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ARTESANATO EM DEBATE

entrevista
Paulo Keller entrevista
Ricardo Gomes Lima

O antropólogo Ricardo Gomes Lima, pes- e o PROMOART - Programa de Promoção


quisador do Centro Nacional de Folclore do Artesanato de Tradição Cultural. Nes-
e Cultura Popular (CNFCP/IPHAN/Minis- ta entrevista, Paulo Keller conversa com
tério da Cultura), concedeu entrevista ao Ricardo G. Lima sobre artesanato. No ini-
Professor Dr. Paulo Keller do Departamen- cio, o antropólogo conta a origem de seu
to de Sociologia e Antropologia da UFMA, interesse pelo artesanato, fala da impor-
no Museu de Folclore Edison Carneiro, no tância do tema e de seu valor sociocultu-
bairro do Catete, no Rio de Janeiro, em ral e econômico para, a seguir, falar sobre
21/12/2010. Ricardo G. Lima é doutor em a heterogeneidade do artesanato e de su-
Antropologia Cultural pelo PPGSA/IFCS/ as dimensões socioculturais e econômicas.
UFRJ (2006), Professor Adjunto do Institu- Conversam ainda sobre políticas públicas
to de Artes e do Programa de Pós-Gradu- e ações de agências de fomento voltadas
ação em Artes da UERJ e Pesquisador do para o artesanato, sobre as relações do ar-
Centro Nacional de Folclore e Cultura Po- tesanato com o mercado e sobre a questão
pular (IPHAN/MinC). Atualmente dirige o ambiental. E no fim da entrevista Ricar-
Departamento Cultural da UERJ e, no CN- do fala sobre o Programa PROMOART e a
FCP, coordena a Sala do Artista Popular questão do trabalho no artesanato.

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Paulo - Primeiro eu queria que você me sição permanentes, como se dizia então, ter-
falasse sobre como surgiu o seu interesse mo que hoje passa a ser substituído por ex-
em estudar o artesanato? posição de longa duração. Aquele início dos
anos 1980 foi um momento de grande mu-
Ricardo - Esta é uma longa história. Parte dança na instituição, a antiga Campanha de
está narrada neste livro: Objetos - percursos Defesa do Folclore Brasileiro, posteriormen-
e escritas culturais que acabo de lançar pe- te transformada no INF, filiado à Funarte.
lo Centro de Estudos da Cultura Popular da Enfim, a instituição era conhecida como “a
Fundação Cultural Cassiano Ricardo, de São casa dos folcloristas”, do Movimento Folcló-
José dos Campos, SP. Como expliquei, o li- rico tão bem estudado pelo antropólogo Luis
vro fala de objetos artesanais e seus percur- Rodolfo Vilhena e exposto no livro Proje-
sos, da produção ao consumo, do mercado to e missão: o movimento folclórico bra-
local ao nacional, dos trânsitos pelo mun- sileiro. Era o espaço da tradição dos estudos
do rural e urbano, por pequenas e grandes que o folclore vinha empreendendo no Bra-
cidades, por feiras e museus. Paralelamen- sil desde a criação da Comissão Nacional de
te, narra também meu percurso pelo mun- Folclore, em 1947. Quando eu chego, foi em
do do artesanato. Eu me interessei pelo ar- meio, e em decorrência, de um processo de
tesanato muito cedo. O caminho dos obje- mudança conceitual da instituição, quer di-
tos se revelou para mim quando eu ainda era zer, naquele momento a vertente do folclo-
estudante. Fui fazer Ciências Sociais na UFF rismo deixava de ser ali tão forte e os proje-
e no segundo semestre da faculdade, fui es- tos institucionais passavam a ter a antropo-
tagiar no Setor de Etnografia do Museu Na- logia como linha mestra de orientação, ca-
cional da UFRJ. Eu adentrei naquele mun- pitaneada por Lélia Coelho Frota. Lélia as-
do dos objetos artesanais e o Setor de Etno- sume em 1982 e começa a levar antropólo-
grafia foi decisivo em minha vida. Porque eu gos para trabalharem ali; e eu vim especifi-
fiquei ali, embevecido por aquelas gavetas, camente para pensar a questão dos objetos e
aqueles armários repletos de milhares de ob- do Museu de Folclore que é uma das partes
jetos do mundo todo: dos esquimós e dos la- que compõem o CNFCP. Então é isso: assim,
pões, da África e da Oceania, dos índios bra- se deu meu envolvimento com o campo que
sileiros, dos então registrados genericamente vem desde aquele tempo, do estudante que,
como “índios brasileiros”, de diferentes po- de repente, se viu dentro do setor de etno-
vos da América Latina, da Ásia, do Japão... grafia de um grande museu, quase que por
Tudo ali me encantou e me fez ficar den- acaso, mas que ali se definiu para ele o mun-
tro daquele setor durante onze anos, convi- do dos objetos.
vendo com os objetos e com mestres como
Maria Heloísa Fénelon Costa, Berta Ribeiro e Paulo - Gostaria que você me falasse da
Luis de Castro Faria. Depois de onze anos de importância e da riqueza do artesanato
trabalho no Museu Nacional, fui convidado brasileiro da heterogeneidade e da diver-
por Lélia Coelho Frota, para vir para cá, pa- sidade do artesanato, o que você pode di-
ra o CNFCP, que à época se denominava Ins- zer sobre isto?
tituto Nacional do Folclore, o INF, para tra-
balhar na reformulação do Museu de Folclo- Ricardo - A riqueza do artesanato brasilei-
re Édison Carneiro, de suas galerias de expo- ro passa pela diversidade do fazer artesa-

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nal. Ele é diverso e é rico tanto pelas maté- arma, qualquer adorno, ou qualquer outra
rias primas que emprega, quanto pelas téc- coisa, até surgir a indústria com a capacida-
nicas segundo as quais os objetos são con- de de a máquina também criar objetos. En-
feccionados e também, devido às realida- tão, a importância do artesanato é a impor-
des que são vividas por aqueles que o pro- tância da própria vida do homem. E a rique-
duzem. O artesanato apresenta um quadro za do artesanato também é impressionan-
de diversidade impressionante. E só hoje em te. São muitas técnicas, muitas matérias pri-
dia não. Sempre. Vejamos: o que é o arte- mas, como falei, e ao mesmo tempo muitos
sanato no mundo? Durante milênios foi o campos de significado, muitos contextos em
único modo que se tinha de fazer objetos. O que esses objetos estão inseridos. Por que
mundo humano foi feito à mão. Se pensar- se faz ou para que se faz um objeto artesa-
mos no volume de objetos que já se produ- nal? Vai desde a necessidade mais imediata
ziu, manualmente, percebemos que é uma de sobrevivência, desde o instrumento que
coisa impressionante e incalculável mes- é feito para o trabalho ou para o conforto:
mo, porque acompanha o tempo da pró- como um prato, uma colher, uma cama, até
pria humanidade. Eu gosto muito do fil- objetos de significados muito mais amplos,
me “2001 Uma Odisseia no Espaço” porque, como a imagem de um sobrenatural, de um
para mim, Stanley Kubrick registra o sur- santo, um objeto religioso. Tudo isso refle-
gimento da humanidade, associado à cria- te uma diversidade muito grande e no Brasil
ção dos objetos. Ele demonstra simbolica- esse campo também é extremamente rico.
mente como o homem surge quando aque- Só para exemplificar: o Promoart (sei que
le primata, ao golpear o rival com um os- vamos falar sobre esse programa depois) re-
so, conceitualmente, processa uma mudan- alizou, por esses dias, o Mercado Brasil de
ça que alterou toda a história da espécie. Ele Artesanato Tradicional, um evento aqui no
transforma um simples osso, elemento da Parque do Palácio do Catete, que constou de
natureza, numa arma, um objeto, elemen- exposição e venda dos produtos dos 65 pó-
to da cultura. Ao criar o primeiro objeto, los com que viemos trabalhando e trouxe-
ele se cria como homem. E ele lança o os- mos alguns artesãos. Foi muito bonito ver
so para o ar e surge a nave espacial. A sín- a rendeira de Florianópolis, ao lado de uma
tese entre o primeiro e o último objeto cria- rendeira de Raposa, Maranhão, e outra de
do pelo homem. No decurso de tempo, da- Morros da Mariana, no Piauí. E as três sen-
quele momento primeiro até hoje, o que se tadas, cada uma com sua almofada de bil-
criou na humanidade, de modo artesanal, ro, fazendo sua renda ali no parque. E a mo-
foi muita coisa. Porque a revolução indus- ça do Maranhão falou assim: - “Olha, eu já
trial é muito recente na história, se pensar- fui para várias feiras, mas essa é a primei-
mos na longa duração que tem a humanida- ra vez que eu vejo assim. Eu sabia que em
de. Enfim, o objeto feito pela máquina é ou- Santa Catarina fazia renda, mas eu não sa-
tro modo de se fazer objetos. Então, se olha- bia que era assim, e eu estou gostando mui-
mos para o tempo de existência do artesa- to, que eu estou vendo que ela faz a mesma
nato, vemos que essa classe de objetos foi coisa que eu faço só que ela faz diferente.”
crucial para toda humanidade, que foi assim Aí eu comecei a conversar com elas e fui
que a humanidade se fez, com objetos fei- percebendo que a de Santa Catarina esta-
tos à mão, fosse uma casa, uma colher, uma va fazendo um tipo de renda que se chama

