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Capítulo 2

Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.

Cultura
e hibridismo
cultural

Este capítulo apresenta um resumo do pensamento do antropólogo


Néstor García Canclini no que diz respeito à noção de cultura e suas
teses sobre hibridismo cultural, desterritorialização e descoleciona-
mento, tendo em vista o contexto latino-americano a partir do século
XX e diante de um cenário econômico capitalista. Também se dedica à
análise e à reflexão feita pelo autor diante das novas tecnologias, pro-
blematizando as potencialidades e os desafios enfrentados em âmbito
cultural, econômico e, especialmente, antropológico, ao levar em conta
a questão do relativismo cultural diante de um contexto de globalização.

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1 Cultura e hibridismo cultural

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1.1 Cultura no pensamento de Canclini

Néstor García Canclini é um antropólogo contemporâneo conhecido


por seu conceito de hibridismo (ou hibridação) cultural, tendo como foco
de seus estudos o contexto latino-americano e da pós-modernidade.
Para Canclini (1987, p. 25), podemos entender cultura como “parte da
socialização entre classes e grupos na formação das concepções políti-
cas e no estilo que a sociedade adota em diferentes linhas de desenvol-
vimento” (apud Canedo, 2009, p. 6, tradução nossa).

Figura 1 – Néstor García Canclini

Fonte: Wikipedia [s.d].

Seu entendimento de cultura, portanto, tem como interesse o fator do


desenvolvimento social, no que diz respeito às atividades culturais que

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são projetadas e realizadas com a intenção de proporcionar desenvolvi-
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mentos socioeducativos, desde a formação de uma massa crítica até o


apoio aos portadores de necessidades especiais e promoção de demais
atividades terapêuticas. Ainda, esse entendimento de cultura vislumbra
uma finalidade educativa e de auxílio ao “enfrentamento de problemas
sociais, como os altos índices de violência, a depredação urbana, a res-
socialização de presos ou de jovens infratores” (CANEDO, 2009, p. 6).

Segundo Canedo (2009, p. 6), a visão de Canclini é, por vezes, cri-


ticada em razão de seu utilitarismo, já que alguns autores acreditam
que o “valor da arte em si mesma [...] é o fato que a cultura pode e
deve exercer um papel na formação política e social dos indivíduos”.
É nesse sentido que Canclini prevê, como outro desdobramento, a
aliança com órgãos públicos na criação de políticas e iniciativas cultu-
rais. Canedo cita que:

O conjunto de intervenções realizadas pelos Estados, as institui-


ções civis e os grupos comunitários [devem ser] organizados
a fim de orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as ne-
cessidades culturais da população e obter consenso para um
tipo de ordem ou transformação social. Mas essa via precisa ser
ampliada, tendo em conta o caráter transnacional dos processos
simbólicos e materiais na atualidade (apud CANEDO, 2009, p. 11,
tradução nossa).

É com base nessa argumentação que Canclini aborda dois elemen-


tos-chave em sua noção de cultura, sendo estes a necessidade de os
atores sociais estarem envolvidos nas políticas culturais e os objetivos
dessas políticas. Nesse contexto, os atores são tanto os poderes públi-
cos quanto instituições civis e ainda grupos comunitários. No entanto,
essa relação não deve ser estabelecida unilateralmente, mas de modo
que exista um contexto de democracia cultural ou cidadania cultural, no
qual a população também participa da concepção e da gestão dessas
ações, compartilhando, assim, tanto a elaboração quanto a execução
dos projetos de política pública.

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Canclini também ressalta que a política cultural deve ter como

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objetivo orientar o desenvolvimento simbólico, satisfazer as ne-
cessidades culturais da população e contribuir para algum tipo de
ordem ou transformação social. O Estado deve dar apoio às diver-
sas manifestações clássicas, eruditas e populares; profissionais e
experimentais; consagradas e emergentes; e reconhecer as dinâ-
micas inovadoras de movimentos sociais, comunitários, religiosos,
étnicos ou de gênero. Essa concepção não é contrária a ações pon-
tuais, como a promoção de grandes festas e eventos, mas privile-
gia ações com sentido contínuo. Além disso, as atividades devem
preferencialmente acontecer mais próximas de onde as pessoas
vivem, nos seus espaços de origem, buscando a descentralização
das ações (CANEDO, 2009, p. 12).

