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Lutero e o pensamento político da Reforma protestante.

A obra de Lutero Von weltlicher Oberkeit wie weit man


ihr Gehorsam schuldig sei de 1523 é, talvez, a sua
mais detalhada exposição das ideias políticas e que,
como o título indica, lida com a autoridade temporal.
Em alguns territórios alemães (Meissen e Baviera por
exemplo) fora proibida a tradução do Novo
Testamento e as pessoas intimadas a entregar os
exemplares que possuíam. Nela o autor aconselha os
seus fiéis a desobedecer às leis e a sofrer como os
mártires. Para se justificar expõe a doutrina da
instituição divina da autoridade temporal e a obrigação
do cristão em desobedecer civilmente se a autoridade
prevaricasse. A argumentação parte de Romanos,13,1
e segs., epístola endereçada a uma comunidade
romano-cristã, vivendo sob autoridades pagãs, e a que
um pouco de ordem nas suas más inclinações e
atitudes apenas faria bem. No Apelo de 1520,
considerara, em continuidade com a tradição
medieval, que a função governamental se tornara uma
das funções carismáticas do corpo místico; o estado cristão coincidia com a nação; a
nobreza alemã podia ser chamada para levar a cabo a reforma nacional-cristã. As
ideias de 1520 eram ainda reforma. Três anos depois tudo mudara. A individualização
da experiência religiosa destruíra o equilíbrio entre os poderes carismáticos temporal e
espiritual. O governante é um não-cristão que persegue os bons cristãos luteranos.
Deve invocar-se a nova autoridade espiritual contra o poder temporal que se tornou
não-cristão. Os fiéis devem seguir a Bíblia contra a Igreja e seus concílios. O poder
espiritual tornara-se o Anticristo, o temporal era tirânico, o indivíduo estava entregue a
si próprio. Situação insuportável? Mas levou mais de 100 anos a ser estabilizada. Neste
sentido, 1523 é o fim da Idade Média.
Ao destruir-se o equilíbrio entre autoridades institucionais espiritual e temporal, todos
os homens pertencem quer ao Reich Gottes (os fiéis) quer ao Reich der Welt cuja
espada pune os actos malvados. Os cristãos não carecem da espada porque vivem em
paz; mas devem respeitar o poder da espada porque é útil ao seu próximo. E assim é
possível satisfazer dois senhorios, o reino de Deus e o reino do Mundo. Infelizmente
não é fácil satisfazer a dois senhores. A civitas Dei e a civitas terrena de Agostinho não
são reinos no tempo. Na história concreta existe Igreja e império. A Igreja representa
a Civitas Dei mas boa parte dos seus membros pertencem à civitas terrena. A salvação
é um dom divino imperscrutável. Lutero regressa ao significado de Tyconius. A ideia de
Igreja é destruída pela doutrina que só a fé salva. Ser cristão é comprar a Bíblia de
Lutero e seguir a consciência. A civitas dei torna-se demasiado fácil e visível. Ora a
consciência de ser bom Cristão é muito fácil de surgir. Se aparece alguém que se
considera bom cristão e que só pratica iniquidades que se lhe pode responder ? E se
for um movimento de massas que pedem a abolição da autoridade temporal porque o
reino de deus já chegou ? Poderiam sobrevir abusos da liberdade evangélica. A solução
era remeter os abusadores para o redil do governo temporal. Mas se o governo
temporal age mal ? Se interfere com os cristãos e os proíbe de ler as Bíblias que Lutero
traduzira ? Deverá o cristão então resistir ? Em resumo, não há solução.

Quando a ordem institucional destruída fica à mercê do decisisonismo da consciência


individual é a guerra de todos contra todos. A nova ordem terá que ser imposta às
consciências rebeldes. Esta é origem da razão de estado, aceite pelas Igrejas. Mas de
momento é só o princípio. A liberdade evangélica significava, por exemplo, o que vinha
no III dos Doze Artigos dos servos camponeses revoltados (1525) um documento de
inegável grandeza humana: «Tem sido costume até agora que os homens nos
possuam como sua propriedade; e isto é lamentável vendo que Cristo nos redimiu a
todos com o precioso derramamento do seu sangue, aos humildes bem como aos
grandes, sem excepção de ninguém. Portanto é conforme às Escrituras que sejamos
livres e assim o queremos ser». Que respondeu Lutero ? «Isto é tornar a liberdade
cristã uma realidade totalmente carnal. Não tiveram também escravos Abraão e outros
patriarcas ?.Este artigo tornaria todos os homens iguais e converteria o reino espiritual
de Cristo num reino mundano e externo; e isso é impossível porque um reino mundano
não pode ficar em pé a menos que nele exista a desigualdade, de modo a que uns
sejam livres, outros presos, uns senhores e outros súbditos». Os camponeses não o
escutaram, seguiram outra interpretação das Escrituras e o seu coração tomou a
decisão da revolução social violenta. Em 1523 aconselhara no escrito Von weltlicher
Oberkeit: «A heresia é um assunto espiritual que não pode ser cortado com o ferro,
queimado com o fogo ou afogado em água». Em 1525 pediu aos nobres e aos
cavaleiros para massacrar os heréticos. Os cavaleiros não se fizeram rogados. Foi o fim
do sonho da Reforma através da palavra. Lutero viveu ainda 20 anos. Mas nada mais
tinha para dizer. Em cerca de oito anos criara ideias decisivas para o decurso da
história da consciência moderna e perante as quais o cisma Protestante é quase
secundário.