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“tramóia”, e ela dizia orgulhosa que estava gem. O que era algo tão rico no Centro Oes-
fazendo tramóia, e a rendeira do Maranhão te brasileiro, na região do triângulo mineiro,
falava: “Ah, essa eu não conhecia, porque em geral em todo o oeste de Minas, em Goi-
na minha terra não faz assim”. E a do Piauí ás e Tocantins. Hoje, você busca comunida-
já falava outra coisa. Então, essa possibili- des que há 20, 30 anos eu conheci fazen-
dade que temos de ver no artesanato a mes- do tecelagem e já não há mais. Acabaram,
ma coisa e ao mesmo tempo essa coisa ser as últimas tecelãs morreram, os jovens não
diferente, isso é que dá riqueza a esse fazer. aprenderam. Acho que existe uma explica-
Porque para nós, que somos de fora, olhan- ção: o produto artesanal, a colcha tecida em
do as três rendeiras que faziam renda de bil- tear, tem um custo do fazer que resulta num
ro, só víamos que faziam renda. Agora, para preço muito difícil de competir com a col-
elas, elas faziam rendas de bilro que guar- cha da indústria. Quando surgiu a colcha de
davam especificidades e também, ao mesmo chenille no Brasil, decretou-se a morte da
tempo, construíam suas identidades. Enfim, colcha tecida em tear, porque não dá para
é a riqueza das rendas no Brasil que, quan- competir em preço, em durabilidade. Outros
do é de bilro, é muito diversa, e também tem produtos, como as rendas, não. Eu acho que
a renascença, a irlandesa, o filé, o labirin- estão se firmando muito bem. Os objetos de
to, a singeleza, e tantas outras modalidades madeira se conservam bastante, a cerâmica
que são, ao mesmo tempo, tudo igual – são se conserva bastante. Alguns produtos estão
rendas – e, ao mesmo tempo, é tudo mui- conseguindo nichos de mercado e se consa-
to diferente. Então essa riqueza está dada. E grando como produtos perenes ao lado dos
quando você pergunta sobre a importância produtos industriais. Agora, alguns tendem
do artesanato, pensamos também em ter- a desaparecer sim.
mos quantitativos. Há cálculos que definem
que são oito milhões de artesãos no Brasil. Paulo - O artesanato têm dimensões so-
Eu não tenho certeza dessa cifra, até porque cioculturais e também dimensões econô-
há mais de duas décadas que eu ouço falar micas, então, eu queria que você falasse
isto. Só não sei qual é a fonte desse levan- da importância do artesanato tanto para a
tamento, e neste país que cresce continua- cultura quanto também para a economia,
mente, já era para esse dado ter sido muda- principalmente a economia popular.
do com certeza, não é? Numa perspectiva,
mudar para mais, porque o país cresce dia a Ricardo - Se tomamos como um dado de re-
dia, em população; e em outro sentido, mu- alidade a existência de oito milhões de arte-
dar para menos, porque há uma previsão de sãos no país, e multiplicamos isso, por uma
fim do artesanato, de que, com o tempo, o média de 5 a 6 pessoas por grupo familiar,
artesanato vai desaparecer; que a indústria teremos um número enorme de pessoas que
e a globalização do mundo contemporâ- hoje vive e sobrevive do artesanato. Então,
neo levarão fatalmente à morte dessa forma a importância econômica do setor é muito
de fazer. Eu não tenho certeza disto. Acho grande realmente. Embora eu duvide des-
que algumas técnicas tendem sim a desapa- sas cifras, acho que elas são calculadas por
recer. Por exemplo, eu venho notando isto baixo. Se houvesse um inventário realmen-
em relação à tecelagem manual. A cada dia te, o IBGE fazendo um censo do artesana-
eu vejo menos comunidades fazendo tecela- to no Brasil, eu tenho quase certeza que se

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iria descobrir muito mais coisa. Até porque Paulo - A importância da dimensão cultu-
há o lado informal da economia do artesa- ral e econômica do artesanato.
nato, que é difícil de ser dimensionado, até
porque nem todo mundo vive do artesana- Ricardo - Na economia, o artesanato tem
to como profissão, embora se faça artesa- uma importância enorme, muitas vezes me-
nato com grande extensão no país. Há ou- nosprezada. Ela não aparece tanto quanto
tro lado, pelo qual o artesanato é visto co- deveria, mas na verdade está aí numa esca-
mo atividade de segunda ordem na vida do la enorme. Com relação ao cultural é a mes-
indivíduo e não é referido no momento em ma coisa, o artesão produz a partir de uma
que a pessoa, esse artesão, é entrevistada. cultura e o produto que faz, o objeto artesa-
Por exemplo, junto às populações rurais: o nal, tem esse duplo caráter: é uma mercado-
artesanato é um modo de fazer objeto mui- ria por um lado, mas é também um produ-
to presente no meio rural brasileiro, os indi- to cultural resultante do significado da vida
víduos fazem colheres de pau, fazem game- daquela pessoa. Quanto a isto, tenho vivido
las, fazem grande parte dos objetos da lida experiências, relatos impressionantes mes-
diária: cestos, peneiras, redes de pesca, im- mo. Por exemplo, no norte da Bahia há um
plementos agrícolas de lidar com os animais município chamado Rio Real onde se pro-
e com a terra, a mulher tece, borda, costu- duz uma louça belíssima. São potes, jarras,
ra. Muitas vezes tudo isso é visto apenas co- moringas, mealheiros, feitos com excelente
mo algo secundário ao fato de o indivíduo barro e depois revestidos com engobo ver-
ser um agricultor, um trabalhador rural, um melho e decorado com o branco da tabatin-
pescador ou uma dona de casa. Na condu- ga. Peças realmente muito bonitas. E lá mo-
ção do PROMOART agora, tínhamos deter- ra uma senhora já de idade, chamada Dona
minadas oficinas a fazer em comunidades Nitinha. Uma ocasião eu estive lá e ela me
de Minas Gerais que foram suspensas por- relatou que o órgão estadual que desenvol-
que acabaram coincidindo exatamente com ve a política de artesanato na Bahia, o Ins-
o momento de plantio. A população é basi- tituto Mauá, costumava ir à casa dela, re-
camente rural e faz o artesanato na entres- gularmente, de tantos em tantos meses para
safra. Isso é muito comum no Brasil: no pe- adquirir peças. Ela vendia para a vizinhan-
ríodo da seca, não dá para você cuidar da ça, para as famílias próximas à casa dela,
roça, da terra, então você vai para o artesa- para o mercado regional, mas o verdadeiro
nato. Agora, choveu, a primeira coisa que mercado era o Instituto Mauá, que compra-
você faz: pára o artesanato e vai plantar, va e comercializava suas peças por todo o
porque se você perde essa primeira chuva Brasil, principalmente em feiras estaduais, e
você perde o feijão, o milho, o arroz do ano nas lojas que tem em Salvador. Só que hou-
todo. O plantio tem época certa de aconte- ve uma época em que o Mauá levou mui-
cer. E é isso que norteia o ritmo de vida do to tempo sem ir a Rio Real. Segundo ela, no
agricultor, que parou o plantio, parou a co- começo continuou a produzir normalmen-
lheita, então se dedica a fazer artesanato. Is- te, como sempre fazia, foi fazendo potes, fa-
so que, às vezes, é desaparecido nos censos. zendo moringas, até que já tinha produzi-
O que mais você tinha perguntado? Em re- do uma quantidade de louça suficiente pa-
lação ao econômico? ra atender ao Mauá. Resolveu então parar à
espera do caminhão do Mauá. E aí, ela ob-

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servou que foi entristecendo, entristecendo. do, digamos, popular porque não atendiam
Que acordava de manhã e ficava na cama ao gosto de segmentos dos grandes centros
um tempo, parada, e pensando: “o que vou orientados por outros princípios estéticos. A
fazer hoje? Levantar pra quê? Pra fazer o fim de atingir esse outro segmento do mer-
quê?”. Que ela não tinha o que fazer por- cado, as bordadeiras foram orientadas a de-
que o dia dela era ocupado no serviço do- senvolver um tipo de trabalho mais de acor-
méstico, no preparo da comida, no cuidar do com o gosto urbano, gosto esse definido
da criação, mas o principal era fazer a louça a partir de uma pesquisa de mercado feita
e, como não tinha mais para que fazer lou- em São Paulo. Segundo a pesquisa, elas de-
ça, sobrava muito tempo do dia. E ela viu veriam seguir a tendência do momento em
que foi ficando doente, e aí percebeu que que vigoravam os tons sobre tons. O proje-
ou ela mudava esse quadro ou morreria. E to providenciou a matéria prima “correta”:
ela tomou a decisão: “Sabe de uma coisa? tecidos e linhas harmonizadas. Comprou-se
Vou voltar a fazer minha louça, ocupar meu linho verde garrafa e linhas em matizes de
tempo”.Foi assim que eu cheguei lá, junto verde pra bordar sobre o verde garrafa, se
com o caminhão do Mauá, e encontrei a ca- comprou linho azulão com linhas em dife-
sa dela abarrotada de louça. Quase não se rentes tons de azul para a mulher bordar o
tinha como andar pela casa tomada por pe- ramo de flor azul sobre o tecido azul. E por
ças. Sala, quartos, eram pilhas de coisas, só aí foi, de modo a ela fazer jogos america-
ficou uma passagenzinha estreita para cir- nos, como se dizia, “de fino gosto”. Uma das
culação pelos cômodos e, para todo lado que pessoas que trabalhava no projeto relatou-
você olhava, havia potes. A varanda era to- -me que, um dia, chegou à cidade e foi vi-
da tomada, o quintal tinha montes de potes sitar uma artesã. Quando passou em fren-
cobertos com plástico à espera do caminhão te à janela, ele a viu sentada na sala, bor-
do Mauá. Naquele dia o caminhão apareceu dando, e percebeu que ela, ao vê-lo che-
e ela voltou a vender sua louça. Você tem aí gando, escondeu alguma coisa por baixo de
a dimensão da importância desse fazer pa- uma almofada, no sofá. Ele entrou, cumpri-
ra aquela mulher. Uma mulher que perce- mentou-a, se sentou e começou a conversar,
be que ou faz o objeto ou morre. Então es- mas sempre intrigado com o quê ela teria
se objeto não pode ser reduzido a uma mer- escondido. Ele então pediu um copo d’água
cadoria simplesmente. Ele é sua vida. Houve e ela se levantou e foi buscar. Aí ele foi lá
outro caso, também no Nordeste, que não e suspendeu a almofada e debaixo estava
foi vivido por mim, mas me foi relatado, e um pano, dos antigos panos que ela bor-
me impressionou bastante. Era um projeto dava cheios de coloridos. Quando ela vol-
que se voltava pra produzir objetos de acor- tou, ele perguntou: “por que a senhora es-
do com um design moderno, contemporâ- condeu esse pano de mim?” Ela ficou muito
neo, enfim, era uma comunidade de borda- desconcertada e respondeu: “Ah, o senhor
deiras que tradicionalmente bordavam no me perdoe, eu sei que o senhor não gosta,
pano branco flores altamente coloridas, ra- não quer que eu borde assim, mas eu tenho
mos de flores azuis, amarelas, vermelhas, muita saudade dos meus bordados. Então
etc., ramagens bastante coloridas e boni- eu tava bordando um pano para mim”. Is-
tas segundo a estética nativa. Só que eram so fez surgir dentro dele uma tremenda cri-
produtos difíceis de venda fora do merca- se, e ele me dizia: “não é isso que eu que-

