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Desenvolvimento rural no Brasil: os limites do passado e os caminhos do futuro ZANDER NAVARRO de “desenvolvimento” se algou a um campo de singularidade histérica, introduzindo-se como uma daquelas idéias-forga que atraem generalizado interesse, intensamente discutidas, orientando programas governamentais, insti- gando sofisticados debates intelectuais e, em especial, motivando grupos sociais interessados nos beneficios das mudangas associadas € esta nogao. Nesses mo- mentos, inscrito nas agendas sociais, o tema do “desenvolvimento” adentrou 0 campo da politica e, assim, passou a permear e a determinar as expectativas ¢ 0 jo- g0 das disputas sociais N: ‘ULTIMOS 50 anos, dois foram os momentos durante os quais a nogio O primeiro de tais perfodos nasceria nos anos seguintes & Segunda Guerra, especialmente a partir da década de 50, estendendo-se até o final dos anos 70. Nesse longo periodo, instigado pela polarizagao da Guerra Fria € seus opostos modelos de sociedade ¢, particularmente, sob o impacto do notavel crescimento econémico da época, que materializou um padrio civilizatério dominante, revo- lucionando o modo de vida ¢ os comportamentos sociais, a possibilidade do desenvolvimento alimentou esperangas ¢ estimulou iniciativas diversas em todas as sociedades. Seria assim apenas inevitivel que 0 desenvolvimento rural, como subtema imediatamente derivado, fosse igualmente um dos grandes motores das polfticas governamentais ¢ dos interesses sociais, igualmente inspirando um crescente conjunto de debates teéricos. Na época, muitas das sociedades atual- mente avangadas ainda mantinham parcelas significativas de sua populagio envolvidas em atividades agricolas ¢/ou habitando areas rurais (embora grad: tivamente menores); nos demais pafses, tais parcelas aleangavam muitas vezes proporgdes elevadas. Da mesma forma, era ainda significativo peso econdmico da agricultura nas contas nacionais, mesmo em paises que entdo formavam o blo- co mais avangado. & também relevante indicar que neste mesmo periodo, apés lenta acumu- lagao de inovagdes anteriores, constinuiu-se uma nova e acabada “compreensio de agricultura” que gradualmente se tornou hegeménica em todo © mundo, nto apenas no plano cientifico, mas nos diferentes sistemas agricolas dos pafses que a Esrupos AVANCADOS 15 (43), 2001 83 cla aderiram. Alicergada no que foi genericamente intitulado de “revolugao verde”, materializou-se de fato sob um padrio tecnolégico o qual, onde foi implantado de forma significativa, rompeu radicalmente com o passado por integrar fortemente as familias rurais a novas formas de racionalidade produtiva, mercantilizando gradualmente a vida social ¢, em lento processo histérico, quebrando a relativa autonomia setorial que em outros tempos a agricultura teria experimentado. Ci a disseminagao de tal padrao na agricultura, desde entio chamado de “moderno”, o mundo rural (¢ as atividades agricolas, em particular) passou a subordinar-se, como mera pega dependente, a novos interesses, classes e formas de vida e de consumo, majoritariamente urbanas, que a expansio econémica do perfodo ensejou, em graus variados, nos diferentes pafses. Esse perfodo, que coincide com a impressionante expansio capitalista dos “anos dourados” (1950-1975), € assim um divisor de 4guas também para as atividades agricolas, ¢ 0 mundo rural (re)nasceria fortemente transformado, tio logo os efeitos desta época de transfor- mages tornaram-se completos. Anosio de desenvolvimento rural, naqueles anos, certamente foi moldada pelo “espirito da época”, com o impeto modernizante (€ seus significados trajetdrias) orientando também as ages realizadas em nome do desenvolvimento rural, No Brasil, por exemplo, jé nos anos 70, sob a condugio dos governos mili- tares, um conjunto de programas foi implementado nas regides mais pobres, 0 Nordeste em particular, sob a égide do desenvolvimento rural (pois em outras regides o modelo era o da “modernizagao agricola”), Em tal contexto, a transfor- magio social ¢ econémica—e a melhoria do bem-estar das populagdes rurais mais pobres ~ foi entendida como o resultado “natural” do processo de mudanca produtiva na agricultura, Este tiltimo foi meramente identificado como a absors0 das novas tecnologias do padrio tecnolégico enti difundido, acarretando