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e n tre p a p é is e vo ze s

M AR IA FR AN CA P IR ES
e n tr e p a p é is e vo z e s

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M AR IA FR AN CA P IR ES

Maria Franca Pires: entre papéis e vozes


Juliana Pires Machado

Orientação
Profª. Ms. Odomaria Macedo

Projeto gráfico
Jane Aline Bastos

Capa
Leônidas Vidal

Machado, Juliana Pires de Carvalho Rocha.


Maria Franca Pires: entre papéis e vozes
Juazeiro/BA/ Juliana Pires de Carvalho Rocha Machado.
Juazeiro, BA: 2009.
Livro-reportagem

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) Universidade do


Estado da Bahia, Curso de Comunicação Social com Habilitação
em Jornalismo Multimeios, 2009.
Orientadora: Profª. Ms. Odomaria Rosa Bandeira Macedo

1. Biografização 2. Livro-reportagem 3. História 4. Memória.

93 páginas: 14 cm x 21 cm

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J u lian a Pir es Mach ad o

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Se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas


sinais, indícios que permitem decifrá-la .

Carlo Gin zbu rg

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SUMÁRIO

Prefácio 9

13 Apresentação
15 RASTROS
Uma pessoa entre papéis e vozes

30 INDÍCIOS DE UMA PESQUISADORA


Uma viagem nos registros da história que
andava na cabeça do povo

42 PISTAS DE UMA PROFESSORA


Entre memórias de uma história escolar

66 MARIA FRANCA PIRES


Valente de Remanso - Lord de Juazeiro

78 Um caso de amor...
Agradecimentos 83
Bibliografia 85
Jornais 86
Revistas 87
Entrevistados 88
Créditos das fotografias 89
Os Cadern os de Maria 90

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PREFÁCIO: CARTA AO AMANHÃ

Quando minha mãe posou


para este que foi seu único retrato,
mal consentiu em ter as têmporas curvas.
Contudo, há um desejo de beleza no seu rosto
que uma doutrina dura fez contido.
...
Seria um retrato triste
se não visse em seus olhos um jardim.
Não daqui. Mas jardim .
(Fotografia. In: O coração disparado, Adélia Prado)

Vivendo em Juazeiro, uma mulher Maria Franca Pires, que tinha a


estranha mania de guardar coisas, criou um arquivo de tudo, a partir do
qual temos percebido que se pode contar certa história dessa cidade.
Convivi com ela por cerca de duas décadas (1970 - 1988) e, como isso
aconteceu de maneira bem próxima, pensava que eu a conhecia.
Hoje, 20 (vinte) anos depois que Maria partiu, outra mulher - Juliana
Pires de Carvalho Rocha Machado, jovem estudante se fazendo jornalista,
minha querida ex-aluna, embora ela ainda quase uma estrangeira no ciclo
da convivência juazeirense em que eu e Maria nos tornamos pessoas, essa
moça me apresenta um retrato de Maria, que buscou nos referidos
guardados.
Acompanhei Juliana na busca desse retrato e sei que o mesmo foi
obtido através e entre tantas coisas percebidas do mencionado arquivo.
Agora, devo confessar: Embora me veja naquele tempo de Maria e, obser-
vando-me ali eu me considere, sempre, como amiga dela, parece que
realmente eu não a conhecia, diante da pessoa dela, que vejo hoje com o
retrato de Juliana.
Esse retrato de Maria Pires é o que se apresenta nesse livro -
desenhado em palavras , como diz sua autora. Pelo seu olhar atento, pela
sensibilidade e astúcia do seu olhar, encontra-se aqui a configuração de
uma pessoa no mundo do seu tempo como ela o constituiu. Na história
que se conta com esse retrato o mundo de Maria parece fortemente encar-
nado nela e ela naturalizada naquele mundo.
Assim, as histórias de Juazeiro e de Maria são percebidas e contadas
de forma tão enlaçadas, que se embaraçam, aparentando, algumas vezes,
serem partes de uma só história, como aquela que nos canta Luiz Gonzaga,

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de quem lembramos ao observar isso: Juazeiro, juazeiro/ Me responda,


por favor/ Juazeiro, velho amigo ..../ Juazeiro, meu destino/ Tá ligado
junto ao teu/ No teu tronco/ tem dois nomes/ Ela mesma que escreveu ...
Ai Juazeiro!
O livro resulta de um trabalho de extrema dedicação de Juliana a
uma pesquisa delicada, que teve início no segundo período de sua história
de estudante do curso de Jornalismo em multimeios, e desenvolveu-se em
dois projetos - de iniciação científica e de monitoria de extensão. Com esse
livro ela demonstra mais do que uma aptidão sua para o exercício profissional
do jornalismo, como também uma invejável capacidade de investigação,
essa concebida e realizada como um ato paciente e sensível de decifração
do universo empírico, de captação de significados e construção de sentidos.
Encontra-se nesse livro uma reportagem esclarecida sobre Maria
Pires e Juazeiro, que é, ao mesmo tempo e, também, - talvez, por isso
mesmo - uma reportagem sobre a história da cultura juazeirense entre
os idos de 1934 até 1988, confeccionada com rigor e primor. Muitos aspectos
do modo de vida da sociedade evidenciam-se com essa reportagem, assim
como uma parte representativa da dinâmica social naquele tempo: a
educação, a política, as práticas lúdicas e outras entram em cena, insi-
nuando, em certa medida, como se conjugavam entre si e que valores
morais contornavam esses aspectos.
Ressalta-se no trabalho apresentado a rica imaginação da autora na
composição das cenas relacionadas na tessitura da narrativa e sua capaci-
dade expressiva e criativa, como elementos decisivos da forma e conteúdo
do texto construído para a reportagem. Vê-se uma escritura literária muito
interessante, de modo que a biografia de Maria Pires possibilita se sentir
também a pulsação de uma cidade - do Juazeiro em que ela vivera - e per-
ceber-se o ritmo da vida naquele contexto. Com isso, é possível se
compreender o lugar que ela teve em meio a tudo aquilo.
Por meio de uma narração que transcorre fluida, do passado para o
presente e vice-versa, vai se configurando o retrato de Maria por Juliana,
ao contar as histórias a propósito do mesmo. Contudo, não se compromete
a noção de temporalidade do que é referido ali, embora nada do que está
dito se apresente ordenado numa linearidade cronológica.
A descrição dos fatos e situações ocorre com uma precisão de detalhes
tão esclarecedora que é como se Juliana tivesse testemunhado tudo aquilo.
Tudo que está contado é feito em tons tão fortes e de forma tão dinâmica
e viva que a leitura desse livro chega a comover: Em mim, afloraram cer-
tas recordações, ao lembrar não só daquelas situações e pessoas referidas
na história que Juliana conta, como também de outras histórias, pessoas,
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situações e coisas, revivendo-as comigo mesma. Quando me dei conta, eu


já cantava: Estava à toa na vida Meu amor me chamou Pra ver a banda
passar cantando coisas de amor A minha gente sofrida esqueceu-se
da dor ao ver a banda passar cantando coisas de amor .....
Sem dúvida, aconteceu mesmo uma viagem de Juliana ao universo
de Maria Pires.
A leitura desse livro-reportagem que Juliana oferece aos juazeirenses
(nascidos ou não na cidade de Juazeiro, como foi o caso de Maria Pires
a juazeirense mais juazeirense , como se encontrará contado nesse livro),
vem contribuir e, muito, para o conhecimento histórico de nós mesmos e
dessa cidade em que vivemos. A propósito disso, e além de tamanha
contribuição, a história do próprio livro nos sugere pensar sobre muitos
outros aspectos em relação à possibilidade e à importância desse tipo de
conhecimento. A partir do fato de guardar coisas, marcante da história de
Maria Pires, como essa é dada a conhecimento nessa reportagem, pode-
se observar o processo de constituição da memória social e avaliar a força
e o papel que essa desempenha na experiência social e no sentido da mes-
ma.
Na memória social estão implicados o esquecer e o lembrar que são,
naturalmente, duas faculdades humanas que atuam decisivamente em
nossa existência, seja no âmbito da vida privada ou no da vida pública e
que, a depender de como acontecem ou do objeto em foco no esquecer
ou no lembrar, significam bem mais do que isso.
No jogo da vida social esquecer e ou lembrar são indicativos de um
estado da arte do homem e da sua história como um fazer, pois, prati-
camente, essa se opera mais pelo lembrar. Bem diz Carlos Drumond de
Andrade no sábio poema:
I NTI MAÇÃO
- Você deve calar urgentemente as lembranças bobocas de menino.
- Impossível. Eu conto o meu presente.
Com volúpia voltei a ser menino
(In: Esquecer para lembrar)

Também é pelo lembrar que se constrói o saber histórico. A história


como ciência consiste, efetivamente, em um lembrar. Assim, o esquecer se
torna um problema para os homens e as sociedades, embora considerado,
para muitos, sem maior importância, ainda.
O que se sabe de Juazeiro, município do estado da Bahia, às margens
do rio São Francisco, com mais de um século de história de cidade? Como
se conta a história dessa cidade? Quem e o que aparece na história que se
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conta de Juazeiro? Como relacionar tantos acontecimentos culturais que


são vistos no passado dessa cidade, segundo a história que se conta aqui.
O que se vê e não se vê, atualmente? Como avaliar as mudanças que
se observam na cultura e na participação dos juazeirenses entre os dois
momentos históricos relacionados nessa história?

Juazeiro Bahia, 20 de março de 2009.

Odomaria Rosa Bandeira Macedo²


1
- O título desse prefácio é de autoria de Luis Osete Ribeiro Carvalho, a quem o peço emprestado. Porque esse foi
o título que denominou o texto de suporte de uma exposição de cartazes e outros materiais publicitários que
integram o arquivo de Maria Pires, que realizamos em 2007, na qual foi observado de forma bem evidente o agito
cultural da década de 80 nessa cidade. Diante daquilo, Osete achou de conclamar a população juazeirense a pensar
sobre o amanhã a partir do ele via no seu presente comparado àquela observação. Naquela exposição o referido
texto compunha-se na forma de uma carta em que figuras e acontecimentos do passado, que apareciam nos
cartazes e em outras peças de publicidade ganharam animação e conversavam sobre aqueles acontecimentos,
deixando-nos uma mensagem sobre a necessidade de cuidar-se da memória, associando isso à diversidade de
coisas que aconteciam nas datas ali registradas e à paradeira cultural do presente, sentida, segundo Osete, como
um traça que marcava a atualidade naquele momento.

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- Professora adjunta da UNEB Departamento de Ciências Humanas Campus III. Mestra em Sociologia .
Especialista em Antropologia.

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APRESENTAÇÃO

Era recém-chegada a Juazeiro. Pouco sabia sobre a cidade


e sua história, apenas o que pescava no noticiário local. Eu che-
gava em janeiro de 2005 para cursar a faculdade de Jornalismo
Multimeios na Universidade do Estado da Bahia. Maria Franca
Pires já havia partido desde 1988, quando, na longínqua cidade
de Irecê, Chapada Norte da Bahia, eu acabara de completar três
anos de vida.
Meu encontro com Maria, mesmo distante no tempo, acon-
teceu no final do ano de 2005, quando me inscrevi para concor-
rer a uma vaga de monitoria de extensão no projeto intitulado
O arquivo da profª Maria Franca Pires: memória e história cultural em
pesquisa na região de Juazeiro-BA , da UNEB, onde cursava, à época,
o segundo período de Jornalismo.
Dentre uma lista de outros projetos relacionados à área de
comunicação, acabei escolhendo este, mais por empatia pela
professora coordenadora de tal projeto, do que por qualquer
outro motivo. Sabia que queria uma experiência na área da pes-
quisa acadêmica e isso bastava. Mas, confesso: não conhecia
nem de longe quem era a tal Maria Franca Pires, dona do arquivo,
objeto da pesquisa.
Passei por uma seleção. Era preciso escrever um texto dizen-
do da importância daquele estudo. Olhei meus concorrentes
em volta, debruçados sobre suas folhas de ofício, a descreverem
importâncias e mais importâncias. Voltei-me para o lado e per-
guntei à menina mais próxima, que já trabalhava como voluntária
naquele projeto:
- Hei, quem foi essa Maria mesmo!?
Simples e objetiva, ela me disse que Maria Franca Pires
tinha sido professora em Juazeiro e, durante sua vida, pesquisou
e guardou coisas sobre a história da cidade. Ah, pronto! Estava,
então, explicada a importância do trabalho de pesquisa ao qual
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eu concorria a uma vaga de monitora, sem ao menos saber


quem era a dona do arquivo, objeto da pesquisa.
Surgiu a oportunidade de realizar o trabalho como volun-
tária, o que aceitei de pronto. Na primeira reunião da equipe,
dispus-me a trabalhar com um dos cadernos manuscritos por
Maria Franca Pires, a fim de registrar, em forma de inventário,
o conteúdo do caderno. E foi o contato com esse caderno,
cheio de sinais de um modo de ser, que foi me revelando uma
Maria Franca Pires - que por vezes se multiplica e dividi-se,
sendo várias. Tornando-a minha conhecida, comecei a decifrar
e compreender a pessoa através daqueles papéis e de seus escri-
tos.
O fato é que, envolvi-me de tal modo que hoje, mais de
três anos depois, concluindo o curso de Jornalismo, Maria é
minha amiga íntima e tenho a ousadia de biografá-la partindo
de seus cadernos, presentes no arquivo deixado por ela.
Por meio das coisas que Maria guardou, já conheço Juazeiro
- cidade tão recente em meu caminho - melhor do que a minha
cidade natal; sei de histórias e modos curiosíssimos de pessoas
e lugares dessa cidade; fiz muitas viagens em dias lá bem longe
no tempo.
É essa viagem que conto nas linhas que se seguem. No
caminho, vai-se configurando um perfil da pessoa Maria Franca
Pires, a qual se MOSTRA e se esconde por entre os papéis e as
vozes, nos quais a tenho encontrado.

Juliana Pires de Carvalho


Rocha Machado

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RASTROS
Um a pessoa entre papéis e vozes

Nem sabia que existia aquela sala ali, seguindo por um corredor
ao lado da biblioteca. Fomos levados para lá depois de escrever o
texto sobre a importância da pesquisa, na seleção para monitoria do
projeto O arquivoda profª Maria Franca Pires: memória ehistória cultural em
pesquisa na região de Juazeiro-BA .
Ao abrir a porta, inevitável não se incomodar com o cheiro for-
te de coisa antiga que veio logo invadir nossas narinas. Percorri o
espaço com um olhar de susto e curiosidade. Espalhados sobre a
mesa grande e pelas cadeiras que ocupavam parte da sala, estavam
papéis - muitos e indefiníveis de imediato.
Uma das concorrentes à monitoria de extensão desistiu logo,
tinha renite alérgica e, ao primeiro contato com aqueles materiais
amarelados e desgastados pela ação do tempo, pôs-se a espirrar.
Depois de sermos apresentados ao arquivo pela professora coor-
denadora do projeto - que nos falava enfática sobre o trabalho traba-
lhoso que teríamos pela frente - pensei:
- Mas que figura essa Maria eim! Guardar tudo isso... Será pra quê?
Qual era sua intenção? Quando começou a juntar essas coisas? Por que
guardava objetos tão incomuns como sacos plásticos e embalagens? E
esse sobrenome Pires ? Ai ai ai... Só falta descobrir que somos parentes!
Na hora não percebi o que acontecia, mas daquelas interrogações
firmou-se o laço que me prende até hoje ao mundo que é o arquivo
da professora Maria Franca Pires.
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Seus guardados formam mesmo um museu de tudo . Tudo


o que na época se referisse a Juazeiro, seu povo, e que chegou às mã-
os, ouvidos e olhos atentos de Maria, está preservado em seu arquivo
de variadas formas: entre livros escritos sobre Juazeiro ou por juazei-
renses; cartazes de eventos diversos promovidos na cidade e região;
folhetos; calendários; envelopes; cartas; bilhetes; convites; programas
de eventos; apostilas de pesquisas diversas, realizadas por ela e outras
pessoas; certificados; flâmulas; biografias; poesias; fitas K7 com
gravações de entrevistas, músicas, crônicas, programas de rádio,
palestras, missas; documentos pessoais de pessoas várias - como
carteira de eleitor, passaporte e certificados escolares; jornais e revistas
- locais, regionais, estaduais e nacionais; discursos; atas; cadernos
manuscritos, onde estão registradas desde entrevistas com perso-
nagens da história de Juazeiro, aos caprichosos recortes de uma vida
de professora primária; fotografias.
Um mundo , ou a tentativa de abarcá-lo para reter uma história
escorregadia da cidade de Juazeiro, no fundo de seu baú imenso.
...
Debruçamo-nos sobre as fotografias antigas presentes no
arquivo de Maria Franca Pires, pela emergência de realizarmos uma
exposição com aquele material.
Um primeiro dado deteve minha atenção: não se encontrava,
até então, nenhuma foto de Maria Franca Pires naquele acervo. Só
depois identificamos algumas imagens dela em matérias de jornais
e revistas ali guardados, mas, dentre as fotografias do arquivo, nenhu-
ma foto que retratasse Maria.
Ela, que se esforçara tanto para que a história da cidade de
Juazeiro não se perdesse, deixou-se ficar fora daqueles guardados?
Contraditório, mas seguimos em frente.
...
As fotografias guardadas por Maria Franca Pires falam. É só
parar um pouco e contemplar aquelas cenas, cenários, imagens, rou-
pas, o semblante dos personagens. Elas são o retrato de um outro
tempo, ou de outros tempos, diferentes entre si e distantes do hoje.
Falando, as fotografias dizem de uma cidade de Juazeiro em
que - sendo escrita Joaseiro - os carnavais eram festejados em
carros alegóricos pesadamente puxados por cavalos nas ruas de
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areia, e as pessoas se fantasiavam com muita roupa. A avenida da