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ro para ela, nem para mim”. É politicamen- ca nativa e pelo respeito que se tem que ter
te correto fazer com que essa mulher negue com essas formas culturais que não podem
a estética dela, a cultura dela, os valores de- estar sujeitas às regras do mercado somente.
la, pra atender a um mercado que quer ou-
tra coisa? Porque, para essa mulher, o bor- Paulo - Tem outra questão, que eu acho
dar não é só atender um mercado. Quando que complementa o que você vem falando.
essa mulher está bordando, ela está bordan- Atualmente existem várias políticas públi-
do algo que preenche também parte da vida cas voltadas para o fomento do artesana-
dela, a bordadeira não executa mecanica- to, desde o Programa do Artesanato Bra-
mente uma estética sobre um pano. Ela co- sileiro, o PAB do Ministério do Desenvol-
loca ali a percepção dela de cor, de sentido vimento Indústria e Comércio, como tam-
de estética, de harmonia de concepções que bém as políticas do SEBRAE, as políticas
vão muito além do ato mecânico de enfiar do Ministério do Desenvolvimento Agrá-
uma linha numa agulha e com ela transpas- rio como o Projeto Talentos do Brasil, po-
sar o tecido para cima e para baixo. Ela bor- deria enumerar aqui várias políticas e pro-
da ali também sua visão de mundo. E isso jetos voltadas para o artesanato, o que eu
tudo tem a ver com a vida dela, quer dizer, queria ouvir de você é: quais seriam os li-
essa mulher também poderia estar morren- mites e possibilidades dessas políticas pú-
do, como Dona Nitinha, se não fizesse aqui- blicas, hoje?
lo que, eu diria, o coração dela pedia. Não é
só o que o mercado pede. São sobre coisas Ricardo - Grosso modo, eu diria que os li-
como essa que eu me bato, às vezes, nesse mites são aqueles que são dados pela pró-
mundo do artesanato: que se percebam es- pria cultura e as possibilidades são também
sas nuances da vida das camadas popula- aquelas dadas pela cultura. Isto é, eu acho
res, porque há uma política no Brasil volta- que existem muitas políticas públicas para
da pro artesanato que prega que o artesão o artesanato, assim como existem muitos ti-
brasileiro não tem competência, que ele não pos de artesanato. Eu defendo que artesa-
domina o mercado e que temos que formar nato é aquele modo de fazer objetos que se
o artesão para o mercado. Eu contesto isto configura basicamente pelo uso das mãos.
e proponho sempre que temos de formar o Nesse sentido, eu não defino que artesana-
mercado para o objeto artesanal, o merca- to se opõe à arte, coisa que muitos fazem.
do é que tem que perceber que esses obje- Para mim, artesanato se opõe ao que é fei-
tos não são mera mercadoria, que há uma to pela máquina, à indústria. Tudo que é fei-
cultura embutida neles. Que existe uma do- to pela mão é artesanal, e quando eu estou
na Nitinha. Que existe uma bordadeira no falando de artesanato eu estou me referin-
nordeste que é feliz quando executa os bor- do a processos de feitura de objetos. Por is-
dados que gosta. Então é esse o nosso papel so a oposição para mim é dada pelos obje-
como antropólogos voltados para o campo tos feitos à máquina, que são os objetos in-
do artesanato. Eu me considero, como diria dustriais. Agora, falando do campo do arte-
o Roberto Cardoso de Oliveira, “um antro- sanato, temos uma realidade infinita de coi-
pólogo da ação”, que está voltado pra inter- sas. Temos o artesanato de cunho tradicio-
vir na realidade e brigar pelos valores cultu- nal, feito em comunidades e que reflete a
rais dos próprios artesãos e por uma estéti- realidade daqueles locais, daquelas pesso-

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as, daquelas famílias, que respeita um fa- tem um compromisso com o fazer artesa-
zer que vem passando de geração em gera- nal globalizado no Brasil. Deve estar volta-
ção; geralmente é um artesanato transmiti- do para pensar esse universo de maneira ge-
do de pai para filho, muito mais pelo ver fa- ral, atendendo aos mais diferentes segmen-
zer que pelo processo formal de ensino; é tos do fazer artesanal. Agora, quando penso
vendo a mãe fazer panelas e brincando com este programa dentro do Ministério da Cul-
os restinhos de barro que a menina aprende tura, acho que é um problema, porque há
o ofício. É brincando que ela faz sua primei- todo um segmento com que o MDIC atua,
ra panela. E a segunda, a terceira, e quando que são os artesãos que não têm a tradição
se vê, brincando de fazer panelas, ela virou cultural do fazer, que fazem objetos orien-
uma artesã. O olhar ensina muito, é o modo tados por um mercado urbano e de acordo
como se aprende a fazer, como na renda de com as tendências ditadas pela moda, que
bilro; os relatos são muitos, da mulher que ficarão desguarnecidos dentro do MinC.
diz: “Ah, eu aprendi vendo minha mãe fa- Então, esse artesanato urbano que hoje o
zer. Ela ficava lá, na almofada, eu olhando. MDIC apóia - ou que teria o compromisso
Quando ela distraía, saia pra alguma coisa, de apoiar por intermédio do PAB, o Progra-
eu sentava ali e fazia. Aí eu fazia errado, ela ma do Artesanato Brasileiro - seja porcela-
vinha e me batia, dizia que era para eu não na fria, sejam os bótons e imãs de geladeira
mexer, mas eu era insistente e queria fazer e feitos em resina, as caixinhas de MDF, se-
foi assim que eu fui aprendendo”. Deste tipo ja o que for, esses produtos e seus produto-
de relato eu tenho muitos, quer dizer, o ver res não vão encontrar espaço no Ministério
fazer para aprender a fazer. Esse é um arte- da Cultura porque o MinC está preocupado,
sanato radicalmente diferente de outro tipo ou deveria estar preocupado, com modos de
de artesanato, do que faz uma mulher que, fazer que tenham a ver com a questão da
premida pela necessidade de gerar renda identidade de grupos e a tradição do fazer
para sua sobrevivência, numa zona urbana, desses grupos. Então eu acho que o PAB es-
por exemplo, com dificuldade de inserção tá bem onde está. Talvez o que lhe falte seja
no mercado de trabalho, procura uma revis- melhores condições de atuação. Agora, te-
ta na banca de jornal ou um cursinho de ar- mos que definir competências; você cita o
tesanato para aprender a fazer bonequinhos SEBRAE, essa para mim é uma das agên-
de porcelana fria para vender no shopping, cias mais problemáticas, embora séria tam-
que é também um tipo de artesanato; ou do bém, no mexer com o artesanato. Eu pen-
jovem que, na década de 1960, aprendeu a so que o SEBRAE andou investindo muito
cortar couro, fazer cinto, sandália, etc., que na transformação, a meu ver muito violenta
faz um artesanato classificado como hippie, e rápida, de comunidades tradicionais, que-
e que hoje já velho, continua a fazer isto co- rendo inseri-las no mercado. Janete Costa,
mo modo de vida. Enfim, todas as formas de uma arquiteta que usava muito o artesana-
trabalhar com a mão são formas artesanais. to brasileiro em projetos de decoração, fale-
Sobre políticas públicas, então, eu acho que cida recentemente, usava uma frase que eu
tem inúmeras políticas públicas que se vol- considero perfeita. Ela dizia que no artesa-
tam legitimamente a apoiar esses diferentes nato brasileiro tradicional, você tem que in-
tipos de artesanato. Então quando você cita terferir sem ferir, tomar o cuidado de nun-
o MDIC, por exemplo, eu acho que o MDIC ca desrespeitar os valores, os princípios das

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comunidades produtoras. O que a gente ve- o que é um discurso classista, elitista, co-
rifica pelo Brasil é, muitas vezes, muitas in- lonialista, para não dizer coisa pior. Ago-
terferências que feriram radicalmente as co- ra, se a gente olhar em torno, veremos que
munidades, que mutilaram mesmo, se é que esse discurso está presente não só no desig-
não mataram muitas comunidades no seu ner espanhol que me procurou. Está presen-
fazer criativo, onde o designer chegava e te aqui no Brasil, no discurso de muitos pro-
apelando para o discurso da competência, a fissionais formados no país e que acham ter
partir de um domínio de classe muito forte, a primazia do gosto, o domínio do merca-
implantava uma verdade que era dele: “eu do e que o artesão brasileiro é mera mão de
sou aquele que sabe, eu sou o representan- obra. Isto não passa daquela visão de que as
te de uma camada social que tem o domínio classes subalternas só sabem fazer e só à eli-
do saber e o artesão é o representante da ca- te pensante cabe programar as coisas a se-
mada social que tem a habilidade no fazer”. rem feitas.
Quer dizer, aquela velha dicotomia entre o
pensar e o fazer, pela qual cabe a mim pen- Paulo - Aí já vem uma questão que é a
sar, criar, conceber a coleção, projetar a co- continuação da sua fala também, quer di-
leção, porque eu domino o que o mercado zer, o artesanato ele é pensado nesse bi-
quer, domino as novas tendências, fui pa- nômio: tradição e mudança. No seu tra-
ra Milão, fui ver o desfile na Itália, então, balho você fala da questão da mudança
esse saber é meu, e eu projeto e você vai no artesanato e eu coloco a questão: em
fazer, você é artesão, você é extremamen- que medida o artesão ou a artesã partici-
te habilidoso, você domina a técnica, você pa do processo de mudança? Porque não
vai executar o que eu projetar. Então va- é que a mudança seja negada e sim: co-
mos realizar um ótimo casamento, porque mo se dá a mudança, quem são os agentes
vou pensar super bem, vou definir as coisas, sociais neste processo, o artesão é atuante
você vai executar e ninguém vai nos bar- no processo de mudança?
rar. E, juntos, vamos conquistar o mundo.
Este discurso, aqui inventado por mim, na Ricardo - Eu acho que sim. Primeiro, a
verdade não é tão inventado assim. Eu ou- questão da tradição e mudança. Muitas ve-
vi mais ou menos isto de um designer es- zes se tem uma visão errada do que seja tra-
panhol, trazido por uma agência para ensi- dição, porque tradição pressupõe mudan-
nar design aqui no Brasil. E ele chegou aqui ça. A condição básica para algo ser tradicio-
nesta instituição, nesta mesma sala em que nal é que mude, porque se não muda, vai se
a gente está, para me pedir justamente uma cristalizar no tempo e vai morrer, vai virar
relação de endereços de artesãos, de comu- um fato histórico e não tradicional. O que
nidades pelo Brasil onde pudessem atuar. O é o tradicional? É o que está vivo, presen-
discurso era este: que ele, europeu, domina- te hoje na sociedade. E para estar presente
va a tendência que o mercado queria e que hoje, como arte do passado, se pressupõe a
o brasileiro era muito destro. Então, que a mudança, porque a sociedade muda perma-
parceria entre a Espanha e o Brasil poria o nentemente. Então, se você observar, todo
artesanato brasileiro no top do mundo, por- elemento tradicional é uma expressão que
que ele sabia o que o brasileiro deveria exe- vem mudando no tempo. Então, a mudan-
cutar para ganhar o mercado internacional; ça é algo intrínseco à tradição que vai se re-