aumentos da produgio ¢ da produtividade ¢, assim, uma suposta ¢ virtuosa associagao com aumentos de renda familiar, portanto, “desenvolvimento rural” Jno conjunto dos paises entio alinhados com a érbita socialista as propostas nao cram em sua esséncia diferentes no tocante aos formatos tecnolégicos, modificando-se tio somente os aparatos institucionais, as formas de propriedade ca redistribuigdo dos eventuais resultados produtivos. As poucas excesbes a este idedrio produtivista que dominou aquele periodo (tanto & dircita como esquerda, saliente-se) também redundaram em experiéncias malsucedidas. Simbolicamente, apenas como ilustrasao, 0 caso da Tanzania, que parecia ser um dos mais inspiradores naquela época, com sua politica de desenvolvimento rural centrada nas comunidades de aldeias e nas lealdades étnicas (que ficou registrado na litera- tura sob a expresso de jamaa), igualmente fracassou em seus objetivos ccond- micos ¢ produtivos, embora deixando positivo rastro de priticas governamentais € uma nova institucionalidade que marcaria a trajetéria posterior daquele pais. Este primeiro perfodo, portanto, esgotou-se no final dos anos 70 em decorréncia 84 ddos insatisfat6rios resultados das propostas de desenvolvimento rural implemen- tadas em diferentes paises, particularmente com relagio & redusio da pobreza rural, que pouco se modificou. Ainda que em alguns paises — como a India ¢ a China ~ os resultados produtivos fossem expressivos, aos poucos consolidou-se a percepsio de que as compreensdes sobre o desenvolvimento (c 0 desenvolvimento rural, em particular) haviam sido demasiadamente otimistas. Tal desencanto tam- bém associou-se, certamente, ao estancamento da fase econémica expansionista do pés-guetta (refreado jé em meados dos anos 70) e, posteriormente, & vaga conservadora que gradualmente se instalou na virada daquela década, A partir dos anos 80, politicas inspiradas em enfoque que posteriormente seria rotulado de neoliberalismo, enfiaquecendo fortemente o papel do Estado na condusio eficaz, de suas politicas, igualmente retirariam o desenvolvimento rural da cena de discusses Assim, o segundo momento sob 0 qual o tema ressurge é muito recente: vencida esta transigio, que deixou os debates sobre o desenvolvimento na penumbra, este novo momento provavelmente foi demarcado a partir de meados da década de 90. Nos anos recentes, as motivasdes para o reaparecimento do debate sobre 0 desenvolvimento (¢ 0 desenvolvimento rural) modificaram-se radicalmente, caracterizando-se muito mais, a0 contrétio do primeiro perfodo, por uma percepeao acerca da aparente impossibilidade do desenvolvimento ou, pelo menos, suas imensas dificuldades de materializagao. Alids, pode-se ousadamente alirmar que talvez a inquietude social e politica gerada pela disse- minagio da desesperanca com relacio ao futuro é que, de fato, tenha reavivado o crescente interesse pelo tema do desenvolvimento. Um complexo conjunto de novos processos sociais ¢ econémicos — asso- ciados usualmente 4 expressio “globalizag20” — veio A lume, alterando radical- mente a estruturagao societéria da maior parte dos paises e seus modelos conven- cionais de interpretagao e, por conseguinte, as propostas de aso, governamentais ow aquelas oriundas da sociedade civil. Criou-se, como se sabe, um perfodo de incertezas € riscos, talvez sem precedentes. Neste quadro de mudancas répidas, profundas ¢ inéditas, © tema desenvolvimento — ¢ desenvolvimento rural — gradualmente reapareceu no teatro dos debates ¢ das disputas sociais, agora em escala global, Observe-se, por exemplo, a titulo de brevissima ilustragao, o atual € vigoroso debate sobre mudangas climéticas nascido a partir do chamado Protocolo de Kyoto, decorrente da culminagao dos impactos ambientais experimentados nas iitimas décadas, os quais tém nas formas predatérias de uso da terra um de seus componentes relevantes (embora nao o principal). Parece inegavel que este debate devers gerar novos contornos nos préximos anos, gerando ontras formas de gestio dos recursos naturais, provavelmente impositivas. Bastaria associar este fato & extraordinatia revolugao tecnolégica em curso na agricultura para concluir-se, necessariamente, que os anos vindouros estario (re)criando Esrupos AVANCADOS 15 (43), 2001 85

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