


51

Figura 1 – Lista de mayanistas ao longo da história, baseada em HOUSTON, CHINCHILLA & STUART, 2001.
52

O caso de Morley é particularmente interessante. Trata-se de um nome importante


para a arqueologia mayanista de seu tempo, mas posteriormente sua identidade dupla foi
revelada: o arqueólogo serviu também como um espião estadunidense em terras mayas
durante a primeira guerra mundial (HARRIS & SADLE, 2003).
Seu caso não foi único. Uma meia dúzia de mayanistas associados a ele serviram
como espiões, e um deles inclusive chegou a implementar uma codificação de informações de
espionagem a partir de hieróglifos mayas. Franz Boas denunciou publicamente em 1919, sem
citar nomes, o grupo de Morley, numa carta pública intitulada “Scientists as spies”. Em reação
às denúncias que depois provaram-se verdadeiras, a American Anthropological Association
(AAA) impôs sua mais infame censura a Boas (BROWMAN, 2011), retirada apenas em 2005.
O fato de a maioria dos espiões envolvidos terem experiência estudando os mayas
não deve ser naturalizado. Ao contrário, isto evidencia que a hipótese levantada por
Wainwright não pode jamais ser considerada mera politização no pior sentido de “cegueira
ideológica”. Afinal, não faltam evidências46 de que o interesse estadunidense nos mayas em
algum momento talvez tenha sido tão grande quanto o interesse em controlar seus vizinhos
latinos ao sul, todos compreendendo também os territórios mayas e uma vasta população
indígena. Menos ainda faltam provas do uso imperialista da antropologia como uma arma de
inteligência por parte dos governos estadunidenses ao longo da história (PRICE, 2011).
Há mais de cem anos, portanto, já havia ficado evidente – e já era denunciado por
Boas em seus círculos – que mayanistas estavam perpetuando a práxis dos piores
antropólogos aliados ao poder colonial. Ao atuarem como espiões para serviços de
inteligência estadunidense nos países “mayas”, camuflados como mayanistas, exerciam uma
dupla autoridade que ultrajava a ética atrelada à profissionalização da antropologia – e dos
mayanistas – demarcada por Boas.
Thompson, que seria – entre os mayanistas profissionais – o nome mais marcante do
século XX, buscou e conseguiu uma entrada na arqueologia maya através de Morley, para
trabalhar com ele no projeto arqueológico em Chichén Itzá. Ele logo demonstrou para seu
chefe arqueólogo-espião que tinha habilidade para ler os antigos registros calendáricos em
monumentos mayas (PIMENTA-SILVA, 2017).
A investigação – e mesmo a relação – de Thompson com os calendários mayas

46 Cf. EVANS, 2004.


53

marcariam ao mesmo tempo, talvez o maior acerto e o maior erro do campo mayanista. A
correlação mais aceita entre a conta longa e os calendários europeus, incorporada inclusive
pelo movimento maya, tem nele um de seus propositores, sendo conhecida pela sigla GMT
(Goodman-Martinez-Thompson). Foi a partir desta correlação que definiu-se o fim de um
grande ciclo maya para dezembro 2012, por ano.
Por outro lado, na epigrafia sua posição histórica revelou-se, ainda em vida,
obcecada pelos calendários. Durante pelo menos três décadas, ele nutriu publicamente a
convicção de que todos os hieróglifos continham, sempre, necessariamente, relação com os
calendários. Desta maneira, ele negava que os hieróglifos mayas constituíssem de fato uma
escrita plena, inclusive passível de leitura fonética, para resumir-se em boa medida a questões
matemática e de contagem de tempo. Sua grande influência nos estudos mayanistas
certamente contribuiu para retardar o avanço da decifração dos hieróglifos mayas.
Thompson teve certamente um lugar de destaque na construção – ou, talvez melhor
dito, fixação – de representações dos mayas presentes no senso comum. A obsessão dele com
os calendários reflete-se na ênfase em uma imagem dos mayas como particularmente
obcecados pelo tempo, tantas vezes reiterada pelos mayanistas – e inclusive por mim. Além
disto, Thompson reconheceu a continuidade cultural dos mayas, defendendo que os
descendentes dos antigos mayas ainda preservavam vários costumes e ideias (PIMENTA-
SILVA, 2017).

Thompson asume un papel fundamental como influenciador de imaginarios, ya que


su visión de los mayas como una civilización atípica, sin presencia de guerras en su
historia, va a transmitir a las masas una imagen pacifica y en parte distorcionada
de la realidad. Es importante destacar que lo hace por convicción y sin cualquier
intensión de transmitir una falsa idea. Sin embargo, esa postura va a ser
determinante para que una populación vasta fuese educada debajo de esa misma
perspectiva, siendo la misma transmitida en línea directa para las nuevas
generaciones. Por otro lado la figura de Thompson también marca la aceptación de
las masas y de las elites más conservadoras del nuevo modelo científico.
(PIMENTA-SILVA, 2017, p. 260)

A convicção de Thompson foi determinante para as representações de que as antigas


elites clássicas eram pacíficas, e de que os mayas viviam em harmonia com a natureza. Como
observado por Pimenta-Silva, estas representações se fazem presentes até os dias de hoje,
sendo particularmente incorporadas por movimentos da “nova era”, a quem convém a
54

imagem dos mayas como evoluídos dentro dos marcos de uma ecologia anacrônica.
Thompson só foi superado no campo da epigrafia na década de 1950 quando, graças
aos estudos de Yuri Knorosov, ficou definitivamente comprovado que os hieróglifos não
tratavam apenas de calendários, mas também de uma forma de escrita passível de transcrição
fonética. Isto inaugurou uma nova era entre os mayanistas, uma vez que a decifração dos
hieróglifos passou a acontecer numa velocidade cada vez maior, em processo ainda corrente.

As coisas começaram a mudar em 1952, quando Yuri V. Knorosov, um jovem


etnólogo russo desconhecido no ocidente, publicou em Leningrado um breve artigo
que iria revolucionar o estudo dos hieróglifos mayas (...)
Knorosov sugeriu que essa escrita não era essencialmente ídeográfica, como
entendiam Thompson e a maioria dos mayólogos 47 desde o final do século XIX, mas
também. em grande parte, fonética, e que além disso existia, e estava sob os olhos
dos estudiosos há quase cem anos, o equivalente maya da Pedra de Roseta. O
“alfabeto maya”, compilado pelo bispo Diego de Landa no seculo XVI, havia sido
publicado em 1864, mas os especialistas modernos não haviam conseguido nenhum
resultado ao aplicá-lo à leitura dos hieróglifos pré-hispânicos, passando a considerá-
lo fruto da imaginação do cronista. Nos anos seguintes, Knorosov publicou uma
série de resultados de sua interpretação fonética que foram porém solenemente
ignorados pelos epigrafistas europeus e americanos. As irnplicações culturais da
guerra fria e o prestígio de Thompson, radicalmente contrario à tese foneticista,
impediram uma avaliação objetiva das descobertas de Knorosov.
Ela aconteceu em janeiro de 1956, quando um casal de americanos passeava pelas
ruas de Mérida, a capital de Yucatan, à procura de livros sobre os antigos Maias.
Michael D. Coe, um jovem arqueólogo de Harvard que iniciara há pouco tempo
escavações no sul da Guatemala, havia-se casado no ano anterior com Sophie,
estudante de antropologia e filha de Theodosius Dobzhansky, o grande geneticista
russo radicado nos Estados Unidos. Coe encontrou numa livraria uma versão
mexicana do primeiro artigo de Knorosov, e imediatamente percebeu a sua
imponência. Sophie, fluente em russo, passou então a traduzir para o inglês o
principais trabalhos de Knorosov e Coe tornou-se, junto com David Kelley e uns
poucos outros` o grande defensor e divulgador das teses de Knorosov no ocidente.
O caminho para a decifração da escrita maya estava-se abrindo, e a partir de 1960,
quando Tatiana Proskouriakoff (outra russa radicada nos Estados Unidos) descobriu
que diversas inscrições mayas faziam referência a governantes e a fatos políticos, a
história dos Maias começou a ser escrita. (PORRO, 1997, p. 280)

Mais ou menos na mesma época, e ao longo de toda a segunda metade do século XX,
os mayanistas se multiplicaram numa velocidade cada vez maior. Os acadêmicos mayas que
seriam grandes precursores do movimento maya começavam a ganhar destaque, como Adrián
Inés Chávez. O campo mayanista experimentou, portanto, a chegada dos próprios mayas aos
estudos mayas.

47 Este é um termo geralmente aplicado – principalmente até a década de 1970 – com o mesmo sentido de
mayanista acadêmico, profissional, como é o caso do contexto da citação.
55

Especialmente a partir dos anos 80 (coincidindo mais ou menos com a “era digital”
proposta por Pimenta-Silva), uma mulher ganhou notoriedade, depois de Proskouriakoff, entre
os mayanistas, após voltar-se para os estudos mayas tardiamente em sua formação acadêmica
(durante o doutorado). Linda Schele atuou direta e ativamente nos estudos mayas, e
especialmente na epigrafia, desde os anos 70, contribuindo também para a organização de
congressos científicos, workshops de epigrafia e exposições atrelados à popularização dos
mayas; sua morte talvez tenha deixado uma lacuna não preenchida.48

The workshop rapport cultivated from the late-1970s through the mid-1990s by
Mayanist Linda Schele, among others, entailed clear imaginations of a public
participating in the creation of Maya history (...) this recent style of valuing public
participation in hieroglyphic research began in 1973 when Mayanist art historian
Merle Greene Robertson founded the Palenque Mesa Redonda series. The kernels of
collaboration planted at the first Round Table and its successors in the 1970s
matured into the more thoroughgoing public engagement of the Maya Meetings. The
Maya Meetings entangled research, public outreach, and pedagogy, proving
successful enough to spawn similar workshops across the United States. This (…)
demonstrates how we can understand the Maya Meetings as an expression (…) [of]
“public science,” or a set of institutionalized knowledge practices in which
“imaginations of the public world, however that is construed, can be taken as
integral to scientific knowledge-generation, not simply as afterthoughts.”
(WATSON, 2010)

Duas mulheres, então, parecem particularmente influentes na escrita da história maya


após a guinada “comunista” de Knorosov na epigrafia mayanista. Se Proskouriakoff, como
sugere Antonio Porro (PORRO, 1997), foi determinante para inaugurar a escrita da história
maya a partir dos próprios documentos mayas antigos,49 Schele influenciou muito o campo
mayanista e a divulgação científica dos mayas, por exemplo, com seus workshops de
epigrafia.
O trabalho de Linda e o próprio Maya Meetings chegaram à Guatemala ainda na
década de 80. Em parceria com Nikolai Grube,50 eles afirmam que, num workshop ministrado

48 Há um documentário póstumo sobre Linda Schele, chamado Edgewalker: a conversation with Linda Schele
(2010). Como o próprio título sugere, Linda é apresentada como uma mulher que transitou por fronteiras
disciplinares para deixar sua marca na história da decifração dos hieróglifos mayas.
49 Aqui, compreendo como “documento” qualquer objeto ou suporte que contenha inscrições utilizando a
antiga escrita maya, seja em pedra (estela), cerâmica (vasos, pratos), etc.
50 Nikolai Grube é talvez o principal epigrafista vivo entre os mayanistas, e foi também meu coorientador
durante a graduação (CAVALCANTI, 2014). Ele lidera, atualmente, desde a Universidade de Bönn, um
projeto ambicioso e de longo prazo, Text Database and Dictionary of Classic Mayan, para a criação de
banco de dados e dicionário de glifos mayas. Mais informações podem ser obtidas no sítio do projeto, em
http://mayawoerterbuch.de.
56

por eles em Antigua Guatemala no ano de 1987, um dos participantes tornou-se o primeiro
maya a ler um texto maya antigo em séculos:

The first workshop was designed to teach the Maya participants some of the history
of the writing system, how to spell using syllable signs and logographs, the syntax of
the system, a set of common verbs and titles, and, on the last day, how to do a
structural analysis of the Tablet of 96 Glyphs from Palenque. Though this last work
was not finished, a team of Q’eqchi’ speakers led by Eduardo Pacay read their
translation of the first half of the tablet and thus became the first modern Maya to
read an ancient text in their own language (SCHELE & GRUBE, 1996, p. 132)

Este foi, sem dúvida, um momento histórico; o relato dá conta de que os mundos de
mayas e mayanistas se cruzaram definitivamente, e viriam a se confundir cada vez mais. Se,
àquela altura, já vários mayas tinham formação universitária, cada vez mais mayas
investigavam sobre os mayas, borrando a fronteira entre mayas e mayanistas, a partir daquele
momento os próprios mayas puderam ler e escrever, por si próprios, na antiga escrita maya.
Aquele workshop na Guatemala, interpretado de acordo com Matthew Clay Watson como “a
site of public science that was integral to constituting the concept of a coherent, trans-
historical Maya culture (…) the instructors understood the participants as vital contributors
to generating interpretations of the ancient Maya” (WATSON, 2010, p. 243).

[the workshop was a] (…) coproduction of present and past and reconstitution of the
hieroglyphic object, (...) [a] workshop-based alliance between United States and
European epigraphy scholars, on the one hand, and Maya linguists and activists, on
the other, [which] developed into a mutualism providing beneficial political
resources to the Maya activist-linguists and beneficial epistemological resources to
the epigraphers. The mutualism hinges on a collectively crafted narrative of
essential Maya identity. (WATSON, 2010, p. 39)

(…) I examine the Antigua Linguistics Workshops as a process that contributed


simultaneously to the effort of linguists and activists to consolidate a widespread
Maya cultural identity in Guatemala and to the process by which scholars such as
Schele came to imagine a unified Maya identity. In other words, both the activists
and the scholars had interests in constructing a notion of the Maya as a coherent,
essential culture. (WATSON, 2010, p. 244)

Como fica bastante evidente a partir do caso de Linda Schele, alguns mayanistas já
forneciam ferramentas e conhecimentos para ativistas mayas; por outro lado, Schele teve
acesso à espiritualidade maya contemporânea e articulou as informações de que dispunha para
afirmar que existe uma continuidade cultural milenar dos mayas. O conhecimento da escrita
57

antiga maya pode ser interpretado como um alto “capital cultural maya”, conceito este que
será abordado no próximo capítulo. Este é o exemplo de uma situação em que as relações
entre academia e movimento maya fazem circular o maya como capital, e isto deve ser
entendido também como um produto da invenção dos mayas pelos mayanistas.
Hoje, jovens epigrafistas mayas ensinam outros mayas, o que não seria possível sem
um encontro entre mayas e mayanistas. Sem este encontro, aliás, de acordo com o que
defendo aqui, sequer se falaria em “mayas”.
Portanto, “os mayas” foram inicialmente uma fabricação colonial, imperialista e ao
mesmo tempo científica, definidos em versões imaginadas e fixadas, informadas pelo
eurocentrismo e que só enxergavam centelhas do “maya primitivo” nos indígenas vivos. Com
o tempo e a politização da identidade maya, apoiada na valorização das representações
positivas e enaltecedoras dos mayas – e especialmente de diacríticos como os hieróglifos e os
calendários, tal qual os mayanistas –, os mayas afirmaram um orgulho que contrastava com a
inferiorização do “índio”.
Assim, os próprios mayanistas – mesmo aqueles que não se envolveram diretamente
com o movimento maya, como Schele – ajudaram a legitimar a identidade maya reivindicada
pelos mayas contemporâneos. A se observar os efeitos permanentes dos encontros entre
mayas e mayanistas nas próximas décadas.

2.2.1 NOTAS SOBRE CONCEITOS DIVERGENTES DE MAYANISMO


No passado, mais especificamente em meu livro publicado em 2012
(CAVALCANTI, 2012), minha concepção de mayanismo era bastante limitada ao conceito tal
qual definido por John Hoopes (2001), que pouco tem a ver com a amplitude do conceito tal
qual cunhado por Wainwright (2008).
Em Hoopes (2011), por exemplo, “mayanismo” seria um conceito mais apropriado
para pensar o contexto de autores da nova era e seus seguidores, sendo caracterizado de
maneira geral pela atribuição de outras crenças como se fossem mayas – este é o sentido que
também dei ao termo em escritos anteriores.51
Diretamente influenciado por Hoopes (2011), defini o conceito de mayanismo quase
como sinônimo de uma – no pior sentido da palavra – ideologia pseudo-maya forjada por

51 Cf. CAVALCANTI, 2012b, por exemplo.


58

movimentos da nova era que se apropriaram do maya e o mesclam a qualquer outra coisa que
ultrajaria um mayanista militante, produzindo as representações mais sem-pé-nem-cabeça dos
mayas como ETs, etc (CAVALCANTI, 2015).
Justamente por me sentir ultrajado pelas deturpações do calendário maya é que o
conceito de Hoopes pareceu-me tão atraente. Para mim, atualmente, este conceito de
mayanismo implica, necessariamente, em uma crítica que pode ser demasiado ácida e mesmo
agressiva ou, ainda, essencialista.
Logo após publicar o meu livro, ainda em 2012, apresentei – no seminário
organizado pelo mesmo programa de pós-graduação no qual este mestrado foi cursado – um
relato precoce e parcial, ainda pouco reflexivo, sobre as experiências em ONGs mayas (Cf.
Capítulo 4 abaixo), em que eu tentava enquadrar estas instituições no escopo do
“mayanismo”, que foi então definido como “ideologia político-religiosa que sincretiza new
age e maya” e vinculado aos “movimentos da nova era”. Por mais que eu estivesse tratando
de instituições mayas, meu uso do conceito de mayanismo teve um claro componente
essencialista, como se implicasse no meu julgamento (enquanto um defensor autoproclamado
da cultura) de que aqueles mayas eram tão diferentes do que eu esperava – e principalmente
do que meus interlocutores mayas tradicionalistas esperam – que eu via mais similitudes entre
eles e a nova era, supostamente justificando este uso do conceito, do qual me arrependo.
À época, contudo, e principalmente no livro, defendi o conceito de Hoopes, e
inclusive reproduzi a estratégia de desvincular “mayanismo” de “mayanista”,52 cunhando dois
conceitos radicalmente diferentes e que certamente tendem à confusão. Isto se deve ao fato de
que mayanist em inglês é um termo geralmente aplicado como referência aos mayanistas
acadêmicos, profissionais, e esta é uma prática que o próprio Hoopes ratifica. Portanto fez-se
necessário, tentar contornar e justificar um conceito de mayanismo incompatível com o de
mayanista.
Apesar das minhas críticas históricas às apropriações nova era dos mayas, e de
continuar situando o mayanista independente John Major Jenkins como um autor pertencente
ao escopo nova era – mas, assim como Hoopes, com boas contribuições para os mayanistas
em geral –, é necessário reconhecer que Jenkins (2014) tem razão quando afirma que
“mayanismo” tem sentidos que precedem sua associação com a nova era, aparecendo

52 Ver o verbete para “mayanist” na Wikipedia, por exemplo: http://en.wikipedia.org/wiki/Mayanist.


59

originalmente em consonância com o sentido empregado nos trabalhos de Victor Montejo


(MONTEJO, 2005) e Kay Warren (WARREN, 1998).53 Ademais, um verbete “mayanismo” é
mantido na Wikipédia,54 pautado apenas no seu uso crítico à nova era e ignorando os outros
conceitos aqui apresentados, que se aplicam a análises de contextos que vão desde o período
colonial até o século XXI e não se restringem às influências esotéricas da nova era,
dissolvendo a contradição do distanciamento conceitual entre “mayanista” e “mayanismo”.
Fazendo buscas acerca do termo mayanismo, pude constatar que na verdade a maior
parte das ocorrências na internet faz referência não à nova era, mas ao movimento maya. De
fato, não foi Warren quem inventou o termo mayanismo – ou sua variante pan-mayanismo –
como referência ao movimento maya, sendo este na verdade um sentido de uso corrente no
senso comum desde os anos 80, e que também aparece nos escritos de Montejo (MONTEJO,
2005). Outros intelectuais mayas, como Edgar Esquit (ESQUIT, 2013) e Aura Cumes
(BASTOS & CUMES, 2007), por exemplo, usam o termo mayanista em espanhol para
referir-se aos ativistas do movimento maya, vinculado portanto a este mesmo escopo de
emprego do termo “mayanismo”.55
Defendo que o conceito de mayanismo de Wainwright é suficientemente abrangente
e flexível para se aplicar tanto à produção de discursos e conhecimentos científicos, quanto
militantes (isto é, de ativistas do movimento maya), e nova era sobre mayas, e que poderia
servir para pensar eventuais proximidades entre distintos campos que tem em comum o fato
de elaborarem representações sobre os mayas – que nem precisam ser as mesmas
representações.
Além do conceito de Hoopes (2001), que limita o mayanismo às apropriações nova
era dos mayas e seus precursores, do conceito como referência ao movimento maya e à
politização da identidade maya e do conceito de Wainwright (2008), já apresentado acima e
com o qual me familiarizei durante o mestrado, consegui encontrar ainda um outro autor que
lança mão de um conceito de mayanismo.
Para Marc Blainey, o termo serve para designar uma “myriad of philosophical
systems assumed by groups of modern Euroamerican people who identify with a range of

53 Não tenho nenhum interesse particular nas desavenças entre os dois, com quem tenho contato amistoso há
vários anos, mas sendo este um conceito de fundamental importância para a dissertação trata-se de uma
questão de justiça reconhecer as diferentes aplicações do termo.
54 O verbete pode ser acessado através do endereço http://en.wikipedia.org/wiki/Mayanism.
55 Em espanhol, o termo costumeiramente utilizado para referência aos mayanistas acadêmicos é mayista.
60

esoteric convictions they attribute to ancient Maya culture” (BLAINEY, 2011, p. 352). O
mayanismo para ele também é entendido como uma “moda euroamericana”, que poderia ser
colocada em termos de “mayamania”.56 O conceito de Blainey se torna mais elástico a partir
da compreensão de que o mayanismo tem características diferentes através do tempo; seu
conceito articula-se a partir da ideia de que existem três “ondas”:

