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Universidade Federal Fluminense

Instituto de Ciências Humanas e Filosofia


Departamento de Psicologia
Aluna: Jeane Souza

Estudos Complementares de Psicologia Geral

“Meu corpo fez um contato inédito com o chão; senti que o chão se adequava ao meu

corpo, conforme ia realizando os movimentos. Era como se a superfície dura e de

temperatura fria tivesse mudado de textura, enquanto eu reconhecia cada parte do meu

corpo. O chão me abraçava...

Outro contato inédito foi o que eu percebi entre minha pele e o tecido das minhas

roupas. O toque da toalha pelo seu lado mais macio, nos meus braços, mãos e dedos,

até as orelhas, acordou toda minha pele. A partir deste despertar, senti meu corpo

dentro da roupa, ou será que senti a roupa envolvendo meu corpo?

Momentos curiosos nos meus sentidos, no instante em que, na formação das duplas,

era guiada enquanto segurava uma das extremidades da toalha, que estava torcida. Eu

era guiada por uma outra pessoa, que subia e descia minhas mãos, em movimentos não

programados. Estava de olhos fechados. Parecia que estava segurando um giz, e que

desenhava em um quadro mágico, que levava minhas mãos em movimentos que eu não

previa. Estava a ser guiada. Realmente estava? Até o presente momento, não sei dizer

seguramente...”. (Relato de aula prática de Eutonia)

As experiências vividas nesta disciplina foram inéditas para mim em múltiplos sentidos.

Um deles é que, em todo meu percurso acadêmico (que já se encaminha para uma reta

final), nunca tinha passado por uma disciplina de conteúdo prático como esta. Foi

possível perceber também que experimentar o próprio corpo, no sentido de pesquisar,


dirigir a atenção a ele, em detalhes, criou aberturas para expandir não só o movimento

do corpo, mas também o movimento do pensamento.

“(…) ter um corpo é aprender a ser afetado. Significando “efetuado”, movido, posto em

movimento por outras entidades humanas ou não-humanas. Se você não está engajado

nesta aprendizagem você se torna insensível, tolo, você cai morto. (…)”.Latour (2002)

Refletindo esta citação pude observar ou até mesmo me dar conta de que sem este “ser

afetado”, não há corpo. Quando tento imaginar isto, vem à mente a imagem das

estátuas descritas por Serres, quando nos ilustra sobre o banquete. Uma falta de

potência para vivenciar e partilhar algo, um endurecimento, uma rigidez que não permite

espaço para “degustação”, comemoração, e por que não dizer “co-labor-ação” (como

citado por Maria Thereza Feitosa, em seu artigo)?

Vários termos relacionados ao corpo como movimento, afecção, articulação,

insensibilidade, rigidez, me fizeram lembrar muito das questões da própria clínica. Não

são poucos os encontros que temos, dentro ou fora da universidade, com pessoas que

chegam a nós como estátuas, despotencializadas, enrijecidas em moldes de

representação sufocantes, sem possibilidades de movimentos outros, de articulações,

de afecções...

Trazendo de volta a experiência para mais perto do meu próprio corpo, descobri neste

meu “território” muitos desconhecidos. Lembro que em uma das aulas, ouvi que a pele

delimita o corpo sem isolá-lo. Incrível pensar nesta superfície corporal como algo que

envolve o corpo, mas não o encarcera.

“Da nossa pele para dentro, tudo tende à colaboração. Justamente em Eutonia nos

propomos à liberação de bloqueios que estejam dificultando ou impedindo uma boa

cooperação.” (Feitosa, M.T). A partir desta ideia, notei que minha percepção sobre mim

mesma estava limitada. Como se estivesse envolvida em um cristal (como o do


sapatinho de Cinderela), me flagrei alheia ao que acontece em mim quando respiro, ou

quando uso minhas mãos, ou ainda o modo como me levanto e ando, os ossos que se

mobilizam para tornar um movimento possível, por mais simples que este seja.

Muitos movimentos que comumente passavam desapercebidos, foram resgatados para

se experimentar, observar, pesquisar, em busca de um contato. Estudei autores, mas

também pude estudar meu corpo, minhas possibilidades desconhecidas, escondidas

embaixo do cristal. Abriu-se as possibilidades de movimentos outros para meu corpo,

movimentos encobertos pelo automatismo do dia a dia, movimentos que pediam pouco a

pouco, uma chance de serem despertados.

Estar neste espaço foi uma oportunidade de experimentar, tanto na teoria quanto na

prática, a troca do cristal pelo veiro (termos do texto de Serres), de “degustar” a

construção de um corpo que foi se fazendo conhecido e se desenhando a cada

encontro, seja nos textos ou no chão. Posso afirmar que minha experiência foi uma

expansão de conhecimento distinta de todas que tive até aqui, um “acontecimento raro”

e precioso, que faço questão de levar comigo. Experimentei conhecer.

“(...) «conhecer» não é resultado automático de uma metodologia geral adequada a

todo o serviço: é, pelo contrário, um acontecimento raro.” (Latour, B.; 2004).

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