Artesanato em debate 195


criando o tempo todo. A mudança não se próprio grupo familiar, ou de vizinhança, e
opõe absolutamente à tradição. A tradição neste circuito ele pode estar perfeito, nesse
pressupõe a mudança. ambiente em que ele vive. Agora, a socieda-
de de hoje cresceu, foi se globalizando, etc.,
Paulo - O que você pensa da questão do de- então a gente quer que esse objeto também
sign no artesanato? Uma questão: seria pos- atenda a um público maior, que ele saia do
sível uma intervenção consciente? A Profa. circuito local, regional e atinja um merca-
Raquel Noronha, que trabalha no Departa- do nacional ou internacional mesmo. Para
mento de Design da UFMA, ela fala sempre isso, podem faltar algumas condições a es-
daquele modelo que o Wright Mills critica se objeto, como, por exemplo, a condição de
muito, que é o design no centro e ela coloca transporte. É o caso das cerâmicas. No con-
outro paradigma que seria o design ao lado, texto tradicional, o indivíduo faz a cerâmi-
ou de mãos dadas, parceiro. ca na casa dele e, quando chega a manhã de
sábado, pega o burro, o jumento, põe sobre
Ricardo - Concordo plenamente com a pro- ele os caçoais em que vai acomodando as
fessora. Acho que é isto. É possível mudar peças, protegendo-as com capim, com fo-
esse quadro se você tirar o modelo de de- lha de bananeira, de coqueiro e toca o bur-
sign no centro ou, eu diria, de design em ci- rinho até o mercado para vender sua lou-
ma, que se julga a cabeça que vai pensar o ça. Agora, quando essa louça tem que sair,
processo de criação do objeto. Se o desig- pegar a estrada, de caminhão ou de avião,
ner se coloca ao lado do artesão, esse qua- como é que se embalam as peças? Como é
dro muda totalmente. Eu lido o tempo to- que se faz uma embalagem que permita es-
do com um tipo de artesanato, que é o cha- sa louça não quebrar? Esse é um campo que
mado artesanato tradicional, ou artesana- o designer tem que trabalhar bem: a emba-
to de raiz, ou artesanato cultural, etc. Não lagem do produto. Na feira/exposição do
com outros tipos de artesanato, que pa- Mercado Brasil de Artesanato Tradicional,
ra mim são tão legítimos quanto, enquan- uma quantidade enorme de peças que vie-
to expressão de mercado, para ganho, ge- ram de Tracunhaém- PE chegou quebrada.
ração de renda, ocupação de mão de obra, Mais de 60% de peças de Lagoa da Canoa-
etc. Mas, o artesanato tradicional demanda -AL, também quebrou. Muitas peças de do-
do designer uma preocupação a mais: o de- na Irinéia, de Muquém, também quebraram.
signer que vai trabalhar com uma comuni- Idem de Taubaté, SP. Então precisamos do
dade tradicional, que é portadora de um sa- designer de embalagens para ir a essas co-
ber cultural que vem de gerações passadas, munidades e, a partir das condições locais,
há que ter muito respeito por essa popu- desenvolver projetos para que essas peças
lação da qual se aproxima. Não pode che- possam chegar ao destino bem. De preferên-
gar intervindo de forma avassaladora na- cia, que ele desenvolva sua proposta com
quilo que o artesão faz, porque as popula- materiais que são dados na própria locali-
ções elaboram formas que foram consagra- dade. Eu tive uma vez a experiência de um
das no tempo. O papel do designer nesse ca- projeto para cerâmica em que a pessoa con-
so é dar suporte para a produção dos obje- tratada propunha, como forma de embala-
tos. Tradicionalmente os objetos da tradição gem, umas caixas de papelão reforçado, to-
são feitos para atender o consumo local, do talmente inviável do ponto de vista finan-

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ceiro para a comunidade de baixa renda ad- vez no modo como tinha sido feito, ou no
quirir. A caixa sairia muito mais cara que o tipo de matéria prima usada. Aí se foi in-
próprio objeto. E ainda mais: ele propunha vestigar e se verificou que, como os arte-
usar como elemento de embalagem, no in- sãos falavam, “o barro estava fraco”. Na re-
terior da caixa, pipoca. Sugeria que a co- alidade, a reserva de barro estava acabando.
munidade plantasse milho, pra colher o mi- Então, o barro que os artesãos estavam co-
lho, estourar a pipoca para com ela acon- lhendo já não era um barro de boa qualida-
dicionar as peças. Isto numa região do se- de. É em casos como este que nos cabe in-
miárido, sequíssimo, onde seria muito difícil tervir. Cabe-nos investigar qual é o proble-
a população ter bom resultado no plantio. ma do barro, o que seria bom adicionar a
E se o conseguisse, as pessoas iriam comer ele para recuperar sua boa qualidade. E le-
a pipoca e não usá-la como isopor natural, var ao artesão essa informação. Jamais vou
como era proposto. Esse é um dos campos querer mexer na forma dessa vasilha porque
em que o designer podia se somar ao arte- é uma vasilha cuja forma me basta, mas sua
são tradicional, desenvolvendo embalagens, função não me satisfaz. É nesse campo que
tanto para transporte das peças quanto pa- o designer pode ajudar a trabalhar e nunca
ra apresentação delas. Desenvolver material mexer na asa do jarro, no biquinho do jarro,
de informação sobre o objeto. O artesão que que é onde se comete muita violência, on-
sempre fez aquela peça para vender em seu de se fere, na interferência. Agora, é possí-
próprio meio sociocultural, não tem preocu- vel se fazer intervenções conscientes sim, se
pação com uma etiqueta que informe o que você chega a trabalhar com essas comuni-
é aquele produto, sua procedência, quem o dades em pé de igualdade, lado a lado, não
fez ou como foi feito. Então, cabe ao desig- se achando superior a elas, mas respeitando
ner desenvolver tags, folders que informem todo o saber que está ali armazenado e ofe-
que aquele objeto foi feito por seu Fulano, recendo seu saber no que possa somar com
em tal lugar, que ele vem de uma tradição o saber da comunidade. Quando uma comu-
X, Y ou Z. Enfim, agregar ali o tal do valor nidade produtora de artesanato tradicional
que essas informações são capazes de evi- tem problemas, estes são geralmente decor-
denciar para que o consumidor tenha di- rentes de mudanças, como estes que eu ci-
mensão de que esses objetos também parti- tei. Quer dizer, a louça agora tem que ser
cipam do mundo da cultura. Outra questão deslocada para o mercado distante e a co-
que vejo como importante do designer tra- munidade não domina o conhecimento de
balhar é quando os objetos não funcionam embalagem de modo que chegue intacta a
bem. Há um texto meu que trata disto, onde seu destino. Em sua tradição o artesão não
falo das jarras pra água de Irará na Bahia, tem resposta ao problema, pois sempre fez
que para mim, têm uma forma perfeita, que louça e vendeu na porta de casa e, de repen-
já foi testada e consagrada gerações após te, tem que encaixotar a produção e mandar
gerações como uma forma boa para conter para longe.
e servir água. Agora, o que vinha aconte-
cendo? Você comprava a jarra, que chamam Paulo - É outro mercado?
caboré, e punha água. Dali a pouco, a água
vazava toda. Porque havia um problema ali Ricardo - Exato. E aí, quando há essa mu-
que não estava na forma do objeto, mas tal- dança, verifico que o artesão nem sempre

Artesanato em debate 197


domina a novidade. É o mesmo com a ma- quando esteve na região, observou esse tra-
téria prima, a questão do esgotamento das balho que já era feito pelas índias de Mon-
fontes naturais. Aí depende de um conheci- te Alegre. Em Portugal há uma coleção be-
mento outro, que muitas vezes ele não tem. líssima das cuias coletadas por ele. Resol-
vemos então, num projeto coordenado pela
Paulo - Então aí você está falando des- antropóloga Luciana Gonçalves, incentivar
sa relação com o mercado. O que tu achas as mulheres a voltar a rascunhar as cuias e,
que muda nessa transição do mercado lo- para isso acontecer, era necessário que nós
cal para o mercado nacional e mesmo in- garantíssemos o mercado. Então passamos a
ternacional? Em um texto você fala da promover exposições fora da região, de mo-
possibilidade de haver produção artesanal do que elas tivessem um mercado mais van-
com linhas de produtos diferentes, uma tajoso do que aquele oferecido pelo regatão.
linha mais tradicional e uma linha mais Só que muitas delas já tinham perdido a re-
inovadora. ferência dos desenhos. Então, recuperamos
junto aos museus de Folclore e Nacional,
Ricardo - Fizemos isso com as cuias de San- aqui no Rio, o MAE em São Paulo e o Goel-
tarém, aquelas cuias tão comuns nos lares di em Belém, os padrões das cuias que esta-
da Amazônia e que são muito usadas pa- vam nos acervos destas instituições. Edita-
ra se tomar tacacá. Em Santarém, elas são mos uma cartilha e levamos para elas, para
produzidas principalmente em comunida- que tivessem inspiração nos desenhos an-
des das áreas de várzea, no Aritapera, às tigos das cuias. Só que a tradição, como já
margens do Amazonas. Percebemos que as falamos, é mudança também, e estava fa-
cuias desenhadas, “rascunhadas” como di- zendo muito efeito um tipo de rascunho que
zem na região, com incisões, estavam de- é chamado de decoração “étnica”, que era
saparecendo. Aí fomos saber o que estava transpor padrões geométricos de culturas
havendo e descobrimos que a dúzia da cuia indígenas para as cuias. Ao invés de terem
vendida toda preta custava três reais. As figuras como flores e arabescos, padrões
artesãs, as chamadas “cuieiras”, faziam as criados antigamente, eram encontradas no
cuias e as vendiam aos regatões, a três reais mercado cuias decoradas com grafismos in-
a dúzia para que as revendessem em merca- dígenas. Em Belém, na Praça da República,
dos como Santarém e Belém. Ali, essas cuias onde tem uma feira de domingo que vende
eram então rascunhadas por outras pessoas muita cuia, no ver-o-peso, em lojas de pro-
ou vendidas ao consumidor final, sem de- dutos amazônicos, podiam ser encontradas
coração. Se as cuieiras rascunhavam a cuia cuias com padrões geométricos da cerâmica
toda, o que demandava um tempo muito arqueológica marajoara e também de gru-
maior de trabalho, isto só acrescia R$0,50 pos indígenas, que nada tinham a ver com
ao preço da dúzia que passava a ser vendi- a realidade do Aritapera. Eram padrões dos
da a R$3,50. Ora, do ponto de vista do tra- Camaiurá do Xingu, dos Carajás do Ara-
balho, não tinha sentido estar rascunhando guaia, copiados para as cuias. E as artesãs
cuia. Daí só ter cuia preta. Nós, aqui no CN- queriam fazer também isto, pois o mercado
FCP nos preocupamos com isso, porque es- estava valorizando muito esse tipo de cuia.
sas cuias vêm de uma tradição enorme. Ale- Aí conversamos com elas e indagamos so-
xandre Rodrigues Ferreira, no século 18, bre o que elas teriam de similar na realida-