Canedo (2009, p. 12) ainda ressalta que, ao seguir tais objetivos de


forma não excludente, é possível criar políticas públicas que sejam ca-
pazes de preservar e respeitar as tradições culturais de um povo, bem
como aproveitar o potencial econômico das indústrias criativas e poten-
cializar o papel da cultura como um fator de desenvolvimento humano,
seja de modo qualitativo ou quantitativo (econômico).

2 Desterritorialização
Ao desenvolver o conceito de hibridismo cultural de um ponto de vis-
ta político, Canclini observa as interações entre as culturas de elite e as
indígenas dentro do contexto da arte latino-americana. O antropólogo
entende que é pela hibridação dessas culturas que a cultura indígena,
por exemplo, encontra uma maneira de aumentar sua sobrevivência, en-
quanto as culturas de elite (dominantes) passam por um processo de
modernização e atualização por conta dessa troca.

Em outras palavras, o conceito de hibridismo cultural acaba por


quebrar a noção de pureza cultural, já que se trata de uma prática mul-
ticultural. Ainda, o conceito encontra paralelo, por exemplo, na antro-
pofagia cultural proposta por Oswald de Andrade em seu Manifesto

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antropofágico, de 1928. Para Canclini (2011), em um contexto de mo-
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dernização tardia como é o da América Latina, a presença de culturas


híbridas acontece por conta de dois principais processos, que o autor
chama de “descolecionamento” e “desterritorialização”.

Como explica Sousa (2012, p. 2), o descolecionamento aponta para


o fim de uma cultura de produção de bens colecionáveis, resultando,
assim, na “quebra de divisões entre cultura elitista, popular e massiva”.
O descolecionamento é, portanto, possível por conta de recursos tec-
nológicos como “a fotocopiadora, o videocassete e o videogame, que
destituíram as referências que ancoravam o sentido das coleções”. Isto
é, essas tecnologias “permitem que um bem cultural seja reproduzido e
disponibilizado mais facilmente para a população”.

É nesse sentido que a argumentação do descolecionamento de


Canclini encontra paralelo no ensaio “A obra de arte na era de sua re-
produtibilidade técnica”, de Walter Benjamin (1994). Com quatro versões
diferentes, o texto aponta para o “declínio da aura” da obra de arte em
vista das novas tecnologias, como a máquina copiadora ou uma câmera
fotográfica, por exemplo, em razão de sua capacidade de reproduzir ima-
gens de forma maquínica e maciça, portanto, desprovida de uma “aura”.

Contudo, nas primeiras versões do artigo, Benjamin (1994, p. 168)


apontava para a reprodução técnica como capaz de “aproximar o
indivíduo da obra, seja sob a forma de fotografia, seja do disco. A
catedral abandona seu lugar para instalar-se no estúdio de um ama-
dor; o coro, executado numa sala ou ao ar livre, pode ser ouvido num
quarto”. A isso se assemelha o discurso de Canclini a respeito do
descolecionamento, conforme o antropólogo também vê na repro-
dutibilidade técnica uma forma de promover maior disponibilização
e descontextualização do sentido e do valor da obra de arte (e da
cultura, como um todo), deslocando-os dos ambientes elitistas para
os espaços do cotidiano.

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É nesse mesmo contexto que o processo de “desterritorialização”

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de Canclini se aplica, conforme ele se fundamenta especialmente na
“transnacionalização dos mercados simbólicos, ocasionada pela des-
centralização das empresas e a disseminação dos produtos pela eletrô-
nica e telemática” (SOUSA, 2012, p. 2). Isto é, a desterritorialização vem
como um outro desdobramento do processo de globalização, pensan-
do-se especificamente do ponto de vista cultural e da quebra de uma
ideia de gêneros puros, calcados em territórios e identidades nacionais.
Um possível exemplo são produções como o filme Babel (2006), que
foi dirigido pelo mexicano Alejandro Iñárritu e conta com diálogos em
inglês, árabe, francês, espanhol e japonês.

Figura 2 – Muro fronteiriço entre Estados Unidos e México

Tendo como objeto de análise os conflitos interculturais específicos


de Tijuana, espaço de fronteira entre o México e os Estados Unidos,
Canclini entende que é nessa migração de pessoas e de culturas que
se dá uma “implosão do terceiro mundo no primeiro” (CANCLINI, 2011,
p. 314) conforme os chamados países de primeiro mundo acabam

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se influenciando e se modificando com a troca, tornando a produção
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cultural mais dinâmica.