orla fluvial da cidade era uma rua larga de mão dupla com árvores
que dividiam um lado e outro. A ponte erguia seu vão central - cha-
mado Portão da Ponte - para a passagem dos vapores que paravam
no porto e seguiam viagem. E muito antes disso, quando ainda a
ponte não existia, os paquetes bailavam soberanos levando e trazendo
gente e carga entre a baiana Juazeiro e a Petrolina pernambucana.
Na comparação do antes com o agora, impressionávamo-nos
com as mudanças muito mais do que com as permanências e viráva-
mos sempre as fotos, buscando informações que as contex-
tualizassem, mas, em sua maioria, elas estavam sem data e sem no-
me de lugares ou pessoas.
No entanto, em meio àquelas inúmeras fotografias soltas,
algumas traziam manuscrito o nome Dinorah . Seguindo por esse
rastro ali deixado, fomos ao encontro de Dinorah Albernaz Pereira
e Mello Silva, que convivera com Maria Pires e, por confiar em seu
ideal de preservar a história da cidade de Juazeiro - segundo ela mes-
ma nos relatara -, doara-lhe grande parte das fotos do seu acervo de
família.
Aí, então, começa a se firmar uma rede de relações interco-
nectadas, de papéis e vozes que se complementam, e, por sua força,
dão corpo à pesquisa que busca compreender a pessoa e dar sentido
aos recortes de uma história, guardados por ela.
...
Chegar à casa de dona Dinorah, situada no bairro Castelo Bran-
co, foi como uma viagem no tempo. A construção é típica daqueles
dias tranqüilos de cidade pequena: os muros baixos que dão na cin-
tura, portão igualmente baixo feito de barrinhas de ferro, por onde
passando a mão para o lado de dentro, facilmente alcançamos o fer-
rolho, destravamos, e adentramos pelo jardim da frente anunciando
nossa chegada.
- Dinorah! Ô de casa!
Ela aparece à porta de vidro da sala já com os braços abertos e
sorrindo, acolhedora. Uma pequena grande senhora. Cabelinhos
brilhantes de tão brancos e lisos. Olhos vivos de um azul reluzente.
Presenciamos ali, naquele recanto que é a casa de Dinorah, um dos
primeiros momentos mágicos nesse caminho de encontro com uma
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Maria, ali colocada com as lembranças: a oralidade e a memória dan-


do vida às cenas até então congeladas nas fotografias.
Ao entrar pela sala, a viagem no tempo continuou: móveis antigos
e bem desenhados, feitos de uma madeira escura, cadeiras de balanço
e fotos de família em quadros na parede.
Ela nos conta sua história de vida em um relato que impressiona
pela firmeza na citação de nomes, sobrenomes, parentescos e datas.
Nascera no mesmo ano em que Maria, a 14 de julho de 1921. Formara-
se professora pela Escola Rural do Colégio Nossa Senhora Auxi-
liadora, um ano antes que ela, em 1938. Filha de Urânia Albernaz
Pereira e Mello e Mário Evangelista Pereira e Mello, e neta do influente
Coronel João Evangelista - aquele mesmo cujo nome está gravado
numa rua central da cidade de Juazeiro, popularmente conhecida co-
mo Rua da 28 .
Dinorah tivera uma vida social movimentada: professora, can-
tora, de uma família importante em Juazeiro. Participou ativamente
de grande parte dos acontecimentos retratados nas fotos que motivou
a nossa ida até ela - de carnavais a cursos, inaugurações e festas.
- Como Maria entrou em sua vida?
- Maria Pires foi minha vizinha. Eu morava na rua da 28, mas
a minha casa tinha um portão pra a rua que Maria morava. E então,
a gente se unia muito, andava muito juntas e em toda parte que Maria
estava eu também ia. E aí, num sabe, nós começamos a nos dar mui-
to bem... Eu conheci o pai de Maria Pires, Clodoaldo, e conheci o
avô, Trajano Bandeira. E sempre tudo que Maria Pires fazia eu estava
presente.
- E como era Maria Pires? Qual a sua impressão daquela pessoa?
Que pessoa ela era?
- Muito dinâmica! Muito sincera! Quando ela gostava de uma
pessoa, ela gostava. Mas também, quando ela não gostava - fala
pausadamente em tom de alerta e continua.
- Serviçal! Ave Maria, uma pessoa precisar de Maria e ela não
servir? Não. Ela servia! E com carinho, e com amizade ela se dedicava
às pessoas que precisavam. Uma pessoa que sabia conduzir suas
amizades.
- Por que você confiou suas coisas a ela? Por que você confiou
nela?
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- Sabe por quê? Porque Maria Pires era LOUCA por Juazeiro.
E ela me dizia: - Dinorah, eu sou de Remanso, mas eu me considero
juazeirense, eu quero bem a sua terra e acho que ela também é mi-
nha terra . Aí, eu confiei TUDO o que eu tinha a ela. Eu disse: -
Pois Maria, eu vou passar meu legado pra você! . E aí, num sabe, eu
passei TUDO, todas as minhas fotografias de família, dei tudo pra
Maria. Ave Maria! Onde ela sabia que tinha gente que soubesse da
história de Juazeiro ela estava presente lá!
O contato com Dinorah trouxe o mundo de Maria Pires -
antes distante, estático e sem vida - para bem perto de mim. Andar
por Juazeiro, inclusive passou a ser diferente. Olho, agora, para os
lugares e me demoro mais, contemplando os aspectos físicos da
cidade. Vou pensando: O que terá sido antes? . Os lugares agora
emanam histórias.
Além de identificar muitas pessoas que aparecem nas fotogra-
fias - seus nomes, sobrenomes e parentescos - Dinorah contribuiu
expressivamente indicando outras fontes que nos contariam outras
histórias - ou a mesma história vista por outros olhos, sentida de ou-
tro lugar.
- É bom vocês falarem com Lourdes Duarte, ela sabe TANTA
coisa de Maria Pires. Ela era a amiga mais chegada de Maria - esfrega
os dedos indicadores, naquele gesto conhecido que indica a proxi-
midade entre duas pessoas - Era ela e Terezinha, a primeira esposa
de doutor Dewilson. Eram as três, não se desligavam, eram as mais
amigas - recomenda Dinorah.
...
Aconchegados pelos sofás e cadeiras, a conversa rolou por horas,
interrompida só quando o estômago começou a roer provocado
pelo cheiro de comida quente vindo da cozinha. Era o meio do dia,
hora de voltar para casa, porém, ainda embebidos de história, tontos
de vida.
...
De Dinorah, voltamos às fotos e preenchemos muitas lacunas.
Outras tantas permaneceram. Mas a exposição Juazeiro Flashes de
Memória do A cervo de Maria Franca Pires nos trouxe outras vozes rele-
vantes, como a de Maria de Lourdes Duarte.
Esta se tornou nossa próxima fonte por três motivos: Lourdes
fora indicada por Dinorah como amiga íntima de Maria Pires;
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algumas fotos do arquivo contêm seu nome ali manuscrito, como o


de Dinorah; e durante a exposição de fotografias, diante de uma das
fotos, Lourdes questionara a data indicada na legenda da mesma, o
que nos chamou a atenção para a necessidade de checar nossos dados,
cruzando as diferentes informações coletadas, a fim de diminuir ou
corrigir possíveis erros.
...
Chegar à casa de Lourdes me trouxe a certeza de que a sensação
de viagem no tempo , experimentada lá na primeira entrevista com
Dinorah, repetiria-se ainda algumas muitas vezes.
Já na entrada, ainda na parte de fora da casa, contemplo a placa
fixada na parede: é uma homenagem à mãe de Lourdes. A casa -
situada na rua 15 de novembro, próximo à praça popularmente conhe-
cida como Praça do Boi - é histórica. A parede rosada com o contorno
dos azulejos sobressaindo; o portãozinho de ferro, entrecortado em
formas de pequenos losangos, dá para a estreita área com cadeiras
receptivas às visitas - dali vê-se de um lado a sala e de outro a rua.
Imagino, ligeiramentente, quantas prosas se fizeram naquele espaço,
entre risos e casos, contratos e segredos.
Lourdes nascera na rua Visconde do Rio Branco, não naquela
casa, ao dia 26 de junho, no ano de 1917, quando Juazeiro assistia à
instalação da primeira Usina Elétrica. Na salinha de visita, localizada
à direita da entrada de sua casa, agora, ela lembra e nos conta de sua
vida, sempre muito ligada à paixão pela educação - primeiro como
aluna e depois como professora.
- Tive uma infância como a de toda criança aqui na cidade, com
aqueles brinquedos daquele tempo que hoje a televisão termina revi-
vendo - pula corda, chicotinho queimado, boneca de pano, esconde-
esconde. Mas, eu sempre tive mania de brincar de professora!
Contou-nos com orgulho da sua época de estudante e dos certi-
ficados de distinção que recebera.
- Fiz o primário aqui em Juazeiro com a professora Onorina
Pursine de Almeida. Aí eu aprendi o b-a-bá. Era assim: primeiro li-
vro, segundo livro, terceiro livro, quarto livro. Quando chegava no
quarto livro era PROFUNDO! Era uma mistura de tudo. Depois -
tinham poucas escolas públicas em Juazeiro - e eu consegui uma
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vaga na escola da professora Angélica Maltez, que vinha diretamente


de Salvador para ensinar aqui. Quando ela passou um tempo de
licença em Salvador, veio a professora Maria José Sant Ana para
substituí-la. Uma PRETA de alma BRANCA, de caráter excelente!
Foi pouco tempo mais valeu viu. Muito competente! Volta a profes-
sora Angélica e eu terminei o curso primário. Como gostava muito
de estudar, os certificados eram sempre de Distinção com Louvor ,
Distinção com Louvor ! - conta Lourdes, orgulhosa de si mesma.
Para ingressar no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, Duarte
- como era chamada pelas colegas por haver mais de uma Lourdes
na classe - teve de repetir a quarta série primária.
- Eu me lembro que quando eu fui me matricular a freira me
perguntou: - Você sabe francês? . E eu disse: - Não! . E ela
lamentou: - Se você soubesse francês, eu já passava de ano. Então,
você vai repetir a quarta série, vai fazer a preparação .
Lourdes já havia passado dois anos sem estudar, por questões
financeiras. Com a ajuda de um tio que, tendo melhores condições,
financiara seus estudos, ela pôde concluir o Curso Normal Rural no
Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, formando-se professora
primária em 1936.
- Na Escola Normal graças a Deus eu fui muito bem gratificada.
De trinta e um a trinta e seis eu fiquei no Auxiliadora. Lá a gente
recebia aquela formação completa. Formação religiosa, formação
moral... Muito exigente naquele tempo. Mas tudo o que a gente passou
por lá valeu a pena. Eu guardo minhas notas aí...
- Guarda ainda?
- Botei no álbum de formatura e ficou, né!
Nesse tempo, quando Lourdes estudara no Colégio das Freiras,
as notas eram publicadas no Jornal O Pharol, de Petrolina. O conceito
máximo da época para a avaliação do conhecimento adquirido pelos
alunos era 100 (CEM).
- O Pharol publicava as notas aí as colegas falavam - Puxa,
Duarte! . E eu ficava toda entusiasmada! Mas, eu estudava mesmo!
Eu gostava e estudava!
- E como conheceu Maria Franca Pires? Como vocês se
encontraram?
- Bom, o número de professoras era bem menor. Então, todo
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mundo tinha sua escola isolada - porque só existia grupo aquele das
Escolas Reunidas. Era escolinha aqui, escola acolá. E essa dificuldade,
muitas vezes, força a gente a descobrir as coisas né. Então, a gente se
juntava, conversava, tentava se ajudar... Também já vinha de uma
relação de família. Ninguém era de fora. Todas as professoras eram
da cidade. A grande maioria estudou em Petrolina. Aí já vinha aquele
laço de lá do Colégio. Já tinha aquela história. Conversa isso, conversa
aquilo... Maria Pires sempre teve belas idéias, muito criativa! - come-
çou assim a descrever-nos Maria...
...
Ainda quando digeríamos as informações do encontro com
Lourdes, eis que Antonila da França Cardoso aparece em Juazeiro.
Seu nome estava listado como uma possível pessoa a ser entrevistada,
já que realizara pesquisas com Maria Pires, em um certo período de
sua vida.
No entanto, não aparecia em nossa lista nos primeiros lugares,
por ser uma das pessoas que, não residindo em Juazeiro, aguar-
dávamos o soprar dos ventos do destino para que esses encontros
se realizassem. E, como se fez costume no caminho desse trabalho,
os ventos do destino a trouxeram para cá, por ocasião de seu
aniversário.
...
Cabelos arrumados, maquiagem leve, trajando um vestido azul
vivo em perfeita harmonia com a decoração de seu partamento
aconchegante, no décimo andar do edifício Champs Elysées, orla
fluvial da cidade - sofá e quadros azuis - Antonila delineia a Maria
que outrora conhecera, entre risos e reticências de sua memória
empolgante e cheia de detalhes vivos. À vista da varanda, o Nego
d Água escuta a prosa e o rio não deixa de correr.
Começou nos falando de sua infância...
- Eu vou começar da minha infância porque tem um aspecto
que foi marcante, que depois vai se encontrar com Maria Pires lá na
frente...
E contou-nos de uma época em que, em Juazeiro, havia um
divisor de águas entre católicos e não católicos - os protestantes.
Este pequeno grupo era então liderado pelo pai de Antonila, Antônio

22
e n tre p a p é is e vo ze s

Cursino da França Cardoso. Na sala de aula aconteciam coisas


absurdas das quais ela se lembra com pesar.
- Na escola primária, os professores nos colocavam em
evidência de uma maneira negativa: colocavam os filhos dos protes-
tantes na frente, para que os filhos dos católicos uivassem e berrassem.
Nós éramos os bodes, os desprezíveis que iam para o inferno.
Conosco - referindo-se a ela e aos irmãos - isso não acontecia, porque
meu pai era um intelectual, uma autoridade na cidade e estava muito
atento a isso! Mas acontecia com as outras pessoas da igreja.
Antonila passou, então, a ter receio dos professores de um modo
geral.
- Quando falava - Vai mudar de escola, vai pra a escola tal , eu
pensava assim - Será que aquela professora vai me colocar na frente
pra me jogarem bola de papel, pra me vaiarem!? .
Assim, as longas férias escolares - que iam de junho a julho e de
dezembro a março - se tornaram um refúgio para a menina Nila,
como é chamada na intimidade.
- Pra mim, era o CÉU! Porque na fazenda só tínhamos nós, os
filhos dos caseiros, os filhos dos vaqueiros...tudo criança! Não tinha
divisor de águas nenhum.
- E como Maria Franca Pires entra nessa história?
- Depois, quando eu já estava no Ginásio, Maria Pires mudou-
se para frente da minha casa. Então, fomos vizinhas de porta. Mas
Maria era uma pessoa de aparência DURA, empertigada, fisicamente
elegante. E aquela maneira de andar SOBERANA que ela tinha -
Antonila sorri, divertindo-se ao lembrar - afugentava as pessoas. E
as pessoas diziam assim: - Essa filha de Clodoaldo é TÃO metida! .
E ela não cumprimentava ninguém naquele pedaço da vizinhança.
Ela chegava, entrava, saía... Ela era ela! E todo o tempo eu só ouvia
comentários depreciativos: - É metida, e não fala com ninguém, e
é rica, e num sei o quê... .
Só a partir de 1956, quando Antonila forma-se professora em
Juazeiro, é que Maria passa a ser uma companhia constante em muitos
momentos.
- Nesse período, Maria passou a vir sentar no meu batente
comigo. Aquele calor aqui em Juazeiro...! Não tinha ar condicionado,
23
M AR IA FR AN CA P IR ES

nem ventilador, nem nada - também não tinha televisão - e a gente


ficava à noite, assim, sentadas na beira da calçada, chupando melancia,
até uma hora, uma hora e meia, quando corria o vento da madrugada
e a gente entrava pra dormir. Então, de repente, eu vi que não era
bem como as pessoas falavam. Ela era engraçadíssima! Ela tinha
muito humor. Era uma personalidade... sui generis! Quando ela faleceu,
eu li tudo que foi escrito a respeito e disse assim: - Mas ninguém
descreveu a Maria que eu conheci! .
A Maria que Antonila conheceu era assim...
...
Certo dia, Antonila e Maria entraram no Baneb - o extinto Ban-
co do Estado da Bahia, que funcionava onde hoje é o Banco Bradesco,
na avenida Carmela Dutra, orla da cidade. Foram descontar um
cheque e, como na época não existia caixa eletrônico, então, a pessoa
levava o cheque até o guichê e recebia o dinheiro.
Chegando ao guichê, o atendente pegou o cheque, olhou e disse:
- É Maria FranÇa Pires... É FranÇa ou é FranCa?
E ela disse:
- FranÇa é Antonila! Eu sou FRANCA! Franca de desaforada
mesmo!
O rapaz olhou para Maria com os olhos arregalados e Antonila
caiu na gargalhada, divertindo-se com a personalidade curta e gros-
sa da amiga.
...
- Ela era assim, uma pessoa franca! E se assumia assim! Maria
não usava eufemismos, essas figuras de linguagem pra adoçar, pra
suavizar não. Ela dizia, como se diz hoje, na lata o que tinha que
ser dito. E essa foi uma das razões pelas quais eu a admirei logo, por-
que eu vi que estava tratando com uma pessoa extremamente séria,
responsável, muito sincera, que não tinha adulações, nem bajulações.
Não tinha disfarces!
A Maria franca conquistou a amizade de Antonila, prin-
cipalmente, por ser diferente da maioria das pessoas que, na Juazeiro
daquela época, tinham mania de rotular tudo e todos: você é cató-
lico , você é protestante , você é UDN (União Democrática
Nacional), você é PSD (Partido Social Democrático).
24
e n tre p a p é is e vo ze s