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de mais próxima delas mesmas e chegamos opõe ao processo de mudança, que é mui-
à cerâmica arqueológica de Santarém. Fi- to interessante na sua abordagem do arte-
zemos então um levantamento dos padrões sanato tradicional e do cultural. Mas, exis-
gráficos dessa cerâmica, também nos acer- te outra realidade que me chama atenção
vos dos museus e levamos para elas um re- que é a do artesanato do ambiente urbano.
pertório desses padrões que poderiam ser Eu fui, por exemplo, em uma feira de arte-
transpostos para as cuias. A coisa não pa- sanato em São Luis do Maranhão onde me
rou aí. Qual não foi nossa surpresa, ao rece- deparei com uma artesã que trabalha com
ber cuias aqui no Centro, enviadas por elas, material reciclado, que é diferente daque-
para venda no espaço de comercialização la que usa uma matéria prima natural, ela
da Sala do Artista Popular e verificar que, usava plástico, papelão, enfim, um artesa-
além dos motivos tradicionais e dos padrões nato que tem seu valor também. Então: o
geométricos, as cuieiras haviam rascunha- que você pensa sobre esta realidade? Elas
do cuias com figuras de peixe-boi, tamba- se envolvem também com a capacidade de
qui, piranha, jacaré. E quando fomos lá, elas criar utilizando esses materiais reciclados.
nos falaram: - “Ah, resolvemos criar uma Seria uma nova tradição sendo criada ou
outra linha!” Uma linha naturalista com re- inventada? Como é que você pensa o arte-
produções da fauna amazônica. E elas brin- sanato no ambiente urbano?
cavam com a gente, dizendo que agora ti-
nham três linhas de cuias: os desenhos tra- Ricardo - É novo porque se trata do em-
dicionais, os das flores tradicionais, os de- prego de uma matéria prima nova. É tam-
senhos étnicos e também os desenhos que bém aquele ponto do Hobsbawn: as tradi-
eram os animais. Isto é a tradição das cuias, ções são resultado de criações e reinvenções
com total inovação. A partir de uma provo- frequentes. Tudo que estamos falando so-
cação nossa de não se perder o desenho tra- bre artesanato tradicional, um dia esse ti-
dicional, mas também de respeitar o anseio po de artesanato não era tradicional. Um
que elas viam no mercado atual, que que- dia ele foi criado, inventado. Por outro la-
ria coisa mais “étnica”, que eram os dese- do, a própria reciclagem é um tema bastan-
nhos indígenas, o grafismo indígena, che- te tradicional na criação do objeto artesa-
gamos a uma proposição delas de transfor- nal. Se olharmos para trás veremos as bru-
mar os rascunhos das cuias em um tercei- xinhas de pano, feitas de aproveitamento de
ro tipo, que eram os animais da Amazônia, pano, os produtos feitos de pneu, de bor-
pois elas perceberam claramente que havia racha. O Nordeste é riquíssimo nisto: lixei-
aí também um grande mercado, por ser a ras, ancoretas, bacias feitas de pneu, as san-
Amazônia, e que muitos indivíduos se inte- dálias feitas de solado de pneu, as lampari-
ressariam em comprar exatamente por isto. nas, não sei no Maranhão como se chama,
Eu não acho que isto fere em nada a ques- se candieiro, fifó, lamparina, feitas do apro-
tão da tradição e acho que é este o modo de veitamento de lata. Aqui no Museu de Fol-
se caminhar, com respeito aos produtores, clore temos uma peça que acho fantástica:
no campo do artesanato. é uma lamparina feita de uma lâmpada ve-
lha queimada. O artesão pegou a lâmpada
Paulo - Essa concepção sua de que a tradi- que tinha queimado, tirou o filamento in-
ção seria recriada, reinventada, que não se terno, botou outro bocal e um pavio e essa

Artesanato em debate 199


lâmpada voltou a dar luz. A reciclagem não se apropria do lixo e cria os objetos porque
é uma invenção de agora. No Brasil existe não teria opção de trabalho com outro ma-
uma tradição enorme de trabalhos de rea- terial. Outra maneira de se ver a reciclagem
proveitamento de lixo. Penso que ela cres- é pelo viés político: o indivíduo se apropria
ceu nos últimos tempos, porque a gente está do lixo, do que foi descartado, como protes-
produzindo muito mais lixo e porque exis- to contra a sociedade de consumo, contra
te uma consciência, uma luta, uma preocu- o desperdício, como preocupação ecológica.
pação com isto, o que fazer com tanta gar- Trata-se de uma ação política, um ato polí-
rafa pet, com tanto plástico, com tanto pa- tico. Ou é a total falta de recurso ou é uma
pel, etc., como reaproveitar estas coisas. En- ação política que está presente na ação de
tão há a recriação disto tudo aí que acom- reaproveitamento.
panha uma tradição do produto artesanal.
O homem, o artesão, sempre aproveitou o Paulo - Pode até ter as duas dimensões?
que o meio ambiente lhe deu para criar ob-
jetos. Se estiver na zona rural, e tem madei- Ricardo - O processo criativo pode ter as
ra ou uma boa fonte de barro, ele vai fazer duas dimensões. Eu não sei se você conhe-
gamelas, pilões ou potes e panelas com bar- ce, no Paraná, uma mulher chamada Efigê-
ro. Se estivermos no mundo urbano, onde a nia Rolim. É uma grande artista do lixo e a
matéria prima abundante é o lixo, o pet, o história dela é muito interessante. Ela é uma
papel, etc., com certeza estas matérias serão mineira que migrou para o Paraná, com o
reaproveitadas para se criar com elas ou- marido e uma penca de filhos. Uma famí-
tras coisas: os objetos da reciclagem. O que lia de origem rural, portanto. Ela saiu do in-
pode acontecer é algo totalmente novo co- terior de Minas para o interior do Paraná e,
mo o pet. De repente, você começa a encon- por falta de mercado de trabalho, acabou
trar muita coisa feita de pet, que pode vir a parando na periferia de Curitiba. E ela vi-
se transformar numa tradição efetivamente, veu o azar de o marido ficar doente, total-
igual aos objetos feitos de borracha e lam- mente impossibilitado em cima de uma ca-
parinas feitas de lata, ou a bruxinha de pa- ma, cabendo a ela ter que prover a família.
no feita de restos de tecido. Ela passou então a sair pelas ruas de Curi-
tiba pedindo, catando coisas para poder ali-
Paulo - Repensar até a própria idéia do li- mentar o marido, os filhos, aquele sofri-
xo, não como a coisa que tem que se jogar mento todo. Ela narra que um dia ia pela
fora, mas como uma matéria que pode ser rua, já morta de fome, sem saber o que fa-
reaproveitada? zer, sabendo que em casa não tinha nada
de comida para os filhos, que estavam to-
Ricardo - Exatamente. É interessante que a dos com fome e o marido em cima da ca-
questão do lixo, da sucata, da reciclagem é ma e ela desesperada. Ela diz que chegou
sempre pensada a partir de dois vieses: por um momento, já de tamanho sofrimento e
um lado é associada a uma economia da po- fome, que passou a ter visões e ela olhou
breza, quer dizer, a ausência de recursos faz uma coisa que brilhava no chão. Ela achou
o indivíduo lançar mão do lixo para criar que fosse uma jóia e saiu correndo para pe-
seus objetos porque ele não tem dinhei- gar. Quando viu, era apenas um pedaço de
ro pra comprar materiais nobres. Então ele papel, um papel de bala. Ela conta que deu