(…) “first-wave” Mayanism (as contrasted with later forms) consisted of well-
meaning adventurers accumulating and interpreting ethnographic, ethnohistoric,
and archaeological data before the respective academic disciplines of the same
name had fully matured. (...) Practitioners of first-wave Mayanism include Count
Jean Frédéric Maximilien Waldeck (…) [and] his writings about the Maya (...) are
discredited by his emphatic belief that “Maya civilization had been derived from the
Chaldeans, Phoenicians, and especially the ‘Hindoos,’ (...)” (Coe 1992:77).
Additionally, we can classify Abbé Charles Étienne Brasseur de Bourbourg as a
model of first-wave Mayanism in that (…) [he] was convinced (...) that the
Caribbean region was the location of the fabled Atlantis civilization, and that
folklore of living indigenous people like the Maya preserved the details of the
Atlantis legend (Short 1880:498–499). However, this first-wave lacked later
Mayanism’s focus on the researchers’ personal identification with cosmological
beliefs they simultaneously claim as those of the ancient Maya.
A subsequent escalation of popular interest in the mystical qualities of ancient Maya
culture, what is labelled herein as second-wave Mayanism, appeared as an amateur
parallel to professional Maya scholarship (…). These self-appointed practitioners of
Mayanism put even less emphasis on scholarly rigor than their first-wave forebears,
resulting in a substantially weakened status relative to the professionals. The
prototypical character of second-wave Mayanism (...) is William S. Burroughs. (...)
According to Hamann (2008:3–5), Burroughs’ “discussions of Maya hieroglyphs”
show remarkable “conformity to dominant interpretations of Maya writing and
culture in the 1950s—interpretations that, in that same ten-year span, were
subjected to revolutionary critiques”. Hamann (2008:3–5) further notes that
“Thompson‘s mystical approach,” which had then dominated professional
epigraphy for decades, was comparable to the intuitive methodology of Mayanism
before it was replaced by a concentration on an effective phonetic reading of glyphs.
Another prominent figure in second-wave Mayanism is Erich von Däniken, whose
Chariots of the Gods? (1999[1968]) was an international bestseller. In this book,
von Däniken details his theory that the technological achievements of the world‘s
great ancient civilizations, like the Maya, were the result of these people‘s
communing with extraterrestrials.
Finally, what is labelled here as “third-wave” Mayanism is the most topical variety
of this movement, having gained ascendency of late as the 2012 Bak‘tun end-date
approaches. Its foundations can be traced to two books: Frank Waters’ Mexico
Mystique: The Coming Sixth World of Consciousness (1975) and José Argüelles’ The
Mayan Factor (1987) (…). The origins of the third-wave are clearly rooted in the
fertile soil of folkloric conjecture that had been amassing public interest since the
mid-19th century, especially amongst what are termed “New Age” groups. Paul
Heelas’ characterizes the New Age as “Self-Spirituality.” New Agers share this
“monistic assumption that the Self itself is sacred” (Heelas 1996:2), as well as the
belief that “the earth is a conscious, living organism” (Hanegraaff 1996:157). Thus,
New Age Mayanism encourages individuals to focus on their personal links with

56 Este termo teria uso análogo ao de egiptomania, mas aplicado ao contexto maya.
61

like-minded ancient Maya selves. (BLAINEY, 2011, pp. 353-354)

Tanto Wainwright, quanto Blainey, cunharam conceitos de mayanismo aplicáveis


seja a mayanistas profissionais (como Thompson), seja a mayanistas nova era. Blainey
inclusive adjetiva o mayanismo de new age quando refere-se especificamente à nova era, o
que seria uma baita redundância se o conceito empregado fosse análogo ao de Hoopes. Nos
termos de Wainwright, foi durante a segunda descoberta dos maias (ou, para Blainey, durante
a “primeira onda” do mayanismo) que todo um discurso mayanista começou a ser elaborado
no sentido de tentar explicar a história e os logros dos mayas antigos.
Neste caso, os dois autores que conceituam mayanismo de maneira mais abrangente
abrem a possibilidade de pensar em um campo mayanista que pode ser disputado por
diferentes agentes, tanto acadêmicos gringos, acadêmicos mayas, mayanistas independentes
responsáveis e irresponsáveis, militantes do movimento maya e, eventualmente, os “maias
galácticos”.57
Um conceito de mayanismo mais abrangente, associado à noção de que os mayas
foram – e são – “inventados” e “imaginados” por virtualmente todos os agentes mayas e
mayanistas, pode contribuir para um distanciamento dos essencialismos e das representações
rígidas e absolutas dos mayas, relativizando e reinterpretando nossas próprias experiências e
discursos enquanto indivíduos inseridos neste campo mais abrangente do “mayanismo”. Este
é talvez o meu principal exercício nesta escrita e resultado de um esforço contínuo nos
últimos quatro anos, e fico particularmente aliviado em poder identificar razões para
autocrítica e reconhecer minhas imprudentes conclusões e empregos do conceito.

2.3 OS MAYAS

Como visto, os mayas deixaram de ser, especialmente a partir do século XIX, apenas
aqueles “de Mayapan” para serem aqueles de Palenque, Tikal, Copán (...), e tantos outros
grandes centros urbanos e cidades antigas – muitas das quais mais antigas que Mayapan –,
dotados de ciência e cultura próprias que os mayas contemporâneos já teriam perdido. Este
discurso favorecia o clima “assimilacionista” que pairou entre intelectuais nacionalistas da

57 No contexto do cdp, o termo “mayas galácticos” aparece ao mesmo tempo como um sinônimo para a elite
maya clássica e mesmo como uma identidade reivindicada por alguns de seus seguidores mais convictos.
62

região à época, como Miguel Ángel Astúrias (Cf. WAINWRIGHT, 2008), em que a
incorporação à sociedade nacional era vista como a única alternativa viável para os mayas
contemporâneos.
Esta parte da dissertação tem como objetivo proporcionar uma breve introdução a
definições gerais – e atuais – dos mayas, com destaque para aspectos linguísticos e
geográficos, que ilustram a diversidade maya.
A partir do estudo comparado, estrutural das línguas, que como observado começa
ainda no período colonial, foi possível sugerir a existência de uma língua original, “proto-
maya”, que passou a ser a “raiz” do tronco linguístico maya. Através dos séculos (e bem antes
dos próprios mayas clássicos), tal língua se diversificou, dando origem a cada vez mais
línguas diferentes, até chegarmos às pouco mais de 30 línguas mayas que são faladas até os
dias de hoje.
O estabelecimento de um tronco linguístico maya é debitário especialmente de
Norman McQuown e Terrence Kaufman entre os anos de 1940 e 1960, com o tronco proposto
por Kaufman em 1964 servindo como modelo principal para explicar as relações entre as
línguas mayas por mais de cinquenta anos (LAW, 2013; CAMPBELL, 2017). O avanço do
estudo comparativo moderno serviu para redefinir os mayas de vez como um grande grupo
macrolinguístico. “Maya”, então, passou a implicar em “pan-maya”, isto é, em uma vasta
diversidade de povos mayas, em lugar de apenas um.
A partir especialmente desta redefinição dos mayas amparada numa “virada
linguística” é que torna-se possível dimensionar o quão vago e generalista o “maya” pode ser.
A identidade maya contemporânea tem nas línguas mayas os seus grandes pilares, que
embasam a apropriação do termo para autoidentificação inclusive desde uma perspectiva
científica. Definitivamente, existem muitos mayas diferentes entre si e muitas maneiras
diferentes de ser maya.
O tronco linguístico maya é mostrado na figura 5, e sua linha do tempo serve para
sugerir um pouco da própria história das migrações mayas, que se reflete nas diferenciações
mais precoces e tardias em relação à língua “proto-maya”. Das línguas mayas faladas no
período colonial, duas são consideradas extintas. Das mais de 30 línguas mayas faladas
atualmente, em pelos menos 16 comunidades linguísticas 58 há evidência de uma língua pan-
58 “Comunidades linguísticas” é um termo utilizado oficialmente na Guatemala, e especialmente na ALMG,
para referir-se a cada uma das populações falantes de cada língua maya. Também pode ser utilizado como
63

maya de sinais;59 os antigos hieróglifos foram utilizados em especial pelas oito indicadas pelo
triângulo verde. Entre as 34 comunidades linguísticas, 22 compõem a diversidade linguística
guatemalteca contemporânea, como se vê na figura 6.
A área maya, de um modo generalista, 60 compreende os territórios das atuais nações
de Belize e Guatemala, além de parte de Honduras, El Salvador e México (península do
Yucatán e Chiapas), como pode ser visto na figura 2. Portanto, a área maya – que pode ser, ela
própria, uma subárea da Mesoamérica – é bastante diversa geograficamente, também,
motivando várias subdivisões possíveis:

A área maia, situada na confluência entre a América do Norte e a América Central,


apresenta no aspecto geográfico, duas grandes divisões, comumente designadas de
Terras Altas e Terras Baixas, subdividindo-se nas regiões meridional, central e
setentrional. A área meridional compreende essencialmente as Terras Altas da
Guatemala, formada por uma cadeia montanhosa de origem vulcânica, cujos picos
mais altos alcançam 4000 metros de altura. Possui um clima quente e úmido,
estendendo-se da porção oriental de Chiapas, no México, até El Salvador. Esta
região é regada por dois sistemas fluviais principais. O primeiro forma o rio
Motágua, que nasce no atual Departamento de Quiché, na Guatemala, corre em
sentido leste-nordeste e desemboca no Golfo das Honduras, costa do Caribe; o
segundo compreende o rio Usumacinta, formado por três afluentes principais: o
Pasión, Chixoy ou Salinas e o Lacantún, desembocando no Golfo do México através
de vários braços. O Usumacinta e seus tributários formam a via fluvial de maior
importância na área maia. Os centros de povoamento nas terras altas concentram-se
em vales que se elevam a mil metros acima do nível do mar. Esta região apresenta
dois lagos, o Amatitlán, próximo da cidade da Guatemala e o lago Atitlán, no
Departamento de Sololá. Esta zona meridional, apesar da fertilidade, dos recursos
naturais e do papel determinante que desempenhou durante as fases formativas da
civilização maia, apresentou um número de centros de povoamento bem inferior ao
das Terras Baixas.
As Terras Baixas situam-se na maior parte abaixo de 600 metros de altitude,
raramente ultrapassando os 100 ou 200 metros. Dividem-se em duas partes: as terras
Baixas do Sul, ou Área Central, cobertas quase que exclusivamente por uma floresta
tropical mais ou menos densa e muito úmida, que se prolonga desde a planície
costeira de Tabasco, no Golfo do México, até Belize e Honduras, no litoral do Mar
do Caribe e passando pelo Petén, no norte da Guatemala. Já as Terras Baixas do
Norte, ou Área Setentrional, englobando praticamente toda a península do Iucatã,
caracterizam-se por uma grande formação calcária e são quase que exclusivamente
desprovidas de cursos d água superficiais; em direção noroeste, o clima torna-se
progressivamente árido.” (NAVARRO, 2008)

A história maya estende-se até três ou quatro mil anos no passado, mas o período que
é objeto de maior atenção é chamado período clássico (~300-900 EC), 61 que coincide
substituto à noção de “etnia”.
59 Esta língua de sinais é conhecida como meemul tziij. Cf. TREE, 2009.
60 E entendida portanto para além da península do Yucatán.
61 Para datações, utilizo AEC (Antes da Era Comum) e EC (Era Comum).
64

justamente com o “auge” maya, a época das antigas elites mayas e das cidades-Estado. A
cronologia da Mesoamérica utilizada por arqueólogos e historiadores gira em torno dos
mayas, pois tem como principal referencial justamente o período clássico.
Os períodos anterior e posterior são nomeados em função do período clássico (“pré-
clássico” e “pós-clássico”), como pode ser visto no quadro 3, evidenciando a importância e a
influência dos mayas e dos mayanistas na própria escrita da história mesoamericana e para a
conformação dos estudos mesoamericanos. O período “clássico” não corresponde aos
olmecas ou a Teotihuacán, estão vinculados às origens da civilização “mesoamericana” e cujo
domínio precedeu os próprios mayas, mas sim ao período em que a elite maya antiga esteve
em seu auge.

Antropólogos, arqueólogos, historiadores e outros cientistas sociais usam o termo


Mesoamérica para descrever o mundo conhecido pelos mexicas (astecas) em 1519
(época das primeiras invasões espanholas e portuguesas), que consiste numa área
que vai desde o norte do México, passando por Guatemala, Belize, El Salvador, a
parte oeste de Honduras e a costa do Pacífico de Nicarágua e Costa Rica. Mais do
que uma região, trata-se de uma área cultural caracterizada [pelo compartilhamento,
entre dezenas de etnias, de] tradições como o uso de um calendário incomum de 260
dias e o jogo de bola, por exemplo. (CAVALCANTI, 2012, p. 24)

Neste sentido, muito do que se atribui como “maya”, como por exemplo os
calendários, não tem, necessariamente, uma origem maya. Situar os mayas dentro do
panorama histórico mesoamericano revela-se também num esforço em desimaginá-los; por
exemplo, os diferentes grupos mayas tiveram e mantiveram contato com outras etnias, e
podem até ter sofrido uma influência maior de outros grupos étnicos do que de falantes de
alguma língua maya.
Assim, lembrar o conceito de Mesoamérica e as suas bases, ainda que também
pautadas na observação de traços culturais comuns, serve para lembrar fundamentalmente que
os mayas não estão e nunca estiveram isolados, e os mayas nunca existiram enquanto um
povo hermeticamente isolado, ou jamais teriam se desdobrado em mais de 30 grupos étnicos
distintos. Ademais, inclusive durante o período clássico os mayas receberam influência
exterior como, por exemplo, a teotihuacana.
O mesmo pensamento deve se aplicar também, claro, para além da própria noção de
65

Mesoamérica, que apesar de ser pensada em contraste a outras regiões – e também por isto
mesmo – têm fronteiras incertas e disputadas, especialmente se forem consideradas as
histórias das migrações e seus aspectos sociolinguísticos.
Como será visto a seguir, os mayas passaram a se identificar como mayas quando
estavam inseridos em um contexto nacional absolutamente conturbado. Isto se refletiu
também em diferentes articulações da identidade maya que respondem a interesses que não
são necessariamente apenas os interesses mayas.

Figura 2 – Mapa da Mesoamérica, incluindo as atuais fronteiras nacionais e subregiões mesoamericanas, com a
área maya destacada em verde. Fonte: FAMSI.
66

PERÍODO DURAÇÃO CULTURAS, CIDADES E INFORMAÇÕES


Arcaico ? – 1900 AEC Primeiras ocupações humanas
Oralidade primária
Domesticação do milho
Desenvolvimento do calendário de 260 dias
Primeiros indícios de escrita (?)
Formativo inicial ~ 1.900 – 900 AEC Olmeca, zapoteca
Xochipala, San Lorenzo
Formativo médio ~ 900 – 350AEC Monte Albán, La Venta; El Mirador (maya)
Formativo tardio ~ 350 – 50 AEC Monte Albán, Colima
Proto-clássico ~ 50 AEC – 300 EC Teotihuacán, Izapa, Kaminaljuyú
Clássico inicial ~ 300 – 600 EC Mayas
Tikal, Uaxactún, El Tajín, Escuintla
Clássico tardio ~ 600 – 900 EC Mayas
Palenque, Yaxchilán, Cacaxtla
Clássico terminal/ ~ 900 – 1200 EC Transição “maya-tolteca”
Pós-clássico inicial Xochicalco, Mitla, Chichen Itzá
Pós-clássico tardio ~ 1200 – 1519 EC Mexicas (astecas)
Tenochtitlán, Tula, Tlaxcala, Mayapán
Pós-invasão ~ 1519 – Hoje Início da invasão e da opressão europeia
(colonial e Destruição das últimas cidades indígenas
modernidade) (Tayasal, última cidade maya, 1697)
Independências e formação dos Estados nacionais
“Guerra das castas” (1847-1901)
Guerra civil guatemalteca (1960-1996)
“Ciclo de 2012”
Quadro 3 – Cronologia simplificada da Mesoamérica; baseado em CAVALCANTI, 2014.
67

Figura 3 – Mapa da área maya dividida em terras baixas (lowlands) e altas (highlands). Fonte:
latinamericanstudies.org.
68

Figura 4 – Mapa da área maya subdivida em setentrional, central e meridional. Fonte: latinamericanstudies.org.
69

Figura 5 – Tronco linguístico maya. Fonte: CAVALCANTI, 2014.


70

Figura 6 – Mapa linguístico da Guatemala, elaborado a partir do regulamento da Ley de Idiomas Nacionales.
Fonte: CAVALCANTI, 2014.
71

3 – ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA (SÉCS. XX-XXI)

Como observado, mesmo os falantes de língua maya – os mayas “yukatekos” –


nunca compartilharam o uso do termo “maya” como categoria identitária. Neste sentido, e em
acordo com Restall (2004), não é possível falar em uma etnogênese maya ao longo de toda a
história colonial, nem mesmo após a formação dos Estados nacionais e a guerra das castas,
ainda que desde o século XIX pairasse entre intelectuais mayanistas a noção de que os
indígenas eram “descendentes dos mayas”. Tampouco, portanto, é possível aplicar a noção de
comunidade imaginada. Mas esta situação mudou completamente em um caldeirão chamado
Guatemala, no meio do século XX.
Independente desde 1821, inicialmente a Guatemala tinha em seus limites territoriais
as atuais regiões de Chiapas e Belize. Por sua própria localização geográfica, o centro do
México e a península do Yucatán eram bem mais acessíveis aos europeus que vinham do mar.
Além disto, uma floresta tropical – a floresta do Petén – abrange literalmente todo o norte da
Guatemala, se estendendo até o sul da península. Esta região abriga centenas de sítios
arqueológicos e estruturas mayas que foram engolidos pela selva, alguns da mais alta
relevância para a arqueologia mayanista – como Tikal e El Mirador.
Ao longo de todo o período colonial, a floresta serviu como um refúgio para mayas
que fugiam dos avanços da territorialização, enquanto os invasores sufocavam cada vez mais
a península, por exemplo. Na historiografia, inclusive, a última cidade maya foi derrubada no
Petén, apenas no ano de 1697, portanto quase no século XVIII. Este ano, ainda mais
considerando seu significado historiográfico, está numa posição simbólica no mínimo
interessante. Cerca de 150 anos antes, os invasores europeus foram bem sucedidos em
colonizar a área, superando duas décadas de resistência indígena (1546) e se estabelecendo na
península (RESTALL & GABBERT, 2017); e 150 anos depois, ocorreu o estopim da guerra
das castas (1847), que já representava a exaustão das práticas colonialistas de territorialização
na península do Yucatán.

3.1 A ETNOGÊNESE MAYA NO CONTEXTO DA HISTÓRIA POLÍTICA


GUATEMALTECA

A Guatemala do século XIX teve diversos conflitos locais, uma independência que
72

pouco se diferenciou da estrutura colonial, sendo uma época caracterizada como Estado
criollo,62 até que uma revolução liberal teve lugar, mas desdobrou-se depois em mais uma
onda de expropriação de terras comunais:

Los criollos [despues de la independencia] no cambiaron las condiciones de vida de


la mayoría de la población que estaba sometida al trabajo esclavo, a la miseria, a
la explotación y a la pobreza. Por esto se les llamó Conservadores, por conservar
las cosas como habían estado antes de 1821. Los gobiernos conservadores duraron
desde 1821 hasta 1871.
Desde la Invasión de los españoles a nuestro territorio surge el ladino o mestizo.
Los mestizos fueron favorecidos porque no se les obligó a pagar tributos a la corona
española, pero no se les permitió ser dueños de tierras, ni acceder a cargos públicos
(…)
Los criollos menos favorecidos por los gobiernos conservadores y los mestizos que
lograron estudiar (...) se unieron a las ideas liberales que venían de la Revolución
Francesa. (…)
[Al] triunfo armado [de los liberales sobre los conservadores] (…) se le llamó
“Revolución Liberal” (…) (CUC, s.d., p. 25)

A revolução liberal estabeleceu um Estado ladino, e a divisão dos três poderes no


Estado guatemalteco; criou o exército da Guatemala, favoreceu os produtores de café e
expropriou terras indígenas e até da igreja, iniciando um movimento de universalização e
laicização da educação (CUC, s.d.).

Estas leyes liberales estuvieron funcionando hasta 1944, poco más de 70 años, en
los cuales gobernaron militares como el general Manuel Estrada Cabrera y Jorge
Ubico. Durante estos años se utilizó la represión, cárcel, trabajos forzados, golpes,
tortura e incluso fusilamiento, para someter a la población que se rebelaba contra
las injusticias. Se estableció el Servicio Militar Forzoso para reclutar jóvenes
pobres, principalmente en el campo, para que sirvieran como soldados en el
ejército. Se entregaron los recursos del país a empresas extranjeras, principalmente
norteamericanas, para su explotación. Entre ello, la producción agrícola de banano
y el control de los medios de comunicación como la telefonía, el telégrafo, el
ferrocarril y la electricidad.
Durante la Segunda Guerra Mundial, Guatemala se alinea con Estados Unidos y
expulsa a los alemanes que habían impulsado la producción de café en el país y sus
fincas son nacionalizadas. (CUC, s.d., p. 26)

Ainda no final da segunda guerra, entretanto, a Guatemala teve seus melhores dias, a
partir da chamada revolução de outubro em 1944. Rompendo com a longa era de governos
liberais e de submissão aos interesses externos – principalmente estadunidenses –, os novos

62 Historicamente, a Guatemala é dominada por criollos, nascidos na América mas de suposto “sangue puro”
(europeu), e depois criollos e ladinos (mestiços que deixaram de lado suas raízes indígenas e ascenderam
socialmente), sempre em detrimento dos indígenas.
73

governantes impulsionaram uma reforma agrária que beneficiou diretamente milhares de


campesinos indígenas. Além disto, facilitou a participação indígena na política institucional
guatemalteca, e a partir de então o congresso passou a ter vários deputados mayas – até os
dias de hoje.