- E conversando com Maria eu percebi que ela enxergava


Juazeiro como eu enxergava - sem partidarismo político! Ela queria
era o progresso de Juazeiro e as pessoas tinham mania de rotular a
gente. E como eu já vinha com a história do católico e do protestante,
desde cedo, eu tomei horror a rótulo! Eu não permito que ninguém
me ponha rótulo! E Maria tinha essa coisa também. Ela pensava no
que poderia vir de bom pra Juazeiro e acreditava em cada prefeito
que se elegia, depois se decepcionava.
Maria Franca Pires tinha uma mania - lembra bem Antonila:
escrevia MUITO e TUDO! Quando a amiga Nila estava lhe falando
qualquer coisa ela dizia: - Espera aí! . Aí levantava, pegava o caderno
e a caneta... Ela punha datas em tudo, escrevia tudo e reclamava
muito de Antonila porque não anotava essas coisas.
- Eu anotava o meu sentir e o meu pensar, mas coisas da
comunidade eu não anotava. Aí, quando eu contava alguma história
dos vaqueiros da fazenda, por exemplo, ela dizia: - E anotou isso? .
Eu dizia: - Não! . E ela insistia: - Mas tinha que ter escrito. Pois,
então me conte . E aí Maria já ia pegar o caderno e anotava as coisas
que eu contava!
Antonila revela que, à época, pensava: - Mas por que ela quer
esse negócio, essas histórias que não são nem verdadeiras nem nada? .
Só posteriormente é que ela viria a entender o que são manifestações
folclóricas, religiosas, populares...
- Maria sempre anotou tudo e eu não entendia, não via razão de
ser - lembra Antonila.
...
Seguimos ao encontro de mais três personagens dessa história:
Maria Perpétua de Almeida Santos, prima de Maria Franca Pires;
Expedito Gomes de Almeida, irmão de Perpétua e também primo
de Maria; e Thomázia Bonfim dos Santos Almeida, esposa de
Expedito e uma das melhores amigas de Maria.
Saímos, pois, de um meio social e público das amigas e colegas
de profissão, para encontrar um ambiente-família, íntimo e, talvez
por isso, mais resguardado, cheio de silêncios e segredos.
- Maria Pires nasceu no ano de 1921 no dia cinco de novembro
e nossos pais casaram-se no dia doze de novembro do mesmo ano.
25
M AR IA FR AN CA P IR ES

É tanto que meu tio Coló não veio ao casamento, porque estava com
poucos dias que ela tinha nascido - lembra Expedito.
Além do parentesco que os aproximava de Maria - primos por
parte do pai dela, Clodoaldo Pires da Costa, que era irmão da mãe de
Perpétua e Expedito, Adalgisa Beatriz de Almeida - eles moraram
muito tempo vizinhos à prima.
- Nós moramos no bairro Santo Antônio e em 1936 nós viemos
ali pra rua Conselheiro Luis Viana, na casa número 33. Depois, nós
passamos pra casa em frente, número 120. Posteriormente, nós
viemos pra casa 101, vizinha à casa de Maria Pires. Mas era uma
pessoa assim, não é porque seja parente não, mas era muito
competente né! - contou-nos Expedito com sua voz mansa e
memória privilegiada.
- E ela, morando ali vizinho à gente, os meninos que num
faziam as tarefas ela deixava lá em casa. Dizia: - Tia Gisa, eu vou
deixar fulano aqui com a senhora . Doutor Pedro Filho, com quem
eu fiz um tratamento agora, foi aluno dela. Aí Pedrinho, ficou muito
lá em casa! E ela deixava lá porque não fazia as tarefas, né Ela trabalhou
MUITO dando banca. Muito mesmo! - lembra Perpétua, entre risos
e embalos em sua cadeira de balanço.
A prima Perpétua se formou professora no Colégio Auxiliadora
no dia 04 de dezembro de 1949, dez anos e um dia depois de Maria
ser diplomada ali mesmo, naquela instituição de ensino. Começou
sua vida profissional lecionando dois anos em Paratinga, uma cidade
próxima a Bom Jesus da Lapa, e, logo após, retorna para sua cidade
natal, onde lecionou até se aposentar.
Trabalhou seis anos no Movimento de Educação de Base,
promovido pela Diocese de Juazeiro, na época em que era bispo
Dom Tomaz Guilherme Murphy - que foi nomeado a 16 de outubro
de 1962 o primeiro bispo daquela Diocese. O MEB funcionava em
Juazeiro através das chamadas Escolas Radiofônicas , as aulas sendo
transmitidas no período da noite, a partir das 18 horas pela Rádio
Emissora Rural de Petrolina.
Thomázia, sempre com os olhos brilhantes, conta de sua ami-
zade com Maria.
- Minha mãe era muito amiga da mãe deles, de Expedito,
Perpétua e tudo. E a gente era conhecido como se fossemos parentes
26
e n tre p a p é is e vo ze s

né. E Maria Pires se tornou uma grande amiga minha. Amiga


MESMO! Mesmo, mesmo. Amiga daquelas, de horas boas e das
outras horas também. Tenho uma estima muito grande por ela.
Thomázia lembra que foi Maria Franca Pires quem praticamente
não deixou que morresse o festejo de Santo Antônio - uma tradição
na casa da tia Adalgisa e seu esposo Antônio Gomes de Almeida.
- Quando minha madrinha Adalgisa morreu aí nós ficamos -
Faz ou não faz o Santo Antônio? . Aí Maria disse: - Não, vamos
providenciar pra fazer como sempre foi feito . E aí pronto! Ela me
deu aquele estímulo e continuamos com o festejo que era tradicional.
- E como era Maria? Como você se lembra dela?
- A primeira lembrança que eu tenho de Maria Pires é do
perfume! Nós morávamos ali na rua Conselheiro Luís Viana, ali ao
lado daquela caixa d água. E quando ela vinha de Remanso - nesse
tempo ela lecionava em Remanso - a gente já conhecia o perfume
dela que era uma COISA assim! Eu meninota, não conhecia esses
perfumes. E eu me lembro que um dia, ela tava pra Remanso e eu
estava dentro de casa, aí eu -Thomázia infla o peito de ar como que
inspirando aquele perfume - - Ah, Maria Pires vem passando aqui! .
E eu saí...Quando eu saí, já ia mesmo passando, dobrando a esquina.
Aquele perfume dela era uma coisa MARAVILHOSA!
Nas andanças de Maria Pires por Juazeiro, entrevistando pessoas
e registrando em cadernos tudo o que ouvia, Thomázia foi sua
companhia fiel e testemunha da sua força.
- Talvez ela já devia ta sentindo alguma coisa, porque foi bem
no final de sua vida e ela me pedia: - Vamos Thomázia, você vai
comigo? . Eu dizia: - Vou! . Aí a gente saía... Ela entrevistava,
anotava tudo. Ela tinha aquela paciência de anotar tudo nos cadernos.
Era um serviço lento que dependia de muita paciência. E a gente ia
andando, não tinha carro nem nada. O pé dela inchado já. Foi quando
deixou de usar sapato alto. Mas ela rodava Juazeiro todinho. E eu
acompanhei! Ela adorava fazer esse trabalho! Ela fazia isso assim
com uma ânsia... e escrevia, escrevia, escrevia!

27
M AR IA FR AN CA P IR ES

As fo to grafias falam !
Do Carnaval de
Juazeiro em 1914;

da avenida
larga e calma
da orla
fluvial da
cidade;

do Portão da
Ponte, erguendo-se
receptivo;

dos paquetes
quebailavam
soberanos entre
Jo as e iro e
Petrolina. 4

28
e n tre p a p é is e vo ze s

O legado de
Dinorah Mello!
À frente,
5 regendo coral de
professoras;

n o carn aval,
uma das
primeiras
mulheres a
co lo car as
pe rn as d e fo ra
em Juazeiro (a
primeira
agachada da esq.
p/ dir.);

e em um dos
cursos
promovidos
pela
Associação
de Pais e
Mestres .

29
M AR IA FR AN CA P IR ES

INDÍCIOS DE UMA PESQUISADORA


Um a viagem nos registros da história
que andava na cabeça do povo

Mês de Junho de 1988. A cidade se movimenta com as


Trezenas de Santo Antônio, São João e São Pedro. Adivinhações,
quadrilhas, fogueiras, canjicas, bolo de milho, licor de jenipapo,
leitão assado, compadrios e parentescos firmados à beira calorosa
das fogueiras.
Era um dia especial para a cidade de Juazeiro. Na então
Secretaria de Atividades Sociais, as autoridades se reuniam para
homenagear a grande pesquisadora juazeirense Maria Franca
Pires, na ocasião do lançamento do seu livro Juazeiro Bahia.
Mas, por que Maria, sendo natural da cidade de Remanso,
fora referida pelo Jornal de Juazeiro como grande pesquisadora
JUAZEIRENSE , na matéria Mª Franca Pires - Patrimônio
cultural de Juazeiro ? Porque ela recebeu o Título de Cidadã
Juazeirense já no fim de sua vida! Num episódio polêmico e
controverso.
Maria, sentada numa cadeira à frente, ouvia o falatório de
praxe desse tipo de cerimônia: ela, que é um baú eterno das coi-
sas brilhantes de Juazeiro , ela, que ensina a cada dia aos juazei-
renses amarem sua própria terra , ela, que formou grandes
homens, que hoje são destaques inclusive a nível nacional .
A professora Graciosa Xavier Ramos Gomes, na época coor-
denadora de educação do município, fazendo uso da palavra,
externou:
30
e n tre p a p é is e vo ze s

- Toda Juazeiro está em festa por receber tão brilhante presen-


te para a educação! E tudo começou na década de 50 com os
famosos caderninhos de Maria Franca Pires, quando, à época, as
professoras desconheciam até a palavra greve e tudo era feito
com muita dedicação e amor. E isto Maria soube ter muito bem!
Jorge Khoury, então prefeito de Juazeiro e ex-aluno de Maria,
ressaltou:
- A Cartilha da professora Maria Franca Pires - referindo-
se ao Livro Juazeiro Bahia - servirá tanto para as crianças como
também para os adultos que desconhecem a verdadeira história
da cidade!
E Maria, sendo a última a falar, dentre outras queixas, reivin-
dicou!
- Vamos ter vergonha na cara e valorizar o que é nosso!
...
Da mania de escrever tudo, datar tudo, pegar o caderno e a
caneta para registrar coisas que para muitas pessoas não faziam
sentido de serem anotadas - como, certa vez, disse a amiga Antonila
da França Cardoso - é que foram se amontoando os famosos
caderninhos de Maria Pires .
Talvez ela sequer imaginasse, quando se debruçava em seus
escritos, que, a partir deles, seria possível nesse futuro-presente
recontar parte da sua história de vida, para além, muito além da
história da cidade de Juazeiro, que pude conhecer porque Maria
se pôs a anotar, registrar, guardar, organizar e, porque não dizer,
pôs-se a inventar.
Os 27 cadernos disponíveis no seu arquivo formam um mapa
de sua vida no período de 1957 a 1987: planos de aula, registros
de pesquisas, listas de compras, pautas de reuniões, rascunhos de
cartas e ofícios, planejamentos de eventos diversos, anotações de
cursos e estudos, contas matemáticas, frases, comentários,
lembretes, poesias, letras de músicas, e histórias, muitas histórias
que andavam na cabeça do povo .
Das histórias registradas nos cadernos de Maria Franca Pires,
surgiram três livros: Lendas do V elho Chico (1987), Juazeiro Bahia
(1988) e V ocê acredita em assombração? (1992).
31
M AR IA FR AN CA P IR ES

Num exemplar do livro Juazeiro Bahia dedicado às filhas de


sua amiga e prima distante Odomaria Macedo, Maria externa sua
intenção e seu desejo de cuidar para que a história não se perdesse.
Na contracapa ela, atenciosamente, manuscreveu:

Iaby e Kyse,
A mem e divulguem a história da Bahia.
Um beijo da prima
Maria Pires.

E porque amou e trabalhou sempre pela divulgação da


história local - uma história que ela dizia andar na cabeça do
povo - é que Maria entrou para a história de Juazeiro.
...
Em 1984, já como professora aposentada e funcionária do
Centro Social Urbano, Maria Franca Pires foi requisitada pela
Prefeitura de Juazeiro para fazer uma pesquisa com o propósito
de instalar na cidade a Fundação Instituto Geográfico e Histórico.
- Mas eu comecei a minha pesquisa não em documentos
escritos. Porque isso muita gente já fez e chegou até a publicar
livros. O que eu acho importante é registrar a história que vive na
cabeça do povo!
Para Maria, a história que andava na cabeça do povo não
estava registrada em livros, mas aconteceu.
- Toda história que aconteceu é importantíssima! Não existe
uma história mais importante que outra. Nós já tivemos em
Juazeiro festas impressionantes na época da disputa entre Apolo
e 28 de setembro . Naquele tempo onde os recursos eram
mínimos, quando não existiam os artifícios de hoje, as pessoas
conseguiam fazer coisas impressionantes: não existia cola tenaz,
a goma era feita com tapioca; não existia cartolina, era apenas o
papelão; não existia tule, quando se queria fazer nuvens, fazia-se
mesmo era com algodão. Então eu fico muito gratificada quando
converso com as pessoas e elas colocam para mim essa história!
Na última entrevista que Maria Franca Pires cedeu para a
imprensa local, ela revelou ao jornalista Marcelino Lourenço
32
e n tre p a p é is e vo ze s

Ribeiro Neto, responsável pela seção de entrevistas do Jornal O


Berro d Água:
- Eu já tive oportunidade de conversar com cento e tantas
pessoas e procurei registrar tudo o que essas pessoas tinham a
me contar, todos os tipos de história, porque eles são importantes.
E essa pesquisa está em cadernos, arquivada em minha casa!
- E qual é o seu interesse? - instiga o jornalista curioso.
- É um trabalho que gosto de fazer e me realizo fazendo-o.
Acho que Juazeiro, como todo lugar do mundo, tem perdido
grande parte de sua história por não arquivar todos os
acontecimentos! Nesses anos todos que tenho vivido aqui em
Juazeiro, o que é que tenho assistido? Destruição!
- E o que você vai fazer com tudo isso que pesquisou e
guardou?
- E eu sei? Eu só sei que no dia em que eu morrer, podem
até tirar uma grade dessas da janela, para ser mais fácil jogar tudo
aí janela à fora e queimar. Porque o que tudo isso terá de sentido
depois que eu morrer? Para Juazeiro seria de muita importância.
Mas, eu pergunto: a quem entregar?
...
Parte do que Maria guardou durante toda uma vida de amor
a Juazeiro é agora objeto de estudo através de um projeto de
pesquisa desenvolvido no campus III da Universidade do Estado
da Bahia, em Juazeiro, com o objetivo maior de tornar o material
do arquivo da professora Maria Franca Pires acessível à
comunidade, a partir da sistematização do acervo.
- Maria dizia assim: - Eu estou juntando e é para entregar
a Odomaria, que se formou em História! . Porque ela achava
que não tinha formatura na área, então, não podia escrever aquela
história de Juazeiro - lembra Antonila da França Cardoso.
E assim foi feito!
No início do ano de 2004, O domaria Macedo, então
professora do Departamento de Ciências Humanas da UNEB,
recebeu das mãos de uma das filhas do coração de Maria - Maria
Tereza - em caixas, sacos e pastas, os papéis de uma vida.
Só por isso, eu conheci Maria. Só por isso, conheci tão bem
Juazeiro. Por isso, hoje, conto uma história que me encantou.
33
M AR IA FR AN CA P IR ES

...
Mês adorado
O mês de janeiro
Que em Juazeiro
Faz tudo andar
Inebriados nesta alegria
Que noite e dia nos faz vibrar
(Terno Ueianas Letra e Música de Edilberto Trigueiros)

Mês de Janeiro era tempo de Ternos em Juazeiro.


Ternos?
Sim.
Versos cantados na porta das casas. Pessoas vestidas a caráter,
de acordo com o Terno; estandartes a postos. Era anunciada a
chegada:

Ô de casa, nobre gente


Escutai o que diremos (bis)
A partir do Oriente
A chegada dos três Reis (bis)

O Terno Estrela do Oriente, com 60 moças e 65 rapazes


formando quatro filas, saiu pela primeira vez no dia 08 de fevereiro
de 1930 da casa das organizadoras Alice e Arlinda Figueiredo na
rua Conselheiro Luis Viana, seguindo para a casa do Sr. Zequinha
Barbosa para comemoração de seu aniversário, na rua J.J. Seabra.
As moças trajando um vestido branco, modelo à vontade;
sobre este, um bolero azul celeste de cetim brilhante, terminando
na cintura com pontas redondas, aberto na frente sem abotoar;
no bolero, do lado esquerdo, uma estrela com cauda, feita em
cartolina e coberta com areia prateada. Sapato preto, meia branca
curta. Na cabeça, um diadema com uma estrela igual à do bolero.
Os rapazes vestindo uma roupa branca: camisa branca de
mangas compridas; gravata preta, fina ou de laço borboleta; na
lapela do casaco, uma estrela igual à do bolero das moças.

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e n tre p a p é is e vo ze s

À frente, uma moça carregando o estandarte. Trajando um


vestido azul celeste, longo e com uma manga modelo boca de
sino que ia até o cotovelo, tinha o decote alto. Na cintura, uma
fita larga, azul com laço; na cabeça, um diadema com estrela.
O estandarte, feito em cetim Macau, branco, tendo no alto
uma franja prateada e também, franja contornando a ponta do
estandarte; esta franja, pregada com cordão azul celeste, termina
nas pontas com um laço. O mastro do estandarte, pintado de
prateado e a parte superior em forma de uma seta. No centro do
estandarte, uma estrela grande, prateada. Escondida dentro dela
uma lâmpada de pilha.
Na frente do estandarte, os três Reis Magos, a pé.
Chegando à porta de Zequinha, todos cantam e dançam os
versos feitos pelo compositor chamado Paraíso e a festança rola
solta.