200 R. Pós Ci. Soc. v.8, n.15, jan./jun. 2011


um desespero muito grande, que se sentou pa em esconder nada do que faz, o material
no meio fio e começou a chorar, de fome, de sucata que utiliza está ali, presente na
de desespero, pensando no que poderia fa- peça que cria por vezes o frasco de sham-
zer, chorando, chorando e mexendo naque- poo traz ainda a etiqueta de preço com que
le papel na mão. Quando ela olhou, ela ha- foi adquirido no supermercado.
via feito um aro, um anel com o papel. E aí
ela teve o grande insight: que era catar pa- Paulo - É possível você ter um artesanato
péis pelo chão e criar coisas. Ela viu que ti- criativo, que cria outra cultura, uma cul-
nha feito uma forma e poderia fazer outras, tura nova, que tem um valor cultural, as-
como bichinhos e tentar vender esses bichi- sim como o tradicional?
nhos que alguém compraria. E assim ela fez
e hoje é considerada uma artista fantástica, Ricardo - Certamente. E isso acontece a to-
que vive de reciclagem. Tem casa própria, do o momento. As obras de Efigênia Rolim,
tem, como se diz, “condição financeira”, de Getúlio Damada e de tantos outros são
não é uma pessoa rica, mas conseguiu criar exemplos disto.
a família dela e ter uma situação estabiliza-
da. Para cada coisa que cria com os papéis, Paulo - Agora falando novamente do ob-
ela conta uma história, tudo tem uma his- jeto tradicional e cultural e dos artesãos e
tória, tem um sentido. E ela vive disto, dos artesãs que trabalham com a fibra do bu-
objetos que cata no lixo: papel de bala, pa- riti, que é o tema da minha pesquisa. Este
pel de bombom, sapato velho, aos quais dá artesanato esta presente, não só no Mara-
forma e acrescenta uma história, uma esté- nhão, mas em outras regiões do Brasil: Mi-
tica. Seus objetos passaram a ser disputados nas, Goiás, Bahia, etc. Você mesmo já pes-
num certo mercado. Ela cria do lixo coisas quisou, já trabalhou com regiões que utili-
que partiram da pobreza, do desespero, mas, zam o buriti. Gostaria que você falasse da
tenho certeza, seu processo criativo não fi- importância da fibra vegetal e da fibra do
cou preso à carência de meios. Hoje, Efigê- buriti. Qual a importância do artesanato a
nia teria total condição de construir uma base da fibra de buriti no Brasil?
obra plástica que não precisasse mais de li-
xo, mas, no entanto ela tem a opção de tra- Ricardo - Eu posso até falar um pouco, mas
balhar com essa matéria prima, como ex- o tema é seu, você que é o pesquisador do
pressão de arte, o que é uma coisa fantás- buriti. O buriti é uma palmeira muito im-
tica. Aqui no Rio, em Santa Tereza, temos pressionante, porque dela se aproveita tu-
o Getúlio Damada, que os irmãos Campana do, do caule à folha, do fruto à flor. Outro
definem como o grande artista contempo- dia eu tomei um licor feito da flor do buri-
râneo brasileiro. Getúlio realiza uma obra ti. E há o doce do fruto, a palha que cobre
fantástica, toda na base da sucata, do lixo, a casa, faz também a parede, a bolsa e a es-
do pet, do plástico, do resto de madeira, pe- teira. O talo da folha faz o brinquedo, a cai-
ças de computador, etc. Fez uma exposição xa e faz a cadeira, a mesa, a cama e toda a
no ano passado na Alemanha, maravilho- mobília de uma casa. Seu tronco ergue a ca-
sa, onde as pessoas reverenciaram sua obra. sa e por aí vai. Isso numa extensão grande
Ele tem um trabalho enorme, fantástico, to- pelo país. Por onde se passa, e que se vê bu-
talmente descensurado. Ele não se preocu- riti, você encontra um artesanato ligado a

Artesanato em debate 201


essa palmeira. Em Barreirinhas, por exem- sãos que falam: ”Não, o senhor está enga-
plo, há uma produção de objetos que é úni- nado, isso aqui já tinha no meu tempo, vai
ca. São bolsas, chapéus e muitas outras pe- ter no meu filho, no meu neto, como tinha
ças de excelente feitura e de um estilo pró- no tempo do meu pai, no meu avô, meu bi-
prio, todo especial. É um tipo de artesana- savô. Barro sempre existiu e sempre vai ter,
to de buriti que, onde você o encontra, lo- porque ele brota debaixo da terra, ele brota
go identifica como sendo de Barreirinhas, com a lua e ele vai sempre nascendo mais.”
do Maranhão. Por causa do tratamento da- As comunidades, por exemplo, de Apiaí, no
do à seda, que lá é chamada de linho. Linho sul de São Paulo, divisa com o Paraná, di-
de buriti. Em outros lugares é chamado se- zem que “barro é encante”, que ele brota do
da. O que acho muito interessante também é solo durante a noite. Ele cresce e fica ali es-
que grande parte das comunidades que co- condido debaixo da terra. Basta você desco-
nheço, quase que a totalidade, que traba- bri-lo. Se você souber olhar a natureza di-
lha com buriti, tem um conhecimento muito reito, você vai ao lugar certo, cava e vai en-
grande sobre o manejo da espécie. A histó- contrar o barro. Que não vai acabar nunca.
ria do olho do buriti, de onde sai o linho ou As paneleiras de Goiabeiras, em Vitória, no
a seda, que só pode tirar um, depois tem que Espírito Santo, cujo ofício foi declarado pa-
deixar nascer e crescer outro, senão mor- trimônio imaterial do país, primeiro bem de-
re a palmeira. Há pessoas que ficam muito clarado patrimônio imaterial brasileiro, por
preocupadas que a extração contínua aca- exemplo, tem essa concepção: de que a re-
be com as espécies vegetais. Eu nunca con- serva, o barreiro, ali não acaba nunca, en-
duzi um projeto que fosse a longo prazo nu- quanto o trabalho científico está mostrando
ma localidade, que me permitisse acompa- que o barreiro está se esgotando. Vai che-
nhar as espécies locais e saber se, realmen- gar uma hora em que a reserva do Vale do
te, a população tem esse cuidado com o ma- Mulembá, onde extraem a argila, vai acabar.
nejo. Sei, no entanto, que o conhecimento Para as “paneleiras”, não, aquilo não acaba
existe e se revela no discurso dos artesãos: nunca, há sempre barro mais embaixo, que
a necessidade de se cuidar da espécie an- vai brotando, vai aflorando na superfície.
tes que ela desapareça, que se você extrair Vai chegar o dia em que vai acabar sim. Isto
muito daquele pé você vai matar o pé, então já acontece em algumas comunidades onde
você tem que estar tirando o olho do buriti dizem que o barro já não é o mesmo, que “o
com bastante cuidado e atenção. Mas este é barro está fraco”.
um tema muito mais seu do que meu.
Paulo - E depende da produção. Se for
Paulo - É uma consciência ambiental? uma produção mais intensa o barro pode
acabar?
Ricardo - É sim. Só que, às vezes, pode não
haver consciência em outras espécies de ar- Ricardo - Pois é, corre-se esse risco quan-
tesanato. Por exemplo, uma coisa que é mui- do se intensifica o ritmo de produção. Te-
to difícil no Brasil é a consciência dos arte- mos que reconhecer que, em algumas loca-
sãos de barro. Há uma concepção de que o lidades há muito desperdício. Às vezes, se
barro não acaba nunca, suas reservas seriam retira o barro de qualquer jeito, se joga fo-
inesgotáveis. Eu converso com muitos arte- ra muito barro e não há preocupação com

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a conservação já que se acredita ser um re- parecendo, como aconteceu em Tibau, no
curso inesgotável. Então isso me preocupa Rio Grande do Norte. Daí os artesãos come-
junto às comunidades brasileiras que lidam çam a por anilina e pigmento da marca xa-
com barro, embora seja muito difícil mudar drez na areia, para poder pintar a areia com
a concepção, porque muitos me dizem: “- que vão trabalhar, porque os tons naturais
Não, no caso, o senhor está enganado, isso estão desaparecendo. Então a consciência e
não vai acabar nunca, porque barro nasce as dificuldades variam de acordo com a ma-
aí debaixo, a gente tira e nasce mais”. Co- téria prima. O caso da madeira, por exem-
mo dizem em Apiaí: “barro é encante”. plo, é dificílima em muitas regiões, já que
não há o hábito do plantio, do manejo das
Paulo - Essa consciência ambiental ela é espécies. Essa questão não diz respeito ape-
importante não só na fibra vegetal como nas aos artesãos, como sabemos. É um caso
também no barro? de política, e de polícia, nacional. O desma-
tamento no país fala por si mesmo.
Ricardo - Ah, sim, em todos os recursos na-
turais. Agora em alguns casos, vejo que os Paulo - Fale sobre o programa que você
artesãos estão mais conscientes, outros me- coordena hoje: o PROMOART.
nos. Eu passei este ano por Aracati, no Ce-
ará, onde fazem aqueles trabalhos com gar- Ricardo - O Promoart – Programa de Pro-
rafas de areia. Os artesãos estão bastante moção do Artesanato Tradicional – atua di-
preocupados, porque eles vêem limites no retamente em 65 polos espalhados pelo pa-
que fazem, que uma hora vão-se acabar as ís. É o resultado e a continuidade de experi-
minas de areia colorida. É tudo muito difí- ências na área, levadas a efeito pelo Centro
cil. Por um lado há os organismos estatais Nacional de Folclore e Cultura Popular, que
que estão fiscalizando, e que podem impedir tiveram início há alguns anos. Contando a
que o artesão retire areia por se tratar de um história toda: em 1983, o CNFCP abriu um
manancial natural que precisa ser preserva- espaço chamado Sala do Artista Popular,
do. Por outro lado, há a especulação imobi- que se pretendia um espaço de exposição e
liária ocupando as falésias, áreas que estão venda de artesanato qualificado, porque vi-
sendo loteadas, mansões sendo construídas nha acompanhado de uma pesquisa que si-
em cima das falésias onde está a areia co- tuava quem eram aqueles indivíduos que
lorida. Hoje, há apenas uma área em Ara- faziam aqueles objetos, como é que esses
cati onde eles ainda têm acesso para retirar objetos eram feitos, em que locais, em que
areia, mas retiram com muito cuidado, com situações ou contextos, a importância deles
medo, porque se o órgão governamental de pra aquelas comunidades produtoras enfim,
uma hora para outra proíbe a retirada de era todo um tratamento novo dado ao obje-
areia ali, eles ficam sem a principal maté- to artesanal no Brasil. O campo do artesa-
ria prima com que lidam. E os artesãos estão nato que ainda vigorava no país, numa cer-
sendo espremidos ali enquanto vêem aque- ta concepção de folclore, era visto como
las grandes mansões sendo erguidas nas fa- composto de objetos que refletiam “a alma
lésias, murando tudo, impedindo o acesso e do povo brasileiro” e, portanto, como obje-
ninguém se impondo contra a especulação tos coletivos eram também anônimos. Fei-
imobiliária. E a matéria prima vai ali desa- tos pelo povo, pelas comunidades, a partir

