Você está na página 1de 5

Literatura e alimentação

Dr. Albano Figueiredo

1
Carlos Xavier
A Origem das mais emblemáticas iguarias portuguesas
Camilo e a Cozinha Tradicional Portuguesa oitocentista

(texto sobre a intervenção de Gonçalo Reis Torgal, in Actas do Congresso de Estudos


Camilianos, 1994)

A História da Alimentação Humana é revelada pela evolução sociocultural e por Gonçalo


Reis Torgal leitor da obra «Subsídios Camilianos para o Estudo Etno-Sociológico e
Linguístico da Cozinha Tradicional Portuguesa A Mesa no Século XIX» de Camilo
Castelo Branco, na qual procurou referências à gastronomia e hábitos alimentares dos
portugueses do século XIX.

O autor começa por alertar-nos para o facto de Camilo Castelo Branco não ser um
historiador, reconhecendo, todavia, que na sua obra literária existe uma longa série de
referências culturais, destacando-nos as gastronómicas que nos ajudam a compreender a
sociedade sua contemporânea. A sua pesquisa incidiu sobretudo em obras como Amor de
Salvação, contos das Novelas do Minho, como “O Cego de Landim”, Coração, Cabeça
e Estômago, A Brasileira de Prazins ou ainda nos Doze Casamentos Felizes.

Torgal chama desde logo a nossa atenção para as diferenças (quanto à hora do dia e à sua
composição) que as refeições tinham na época (almoço, jantar e ceia). Por exemplo, o
almoço tomava-se às sete horas da manhã na casa de Tomásia (Coração, cabeça e
estômago) e incluía sopa de ovos, salpicão, batatas ensopadas com toucinho e toucinho
cozido com batatas, adornados por uma colher de requeijão e tudo bem regado com vinho
fresco. Depois, na sua descrição, diz-nos que as pessoas gostavam de comer e muito. A
carne era preferida ao peixe, que era mais frequente como petisco ou merenda. Peixes do
rio, como as trutas e escalos eram comidos frequentemente fritos ou em escabeche. O
bacalhau era menos habitual que hoje em dia, e era conotado como alimento dos pobres.
Também havia linguados fritos ou “recheados au gratin”, em casa do Barão do Rabaçal
(A Corja), assim como sardinhas em escabeche, pescada cozida com cebolas, sável
assado, taínha, enguias e salmão.

2
Carlos Xavier
Em relação ao arroz de marisco, Torgal esclarece que, como dizia Camilo, este prato “já
fazia parte da tradição gastronómica nacional”, ainda antes de virem os “retornados” do
Ultramar invadi-lo de piri-piri. Também serviam já camarão com bacalhau e ovos e havia
pastéis e maionese de camarão.

Dada a economia de subsistência, ao nível da carne destacavam-se as aves de capoeira, o


porco (criado em cortelhos) e os animais de pastagem (ovelhas, cabritos e vitelas). Daí os
diversos pratos de galinha (galinha recheada) e os ovos fritos (com salpicão) ou a
acompanhar presunto; o leitão, a unha de porco, o capão com “arroz açafroado”, os bifes
de lombo de cebolada, peru em cabidela, chispe e orelha de porco, pernas de vitela ou
vitela assada, o cabrito (que era usado como suborno) e o anho assado. Não deixa,
igualmente, de lembrar as famosas Tripas.

No século XIX houve o “afrancesamento da gastronomia portuguesa”, notando-se na


terminologia dos pratos: “bacalhau recheado à Richelieu”, “empadas au gratin”, “feijão
branco à la maître du hotel”, “coulbach de frangos”, “blanquete de galinha à l’escarte
trufés”, o “lombo de vaca à la macedoine”. Nas sobremesas também se regista essa
influência francesa, coo exemplo podemos referir o “gateau ryal” ou as “omolettes souflés
à la vanille”.

O autor faz também um contraste entre a província e a cidade, nomeadamente sobre a


capital, para valorizar manjares deliciosos e o que se comia na província, como a broa, as
batatas cozidas com casca, o caldo de leite, as tripas…etc. Tudo, aparentemente, e
comumente definido à época como detestável mas exaltado pelo autor. A propósito das
“tripas” o autor faz uma incursão pela História, referindo-se às lutas liberais e à falta de
alimento na cidade Invicta (o Porto). Esclarecendo ainda (citando uma afirmação de
Camilo) que a origem das tripas não pode ser datada dessa altura.

O autor conclui a sua apresentação falando das sobremesas que faziam crescer água na
boca, dando primazia às seguintes: Cavacas de Romaria e Requeijão; Pastéis de
Guimarães e Forminhas de Braga; Castanhas de Ovos e Toucinho-do-céu; Aletria e
Regueifa Doce; Caldo de Leite e Talhadas de Abóbora; Creme, Doce de Calda e
Marmelada; Ovos em Fio; Castanhas e Doce de Ginja. Ainda refere as frutas, os
rebuçados de Avenca, as Queijada da Sapa, o Queijo Flamengo, as Rabanadas e os
Mexidos, entre outros.