Ó estrela que ilumina


Que a todos nós fascina
Que a todos vêm salvar
Queremos vê-la sempre bela e cintilante
De Jesus a todo instante
Sua fronte iluminar.
...
Quem vê assim, tanto detalhe, pensa até que estive lá. Mas
sabe aquelas viagens na história e no tempo das quais já comentei
lá atrás? Pois é. Nesta, de encontro aos Ternos, fui de carona em
um caderno de capa quadriculada - em preto, amarelo e de fundo
branco - que me levou para ver, ouvir, sentir e experimentar os
costumes de outrora.
Passeando pelas páginas limpas e organizadas desse caderno
de Maria, conheci mais de quarenta Ternos que se apresentaram
em Juazeiro, lá pro início do século XX. Os versos de suas canções,
cada detalhe das roupas dos participantes, os estandartes mais
variados e criativos, a casa de onde saíram e em qual casa se
apresentaram, quem organizou e quem participou.

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M AR IA FR AN CA P IR ES

Estrela do Oriente, Cruz Vermelha, Ciganas, Sempre Viva,


Falenas, Vivandeiras, Foliões, Estrelas em Grupo, Fuzileiros do
Amor, Velhas Alegres, Caboclas, Barata, Aurora, Rosa da Noite,
Peixinhos, Índios, Borboletas, Tirolezas, Garçonetes, Terno do
Amor, Mamãe Sacode, Camponesas, Laranjeira, Gaúchos,
Margaridas, Gondoleiros, Ueianas, Futuristas, Pescadores, Grupo
Primaveril, Espe-rança, Corações Unidos, Maria Antonieta, Filhos
do Amor, Boêmias, Rosas, Marinheiros, Flores, Andorinhas, Seta
do Amor, Manacás, Salôias, Orquídeas, Japonesas, São Salvador,
Calouros.
Ah, e mais: casos engraçados acontecidos em alguns desses
momentos.
Como certo dia, na apresentação de um Terno, uma das
participantes - jovem alegre, bonita e que se divertia em brincar
com os corações dos jovens - teve a idéia de passar uma taboca
em um jovem que também participava daquele Terno.
Mas, espera aí! ...passar uma taboca ... O que seria, na
época, taboca ? Corro ao dicionário e lá está: 1. espécie de
bambu; 2. casa de pequeno negócio; 3. doce seco de aspecto
semelhante a papel pardo. Imagino, logo, diante das três opções:
a jovem alegre passando um bambu no jovem; passando um
pequeno negócio no jovem; passando um doce seco no
jovem. Esta última seria a menos improvável das opções, diante
do sentido denotativo do termo taboca .
Não convencida, consulto a sabedoria popular e esta me
explica: passar uma taboca significava, à época, o mesmo que
hoje quer dizer dar um fora !
Naquela época de vergonha à flor da pele, foi um Deus nos
acuda! O coitado corou e apelou para as lágrimas. Mais tarde, ou-
tro participante do Terno veio tirar a jovem para dançar e ela
repetiu a mesma façanha. Porém, não foi feliz desta vez. O joven-
zinho passou-lhe a mão na cara com vontade. A dona da casa, as
organizadoras e outras pessoas procuraram equilibrar o bom nível
de paz do ambiente.
...

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Noutro caderno conheço Alice Costa Figueiredo - uma das


principais organizadoras dos Ternos na cidade - numa conversa
registrada pelos traços firmes e minuciosos de Maria.
O caderno, como todos os outros, é pequeno, porém volu-
moso. A capa é colorida e contém a imagem de filhotes de
cachorro dentro de um par de sapatos com flores ao lado. Na pri-
meira página manuscrito em letras grandes, no centro, o título
IN STITUTO G E O G RÁFICO E H ISTÓ RICO D E
JUAZEIRO - BAHIA e as indicações De: 27 de fevereiro de
1985, A: _________ (espaço em branco) - Maria Franca Pires -
Cons. Luis Viana, 101 - Tel. 811 1984.
Os detalhes sobre a produção dos Ternos chegam a exaustão,
desde descrição minuciosa do processo de confecção dos arcos e
enfeites ao modo de organização da festa.
Para os arcos usavam vara de tamarindeiro. Raspavam e
amarravam as pontas formando um U; deitavam no chão e colo-
cavam pesos; depois de três dias, a vara estava seca com forma
definida em ponto de receber os enfeites.
Para os enfeites usavam papel de seda em várias cores, pape-
lão, pó prateado, goma feita com tapioca, limão e sal para
conservar por uns três dias.
Todos os participantes dos Ternos, adultos ou crianças,
pagavam uma taxa. Os rapazes pagavam cinco contos de réis, as
moças três contos de réis, os meninos pagavam dois contos de
réis e as meninas um conto de réis. Quando três crianças de uma
mesma casa participavam do Terno, somente dois pagavam. Os
organizadores iam às casas buscar e deixar as crianças para os
ensaios.
O Jazz ou Orquestra que acompanhava o Terno, compunha-
se dos seguintes instrumentos: trombone, clarinete, saxofone,
piston e bateria. Os músicos eram pagos e só participavam do
último ensaio e no dia da apresentação. Quando o terno era de
crianças, durava das 20 às 24 horas. O Jazz cobrava mais barato -
40 ou 30 mil réis. Sendo de adultos, durava das 20 horas às 2 da
madrugada. O Jazz cobrava de 50 a 80 mil réis. Zeca Viana,
Laranjeira, Seo Né, Ariston, Militão, Zé Custódio, João Bodocó,
37
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Vadu Custódio, Alfredo, Pinheirinho, Quiabo, são alguns nomes


de pessoas que tocavam no Jazz.
O Terno era apresentado em casas de família. Chegando à
casa, na porta da frente, entoava-se:

O senhor dono da casa


Suas chaves são de ouro
V enha nos abrir a porta
Queremos ver seu tesouro
V enha nos abrir a porta
Queremos ver seu tesouro

Os organizadores propunham uma família para receber o


Terno ou a própria família convidava. Quando o dono da casa
convidava o Terno, ele tinha que dar a comida e a bebida pra toda
a gente.

O dono da casa
É bom, ele dá
Garrafa de vinho
Doce de araçá

Entoemos a voz
A música e o som
Que o dono da casa
É franco ele é bom

Quando o organizador pedia para a família receber o Terno,


ele arcava com a despesa de toda a comida, paga com dinheiro
arrecadado.
Para o Jazz a comida só era servida depois da dança e constava
de cachaça e conhaque, assado de porco, galinha assada, arroz e
farofa. Num cantinho da página, como de costume, Maria registra
uma peculiaridade sobre um dos músicos: O Sr. Zeca Viana
dava uma despesa à parte porque só bebia leite .
Para os participantes do Terno com seus familiares e amigos,
38
e n tre p a p é is e vo ze s

eram servidos licor de jenipapo, café preto com bolo, sequilhos e


petas.
Para o Terno sair nas ruas, precisava de uma licença da Polícia
que não era paga, mas dava total assistência na rua e na festa. Se
depois de todas as despesas pagas sobrasse algum dinheiro, este
era entregue ao pessoal da Polícia.
Tinha Terno só de homem, Terno só de mulher, Terno de
crianças e Terno misturado - homem e mulher juntos.
...
E esta é apenas uma das muitas viagens que se pode fazer
pela história de Juazeiro, embarcando nas páginas e mais páginas
dos cadernos manuscritos por Maria Franca Pires.
Para se ter uma idéia, mapeando um único caderno que se
folheia, os números falam por si: nas suas 190 folhas, escritas
frente e verso e cantos mais estreitos, estão registradas 79
entrevistas com 83 entrevistados, num apertado período de 3
meses. Ela chegou a realizar até três entrevistas em um mesmo
dia!
A variedade de coisas pesquisadas vista de longe se delineia
como um mosaico, uma colcha de retalhos, formando, assim, um
grande mapa da história cultural da cidade de Juazeiro e, talvez,
da região.
Alfaiates - Parteiras - Futebol - Carnaval - Natal - Imprensa
- Ternos - Reis de Boi - Congos - São João - Catatau - Judas -
Festas - Serenatas - Assombração - Vapores - Lavadeiras - Alto-
Falante - Rádio Juazeiro - Lampião - 1º Avião - Enchentes -
Entrudo - Reforma da Igreja - Samba de Véio - Loucos - Semana
Santa - Jornais - Cantiga de Roda Bailes - Mãe d Água - Nêgo
d Água - Duendes - Jazz - Professoras Leigas - Filarmônicas -
Teatro - Cinema - Batucadas - Passeio a Bordo - Brinquedos
Infantis - Vapozeiros - Passeio na Rua d Apolo - Novenas -
Rivalidade 28 X Apolo - Batismo - Pesca - Encantados do Rio -
Times de Futebol - Blocos de Carnaval - Corridas de Cavalo - 1ª
Fábrica de Gelo, Picolé e Sorvete - Fábrica de Fubá de Milho -
Funerária - Política - Marujada - Quermesses - Maestros -
Naufrágios - Vivandeiras - Cruz Vermelha - Circo - 1ª Motorista
- Vida a Bordo - Remédios Naturais.
UFA!
39
M AR IA FR AN CA P IR ES

É o registro da história que andava na cabeça do povo ,


como Maria Franca Pires mesma costumava se referir à sua
pesquisa. Não estava escrita em livros de história - tão raros
eram, na época, os que falassem de Juazeiro. Os poucos livros
didáticos existentes vinham de Salvador e se limitavam a contar
uma história da capital baiana.
- Mas como a gente tá em Juazeiro e vai estudar Salvador se
nem sabe Juazeiro?! - discutia Maria Pires com a amiga Lourdes
Duarte, ambas incomodadas com a situação.
- E aí ela criou aquele livrinho sobre Juazeiro, próprio daqui,
mimeografado! - lembra Lourdes.
Nesse trabalho de conhecer e preservar Juazeiro, Maria
envolveu, também, os seus alunos. Para incentivar-lhes a valorizar
uma história que, por vezes, não vivenciaram, foram inúmeros
os Questionários, Gincanas e Tômbolas, organizados pela
professora Maria Franca Pires.

40
e n tre p a p é is e vo ze s

Maria Franca Pires.


Com os cadernos ou
gravador em mãos
(8), sempre pronta
para registrar a
h is tó ria q u e a n d a va
n a c a b e ç a d o p o vo ,
fo i m u ito re q u is ita d a
pela imprensa local
c o m o fo n te d e
informação ( 9 e 10 ) .
10

41
M AR IA FR AN CA P IR ES

PISTAS DE UMA PROFESSORA


Entre m em órias de um a história escolar

- Minha alfabetizadora não me era muito agradável. A inda hoje,


lembro-me da variedade de palmatórias, que enfeitavam sua mesa - recorda
Maria Franca Pires em relato autobiográfico escrito no ano de
1981 - Eu também, não era uma aluna muito desejada!
Os dias de castigo passados na alfabetização, de certo, mar-
caram a vida de Maria. Difícil é entender como poderia ela ser
uma aluna não muito desejada !? Mas é fato que a imagem da
coleção de palmatórias ameaçadoras enfileiradas em cima da mesa
da mestra, perdurou em sua memória por toda a vida. Ali, nos
bancos duros do B-A-BÁ, Maria conheceu o lado doloroso do
que seria mais tarde uma de suas virtuosas qualidades como edu-
cadora: a disciplina.
Nos idos do ano de 1930, quando aprendeu as primeiras le-
tras, a prática disciplinadora do uso da palmatória era comum e
perfeitamente aceitável por pais que viam na figura do professor
o segundo pai , por isso, educar muitas vezes remetia-se a cas-
tigos e punições desse tipo.
Mas a série seguinte traria à aluna, por ora assustada, o alívio
merecido.
Com orgulho, Maria asseava-se cedo da manhã, já muito
clara em Juazeiro, e partia rumo à Rua Barão do Cotegipe. Ali
42
e n tre p a p é is e vo ze s

eram localizadas as Escolas Reunidas, onde, aos dez anos de idade,


Maria cursou o 1º ano primário.
- Benção madrinha - estendia a mão à professora Maria José
Sant Ana.
- Deus a abençoe minha filha - a professora, e também sua
madrinha de São João, correspondia carinhosamente, tomando-
lhe a mão e beijando-a.
Foi num desses dias santos de 24 de junho que a menina
Maria escolheu Maria José para ser sua madrinha de São João.
Como rezava a tradição, ela se abaixou e pegou um pau da foguei-
ra, colocou-o em meio às duas, deram-se as mãos e, então, disse:
- São João dormiu, São João acordou. Boa noite minha ma-
drinha que São João mandou.
A escolhida de Maria era uma preta boníssima e amiga ,
que soube compensar os dias de castigo vividos na sua alfa-
betização.
Cursa o 2º ano primário sob a instrução de Alzira Fernandes
da Costa, numa escola estadual que funcionava na residência da
própria professora, localizada à Praça da Bandeira.
Daí, Maria ingressa no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora,
onde vai concluir seus estudos em 1939, na vizinha cidade
pernambucana de Petrolina, bem ali depois do rio.
- Meu pai entregou-me aos cuidados das irmãs Salesianas,
não só para ter melhor aproveitamento nos estudos, como, princi-
palmente, para receber uma boa orientação para a vida.
Clodoaldo, pai de Maria, sempre ocupado em constantes
viagens de vapor, rio abaixo e rio acima como comandante da
Viação Baiana do São Francisco, decide pelo internato da filha,
confortado pelo costume da época que dizia ser aquele recanto,
ao cuidado das freiras, o melhor lugar para a formação da menina,
órfã dos cuidados maternos desde os poucos nove anos de vida.
...
Era o início do ano letivo de 1932. Maria trazia na maleta -
agarrada cuidadosa entre os dois pequeninos braços - umas poucas
mudas de roupas. O barco pequeno - um paquete - sacolejante
43
M AR IA FR AN CA P IR ES

com o rebuliço da correnteza do Velho Chico, levava-a, agora,


em remadas calmas, ao outro lado, à margem direita, à cidade tão
perto e tão distante que era Petrolina.
O pai ao lado, compartilhava de seu silêncio, olhava as águas
que iam se perdendo no horizonte, ao longe. A menina de poucos
onze anos ia, assim, fazendo-se forte.
Descer a bagagem no porto fluvial da cidade de pedra -
como é conhecida Petrolina - pareceu fácil, mas a chegada em
frente ao casarão de muros altos, ao lado da Igreja Matriz, foi
dura. Os olhinhos arregalados da pequena Maria passearam por
aquele lugar tão grande para a sua pequenez de criança e voltaram-
se ao pai, inundados.
- É para o seu bem minha querida! - argumentou seu Coló,
com voz trêmula, tomando a menina aos braços.
Maria apenas baixou a cabeça num ar de consentimento,
porém misturado a uma irresistível birra infantil. Só anos mais
tarde ela entenderia aquele ato paternal de proteção e amor.
A entrada do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora estava cheia
de famílias, de várias regiões vizinhas à cidade de Petrolina, que
vinham deixar seus filhos aos cuidados das freiras Salesianas.
Por motivos vários: meninas órfãs de mãe - como Maria -,
qualidade em educação, excelência na formação religiosa, e
principalmente, por que o Colégio firmou-se, por muito tempo,
como a única opção de ensino regular nessas imediações do Vale
do São Francisco, entre os estados da Bahia, Piauí e Pernambuco.
Depois de alguns soluços, Maria percebeu outros cho-
ramingues à sua volta. Ela não estava só. Uma das irmãs que
recepcionava os alunos novatos aproximou-se, agachou-se para
olhar nos olhos de Maria, acariciou os cachos castanho claros do
cabelo da menina - alvoroçados pelo vento ribeirinho - e beijou-
lhe a testa.
- Seja bem-vinda ao nosso Colégio. Esta será sua nova casa.
Por certo que sairá daqui uma honesta cidadã e boa cristã.
E dirigindo-se a Clodoaldo.
44
e n tre p a p é is e vo ze s

- Vá tranqüilo pai. Nossa Senhora Auxiliadora olha por nós.