Artesanato em debate 203


de saberes coletivos em que a autoria não o indivíduo que vai receber as benesses do
era importante. O importante é que eles ex- Estado assistencialista. Enfim, a gente pas-
pressassem a realidade de uma “alma nacio- sou a fazer essas exposições e praticamente,
nal”. Em 1983, pretendemos mudar essa vi- toda a produção que chega, é vendida du-
são, mostrando que o artesanato brasileiro rante o período de permanência da mostra.
era resultado de formas bem concretas de Então, expor na SAP representava uma óti-
produção, em que havia comunidades pro- ma oportunidade para a comunidade que
dutoras, indivíduos produtores desses obje- depois ficava querendo voltar. Só que temos
tos e que viviam em situações concretas, por norma que o grupo expositor não volta
produziam em situações concretas. Tudo is- porque há muitas comunidades pelo país
so implicou em a gente abrir a Sala do Ar- esperando a oportunidade de expor. Mas a
tista Popular, a SAP, como é mais conheci- insistência era grande demais. Daí, volta e
da, onde passamos a fazer exposições dos meia, criávamos um artifício como uma co-
trabalhos de indivíduos e comunidades que letiva de presépios, ou uma mostra de ima-
convidávamos a expor. Para isso realizáva- ginária sacra, ou de brinquedos, convidan-
mos pesquisa e documentação fotográfica do a todos que trabalhavam com o tema.
em campo e editávamos catálogos como re- Mas isso não resolvia o problema porque
gistro da realidade desses agentes. Falo no eram chances eventuais. Resolvemos então
passado, mas o projeto SAP está em pleno criar um espaço que chamávamos “lojinha”
funcionamento e hoje é subvencionado pela para que as comunidades que haviam pas-
Caixa Econômica Federal. Acredito que seja sado pela SAP e que, portanto, estavam do-
um dos espaços desta natureza mais antigos cumentadas com catálogo, fotografias, etc.,
do país. É um projeto que vem resultando pudessem comercializar sua produção de
em grande sucesso. Não conheço muitos es- forma mais permanente, e com informações
paços como este, que tenham durado tanto para que pudéssemos atender ao público
ao longo do tempo. Enfim, se convida uma com dados mais qualitativos sobre os obje-
comunidade, faz-se o trabalho de campo, tos e seus autores. Começamos a comercia-
edita-se o catálogo e o expositor exibe e lizar então os produtos em forma de consig-
vende sua produção por um período de 30 a nação. Todos que passaram pela Sala po-
40 dias, definindo livremente o preço das diam expor e vender permanentemente seus
peças sobre o qual se acrescenta uma taxa produtos aqui. Só que observamos que as
de 20%, dizendo que essa taxa contribui, exposições eram inauguradas, as comuni-
por exemplo, para a contratação da pessoa dades vendiam, mas, que apesar do sucesso,
que faz as vendas, inclusive aos sábados, algumas delas não mais encaminhavam
domingos e feriados, já que o espaço abre seus produtos. Aí vinha o público e falava:
também nesses dias. Na verdade, os 20% es- “Olha, vocês fizeram uma exposição da te-
tão longe de cobrir as despesas do espaço, celagem de Berilo, lá do Vale do Jequitinho-
mas é uma forma de não botar o artesão nu- nha. Eu comprei uma colcha e queria com-
ma situação passiva diante do que poderia prar outra porque gostei muito ou queria
ser “assistencialismo” do Estado. Quer dizer, dar de presente, mas nunca mais vocês ven-
bancar parte da exposição, mesmo que de deram”. Aí entrávamos em contato com a
forma quase simbólica, dá ao artesão outro comunidade para saber por que não manda-
estatuto na relação com o Estado: ele não é vam novas peças e ouvíamos que estavam

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com problemas para isso. Se era uma comu- oportunidade. Acabamos abrindo mão do
nidade de cerâmica, por exemplo, eu ouvia: nome PACA e foi criado o Artesanato Soli-
“Ah, o barro ficou muito difícil de a gente dário, que foi testado no pólo do Candeal,
conseguir, porque era tirado na terra de no município mineiro de Cônego Marinho,
uma fazenda que foi vendida e o novo pro- que acabou se transformando em minha te-
prietário não deixa tirar mais.” Enfim, co- se de doutorado. A metodologia foi adapta-
meçamos a ver que havia problemas que da, funcionou, e chegamos ao modelo que
não estavam no nível da comercialização, se implantou como Artesanato Solidário.
mas da produção. Problemas que impediam Trabalhamos com 26 comunidades naquela
os produtores de prosseguir fazendo seus época. O Artesanato Solidário vigorou, co-
objetos. Aí montamos um projeto chamado mo uma ação do governo até o final do go-
PACA (Programa de Apoio a Comunidades verno Fernando Henrique, quando foi trans-
Artesanais) de modo a poder ir a campo, formado numa OSCIP (Organização da So-
diagnosticar o que estava acontecendo e a ciedade Civil de Interesse Público), porque
partir daí, com os artesãos, desenvolver dona Ruth temia que, com a mudança de
ações que ajudassem a viabilizar o fluxo da governo, o programa desaparecesse. O Arte-
produção. Esse projeto foi feito na década Sol existe ainda hoje, com sede em São Pau-
de 1990 e como não tínhamos recurso, ficou lo, e atua em vários pólos artesanais pelo
uns dois anos engavetado, até que fomos país. Nós permanecemos aqui, no CNFCP,
procurados, no governo Fernando Henri- órgão do IPHAN/MinC e criamos então, esse
que, pela equipe da primeira dama, a antro- novo programa chamado PROMOART, que
póloga Ruth Cardoso, que queria investir no é um programa de apoio a comunidades tra-
campo do artesanato. Havia no Brasil uma dicionais, de produção de artesanato tradi-
tradição de as primeiras damas trabalharem cional, com recursos do Mais Cultura e
com artesanato. Existiu a LBA que sempre aporte do BNDES. Estamos atuando, nesta
era presidida por primeiras damas, onde o primeira fase, em 65 comunidades de 22 Es-
artesanato ocupava um papel muito espe- tados do país. É através do Promoart que es-
cial. Ruth Cardoso vinha organizando a Co- tamos no Maranhão, nos municípios de
munidade Solidária. Havia a Alfabetização Barreirinhas, apoiando as artesãs do buriti,
Solidária, a Universidade Solidária, a Capa- em Raposa, apoiando as rendeiras do bilro e
citação Solidária e ela queria também intro- em São Luis, com os bordados criados a
duzir o ramo do Artesanato Solidário, mas partir do bumba meu boi. É um programa
não queria trabalhar na forma que tradicio- que tem como princípio o não direcionismo
nalmente se trabalhava do assistencialismo, em termos de ações. Atuamos orientados
do clientelismo, da troca do apoio pelo vo- por um rol de possibilidades que é discutido
to. Queria uma forma mais respeitosa de se com cada comunidade, a partir de um diag-
lidar com as comunidades tradicionais pro- nóstico inicial e de reuniões com os arte-
dutoras de artesanato e nos buscou naquela sãos. Através desses mecanismos se definem
época, justamente, pela experiência que a quais os problemas daquela comunidade,
instituição tinha acumulado ao longo dos em que linha se vai atuar, como atuar, etc. É
tempos no trato com o artesanato. O casa- um programa muito aberto, que pode atuar
mento foi perfeito, porque tínhamos o PA- tanto no apoio à produção como na comer-
CA, uma metodologia na gaveta, esperando cialização ou na divulgação. Podemos de-

Artesanato em debate 205


senvolver ações como compra de equipa- nal geralmente não está organizado nas ba-
mentos, facilidades de acesso a matéria pri- ses que a legislação entende por organiza-
ma, compra de matéria prima, promover ção. E nem sei se deveria estar. A legislação
oficinas de gestão, organização de grupo, pressupõe, por exemplo, que você só pode
associativismo, repasse de saber, em que os aplicar recursos em obras, como construir
mais velhos, os mestres, transmitem seu co- ou reformar uma oficina, se ela não for uma
nhecimento para os mais novos, oficinas do propriedade privada. Ora, na grande maio-
que chamamos identidade cultural, em que ria, as oficinas artesanais acontecem em ca-
se discute o valor dos ofícios artesanais. sa dos mestres. É ali que se dá todo o pro-
Muitas vezes, as comunidades não têm cesso de transmissão de saber, todo apren-
consciência da importância daqueles obje- dizado e toda a produção. A legislação, no
tos que produzem e elas mesmas se admi- entanto, cria obstáculos a que eu possa re-
ram: – “Mas seu Ricardo, o senhor saiu do formar essa oficina para que o grupo tenha
Rio pra vir aqui ver essas coisas! O quê o se- melhores condições de produção. Então fi-
nhor vê de bonito nisso? Isso não vale na- camos amarrados em estruturas como asso-
da.” Então você discute com eles toda a im- ciações e cooperativas que, por vezes, ine-
portância do seu fazer, do conhecimento xistem junto aos grupos com os quais atu-
que está contido ali. Realizamos ações como amos. É preciso que se reconheça que a for-
doação de computador, para aquelas comu- ma de organização familiar, por exemplo, é
nidades que já estão mais estruturadas e uma forma tão legítima como a associação.
querem realizar, por exemplo, venda pela É o que venho defendendo: obrigar uma co-
internet, elaboração de catálogos de produ- munidade que está estruturada em núcle-
tos, exposições, documentários etnográficos os familiares de produção de artesanato a
para divulgação dos pólos, elaboração de si- se transformar numa associação com CNPJ,
te, embalagens, enfim, as linhas de ação são pra eu poder apoiá-la, é um contrassenso.
muitas e o programa atua dependendo da É negar os princípios culturais da organiza-
comunidade, a partir do que se planeja de ção artesanal. Se eu reconheço que o valor
comum acordo com os artesãos. da produção artesanal está no modo como
seus produtores fazem as coisas, em sua vi-
Paulo - O PROMOART é um programa per- são de mundo, seus valores, sua cultura en-
manente? fim; por que eu tenho que transformá-los
numa associação com CNPJ? Mas, infeliz-
Ricardo - Esta primeira fase que começou mente, é isso que a lei exige.
no ano passado, 2009, vai até o ano que
vem. Estamos numa fase inicial, portanto, Paulo - Famílias e grupos também, grupos
vendo como a coisa vai prosseguir. É uma de vizinhança?
fase que está em teste, na verdade. Tudo foi
muito difícil no início, porque estamos su- Ricardo - Grupos de vizinhança, exato. Por
jeitos a uma legislação pública muito árdua que eu não posso reconhecer esses grupos
e difícil de lidar, em especial para você me- como legítimos? Eu não posso, por exem-
xer com artesanato no país, pois a legisla- plo, investir recursos do programa pa-
ção pública tem pressupostos que exigem ra consertar um forno de queima de louça,
uma sociedade organizada. E o setor artesa- de cerâmica, em determinada comunidade,