Como explica Sousa (2012, p. 3), os processos de descoleciona-


mento e desterritorialização são, portanto, considerados responsáveis
pela “expansão dos gêneros impuros” na América Latina. Em detalhe,
narrativas híbridas como os quadrinhos e o grafite são alguns dos
exemplos de manifestações artísticas e culturais que demonstram
esse hibridismo, uma vez que esses formatos não se encaixam em
categorias como culto, popular ou mesmo maciço: “O que se sabe
é que eles perpassam por todas essas categorias num modo próprio
de contar a pós-modernidade”.

3 Sociedade fragmentada e hibridismo


cultural
Ainda que as novas tecnologias e a telemática sejam fatores im-
portantes na democratização do acesso à cultura e do deslocamento
da arte de um posto elitista para parte da vida em sociedade, cada vez
mais pessoas passaram a viver em centros urbanos, como a cidade
do México ou mesmo São Paulo, e essa troca de culturas se tornou
mais fragmentada.

Canclini destaca que, em vez de os indivíduos se tornarem anônimos


nas grandes cidades, a tendência é buscar uma “intimidade doméstica,
[...] formas seletivas de sociabilidade” (CANCLINI, 1997, p. 286). É nesse
sentido que o autor vê que as pessoas não trocam mais informação
entre si de forma direta, mas se utilizam de tecnologias midiáticas para
se informar. Para Canclini, isso acaba por enfraquecer a mobilização
social, fragmentando a sociedade.

Essa mesma interpretação também foi feita pelo etólogo e médico


francês Boris Cyrulnik. Em Do sexto sentido (1999), o autor dedica o ca-
pítulo “Tecnologia e sentimento de si” para tratar da maneira como as

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tecnologias mudam o comportamento humano, seja do ponto de vista

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cultural ou até mesmo biológico. Diante de um contexto como o da ci-
dade grande e sua multiplicidade de culturas, os indivíduos acabam por
se aglomerar em nichos específicos, onde podem se sentir mais perten-
cidos, mas desse modo também acabam por se fragmentar.

A evolução tecnológica acaba, todavia, de conhecer uma fratura


previsível. À força de criar mundos virtuais e de os fazer existir no
real, à força de habitar mundos despercebidos e distâncias pla-
netárias, à força de diluir o laço social melhorando as actuações
de uma minoria de indivíduos, à força de construir mil identidades
apaixonantes e diferentes, torna-se quase impossível viver em con-
junto. Nas grandes cidades, a civilização tornou-se grumosa. As
pessoas já só se encontram no interior de um mesmo mundo par-
tilhável: os médicos frequentam médicos, os operários só se sen-
tem à vontade num mundo operário e os habitantes de um bairro
têm a impressão de se sentir no estrangeiro no bairro vizinho. Os
laços são frágeis quando a distância é grande. Os grupos do mes-
mo nível intelectual e com a mesma preocupação psicológica ou
financeira estruturam-se em rede além fronteiras, mas, quando o
correspondente americano morre, o homólogo francês só usa luto
numa única frase de alguns segundos (CYRULNIK, 1997, p. 273).

Por outro lado, apesar de a difusão tecnológica ter propiciado essa


fragmentação dentro das comunidades urbanas, ela também ajudou a
desconstruir antagonismos como o do nacionalista × cosmopolita ou o
do colonizador × colonizado, tornando-se um elemento importante nos
processos de mesclagem ao longo do século XX. Conforme apontam
Gaglietti e Barbosa (2007, p. 2), os movimentos chamados de ocidenta-
lização, aculturação, transculturação, heterogeneidade cultural, globali-
zação e hibridismo surgem como uma forma de “designar novos proces-
sos e produtos resultantes das ordens simbólicas, que, desde o final do
século XV, concorreram para a formação dos países latino-americanos”.

Contudo, ao observar o eixo tradição, modernidade e pós-moder­


nidade, Canclini aborda o processo de hibridação cultural da América

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Latina como um movimento que se desencadeou sem uma “política
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reguladora ancorada nos princípios da modernidade e [que] se caracte-


riza como o processo sociocultural em que estruturas ou práticas, que
existiam em formas separadas, combinam-se para gerar novas estrutu-
ras, objetos e práticas” (GAGLIETTI; BARBOSA, 2007, p. 3). É justamente
desse modo combinatório e imprevisto que as mesclas interculturais
latinas abriram uma nova frente no debate sobre as teorias da moderni-
dade e da pós-modernidade.