En 1944 sectores urbanos, como estudiantes, profesionales universitarios, militares


jóvenes, comerciantes y trabajadores, llevaron a cabo jornadas de protesta y lucha
que obligaron a Ubico a renunciar a la presidencia, dejando en su lugar a otro
militar, Federico Ponce Vaides, que asesinó y reprimió durante 100 días, hasta que
es derrocado por el movimiento revolucionario el 20 de Octubre de 1944,
iniciándose así la Revolución de Octubre. Este período revolucionario duró 10
años, conocidos como “los 10 Años de Primavera”.
Seguidamente se hizo una elección popular quedando como presidente el
Licenciado Juan José Arévalo Bermejo, sustituido en 1950 por el también
revolucionario Coronel Jacobo Árbenz Guzmán.
(…) El gobierno de Estados Unidos salió en defensa de los intereses de las grandes
compañías norteamericanas que sacaban riquezas de nuestro país: Telephone and
Telegraf y la United Fruit Company, y empezaron a decir que “era peligroso que el
gobierno revolucionario tomara medidas comunistas que afectaran la estabilidad
política de la región centroamericana y por supuesto la estadounidense”.
Los grandes terratenientes y el gobierno de Estados Unidos trataron de aislar al
Gobierno Revolucionario acusándolo internacionalmente, hasta que en 1954 lanzan
la invasión mercenaria pagada por el Departamento de Estado Norteamericano,
organizada por la [CIA] Central de Inteligencia Americana (el director en ese
entonces era Foster Dulles, hermano del dueño de la United Fruit, Allen Dulles; y
encabezada por el militar, traidor a su país, Carlos Castillo Armas del mal llamado
Movimiento de Liberación Nacional.
(…) La Revolución de Octubre fue derrotada el 27 de Junio de 1954, iniciándose
para nuestro país una etapa de retroceso en el proceso democrático. (...) Las
medidas populares fueron echadas atrás, como la Constitución decretada durante la
Revolución. Se devolvieron las tierras expropiadas a los ricos y se persiguió
despiadadamente a líderes campesinos, sindicales, funcionarios del gobierno
revolucionario, artistas, universitarios y líderes comunitarios; descabezando a las
organizaciones sociales y políticas.
(…) La intervención norteamericana interrumpió los cambios en marcha y cerró
todo camino político para buscarle solución a los problemas nacionales. El Estado
guatemalteco, con el pretexto de su lucha contra el Comunismo, inicia acciones
para frenar cualquier posibilidad de organización comunitaria, la libre expresión,
la participación política, la justicia y el respeto a los derechos humanos. Se ensañó
en su represión y persecución contra las comunidades indígenas, maestros y líderes
agraristas revolucionarios. (CUC, s.d., pp. 27-33)

Na historiografia dos golpes na América Latina, a Guatemala inaugura a onda de


golpes da segunda metade do século XX, e este golpe é particularmente definido como o
primeiro articulado diretamente com apoio da CIA. O que passou a ocorrer na Guatemala a
partir de então foi descrito por Montejo em resumo da seguinte maneira: “Since 1954, the
climate in Guatemala has ben one of terror. The selective killing of individuals in the 1970s
74

escalated into major massacres of indigenous communities and massive violations of human
rights in the 1980s” (MONTEJO, 2005, p. 178). A luta armada começou em 1960, quando
surgiram as primeiras guerrilhas , inspiradas na revolução cubana no ano anterior (CUC, s.d.).

La intervención norteamericana interrumpió los cambios en marcha y cerró todo


camino político para buscarle solución a los problemas nacionales. El Estado
guatemalteco, con el pretexto de su lucha contra el Comunismo, inicia acciones
para frenar cualquier posibilidad de organización comunitaria, la libre expresión,
la participación política, la justicia y el respeto a los derechos humanos. Se ensañó
en su represión y persecución contra las comunidades indígenas, maestros y líderes
agraristas revolucionarios. Esta situación llevó a las comunidades indígenas a
continuar y profundizar el camino de la resistencia maya acumulada (…) (CUC,
s.d., p. 33)

O documento do Comité de Unidad Campesina (CUC, s.d.) dá ênfase ao fato de que


o golpe de Estado em 1954 aprofundou a o espírito de resistência nas comunidades mayas.
Relata também que os mayas participaram ativamente das guerrilhas desde o começo e, mais
do que isso, afirma que o marxismo estava articulado à cosmovisão maya naquela conjuntura
de guerra.

La lucha armada fue dando lugar a la configuración de un proyecto revolucionario


de transformación desde un punto de vista ideológico y político esencialmente
marxista leninista. O sea, planteaba la toma del poder por el pueblo y el cambio a
una sociedad justa y socialista. Las ideas marxistas se encontraron,
complementaron y enriquecieron mutuamente con el pensamiento y la cosmovisión
maya dual, basada en el respeto a la Madre Naturaleza, el arte de la guerra
aplicada a la guerra de guerrillas y al caudal de experiencias de resistencia de los
pueblos indígenas, lo que trajo como resultado una profunda mística
revolucionaria. En este contexto revolucionario, las comunidades Poptí, Chuj, Ixil,
K’iche’, Quekchí, Mam y otras, registran en su memoria histórica la decisión de sus
autoridades tradicionales, de incorporarse de manera colectiva y comunitaria al
Proyecto Revolucionario. (CUC, s.d., p. 36)

Neste sentido, seria possível afirmar que já existiam “mayas comunistas” ou “mayas
de esquerda” antes mesmo de eles se entenderem como “mayas” – o que, suponho, já não
seria surpresa alguma desde a revolução de 1944. Entretanto, para entender melhor o contexto
é preciso também relativizar, por outro lado, esta visão de uma relação harmônica entre as
guerrilhas e os mayas, de maneira a evitar qualquer generalização. Dito de outra forma,
existiram mayas de todos os lados da guerra: no exército, nas guerrilhas e em nenhum dos
dois. Mayas comunistas e mayas anticomunistas, e mayas tentando se livrar dos dois rótulos
75

em uma conjuntura de conflito latente.


Logo após associar o movimento pan-maya a um comprometimento com o
renascimento e a sobrevivência coletiva, pautado na ênfase ao respeito mútuo dentro de cada
comunidade linguística, construindo portanto uma solidariedade pan-étnica, Montejo escreve
uma síntese histórica reveladora:

The early forms of pan-Maya associations can be traced to the special teacher
institutes that train Maya women and men. Among these institutions have been the
Instituto Indígena “Santiago and the Instituto Indígena “Nuestra Señora del
Socorro” (the latter for women). These institutes for secondary and vocational
education were run as boarding schools by religious orders. The establishment of
these Indian institutes was a result of the struggle against Communism in
Guatemala by Bishop Mariano Rossell y Arellano after the downfall of the Arbenz
government. This was a measure to stop Maya from falling into the traps of
Communist manipulation. It is interesting to note that some of the most proeminent
Maya leaders of the present were trained in these institutes. (MONTEJO, 2005, p.
74)

Alguns dos estudantes mayas formados nesses institutos católicos tornaram-se, nas
décadas seguintes – e principalmente durante o conflito armado interno – os acadêmicos
mayas que, segundo Montejo, “construct an ethnic identity that encouraged pride in the
Maya herritage (…) [and] after about 1950 began to rethink their position as mediators and
interlocutors between the two worlds” (MONTEJO, 2005, p. 75). Este exemplo demonstra
como, durante a tensão política na Guatemala dos anos 50, os próprios mayas eram disputados
tanto pela esquerda quanto pelos anticomunistas. Neste caso, a própria gestação dos
intelectuais e da identidade maya se deu em diversos contextos locais e regionais, e
principalmente associados a culturas políticas divergentes.
Como é possível perceber, diferentes apropriações do termo “maya” como categoria
identitária pelos indígenas ocorrem antes mesmo da constituição de um movimento maya
mais organizado nos anos 80, e não está ao meu alcance documentá-la à ocasião desta escrita.
O “maya” está em disputa desde sempre, e a penetração da identidade maya entre os
indígenas guatemaltecos se deu através de diversos agentes e instituições estatais,
contraestatais, liberais, revolucionárias e religiosas, cada qual com suas agendas políticas
distintas.
A guerra civil guatemalteca durou oficialmente de 1960 a 1996, e portanto também
não posso dar conta aqui de muitos de seus pormenores, bastando para o interesse imediato a
76

compreensão mais geral da complexidade deste conflito, e de que os mayas – que eram
maioria do contingente tanto da guerrilha quanto do exército – estiveram em diversas
posições no cenário da política nacional, muitas vezes opostas. A construção da identidade
maya e principalmente o senso de pertencimento maya não se dá de maneira alheia à
experiência do auge da guerra civil, a não ser em abstrações culturalistas que negam a
política.
Portanto, a autoidentificação maya ocorre nesta conjuntura nacional marcante, e a
grosso modo “etnogênese maya” implica em “movimento maya”. A Guatemala sofreu o
primeiro da onda de golpes de Estado com suporte estadunidenses em 1954, e ao mesmo
tempo foi a última a sair dos conflitos desencadeados pelo golpe. Mais ou menos no meio
deste período de mais de 42 anos (1954-1996), ainda antes de as comunidades mayas
sofrerem os maiores massacres e genocídios patrocinados pela ditadura militar no final dos
anos 70 e começo dos 80, alguns intelectuais mayas já reivindicavam a identidade maya, mas
ela também passou a ser politizada em relação ao conflito e a discursos marxistas.

En estos momentos de incertidumbre, terror y euforia, aparece para quedarse, el


término “maya” utilizado por los indígenas para autoidentificarse étnicamente. Y
surge en el seno de una experiencia que pretende ser a la vez la radicalización del
pensamiento nacionalista que ya venía perfilándose, y un puente con las
organizaciones revolucionarias que pugnan por la lucha armada -pretenden ser “el
quinto dedo, le dedo maya de la URNG”. Se trata del grupo formado por el
Movimiento Indio Tojil -MIT–, que organizará tres frentes con igual mala fortuna
militar- la Organización de Desplazados –que buscará acoger y proteger a las
víctimas de las mascares-, y el Movimiento de Acción y Ayuda Solidaria –MAYAS-
que lleva a cabo la labor ideológica y de presencia internacional. Es ésta la que en
1984 presenta lo que muchos consideran el documento fundacional del Movimiento
Maya como tal: “Guatemala, de la República Centralista Burguesa a la República
Federal Popular”. En el lenguaje estalinista del momento, se habla de
“nacionalidades mayanses”, “pueblos mayanses”, “nación maya”, “república
maya”, “conciencia panindia”, “magna nación mayense” y de la “Federación de
Repúblicas Mayanses de Mesoamérica”, y es la primera vez que se propone la idea
de una solución al problema indígena que pase por la autonomía territorial (…)
(BASTOS, 2004, p. 5)

Como pode ser constatado, no momento de maior conflito o termo maya é


politicamente articulado ao corte de classe. Este entusiasmo de um nacionalismo maya,
entretanto, não se alongou muito, pois logo a Guatemala entrou num momento de transição
para a paz, com a saída dos militares no poder, e houve a oportunidade política de exercer
pressão popular para a criação de ventanillas indígenas – as “janelinhas” dos mayas no Estado
77

–,63 marcadamente para a criação da ALMG.

Cuando en 1986 los militares entregan la Presidencia de la República a un civil, la


represión contra la población indígena ha sido tal, que se puede suponer que no van
a ser un actor importante –como tales indígenas– en esta nueva fase. Pero la cosa
no es así en absoluto, y por el contrario, los próximos años verán renacer con más
fuerza la movilización indígena, y ahora ya como movimiento Maya, pero de una
forma dicotómica (…) Por un lado, están quienes se identifican a sí mismos como
mayas y reclaman este término para ser identificados. Se reúnen en una serie de
organizacio nes, las desde entonces llamadas “organizaciones mayas”: ONGs
dedicadas a asuntos culturales, idiomáticos, educativos o de desarrollo local,
caracterizadas por estar formadas única y exclusivamente por mayas (...). De una
forma pacífica, y a base de actividades variadas, reclaman la protección y fomento
de los elementos culturales que les hacen diferentes al resto de los guatemalteco y,
de hecho, durante la segunda mitad de los 80, gran parte de su energía irá centrada
en la demanda de formación de una Academia de Lenguas Mayas. A inicios de los
90 su propuesta se hace abiertamente política, cuando el recién formado –o
rearticulado– Consejo de Organizaciones del pueblo Maya –COMG– da a conocer
sus Derechos Específicos del Pueblo Maya, en que se articulan ya una serie de
demandas alrededor de la idea de los derechos colectivos.
(...)Pero en la vida política cotidiana de la Guatemala de estos años, no estarán
solos. Estarán acompañados por una serie de organizaciones, vinculadas a la
URNG, que reclaman su carácter de víctimas de la violencia desatada contra ellos
en los 80 (...) Estas organizaciones están formadas mayoritariamente por indígenas,
y con ese término se identifican a sí mismos, pero esta identidad no es la base
fundamental de sus reclamos y su actuación. Ellos demandan como campesinos
pobres que fueron masacrados y militarizados por reclamar justicia. (BASTOS,
2004, pp. 4-5)

Quando este processo de negociação e criação de ventanillas indígenas, e de ONGs e


organizaçẽs de aqjq’ijab’ começou, o movimento maya passou a se organizar de fato em
torno das demandas étnicas, e a ser particularmente caracterizado por uma valorização da
identidade maya a ponto de tornar-se principal fundamento de sua militância, ainda que se
deva reconhecer que determinados setores e organizações que podem reivindicar-se parte do
movimento maya continuem tentando articular o corte étnico com o de classe.

3.2 ETNOGÊNESE E MOVIMENTO MAYA COMO PROJETO INTELECTUAL


INDÍGENA

Como percebe-se, a autoidentificação dos indígenas como “maya” é um processo


muito recente para todas as etnias mayas. Especialmente a partir das décadas de 1980 e 1990 é
63 Ventanilla – ou, mais especificamente, ventanilla indígena ou maya – é um termo utilizado na Guatemala
como referência aos espaços e instituições indígenas dentro do Estado. A imagem da janela remete ao acesso
limitação ao Estado. Cf. por exemplo DARY, 2011.
78

que os mayas da Guatemala passaram a se identificar coletivamente e de maneira mais


consistente usando este termo,64 o que significa que novas e recentes disputas pela
representação acerca dos mayas passaram a ter lugar e, onde até então existia uma distinção
mais clara entre as etnias maya k'iche' e maya kaqchikel, por exemplo, passou a haver um
potencial elemento unificador, a partir de uma espécie de “resgate” da identidade maya.
Mas, para que esta nova identidade, que está na base do próprio movimento maya,
fosse legitimada perante a sociedade guatemalteca, foi preciso recorrer às definições
atualizadas dos mayas, especialmente a partir do desenvolvimento da ciência linguística.
A identidade maya na Guatemala é um fenômeno novo, do século XX.
Especialmente a partir da década de 1980, indígenas que simplesmente se identificavam
apenas como “índios” (ou de acordo com sua etnia ou comunidade linguística) passaram a se
identificar cada vez mais como “mayas”. Por esta razão, a princípio só faria sentido falar em
identidade maya na Guatemala para designar uma identidade pan-maya que congrega todas
estas diferentes etnias indígenas passíveis de classificação como “mayas”. Em 1985, foi
fundada a Academia de Lenguas Mayas de Guatemala (ALMG), uma autarquia federal, em
que os próprios mayas puderam debater padronizações e unificar a escrita de suas línguas.
O fomento desta nova identidade na Guatemala – que é pautada especialmente pelo
movimento maya de cunho mais culturalista – está relacionado aos intelectuais mayas que,
nas décadas de 1970 e 1980, estavam cada mais vez presentes na universidade, inclusive
fazendo pós-graduação no exterior.65 Foram especialmente estes intelectuais – dentre eles,
Victor Montejo – que vislumbraram uma possibilidade de valorização dos indígenas
contemporâneos a partir de um “renascimento” da própria identidade maya capaz de ser
incorporada não apenas pelos indígenas, mas também pelas instituições, o Estado e a
Guatemala como um todo.
Montejo (2005) define e defende o pan-mayanismo enquanto uma possibilidade de
solidariedade interétnica e transnacional, de fortalecimento mútuo entre as etnias e
comunidades englobadas no pan-mayanismo. Literalmente, uma “diversidade na unidade” (ou
vice-versa), e esta unidade é representada por uma cultura maya compartilhada num nível
macrocultural. Tal unidade, na prática, sustenta-se especialmente a partir da ciência
linguística, uma vez que os linguistas identificaram que todas as línguas que hoje
64 Cf. MONTEJO, 2005 e BASTOS & CUMES, 2007, por exemplo.
65 Cf. MONTEJO, 2005.
79

consideramos mayas partilham uma origem comum, “proto-maya”.


Nestes termos, o movimento pan-maya, tal qual o mayanismo nos termos de
Wainwright, está preocupado com a continuidade cultural, mas por outras razões: convém ao
movimento pan-maya registrar mais cautelosamente as continuidades para reivindicar com
mais propriedade o seu vínculo com o passado. Aquele mayanismo preocupava-se que só
haviam restado práticas “primitivas”, uma “continuidade cultural” que é apenas um resquício
no processo de aculturação, enquanto o movimento pan-maya queria aproximar-se e não
afastar-se dos mayas clássicos: aqui, além dos calendários, surge outro traço cultural ainda
mais relevante: o resgate da escrita em hieróglifos. Se há algum “renascimento”, talvez esteja
aí o mais cobiçado enquanto uma espécie de revinculação cultural com a elite do período
clássico: ler a história maya escrita pelos mayas antigos e escrever a sua própria história no
século XXI usando a escrita antiga. Não por acaso, abundaram pequenos monumentos de
pedra em diferentes lugares contendo registros à ocasião do “ciclo de 2012”.
Se valendo da própria história maya, que considerada de maneira generalista chega a
ter 3 mil anos de duração corrente, Montejo argumenta que a cultura maya já passou por
várias fases e crises, e que portanto a reconstrução atual não é senão mais um novo ciclo de
reconstrução, desta vez particularmente relacionado às rupturas provocadas pelo conflito
armado na Guatemala. Uma das estratégias sugeridas para esta nova reconstrução é a de que
os mayas se apropriem do print capitalism de maneira a produzir conhecimento escrito, em
forma de livros e contribuições para jornais, por exemplo. Também por este tipo de
abordagem é que Kay Warren (2000) propõe que o movimento pan-maya também produz e
dissemina “capital cultural maya”.

A criação e redistribuição do 'capital cultural' – que nesse cenário inclui os meios de


comunicação, a educação, o conhecimento do passado e do presente, linguagens
com as quais interrogar o status quo, conhecimento cosmológico, modelos de
autoridade comunitária, experiência em culturas de organização e habilidades para
comunicar através de comunidades linguísticas e por meio de várias tecnologias –
são outros recursos, cujo acesso diferenciado faz uma diferença material e cultural
na vida das pessoas.
Nesse contexto, os estudiosos dos movimentos sociais poderiam levar em conta a
utilidade de uma noção antropológica de 'capital cultural'. Infelizmente, no caso em
questão, os analistas entenderam o capital cultural de modo convencional, como
sendo um monopólio da corrente central da sociedade. Numa abordagem
psicológica anterior, a noção de Oscar Lewis de “cultura da pobreza” (1966)
condenou as classes baixas pela pobreza de sua cultura vivida, ou seja, sua falta de
normas centrais idealizadas (muitas das quais, na verdade e na prática, escapam
80

ironicamente à classe média também). De um ângulo mais sociológico e estrutural,


Pierre Bourdieu (1977, 1984) apresentou uma formulação do capital simbólico e das
hierarquias de status como escadas singulares tendo a alta cultura no ápice. Mais
recentemente, Phillipe Bourgois (1995), ao observar como os empresários do centro
decadente da cidade mobilizam seu capital cultural e social em cenários sociais
altamente segregados, insistiu que a noção de capital cultural fosse historicizada e
tornada interativa. Ele permanece astutamente consciente dos contextos políticos e
econômicos em que isso ocorre. Mas, embora Bourgois reconheça a presença local
de diferentes tipos de capital cultural, desconsidera em larga medida sua importância
e seu impacto sobre a sociedade mais ampla. (WARREN, 2000, p. 275)