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porque o forno, embora atenda a um núme- co em formas organizacionais senão aquelas
ro grande de artesãos, está construído no que a administração pública tacanha define
terreno de Dona Fulana. Pela legislação, pa- como legítimas. Cansa ter que vencer difi-
ra eu arrumar esse forno, que está deterio- culdades como a que enfrentamos numa de-
rado, por mais simples que seja a ação co- terminada comunidade na Bahia onde, pa-
mo, por exemplo, cobri-lo, fazendo uma co- ra retirar o barro, lá nas gripas de um mor-
bertura de modo que o grupo possa fazer a ro, as mulheres passavam por grande sacri-
queima da louça sem o risco de perder to- fício. São pessoas idosas que dependem de
da a produção com a chegada repentina de alguém que extraia o barro e o transporte lá
chuva, durante uma sessão de queima, eu de cima para baixo. A solução apontada pe-
tenho que transformar esse grupo numa as- la própria comunidade, que facilitaria mui-
sociação. Paralelamente, a dona do quintal to a vida das artesãs, seria comprar um ju-
onde o forno comunitário foi erguido tem mento. Isto evitaria que as pessoas tivessem
que dimensionar aquele terreno, ir ao cartó- que descer a serra com o barro pesado nas
rio, doar esse terreno para a associação. Só costas. E como você compra um jumento, a
então eu poderei investir dinheiro público partir de princípios que vêem o uso de um
e consertar esse bem, que é um bem de um jumento como índice de atraso, de não de-
grupo constituído, mas não reconhecido pe- senvolvimento? Aí, as “instituições” falam:
la legislação pública. É uma situação ridícu- “Ah, não seria mais aconselhável doar um
la, pois, muitas vezes, a solução do proble- helicóptero? Será que elas não gostariam de
ma do grupo não chega a 200 reais e eu não um helicóptero? Ou seria mais producente
posso aplicar um real sequer na ação de sal- construir um teleférico? Será que um tele-
vaguarda desse bem. férico não resolve o problema?” É claro que
estou exagerando, mas a situação vivida foi
Paulo - Acaba tendo que fazer uma inter- quase esta. Quero dizer que o grau de dife-
venção? rença de lógica, as escalas de valor são mui-
to distintas. E nós, gestores públicos ou “an-
Ricardo - O tempo todo é assim. Então aca- tropólogos da ação” temos que descobrir
ba sendo muito árduo. Estamos perdendo caminhos para lidar com a legislação. Te-
muito tempo numa burocracia de meio pa- mos que encontrar mecanismos, formas de
ra poder realizar uma ação lá no fim. Sin- driblar essas dificuldades sem cair na ilega-
to-me como se negasse o valor que aquela lidade, para poder executar projetos. Com
forma de cultura tem, e que no discurso eu isto você perde um tempo enorme e o tesão
valorizo. Eu digo que o grande valor cultu- pelo que faz. Há um desgaste enorme e, o
ral do artesanato de cunho tradicional está que é pior para mim, você desmerece exata-
no modo como os indivíduos, seus produto- mente aquela cultura que quer valorizar. É
res, se organizam para produzi-lo. São gru- a forma de organização familiar que permi-
pos familiares ou de vizinhança, de compa- te fazer aquela louça. Para apoiar os produ-
drio, etc. Agora, na hora de eu apoiar esses tores tenho que transformá-los numa asso-
grupos isso tudo não vale nada, eu tenho ciação, negando aquela forma de organiza-
que transformá-los, e eles têm que ser uma ção, de vida, que entendo como a riqueza a
associação ou uma cooperativa com CNPJ, ser preservada.
porque eu não posso aplicar dinheiro públi-

Artesanato em debate 207


Paulo - É uma dificuldade do programa? levar essas pessoas para expor o que fazem,
em Brasília, em São Paulo, aqui no Rio, pe-
Ricardo - Do programa em relação à legis- lo Brasil, mas as pessoas não têm documen-
lação que vigora no Brasil hoje, que pare- tação para viajar, não posso trazê-las aqui
ce que é feita a partir do pressuposto de que porque não têm identidade, não têm CPF,
você quer burlá-la a todo tempo, de que vo- eu não consigo comprar uma passagem de
cê é sempre um desonesto, que quer lidar avião e embarcá-las. Então é preciso resol-
com as coisas de modo escuso. Então, so- ver a questão da cidadania, é preciso docu-
mos subordinados a uma legislação res- mentar essas pessoas. Se são analfabetas,
tritiva, porque em princípio somos deso- como é que vão tomar conta do processo de
nestos. Então nada é possível fazer. Esse é suas vidas como artesãs? É o que eu gosta-
um problema seriíssimo que dificulta mui- ria que acontecesse, que elas se estruturas-
to na condução de políticas públicas que li- sem e vivessem do que sabem fazer. Mas aí
dam com comunidades tradicionais de bai- eu esbarro no analfabetismo, esbarro muito
xa renda, que seguem princípios organiza- na questão do alcoolismo junto a camadas
tórios outros que não aqueles defendidos de baixa renda e isto é um problema sério.
pelo Estado “racional” moderno. Fazer ar- Esbarro no problema da ausência de títulos
tesanato não é uma ação isolada. É aqui- de propriedade em comunidades que ocu-
lo que falávamos no início: o objeto artesa- pam áreas há centenas de anos. E com elas
nal tradicional não é mera mercadoria, tem eu não posso aplicar um tostão do dinheiro
a ver com a cultura, tem a ver com o modo público. É como se, para o Estado brasilei-
como as pessoas são. O indivíduo não faz ro, elas não fossem cidadãs, não existissem.
o objeto só porque precisa ganhar dinhei-
ro. E isto não pode ser ignorado e, portanto, Paulo - A questão é que tem vários pro-
nas ações voltadas para o setor, não dá pa- blemas na realidade social dos artesãos.
ra pensar isoladamente nisto, porque muitas
coisas dependem de outros fatores. O ide- Ricardo - Há situações dramáticas. Há co-
al seria a reunião de várias instâncias pú- munidades de baixa renda, com necessi-
blicas para se trabalhar. Eu conheço comu- dades grandes, um nível de fome extrema,
nidades que produzem artesanato excelen- de carência absoluta. Aí você implemen-
te, mas que para lidar com elas, tenho que ta a questão do artesanato e eles produzem,
atuar também na questão da cidadania, por- aí você faz uma exposição e gera um mon-
que as pessoas não têm um documento, são tante de recursos. E você fala: “-Que ma-
analfabetas, têm problemas de saúde, mo- ravilha! Venderam tudo, agora vai entrar
ram em terras sobre as quais não têm qual- um dinheiro grande lá.” Num caso verídi-
quer título de propriedade ou posse. Então, co, quando o dinheiro chegou à comunida-
se eu quero apoiar o modo como produzem, de, qual foi a primeira coisa que os artesãos
tenho que atacar esses males. Não adianta fizeram? Saíram e foram comprar comida
eu querer a produção de uma comunidade para casa. Só que antes da comida, compra-
onde as mulheres estão doentes. Eu preci- ram a bebida, a cachaça. E aí voltaram pa-
so do Ministério da Saúde junto, para trans- ra casa, aonde não chegaram. Isso eu pre-
formar essas pessoas em pessoas saudáveis senciei, pessoas caídas à beira da estrada,
para poder produzir o artesanato. Eu quero com as compras ao lado, abraçadas à garra-

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fa de cachaça. Totalmente alcoolizadas não contribuição, da aposentadoria. É um pon-
conseguiam chegar a casa. Em determina- to complexo porque é uma categoria muito
das comunidades, em conseqüência do ál- ampla, você tem hoje desde esse artesão ur-
cool, há muita violência. Quanto mais di- bano formado em cursos do SENAC, SENAI
nheiro entra, mais se bebe, por uma ques- ou ligados ao SEBRAE, que é uma gama de
tão social e cultural que é muita séria, que pessoas que vêm pensando o artesanato co-
não dá para um antropólogo sozinho resol- mo mercado, artesãos discutindo questões
ver. Porque essa comunidade da qual estou de incubadoras, de estratégias de inserção
falando tem o hábito da bebida muito arrai- no mercado, até o trabalhador rural que faz
gado em sua maneira de viver. As crianças o artesanato na hora vaga, na entressafra.
começam a beber muito cedo. Os pais têm Então é uma categoria de produção muito
o hábito de, a partir de dois meses de idade complexa. Pensar o artesanato como profis-
do bebê, pegar meio copo d’água, misturar são e com contribuição... Vou te dizer, al-
uma colherinha de cachaça, umedecer um guns quererão fazer isto, se tornar profissio-
paninho e dar ao bebê para chupar. “- Não nais, outros recusarão, não quererão contri-
tem problema não, ele fica calminho, dorme buir. Até mesmo porque vivem num limiar,
a noite toda, é só uma coisinha pra criança porque há muito artesão cuja renda é muito
acalmar e dormir bem à noite”. A partir de pequena realmente. Menos que um salário
dois meses eles chupam cachaça com água, mínimo mensal. Esse não tem condições pa-
então o grau de alcoolismo na comunidade ra contribuir. Eu conheço artesãos aqui no
é enorme, acredito que 98% da comunidade Rio, o artesão urbano, que vive de fazer bi-
é alcoólatra. Eu não sei como lidar com is- juterias e bolsas, que tem interesse em ter
so. É preciso o pessoal da saúde junto. En- o artesanato como profissão, de modo que
tão as políticas públicas para o artesanato, a possa contribuir, ter seus direitos, inclusi-
meu ver, carecem disto: precisam do entro- ve à aposentadoria. Muitas vezes, essas pes-
samento de diferentes setores, de diferentes soas encontram formas de contribuir como
ministérios, para atuar em todos os planos, autônomos e garantir direitos.
da cidadania, à saúde, educação e cultura.

Paulo - Precisa de um esforço conjunto?

Ricardo - Enquanto política pública isto se


pressupõe.

Paulo - A última questão Ricardo é a ques-


tão dos trabalhadores do artesanato.

Ricardo - É uma questão séria, a da pro-


fissão. Já há um tempo que se discute isso.
Lembro-me, há uns vinte anos atrás, eu in-
do a Brasília para reuniões de discussão so-
bre a matéria. A questão da profissionali-
zação, da carteira de artesão, a questão da

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Casa das Artesãs do Povoado Marcelino - Artesã Sonia – Barreirinhas – MA
Fotografia de Paulo Keller - 2010

Apoio Técnico: Joana Golin Alves Recebido em: 30.05.11


Bolsista FAPEMA Aprovado em: 08.06.11

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