3
Carlos Xavier
Em suma, é dito que um estômago bem alimentado em qualidade e quantidade “produz
um génio”. Faz ainda referência à ciência e arte da cozinha, adiantando que já nessa altura
estávamos perante bons gastrónomos. Convenhamos, bons de boca, que faziam por
salientar as boas e admiráveis gargantas gustativas.

Ceia! Que é isso nos nossos dias? Bom, para estes personagens não era só ceia, era muito
mais que isso; pequeno-almoço, almoço, lanche, jantar e ceia. Continuamos pois perante
estômagos bem regulados e cheios de energia e com muito génio, parecendo que o mundo
se acabava ou terminava naqueles dias da narrativa da história.

Existe a tentativa da insinuação aos lisboetas por estes presumivelmente se alimentarem


mal, com chá ao almoço, por exemplo. Para Camilo, era só para dores de barriga! Não
fazia sentido, na sua ótica, tomar chá. Adianta ainda o nosso interlocutor que nunca esteve
doente e que se dava bem com as comidas ditas fortes.

O autor faz menção à mulher do Porto. Segundo ele, não era elegante, comia bem e bebia
o seu Vinho do Porto. Todavia era perfeita, bela, porque a gordura na época era formusura
e os portugueses alimentavam-se essencialmente com carnes caseiras ou do campo e
raramente de peixe. Lá diz o velho ditado, peixe não puxa carroça!

Retomando um assunto supra referido, a dada altura começamos a converter-nos à


“cuisine française”. Mas o porquê disto? Convenhamos, pela bela apresentação da
gastronomia, pelos salões esbeltos e o puder do dinheiro, sobretudo. Havia gostos para
tudo! Mas o que se entende é que as boas petiscadas continuavam a decorrer nas adegas,
onde a comida se apresentava na mesa em travessa de barro, as saladas nos alguidares (de
onde todos se serviam) e tomavam o vinho saído do pipo. Era igualmente normal o
“pichel” (caneca ir vazia à torneira) homens e mulheres gostavam do vinho a sair da pipa
aos socalcos.

As melhores histórias é sobre mariscos, linguado e trutas. Havia igualmente referências


aos bons gratinados, não esquecendo o peixe frito, este já com enorme prestígio no Porto,
entre as famílias ditas abastadas. Tudo servia de pretexto para a patuscada e para o bom
vinho, com romance à mistura, pois claro! Era comum dizer que se afogou em meia
garrafa de vinho! Era o mesmo que dizer que desgostou as sardinhas com meia garrafa de
vinho e de seguida dormiu a sesta.

4
Carlos Xavier
Dizer-se a uma senhora se se lembrava de determinada tarde com umas bela iguarias,
seria uma injúria para a dita “Baronesa”, embora ela reconhecesse saudades dessa época
de liberdade. Contudo, o importante era estar debaixo de uma parreira e alimentar o
estômago, com um belo peixe (de nome Sável, quase sempre) onde todos trabalhavam
para o efeito com as tarefas repartidas, cada um na sua especialidade, porque o pichel
“caneca esperava para matar a sede a seis ávidas gargantas do melhor produto vitivinícola,
nem o guardanapo era necessário, existindo a manga ou outro adereço do vestuário para
o efeito”.

Arroz de marisco! Pois claro, uma bela iguaria reconhecida nacionalmente e, porque não,
mundialmente. Como hoteleiro não considero importante a sua origem. Acho-a uma
excelente iguaria desde que bem preparada, e, já agora, esta coisa de retornados que me
deixa mal disposto é que eu também o sou, com orgulho! Tudo o que é arroz de marisco,
berbigões, polvo, de sardinha, de carqueja, são excelentes iguarias.

A origem desta deliciosa iguaria que dá pelo nome “Arroz de Marisco” teve origem,
segundo testemunhos, na praia da Vieira na Marinha Grande. Passou logo a uma iguaria
“nossa”! Que não restem dúvidas, pois foi vencedor na sua categoria no concurso das
Sete Maravilhas da Gastronomia. Genuinamente português e muito bom!

No que diz respeito às Tripas à Moda do Porto, tiveram origem na cidade que lhe dá o
nome e entraram em concurso das Sete Maravilhas da Gastronomia Portuguesa, iguaria
bem conhecida dos portugueses. Ora, Camilo, além de saber comer em qualidade e em
quantidade, tinha conhecimento da iguaria e origem, era, portanto, um bom gastrónomo!

Curiosa esta imagem deixada ao nosso Fiel Amigo “bacalhau” mencionado na mesa dos
pobres, bem ao contrário da época em que vivemos, essa iguaria que é confecionada mil
e umas maneiras que entrou nas Sete Maravilhas da Gastronomia, com diversos tipos de
confeção e muito apreciado pelo nosso povo português.

Em resumo, concluo que só quem não come e tem fome sofre de palidez.

5
Carlos Xavier

Você também pode gostar