Dali Maria foi levada pela irmã até seus aposentos. Um
quarto grande, com muitas camas enfileiradas e seus lençóis,
impecavelmente esticados.
A capela ficava logo na entrada do casarão, onde eram feitas
as orações da manhã. Ali, naquele lugar de devoção, podia-se ver
a imagem da Virgem Auxiliadora no centro do altar: um cajado
na mão direita, o menino Jesus equilibrado à esquerda, pés
descalços; túnica rosada, um rosa clarinho com detalhes dourados;
manto azul da cor do céu limpo, com delicadas flores também
rosadas; a face calma e o olhar materno, acolhedor; uma coroa
estonteante enfeitada de pedras azuis e vermelhas; o menino em
seus braços abre os braços, fraterno e solidário.
Maria recebeu seu uniforme: uma saia azul marinho
pregueada, blusa branca com mangas compridas, meias cor da
pele que iam até o joelho, gravata azul marinho e sapato vulcabrás
preto. Da entrega daquela farda obrigatória, ela ficara logo
sabendo que toda segunda-feira era dia de revisão: as alunas
enfileiradas eram minuciosamente observadas pelas freiras quanto
ao comprimento das saias, estado das unhas, sobrancelhas, enfim.
Fora da sala de aula, havia pouca comunicação entre alunas
internas e externas. O enxoval das internas trazia o rigor do ensino
das freiras da época: um roupão para ser usado no banho, que
durava apenas três minutos e o chuveiro era desligado - era o
tempo suficiente para evitar o pecado.
Nas festas religiosas da cidade, o Colégio era presença
constante. Nesses dias, adicionava-se ao uniforme uma boina
azul marinho e luvas brancas. As alunas, antes de saírem, deviam
ouvir os sermões das freiras para que não dessem atenção aos
pés raspados que ficavam ao lado nas calçadas - assim eram
chamados os rapazes que não tinham referência de nomes de
família ou de títulos e bens.
Os dias seriam longos à espera das férias, quando tomaria o
barco de volta à margem esquerda daquele rio que a trouxera,
mas que, generosamente, também a levava de volta ao carinho
45
M AR IA FR AN CA P IR ES

do pai, e por vezes, ao acalento dos avós, lá em seu berço, na


antiga Remanso.
...
Corria o ano de 1940. O governo de Getúlio Vargas criara o
salário mínimo em 1º de maio. O país entrava num processo de
industrialização, lento, mas já refletido na Constituição de 1937
que dispunha sobre uma orientação político-educacional para o
mundo capitalista, sugerindo a preparação de um maior contin-
gente de mão-de-obra para as novas atividades abertas pelo
mercado.
Na Bahia, a interventoria de Landulfo Alves acabara de
decretar a reforma no ensino normal baiano, dividindo-o em
secundário (cinco anos) e pedagógico (dois anos). No relatório
das atividades da Secretaria de Educação, o professor Isaías Alves
conceituou que uma das características mais desfavoráveis do
comportamento brasileiro era a excessiva liberdade de
pensamento e a falta de um sentido de disciplina lógica .
Para estabelecer um combate ideológico a essas falhas ,
criou-se no curso pedagógico a disciplina História do Brasil e Edu-
cação Cívica, definida como indispensável à formação de uma
consciência de unidade nacional. A propaganda e exaltação do
Estado Novo foram, assim, estabelecidas em todas as escolas e
colégios.
O estado de Pernambuco, especialmente a interiorana cidade
de Petrolina, vivia também o clima da nacionalização do ensino,
com a exaltação do homem e das coisas brasileiras, um ideário
que aparece e acompanha o desenvolvimento de uma formação
econômico-social capitalista. Mas, especificamente, via-se refletir
na educação do sertão pernambucano era o fenômeno da
ruralização do ensino, representado pela colaboração da escola
na tarefa de formar a mentalidade de acordo com a ideologia do
Brasil-país-essencialmente-agrícola , operando, nesse sentido,
como um instrumento de fixação do homem no campo.
É nesse contexto que Maria Franca Pires, formando-se
professora, em 03 de dezembro de 1939, vai desfrutar de sua
46
e n tre p a p é is e vo ze s

primeira experiência como regente de classe primária ali mesmo,


no conhecido Colégio onde passara oito anos de internato.
A convite da então Diretora do Colégio Nossa Senhora
Auxiliadora - Irmã Hortência - Maria ensina ali nos anos de 1940
e 1941. Estes dois anos de atuação completaram seu curso de
Professora, pois o trabalho realizado era feito sob a fiscalização
de Ir. Maria de Lourdes Veloso, professora de Pedagogia,
Metodologia e Psicologia, temperamento exigente e seguro.
- Desta experiência, transformei-me na professora que fui:
cumpridora dos meus deveres. Sempre coloquei minhas
obrigações acima de qualquer interesse. Sei, sem nenhuma
modéstia, que fiz um excelente trabalho e contribui para a
formação de muitas pessoas.
Maria segue, em 1943, para a cidade de Salvador. Vai prestar
concurso para o magistério primário. Fica na casa de uns amigos
de seu pai Clodoaldo.
- Aprovada, achei que só deveria ser nomeada para Juazeiro,
mas não conseguia.
A capital baiana vivia um período conturbado com a
campanha do estado pela efetiva participação do Brasil na guerra
contra o nazi-facismo.
Nessa época, era interventor o General Renato Onofre Pinto
Aleixo, que se limitava a fazer presença de autoridade forte, quase
sempre arbitrária, e deixava a administração do estado com os
seus secretários. Foi castigado na Bahia por versos como:

Renato é nome de gente


Onofre de santo é
Pinto é ave de pena
A leixo! Que diabo é?

Enquanto aguardava a desejosa nomeação para lecionar em


Juazeiro, Maria ocupou seu tempo, em Salvador, dedicando-se a
dar curso particular.
47
M AR IA FR AN CA P IR ES

Em 1945, fazia parte do grupo de professoras que iniciava a


Escola do SENAI. A instituição instalada na capital baiana,
funcionava no Barbalho, no prédio da Escola Técnica de Salvador.
Na revista mensal ilustrada A Capital, preservada no arquivo
de Maria Franca Pires, ela escreveu na capa:
N esta revista tem meu retrato, como participantedo grupo de Professores
fundadores da Escola do SENA I em Salvador - Ba, no dia 05/ 07/ 1945.
- Gostei da experiência de trabalho. Os alunos eram operá-
rios na sua maioria.
Nos meses de março, abril e maio de 1947, Maria lecionou
na Escola Abrigo dos Filhos do Povo, no bairro da Liberdade,
que era dirigida pelo pai de Irmã Dulce, Dr. Augusto Lopes Pontes
- segundo Maria um homem muito exigente .
Foi, então, nomeada como professora do estado para lecionar
em Bom Jesus da Lapa. Lá, Maria leciona o segundo semestre do
ano de 1947, todo o ano de 1948 e 1949.
- Comecei minha vida de professora primária em Bom Jesus
da Lapa. Foi uma experiência boa, bem distante de casa, da família,
em um lugar que eu apenas conhecia de passagem.
De Bom Jesus da Lapa, Maria foi removida para Remanso.
- Nessa remoção não fui muito feliz, justamente no ano de
1950, ano de eleições. Eu era uma grande admiradora de Juracy
Magalhães e votei nele. E pelo fato de ter votado em Juracy e ter
sido transferida para Remanso por força política de Dr. Luis Viana
Filho, fui perseguida pelo grupo do Partido Social Democrático
da época.
Por que foi perseguida?
- Após as eleições estaduais de 1950, os políticos acharam
de cismar com todas as professoras que desejaram ver Juracy
Magalhães, novamente, no governo da Bahia. Houve um
verdadeiro rebu com as professoras que viviam semelhantes
às aves de arribação.
Assim aconteceu com Maria, estando em Remanso, sua terra
natal. Teve uma primeira transferência para Sento-Sé, em 1951,
não aceitou. Um Deputado Federal da UDN conseguiu a anulação
48
e n tre p a p é is e vo ze s

da portaria que a transferira, e, através de outra portaria, Maria


foi reconduzida à cidade de Remanso.
O s políticos do PSD sentiram-se ofendidos e foram
incansáveis na luta para a anulação da portaria que a reconduziu
à cadeira de Remanso - eles tinham sido os autores da portaria
que a transferira, antes, para Sento-Sé.
- Vinte e sete dias depois o Dr. Régis Pacheco, que tinha
sido o concorrente de Juracy Magalhães e vencedor das eleições,
transferiu a cadeira que eu ocupava em Remanso para a sede de
Juazeiro, continuando sob minha regência.
Como são os políticos!? O que fizeram com a educação?!
- Às vezes, paro e penso: por que, desde 1950, os políticos
passaram a utilizar as pobres professoras primárias como
instrumento de demonstração de seu poder, da sua força política
aos olhos míopes dos eleitores? Digo pobres professoras
primárias , porque professor primário é uma classe relegada ao
seu próprio destino e quase em desuso, nos dias atuais. Elas, as
professoras, não conseguem nem conscientizar os pais dos alunos
sobre as vantagens que eles poderão gozar se assumirem a
responsabilidade de orientar seus filhos em relação às obrigações
escolares; muito menos ter força para modificar suas opiniões
sobre conceitos políticos. Senhores políticos procurem outra for-
ma de aparecer diante do eleitorado. Há tanto o que fazer! - reflete
Maria Franca Pires, tempos depois, já como professora aposentada,
em autobiografia escrita no ano de 1981 e preservada em seu
arquivo.
A consciência crítica da atuação de políticos e eleitores, unida
à sua característica de falar na lata , como certa vez a amiga
Antonila indicara, renderam a Maria as perseguições de outrora,
mas ela nunca deixou de dizer o que pensava.
- Os políticos são interessantes: acomodam tudo; o eleitor é
que não é besta. Isto prova o pouco interesse que eles têm pelo
setor de educação. E têm razão. As pessoas que sabem ler e
assimilar o que lêem são PERIGOSÍSSIMAS! Ganhei com a
49
M AR IA FR AN CA P IR ES

fofoca política; vim para Juazeiro, meu sonho de toda uma vida
de estudante. Muito obrigada senhores pessedistas daquela
época!
Assim Maria Franca Pires conseguiu seu grande sonho:
ficar junto de seu pai, junto de sua família.
- E desde de 1951, todo o meu campo de trabalho foi aqui
- conta Maria, referindo-se a Juazeiro.
É na cidade de Juazeiro que Maria vai ficar conhecida para
sempre como a professora Maria Franca Pires . Mesmo depois
de se aposentar e exercer outras funções que não a de educadora,
ainda assim, as matérias em jornais e revistas, e mesmo a
memória das pessoas, falam da professora Maria Franca Pires .
...
Naquele tempo, o nome das escolas era escolhido pelas
próprias professoras, assim como a sala e os móveis eram
também elas quem providenciavam. As professoras prestavam
concurso e, ao serem nomeadas para trabalhar pelo Estado,
ficavam encarregadas de toda a estruturação da escola.
- Eu que resolvesse meu problema. Era muito raro o
governo dar algum apoio. Pagava x pro aluguel da casa. Você
que fosse procurar sua sala de aula... Eu mesma a primeira
vez... - E onde eu vou botar essa escola pelo amor de Deus? .
Aí Deus me arranjou, me deu aquela que é esquina com a rua
da 28. Tinha uma sala grande na frente. Comprei as carteiras
todas. Feias! - lembra Lourdes Duarte.
A escola regida por Lourdes se chamava Padre Anchieta,
localizada na esquina da rua da 28, numa casa azul. Ela conta
que junto do salário das professoras já vinha o ticket referente
ao valor para o pagamento do aluguel da sala.
- Não era doação não, como é que se chama? Esqueci o
termozinho pra o aluguel da escola. Devia ser trinta reais,
quarenta... Agora, tinha a fiscalização da delegada escolar! Ela
ia às escolas, via as coisas...
Maria escolheu para a sua escola o nome Artur de Sales .
...

50
e n tre p a p é is e vo ze s

E quem foi Artur de Sales? Qual o motivo da identificação


da professora do interior do estado com o poeta metro-
politano - aparentemente distante?
A escolha de seu nome para a Escola de Maria não foi em
vão. Afinal, Artur de Sales foi um poeta baiano que, apesar de
esquecido pelos livros de literatura e história, é reconhecido no
meio acadêmico como o principal poeta baiano depois de
Castro Alves.
Compositor dos famosos versos do Hino ao Senhor do
Bonfim, Artur de Sales morreu no ano de 1952 - período mais
ou menos compatível com a vinda de Maria Franca Pires para
lecionar em Juazeiro e, portanto, com a fundação de sua escola
isolada. O nome da escola talvez tivesse, então, sido uma
homenagem póstuma ao poeta.
Por certo que Maria chegou a ouvir estes versos na sua
estadia em Salvador entre os anos de 1943 e 1947.

Glória a ti, neste dia de glória!


Glória a ti, redentor que há cem anos
N ossos pais conduziste a vitória
Pelos mares e campos baianos

Pode ser também, que tenha tido contato com outros


tantos escritos de Sales, afinal, ele escreveu sobre o mar, as
lendas do recôncavo, as superstições dos pescadores , temas
recorrentes nas pesquisas feitas por Maria.
Mas o texto Bardo esquecido / Dor simbolista da jornalista
Andréia Santana, colhido no levantamento de informações
sobre Artur de Sales, é mesmo um protesto bem atual contra a
história que vai, aos poucos, pela mão do homem , virando
pó. E contra isso, Maria já se indignava bem lá atrás, talvez
quando guardara o primeiro número do almanaque de seu avô
e cuidara para sua preservação.
Andréia Santana, usando as palavras como armas, rei-
vindica pela lembrança de Artur de Sales que, sendo valorizada
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M AR IA FR AN CA P IR ES

apenas entre acadêmicos e pesquisadores, vai se apagando na


mesma proporção em que os monumentos da história de vida
do poeta viram pó.
A realeza da Escola Agrícola de São Bento das Lages, onde
o poeta foi bibliotecário desmorona. No município de São Fran-
cisco do Conde, terceira vila fundada no recôncavo baiano, onde
Sales viveu muitos anos com a mulher e os cinco filhos, restam,
em sua memória, uma pracinha abandonada e a biblioteca da ci-
dade, igualmente mal cuidada.
Em Salvador, onde nasceu e morou na velhice, nem isso.
Nada na capital leva o nome de Artur de Sales, um dos membros
fundadores da Academia de Letras da Bahia, onde ocupou a
cadeira três.
É o sentimento de uma história que se perde...
Contra o qual Maria lutou por toda uma vida. Guardando
coisas para que elas não sumissem, registrando histórias para
que elas não se perdessem no tempo, tomando conta de um
mundo.
...
A Escola Artur de Sales funcionava na casa mesmo de Maria
Franca Pires, na rua Conselheiro Luis Viana, em frente à casa
número cento e vinte, onde morava, à época, Antonila da França
Cardoso.
- Ela pegou metade da casa dela e resolveu fazer a escola,
porque tinha essas histórias de se dizer - O aluguel mudou, a
escola vai sair dali pra num sei onde . Aí então, ela resolveu: -
Vou fazer minha escola na minha casa, que ninguém vai mais
ficar me mandando pra baixo e pra cima . E fez a escola no
fundo da casa.
Dali, Antonila, a amiga e também vizinha de porta,
presenciou momentos hilários de Maria como professora.
Certo dia, Antonila adentrou a casa da amiga para ver como
tinha ficado a reforma e cumprimentá-la. Deparou-se com Maria
levando a turma pela casa, como se fizesse uma excursão, e
chegara na parte principal, quando ela abria a porta do banheiro
e dizia:
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- Aqui é o banheiro onde a professora toma banho, aqui ó o


chuveiro! Aqui é onde a professora senta neste vaso pra fazer as
necessidades, aqui...
Antonila, espantada com aquela cena disse:
- Meu Deus, o que quer dizer isso aí?! - e pôs-se a sorrir sem
acreditar no que via.
Depois de mostrar a casa por inteiro - cozinha, quartos, sala
banheiro - Maria mandou os meninos de volta à sala de aula e
voltou-se para recepcionar a amiga Nila que lhe observava à
distância e divertia-se.
- Diga, amiga! - cumprimentou Maria à visita da amiga.
- Não, Maria, eu vim rapidinho aqui ver como ficou a escola.
Mas o que é isso? Os turistas na casa da professora! - indagou
Antonila e pôs-se a sorrir.
E Maria tranqüilamente explicou:
- Não. Essa é a turma nova. É que quando estou lá na escola,
eu não tenho onde guardar o material. O material é guardado
aqui em casa. Aí, quando eu digo assim ao aluno: - Vá lá em
casa e peça uma caixa de giz a Beré - referindo-se a Berenice,
uma prima de Remanso que morou com ela por um tempo - Aí,
quando o aluno volta, ele diz assim: - A casa da professora tem
um fogão, tem num sei que lá... . Aí, começa o ti, ti, ti da casa da
professora. Então, pra num ter essa história de a casa da
professora tem... , agora, quando começa uma turma nova, eu
mostro logo tudo da casa da professora.
E Maria levava os alunos pela casa, mostrando os cômodos
e suas coisas, e dizendo com aquele palavreado dela .
- A professora caga, mija, igual a todo mundo!
...
Muito exigente e rigorosa - como certa vez o internato no
Colégio das Freiras a fizera ser - Maria estava sempre atenta aos
mínimos detalhes da formação de seus alunos.
- Caderno de menino tinha que ser aquela coisa. Gostava
muito de enfeitar as coisas com figuras, né. Recortava bem...
Ensinava os meninos a recortar aquelas figuras, muito BEM
53
M AR IA FR AN CA P IR ES

pregadas. Fugiu uma linha do lugar: chega pra lá, chega pra cá!
Letra, comportamento, maneira de sentar. Muito, muito, muito
exigente! - lembra Lourdes.
Parte da memória das aulas e instantes vividos por Maria
Franca Pires na regência como professora primária ficou guardada
em seus cadernos. Num pequeno Diário de Classe , que resistira
ao tempo, está materializada uma história que aconteceu entre as
quatro paredes de sua sala de aula
Ali, nas páginas já um tanto amareladas e nas letrinhas
desenhadas com vagareza e cuidado pelos alunos, pude sentir os
vestígios de um tempo.
Cada dia, um aluno registrou no pequeno diário, datado do
ano de 1957, como transcorrera a aula, acrescentando ao relato
um desenho caprichoso e curiosidades da rotina escolar, como
no dia em que o aluno Carlos José Campelo Evangelista teve a
liberdade de registrar:
A professora passou exercícios e tomou lição de ponto. Mandou fazer
um álbum para entregar a nossas mães. Terminando de pregar as figurinhas,
Carlos Morgan derrubou a carteira de José Milton e a professora deu um
cocorote em Carlos Morgan e em mim quase que me mata de tapa .
...
- Eu me lembro quando ela começou... Menina, ela era terrível!
- diz Antonila, com uma risada longa. E continua:
- Ela dava uns esculachos nos alunos como se eles fossem
adultos. - Você não tem vergonha de vir pra escola com esse pé
sem lavar e num sei o que lá. Sua mãe é uma porca! Porque uma
mãe que tem um filho que vem pra escola desse jeito . Eu ficava
horrorizada! Com o tempo, ela adocicou!
- Ah, Maria Pires era uma professora muito competente,
muito respeitada... - Perpétua sorri ao descrevê-la assim - Por
que ela era enérgica! Num batia não! Mas a professora Maria Pi-
res era respeitada!
No Diário de Classe , estão presentes o lado enérgico
de castigar e exigir mas também aparece, naqueles relatos
infantis, o ambiente doce e aconchegante da escola e das aulas.
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e n tre p a p é is e vo ze s