Enquanto Canclini se dedica ao estudo dos meios maciços de comu-


nicação e a recepção e apropriação de bens simbólicos nesse contexto,
o autor enxerga a formação das chamadas culturas híbridas e, portanto,
do hibridismo cultural.

Um dos seus principais objetos de pesquisa são as contradições


da cultura urbana, ou seja, aquelas que presidem a realização do
projeto emancipador, expansivo, renovador e democratizador da
América Latina, cujos países são, hoje, um produto da sedimen-
tação das tradições culturais e linguísticas de grupos autóctones,
bem como da justaposição e entrecruzamento com tradições dos
setores políticos, educacionais e religiosos de origem ibérica. Ape-
sar das tentativas da elite de conferir à sua cultura um perfil mo-
derno, restringindo a difusão da cultura indígena e colonial entre os
setores populares, a mestiçagem interclassista decorrente desses
inter-relacionamentos teria, segundo Canclini, gerado formações hí-
bridas em todos os estratos sociais latino-americanos (GAGLIETTI;
BARBOSA, 2007, p. 3).

Durante seu processo de modernização, a América Latina não só


conviveu com uma multiplicidade de culturas como também de tem-
poralidades históricas, o que Canclini conceitua como “heterogenei-
dade multitemporal”. Diante desse cenário, a América Latina, contu-
do, como já mencionamos, não se dedicou à criação de projetos de
integração e, diante disso, enfrentou-se uma “perda de referenciais
tradicionais e [o] afloramento de processos de estranhamento, em
vista, sobretudo, do convívio entre sociedades díspares, que, embora

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ocupando espaços comuns, não chegaram a se integrar” (GAGLIETTI;

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BARBOSA, 2007, p. 4).

É com base nessa discussão que Canclini trata da distinção entre


modernidade, que diz respeito à etapa histórica, e modernização, en-
quanto “processo social que interfere na construção da modernidade
dos modernismos, ou seja, dos projetos culturais que se relacionam
com diversos momentos do capitalismo” (GAGLIETTI; BARBOSA, 2007,
p. 4). Como conclusão, o antropólogo aponta que um dos motivos pelos
quais a América Latina se encontra defasada no processo de moderni-
zação é justamente a questão do hibridismo sociocultural presente na
formação de seus países.

Néstor García Canclini, ao analisar as formas de hibridismo na


América Latina no final do século XX, que foram geradas por con-
tradições decorrentes do convívio social urbano e do contexto in-
ternacional, conclui que todas as culturas são de fronteira e que as
artes, em virtude do fenômeno da desterritorialização, articulam-se
em relação umas com as outras, sendo-lhes possível, com isso,
ampliar seu potencial de comunicação e conhecimento. Ainda que
indiretamente, as práticas culturais passam a ocupar um lugar pro-
eminente no processo de desenvolvimento político, uma vez que,
quando se fecham ou se enrijecem as vias político-sociais, essas
práticas se constituem em vias de expressão simbólica, com ação
e atuação efetivas. A eficácia dos processos de hibridismo reside,
principalmente, na sua capacidade de representar o que as inte-
rações sociais têm de oblíquo e dissimulado, e de propiciar uma
reflexão acerca dos vínculos entre cultura e poder, os quais não são
verticais (GAGLIETTI; BARBOSA, 2007, p. 4).

Ainda que o hibridismo cultural da América Latina possa ter sido um


fator de “atraso” no processo de modernização dos países, ele ainda
serve como uma possível inspiração para futuros movimentos de in-
tegração supranacional. A porosidade característica a esse processo,
portanto, pode servir de base para se enfrentar as desigualdades nos
intercâmbios culturais e econômicos, bem como em contextos em que

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“certas tendências globalizadoras da economia reforçam algumas fron-
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teiras ou levam a inventar outras novas” (CANCLINI, 2000, p. 34).

Para abordar todos os elementos envolvidos nesse processo de


grande complexidade, Canclini opta por não utilizar os conceitos de
sincretismo ou mestiçagem, já que vê o presente momento como uma
“nova situação intercultural de hibridação”. Isso porque o autor vê essa
transição como algo mais generalizado e que trata de diversas misturas
interculturais, não apenas se reservando ao contexto racial e que está
mais fortemente associado à noção de mestiçagem, da mesma forma
que o sincretismo está mais associado a fusões de âmbito religioso.

