Você está na página 1de 5

14/02/2019 Controlar não é amar – Observador

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Controlar não é amar


Catarina Furtado Seguir

14/2/2019, 0:03  5 

A violência no namoro ainda não ocupa páginas de jornais nem abre


noticiários, mas estará lá perto. É muito comum rapazes e raparigas não
terem noção do seu papel de vítima ou agressor.

Lembro-me de quando vivia em Londres, há muitos anos, ficar completamente


horrorizada com os números divulgados pelos meios de comunicação social de
casos de suicídio e homicídio ocorridos no Dia dos Namorados, o famoso Dia
de S. Valentim. O impacto psicológico que uma efeméride, que tem sobretudo
uma conotação comercial, exercia (e ainda exerce) sobre as pessoas, é
verdadeiramente preocupante. A solidão, os desgostos passionais, as
desilusões fruto da construção de uma história de amor ideal, culminavam
numa morte, que eu diria, evitável.

Hoje é Dia dos Namorados. E a palavra que escolho para esta partilha é
prevenção. Prevenir sofrimentos que podem deixar marcar irreversíveis e
perpetuar outras, em cascata.
Para informar, investigar e incomodar contamos consigo Assinar 7.9€ /

https://observador.pt/opiniao/controlar-nao-e-amar/ 1/5
14/02/2019 Controlar não é amar – Observador

A Associação que fundei e presido há 7 anos, Corações Com Coroa (CCC) tem
trabalhado afincadamente a temática da violência no namoro em Portugal.
Comparando com os dados sobre a violência doméstica, as estatísticas sobre
esta realidade, são ainda escassas, mas já revelam um cenário que exige uma
resposta urgente, eficaz e em várias frentes por parte de todos, incluindo
governo, parlamento, institutos públicos, serviços, academia, sociedade civil,
educadores.

Segundo um estudo da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta)


28% dos jovens (rapazes e raparigas) considera normais os
comportamentos de controlo. Se pararmos para absorver estes números,
só poderemos chegar à conclusão que a não inversão destas percentagens irá
conduzir, com toda a certeza, a um aumento dos casos de violência doméstica e
da violência com base no género.

O estudo acrescenta ainda que 22% dos rapazes considera “legítima” ou


“justificável” a violência sexual; 33% considera “legítima” ou
“justificável” a perseguição e 19% das raparigas também. A
violência nas redes sociais é tolerada pelos adolescentes por
acharem normal, numa percentagem que vai dos 11% aos 24%. A
vitimização apresenta valores de 6% no que diz respeito à violência física e
sexual e 19% em relação à violência psicológica. O reconhecimento de atos
como violência (“não legítima”) é de 16% para o sexo feminino,
comparativamente com os 27% do sexo masculino.

As relações de intimidade saudáveis, consentidas e as não saudáveis e forçadas,


o bullying, o cyberbullying, a gravidez adolescente são, entre outros, temas
abordados pelo projeto artístico pedagógico CCC vai à Escola que a associação
tem levado a dezenas de escolas do país. Elfos e Anões é um texto original de
Jorge Palinhos com encenação de Natália Luiza, representado por dois atores,
em contexto de sala de aula, para turmas do 9.º ano, seguido de uma sessão-
debate orientada por uma técnica da CCC. São muitos os casos de violência no
namoro que têm sido relatados e/ou identificados pela equipa e nem sempre
na 3ª pessoa.

Para informar, investigar e incomodar contamos consigo Assinar 7.9€ /

https://observador.pt/opiniao/controlar-nao-e-amar/ 2/5
14/02/2019 Controlar não é amar – Observador

Efetivamente é muito comum rapazes e raparigas não terem noção do seu


papel de vítima ou agressor. Isto porque existem muitos conceitos que estão,
de facto, baralhados nas suas cabeças. No final da sessão do CCC vai à Escola, a
cada estudante é oferecido um cartão (com contactos de linhas de apoio) que
poderá assinar, numa espécie de compromisso pessoal, para que nunca se
esqueça: “Por amor não se faz isto:” e “Por amor não se sofre isto”.
Recentemente escrevi a letra para uma canção que é uma espécie de hino
contra a violência no namoro – O que é ser Normal? Apontar o dedo ao mal –
composta e produzida pelo Tiago Bettencourt, e cantada pela atriz Daniela
Melchior. O tema foi inspirado em muitos testemunhos que fui ouvindo ao
longo dos anos de cada vez que visito escolas para fazer palestras, para além do
material recolhido pelas nossas técnicas, nas consultas na sede CCC e nas
sessões CCC vai à escola.