Nos desenhos freqüentes, a Escola está normalmente retratada


com flores e a aparência de um espaço aprazível. Há, também,
nos relatos, referências que indicam a dinamicidade das aulas,
reconhecida pelos comentários de aprovação escritos pelos alunos.
Houve hoje na escola uma festa dos aniversariantes. Gostei muito,
teve conto e poesia, as meninas compraram presente para a professora e teve
comida .
Hoje em minha escola fizemos um jogo sobre recordação de geografia;
tinha o partido Brasil e Holanda. O que ganhou foi Holanda. A professora
mandou trazer material para experiência de Ciências e marcou um ponto de
História Pátria para o dia seguinte .
- Mas, ela, no começo, era braba mesmo. Eu via coisas
incríveis! Mas, naquela época... As coisas são tão engraçadas...
Hoje eu fico vendo... Se um pai fizer assim num filho - Antonila
junta os dedos polegar e indicador deixando entre eles um
pequeno espaço -, os vizinhos vão pra delegacia e dão queixa.
Naquele tempo a gente apanhava de cinto! - comenta Antonila,
que assistia às cenas de camarote, de sua casa logo em frente.
Maria Emília Arapiraca foi aluna de Maria Pires e, depois,
tornaram-se grandes amigas.
Estudando na Escola dos Artistas, certo dia, sua irmã Amélia
foi substituir uma sua professora e, chegando lá, descobriu que
Maria Emília não sabia fazer contas - de somar, dividir, multiplicar
nem nada. Aí, então, procura-se uma professora!
- Aí foi que eu vim estudar na escola de Maria Pires no
turno da manhã, porque era uma professora muito rígida e
competente. E o aluno lá não tinha negócio de passar porque era
bonitinho e era filho de doutor fulano não. Ela tratava o pobre
igual ao outro da classe, lá todos eram iguais. Num tinha distinção
de jeito nenhum de aluno. Na casa dela eu era amiga, era tudo.
Na escola, eu era uma aluna como qualquer outra. Num tinha
negócio de privilégio, num sei o quê.
Maria Emília revela que sempre foi uma aluna muito levada,
por isso, talvez, lembra-se tão bem dos esculachos da professora
Maria Franca Pires!
55
M AR IA FR AN CA P IR ES

...
Como numa certa manhã de agosto do ano de 1954. Os
alunos da Escola Artur de Sales já estavam acomodados em suas
carteiras de dois lugares - Maria Emília sentava-se sempre ao
lado de seu colega Edílson - e a professora Maria Franca Pires
regia sua aula como de costume.
De repente, o alto-falante fixado no poste da esquina vibra
pedindo atenção: O Presidente Getúlio Vargas suicidou-se! .
Anunciava.
Divulgada a sua morte, acontecida ao dia 24 de agosto, ela
alcançou o país numa onda de consternação e protesto. Milhares
de manifestantes choraram o presidente morto de forma trágica,
prestando-lhe homenagens em comícios e passeatas que
ocuparam ruas e praças, exigindo respeito à democracia do país.
Em Juazeiro, a notícia chegou com atraso, sendo transmitida
repetidas vezes pela ZYN-21-Rádio Juazeiro e repercutida pelos
serviços de alto-falantes espalhados pelas ruas. A cidade ficou
perplexa diante do acontecimento trágico e a ordem era para que,
em respeito e luto, as atividades fossem suspensas.
Rompendo o silêncio que se instaurou na sala de aula, a
aluna Maria Emília, impulsivamente, vibrou:
- Graças a Deus! Só assim tem um feriado nessa escola!
A professora Maria Franca Pires, ouvindo aquele comentário,
imediatamente voltou-se à aluna repreendendo sua atitude.
- Que ignorância! É o presidente da república!
E o sermão rendeu uma lição sobre patriotismo e respeito
aos símbolos nacionais que Maria Emília jamais esqueceria.
...
- Menina, Maria caiu em mim dos cachorros abaixo! Mas a
gente queria era folga, porque Maria Pires tinha aquele horário
rígido. A aula se começasse sete e meia, a gente tinha que estar lá
sete e meia. E saía onze e meia. Era tudo certinho! Mas também,
foi onde eu aprendi matemática e passei a gostar de matemática
foi com ela - recorda Maria Emília.
...
56
e n tre p a p é is e vo ze s

Ano de 1954. A Associação Comercial Industrial e Agrí-


cola empossava nova diretoria; era organizado o I Salão de Artes
Plásticas de Juazeiro e Petrolina, representando um esforço dos
abnegados amantes das artes; inaugurava-se à Rua Visconde do
Rio Branco, a Biblioteca do Círculo Operário; era anunciada a
eletrificação da Estrada de Ferro Leste Brasileiro; a ZYN-21-
Rádio Juazeiro organizava nova e atraente programação,
adquirindo o speacker Alicio Gil Braz; o cantor Luís Gonzaga
realizava espetáculo no Cine-Teatro São Francisco, sendo o show
irradiado por aquela emissora de rádio local; realizava-se na capital
baiana o II Congresso Estadual de Prefeitos, ao qual não
compareceu nenhum representante de Juazeiro; a cidade sofria
com a deficiência no fornecimento de energia elétrica, agravada
pelo alto custo do óleo diesel; eram fundados o Rotary Clube e o
Clube de Caçadores.
Nesses novos ares que pairavam sobre a cidade de Juazeiro,
favorecendo a aglomeração de pessoas em torno dos mais diversos
fins, surgia a Associação de Pais e Mestres que viria a funcionar
na cidade por 20 anos, tendo, nesse tempo, Maria Franca Pires
como presidente.
Fruto de um aprendizado que ela trouxe consigo desde a
Escola Normal, e que primava pela idéia de que o relacionamento
escola-família era indispensável ao bom andamento dos trabalhos
escolares e à formação da criança, a Associação de Pais e Mestres
se tornou em 1954 - quando de sua fundação - uma oportunidade
real de pôr em prática esse ensinamento.
Em torno desse ideal, uniram-se a Maria Franca Pires as
professoras mais expressivas da época. Terezinha Ferreira
Oliveira, Judith Leal Costa, Maria de Lourdes Duarte, Ondina
Farias, Renilde Teixeira Luna, Guiomar Lustosa Rodrigues não
vacilaram em apoiá-la.
Naquele tempo, as instituições de ensino existentes em
Juazeiro eram as Escolas Isoladas. Cada uma dessas professoras
tinha a sua escola e ali ensinava todas as matérias e todos os anos
do curso primário.
57
M AR IA FR AN CA P IR ES

- O que tivesse pra ensinar era uma professora só! As crianças


daquela rua freqüentavam a escola mais próxima. E, naquele
grupo, vinham meninos da classe média, vinham meninos pobres
e vinham meninos totalmente carentes. Então, estes não tinham
dinheiro pra cadernos nem pra lápis. E aí Maria ia às casas em
que as pessoas podiam mais e pedia: - Em vez de comprar
um caderno pra seu filho, você manda dois, pois tem um aluno
que não tem. Ou então, me dá quinhentos réis pra completar o
do que não tem . E começou a fazer essa coisa - lembra Antonila
sobre o início da Associação.
- Ela gostava mesmo de PEDIR! Esse negócio de doação.
Eu dizia: - Vô nada Maria! . Aí ela se irritava: - Você é idiota!
Você tá pedindo pra você? . Eu digo: - Eu não! . - Pois, então,
chegue e peça. Deu, deu, num deu acabou a história . Ela dizia
com aquela cara de pau dela - conta Lourdes, divertindo-se com
as lembranças da amiga.
Depois da primeira reunião de contato com os pais, realizada
no dia 30 de abril do ano de 1954, acontece a reunião de instalação
da Associação de Pais e Mestres, no dia 09 de maio do mesmo
ano. Com total aceitação da idéia pelos pais e professoras, a enti-
dade foi instalada na cidade de Juazeiro naquele dia 09, em
homenagem ao Dia das Mães.
A Associação foi, então, formada por uma Diretoria
composta de um Conselho Geral e um Conselho Auxiliar. O
Conselho Geral era formado de professoras e o Conselho Auxiliar
de pais. Cada qual tinha presidente, vice-presidente, dois
secretários, dois tesoureiros e três fiscais.
A primeira diretoria da Associação de Pais e Mestres de
Juazeiro, aprovada em votação nos dias 13, 20 e 25 de abril de
1954 foi composta: Presidente - Maria Franca Pires; Vice-
presidente - Maria de Lourdes Duarte; 1ª Secretária - Celita Dina
Cunha; 2ª Secretária - Teresinha Ferreira; Tesoureira - Renilde
Teixeira Luna; Conselho Fiscal - Maria Ondina Farias e Guiomar
Rodrigues Lustosa.
58
e n tre p a p é is e vo ze s

De acordo com o estatuto publicado no Diário Oficial de


09/ 05/ 1956, eram considerados sócios todos os pais dos alunos
e professoras que desejassem cooperar para o bem da
Associação , sendo divididos em duas categorias de sócios: os
beneméritos, que contribuíam, mensalmente, com importância
de Cr$ 5,00; e os auxiliares, que contribuíam com Cr$ 2,00 mensais.
Dentre as obrigações desses sócios estavam: o pagamento
da jóia - de Cr$ 10,00 para os beneméritos e de Cr$ 5,00 para os
auxiliares; zelar pela assiduidade, pontualidade e asseio dos alunos,
ajudando a escola na obra da educação; fazer a propaganda da
Associação na escola; e, dentre outras, comparecer às reuniões.
O estatuto da Associação de Pais e Mestres previa também
que a realização de reuniões ordinárias se faria mensalmente e
extraordinárias quantas vezes quanto neces-sárias.

A rt.6° - Em cada reunião será debatido um assunto sobre educação,


higiene, etc., ficando a palestra a cargo de uma professora ou pessoa
escolhida pelo Conselho Geral.

De início o trabalho era feito através de reuniões em cada


segundo domingo do mês, com pais de alunos que freqüentavam
as escolas regidas pelas professoras fundadoras da organização.
Era convidado um profissional para conversar com aqueles pais
sobre assunto de caráter educativo. Logo em seguida eram
entregues os boletins com o resultado do aproveitamento dos
alunos e os pais conversavam com os professores acerca dos
seus filhos.
Maria Emília, que fora aluna de Maria Franca Pires no quarto
ano primário, lembra da exigência da professora e presidente da
Associação de Pais e Mestres para que os pais comparecessem às
reuniões.
- Todo mês tinha uma reunião de pais e mestres - porque ela
queria estar em contato com os pais dos alunos. Só sei que meu
pai não ia e não deixava minha mãe ir. Quando era na segunda-
feira ela começava né: - Éh, é porque os pais não dão valor aos
59
M AR IA FR AN CA P IR ES

filhos. Tem um bocado aqui de cachorro sem dono . Menina,


mas aquilo eu chorei! Pra me acabar.
Depois as reuniões passaram a se realizar em cada escola. A
diretoria da Associação reunia-se com as professoras, escolhiam
juntos um assunto e, cada qual, desenvolvia em sua escola.
Foram abordados temas como A maturidade dos pais , Os
defeitos dos pais , Castigos e recompensas , Ciúme infantil ,
Espírito de família ou o que os filhos esperam do lar , O papel
da mãe no lar , Autoridade paterna , A educação religiosa integra
o adolescente , Como preparar a criança e o jovem para os
lazeres , Educação sexual , Como fazer do meu filho um bom
estudante , A insolência do adolescente .
As palestras eram momentos de troca de experiências
educativas, através da análise da atuação dos pais e mestres no
lar, na escola e na comunidade.
- Mas, era uma grande empreendedora, Maria! Não era de
esperar pelo governo não. Ela queria uma coisa, ela fazia do jeito
que dava, com o material que tinha, com o apoio dos amigos, do
pessoal da classe... Ela nunca ficou de braços cruzados esperando
que a atendessem! Era muito dinâmica e pé no chão! Não vivia
com a cabeça na lua, sonhando com o impossível não lembra
Antonila.
Como presidente da Associação de Pais e Mestres, Maria
Franca Pires realizou vários cursos de promoção cultural e
renovação do professorado, como: em junho de 1967 o Curso de
Organização familiar, com a professora Maria Junqueira Schimidt;
em março de 1968 o Curso de Literatura Infantil, com a professora
Corina Maria Peixoto Ruiz; e em maio de 1968 o Curso de
Matemática Moderna, com a professora Wanda Knüpfer.
Em relatório das atividades do ano de 1968, preservado em
seu arquivo, Maria registrou:
Os cursos realizados deram à comunidade excelente ocasião
para atualização de métodos e comprovaram o trabalho que a
Associação realiza a favor do bem comum .
A história do uso do mimeografo é um exemplo disso.
60
e n tre p a p é is e vo ze s

...
Houve um tempo em Juazeiro em que as provas eram feitas
à mão pelas professoras. Chegava-se antes, as questões eram
escritas no quadro, depois é que se abria a sala para que os alunos
entrassem, copiassem e respondessem. Todo esse processo era
muito demorado e cansativo.
- Não havia livros didáticos para os alunos. Isso, também,
era muito difícil! Era tudo copiado. Professor chegava, dava a
aula dele e a gente copiava tudo. Alguns professores ditavam: -
Hoje nós vamos estudar... E todo mundo ta, ta, ta. E esperava
até que copiasse tudo - relata Antonila, entre os risos freqüentes
provocados pela lembrança.
- E Maria como presidente da Associação de Pais e Mes-
tres mandou comprar... Como é que chamava Thomázia? -
pergunta Perpétua.
- Mimeografo? - responde perguntado Thomázia.
- É. Mimeografo! Aí, ela como presidente da Associação de
Pais e Mestres, ela mandou buscar o mimeografo em Salvador e
passava as provas da gente. Aí, nós deixamos de ter o trabalho de
copiar aquela prova TODA na mão! - lembra Perpétua.
Antonila recorda que, na época, não existia xerox, nem nada
disso. Era mimeógrafo. Era a álcool. E, às vezes, se pusesse álcool
demais dava uma borradeira roxa na mão.
- E ela começou a imprimir as provas pros alunos da escola
dela. Foi quem primeiro imprimiu prova pra aluno! E as outras
escolas começaram a pedir e ela dizia assim: - Traga o papel .
Mas o álcool era dela, o tempo era dela...
Chegou a um ponto em que Maria estava rodando papel
de prova e também os pontos - o conteúdo das matérias que
era dado pelos professores e aos quais se cha-mavam pontos
- pra todas as escolas de Juazeiro.
- Começou aí a história de livro impresso. Mas, impresso de
mimeógrafo e era ela! E só dizia: - Tragam o papel! - revela
Antonila.
...
61
M AR IA FR AN CA P IR ES

Além da introdução do uso do duplicador a álcool no Setor


de Educação da comunidade juazeirense - que se tornou um gran-
de auxiliar da professora na época - e da promoção de reciclagem
do professorado, através de diversos cursos, a Associação de Pais
e Mestres de Juazeiro, durante seu período de atuação de 20 anos,
foi responsável por obras importantes para a educação local. A
citar:
Divulgação das comemorações do Dia das Mães e Dia
dos Pais nas escolas, para que esses dias fossem festejados em
seu verdadeiro sentido; impressão de boletins, mapas de exames,
folhas de matrículas, caderneta de notas para o professor;
organização de uma Biblioteca Infantil; criação de Clube dos
Amigos da Biblioteca Infantil, com a finalidade de angariar fundos
para a aquisição de livros; promoção de festas para comemorar
datas cívicas e angariar fundos para realizar determinados
trabalhos; construção de uma sede para a Associação de Pais e
Mestres na rua Cons. Luis Viana; organização do Bazar da
Amizade, que constava de recolher o inútil, torná-lo útil e dar a
quem precisasse; doação de material escolar aos alunos que neces-
sitassem; realização de Curso para Noivos , seguindo a orien-
tação do Padre José Gilberto Luna, com o desejo de formar na
comunidade, famílias equilibradas, conscientizadas das suas
grandes responsabilidades .
Assim, a Associação se fez atuante na comunidade da época
(1954-1974), cumprindo seu ideal de buscar no relacionamento
escola-família a educação integral da criança no convívio no lar,
na sala de aula e na comunidade, sendo reconhecida por Lei Muni-
cipal (nº 649 de 11/ 09/ 1967) e Lei Estadual (nº 2.531 de 18/ 05/
1968) como Utilidade Pública.
...
Certa vez, já como professora aposentada, Maria refletiu
sobre sua vida na regência de classe e concluiu:
- Realizei-me como professora primária. Gosto de olhar para
o passado e rever aqueles meninos, que me ajudaram nesta
realização e, hoje minha alma vibra de entusiasmo ao vê-los
62
e n tre p a p é is e vo ze s

adultos organizando suas vidas, cooperando no progresso das


comunidades onde vivem, como médicos, engenheiros, advo-
gados, agrônomos, professoras, bancários, funcionários públicos,
domésticas, freiras, principalmente, mães de família. Todos
brilhando como as estrelas do céu e me enchendo de alegria, no
outono da vida, através dos convites de formatura, de casamento,
nos encontros públicos. Deus que os guie nas estradas tortuosas
da vida...