Em sua visão geral sobre o movimento pan-maya na Guatemala, Warren (1998)


aclara o papel de protagonismo de diversos intelectuais mayas na elaboração desta proposta
da qual fala Montejo. Tais intelectuais trabalharam, nos anos 80, na construção de um
movimento social centrado na revitalização da cultura maya. A postura desses intelectuais foi
decolonial, buscando-se a escrita da história maya pelos próprios mayas, tal qual observa-se
nos incentivos de Montejo.
É a este processo que Montejo chama de “renascença intelectual maya” já no título
de seu principal livro sobre movimento maya (MONTEJO, 2005). Ele deu uma importante
contribuição tanto para os próprios mayas quanto para acadêmicos e o público interessado nas
questões políticas do movimento indígena em geral e do movimento pan-maya na Guatemala
em específico. Falando ao mesmo tempo enquanto Maya Jakalteka, antropólogo e um dos
intelectuais precursores do próprio movimento, sua posição é sem dúvida privilegiada para
examinar uma série de nuances relacionadas à política maya e guatemalteca.
A este mesmo processo, Santiago Bastos e Aura Cumes (2007) chamaram
“mayanização”. Este conceito reforça o reconhecimento de que a autoidentificação dos
indígenas guatemaltecos como “mayas” trata-se de um fenômeno novo, que introduz um
discurso identitário maya na vida de mayas e não-mayas. De fato, a identidade maya na
Guatemala é muitas vezes construída a partir de uma oposição aos ladinos.
Ainda lembrando de Wainwright e das “duas descobertas” dos mayas, algo que
proponho é que esta etnogênese maya enquanto “mayanização” pode ser entendida também
como a terceira “descoberta”, desta vez uma “autodescoberta”, dos mayas. O interessante é
que, ao fazer isto, entendo a emergência étnica pan-maya como um processo que não está,
necessariamente, desvinculado das definições anteriores e exógenas dos mayas. Ao contrário,
interessa-me observar continuidades e descontinuidades nas apropriações das definições
81

colonialistas pelos ativistas mayas. Se, no século XIX, uma elite maya do passado foi
“descoberta”, no século XX foi também uma elite intelectual maya, contemporânea, que
fomentou a “redescoberta” maya de si mesma.
E, para valorizar esta identidade no Mundo Moderno, demonstrou-se
estrategicamente interessante fomentar um “capital cultural maya” que remetesse,
precisamente, aos traços culturais mais valorizados nos mayas clássicos. Daí,
fundamentalmente, a preocupação com o estudo e o fomento dos calendários e da escrita em
hieróglifos. Ver mayas reaprendendo a escrita de seus antepassados após tantos séculos seria,
literalmente, um milagre, um símbolo do ressurgimento da grandeza dos mayas.
Acredito que estes intelectuais, que podemos considerar espécies de fundadores do
movimento pan-maya, souberam perceber e aproveitar o que Sidney Tarrow (2011) definiria
como “oportunidade política”. Na verdade, podemos entender que a emersão da identidade
maya entre os indígenas contemporâneos gerou e continua gerando inúmeras oportunidades
políticas para os mais diferentes atores mayas. Isto pode ser melhor compreendido a partir dos
fatores que o autor usou para definir em que situações se pode falar em oportunidade política:

Most important among such factors are (1) opening of access to participation for
new actors; (2) evidence of political realignment within the polity; (3) availability
of influential allies; and (4) emerging splits within the elite. For the same reason, it
seems most useful to limit the concept of threat to the state’s and other actors’
(TARROW, 2011, pp. 164-165)

Sem dúvida, indígenas autoidentificados mayas inseriram-se como novos atores na


política nacional, aproveitando o realinhamento da política de Estado guatemalteca a partir do
meio dos anos 80. Além da já mencionada criação de ventanillas indígenas como a ALMG,
alguns deles participaram de governos (inclusive com a criação de uma Embaixada dos Povos
Indígenas) e intelectuais mayas, como o próprio Victor Montejo, por exemplo, também
chegou a ser deputado. Além disto, é preciso mencionar que a mulher maya k’iche’ Rigoberta
Menchú Tum, que lutou contra os militares na época do conflito, narrou e publicou suas
experiências, ganhando notoriedade e o prêmio Nobel da Paz em 1992, dando ainda mais
visibilidade à luta contra a ditadura e às demandas do movimento maya.66
66 Rigoberta é a pessoa maya mais conhecida internacionalmente até hoje. Fundou o partido político de
esquerda, WINAQ, e concorreu à presidência da Guatemala, sempre à esquerda, em 2007 e 2011, mas com
votações decepcionantes. Sua figura é algo controversa, e questionamentos aos seus testemunhos do período
de conflito geraram debates acalorados na antropologia (Cf. MONTEJO, 2005).
82

Penso que, dentre os aliados influentes dos mayas, está a própria autoridade dos
acadêmicos – sejam eles intelectuais mayas ou não –, que construíram a partir do século XIX
uma categoria “maya” que legitima a reivindicação pan-étnica por parte dos indígenas
contemporâneos, particularmente amparada na linguística e, mais do que isso, estiveram
presentes no debate guatemalteco durante o período de conflito reafirmando a legitimidade da
reivindicação identitária do termo “maya”.
Defendo que as representações acadêmicas dos mayas contribuíram para a
construção do próprio “capital cultural maya” que é fomentado e reproduzido em boa parte do
movimento indígena pan-maya atualmente. Se, para o mundo, a “cultura maya” que interessa
e à qual se atribui maior valor é aquela das elites mayas clássicas, não surpreende que uma
revalorização étnica maya contemporânea, que tem raízes na própria academia, possa partir
dos mesmos preceitos.
Mais do que isto, a própria história do termo “maya” e sua construção a meu ver
serve para explicar os rumos mais culturalistas que o movimento maya assumiu quando foi
este se instituindo, em contraste com as manifestações que articulavam o componente étnico e
o classista, após a diminuição do conflito interno e início das negociações de paz a partir do
meio dos anos 80. Neste sentido, tenho a impressão de que naquela época o “maya” era mais
politizado e articulado a uma perspectiva marxista da luta de classes, ainda que esteja claro
que o “maya” já era apropriado de maneira concomitante também pelos anticomunistas. Esta
impressão se deve principalmente à profusão, a partir dos anos 90, de instituições mayas
(especialmente ventanillas indígenas e ONGs) que se adequaram às estruturas do Estado e às
demandas do capitalismo e da captação de recursos através da cooperação internacional, numa
verdadeira “capitalização” do maya.
O Estado guatemalteco passou a reconhecer os direitos dos mayas contemporâneos
através de diversas leis e acordos ao longo dos anos 90, como o acordo de paz em 1996, que
serviram para abrir mais o Estado à presença indígena. Este momento coincide com uma
conjuntura de neoliberalismo ascendente, e a ausência de uma referência na Guatemala como
o zapatismo, capaz de articular as identidades mayas com unidade política forte, explica em
parte a grande proliferação de ONGs mayas na Guatemala. Para alguns autores (Cf. BASTOS
& CUMES, 2007), os anos 90 marcaram o triunfo na Guatemala em uma transição de talvez a
83

maior parte do movimento maya para uma ideologia neoliberal multiculturalista.67

Así, tras 1996, con la Firma de la Paz y un Acuerdo de Identidad Indígena, llega un
momento político en que parece que van poder hacerse realidad los sueños del
movimiento maya. Por un lado, todas las fuerzas políticas se ha unificado en pro del
Pueblo Maya. Además, a partir del Acuerdo los mayas ya noson los únicos que
manejan este término y el discurso asociado. Al menos, el conglomerado de actores
involucrados en la paz, las partes, las Naciones Unidas, los diversos acompañantes
y sociedad civil, van a ir asumiendo la idea de un Pueblo Maya en una Guatemala
multicultural como parte de esta anhelada sociedad postbélica.
(…) Este reconocimiento se refuerza por el hecho de que el Gobierno de Guatemala
deberá negociar directa y paritariamente con las organizaciones mayas una serie
de políticas públicas concretas que deberían reflejarse en reformas constitucionales.
(…) Culminando un proceso que había empezado hacía algún tiempo, lo étnico -y
en concreto lo maya- pasa a formar parte del escenario y el discurso político de la
Guatemala de la paz, en un proceso simultáneo de compresión y extensión de lo que
va a significar “lo maya”.
(…) En definitiva, entre 1996 y 1999-2000 se van a dar los años de máxima
presencia de lo maya y el discurso multicultural en Guatemala. Parece que es
posible que en Guatemala se pongan las bases para lograr una nación multicultural
en que todos sus ciudadanos logren el respeto que se merecen. Esto traerá toda una
serie de acciones desarrolladas por actores de muy diversa índole, que en parte
rodean, pero en parte superan a los mayas del movimiento. Y es esta misma
articulación con todo el proceso de paz la que hace que termine el espejismo,
cuando en la Consulta Popular de 1999, una mayoría ajustada de los escasos
votantes deciden no aprobar las reformas constitucionales necesarias para la
redefinición étnica de Guatemala, entre otras cosas. Al año siguiente, el Frente
Republicano Guatemalteco –FRG- de Ríos Montt vence en las elecciones, y
COPMAGUA, la organización que había agrupado y dirigido y todas las energías,
se desintegra entre acusaciones mutuas de manipulación política o malversación de
fondos. Es el fin del periodo de la ilusión. (BASTOS, 2004, pp. 6-7)

Se, à altura do final dos anos 90, ainda resistia algum otimismo em relação a um
projeto nacionalista maya, após aquele momento “acabou a ilusão”. Evidenciou-se o limite da
reivindicação étnica na Guatemala e da tentativa de politizar a identidade maya por um
caminho pautado em reformas significativas do Estado, que hoje parecem apenas horizontes
distantes.
Apesar das derrotas nos anos 90, o “maya” já estava instituído em lei e reconhecido
pelo Estado de diversas formas, e por isto continuou a ser importante no cenário político e
econômico da Guatemala. Nos anos, 2000 houve uma intensificação na criação de instituições
mayas não apenas na Guatemala, mas em todos os países da zona maya. A partir deste novo
momento, aparentemente há uma grande mobilidade de militantes do movimento maya, que
passam a assumir cargos no funcionalismo público no que seria um processo de

67 Sobre o multiculturalismo neoliberal na Guatemala, ver também Hale, 2007.


84

aprofundamento da lógica de multiculturalização do Estado, estudado por Claudia Dary


(DARY, 2011).
Por conta do ciclo de 2012, o movimento maya, e especialmente seus setores e
organizações culturalistas, foram ganhando um novo e forte fôlego quanto mais a data se
aproximava. O Estado apropriou-se da publicidade e alta repercussão – e especulação – do
ciclo, fomentando diversas cerimônias mayas em sítios arqueológicos para celebrar os anos
“da cultura maya”. Os mayas se reúniram em diversos lugares, às centenas e milhares,
realizando cerimônias históricas, talvez as maiores da histórias.
É possível que o movimento maya não volte a ter tanto fôlego quanto nas ocasiões do
passado aqui mencionadas, mas o “maya” já está plenamente incorporado às políticas de
Estado da Guatemala e desde os anos 80 veio para ficar. Isto, por outro lado, não se refletiu
numa melhoria da economia guatemalteca e da qualidade de vida da massa de indígenas que
têm garantido o direito a identificar-se como mayas, xinkas e garífunas, que compõem os 24
povos minoritários da Guatemala, mas muitas vezes não têm acesso a direitos básicos de que
teoricamente goza qualquer cidadão nacional.

3.3 O “CAPITAL CULTURAL MAIA” E A RELAÇÃO ENTRE MOVIMENTO MAYA


E ESQUERDA

Até o meio do século XX, os mayas antigos eram idealizados como uma sociedade
em que uma grande massa de camponeses vivia em harmonia e servindo de bom grado a uma
pequena elite, o que os marxistas poderiam perfeitamente compreender como uma tentativa
de escamotear qualquer coisa parecida a uma “luta de classes” (ou mesmo uma luta pelo
poder entre as elites). Se, como sugere Wainwright, os mayas clássicos foram “inventados”
sob os marcos de uma ciência de ideologia liberal, então a esquerda guatemalteca poderia ter
razões para criticar qualquer tentativa de meramente revitalizar abstrações da “cultura maya”
enquanto uma maneira de forjar uma nova elite maya.
Warren (2000), ao tratar de suas experiências em campo com os mayas no fim dos
anos 80 e começo dos anos 90, argumenta que diversos setores da esquerda perderam a
oportunidade de considerar classe e etnia como política e culturalmente interativas,
reforçando a dicotomia material versus cultural. Ao pretender que a interpretação do mundo
85

material é livre da mediação social e cultural, os movimentos populares perderam a


oportunidade de compreender antropologicamente a questão.
A antropóloga destaca que os movimentos são também produtores e difusores de um
determinado “capital cultural”, mas que entretanto devemos considerar este conceito de
maneira mais abrangente; ela rejeita a ideia de um único “capital cultural”, monopolizado pela
“corrente central da sociedade”. Desta forma, haveria também capital cultural sendo
fomentado pelos intelectuais mayas, não apenas se apropriando e resignificando (d)os
inúmeros recursos “ocidentais” aos quais tiveram acesso, mas também valorizando o
conhecimento sobre história, calendário e escrita (alfabética e hieroglífica) mayas, por
exemplo.
A autora destaca ainda que tanto do ponto de vista material como do capital cultural,
a grande maioria dos atores dos movimentos mayas poderia situar-se na classe média, e os
pan-mayas estariam em mobilidade ascendente, especialmente em comparação com as
gerações de seus pais e avós.
Além disto, diversos setores do movimento maya, em cooperação com não-
indígenas, agências estatais e ONGs internacionais, têm assumido um caráter mais
descentralizado, abandonando os ideais de unificação, entretanto as tensões entre unidade e
diversidade ainda são presentes. Principalmente após os acordos de paz (1996), doadores
europeus exigiram a criação de organizações mais amplas e consenso sobre prioridades
(WARREN, 1998).
Warren defende ainda que os movimentos mayas e populares não são inconciliáveis,
visto que existem indivíduos que transitam pelos dois campos, e, portanto, há intercâmbios e
diálogos pertinentes entre eles que levam, por exemplo, os mayas a serem mais sensíveis hoje
ao tema da pobreza entre os ladinos, vistos por muitos mayas ainda hoje como rivais, em
oposição do ponto de vista étnico. Entretanto, esta conciliação parece muito complicada,
especialmente diante de contextos em que “política” e “cultura” podem ser opostos, como
observou Peres:

Aqui se está operando também com a oposição entre “política” e “cultura”,


categorias equacionadas a processos opostos de libertação e opressão,
respectivamente. “Cultura”, enquanto ideologia, é dissimulação orquestrada pelos
dominadores para deturpar uma visão realista das condições de vida dos dominados.
Tal concepção pressupõe uma elite militante esclarecida para tirar o véu posto sobre
86

os olhos dos oprimidos. A “cultura” não é pensada como um espaço de investimento


político, de luta por significados e pelo estabelecimento de novos parâmetros de
formulação do consenso e do dissenso, de uma nova formatação institucional e
valorativa para a legitimidade política, de invenção e negociação de identidades que
alimentam movimentos de contestação às desigualdades e injustiças sociais; assim
como elo de aproximação, comunicação e diálogo entre os “ativistas” e seu público.
(PERES, 2013, p. 27)

Tal oposição persistiria, por exemplo, para tradicionalistas que negam a disputa pelo
Estado ou qualquer participação na política nacional, dominada pelos outros e que nada teria a
ver com a cultura maya.
Desta maneira, há uma série de debates que potencializam conflitos de diferentes
tipos no movimento maya. Se Warren nos dá uma brecha para pensar além da ideia de um
único “capital cultural”, a natureza diversa e dinâmica do movimento maya nos faz imaginar
que não exista sequer um único “capital cultural maya”, mas vários. E, assim, devemos
considerar não apenas diferentes tipos de liderança maya, mas consequentemente diferentes
tipos de movimento maya e mesmo de organizações que, agrupadas num mesmo campo – no
sentido de que orbitam o termo “maya” –, disputam espaço entre si; tudo isto dificulta a
compreensão de como se dá a mayanização e a política maya na Guatemala, que estão em
constante movimento.
87

4 – EXPERIÊNCIAS EM CAMPO E A ACADEMIA DE LENGUA MAYAS DE


GUATEMALA

Entre Dezembro de 2011 e Janeiro de 2012, estive na Guatemala pela segunda vez, a
primeira com anseios mais “sociológicos”. Sem tempo disponível para qualquer investigação
de campo mais aprofundada, decidi visitar algumas organizações mayas que conheci ouvindo
falar, na internet, ou por indicação de pessoas que me receberam na Guatemala, como o amigo
e historiador maya Julio Menchú.68
Visitei instituições principalmente nas duas principais cidades da Guatemala: a
capital (Ciudad de Guatemala) e Quetzaltenango (popularmente chamada Xela). Mas a visita
a duas organizações na capital é que me marcariam particularmente: a Asociación de
Sacerdotes Mayas de Guatemala (ASMG) e o Confederación Nacional de Ministros de la
Espiritualidad Maya Ajq’ijab’ Oxlajuj Ajpop (Oxlajuj Ajpop). Em ambas, fui recebido por
lideranças das respectivas organizações e também ajq'ijab'69 e apresentado como antropólogo
mayista, mas tive a sensação de ser mais um turista para eles.
No caso do discurso de uma então liderança da ASMG, ficou evidente o que à época
eu chamaria de “horoscopização” do calendário maya. No trato do sacerdote comigo – e ao
explicar os significados do meu dia –, a tradução de todos os termos para o espanhol
acontecia sem qualquer mediação ou preocupação com os termos em (alguma) língua maya.
A situação chocou-me um pouco, especialmente a utilização do termo “signo” como
referência ao meu dia de nascimento.70 Eu me vi diante de uma situação em que as fronteiras
entre os mayas e os movimentos “nova era” que eu combatia e com os quais já era
“familiarizado” pareciam confundir-se. Seria possível um maya usar termos como “signo”,
que a princípio para mim eram menos adequados do que aqueles utilizados inclusive pelos
neomayas?71
68 Julio me recebeu, ainda quando ambos éramos estudantes, na Guatemala. Trata-se de um jovem historiador
maya k'iche', formado na universidade pública do país, a Universidad San Carlos de Guatemala (USAC). Foi
o meu principal interlocutor naquela viagem de 2012, e também quem fez a gentileza de me apresentar às
duas organizações mencionadas.
69 O que equivale a especialistas ou guardiões dos calendários mayas (ajq'ij, no singular), ou mais
popularmente no contexto da espiritualidad maya, “sacerdotes mayas”.
70 O termo geralmente utilizado na Guatemala para referir aos dias do calendário maya é o de nawal, e para
alguns ajq'ijab' maya k'iche' o termo mais apropriado seria uwach q'ij – “rosto do sol”, “rosto do dia” (Cf.
CAVALCANTI, 2014). É comum também a referência ao seu dia de nascimento como seu nombre maya.
71 Por “neomaya”, refiro-me aos seguidores de calendários da nova era que se apropriaram parcialmente do
calendário maya (Cf. DE LA TORRE & CAMPECHANO, 2014; BASTOS, TALLY & ZAMORA, 2013; e
BASTOS, ZAMORA & TALLY, 2016).
88

Fica evidente que, desde a minha perspectiva então, a “mayanidade” estava muito
atrelada à língua. Como eu perceberia depois, não apenas podem existir “mayas nova era”
como, dependendo do contexto, isto não representaria qualquer contradição na reivindicação
da identidade maya.
Isto tudo me ajudou a perceber a “disputa pelo maya” como algo muito mais
abrangente – que pode ir muito além dos mayas propriamente ditos – e sem fronteiras claras,
a não ser aquelas definidas pelos agentes diretamente envolvidos em um determinado
contexto e em disputas concretas.
Na Oxlajuj Ajpop, fui recebido por um homem que se apresentou como ancião
principal da organização. Desta vez, o que me incomodou foi menos o apelo irrestrito a um
vocabulário em espanhol, mas um hibridismo sui generis, em que determinado documento
mexica (“azteca”) era utilizado como se fosse maya. É claro que tal frustração naquele
momento foi consequência da minha expectativa em encontrar um “maya autêntico”, em vez
de buscar compreender as estratégias identitárias geradas e acionadas em contextos urbanos
de ativismo cultural. Neste caso, incorporava-se ao “maya” (mais do que isso, enquanto
“maya”) elementos mais abrangentes, “mesoamericanos”.
Portanto, se de um lado fiquei com a impressão de uma “assimilação” à língua
espanhola, de outro percebi que o próprio conceito de “maya” poderia ser ressignificado de
maneira a “caber” muito mais do que aquilo que seria “maya” desde uma perspectiva
culturalista, mayista ou mayanista. Ainda sem me dar muita conta, eu havia visitado duas das
organizações mayas de maior alcance nacional (MORALES SIC, 2004) e talvez das mais
voltadas para os ajq'ijab' e consequentemente os calendários.
Ainda como um graduando convicto de que escreveria sua monografia sobre
calendários mayas, aproveitei para descobrir o que as lideranças daquelas organizações
tinham a me dizer sobre o assunto. Na ASMG, usa-se o calendário maya k'iche', cujo ano
novo iniciou-se no dia 21 de Fevereiro nos últimos anos.72 Já na Oxlajuj Ajpop, a contagem
anual começa sempre no dia 21 de Dezembro.
A liderança da ASMG foi particularmente enfática acerca da importância do seu

72 Após cada ano bissexto, a data é antecipada em um dia. Neste caso, o ano novo entre 2017 e 2020, iniciará
em 20 de Fevereiro. Este “ano novo” parece ser o mais utilizado entre os mayas contemporâneos,
especialmente na Guatemala, onde esta ordem dos dias tem sido mais reafirmada pelo Ministerio de Cultura
y Deporte na última década.
89

calendário e da sua data de ano novo. Para ela, alcançar uma unidade maya é importante, e
para que este objetivo seja cumprido seria necessário unificar também o calendário maya,
especialmente no que se refere à sua data de ano novo. Esta apologia da unidade maya foi a
grande faísca para o projeto que culminou nesta dissertação.
De fato, presenciar pela primeira vez a defesa de que os mayas usem um único
calendário influenciou-me para a visita à Oxlajuj Ajpop, de maneira que eu fiquei ainda mais
curioso para indagar sobre questões calendáricas. Para minha surpresa, o ancião principal da
segunda organização não apenas repetiu discurso similar e que apela para uma espécie de
“unidade calendárica” maya, como também deslegitimou a versão do calendário utilizada pela
ASMG como sendo uma mera influência dos gringos, antropólogos sobre aqueles que já
haviam perdido a tradição dos calendários.
A diversidade calendárica maya é ampla e existe desde antes da invasão da América.
Considerando que os calendários mayas são, estruturalmente, mesoamericanos, a diversidade
calendárica remonta a alguns milênios. Isto tem sido documentado por antropólogos,
arqueólogos e etno-historiadores (etc) como Munro Edmonson (1982). Especialmente no que
se refere ao calendário de 365 dias, podemos afirmar que a autonomia de comunidades
regionais e locais no que se refere a esta conta existe há muito tempo, ou seja, dependendo da
comunidade indígena as datas de “ano novo” chegaram até o século XX e foram mantidas ou
revitalizadas com o passar dos anos.
Hoje, entretanto, e também como parte importante na tentativa de “unificar” os
mayas, diferentes grupos disputam, entre si, a instituição de um único calendário para todos
os mayas. Esta disputa se dá especialmente em torno do mesmo calendário de 365 dias, então
observa-se que há uma disputa para definir qual seria o “verdadeiro ano novo maya”. Apesar
de bastante diferente das disputas que envolvem o “problema da correlação” na academia há
mais de 100 anos, elas coincidem em uma coisa: tanto na academia, quanto entre os mayas
contemporâneos, existe uma busca pelo “único e verdadeiro calendário maya”.
A partir destas experiências, construí alguns dos pressupostos da presente
investigação. Ficou claro que: (1) existem disputas em torno do que é “maya” e (2) o
calendário pode ser um dos principais diacríticos disputados na busca por uma espécie de
“hegemonia cultural” e de definição legítima dos mayas pelos mayas, mas também dos mayas
pelos mayanistas.
90

Por isto, na elaboração do pré-projeto de mestrado, a etnogênese maya já era meu


principal interesse, por reconhecer também a importância dos próprios mayanistas em forjar o
“maya”, e comecei a pensar-me também como parte das tais “disputas” em torno da definição
do “maya”. Quanto mais eu pensei sobre a pesquisa – e a importância dos calendários e dos
hieróglifos –, mais eu senti a necessidade de não tratar apenas da etnogênese ou das ONGs
mayas, fixando-me em um diálogo mais próximo com as experiências de 2012.
Ao longo do último ano, tenho amadurecido a ideia de não apenas tratar das disputas
indígenas pela definição do que é maya, mas também das definições acadêmicas do “maya”.
Ora, a identidade maya tal qual a entendemos hoje tem legitimação principalmente linguística.
Isto é, houve uma condição para a emersão da autoidentificação maya na Guatemala: uma
prévia classificação e agrupamento de 34 etnias (32 das quais ainda vivas) sob a rubrica de
um “tronco linguístico maya” e uma determinada região geográfica Mayab'.73
Em um dos capítulos de O Poder Simbólico (1989), Pierre Bourdieu dedica-se à ideia
de “região” justamente afirmando que existe uma franca luta pelas definições de regiões na
própria academia.74 O que eu chamei inicialmente de “disputas pela identidade maya” implica
em uma luta entre os mayas para, nos termos de Bourdieu, “fazer existir ou 'inexistir'”
(BOURDIEU, 1989, p. 118) representações acerca dos mayas. Mas estas representações lidam
a todo tempo, também, com as definições científicas dos mayas, e novamente não é possível
observar uma fronteira rígida.
Um exemplo do que Bourdieu disse poderia ser a minha própria experiência em
campo. Tive a oportunidade de observar que determinadas ONGs que se reivindicam como
mayas elaboraram o seu próprio projeto de “unidade maya”. De maneira a forjar tal unidade,
entretanto, uma das estratégias mais valorizadas seria a tentativa de fazer existir uma versão
única do calendário maya. Enquanto lideranças destas ONGs se esforçavam para convencer-
me de que eles seguiam o calendário maya do jeito que ele deveria ser, em contrapartida
argumentavam, também, que a forma com que outros grupos mayas lidavam com o calendário
era ilegítima, meramente forjada por antropólogos, etc, como quem almeja fazer “inexistir” as
outras aplicações do calendário como se elas fossem “menos mayas”, ou mesmo nada mayas.