A violência no namoro ainda não ocupa páginas de jornais nem abre


noticiários, mas estará lá perto. Infelizmente e por várias razões, uma delas,
talvez a menos óbvia é a abordagem que se faz dos casos de violência
doméstica e que se adivinha virá a ser a mesma em relação à violência no
namoro. Uma abordagem que não se baseia no conceito de direitos humanos e
que muitas vezes tem um efeito multiplicador quando não se oferece um
enquadramento sério, não se disponibilizam as linhas e os serviços de apoio
existentes, não se informa devidamente sobre o contexto social, não se evita o
sensacionalismo, não se diversificam as fontes e não se respeita as vítimas no
seu direito à reserva da intimidade e privacidade, esmiuçando pormenores que
alimentam populismos e inspiram outros. A Entidade Reguladora para a
Comunicação Social (ERC) veio manifestar a sua preocupação em torno das
notícias veiculadas nas últimas semanas sobre os crimes ocorridos, lembrando
que a imprensa tem um papel decisivo na formação da opinião pública,
assumindo particulares responsabilidades em matérias sensíveis. Temos de
querer estar mais e melhor informados para podermos contribuir para uma
sociedade que combate e recusa verdadeiramente a violência.

Há já 19 anos que, enquanto Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das


Nações Unidas para a População (UNFPA), recolho testemunhos de
adolescentes que vou conhecendo nos países em desenvolvimento e neste Dia
Para informar, investigar e incomodar contamos consigo Assinar
dos Namorados, deixo uma homenagem sentida a todas as milhares de
7.9€ /

https://observador.pt/opiniao/controlar-nao-e-amar/ 3/5
14/02/2019 Controlar não é amar – Observador

raparigas que conseguiram dizer Não a um casamento precoce ou forçado e às


que acabaram como vítimas, sendo que estão em risco 150 milhões, se nada se
fizer para evitar este desfecho até 2030. Mundialmente, uma em cada cinco
jovens casa antes de completar os 18 anos.

Homenageio também as cerca de 200 milhões de meninas, raparigas e


mulheres que foram sujeitas a uma mutilação genital feminina com o
argumento de “virem a casar bem, com um bom marido” porque só depois
dessa prática nefasta, são consideradas “puras” ou “adequadas” para serem
desejas e escolhidas.

Abraço ainda, as demasiadas jovens que se transformaram, sem saber muito


bem como, em meninas mães devido a uma gravidez precoce que lhes colocou
a saúde e os direitos em risco e lhes roubou ou limitou a possibilidade de
estudar ou de ter a profissão que desejavam, não lhes permitindo ter opção
sobre a sua própria vida. E alegadamente, tantas vezes, por “amor”. Ainda esta
semana, o Banco Mundial anunciou que o Brasil poderia aumentar a
produtividade anual em 3,5 mil milhões de dólares se as adolescentes
engravidassem só depois dos 20 anos.

Não esqueço uma rapariga moçambicana que entrevistei para o meu programa
Príncipes do Nada, a propósito de ter sido mãe aos 13 anos, e que me disse “eu
não sabia que podia dizer não. Tinha medo que ele me deixasse e nunca mais
gostasse de mim”. Ele, o rapaz, era mais velho e nunca chegou a assumir a
responsabilidade enquanto pai. Uma menina em tantas a engrossar as
estatísticas que nos deveriam envergonhar a todos e fazer agir, por AMOR a
um mundo bem mais igualitário e justo, onde ninguém deveria ser deixado
para trás.

PS – Deixo os contactos da Corações Com


Coroa: coracoeescomcoroa@gmail.com; ccc@coracoescomcoroa.org; www.cor
acoescomcoroa.org; 935 038 798 | 215 990 053

Presidente da Associação Corações Com Coroa


(CCC). Embaixadora de Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas
Para
parainformar, investigar e incomodar
a População (UNFPA contamos consigo Assinar 7.9€ /

https://observador.pt/opiniao/controlar-nao-e-amar/ 4/5
14/02/2019 Controlar não é amar – Observador

Agora que entramos em 2019...

...é bom ter presente o importante que este ano pode ser. E quando vivemos
tempos novos e confusos sentimos mais a importância de uma informação que
marca a diferença – uma diferença que o Observador tem vindo a fazer há quase
cinco anos. Maio de 2014 foi ainda ontem, mas já parece imenso tempo, como
todos os dias nos fazem sentir todos os que já são parte da nossa imensa
comunidade de leitores. Não fazemos jornalismo para sermos apenas mais um
órgão de informação. Não valeria a pena. Fazemos para informar com sentido
crítico, relatar mas também explicar, ser útil mas também ser incómodo, ser os
primeiros a noticiar mas sobretudo ser os mais exigentes a escrutinar todos os
poderes, sem excepção e sem medo. Este jornalismo só é sustentável se
contarmos com o apoio dos nossos leitores, pois tem um preço, que é também
o preço da liberdade – a sua liberdade de se informar de forma plural e de poder
pensar pela sua cabeça.

Se gosta do Observador, esteja com o Observador. É só escolher a modalidade


de assinaturas Premium que mais lhe convier.

Assine já

PARTILHE

COMENTE
Comente e partilhe
5 as suas ideias

SUGIRA

Para informar, investigar e incomodar contamos consigo Assinar 7.9€ /

https://observador.pt/opiniao/controlar-nao-e-amar/ 5/5

Você também pode gostar