63
M AR IA FR AN CA P IR ES

Memórias de uma Pro-


fessora... Comemora-
ção do 30º aniversário
de formatura em 03/
11 12/1969 (11 e 12 ) . Maria
indicada na Revista A
Capital como partici-
pante na fundação da
Escola SENAI em 05/
07/1945 (13).

12

15

13

14
Almoço das
professoras no
Clube Comercial
em 36/07/1959 (14).
O Diário de Classe
da Escola Artur de
Sales de 1957,
preservado no
arquivo de Maria
Pires (15).
64
e n tre p a p é is e vo ze s

16
O trabalho na
Associação de Pais e
Mestres preservado
em fotos e
documentos
guardados no arquivo
de Maria.
17

21
20

18
Curso de Literatura
Infantil com Corina
Ru iz e m 19 6 8 ( 16 e 17) ,
Curso de Organização
Familiar Maria Schimidt
em 1967 ( 18 e 19 ) e
Certificados (20 e 21).
19

65
M AR IA FR AN CA P IR ES

MARIA FRANCA PIRES


Valente de Rem anso - Lord Juazeirense

Certo dia, um jornalista indagou:


- Maria, a partir de quando você começou a se interessar por
pesquisar a história de Juazeiro e por quais motivos?
E ela respondeu, firme:
- Eu, perguntando a mim mesma, não sei se houve algum
motivo para entregar-me a este trabalho da maneira que me entre-
guei. E acho que se uma pessoa, por exemplo, disser, a partir de
agora eu vou pesquisar a história de Juazeiro ou a história da
terra onde eu nasci, ou a história de qualquer outro lugar e cole-
cionar coisas, ela não vai durar nesse trabalho nem seis meses,
porque essa coisa é muito complicada. Todo trabalho só tem
continuidade se estiver dentro da pessoa.
Começou pelas coisas do avô, Trajano Torres Bandeira: a
máquina alemã, uma caixa de música, um gramofone, um
almanaque luso-brasileiro do século XIX, um almanaque lítero-
comercial lançado em Juazeiro no ano de 1910.
- Eu andava por aí, mas, quando chegava em casa, sempre
abria as gavetas para ver se ele (o almanaque) estava no mesmo
lugar. Então fui, desde menina, juntando essas coisas...
Assim, guardando coisas, Maria Franca Pires fez de sua casa
- na Rua Conselheiro Luis Viana nº 101 - uma espécie de Museu.
A casa ficou mesmo conhecida como o Museu de Juazeiro .
66
e n tre p a p é is e vo ze s

Ali, na esquina da Avenida Adolfo Viana com o fundo da rua da


28, Maria guardava a história da cidade e pessoas sempre recorriam
ao local em busca de informações - estudantes e escritores, curio-
sos e amigos, amantes da cidade.
- Jamais enfeitaria as minhas paredes com quadros de flores,
com paisagens, essas coisas. Acho bonito, mas bem longe da minha
casa. Dou mais valor a quadros assim: fotografias de Juazeiro,
que sirvam de documentos. Isso pra mim é que tem sentido.
Muitos lembram daquela casa-museu...
- A casa dela era muito agradável! Porque ela colecionava
artesanato, tudo que era de Juazeiro, por exemplo: roupa de
vaqueiro. Ela tinha todos os elementos do vaqueiro ali, pregados
na parede. Ela tinha carranca, tinha num sei o quê. Aí cada um
desses objetos ela tinha muitos, uma variedade. Então a casa, de
onde você entrava, todos os quartos, banheiro...
- Até no banheiro?! - interfiro espantada.
- Todos os cômodos! A partiiiir..até no banheiro! Tudo ali
era cheio de decoração, era cheio de penduricalhos. Todo lugar
que você entrasse tinha algum tipo de penduricalho, se não tivesse
vários. A casa era, digamos assim, um MUSEU. Era muito
interessante a casa dela!
Movimentando as mãos para mostrar onde as coisas eram
penduradas, Antônio Carlos Coelho de Assis - Coelhão - revela
suas lembranças daquele lugar, onde, por vezes, estendeu as horas
de trabalho como assessor de Maria no Departamento de Cultura
e Turismo de Juazeiro a agradá-veis reuniões e conversas na intimi-
dade de sua casa-museu.
Marta Luz, que à época, lá pelos idos de 1977, figurava como
a secretária de Educação e Cultura do governo vigente - e
convidara Maria para assumir o Departamento de Cultura e
Turismo - vez ou outra era chamada a jantar ou almoçar naquela
casa singular. E ela jamais recusou tais convites.
- Sua casa era, realmente, um museu de baús, baús, baús;
caixas, caixas, caixas; quadros, quadros, quadros; fotos, fotos, fotos;
carrancas, carrancas, carrancas; santos , santos , santos .
Eram quadros de familiares e ancestrais de Juazeiro. Das enchentes
67
M AR IA FR AN CA P IR ES

famosas do rio São Francisco inundando a cidade. Da bela


Estação Ferroviária, hoje demolida. Eram carrancas velhas, car-
rancas novas, carrancas feias, carrancas bonitas, carrancas feitas
em Juazeiro, carrancas feitas acolá, bem longe. Eram santos da
devoção. Santos feitos a mão. Santos de madeira. Santos de gesso.
Santos de todos os tipos...
N um desses almoços e jantares, em sua casa
impecavelmente limpa e asseada, enquanto conversam, Marta
lhe disse certa feita:
- Se alguém me perguntar onde é que você mora, eu direi:
no museu da esquina, na rua atrás da 28.
Maria ria e comentava:
- Você não estará fazendo mais que sua obrigação, sua fresca!
...
Daquela casa, não existe mais nenhuma referência concreta.
Ela foi demolida há mais ou menos dois anos. Quando tomamos
conhecimento, a casa já estava vindo abaixo. Tivemos tempo,
apenas, de fotografar seus destroços. Seu piso antigo, desenhado
de formas geométricas em preto e branco ficou registrado pela
nossa câmera denunciante. No seu lugar, foram construídos
prédios de lojas comerciais.
...
Marta Luz lembra de Maria com uma descrição primorosa.
Para ela, Maria fora a não juazeirense mais juazeirense que
conhecera. Aproximaram-se tão logo Marta adquirira a Rádio
Juazeiro, lá pelos idos de 1970 ou 71.
- Maria se acercava de toda e qualquer manifestação cultural
que surgisse na terra de seu coração, sem o mínimo preconceito,
fosse qual fosse a manifestação, viesse de onde viesse. E, a bem
da verdade, a Rádio Juazeiro se fez assim quando sob minha
liderança.
Posteriormente, a amizade entre as duas aprofundara-se
quando, em 1977, Marta, assumindo a Secretaria Municipal de
Educação e Cultura de Juazeiro, convidara Maria, por indicação
do então vice-prefeito Joseph Bandeira, para ser a coordenadora
do Departamento de Cultura e Turismo daquela Secretaria.
68
e n tre p a p é is e vo ze s

- Aí convivemos intensamente e, desde então, entre nós


duas cresceu uma sadia e fértil amizade. Maria - assim eu a cha-
mava sempre - era imensamente afetuosa. Sem amarguras, gos-
tava de gostar das pessoas e dava considerável valor às mesmas.
Chamavam-me atenção sua elegância, charme e bom gosto com
que sempre se trajava. Maria era caprichosamente limpa e
cheirosa e estava sempre bem vestida. Da roupa do trabalho à
da festa, era-lhe impecável o bom gosto, o cuidado em combinar
esteti-camente as cores, os tecidos e adornos. Considerava um
desrespeito uma pessoa chegar perto de outra com mau cheiro
ou, mesmo, sem cheiro agradável de asseio e boa perfumaria.
Impressionante como era asseada e recendia bem!
...
Maria Franca Pires era prima do pai de Odomaria Rosa
Bandeira Macedo - Everton Bandeira. Mas não era uma prima
íntima. Everton e Clodoaldo sim foram íntimos. Nessa época,
Odomaria era ainda muito menina e lembra-se apenas de ouvir
sua mãe contar.
- Por que meu pai era enfermeiro prático, então ele era que
curava metade do povo aqui. Na época, os médicos iam às casas
e papai era uma extensão do médico. Então o pai dela ficou
muito doente e ela era filha única, já não tinha mais mãe e
minha mãe dizia - Ah, porque, quando Clodoaldo ficou doente
Everton ficava lá, ia lá todo dia . Tinha todo um cuidado assim,
uma aproximação muito grande.
Odomaria cresceu sabendo desse parentesco com Maria
Franca Pires a vida inteira e sabendo - pelos comentários que
ouvia dos adultos - que ela era professora. Uma professora
super rigorosa!
- Inclusive minha mãe dizia - Filho meu nunca vai estudar
com Maria Pires, porque em filho meu só quem bate sou eu .
E ela tinha a fama de botar os meninos de castigo e de bater.
Mas ela era uma pessoa, assim, que chamava muita atenção e que
andava na minha casa em alguns momentos.
Nesse meio tempo, entre a infância e a adolescência de
Odomaria, a relação entre ela e Maria Pires se limitou às convenções
69
M AR IA FR AN CA P IR ES

de um parentesco e a uma idéia da professora rígida , sobre a qual


apenas ouvia falar.
Aproximaram-se de fato, já muito depois, no ano de 1977,
quando Odomaria estava formada em História e pós-graduada em
Antropologia, pela Universidade Federal da Bahia.
- Neste meio tempo, Maria Pires foi chamada pra ser coor-
denadora do Departamento de Cultura e Turismo da Prefeitura
na gestão de Arnaldo Vieira e meu irmão era o vice-prefeito dele.
Então ela convidou a mim e a Coelhão, para sermos como
assessores dela no trabalho com a cultura. E então a gente foi.
Nesse período que trabalharam juntas no Departamento de
Cultura, e posteriormente, com o nascimento das filhas Kizzy e
Iabi - filhas de Odomaria - entre projetos, crises e confissões,
Maria Pires e Odomaria Macedo se tornaram amigas íntimas.
- Até nesse ponto de ser mais confidente uma da outra, co-
mo mulher mesmo. Embora ela uma senhora da idade de minha
mãe, mas, talvez, porque não fosse minha mãe - Odomaria sorri,
divertindo-se -, a gente tinha uma abertura muito grande e
conversava muito sobre algumas particularidades ou
peculiaridades que são mais de mulher.
Essa outra Maria que Odomaria passou a conhecer no
convívio do trabalho e da intimidade era, em suas palavras, uma
figura . Não passava desapercebida em nenhum lugar, por que
era uma mulher sempre muito arrumada, muito empertigada!
- Andava sempre de salto! Quando ela não estava de salto
alto, era como se ela tivesse, porque era sempre tão ereta, tão
pescoço pra cima. Ela adorava batom! E só usava batom ver-
melho! A maquiagem dela era praticamente essa, mas eram todos
os dias! - lembra Odomaria e revela - Nunca me lembro de Maria
Pires sem batom. Batom vermelho!
Entre, os risos e por vezes gargalhadas provocados pela
rememoração dos trejeitos de Maria Pires, Odomaria conta
detalhes da vaidade e cuidado com a aparência que a amiga
demonstrava ter.
- Maria dizia: - Meu cabelo é ruim , e naquela época quem
tinha cabelo ruim tratava dele com bobis. E ela vivia sempre com
70
e n tre p a p é is e vo ze s

o cabelo arrumado, não sei que horas ela botava os bobis, porque
eu não me lembro dela de bobis, mas ela sempre tava com o
cabelo arrumado! E ela sempre dizia: - Vixe Maria, o cabelo já
ta enrolando! . E quando chovia fazia brincadeira: - O cabelo já
vai desmanchar. Num quero tomar esse chuvisco não, vai
desmanchar meu cabelo! .
E a descrição de Maria se estende aos acessórios e atitudes,
de modo que chego a visualizá-la tal qual delineia a memória de
Odó, como é chamada pelos amigos mais chegados.
- Gostava muito de usar colar! Uns colares de bolota, assim,
que pareciam os colares de minha mãe. Ela tinha vários colares
de bolota e brincos também de bolota. Ela era uma pessoa que
sempre estava bem vestida, bem arrumada. Era uma pessoa muito
altiva sabe. Muito altiva! Parecia uma mulher imbatível, em tudo!
Mas ela era uma pessoa também muito fácil de se envolver afeti-
vamente com as outras pessoas.
E continua.
- Maria Pires era de Remanso e ela fazia questão de dizer: -
Eu sou de Remanso, minha valentia é de Remanso! . Porque
naquele ABC do São Francisco, Remanso é chamado de
Remanso da Valentia . E ela tinha a valentia de Remanso, mas
era uma PAIXÃO por Juazeiro!
...
A notícia soou nas ondas do rádio: Um grande lago seria
construído e inundaria tudo .
No ano de 1972, o governo enviara pessoas às áreas que
seriam atingidas a fim de comunicar diretamente ao povo a
construção da grande barragem e suas conseqüências. Para
represar água e regularizar a produção de energia na Usina
Hidrelétrica de Paulo Afonso, o lago da barragem de Sobradinho
cobriria uma área de 4.214 quilômetros quadrados.
Assim, as cidades baianas de Remanso, Casa Nova, Pilão
Arcado e Sento Sé seriam invadidas pelas águas caudalosas do
Velho rio Chico e mais de 70 mil pessoas, atingidas e expulsas de
seus portos. As populações diretamente afetadas viviam um clima
de fim de mundo.
71
M AR IA FR AN CA P IR ES

...
Num desses dias em que se reuniam e discutiam sobre a
vida, a cidade e tantas outras coisas, Antonila junto com Maria
Pires, Joseph Bandeira, Marta Luz e Laíse Luna - entre outras
pessoas - conversavam sobre a maneira como iam se destruir as
quatro cidades, sem haver um mutirão cultural.
E aí pensavam:
- E a cultura dessas cidades vai submergir junto com a parte
física? E depois, o que se vai contar dessas cidades? E falavam
de Atlântida - Vai sumir, aí um dia vão dizer que é mentira, que
nunca existiu, vai se perder no tempo.
E, quando estavam devaneando em torno disso, filosofando,
Antonila mostrou-se revoltada com o descaso dos administradores
e disse:
- Eu não entendo porque é que o governo estadual não
manda uma equipe de professores e de pesquisadores fazer um
levantamento nessas cidades e registrar isso!? Isso é um absurdo!
E Maria:
- E porque você que está tão revoltada, não pega sua caneta
e seu caderno e vai fazer esse levantamento?
Antonila, espantada com aquele negócio retrucou:
- Eu?
E Maria:
- Sim! Seu irmão não tem um Jipe? Você não vive aí de Jipe
por esses interiores? Você tem máquina fotográfica e tem
gravador. Está esperando o quê pra fazer esse negócio? Você tem
obrigação de fazer isso Antonila, porque você tem capacidade!
E Antonila, então, muito obediente quando lhe dão ordens
assim, nesse tom, concordou:
- Tá bom!
E começou a fazer um levantamento de pesquisa que
posteriormente foi publicado em um livro com o nome Nosso
Vale, seu Folclore Beira Rio , com histórias das manifestações
folclóricas, religiosas, populares de Remanso, Sento Sé, Pilão
Arcado, Casa Nova, Petrolina, Santa Maria, Juazeiro, Maçaroca.
...
72
e n tre p a p é is e vo ze s

Maria Franca Pires nasceu em Remanso, ao dia 5 de novem-


bro de 1921. A casa onde nasceu era localizada na Fazenda Salinas
e foi construída por seu bisavô materno - José Dezidério da Silva,
Major da Guarda Nacional e fazendeiro - por volta do ano de
1886.
As portas foram compradas em Remanso e trazidas para
Salinas em burros. A madeira veio de Pilão Arcado em carro de
boi: os caibros de pau d arco, as ripas de umburana de abelha e as
linhas de aroeira. As paredes externas tinham cerca de 60 cm de
largura. Os pedreiros vieram de São Raimundo - Piauí. O
marceneiro foi o Sr. Antônio Lúcio, do lugarejo Maravilha,
distante cerca de 10 quilômetros de Salinas.
Seu Dezidério gastara na construção 5 contos de réis,
dinheiro adquirido vendendo gado em Feira de Santana a 20 mil
réis cada boi. O bisavô de Maria negociava também com tecidos
comprados em Feira de Santana.
...
Toda essa descrição minuciosa da casa onde Maria nasceu,
ela própria deixou registrada, escrita a lápis apressadamente, numa
página de um de seus cadernos. Sob o título Minha Casa , este
pedaço de sua história de vida - que inclusive acontecera num
período anterior ao seu próprio nascimento - venceu o tempo e,
chegando até Maria, através de suas pesquisas e andanças, pôde
chegar até o presente momento.
Tivesse Maria vivido na antiga Remanso e a memória da
cidade, talvez, estaria agora resguardada entre seus papéis. Mas,
distante de seu berço, ela se pôs a guardar Juazeiro.
Ao tempo em que se apaixonava pela cidade de sol de ouro
e caatingas ressequidas, rio de prata e carrancas coloridas - como
reza o hino do centenário de Juazeiro - Maria sentia de longe a
agonia de Remanso, sua terra natal, ameaçada de morte pelas á-
guas do lago artificial de Sobradinho, que se projetava aos poucos,
para inundar as cidades ribeirinhas.
Vindo muito cedo morar em Juazeiro, aos ligeiros dois anos
de idade, Maria sempre voltava, ainda criança, para aquela cidade,
para a sua casa na fazenda onde nasceu, em viagens de vapor, sob
73
M AR IA FR AN CA P IR ES

o cuidado e carinho dos pais Clodoaldo Pires Costa e Carlota


Angélica Pires.
- Tive uma infância tranqüila. Vim para Juazeiro, mas as
viagens à fazenda onde nasci eram constantes, e lá vivi os dias
mais felizes da minha infância. Nada pode ser comparado com a
liberdade e a proteção da casa dos avós. Quando eu já era moça
né, meu pai costumava me levar até Pirapora e de volta eu saltava
em Remanso, pra ali passar o resto das minhas férias com os
meus avós maternos.
A definição dos jeitos característicos do povo de um e do
outro lugar - Remanso e Juazeiro - foi sacramentada pela sabedoria
popular de uma toada cantada por remeiros e barqueiros que, em
versos conhecidos por toda a extensão das beiras do Rio São
Francisco, reza:
Juazeiro da lordeza
Petrolina dos missais
Santana dos Cascais
Casa Nova da carestia
Sento Sé da nobreza
Remanso da valentia
Pilão Arcado da desgraça
Xiquexique dos Bundão
Icatu cachaça podre
Barra só dá ladrão
Morporá casa de palha
Bom Jardim da rica flor
Urubu da Santa Cruz
Triste do povo da Lapa
Se não fosse o bom Jesus
Carinhanha é bonitinha
Malhada também é
Passa Manga e Morrinho
Paga imposto em Jacaré
Januária carreira grande
Corrente meia carreira
Bate o prego em Santa Rita
Pra cagar mole em Barreira
São Francisco da Arrelia
São Romão das feiticeiras
Extrema dos Cabeludo
Pirapora é da poeira .