73 Que abrange a totalidade dos territórios dos atuais Estados nacionais de Guatemala e Belize, e partes de
México (península do Yucatán, Chiapas), Honduras e El Salvador.
74 Isto se aplica também no que se refere à definição de Mesoamérica e de área maya, cujas fronteiras não são
absolutas.
91

Estaríamos diante de processos de invenção de tradições?

A análise dos processos de invenção de tradições deve buscar a compreensão do


modo como as racionalizações discursivas da identidade estão imbricadas nos
esquemas e disposições que orientam as experiências compartilhadas do Self e do
mundo das pessoas comuns. Entender a estreita conexão entre ideologias e
ontologias identitárias remete às maneiras como a abordagem reflexiva dos
militantes sobre a cultura reformula e alimenta-se das noções de senso comum dos
seus conterrâneos leigos (KAPFERER, 1989). Não basta dizer que programas de
ação formulados por uma intelectualidade indígena, a partir de um a linguagem
importada, e dirigidos para suas comunidades de origem, divergem da cosmologia e
organização social genuínas do grupo, mas perguntar porque são aceitos ou
recusados. (PERES, 2013, p. 32)

Acredito que esta pergunta que Sidnei Clemente Peres sugere, para ser respondida
neste caso, exige um esforço para compreender as razões político-epistemológicas que torna
alguém (ou algum programa de ação) “maya” ou não. Sua aceitação ou recusa estaria
relacionada a uma determinada forma de conhecer – e representar – os “mayas”, bem como
aos interesses implícitos a essas formas de conhecer e representá-los.
Os antropólogos (poderiam ser os arqueólogos, os linguistas, os cientistas e até
“outros” em geral) são situados dentro destas disputas pela representação e legitimação dos
mayas. Analisando retrospectivamente o que ocorreu na Oxlajuj Ajpop, eu já tinha ali uma
forte indicação de que as disputas pelo “maya” jamais poderiam ser tratadas como algo que
ocorre apenas entre os mayas e que, como Peres sugere, alimenta-se também das noções de
senso comum. Portanto, a própria etnogênese maya na Guatemala é motivada pela
reivindicação de um vínculo a um passado (“auge”) maya, que há mais de um século era
imaginado na academia. Os antropólogos do século XX chamaram os mayas de “mayas”
antes mesmo de eles assumirem tal identidade.

4.1 – O RETORNO À GUATEMALA E O TRABALHO DE CAMPO

Se a experiência etnográfica em 2012 foi fundamental para que esta dissertação


viesse existir, por outro lado em meu retorno à Guatemala em maio de 2016 dei atenção a uma
instituição bastante diferente das ONGs mencionadas: a Academia de Lenguas Mayas de
Guatemala (ALMG). Mas, antes de chegar a ela, eu ainda percorreria um caminho
relativamente longo.
92

Os dois meses que passei na Guatemala foram bastante diferentes de tudo o que eu
havia feito antes, por inúmeras razões. Primeiro, pois passei antes pelo México, que eu ainda
não conhecia, e depois por, na Guatemala, ter passado todo o tempo na região da capital, e
não visitando sítios arqueológicos ou o interior.
Como visto, a península do Yucatán é o berço do termo “maya”, mas o movimento
maya – que faz reivindicações autoidentificando-se como maya – não é tão presente no
México, sendo difícil uma comparação com a Guatemala. Apesar disto, eu passei por lá com
bastante expectativa de entrar em contato com mayas yukatekos pelo caminho. Ao planejar
uma visita à cidade antiga de Chichén Itzá, escolhi uma alternativa à maioria dos turistas e me
instalei em Pisté no dia anterior, para ficar duas noites.
A caminhada do centro de Pisté – em que é relativamente comum encontrar pessoas
falando maya – até Chichén Itzá é altamente recomendada e curta, e evidencia uma diferença
brutal de ambientes. Ainda que, aproveitando-me do plano, tenha chegado bastante cedo ao
sítio, deparei-me com um sítio cheio de barracas de artesanato, vendido e produzido por
mayas, lado a lado com as estruturas antigas. Não tardou para que muitos turistas e
compradores aparecessem, a maioria gringos vindos de Cancún e da Riviera Maya apenas
para visitar o sítio e retornar para a praia.
Nunca havia observado coisa parecida, em que o sítio arqueológico tornou-se, ele
próprio, também um mercado a céu aberto. Foi uma magnífica experiência, apesar do
desconforto com a multidão, mas o mais interessante ocorreria ao final do dia, servindo como
um exemplo interessante de articulação da identidade maya.
Durante algum tempo, cogitei dar maior atenção à noção de interseccionalidade em
diálogo com a identidade maya, uma vez que não são tão raros os essencialismos étnicos que
colocam como menos importantes – ou mesmo excluem completamente – questões de gênero
e classe, por exemplo.
Ao interagir com os presentes em um bar a 50m da praça central de Pisté, e começar
a expor minhas razões de estar ali e meus interesses de pesquisa, tive a oportunidade de
conhecer a mulher que me servia. Ela apresentou-se não apenas como maya, mas também
como uma mulher trans.
Aquele encontro foi surpreendente e, ao mesmo tempo, serviu para reiterar as minhas
convicções de que a identidade maya pode ser articulada de inúmeras maneiras e com outras
93

identidades. Não existe contradição per se no fato de alguém ser uma mulher maya trans, por
exemplo, ou uma maya que também se reivindica feminista ou de esquerda/direita, a não ser
que nos pautemos por parâmetros de definição mais essencialista das identidades.
Neste sentido, minha experiência no México, a caminho da Guatemala, teve
principalmente um choque em relação ao turismo, que é muito maior e literalmente predatório
na península, e uma grata surpresa num bar e em conhecer a pequena cidade de Pisté, cuja
praça central é repleta de símbolos mayas, abusando da arquitetura neomaya. 75 A identidade
maya, ainda que menos reivindicada no México e em muitos casos atrelada ao turismo, talvez
seja também por isso mais maleável ou negociável em determinados contextos locais do que
na Guatemala.
Quando cheguei à Guatemala, tinha inicialmente a intenção de comparar a ALMG e
o Consejo del Pueblo Maya (CPO) respectivamente enquanto uma instituição de cunho
culturalista, a princípio mais voltadas para o fomento da cultura maya, e outra materialista,
que prioriza a luta pelo direito à terra e teve papel importante em recentes consultas
comunitárias contra o assédio do Estado e empresas transnacionais.76
Entretanto, ao visitar a sede do partido Convergencia CPO-CRD,77 ubicada na zona 1
(centro) da capital guatemalteca, descobri que o CPO não tinha qualquer sede ou presença
relevante na capital. Por isto, resolvi manter apenas a ALMG como instituição a ser visitada
de maneira recorrente durante a viagem.
O trabalho de campo consistiu principalmente em visitas sistemáticas à sede central
da ALMG78 e na aplicação de um questionário (anexo 1) a 60 (¾) de seus trabalhadores,
realizada durante as duas últimas semanas na Guatemala. Além disto, tive a oportunidade de
entrevistar Amílcar de Jesús Pop Ac, advogado e deputado maya q’eqchi’, 79 e o intelectual
maya kaqchikel e doutor em comunicação social Demetrio Cojtí Cuxil, dois dos principais
expoentes da política maya e guatemalteca, ambos críticos à ALMG nos últimos anos.

75 Neste contexto, “neomaya” refere-se não a movimentos da nova era, mas sim a um estilo arquitetônico que
busca inspiração nas estruturas mayas antigas.
76 Especialmente no que se refere à exploração mineradora no século XXI. Mais informações podem ser
encontradas na página do CPO, em www.cpo.org.gt.
77 O partido é novo e, como o próprio nome sugere, trata-se de uma convergência pela revolução democrática
(CRD) em que o CPO aparece como em destaque como principal organização.
78 A sede central da ALMG funciona de segunda a sexta, das 8 às 16h e, salvo em ocasião de algum evento,
fecha aos finais de semana.
79 Pelo partido WINAQ, ao qual se juntou cedo por convite de Rigoberta Menchú Tum. Sobre o significado do
termo winaq, Cf. nota 110 nesta dissertação e seus contextos.
94

Eu visitei a sede central da ALMG pela primeira vez em 2012, portanto na minha
segunda ida à Guatemala. Se bem me lembro, passei algo entre 1 e 2 horas por ali e fiz um
breve recorrido, guiado por um trabalhador da ALMG. Desta visita, não lembrava muito, a
não ser da fortificação num estilo militar, do salão logo à entrada do prédio principal, do altar
num jardim interno80 e do estúdio da TV Maya.

4.2 – A CHEGADA À ALMG

Quando retornei àquele lugar, em maio de 2016, e fui logo apresentando minha
intenção em acompanhar um pouco do cotidiano da instituição pelos dois meses seguintes,
minha experiência foi um bocado diferente. Desta vez, eu não saí circulando pela instituição,
e demoraria até voltar a visitar o estúdio. Primeiro, ganhei um crachá de visitante e fui
encaminhado para a recepção, que por sua vez me encaminhou para a DIPLINC, 81 onde fui
orientado a escrever uma carta requisitando permissão do presidente da ALMG, o que fiz ali
mesmo e depois protocolei junto à secretaria da presidência.
Entre idas e vindas durante quase duas semanas, circulei pouco pela instituição e
conversei bastante com meu amigo Marcelo Vicente, que estava sempre trabalhando na
unidade de caja (responsável pelo controle de caixa financeiro) da ALMG, e até minha
chegada estava também cumprindo a função de ajq’ij e conduzindo as cerimônias mayas
realizadas na sede central.82 enquanto enfrentava uma burocracia inesperada e aguardava uma
permissão oficial e definitiva para estar ali. Algumas vezes pensei estar resolvido, mas faltava
algum documento ou uma reconfirmação do que já havia sido confirmado por parte da
instituição brasileira. Esta experiência serviu logo como primeira impressão, no retorno à
instituição, de que eu estava lidando com uma “burocracia maya-estatal”.83
80 Esta parte da sede central é chamada oficialmente de Área Ceremonial (Loq’alaj Xukulib’al).
81 A DIPLINC (Dirección de planificación lingüística y cultural) é o departamento da ALMG que concentra os
especialistas e autoridades mayas em linguística e espiritualidad maya, fomentando também investigações
científicas em campos diversos. É o departamento mais mencionado, pelos próprios trabalhadores da
ALMG, como principal referência principal no que se refere a assuntos mayas dentro da instituição.
82 Infelizmente, pouco depois Marcelo sofreu um acidente e teve de ficar em casa o resto do tempo em que
estive na sede central. Por outro lado, a ausência dele me motivou a circular mais na instituição, já que
minha pendência com a presidência da ALMG estava se resolvendo à mesma época.
83 O que hoje justifica-se melhor, conhecendo a história da ALMG, sua organização e relação com o Estado.
Além disto, pelo que relataram meus interlocutores, aquela era a primeira vez em que a ALMG – pelo menos
durante aquela gestão – tinha de lidar com um investigador interessado em fazer trabalho de campo em sua
sede central. A impressão de que eu tive é de que, neste processo e nesta espera, não apenas a burocracia e a
morosidade pareciam adequados a uma instituição estatal, mas principalmente que os próprios gestores
95

Minha relação com o espaço mudou drasticamente, uma vez que havia me sentido
bastante à vontade em 2012. Toda a burocracia foi determinante, e demorou até sentir-me um
pouco mais ambientado. Foi no dia Oxlajuj No’j84 (31/05/2016) que recebi a permissão oficial
para o trabalho de campo, e constatei que finalmente esta etapa havia passado e eu me sentia
melhor – numa posição um pouco menos liminar, pelo menos.

4.3 – A BUSCA PELA HISTÓRIA DA ALMG

Durante aquelas primeiras semanas, e numa situação mais retraída em campo, acabei
ficando muito pela biblioteca (batizada em homenagem a Antonio Pop Caal, de quem até
então eu não havia ouvido falar), e buscando sobre a história da ALMG, o que sempre pensei
ser importante incluir nesta dissertação. Entretanto, mesmo isto revelou-se dificultoso, pois
não havia disponível uma publicação sobre a história da academia a não ser parágrafos e
menções dispersas. Naquele momento, cheguei a pensar que minha contribuição poderia ser
compilar uma história mais substancial da ALMG.
A intenção de escrever a história da ALMG ganhou força por alguns dias, quando
soube que já há alguns anos há um movimento – articulado com a DIPLINC – para que cada
uma das 22 comunidades linguísticas produzissem documentos sobre sua história local.
Afinal, a história da ALMG não pode – ou pelo menos não deveria – ser reduzida à sede
central ou às relações com o legislativo e o executivo da Guatemala.
Mas cedo percebi que este projeto era um empreendimento bem mais ambicioso do
que minhas possibilidades em campo, como estrangeiro que estava ali havia menos de três
semanas. Minha chance de ter acesso aos documentos já produzidos sobre a história das
comunidades linguísticas era através da DIPLINC, entretanto me deparei novamente com as
burocracias e com a reticência em confiar-me documentos não publicados.
Foi então que me dei conta de que eu deveria abandonar aquela ambição, movida

foram decidindo, ao longo das duas semanas, as etapas – por vezes redundantes – que eu tive de cumprir
para ser formalmente aceito pela presidência da ALMG, bem como os documentos necessários até
finalmente receber uma resposta oficial. Nos últimos dias deste período, exigiu-se ainda uma nova
confirmação do meu vínculo institucional no curso mestrado, retardando ainda mais meu “alvará” de
investigação enquanto esperava-se mais uma posição da burocracia universitária no Brasil.
84 Os nomes dos dias estão sem itálico pois são tratados como nomes próprios. Oxlajuj No’j é também o dia
que está no logotipo da ALMG, e a coincidência de ter recebido a permissão do presidente no mesmo dia
não passou despercebida por mim.
96

pelo incômodo de ainda não existir uma compilação mais alongada da história da ALMG.
Mais do que isso, concluí que a própria ALMG deve fazer elaborar coletivamente esta
compilação, e que talvez meu impulso estivesse atropelando agendas internas, de modo que
insistir nisto poderia eventualmente até prejudicar interlocutores.
Para complicar ainda mais, se em 2012 conheci uma bela livraria na sede central da
ALMG, com publicações de virtualmente todas as comunidades linguísticas, isto
simplesmente já não existia. Após alguns dias, encontrei algumas publicações mais gerais da
ALMG no almoxarifado da sede central. Explicou-me um interlocutor que em algum
momento (possivelmente entre 2013 e 2015) resolveram que cada comunidade linguística
ficaria com seu próprio acervo de publicações.
Esta descentralização, entretanto, parece ter sido radical, pois revelou-se bastante
prejudicial não apenas para mim, mas para qualquer pessoa interessada na história da ALMG
e no corpo de publicações da instituição independente de qual comunidade linguística. Neste
sentido, eu teria de ir às sedes de todas elas para realmente fazer um levantamento profundo.
A situação foi tão inesperada, que eu me vi diante de uma situação em que eu tinha em casa –
no Brasil – publicações da ALMG, adquiridas ali há quatro anos, que a própria biblioteca da
sede central não possui atualmente em seu acervo.
Ainda que exista uma lei de acesso à informação da Guatemala, que por vezes é
enfatizada na ALMG, todos estes fatores, a começar pela descentralização da instituição,
fizeram-me crer que até ela poderia tornar-se mais um obstáculo para mim. Perdeu-se todo o
sentido em prosseguir tentando reunir materiais da ALMG sobre sua história, mas continuava
sendo importante resumir um pouco dela.

4.4 – HISTÓRIA E ORGANIZAÇÃO DA ALMG

Dos documentos produzidos pelas comunidades linguísticas, o único ao qual tive


acesso foi o da Kaqchikel, e que utilizo como principal referência (KAQCHIKEL, 2015) para
resumir a história da ALMG.
A ideia de criar uma academia de línguas mayas remonta pelo menos à década de
1970 (KAQCHIKEL, 2015), e me atreveria a dizer que pelo menos à década de 1960, já em
1961 foi instituída a Academia de la Lengua Maya Kí-chè (COJTÍ, 2006), dirigida pelo
97

linguista maya Adrián Inés Chávez e precursora da ALMG. Na historiografia e ainda hoje,
ele é o mais lembrado quando se trata da história prévia da ALMG e os principais entusiastas
e articuladores de sua criação.
A academia k’iche’ foi uma iniciativa tão pioneira, que foi contemporânea aos
linguistas que introduziram o método comparativo moderno ao estudo das línguas mayas e
ajudaram a conformar o tronco linguístico maya tal como ele é hoje.
Um outro precursor do movimento maya e da ALMG foi o advogado maya Q’eqchi’
Antonio Pop Caal,85 que em sua histórica Réplica del indio a una disertación ladina, texto
apresentado em 1974, não apenas reivindicava o “maya” como, durante o conflito armado
interno, articulava sua crítica ao colonialismo e as perspectivas étnicas à crítica ao capitalismo
e à propriedade privada desde uma perspectiva de classe.
A criação propriamente dita da ALMG deu em 1985, de acordo com Montejo (2005,
p. 76), mas tratou-se na verdade de todo um processo que se deu ao longo da década de 1980.
Narciso Cojtí relata como desde os anos 60, e ao longo dos anos 70 e 80, intensificaram-se
iniciativas e congressos linguísticos. Num desses congressos, realizado em 1984 numa
universidade privada guatemalteca, elaborou-se uma recomendação ao ministério da educação
para a criação da ALMG, mas a criação de fato, de acordo com Cojtí, se deu com a
constituição de uma junta diretiva provisória com representantes de diversas instituições, em
9 de outubro de 1986 (COJTÍ, 2006).