Portanto, Canclini leva em conta uma multiplicidade de manifesta-


ções culturais e artísticas, indo desde as passeatas reivindicatórias até
a pintura, a música, o grafite ou mesmo histórias em quadrinhos, de
modo a refletir sobre aquilo que “chama de migrações multidirecionais,
relativizadoras do paradigma binário (subalterno/hegemônico, tradicio-
nal/moderno) que tanto balizou a concepção de cultura e poder na mo-
dernidade” (GAGLIETTI; BARBOSA, 2007, p. 6).

Um dos exemplos utilizados por Canclini para firmar sua tese sobre
o hibridismo cultural e a sua importância nos intercâmbios culturais é a
obra Pacific (1996) do artista multimídia Yukinori Yanagi. A instalação,
criada nos anos 1990, propõe um diálogo entre as relações sociais e
políticas firmadas entre Japão e Estados Unidos, apesar de também
suscitar outras conexões de âmbito internacional. Exposta na Bienal de
São Paulo em 1996, a obra conta com formigas que andam pela areia
de um mapa de bandeiras nacionais e diferentes cores são usadas para
demarcar as fronteiras simbólicas entre países. Assim, conforme as
formigas se movimentam, ocorre a mistura das areias e as cores que
simbolizavam bandeiras e nações se dissolvem junto aos limites e às
marcas identitárias. Para Canclini, como apontam Gaglietti e Barbosa
(2007, p. 6), o artista japonês não apenas aborda a interação entre as
diversidades do mundo como também trata da globalização como um

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“processo unificador de diferenças” ao colocar “todos os povos em co-

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presença, o que sugere (e denuncia) uma ‘interatividade indiscrimina-
da’”. É nesse sentido que a instalação acaba por se posicionar como
uma denúncia à “intolerância em relação à coexistência (contraditória)
de sujeitos social e etnicamente dissímeis, o que leva a globalização
– uma realidade voltada à conquista não de países, mas de mercados
– a produzir (em série) interatividades edulcoradas e indiferenciadas”
(GAGLIETTI; BARBOSA, 2007, p. 6).

4 O relativismo cultural na visão de Canclini


Ao trazer o conceito de hibridismo cultural e o exemplo da América
Latina como uma inspiração para a integração e a troca entre culturas,
Néstor García Canclini, além de ser um dos grandes colaboradores dos
estudos culturais, acaba também por se posicionar como um crítico do
eurocentrismo e do entendimento das culturas com base em um ponto
de vista europeu e evolucionista.

Diante disso, a noção de relativismo cultural vem como um mani-


festo pelo direito de cada cultura se desenvolver de acordo com suas
próprias particularidades e sem interferência de supostos valores uni-
versais ou de um entendimento de superioridade cultural, como defendi-
do por pensamentos etnocêntricos, além de processos de dominação,
sejam eles econômicos, bélicos ou simbólicos.

Se, por um lado, a globalização permite o contato entre mais culturas


e a diversificação, por meio do hibridismo, das expressões culturais, ain-
da há a questão do capitalismo e sua tendência a achatar povos e seus
hábitos com uma padronização industrializada. Nas palavras de Canclini:

A expansão do mercado capitalista, a sua organização monopolis-


ta e transnacional tende a integrar todos os países, todas as regi-
ões de cada país num sistema homogêneo. Este processo “estan-
dartiza” o gosto e substitui a louça ou a roupa de cada comunidade
por produtos industriais padronizados, os seus hábitos particulares

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por outros de acordo com um sistema centralizado, as suas cren-
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ças e representações pela iconografia dos meios de comunicação


de massa (CANCLINI, 1983, p. 65).

Dentro do contexto social e histórico, a América Latina como uma


colônia europeia acabou por ter em seu cerne uma história de racismo
e discriminação conforme os próprios colonizadores se utilizavam de
discursos discriminatórios para justificar a dominação dos povos indí-
genas, apelando para “um paternalismo benfeitor que pretende ocultar
e racionalizar a violência crua e o interesse na intromissão” (MARGULIS;
URRESTI, 1999, p. 52, tradução nossa).

