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A sua obra é a manifestação de uma personalidade bizarra cuja força vital o faz
romper com a história e lançar-se sozinho contra o mundo. O seu apelo à acção directa
contrasta com o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e a pleonexia do
intelectual de Erasmo e a ironia jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a
força dramática da vontade luterana de violentar o juízo da história, tais autores fazem
figuras de pobres revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode
pensar à maneira dos liberais do séc XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande
indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos de Lutero
costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento mas
esquecem a degradação das tradições por acção de instituições e pessoas que já quase
só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se houver
condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição degradara-se a tal
ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia desligada de qualquer
corpo místico. O indivíduo estava disponível para a violência renovadora. Entre os
aspectos mais negativos da acção de Lutero conta-se a irresponsabilidade do apelo à
autonomia de interpretação das escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe intuição
intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta deficiência que o cegava
na teoria, robustecia a capacidade de agir; não entendia os enormes obstáculos iria
criar. No aspecto positivo, era um observador excepcional e um talento administrativo.
Conhecia os males do seu povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a
diminuir as suas dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia
perfeitamente o animal em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha
todos os requisitos para ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas
passou à história convencional como o reformador da religião cristã.
Eric Voegelin
in História das Ideias Políticas, vol. III : Idade Moderna, De Erasmo a Nietzsche,
tradução e abreviação de Mendo Castro Henriques, Lisboa, Ática, 1996