With the awareness of their cultural heritage, Maya intellectuals began to organize
their efforts for cultural revival and revitalization. The work of Maya writers was
important; they concentrated on the use of the language as a means of ensuring that
Maya culture and worldviews would be passed on effectively from one generation to
the next. At the beginning of the 1980s, this organized effort led to the creation of
the Academy of Mayan languages of Guatemala (ALMG). The recognition of the
ALMG in 1985 as an autonomous institution funded by the government was one of
the major achievements of the Maya working for self-representation. The ALMG is a
pan-Maya institution in which the twenty-one Mayan linguistic communities of
Guatemala are represented (…) (MONTEJO, 2005, p. 76)

A citação de Montejo fala por si só, no que se refere ao destaque dado à ALMG na
85 Antonio Pop Caal, assassinado em 2003, foi também tio de Amílcar Pop, cujo relato sobre a época prévia à
criação da ALMG aparece logo abaixo. Cheguei ao nome de Antonio ao acaso: ele batiza a biblioteca da
ALMG, mas praticamente nenhum trabalhador da sede central sabia de quem se tratava, e mesmo Amílcar
não tinha conhecimento de que a biblioteca da sede central levava o nome de Antonio Pop Caal. Para
Amílcar, a principal contribuição política de seu tio foi saber articular e equilibrar as questões étnicas com as
de classe (POP, 2016).
98

história do próprio movimento maya, especialmente dos intelectuais mayas que já vinham se
organizando e reivindicando mais sistematicamente a identidade maya. A ALMG tal como
existe hoje é, por supuesto, resultado de um processo que se estende principalmente por todos
os anos 80, culminando na aprovação da lei da ALMG no ano de 1990.
É importante ressaltar que tanto a criação da academia quanto a aprovação da lei
foram resultado direto da mobilização maya nas ruas e pressionando governos e legislaturas
do congresso, com atuação não só de intelectuais, deputados e servidores públicos mayas, mas
de comunidades que vinham do interior para manifestações históricas. O hoje deputado maya
qeqchi’ Amílcar Pop, em entrevista concedida a mim, lembrou que esteve em algumas dessas
manifestações, acompanhando sua família durante a infância:

Bueno, yo estuve ahi afuera [por las calles de la capital guatemalteca], a los 9 anos
marchando y caminando 3 dias, peleando por la academia con mis padres, con mi
papa y con mi tio (...) 82… desde del 82 empezamos a pelear la academia. Quizás la
gran marcha, no me acuerdo, habrá sido en 85, ya en esa transición de gobierno
(...) y se mal no lo recuerdo, en 86 juridicamente nasce la academia. Y todos los
qeqchi venimos bajo la amenaza que venian diez mil indigenas con machetes y
palos a exigir, porque habíamos como 10 mil acá! entonces hubo miedo a los
diputados en ese entonces, de que se habían 10 mil aqui, venian otros 10 mil ya era
problema (...) bajo esa única venanza (...) y lo digo porque asi fue, y ahí están los
viejos vivos, mi tio está muerto, mi papa, y otro par de personas que fueron los que
se pararon ahi , dijeron “vienen otros 10 mil indigenas” y de aqui no nos vamos si
no tenemos la academia... claro, desde entonces acá [la ALMG] era la única
ventana del Estado. ¡Era todo! En la academia recuperamos nuestra espiritualidad,
en academia quisemos recuperar nuestro sistema político, en la academia
[quisemos recuperar todo] (…) la academia se convertió en el espacio totalmente
integrador de nuestras aspiraciones como indígenas (…) (POP, 2016)

Sem dúvida alguma, o período dos anos 80 é particularmente rico para a história da
ALMG, e ao mesmo tempo aparentemente o menos documentado; como trata-se de um
período ainda recente, possivelmente nos próximos anos parte destas memórias serão
resgatadas e os estudos da própria ALMG publicizados.

A partir de 1987, líderes kaqchikeles [y mayas en general] como Marcial Maxia,


Guillermo Rodríguez, Demetrio Rodríguez y el grupo de lingüistas kaqchikeles con
líderes K’iches como Blanca Estela Alvarado junto con líderes e intelectuales
Q’eqchi’es como el abogado Raymundo Caz y Andrés Cuz Mucú, iniciaron el
proceso para la aprobación de la ALMG por parte del Congreso de la República. El
Ministerio de Cultura y Deportes proporcionó unas oficinas en la terraza de su
edificio para que funcionara la Comisión de Gestión para la aprobación y creación
de la ALMG.
El Congreso de la República llevó a conocer la ley de creación de la Academia de
99

Lenguas Mayas de Guatemala, a la primera y segunda lectura. La lucha por su


aprobación no fue fácil después de haberse estancado en su segunda lectura. Los
promotores de la creación de la ALMG convocaron a un encuentro en el Municipio
de Momostenango a mediados de 1989 para hacer presión al Congreso de la
Republica. Tenían la consigna de que si no era aprobado por el Congreso de la
República convocarían a un consejo propio para su aprobación. Los diputados
K’iches entre ellos Claudio Coxaj y Fermín Gómez asumieron la responsabilidad de
promover la aprobación de la Ley de la ALMG, dentro del Congreso de la
República.
(…) Finalmente después de varios años de gestiones y ya en periodo electoral, el
Congreso de la República dominado por el Partido Democracia Cristiana lo llevó a
su tercera lectura y su aprobación el 16 de octubre de 1990. La nueva ley de la
Academia de Lenguas Mayas de Guatemala, Decreto Legislativo 65-90 fue
publicado en el Diario Oficial de Centro América el 5 de noviembre de 1990. (CLK,
2015)

Em entrevista concedida a mim, em julho de 2016, no seu escritório dentro do


palácio do governo guatemalteco (situado no marco zero da Guatemala), Demetrio Cojtí fez a
seguinte análise deste momento de transição e aprovação da lei da ALMG, ao ser indagado
acerca da história da ALMG:

(…) la academia de la lengua se creo en un momento politico adecuado. As veces


las instituiciones se crean según los momentos adecuados, el momento oportuno, y
entonces (…) el partido democracia cristiana estava en ultimo año del gobierno,
1989, y entonces necessitava ganar votos, votos… Simpatias, necesitava la simpatia
de los indigenas. Entonces, una de las demandas que estava ahí presente era la
demanda por la academia de la lengua maya, y entonces el gobierno de la
democracia cristiana lo funda, lo crea (...) pero, para fines electorales (…) el queria
repetirse en el gobierno y necessitaba ganar simpatia con los indigenas, y se los
indigenas pedían su academia, entonces el gobierno se los dió. Esa es una, digamos
que una anédocta respecto al momento en que se aprobó la [ley de la] academia de
las lenguas mayas, y lo objectivo real de lo gobierno y lo objetivo real de los
indigenas que no era la mismo (…) (COJTÍ, 2016)

A lei (ALMG, 2005) criou a ALMG como uma entidade estatal autônoma, com
personalidade jurídica própria e “capacidad para adquirir derechos y contraer obligaciones,
patrimonio propio y jurisdicción administrativa en toda la República en materia de su
competencia” (ALMG, 2005, p. 8). Define originalmente 21 comunidades linguísticas, 86 bem
como os seus fins, objetivos, atribuições e estrutura de organização da ALMG. O âmbito de
sua autonomia é definido no artigo 3 da seguinte maneira:

86 São elas: Achi, Akateka, Awakateka, Ch’orti’, Chuj, Itza’, Ixil, Jakalteka, Kaqchikel, K’iche’, Mam, Mopán,
Poqomam, Poqomchi’, Q’anjob’al, Q’eqchi’, Sakapulteka, Sipakapense, Tektiteka, Tz’utujil, Uspanteka.
Como será observado a seguir, uma outra comunidade linguística, a Chalchiteka, foi incorporada em 2003.
100

La Academia de las Lenguas Mayas de Guatemala es la máxima entidad rectora


para la promoción y desarrollo de las lenguas mayas en el país, y como tal podrá
darse sus propias autoridades, ejercer por medio de ellas la administración de sus
intereses, y emitir sus reglamentos, resoluciones, acuerdos y demás disposiciones
sobre la materia de su competencia.(ALMG, 2005, pp. 8-9)

Os fins aparecem no artigo 2 como “promover el conocimiento y difusión de las


lenguas mayas e investigar, planificar, programar y ejecutar proyectos lingüísticos, literarios,
educativos, culturales y dar orientación y servicios sobre la materia” (ALMG, 2005, p. 8).
Seus objetivos e atribuições (artigos 4 e 5) dão ênfase clara em termos como o fomento às
investigações científicas, históricas, culturais e linguísticas, e o objetivo-atribuição inicial em
estudar e regulamentar e unificar a escrita dos idiomas mayas. Além de atribuições em relação
à educação, tradução de leis e outros compromissos, destaco particularmente a menção a
“divulgar la identidade de cada comunidad lingüística” (ALMG, 2005, p. 9).
Outra atribuição é a coordenação de programas de trabalho “con las universidades
del país y instituciones especializadas en lingüística y ciencias sociales vinculadas a la
materia” (ALMG, 2005, p. 10). A menção à lingüística e às ciências sociais se deve, no meu
entendimento, à contribuição de linguistas, antropólogos e sociólogos para embasar e
legitimar a própria identidade pan-maya na Guatemala.
A ALMG se organiza a partir de três órgãos internos: o conselho superior, a junta
diretiva e as juntas diretivas de cada uma das 22 comunidades linguísticas mayas. Cada
comunidade linguística deve ter pelo menos cinquenta membros para ser reconhecida como
tal e eleger uma junta diretiva própria, composta por sete membros candidatos aos cargos de
“Presidente, Vicepresidente, Secretario, Tesorero y Vocales del primero al tercero” (ALMG,
2005, p. 19).
Após as eleições das juntas diretivas das comunidades linguísticas, os presidentes
eleitos passam a compor o conselho superior, que portanto é sempre composto por 22
membros. Eles são responsáveis por eleger, todos os anos, a junta diretiva do conselho
superior, cujos cargos são os mesmos das juntas diretivas locais. A diferença é que apenas os
próprios membros do conselho superior podem compor a junta diretiva do conselho superior,
de maneira que a cada ano sete membros do conselho se licenciam da presidência de suas
comunidades linguísticas. Um deles assume a presidência do conselho superior e por
conseguinte de toda a instituição ALMG, sendo que em todas as eleições internas é vedada a
101

reeleição consecutiva para um mesmo cargo.


A lei chega a definir, inclusive, as qualidades que se requerem para que um indivíduo
componha o conselho superior: ser maior de idade, guatemalteco e das etnias mayas, não ser
dirigente de partido político nem ministo de culto religioso, e preferencialmente ter formação
acadêmica, além de falar, escrever e conhecer qualquer das línguas mayas.
Em 91, e já em cumprimento à lei, estabeleceu-se uma junta diretiva provisória(site
ALMG), composta por representante de instituições mayas, línguisticas, acadêmicas, de
educação.87 Os anos de 91 e 92 foram anos de transição, estruturação e adequação da
instituição, e de preparação das eleições previstas em lei.
Apenas no final de 1992 ocorreram as primeiras eleições e posses na ALMG, quando
formou-se o primeiro conselho superior eleito da instituição, bem como as juntas diretivas do
conselho superior e de cada comunidade linguística. A ocasião da posse no final de 92
mereceu inclusive menção de Montejo, ao tratar da questão de um uso mais aberto do
calendário e da realização de cerimônias mayas publicamente, que só começa a acontecer nos
anos 80:

Until the 1980s it [the calendar] was not used openly in the Cuchumatán region, but
in response to the quincentenary commemoration, the elders decided to revive their
hidden Maya rituals, and for the first time in modern history two hundred Maya
priests from different linguistic communities congregated at the Maya sites of
Zaculeu and Iximche in Guatemala to perform their ceremonies in public.
Ceremonies were also performed by spiritual elders from differente Maya ethnic
groups when the members of the Academy of Mayan Languages of Guatemala took
office in December 1992, “a solemn act during the transfer of the symbolic staff to
the new board of directors of the Academia” (MONTEJO, 2005, pp. 151-152)

A menção à posse das primeiras autoridades eleitas da ALMG neste contexto deixa
implícito um papel importante que a instituição cumpria naquele momento em relação aos
calendários e à espiritualidade maya nas cerimônias, ainda mais em se tratando deste
momento chave (1992) em que muitos mayas viviam o ápice da crítica e da resistência à
celebração dos 500 anos da invasão da América.
O que vem após isto é, em sua maior parte, um mistério para mim, mas

87 Tratam-se das mesmas instituições que compuseram a junta diretiva provisória de 1986, que são também
discriminadas na lei da ALMG. No sítio da instituição, a junta formada em 1991 aparecia como sendo a
primeira – por ser posterior à oficialização da instituição, acredito. Não sei até que ponto, entretanto, os
indivíduos que compuseram a junta de 1986 são rigorosamente, ou majoritariamente, os mesmos que
compuseram a junta em 1991.
102

especialmente no que concerne a esta investigação, cujo campo restringe-se à sede central, e
com base na própria organização da ALMG, a constante é uma grande alternância na
presidência da junta diretiva do conselho superior (isto é, na presidência da ALMG), cujo
trabalho na prática dura menos de um ano, e uma alta rotatividade de trabalhadores na sede
central (já que um bom percentual deles sai quando muda a presidência). Por isto mesmo, me
abstive de tentar aprofundar na história política dos seis conselhos superiores (1992-2016),
que elegeram quatro presidentes cada, bem como os vários desdobramentos na instituição.
Em uma análise superficial da lista histórica de presidentes da ALMG, 88 entretanto,
foi possível constatar dois dados interessantes de serem mencionados. Apesar de não haver
restrições formais, as comunidades linguísticas quase nunca tiveram mulheres na
presidência,89 e mais do que isso a ALMG jamais teve uma mulher como presidenta geral da
instituição até os dias de hoje.
Considerando os 24 presidentes eleitos, mais o primeiro presidente da junta diretiva
provisória (1991-2017), doze comunidades linguísticas já estiveram representadas. As
comunidades linguísticas que mais elegeram presidentes foram a Poqomchi e a Mam, com
cinco (20%) cada, seguidas das comunidades Q’eqchi’ e Tzutujil (três cada), Chuj (dois), e
Jakalteka, Chorti, Sakapulteka, Achi, K’iche’, Sipakapense e Awakateko com um cada. No
final de 2016, foi eleito e empossado o sétimo conselho superior da ALMG, que sairá em
quatro anos, bem como o novo presidente para o ano de 2017 – o segundo ano seguido com
um presidente da comunidade linguística Mam.
Os momentos mais importantes na história mais recente da ALMG parecem ter sido
em 2003 e 2004. Em maio de 2003, foi aprovada a ley de idiomas nacionales (decreto 19-
2003), que deu reconhecimento oficial às línguas e o direito à educação nas línguas,
incorporando-as ao patrimônio nacional guatemalteco.90 No mês seguinte, a lei da ALMG foi
reformada para incluir sua 22ª comunidade linguística, a Chalchiteka. Este período foi
lembrado com carinho por Cojtí na entrevista a mim concedida:

88 A maior parte dessa lista foi levantada numa página arquivada do sítio oficial da ALMG (2009):
http://web.archive.org/web/20090429223021/http://www.almg.org.gt:80/portal/index.php?id=69.
89 Tive notícia de umas quatro ou cinco mulheres ocupando tal cargo, nem todas entretanto eleitas para ele
originalmente. Um número exato demandaria o levantamento das juntas diretivas ao longo da história de
todas as 22 comunidades linguísticas.
90 O regulamento da ley de idiomas nacionales, entretanto, saiu mais de oito anos depois, em 2011,
discriminando os municípios em que cada uma das línguas mayas – além da xinka e da garífuna – é falada,
de maneira a incorporar as línguas locais na educação formal em cada cidade.
103

(…) luego [cuando hubo la aprobación de] la ley de idiomas nacionales, que yo
estaba como vice-ministro de educacion, fue un momento (…) fue una buena
lección, un buen proceder, porque se hizo una alianza entre academia de las lenguas
mayas, diputados indígenas en el congresso (…) fue una alianza entre indígenas del
congresso, indígenas del ejecutivo, e indígenas de la academia de las lenguas
mayas, los tres trabajamos en equipo y con el apoyo de los indigenas del congresso
(…) (COJTÍ, 2016)

Em outubro de 2003 – e em período eleitoral –, a ALMG obteve a concessão do


canal 5 de televisão, para criação da TV Maya, dada pelo então presidente Alfonso Portillo
(BASTOS & CAMUS, 2004, p. 7).

In terms of alternative television, the former military channel was given to the
Academy of Mayan languages as part of the Peace Accords, and is now known as
TV Maya. Expectations and demand were high, yet TV Maya is currently being kept
in an economic limbo, as – being a public channel – it is not allowed to sell
advertising space, yet it receives little public funding and cannot broadcast beyond
its neighbourhood. (SUCHENWIRTH & KEEBLE, 2011)

Durante o campo, este mesmo problema de financiamento apareceu de maneira


reiterada em conversas com o então diretor da TV Maya, José Diego Chivalán Osorio, 91 que
tinha planos que parecem óbvios para qualquer canal de televisão que queira ser visto, mas
que no caso da ALMG são planos grandes: transmitir para a internet é fácil e o fazem há anos,
mas ainda falta transmitir para toda a Guatemala. 92 Mesmo na capital e em sua zona
metropolitana não são totalmente cobertas pela TV Maya atualmente, e em minhas instalações
durante a estadia na Guatemala infelizmente o aparelho de televisão não tinha acesso ao seu
sinal.
Até hoje a TV Maya não dispõe do caro serviço de transmissão de sinais por
satélites, através do qual seria possível transmitir o sinal para as casas. Isto sempre limitou
muito as intenções e principalmente o alcance e o crescimento do canal, já que a TV Maya
não dispõe da possibilidade de custear estas operações mais onerosas cedendo tempo para

91 A trajetória de Chivalán na ALMG iniciou-se em 2004, tornando-se diretor da TV Maya em 2014, cargo que
exerceu até o final de 2016. Durante este período, em 2015, defendeu mestrado em política e comunicação
sobre a própria TV Maya (CHIVALÁN OSORIO, 2015). Neste sentido, Chivalán é um raro exemplo de
intelectual maya que, além de trabalhar na ALMG, dedicou-se também a desenvolver trabalhos acadêmicos
diretamente relacionados à ALMG.
92 O canal 5, enquanto administrado pelo ministério da defesa, a partir de 1979 e com o nome de “ televisión
cultural y educativa – TV-CE” (CHIVALÁN OSORIO, 2015, p. 5), chegava aos lares guatemaltecos.
104

publicidade. Quando de meu período em campo, a solução buscada pela direção da TV Maya
era negociar com o congresso.
O próprio documento da comunidade linguística Kaqchikel define a ALMG como
“una institución políticamente autónoma pero dependiente del financiamiento del Estado”
(CLK, 2015, p. 41). A criação da ALMG como instituição autônoma, mas dependente do
financiamento estatal, evidencia que a lei da ALMG serviu como instrumento que, ao mesmo
tempo, afirmou uma autonomia cultural, mas a associou a uma dependência econômica e
política.
Contrariando a afirmação do documento da CLK, mas em acordo com o ex-diretor
da TV Maya, a lei da ALMG se desdobra não apenas em uma dependência econômica, mas
também numa dependência política do congresso e numa adequação à burocracia estatal.93 O
congresso é responsável por exemplo por liberar verbas para além do orçamento inicial
destinado à instituição a cada ano. Sem o congresso, também não se reforma a lei da ALMG
e, sem reformar a lei, a autonomia e a estrutura política institucional existe apenas nos termos
definidos em 1990. Não por acaso, apenas reformas pontuais foram feitas na lei até hoje,
sendo a mudança mais drástica a proibição de reeleição para o conselho superior em 1995.
Ainda que a ALMG possa fazer parcerias científicas e educacionais que geram
receita ou financiam eventos, publicações (etc), além de captar dinheiro da cooperação
internacional ou de ONGs, talvez o caminho mais curto – e tenho a impressão de que o único,
atualmente – para aumentar substancialmente o caixa da instituição seja através do congresso
guatemalteco. Ao longo da última década, a cota anual da ALMG no orçamento do Estado
tem sido em média de menos de 30 milhões de quetzales, cerca de 4 milhões de dólares.94
Considerando o tamanho da sede central – não apenas fisicamente, mas em número
de empregados – da ALMG, e a manutenção da TV Maya, na prática parece ser difícil
imaginar que alguma comunidade linguística disponha de um milhão de quetzales ou mais
para um ano, pelo menos se depender apenas da injeção estatal. Portanto, diante deste quadro
a situação da TV Maya é realmente delicada, devido ao alto custo de manutenção, que saltaria
muito com a transmissão por satélite para adequar-se ao orçamento ordinário atual da

93 Alguns interlocutores guatemaltecos com passagem pela ALMG denunciaram para mim a prática, no
passado, de negociações entre algumas autoridades da ALMG e deputados em que, por exemplo, empregos
na instituição eram concedidos por indicação de parlamentares.
94 Em 2014, por exemplo, o orçamento da ALMG foi de 25 milhões de quetzales (BLAS, 2014).
105

ALMG.95
Junto com a concessão do canal, a antiga casa crema também foi concedida
oficialmente em usufruto por Portillo, em dezembro de 2003, para transformar-se na sede do
canal e seus estúdios, bem como da própria ALMG. A atual sede central da ALMG naquele
local foi inaugurada em fevereiro de 2004, em evento que, além da realização de cerimônias
mayas, colocava em destaque também a TV Maya, com grande repercussão à época. Naquele
entonces, os responsáveis pelo planejamento da TV falavam em contratar e treinar “unas cien
personas” (LINARES MEJÍA, 2004, p. 49). Na prática, a TV passou a transmitir apenas em
2008 e, em 2016, mal tinha em sua equipe 10% das cem pessoas desejadas há 13 anos – talvez
nunca tenha contado com 20 ou mais pessoas.
A aquisição ou construção de sedes locais das comunidades linguísticas também tem
sido importante no século XXI. Isto ajuda a fortalecer a instituição no interior e as
comunidades linguísticas localmente, aumentando o potencial da ALMG como referência
local, ao promover eventos, oficinas e cursos sobre as línguas mayas.

4.5 – A SEDE CENTRAL DA ALMG

A primeira sede da ALMG parece ter sido na cidade de Tecpán, o que infiro a partir
de documentos assinados pela junta diretiva provisória no fim dos anos 80. Em algum
momento, sua sede central passou a ser na zona 1 da capital guatemalteca, até mover-se
definitivamente para atual sede, situada à zona 10, em 2004. A edificação corresponde a um
quarteirão inteiro, estrategicamente posicionado à esquina de duas avenida largas, sendo
vizinha à FLACSO-Guatemala, aos ministério das relações exteriores e da educação, às
embaixadas dos EUA e do México, e ao Estado Mayor de la Defensa Nacional.
Seu aspecto é claramente militar, especialmente quando vista do exterior, como pode
ser observado na figura 7. Seus muros altos construídos com guaritas no topo permitiriam
ainda hoje um controle de todo o entorno. Do lado de dentro, a arquitetura não deixa esquecer
que lugar é aquele, e a memória do passado militar do prédio persiste nos cantos mais
abandonados da sede da ALMG.