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e n tre p a p é is e vo ze s

A antiga cidade de Remanso, desde meados de 1975 está


inundada nas profundezas do Velho Chico. Mas o local onde foi
construída a casa da família de Maria, por localizar-se distante
do rio, não foi atingido, e a construção permanece lá. Fora
preservada não só a descrição minuciosa da casa, mas a própria
estrutura física daquele lugar que Maria, ao escrever sobre,
guardou para que não se perdesse.
E do encontro, principalmente, com as duas cidades - Re-
manso e Juazeiro - Maria Franca Pires construíra sua história de
vida e modelara-se como pessoa. A valentia, pois, de uma cidade
e a lordeza de outra, um rio que por certo as une, e as separa,
imbricaram-se nas dobras do dentro e do fora que constituíram
a Maria Franca Pires lembrada por olhos lacrimejantes, vozes
exaltadas e gargalhadas desconcertantes.

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Maria e ra caprich o s am e n te lim pa e ch e iro s a.


Es tava s e m p re be m ve s tid a! D a ro u p a d o trabalh o à d a
fe s ta, e ra-lh e im p e cáve l o bo m go s to , o cu id ad o e m
co m bin ar e s te ticam e n te as co re s , o s te cid o s e ad o rn o s .
Marta Luz

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An d ava s e m pre d e s alto ! Ad o rava


bato m e co lare s d e bo lo ta! Vivia
s e m pre co m o cabe lo arru m ad o ...
Mu ito altiva! Pare cia u m a m u lh e r
im batíve l e d izia s e m pre : - Min h a
vale n tia é d e Re m an s o ! .
28 Odomaria Macedo

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Um caso de am or...

Chego mais uma vez ao Campus III, da Universidade do


Estado da Bahia. Venho em passos apressados, fugindo de um
sol escaldante, que se intensifica pela escassa arborização das
ruas. Passo pela guarita do Departamento de Ciências Humanas
para pegar a chave da sala do projeto O arquivo da profª Maria Franca
Pires: memória e história cultural em pesquisa na região de Juazeiro BA .
Paro um pouco diante do espelho, no banheiro feminino.
Ajeito os cabelos bagunçados e sigo na direção do Departamento
de Tecnologia e Ciências Sociais, rumo ao Núcleo de Pesquisa e
Extensão NUPE, do Departamento de Ciências Humanas. Passo
pela casa antiga, que agora abriga os mestrados do curso de
Agronomia; pela biblioteca, nem sempre silenciosa; pela cantina,
sempre movimentada e entro, enfim, no prédio espremido, ali,
num canto: embaixo do auditório, em frente àquela cantina, ao
lado de um corredor de salas de aula, alojado no vão de uma
escada.
Na entrada, passo os olhos rapidamente por um mural, ali
fixado, para me inteirar dos acontecimentos. Sigo pela direita e
chego à sala do projeto. Abro a porta azul da sala onde tenho ido
tantas vezes para me debruçar, de novo, sobre os vestígios de um
tempo, guardados em caixas, escritos em livros, por entre
anotações em cadernos, dentro de pastas, em fotos, jornais, revistas,
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e n tre p a p é is e vo ze s

cartas, cartazes. É o arquivo de uma pessoa singular. Ela está ali:


Maria Franca Pires.
Olho sua figura lembrada em três fotos fixadas no mural.
Às vezes receptiva e acolhedora, sua imagem me conforta; outras
vezes, seu olhar parece vigiar minhas investigações, condenar mi-
nhas inferências. De fato, sua presença é constante em tudo; seus
motivos, às vezes, claros; sua importância na história e cultura da
cidade de Juazeiro, para mim, incontestável.
Seus cadernos - manuscritos em letras, às vezes desenhadas,
às vezes garranchadas pela pressa - são pequenos, porém volu-
mosos. No silêncio da sala de pesquisa, mais uma vez, eles me
falam ao pé do ouvido sobre várias Marias . Ao seguir os rastros
da pessoa que percebo deixados ali: vejo uma professora, capri-
chosa e exigente; vejo uma pesquisadora, dedicada e incansável;
vejo uma mãe, atenciosa e solicita; vejo uma aluna, disciplinada
e organizada; vejo uma amiga, solidária e sincera; vejo uma
administradora, justa e competente; vejo uma investigadora,
curiosa e persistente; vejo uma líder, disposta e atuante. Vejo
uma mulher, que tendo sido amorosa, delicada e vaidosa,
mostrava-se tão feminina - bem ao gosto do seu tempo - mas,
que, sendo, também, autônoma, voluntariosa e disposta,
mostrava-se, valentemente, de um modo tão diferente do padrão
de mulher àquele tempo. Esta é a pessoa que vejo, entre outras,
muitas outras, que talvez outros olhares, que não o meu olhar já
viciado e astigmático, possam delinear.
Ao iniciar nesse trabalho, perguntava-me: - Será pra quê
Maria guardara tudo isso? Qual era sua intenção? Quando come-
çou a juntar essas coisas? Por que guardava objetos tão incomuns,
como sacos plásticos e embalagens, até? E esse sobrenome
Pires ? Ai ai ai... Só falta descobrir que somos parentes!
Agora, penso que, se nem ela mesma soube dizer por quê
passou sua vida a guardar Juazeiro - como certa vez revelou a um
jornalista curioso - eu não posso afirmar que foi por isto ou
aquilo. Mas, diante do que me foi possível decifrar da pessoa que
eu conheci, arrisco-me a dizer que isso ocorreu para ela como

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um presente de filha para Juazeiro, a cidade que a acolhera como


mãe. Um presente de Dia das Mães.
A propósito do nosso sobrenome em comum, não descobri,
ainda, se tenho ou não algum parentesco com Maria...
Em relato autobiográfico guardado entre os papéis do seu
arquivo, uma das poucas coisas que se referem tão diretamente à
Maria, ela confessou nas últimas linhas.
- Não consegui formar uma família, mas não acredito em
solidão. A saudade dos que já partiram para a eternidade e o
amor que dedico aos que ainda estão perto de mim são suficientes
para encher as horas, além da dedicação ao meu trabalho, cujo
objetivo é ajudar Juazeiro, esta terra querida, que tem me abrigado
há tantos anos! Apesar dos pesares, confio nos jovens e, ainda,
espero ver Juazeiro uma cidade de cultura, uma cidade equilibrada,
uma cidade onde ninguém seja uma célula morta, todos traba-
lhando, dando à boa terra o que sabe, o que tem condição de
fazer!
Maria queria muito viver para chegar a ver Juazeiro uma
terra de cultura , mas não se intimidava com a morte eminente.
Durante quase um ano, lutou contra um câncer no pulmão. Não
queria que ninguém sentisse pena de seu estado grave de saúde,
por isso, continuava a se arrumar e portar-se firme como outrora.
- A doença dela ela seriíssima, mas ela tinha GANA de viver!
Ela num falava uma hora - Vou morrer! Num to passando bem! .
Não! Aquela falta de ar, aquela coisa toda, mas toda hora levantava
a cabeça - lembra a amiga Lourdes Duarte.
Num trecho da oração fúnebre pronunciada pelo padre José
Gilberto de Luna, também amigo de Maria Pires, ficou registrada
a sua força e amor pela vida.
O que perdemos com o seu desaparecimento, não foi apenas uma
mulher culta e operosa, não foi apenas uma animadora da vida de nossa
comunidade, foi também e, sobretudo, um exemplo de como se pode morrer
sem se deixar vencer pela morte, um exemplo de como se pode vi-ver sem
malbaratar um só instante da vida .
- Eu me lembro de uma piada dela... Num sei quem foi que
chegou e disse - Ah, eu pensei que tivesse acontecido alguma
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e n tre p a p é is e vo ze s

coisa e você tivesse morrido . E Maria com seu ar desconcertante,


disse: - E o senhor acha que quando eu morrer só vai aquilo o
senhor viu? Aha! Eu quero é que meu enterro ABALE a cidade! .
E foi mesmo! Foi, assim, MULTIDÃO! Sabe o que é MUL-
TIDÃO! comenta Lourdes, ao se recordar do modo despojado
como a amiga Maria fa-lava da própria morte.
...
Soprava um vento seco e quente na manhã do dia cinco de
agosto naquele ano de 1988. Uma multidão de pessoas de todas
as idades, semblantes tristes, aglomerava-se em torno da casa-
museu da esquina, ocupando a avenida larga, para onde davam
as janelas, e também a travessa estreita, para onde dava a porta de
entrada da residência.
Era a despedida de Maria Franca Pires.
A matéria de capa do Jornal de Juazeiro de 06 a 08 de agosto
do ano de 1988 anunciara à população: Morre Maria Franca
Pires - Baluarte da nossa história .
Hoje, mais de 20 anos após a morte da não juazeirense
mais juazeirense que se conhecera naquele tempo, encontrei a
crônica de Joseph Bandeira, poeta e amigo de Maria, que, enlutado
pela dor de sua perda, registrou aquele momento, escrevendo:
O caso de amor de Maria Pires e Juazeiro está terminado .
Ouso, pois, contradizê-lo:
O caso de amor de Maria Pires e Juazeiro, caro poeta, não
está terminado.

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AGR AD ECIM EN TOS

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O a rq u iv o d a
p rofe s s ora Ma ria Fra n ca Pire s : m e m ória e h is tória
cu lt u ra l e m p e s qu is a n a re giã o d e J u a z e iro-B a

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e n tre p a p é is e vo ze s

BIBLIOGRAFIA

Antologia: 80 anos do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora.

BANDEIRA, Joseph. Juazeiro Amor Paixão. Juazeiro, 1993.

CUNHA, João Fernandes da. Memória histórica de Juazeiro.

FIGUEIRÊDO, Maria Beatriz Braga. Viajando com o PAS pela história de


Remanso. Juazeiro: UNEB / DCH III, 2004.

GONÇALVES, Esmeraldo Lopes. OPARA: formação histórica e social do


Submédio São Francisco. Juazeiro: [s.e.], 1997.

GUEIROS, José Alberto. Juracy Magalhães - O último tenente. Rio de Janeiro:


Record, 1996.

LINS, Wilson. O médio São Francisco, uma sociedade de pastores guerreiros.


São Paulo: Nacional, 1983.

LOPES, Eliane Marta Teixeira; FILHO FARIA, Luciano Mendes de; VEIGA,
Cynthia Greive (Orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2000. 2ª edição. 608p.

NAGLE, Jorge. Educação e sociedade na primeira República 2 ed. Rio de


Janeiro: DP&A, 2001.

RODRIGUES, José Roberto Gomes. Desenvolvimento sócio-cultural e


educação em Juazeiro/Ba (1832-1963). Atas do VII Congresso Lusobrasileiro
de História da Educação. Porto: Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação (Universidade do Porto), 2008.

SANTANA, Andréia. Bardo esquecido / Dor simbolista. Disponível em: <http//:


www.correiodabahia.com.br> Acesso em: agosto de 2008.

TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. São Paulo: Editora UNESP:
Salvador-BA: EDUFBA, 2001.

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Jornais

Navegando no Vale Suplemento Especial do Jornal de Juazeiro Juazeiro, 26


de outubro de 1985 Seção O Destaque da Semana p. 3.

O Berro d Água Ano I Nº 08 Juazeiro Bahia 20/08 a 20/09 de 1987 Matéria


Prefeituráveis: a lista do Berro p. 09.

Juazeiro Suplemento Especial de A Tarde Salvador, 15 de julho de 1977


Matéria Turismo organizado é meta básica p. 20.

A Tarde Municípios Seção Cidades Salvador, 10 de outubro de 1986 -


Matéria Criticada demolição de prédio para ser construído hospital p. 6.

Jornal de Juazeiro Capa Ano XV nº 978 Juazeiro 11/13 de junho de 1988


Matéria Mª Franca Pires Patrimônio Cultural de Juazeiro .

Jornal de Juazeiro Capa Ano XV nº 999 Juazeiro 06/08 de agosto de 1988


Matéria Morre Maria Franca Pires Baluarte da nossa História .

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Revistas

Fatos do Vale Setembro / Outubro de 1985 Nº 2 Matéria Juazeiro terá


Instituto Geográfico Histórico p. 22 e 23.

Fatos do Vale Março / Agosto de 1987 Nº 10 Seção Personalidades de


Juazeiro p. 37.

A Capital 1945 Matéria Está lançada na Bahia a semente do SENAI .

Juazeiro Banco do Nordeste do Brasil.

Juazeiro ano 100: terra e povo num cântico de amor Revista comemorativa do
Centenário da Cidade.

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Entrevistados

Antonila da França Cardoso


Antônio Carlos Coelho de Assis
Dinorah Albernaz Pereira e Melo Silva
Expedito Gomes de Almeida
Maria Emília Duarte Arapiraca
Maria de Lourdes Duarte
Maria Perpétua de Almeida Santos
Marta Luz
Odomaria Rosa Bandeira Macedo
Thomázia Bonfim dos Santos Almeida

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Créditos das Fotografias

1, 2, 4, 5, 6, 7, 15, 16, 17, 18, 19, 25 - Acervo do arquivo de Maria Franca


Pires.

3 - Foto: Euvaldo Macedo. Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

8, 10 - Revista Fatos do Vale - Setembro / outubro de 1985 - Nº 2 - Matéria


Juazeiro terá Instituto Geográfico Histórico - p. 22 e 23. Acervo do Arquivo
de Maria Franca Pires.

9 - Acervo pessoal de Odomaria Macedo.

13 - Revista A Capital - 1945 - Matéria Está lançada na Bahia a semente do


SENAI . Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

11, 12, 14, 22, 23, 24 - Acervo pessoal de Maria Tereza Dewilson Oliveira.

26 - Juazeiro - Suplemento Especial do Jornal A Tarde - Salvador, 15 de julho


de 1977 - Matéria Turismo organizado é meta básica - p. 20. Acervo do
Arquivo de Maria Franca Pires.

27 - Jornal O Berro D Água 20/10 a 20/11 de 1987 - Entrevista Estórias


Juazeirenses - Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

28 - Jornal do Brasil - Caderno O turismo - 17/12/1986 - Matéria Passeio de


Gaiola pelo Velho Chico - Acervo do Arquivo de Maria Franca Pires.

29, 30 - Jornal de Juazeiro - Capa - Ano XV - nº 999 - Juazeiro 06/08 de agosto


de 1988 - Matéria Morre Maria Franca Pires - Baluarte da nossa História .

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Os c a d e r n o s d e M a r i a

CADERNO Nº 01 CADERNO Nº 02 CADERNO Nº 03 CADERNO Nº 04

CADERNO Nº 5 CADERNO Nº 06 CADERNO Nº 07 CADERNO Nº 08

CADERNO Nº 09 CADERNO Nº 10 CADERNO Nº 11 CADERNO Nº 12

CADERNO Nº 13 CADERNO Nº 14 CADERNO Nº 15 CADERNO Nº 16

90
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CADERNO Nº 17 CADERNO Nº 18 CADERNO Nº 19 CADERNO Nº 20

CADERNO Nº 21 CADERNO Nº 22 CADERNO Nº 23 CADERNO Nº 24

CADERNO Nº 25 CADERNO Nº 26 CADERNO Nº 27

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A Autora

Juliana Pires Machado chegou à cidade de Juazeiro em janeiro de


2005. Veio de mudança de sua terra natal - Irecê-BA - para cursar
a faculdade de Jornalismo, um sonho de adolescência. Trouxe
consigo a mãe segurança necessária, o irmão sem o qual a mãe
não viria, e sua cadela de estimação para ter de quem cuidar.
Trouxe, ainda, todos os seus poucos bens materiais, muitas
bugigangas e bastantes lembranças.
Mesmo assim, tinha a impressão de que faltava algo...
Os espaços pareciam vazios e sem significado.
Na faculdade, percebeu que não era a única estrangeira a chegar
em uma cidade desconhecida, sem referências, sem porto. Buscando
conhecer seu novo lar, passou a fazer parte, ainda no segundo
período do curso, de um projeto de pesquisa e extensão intitulado
O arquivo da professora Maria Franca Pires: memória e história
cultural em pesquisa na região de Juazeiro-BA. Assim, Juliana
pôde unir, nesse produto editorial que apresentou como Trabalho
de Conclusão do Curso de Jornalismo Multimeios, a teoria e a
prática, o ensino à pesquisa e à extensão universitária.
A paixão pelas palavras gravadas no papel, o compromisso com a
apuração rigorosa, o respeito pelas fontes, o prazer de contar
uma história e a experimentação de uma linguagem literária, ficam
como lições do Jornalismo que se quer seguir.

Contato: jhulypires@hotmail.com

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