Foi a partir do começo do século XX , diante de um racismo já naturali-


zado e incorporado a todas as classes, mesmo em âmbito científico, que
a antropologia passou a explorar a noção de relativismo cultural como
uma forma de fazer com que as culturas estudadas pelos etnógrafos
europeus e norte-americanos tivessem proclamada a “sua dignidade e
direitos e iniciando a oposição a um evolucionismo trivial que tinha como
premissa a inquestionável superioridade do homem branco e da cultura
ocidental” (MARGULIS; URRESTI, 1999, p. 53, tradução nossa).

Conforme explicam Ralph Beals e Harry Hoijer (1969, p. 714), o rela-


tivismo e o pluralismo cultural derivam de uma resposta à forte reação
de Franz Boas contra o evolucionismo do século XIX, que propunha uma
visão redutora e especialmente etnocêntrica:

Enquanto os evolucionistas consideravam as culturas individuais


como etapas ilustrativas particulares de uma sucessão evolucio-
nista mundial, muitos eruditos do século XX consideram cada cul-
tura como um todo distinto que, unidas a outras dentro da mes-
ma área limitada, é produto de fatores históricos diversos, porém
locais. Por que o etnocentrismo dos evolucionistas, o qual se de-
monstra por sua crença de que a civilização (e em particular a euro-
peia) representa uma soberania, ainda que não necessariamente a
última etapa da evolução humana, muitos antropólogos modernos
o substituem pela doutrina de que cada cultura pode ser avaliada
apenas de acordo com suas próprias expressões e que é objetiva-

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mente impossível distinguir níveis mundiais de progresso cultural

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(BEALS; HOIJER, 1969, p. 714, tradução nossa).

Junto de Franz Boas, outros autores como Malinowski, Linton,


Benedict, Mead e Lévi-Strauss também se posicionaram a respeito do
relativismo cultural, especialmente em razão de sua dimensão ética.
Canclini, por sua vez, como visto em seu texto As culturas populares
no capitalismo (1982), aponta para o fato de que o relativismo cultural
pode ter servido para contra-atacar e superar o etnocentrismo, mas ain-
da assim deixa em aberto outros problemas que são fundamentais em
uma teoria da cultura, a saber: “a construção de um conhecimento que
possua validade universal e de critérios que sirvam para pensar e resol-
ver os conflitos e desigualdades interculturais” (CANCLINI, 1982, p. 26).

O antropólogo entende que o relativismo cultural não é suficiente


para resolver esses problemas por serem uma “concepção atomizada
e ingênua do poder”, conforme parece imaginar que cada cultura existe
isoladamente e de forma autossuficiente. Para Canclini (1982, p. 26), o
relativismo cultural pode ter funcionado para um novo posicionamento
diante de culturas remotas, porém continua sendo “improdutivo quan-
do os ‘primitivos’ são os setores ‘atrasados’ da sua própria sociedade,
quando são os costumes e as crenças que existem nas periferias da
nossa cidade que sentimos como estranhos”. Assim:

A tarefa mais frequente do antropólogo, nesta época de expansão


planetária do capitalismo, não é a de estabelecer cordões sanitá-
rios entre as culturas, mas averiguar o que acontece quando o rela-
tivismo cultural é negado cotidianamente, quando as pessoas são
obrigadas a escolher entre costumes e valores antagônicos, quan-
do uma comunidade indígena percebe que o capitalismo converte
em espetáculo para turistas as suas festas tradicionais, ou quando
os meios de comunicação de massa convencem os operários de
uma cidade de quinze milhões de habitantes que os símbolos in-
dígenas, rurais, do modo como estes meios os interpretam, repre-
sentam a sua identidade (CANCLINI, 1982, p. 26).

42 Teorias da cultura
Com isso, Canclini (1983, p. 26) busca afirmar que a noção de igual-
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dade, da relatividade das culturas e do direito que cada uma delas


tem de se desenvolver à própria maneira são inconsistentes e que a
maneira como a interdependência se dá no mundo contemporâneo já
não é mais uma “relação de reciprocidade igualitária”, como visto nas
sociedades arcaicas, mas enfrenta a “multinacionalização do capital,
que é acompanhada pela transnacionalização da cultura, impõe uma
troca desigual tanto aos bens materiais quanto aos bens simbólicos”.
Isto é, o teórico vê que o problema de sobrevivência das comunidades
diante do cenário econômico atual e capitalista faz com que se subme-
tam à espetacularização e comercialização de suas culturas, o que as
achata e padroniza.