95 Paradoxalmente, de acordo com Chivalán (comunicação pessoal, 2016 e 2017) todos os anos alguns milhões
de quetzales do orçamento deixam de ser utilizados, e neste caso o seu projeto para a TV Maya já poderia ter
sido implementado.
106

A edificação teve historicamente diversos usos estatais, de maneira que sua própria
história merecia melhor atenção do que me cabe agora. De qualquer maneira, é fundamental
destacar que o logradouro já foi residência oficial do presidente da Guatemala, e
posteriormente – como é mais de conhecimento comum aos interlocutores no campo –
residência oficial do ministro da defesa.

Figura 7 – Sede central da ALMG vista de fora; entrada principal. Fotografia do autor.

La embajada de Estados Unidos se encontraba [en la década de 1940] entonces en


la casa que fue del expresidente Orellana, donde después fue Casa Crema o
residencia presidencial y luego residencia del Ministro de la Defensa y
posteriormente Casa del Protocolo y hoy es sede de la Academia de Lenguas
Mayas. (PALMIERI, 2015, p. 1)

Esta memória mais recente parece particularmente determinante e muito mais viva –
não por acaso. O uso do prédio por autoridades do alto comando militar coincidiu com o
período de conflito armado interno na Guatemala. Por lá, não é novidade e conta-se
abertamente que ele abrigou diversas sessões de tortura – inclusive tortura de “rebeldes”
mayas. A complexidade do caso e os detalhes fogem às minhas possibilidades no momento e
ao conhecimento geral das pessoas da ALMG, entretanto esta memória, mesmo que vaga,
engendrou uma situação que se apresentou para mim no campo.
Em uma primeira conversa um pouco mais demorada com uma pessoa no campo, ela
contou-me voluntariamente acerca de suas experiências na sede. Relatou-me ter visto
fantasmas duas ou três por ali; mais do que isto, afirmou categoricamente que diversas
107

cerimônias mayas já haviam sido realizadas ali de maneira a apaziguar estes espíritos que
teriam sido torturados e mortos naquele mesmo lugar.
O episódio serviu para evidenciar que a memória acerca do passado do prédio não
passa desapercebida, e especialmente que as consequências do que ocorreu ali de alguma
maneira estão sempre em negociação com a cosmovisão maya e a ocupação atual do prédio
pela ALMG. Isto apenas aumentou minha curiosidade e o meu desejo em circular mais por
aquele espaço, principalmente os espaços vazios, em que não se costuma ver ninguém circular
– os mais propícios para encontrar os fantasmas do passado daquele lugar.
Não cabe a mim julgar os aspectos espirituais da questão, mas pude verificar que
mesmo após tantos anos ainda é possível encontrar objetos dos tempos dos militares, como
um alvo para a prática de tiro, visto na figura 8. É possível que haja outros resquícios no
prédio, restos de um passado indigesto.

Figura 8 – Indícios dos usos passados da sede central da ALMG pelos militares. Fotografia do autor.

Este passado teria inclusive servido como uma forte motivação para que se
construísse um altar fixo na sede da ALMG, destinado à realização de cerimônias mayas. De
fato, pude perceber menções a isto em uma ou duas cerimônias que presenciei ali.

4.6 – LOGOTIPO DA ALMG E IMAGEM DO INTELECTUAL MAYA

A ALMG possui um logotipo oficial, utilizado em todos os seus documentos internos,


108

publicações, etc. A imagem, que pode ser vista na figura 9, serve para reforçar o caráter da
ALMG como uma instituição criada por e identificada com os intelectuais mayas. O logotipo
pode ser descrito como a representação de um antigo escriba maya, que por sua vez está
pintando o glifo do dia Oxlajuj No’j, que proporcionalmente é bastante grande em
comparação à personagem maya.
Desta maneira, o logotipo articula a escrita antiga maya – os hieróglifos –, através da
personagem-escriba, com os calendários. Estes são justamente os dois diacríticos mayas mais
valorizados, como observado. O terceiro diacrítico, representado pelas línguas mayas, está
explícito no próprio nome da instituição e, desta maneira, o logotipo poderia ser interpretado
como a síntese de um ideal maya intelectualizado, em um tripé língua-epigrafia-calendário.

Figura 9 – Logotipo da ALMG; adaptado do sítio da instituição.

Além disto, o dia Oxlajuj No’j pode ser traduzido como “treze pensamento”; sendo
109

treze o mais alto número do calendário ritual maya, este dia seria o mais “forte” dia associado
ao pensamento e à sabedoria. O símbolo ideal para uma instituição de intelectuais mayas
voltada ao fomento e ao resgate linguístico e cultural do maya.
Neste sentido, o logotipo da ALMG permite inferir ainda que Oxlajuj No’j é o nome
calendárico da ALMG.

4.7 – WAJXAQIB’ B’ATZ’

Naquele dia, acordei bastante cedo96 e, com experiência prévia suficiente em


cerimônias mayas, me dirigi ao mercado central da capital guatemalteca sabendo da
importância da reciprocidade e de oferendar. Busquei candelitas das cores apropriadas97 e
cheguei à sede bastante cedo, o suficiente para acompanhar e ajudar em toda a preparação
junto ao altar em que seria realizada a cerimônia.98
Pelo que pude averiguar, o planejamento das cerimônias realizadas ali é bastante
informal, com uma pessoa responsável por arrecadar algum dinheiro entre os trabalhadores e
providenciar os materiais e as velas para a fogueira. Eu me somei a ela, deixando as velas que
havia trazido no gramado, à beira do altar, para que também servissem de uso comum. A
fogueira começou a ser preparada numa estrutura própria para isto, circular e de cimento, cujo
aro externo traz espécies de ladrilhos com os nomes das 22 comunidades linguísticas da
ALMG, caracterizando a presença simbólica de todas elas em qualquer cerimônia realizada na
sede central.
No dia Wajxaqib’ B’atz’ (04/07/2016), ocorreu a principal atividade realizada na
sede ao longo do meu período na Guatemala, e a única com um caráter mais público. Trata-se
de um dia fundamental para a cultura calendárica maya, pois é quando a formação dos
ajq’ijab’ termina em muitas comunidades, e por isso consiste hoje também na principal
96 Demorava, em média, pelo menos 1h e meia para chegar à sede central da ALMG diariamente.
97 A tradução mais literal de candelitas para o português seria “velinhas”. Refiro-me especialmente a
pequeñitas e bastante finas velas, que são as mais comuns no mercado central (em que são penduradas no
teto) e nas cerimônias mayas, em que são usadas principalmente nas cores amarela, branca, vermelha e preta
(associadas às quatro direções e aos 20 glifos do calendário de 260 dia), além de verde e azul (que
simbolizam, respectivamente, a terra e o céu).
98 O nome do altar é também um nome calendárico, Oxlajuj Aq’ab’al. Conversando sobre o este assunto – e ao
mencionar o nome calendário do altar – com um ajq’ij de fora da ALMG, ele contestou a informação e
afirmou que os ajq’ijab’ da ALMG estavam equivocados quanto a isto. Este episódio demonstrou como
mesmo o nome calendárico de um altar – ou de um lugar, ou uma instituição – pode ser objeto de disputa ou
divergência entre os mayas.
110

cerimônia maya contemporânea.


Na ALMG, portanto, este é encarado como um dia grande, em que se deve realizar a
maior cerimônia do ano, com a presença à beira do altar – mesmo que nem sempre
interessada – da maioria dos trabalhadores da sede central. Além disto, fizeram-se presentes
algumas visitas e dois ou três jornalistas atraídos pela produção da TV Maya, realizou
filmagens de boa parte da cerimônia e posteriormente a exibiu em trechos. Até a bandeira
maya,99 que eu havia dado falta, finalmente apareceu neste dia e continuou no mesmo lugar a
tremular por dias depois.
O próprio presidente da ALMG discursou, não apenas ressaltando a importância do
calendário mas demonstrando conhecimento do assunto e reiterando um dado que ele já havia
citado em sua dissertação de mestrado (AGUILÓN CRISÓSTOMO, 2013). Foi meu primeiro
contato direto com ele que, apesar de despachar de dentro da sede e ter autorizado de próprio
punho minha presença ali, estava quase sempre ocupado.

Figura 10 – Cerimônia de Wajxaqib’ B’atz’. Fotografia do autor.

A cerimônia respeitou a estrutura com a qual eu já tenho familiaridade e que


caracteriza os mayas guatemaltecos contemporâneos. O lugar da fogueira foi decorado com o
99 A “bandeira maya”, utilizada em vários contextos na Guatemala, é uma referência vaga. Existem diversas
variantes desta bandeira, mas a sua característica principal é ser um retângulo dividido em quatro partes (em
“X”), com as cores amarela, branca, vermelha e preta que representam as quatro direções cardinais, como
pode ser visto na figura 11.
111

símbolo q’anil100 feito de açúcar, coberto por uma erva, e depois o círculo totalmente
preenchido com pom,101 antes de decorar com velas coloridas e outros materiais que ajudam a
alimentar o fogo. Os 20 dias do calendário ritual foram invocados, um de cada vez, pelo ajq’ij
que conduziu a cerimônia em diálogo com sua interpretação de cada um dos 20 dias do
calendário, além de coordenar a distribuição e oferenda de materiais a serem ofertados por
todos os presentes.

Figura 11 – Após a cerimônia de Wajxaqib’ B’atz’, com a bandeira maya no topo, à direita. Fotografia do autor.

Cada um dos 20 dias é invocado 13 vezes, 102 de maneira que os nomes de todos os
100 Um círculo com uma cruz que o divide em quatro partes, com um pequeno círculo feito dentro de cada uma
das quatro partes.
101 Como pode ser visto no quadro 1, uma das ocorrências do termo “maya” no período colonial foi “maya
pom”, que pode ser traduzido como “incenso de copal maya”. O pom é um material fundamental para as
cerimônias mayas com fogo, sendo talvez o material mais oferendado depois das velas.
102 Sempre começando a partir do dia atual. Por exemplo, se o dia da cerimônia coincidir com o dia Q’anil,
(independente do número que o acompanha) no calendário maya, conta-se “1 Q’anil, 2 Q’anil, 3 Q’anil (…)
13 Q’anil”, seguindo para o próximo dia (Toj) e repetindo a conta de 1 a 13 respeitando mesma estrutura, até
chegar ao dia que antecede Q’anil (Kej), completando um giro pelos 20 dias desdobrados em 260.
112

260 dias do calendário ritual são mencionados. Entre os discursos do ajq’ij sobre um dia e
outro, diversas pessoas – eu incluso – aproximam-se da fogueira para jogar candelitas ao
fogo, geralmente de cores específicas associadas ao dia que acabava de ser mencionado. Boa
parte daqueles que conhecem o seu nawal103 ofertaram ao menos umas das candelitas
disponíveis quando chegava a sua vez.
Eu pessoalmente esperava mais desta cerimônia, no sentido de mais ofertas
espontâneas serem feitas pelos presentes. Ao contrário, poucas pessoas levaram algo além do
que havia sido proporcionado de antemão, e acabou faltando velinhas de uso comum antes da
hora. Minha expectativa foi frustrada, mas se devia especialmente ao fato de a ALMG ser a
principal instituição maya e eu saber que lá as questões calendáricas – e cerimônias em dias
específicos – eram estimuladas, principalmente esta.
Além disto, participei de cerimônias que, com menos estrutura, recursos e poucas
pessoas, em dias “normais” (sem a importância do Wajxaqib’ B’atz’), eram capazes de fazer
fogueiras bem maiores. As cerimônias deste dia especificamente, então, costumam ser
grandiosas em centenas de altares pela Guatemala, tanto em meio urbano quanto rural, daí eu
ter esperado mais, em se tratando também do meu primeiro Wajxaqib’ B’atz’ na Guatemala.
Uma vez que a noção de reciprocidade é central na espiritualidade maya, e os
ajq’ijab’ sempre dão ênfase na importância de acender suas candelitas e pagar ao nawal, esta
cerimônia me fez refletir sobre algumas questões. A experiência me fez questionar não a
autenticidade ou a espontaneidade da ocasião, mas antes a própria eficácia simbólica das
cerimônias mayas – especificamente daquela, e das cerimônias realizadas na ALMG. A sede
central já vinha revelando-se como um ambiente em que o afastamento da espiritualidade
maya por parte dos trabalhadores e da própria instituição é algo comum, algo que se evidencia
também a partir dos dados relativos à religião,104 coletados nos questionários.
Os momentos das conversas com os trabalhadores na academia foram
particularmente interessantes, não apenas revelando muito sobre as trajetórias de vida de
103 Cf. nota 70 nesta dissertação.
104 Apesar de alguns dos trabalhadores evitarem a noção de “religião”, foi interessante integrá-la ao
questionário. No fim das contas, a maioria revelou-se religiosa, e por outro lado a noção de “espiritualidade
maya” foi consideravelmente acionada, por vezes explicitando-a como uma noção que, ainda que possa
parecer, análoga à de religião, “espiritualidade” serve para marcar diferença em relação à religião: “ Las
prácticas ceremoniales religiosas sagradas en el Movimiento Maya han tenido diferentes matices. Se llaman
celebraciones espirituales mayas, porque garantizan supuestamente ‘originalidad’ maya, diferenciándola de
las ceremonias religiosas consuetudinarias sincréticas locales. Está ‘originalidad’ nace a raíz de que se
reivindica públicamente las ceremonias mayas” (MORALES SIC, 2004, p. 48).
113

alguns de meus interlocutores – que não são objeto desta dissertação – mas especialmente
reiterando algumas das questões que o campo havia apontado ao longo de quase dois meses
frequentando a instituição e o altar de Oxlajuj Aq’ab’al, enquanto seguia a contar os dias
mayas.

4.8 – QUESTIONÁRIO

As perguntas do questionário aplicado na sede central da ALMG foram elaboradas a


partir das minhas questões iniciais (relacionadas ao que é “ser maya” e à etnogênese), mas é
composta principalmente de perguntas pensadas a partir da experiência na ALMG e de
diálogos com os trabalhadores. As questões que surgiram no campo são em especial aquelas
relacionadas diretamente à ALMG ou a diacríticos mayas, que como se observou são objetos
da própria política e vida cotidiana da instituição.
Minha intenção na formulação destas perguntas, que podem ser vistas no anexo 1,
não foi a de reforçar qualquer essencialismo maya, pois como deixo claro para mim há
inúmeras maneiras de “ser maya”. Antes, tratou-se de tentar apreender um pouco das
representações dos próprios mayas sobre os mayas e da relação deles com o termo maya, isto
é, buscou-se uma aproximação dos contextos pessoais de apropriação da categoria identitária,
o que serviu para evidenciar alguns espaços recorrentes de circulação e fomento da categoria,
bem como contextos históricos favoráveis ao ganho de consciência (pan-)étnica maya na
Guatemala.
A aplicação do questionário se deu presencialmente durante a primeira quinzena de
Julho de 2016, em diversos espaços da sede central, quando possível no setor ou sentados à
mesa dos próprios trabalhadores. Visitei todos os setores da ALMG, para conversar com cada
um dos trabalhadores em privado, assumindo o compromisso do anonimato das informações e
principalmente opiniões fornecidas.
A maioria dos 60 trabalhadores (35, ou 58,33%) já trabalhava na ALMG desde 2014
ou antes, ou trabalhou no passado (seja na capital ou nas sedes locais das comunidades
linguísticas) e havia retornado à ALMG, na sede central. Dos 25 trabalhadores restantes, dois
declararam trabalhar na ALMG há um ano, onze eram recém-chegados e doze haviam
chegado à ALMG há menos de um ano e meio. Do total, apenas 5 dos trabalhadores (menos
114

de 10%) – incluindo pessoal de copa e limpeza – declararam trabalhar na sede central há 10


anos ou mais
O questionário serviu também para aferir idade, gênero, religião e escolaridade,
como pode ser observado abaixo na tabela 1, com os dados organizados por ordem de maior
ocorrência. Ou seja, dentre os trabalhadores entrevistados, a maior faixa de idade foi entre 30
e 51 anos, a maioria era de homens, a religião mais mencionada foi a católica e a escolaridade
mais comum é o 2º grau.
Estes diferentes recortes, apesar de não receberem atenção aprofundada aqui, não
têm nada de trivial. Eles são determinantes nas trajetórias e modos de ser maya de vários
indivíduos, inclusive por conta das representações do que é, por exemplo, ser uma mulher
maya. O estereótipo é de que uma mulher maya vista trajes, e de fato a maioria das mulheres
valorizou seus trajes durante questionário como um diacrítico fundamental de sua
mayanidade. Contudo, é preciso dar atenção ao fato de que algumas mulheres sentem-se
pressionadas a utilizar trajes para serem reconhecidas como mayas.
No que se refere à religião, quase três quartos (44) dos trabalhadores declararam
vínculo atual com alguma religião cristã (incluindo o catolicismo), e especialmente entre os
evangélicos foi possível observar uma tendência em deixar de lado as cerimônias e
calendários mayas – a espiritualidade maya de uma maneira geral. 105 Apesar de este
distanciamento também ser comum no catolicismo, muitos mayas católicos declaram-se
praticantes também da espiritualidade maya e do costumbre106 – e alguns são ajq’ijab’.
Um fato que me surpreendeu foi a presença de poucos indivíduos com 52 anos ou
mais, bem como a ausência de qualquer indivíduo abaixo de 23 anos. Durante os
questionários, a idade refletiu-se, por exemplo, nos relatos acerca da experiência e do contato
com o uso do conceito “maya” como autoidentificação. Os mais velhos viveram intensamente
os anos 80 e 90, acompanharam de alguma maneira o avanço e as conquistas do movimento
maya, como a própria criação da ALMG, que implicaram também numa grande disseminação

105 Em alguns casos raros raros, sobre os quais tomei conhecimento na Guatemala, articula-se espiritualidade
maya e protestantismo. Fui informado pelo Meme (comunicação pessoal), inclusive, de que em alguns
lugares há notícia inclusive de ajq’ijab’ que são também evangélicos.
106 “Los especialistas religiosos apegados a las costumbres son aquellos que han mantenido un ritual
compaginado con el cristianismo, vinculados a una religiosidad sincrética y a una jerarquía político-
religiosa de respeto en muchos casos acoplados al sistema de cofradías. El trabajo de los especialistas que
manejan la costumbre durante mucho tiempo fue semioculto, clandestino o en muchas ocasiones relegados
en la marginalidad” (MORALES SIC, 2004, p. 91).
115

da identidade maya. Os 500 anos da invasão em 92 e o acordo de paz no final de 96 foram


duas épocas relatadas como momentos em que alguns dos trabalhadores mais velhos passaram
a se identificar como mayas.
Já no que se refere aos trabalhadores nascidos nos anos 80 e 90 (que equivalem a
65% do total, ou 39), a escola ou a universidade apareceram como espaços particularmente
relevantes na conscientização e circulação do “maya”. Em alguns casos, o “maya” vem de
“berço”, precedendo a escola e outros espaços de socialização; isto é, membros da própria
família já se identificavam como mayas. Esta é, claramente, uma tendência observada muito
mais entre os mayas mais novos, e quiçá seja ainda mais comum entre mayas que ainda estão
entrando na vida adulta.
Dos 60 entrevistados, 56 declararam pertencimento a alguma comunidade linguística,
sendo a grande maioria (mais de 70%) das comunidades Kaqchikel, K’iche’ e Mam, como
pode ser visto na tabela 2. Este pertencimento é uma condição para todos que se identificaram
como mayas, mas a recíproca não é verdadeira.

IDADE NÚM. GÊNERO NÚM. RELIGIÃO NÚM. ESCOL. NÚM.


30-51 61,66% (37) Masc. 63,33% (38) Católica 40% (24) Até 2º grau 50% (30)
23-29 31,66% (19) Fem. 36,66% (22) Protestante 25% (15) Graduação 38,33% (23)

52-64 6,66% (4) Maya 15% (9) Pós 11,66% (7)


Nenhuma 11,66% (7)
Costumbre 8,33% (5)
Tabela 1 – Dados preliminares coletados a partir da aplicação do questionário.

Quase 15% (8) destes indivíduos negaram serem mayas, hesitaram em identificar-se
assim (preferindo o termo “indígena”, “originário” ou “descendente”) ou declararam-se
“50/50” (remetendo à ideia de mestiçagem, e a uma representação de “parcialmente maya”).
Isto significa que 48 declaram-se mayas, 80% do total de 60, que inclui ainda 4 trabalhadores
que se identificaram como ladinos.
Ainda referente aos que afirmaram pertencimento a uma comunidade linguística,
cerca de 30% deles declarou não ter pleno domínio da língua maya e/ou estar estudando para
dominá-la. No caso daqueles que não dominam bem uma língua maya, há uma demanda no
116

sentido de que estudem; em diversas oportunidades vi estes trabalhadores dedicarem uma


hora de seu expediente para este fim.
A segunda parte do questionário envolveu as representações dos mayas e seus
diacríticos mais recorrentes (língua, traje e calendário). A língua e o traje foram abordados
mais diretamente, e como esperado todos reiteraram sua importância para a identidade maya.

COMUNIDADE QUANTIDADE DE
LINGUÍSTICA TRABALHADORES
Kaqchikel 33,92% (19)
K’iche’ 23,21% (13)
Mam 14,29% (8)
Sakapulteko 7,15% (4)
Tzutujil 7,15% (4)
Q’eqchi’ 1,785% (1)
Q’anjobal 1,785% (1)
Poqomchi 1,785% (1)
Poqomam 1,785% (1)
Ixil 1,785% (1)
Achi 1,785% (1)
Poqomchi/Q’eqchi’107 1,785% (1)
Kaqchikel/K’iche’ 1,785% (1)
Tabela 2 – Diversidade étnica maya entre os trabalhadores mayas da ALMG que responderam ao questionário.