Destruíra o núcleo da cultura espiritual cristã ao atacar a doutrina da fides caritate


formata. Reduzira a fé a um acto de confiança ao retirar-lhe a intimidade da graça,
sempre exposta às tentações do orgulho e da soberba. A consciência empírica da
justificação pela fé cria uma ruptura na natureza humana.

Destruíra a cultura intelectual ocidental ao atacar a Escolástica aristotélica. Se o


esplendor medieval foi escurecido pelas lentes torpes dos modernos, parte da
responsabilidade deve-se a Lutero. A sua atitude anti-filosófica criou o padrão depois
agravado por sucessivas gerações de intelectuais Iluministas, positivistas, marxistas e
liberais.

A justificação sola fide arruina o equilíbrio da existência humana. A ideia do paraíso de


amor industrioso transferiu a ênfase da vita contemplativa para a ideia de realização
humana através de um trabalho e de um serviço útil. O homem confia em Deus;
depois vai à vida. No nosso tempo, esta atrofia da cultura intelectual e espiritual
degenera no pragmatismo do sucesso.

Fala-se de Lutero como de alguém que possuía as virtudes e os vícios típicos do


alemão. Mas se pensarmos, para só referir teólogos, em Alberto Magno, Eckhardt,
Tauler, Nicolau de Cusa e o anónimo de Frankfurt, então ele nada tinha de germânico.
Criou certamente um tipo humano: o revoltado voluntarista que deseja impor a sua
razão como o centro da ordem institucional.

A sua obra é a manifestação de uma personalidade bizarra cuja força vital o faz
romper com a história e lançar-se sozinho contra o mundo. O seu apelo à acção directa
contrasta com o contemptus vulgi de Maquiavel, o ascetismo e a pleonexia do
intelectual de Erasmo e a ironia jocosa e amargura diplomática de Moro. Perante a
força dramática da vontade luterana de violentar o juízo da história, tais autores fazem
figuras de pobres revoltados. Força, porém, não é sinónimo de grandeza e não se pode
pensar à maneira dos liberais do séc XIX que o sucesso seja sinal de valor. O grande
indivíduo é um sintoma da ruptura da civilização. Por outro lado, os críticos de Lutero
costumam ver a desordem espiritual e as carências do seu temperamento mas
esquecem a degradação das tradições por acção de instituições e pessoas que já quase
só representavam os defeitos. Ora as revoluções só se desencadeiam se houver
condições de resposta das massas. No início da Reforma, a tradição degradara-se a tal
ponto que um número cada vez maior de pessoas se sentia desligada de qualquer
corpo místico. O indivíduo estava disponível para a violência renovadora. Entre os
aspectos mais negativos da acção de Lutero conta-se a irresponsabilidade do apelo à
autonomia de interpretação das escrituras e ao homo spiritualis. Faltava-lhe intuição
intelectual e imaginação para ver as consequências. Mas esta deficiência que o cegava
na teoria, robustecia a capacidade de agir; não entendia os enormes obstáculos iria
criar. No aspecto positivo, era um observador excepcional e um talento administrativo.
Conhecia os males do seu povo; tinha a moralidade e o bom senso de os aconselhar a
diminuir as suas dependências; estimava os seus compatriotas: e conhecia
perfeitamente o animal em que o homem se transforma se não for vigiado. Tinha
todos os requisitos para ser um bom ministro num estado social-democrata. Mas
passou à história convencional como o reformador da religião cristã.
Eric Voegelin

in História das Ideias Políticas, vol. III : Idade Moderna, De Erasmo a Nietzsche,
tradução e abreviação de Mendo Castro Henriques, Lisboa, Ática, 1996

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