Figura 2 – Artesãs em Paraty

Fonte: iStock

Portanto, ao tratar do relativismo cultural como uma “superação” do


etnocentrismo, acabamos por enfrentar a ação do capitalismo ao im-
por “seus padrões econômicos e culturais às sociedades dependentes

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e às classes populares” (CANCLINI, 1983, p. 27). Diante disso, o autor

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acredita ser difícil apelar pelo respeito à particularidade de cada cultura,
já que o etnocentrismo se desdobrou em um processo capitalista de
troca desigual, sendo elas o imperialismo, que “através da multinacio-
nalização da economia e da cultura tende a anular toda organização
social que se transforme em disfuncional” (CANCLINI, 1983, p. 27), ao
mesmo tempo em que as nações, classes e etnias oprimidas passam a
ter como chance de conquistar afirmação e respeito apenas pela via da
soberania econômica.

Para estas últimas, o relativismo cultural, no que possa ter de positi-


vo, não é apenas a consequência filosófica do conhecimento produ-
zido pelas ciências sociais, mas uma exigência política indispensá-
vel para que consigam o autorreconhecimento e o crescimento com
autonomia. Devido a isso, a superestimação da própria cultura –
como acontece nos movimentos nacionalistas, étnicos e de clas-
ses em luta pela libertação – não é o cometimento de um erro ou
de uma parcialidade a ser lamentada, mas um momento necessá-
rio do processo de negação da cultura dominante e de autoafirma-
ção cultural (CANCLINI, 1983, p. 27).

Apesar de sua crítica à forma como as culturas se submetem ao regi-


me e às estratégias do capitalismo, Canclini chegou a fazer uma revisão
de seus estudos no final dos anos 1990 com o livro Culturas híbridas,
reconhecendo que é importante abandonar uma postura de “fundamen-
talismo” do tradicional e do folclórico, uma vez que a presença desses
bens simbólicos no mercado acabam por ter um desdobramento mais
complexo do que imaginara: “O culto tradicional não é apagado pela in-
dustrialização dos bens simbólicos. (...) Do lado popular, é necessário
preocupar-se menos com o que se extingue do que com o que se trans-
forma” (CANCLINI, 2011, p. 22). Nesse sentido, Canclini reconhece que:

Nunca houve tantos artesãos, nem músicos populares, nem seme-


lhante difusão do folclore, porque seus produtos mantêm funções
tradicionais (dar trabalho aos indígenas e camponeses) e desen-
volvem outras modernas: atraem turistas consumidores urbanos

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que encontram nos bens folclóricos signos de distinção, referên-
Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.

cias personalizadas que os bens industriais não oferecem. A mo-


dernização diminui o papel do culto e do popular tradicionais no
conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime (CANCLINI,
2011, p. 22).

Por mais controversa que pareça ser a comercialização de bens fol-


clóricos, Canclini passa a dar mais importância ao crescimento e à di-
fusão das culturas por conta do apoio das indústrias fonográficas, festi-
vais e feiras que incluem produtos culturais como artesanato e danças,
por exemplo. Por meio da comunicação radiofônica e televisiva, houve
uma ampliação da repercussão de elementos outrora reservados a um
pequeno espaço e um nicho específico. Com a internet, essa abrangên-
cia se torna ainda maior e é possível até mesmo dizer que o próprio
meio, ao formar comunidades virtuais, acaba por criar novas formas de
hibridação cultural com base em suas próprias características e poten-
cialidades (como encurtar a distância entre as pessoas).

Considerações finais
Por fim, Néstor García Canclini acaba por nos oferecer uma visão par-
ticularmente calcada em sua experiência como teórico latino-americano
com a noção do hibridismo cultural como uma ferramenta de troca entre
culturas e de desenvolvimento de uma maior complexidade cultural entre
povos. Entendendo-as como uma potente ferramenta para a integração
entre povos e temporalidades, uma vez que prega contra noções etno-
cêntricas e evolucionistas, o autor chega a mudar seu posicionamento
crítico com relação ao capitalismo e sua comercialização de bens folcló-
ricos. Isso ocorre pois, apesar de suas discrepâncias e assimetrias, é por
meio da economia que, no presente contexto globalizado, as culturas po-
dem continuar se mesclando e sobrevivendo, portanto rompendo com o
ideal de gêneros puros para, acima de tudo, firmar a troca entre indivíduos
acima de artifícios e fronteiras como nações e territórios.

Cultura e hibridismo cultural 45


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