Sobre o calendário, entretanto, perguntei antes se conheciam o seu nawal, como


maneira de aferir a circulação deste tipo de conhecimento. Observei previamente que algumas
pessoas não conheciam e/ou não tinham motivações para buscar saber – dentre outras razões,
por conta especialmente da religião cristã. No total, apenas 6 pessoas (10% do total)
declararam não conhecer seu nawal. Das 54 que disseram conhecê-lo, mais da metade (32)
declarou abertamente seu nawal completo (incluindo a combinação com um dos números de 1

107 Duas pessoas identificaram-se como pertencentes a duas comunidades linguísticas ao mesmo tempo, no caso
Poqomchi/Q’eqchi e Kaqchikel/K’iche’, evidenciando casamentos interétnicos como parte da construção da
mayanidade para alguns mayas. Outro exemplo interessante, que vai além das comunidades linguísticas
mayas inclusive, é o de Lorena Cabnal, que se identifica como uma feminista comunitária e maya-xinka.
117

a 13);108 17 não deram uma resposta parcial e não souberam dizer o número e cinco negaram-
se a informar o nawal parcial ou totalmente.109
Um aspecto interessante em relação ao nawal é que cerca de 13% (7 pessoas)
declararam que o conheceram na própria ALMG, número que possivelmente é maior que o
aferido uma vez que inicialmente o questionário não contemplava este detalhe. Isto confirma
a importância da ALMG enquanto circuladora de conhecimentos mayas, o que já era
esperado, mas por outro lado indica que muitos começam a adquirir “capital cultural maya”
apenas após começarem a trabalhar na ALMG, o que eu jamais imaginaria anteriormente.
Mais do que isso, a mesma tendência foi observada – de maneira ainda mais forte –
no que se refere à utilização do termo “maya” com implicações de autoidentificação. Se 7
pessoas declararam terem conhecido seu nawal na ALMG, nada menos do que 12 (21,8%) das
55 pessoas que responderam quando/como passaram a se identificar ou reconhecer como
mayas mencionaram a ALMG como determinante. Das 12 pessoas, nove nasceram nos anos
80 e 90, e as outras três tiveram contato com a ALMG não muito depois de sua formação
(durante o fim dos anos 80 ou o começo dos anos 90).
Isto revelou uma terceira tendência no que se refere à relação dos mais jovens com o
termo “maya”. Como mencionado, em geral pessoas deste grupo passaram a se identificar
como mayas na família ou durante a formação escolar (seja na escola ou na universidade).
Aqui, foi possível perceber que é até bastante comum – como eu também não esperava –
pessoas que se identificam como mayas após começarem a trabalhar na ALMG, ou durante a
seleção para o posto de trabalho. Neste caso, há a impressão de que reivindicar-se maya ou
adquirir uma consciência maya facilita a própria entrada na ALMG.

108 Em pelo menos 10% desses casos, entretanto, o nawal completo não coincidia com a data de nascimento (no
calendário gregoriano) fornecida no início do questionário.
109 O nawal de uma pessoa é também popularmente conhecido como seu “nombre maya”. Apesar de se tratar de
uma minoria, desde 2009 eu já havia me deparado na Guatemala com pessoas que se negam a contar seu
nawal, especialmente por proteção e desconfiança. Para estas pessoas, revelar sua identidade no calendário
ritual é como expor seu íntimo, sua alma, é revelar quem você é e te expor inclusive em suas debilidades,
podendo este conhecimento de sua intimidade ser usado contra você. Nestes casos, saber o nawal de alguém
que encara a questão desta maneira é uma verdadeira demonstração de confiança, que certamente eu não
poderia exigir em alguns minutos de conversa. Das pessoas que não quiseram revelar seu nawal, a mais nova
era nascida no começo dos anos 70, o que a meu ver é uma evidência de que a relação com os nomes
calendáricos mudou entre as novas gerações. Mesmo vários mayas bem mais experientes demonstraram não
encarar a revelação de seus nombres mayas como um tabu, nem minha pergunta como invasiva. É curioso
contrastar a postura de quem parece proteger o seu nawal em segredo, com a de intelectuais mayas como
Demetrio Cojtí, por exemplo, que não apenas não esconde seu nombre maya como usa-o na capa de seu
livro, incorporando-o à sua identidade e principalmente à identificação da autoria.
118

Na verdade, neste caso a ALMG aparece como o lugar mais associado à construção
da mayanidade dos trabalhadores, e fica atrás apenas da família, que 17 pessoas (30,9%)
mencionaram. Os ambientes escolares – em qualquer grau de formação – foram citados por
10 indivíduos (18,2%), sendo a terceira associação mais lembrada.
Quatro pessoas nascidas antes da década de 80 lembraram momentos históricos
importantes. Três delas (5,45%) mencionaram especificamente os acordos de paz (dezembro
de 1996) como um momento em que passaram a se identificar como mayas, e uma (1,8%)
rememorou a época dos 500 anos da invasão da América (1992).
Uma única pessoa citou a experiências nas lutas sociais como determinante para que
passasse a se identificar como maya, após os 30 anos de idade. Outras onze pessoas (20%)
responderam em termos temporais, relatando há quanto tempo se identificam como mayas ou
quantos anos tinham. Todas elas tinham entre 13 e 29 anos, e portanto todas estavam
virtualmente em uma idade escolar ou universitária. Delas, três (5,45%) são nascidas antes da
década de 80, e sua juventude coincidiu com o começo dos anos 90 (com a aprovação da lei
da ALMG, com os 500 anos da invasão, etc), e oito (14,55%) são nascidas nos anos 80, todas
elas descobrindo-se mayas no começo dos anos 2000.
O questionário terminou com quatro questões sobre a própria ALMG, que tinham por
objetivo estimular os interlocutores a dividirem suas impressões e opinarem sobre a
instituição. Ao serem perguntados sobre o que mais gostam na ALMG, a maioria mencionou o
ambiente com os colegas, a possibilidade de aprenderem mais o seu – ou outros – idioma(s)
maya(s) e praticarem falando no ambiente de trabalho.
Ademais, a sede central foi apontada como um ambiente livre de racismo e em que
as pessoas podem se expressar e vestir roupas indígenas sem problemas. Esta impressão geral
foi contrariada apenas pontualmente, em relatos de trabalhadores sobre a dificuldade de entrar
e estar na ALMG sendo ladino ou kaxlan (não-maya), ou sobre a barreira do traje para as
mulheres, que às vezes gostariam de vestir uma roupa “ocidental” mas não se sentem à
vontade para isto, como se isto colocasse sua mayanidade em risco frente aos outros colegas.
Posteriormente, indaguei sobre o que menos gostam na ALMG. Para além de alguns
problemas pontuais e comuns em ambientes de trabalho, a maioria falou acerca da instituição
e reclamou, seja da burocracia ou da estrutura da ALMG. A organização política da academia,
especialmente o fato de que todos os anos muda-se a presidência (além de toda a junta
119

diretiva), foi objetivo de críticas. Isto, por sua vez, reflete-se no senso comum de meus
interlocutores, de que há uma alta rotatividade de trabalhadores na sede central, sendo difícil
encontrar pessoas que estão ali ininterruptamente há quatro anos (período de mandato do
conselho superior da ALMG) ou mais. Estas críticas foram reiteradas espontaneamente tanto
por Amílcar Pop, quanto por Demetrio Cojtí, em suas entrevistas comigo. Ao mesmo tempo,
há uma consciência mais ou menos geral de que mudar isto implica necessariamente em
reformar a lei da ALMG junto ao congresso guatemalteco.
Menos de um quarto dos trabalhadores (14) disseram acreditar que a academia
representa bem os mayas sem fazer quaisquer ressalvas; 14 preferiram falar que a ALMG
representa, mas em termos percentuais a partir de 5%, que raramente chegaram aos 70%.
Mais de um terço (22), contudo, disse que a ALMG não representa bem os mayas, e metade
destes atribuiu isto mais enfaticamente à própria estrutura organizacional da ALMG, a uma
ausência da instituição no interior e junto às comunidades, e à omissão das lideranças nas
questões políticas nacionais.
No que se refere à representação (e autorrepresentação) dos mayas, apenas três dos
60 trabalhadores (5%) não deram qualquer resposta à pergunta “¿que es ser maya para
usted?”. Para minha surpresa, a definição do “ser maya” atrelada à língua foi mencionada
apenas 14 vezes (por 23,33% das pessoas), um número abaixo do que eu esperava por tratar-
se de uma academia de línguas. O termo mais mencionado foi “cultura”, 16 vezes (por
26,66% das pessoas). Destacaram-se também as definições implicando modo de vida e
cosmovisão, o vínculo com os antepassados e o uso dos trajes típicos.
Ainda implicando em aspectos relacionados à cosmovisão, nove trabalhadores
mencionaram uma relação de harmonia ou equilíbrio com a natureza como algo que
caracteriza os mayas. Este talvez seja um caso emblemático, que evidencia uma representação
dos mayas próxima à de Thompson, isto é, pacíficos e em harmonia com a natureza.
Apesar de que, em quase todos os casos, os trabalhadores responderam à pergunta
enquanto mayas (isto é, incluindo-se em sua percepção do que é ser maya desde uma
perspectiva “nativa”), inclusive nos contextos de menção aos mayas antigos. um conceito em
língua maya foi acionado uma única vez. Winaq seria o mais próximo ao conceito de
“pessoa”, que é também um termo costumeiramente associado ao número vinte (winiq).110

110 Neste sentido, winaq é associado a winiq, assumindo um significado de pessoa humana (de 20 dedos).
120

TERMOS E SENTIDOS PARA NÚMERO DE


DEFINIR OS MAYAS MENÇÕES
Cultura 16
Idioma/lengua 14
Forma de vida, de ver as coisas; 13
cosmovisão
Antepassados (abuelos) 13
Relação, harmonia ou equilíbrio 9
com a natureza
Traje/vestimenta 9
Nativo/originário da Guatemala 6
Origem 6
Valores 6
Civilização/cultura/herança
milenária ou antigua
5
(ênfase nos mayas antigos)
Tradição(ões), costume(s) 5
Pertencimento 4
Sobrenome 3
Escrever em língua maya 2
Honra (em ser maya) 2
Espiritualidad 1
Winaq 1
Tabela 3 – Termos e sentidos usados pelos trabalhadores da ALMG para (auto)definir os mayas.

Perguntou-se também acerca das referências mayas dos trabalhadores. Este é um


dado importante, podendo revelar ideais e ideologias dos indivíduos, que ao mencionar um
nome estão também fazendo escolhas políticas que evidenciam os caminhos de suas próprias
apropriações da identidade maya. Isto ganha ainda mais em importância se considerarmos que
vários mayas contemporâneos são conhecidos nacional e internacionalmente, e que o próprio
movimento maya fomenta lembranças – e escritas – de resistências históricas contra os
invasores, a colonização e a territorialização.
Um quarto dos trabalhadores (15) não mencionou nenhum nome, e a referência mais
recorrente foi à família, que somando menções a avós e pais equivale a 22 (36,66%)
121

indivíduos. Os demais (23, ou 38,33%) citaram nominalmente intelectuais mayas, bem como
heróis históricos, como pode ser observado na tabela 4. Destacaram-se Rigoberta Menchú
Tum, citada por 5 pessoas, e Adrián Inés Chávez, fundador histórico da ALMK (k’iche’) e da
ALMG, e Atanasio Tzul,111 lembrados por 3 trabalhadores cada.

REFERÊNCIAS NÚMERO DE
MAYAS MENÇÕES
Rigoberta Menchú 5
Adrián Inés Chávez 3
Atanasio Tzul 3
Demetrio Cojtí 2
Andres Cuz 1
Antonio Pop Caal 1
Daniel Matul 1
Humberto Akabal 1
Irma Alicia 1
Lolita Chavez 1
Marcelo Vicente 1
Modesto Baquiax 1
Narciso Cojtí 1
Rosalina Tuyuc 1
Rosario Tuyuc 1
Tecun Uman 1
Tabela 4 – Pessoas mayas nominalmente mencionadas como referências pelos trabalhadores da ALMG.

Das 16 pessoas citadas, pelo menos 8 (50%) tiveram ou têm algum envolvimento
direto com a ALMG, seja no contexto da luta por sua criação, seja trabalhando na instituição
no passado ou no presente, incluindo até ex-autoridades do conselho superior. Quase todos
são relativamente bem conhecidos fora da ALMG, e no movimento maya visto de maneira
mais ampla, o que se aplica a todas as outras pessoas mencionadas e que não têm vínculo
histórico com a ALMG.
Acredito que os dados coletados são relevantes e poderão continuar servindo, no

111 Atanasio Tzul foi uma liderança indígena maya k’iche’, símbolo do levantamento indígena de Totonicapán
(Guatemala) em 1820, que estabeleceu governo próprio por quase um mês.
122

futuro, para pensar a ALMG e dar atenção especial a alguns aspectos que ficaram de lado,
quando eu próprio puder assentar mais as informações compartilhadas por meus
interlocutores. Entretanto, ficou claro tanto pelo tempo em campo, quanto pelos questionários
e entrevistas, que há demanda por uma reforma da lei para corrigir o que muitos mayas – eu
incluso – entendem como uma brecha que dificulta a continuidade dos trabalhos da ALMG,
especialmente na sede central e na presidência.
123

5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta dissertação buscou uma análise dos usos históricos do termo “maya”, bem como
de sua apropriação que permitem afirmar que (1) os “mayas” são uma invenção moderna,
sendo necessário para entendê-la voltar, como sugere Wainwright (2008), a atenção à
arqueologia do mayanismo e à história do campo acadêmico mayanista; (2) que a definição e
representação de quem é maya e do que é ser maya esteve, desde o século XIX, em disputa na
academia; (3) que portanto, as disputas pela definição ou representação dos mayas existem
com e sem os mayas, em que a ciência mayanista – em especial a linguística –, bem como as
representações mayanistas podem desempenhar um papel importante na afirmação e
legitimação da apropriação do termo “maya” enquanto categoria identitária entre os mayas
contemporâneos; (4) que os intelectuais mayas tiraram proveito de uma tremenda
oportunidade política (TARROW, 2011) com a saída dos militares do poder e a transição para
a paz, conseguindo dentre outras coisas criar a Academia de Lenguas Mayas e incorporá-la ao
Estado; (5) que existem muitas disputas em torno do “maya”, e mais controvérsia do que
espaço e tempo nesta dissertação.
Se hoje existem “disputas pela identidade maya”, questão que me afetou primeiro no
campo e razão para escrever esta dissertação, certamente é também pelo fato de que a
definição ou representação dos mayas sempre esteve em disputa, tanto na academia quanto no
caldeirão guatemalteco da segunda metade do século XX.
As representações dos mayas antigos, como sugere Wainwright (2008), foram
também cunhadas a partir de uma ciência liberal desde o século XIX, no momento em que as
ciências humanas e sociais estavam se institucionalizando nas universidades, e as próprias
disputas se deram naquele contexto. Está evidente que, neste mesmo contexto, a definição do
maya tornou-se objeto de disputa desde muito cedo, com atenção especial dada os calendários
– à astronomia – e à escrita hieroglífica. Muitos mayanistas construíram uma história
grandiosa para os mayas, concedendo a eles um passado comparável aos dos gregos ou
egípcios; ao mesmo tempo, vários deles não viam nos indígenas seus contemporâneos
qualquer brilho do passado ou qualquer futuro que não fosse a assimilação.
Mayanistas como Thompson e Schele ajudaram a mudar o paradigma preconceituoso
de muitos mayanistas do passado, que diminuíam os mayas contemporâneos. Trabalharam
para evidenciar a continuidade cultural maya e, no caso de Schele e Grube, interferiram
124

diretamente na construção da mayanidade de militantes mayas ainda no século XX.


Os ativistas do movimento maya na década de 80 situaram-se em uma posição de
diálogo, ao mesmo tempo, com a academia (na qual muitos deles já estavam inseridos) e com
o Estado (para criar a sua própria academia). Isto não permite negar que, em geral, o termo
“movimento maya” é ao mesmo tempo – e a grosso modo – o termo que mais sintetizaria a
ideia de uma “etnogênese maya” e que implica também nos “intelectuais mayas”.
Neste sentido, e entendendo estes intelectuais como detentores de um capital cultural
adquirido pela via da educação universitária, inclusive um capital cultural “mayanista”, não
resta dúvida que a noção de “capital cultural maya” é pertinente para pensar os setores mais
culturalistas do maya, bem como relação com o “maya” e suas maneiras – e agendas políticas
– para defini-lo. Além disto, estes intelectuais foram fundamentais no diálogo com o Estado, a
partir do qual o movimento maya começou a se institucionalizar, isto é, a criar cada vez mais
instituições mayas, primeiro no âmbito do próprio Estado – as ventanillas indígenas como a
ALMG – e principalmente a partir dos anos 90 na forma de ONGs muitas vezes financiadas
pela cooperação internacional.112
Por outro lado, acredito que no século XXI – na verdade, desde sempre – “ser maya”
é uma abstração que pode ter vários sentidos. No contexto atual, as identidades são fluidas e o
“ser maya” – ou “ser negro”, por exemplo – podem ser definidos e negociados individual e
contextualmente. Desde a invasão da América o “ser católico” não excluia necessariamente o
“ser maya”, e já no século XIX e principalmente na Guatemala do século XX o “ser de
esquerda” ou “de direita” não é incompatível com “ser maya”. Apesar de ainda se tratar de um
grande tabu, existem mayas que se reivindicam como tal mesmo sem falar ou sem dominar
uma das línguas mayas, como é o caso inclusive de alguns. Antes de simplesmente
criticarmos a instituição por não impor um critério de “mayanidade” mais rígido, por
exemplo, é preciso compreender que a descoberta da identidade maya ainda é um processo
longo e também individual em muitos casos. Ou acaso quem nasceu na capital e falando
espanhol, mas buscou resgatar sua identidade “maya”, não deve ter esse direito? Só a língua
define os mayas?
A autoidentificação maya é um processo histórico que tem início na segunda metade

112 O principal injetor de recursos no movimento maya historicamente é a Noruega. Sobre a cooperação
internacional norueguesa, de financiamento de movimentos e organizações indígenas na América Latina, Cf.
BARROSO-HOFFMAN, 2009.
125

do século XX e ainda está em curso. Os mayas seguem reconstruindo e dando novos sentidos
ao que é ser maya. Se a reivindicação da identidade maya começou a tomar corpo e conquistar
espaço permanente na agenda nacional – e dentro do Estado –, a partir de uma elite intelectual
e universitária, o movimento pan-maya é uma abstração de algo muito mais amplo a partir do
momento em que a identidade maya generaliza-se na Guatemala.
Isto fez com que uma série de problemas e mesmo conflitos internos surgissem,
indicando que trata-se de um movimento identitário ao mesmo tempo muito diverso, disperso
e atravessado por outras lutas e movimentos sociais – que, como visto, precedem a própria
conformação de um movimento maya. A unidade política em torno da identidade pan-maya é
buscada por diversos grupos, com projetos diferentes ou mesmo conflitantes que devem ser
situados na estrutura social guatemalteca. No âmbito das estratégias de unidade por via
culturalista, são recorrentes tentativas de “unificar o calendário maya” e assim estabelecer
uma espécie de “hegemonia”.
Entretanto, a posição mais honesta que eu deixaria aos mayas nestas palavras finais é
a de que é preciso buscar uma unidade para além da solidariedade étnica ou da celebração do
ano novo no mesmo dia. Os essencialismos, ainda mais no caso de uma identidade tão diversa
e ao mesmo tempo tão capitalizável quanto a maya, servem apenas para dividir ainda mais os
mayas a partir do momento em que se prioriza disputas pela definição do que é maya, e de
quem é mais maya do que o outro, em detrimento das lutas coletivas. Os mayas do passado
serão sempre lembrados, e os calendários até eu seguirei contando, mas eles não têm poder
para mudar o Estado e a estrutura que perpetua a desigualdade, e usá-los para reiterar
desigualdades é ainda pior.
126

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ANEXO 1
MODELO DE QUESTIONÁRIO

QUESTIONÁRIO Nº ____
DATA: ____/____/______
LOCAL: ___________________

NOME: ____________________________________________________________
DATA DE NASCIMENTO: ____/____/______
CARGO NA ALMG: _________________________________________

HÁ QUANTO TEMPO ESTÁ NA ALMG E EM QUE FUNÇÕES?

ESCOLARIDADE: ( ) FUNDAMENTAL ( ) MÉDIO ( ) SUPERIOR


REGIÃO/COMUNIDADE DE ORIGEM: _________________________________
RELIGIÃO: _________________________

VOCÊ É MAYA? ( ) SIM ( ) NÃO


DE QUAL COMUNIDADE LINGUÍSTICA? ___________________
O QUE É SER MAYA PARA VOCÊ?
FALA SUA LÍNGUA? ( ) SIM ( ) NÃO

QUAL É A IMPORTÂNCIA DAS LÍNGUAS PARA A IDENTIDADE MAYA?


QUAL É A IMPORTÂNCIA DOS TRAJES TÍPICOS PARA A CULTURA MAYA?

HÁ ALGUMA PESSOA MAYA QUE VOCÊ TEM COMO EXEMPLO?


QUANDO E COMO VOCÊ COMEÇOU A SE IDENTIFICAR/RECONHECER COMO
“MAYA”?

VOCÊ CONHECE O SEU NAWAL? ( ) SIM ( ) NÃO


QUAL É O SEU NAWAL? _______________________
QUAL É A IMPORTÂNCIA DO SEU NAWAL NA SUA VIDA?
O QUE VOCÊ MAIS GOSTA NA ALMG? // E O QUE MENOS GOSTA?
ACREDITA QUE A ALMG REPRESENTA BEM OS MAYAS? ( ) SIM ( ) NÃO //
COMO/PQ?

NA SUA OPINIÃO, QUAIS SÃO OS MAIORES DESAFIOS DA ALMG HOJE?

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