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INTRODUÇÃO
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O contato com o tema Sul, cujas empresas mais empregam imigrantes haitianos, desde
foi inicialmente propor-
cionado pelas atividades a chegada dos primeiros grupos ao país.
do Grupo de Pesquisa
Mundos do Trabalho na
O acompanhamento, em campo, do fluxo de haitianos pela
Amazônia (Ufac-CNPq), região acreana teve início em junho de 20133, sendo finalizado
no âmbito do qual foi
realizada a pesquisa em dezembro de 2015, utilizando-se para coleta de dados
“Trabalho e migração
internacional: o caso dos empíricos as técnicas de observação participante, com produção
haitianos na Amazônia
Ocidental” (período: de diários de campo, juntamente com a realização de entrevistas
jul.2013 a jul.2014; finan-
ciamento: Pibic-Ufac-
orais semiestruturadas e gravadas, priorizando a modalidade
-CNPq), sob a orientação trajetórias de vida.
da autora, e atualmente
se desenvolve a pesquisa Nos últimos cinco anos, após percorrerem a rota Haiti-
“Mundos do trabalho
na Interoceânica: mape- Brasil, endividados e transtornados, os haitianos eram recebidos
amento na tríplice fron-
teira Brasil-Peru-Bolívia”
no Acre em um acampamento público improvisado, mantido
(período: ago.2014 a pelos governos federal e estadual, cuja estrutura assegurou a
ago.2015; financiamen-
to: Pibic-Ufac-CNPq), regularização e a preparação deles como força de trabalho apta
sob orientação da Profa.
Dra. Eurenice Oliveira de a seguir viagem e ingressar, de modo particularmente precarizado,
Lima, tendo como um de
seus objetivos de investi- no mercado laboral brasileiro. Nesse processo, como espaço
gação o mapeamento das
rotas internacionais de
prioritário de visitas da pesquisa, definiu-se o acampamento de
trabalhadores com desti- imigrantes, lugar no qual se concentrava a estrutura do serviço de
no ao Brasil.
acolhimento, alimentação e orientação do governo brasileiro aos
que estavam em trânsito pela região. Ponto de referência a todos
os que chegavam ao estado, era o endereço do desembarque
diário de dezenas de imigrantes.
Considerando o campo realizado de junho de 2013 a
dezembro de 2015, somaram-se 10 períodos de observação, entre
visitas exploratórias e de imersão no cotidiano do local, e um acervo
de mais de 100 gravações, entre entrevistas, diálogos, conversas
e reuniões com imigrantes e demais agentes do processo, como
servidores públicos que atuaram no atendimento, comerciantes,
empregadores, representantes da sociedade civil organizada,
entre outros que mantiveram contato direto ou indireto com
o objeto de estudo.
Ao percorrer esse caminho, o propósito era a composição
de um quadro amplo, diversificado e atualizado de referências
sobre a chegada, o trajeto e o destino dos haitianos no país.
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Há uma distinção en- silenciamento e a combinação de respostas refletiam, em grande
tre “tráfico de pessoas”
e “contrabando de mi-
medida, o temor de possíveis retaliações por parte das redes
grantes” estabelecida por que controlam a viagem migratória pela rota latino-americana.
protocolos específicos
que complementam a (MAMED; LIMA, 2014b).
Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Mesmo assim, ao longo do processo de investigação, com o
Organizado Transna-
cional, promulgada no cruzamento de dados de fontes secundárias, maior proximidade
Brasil no ano de 2004. De
modo geral, o contraban-
dos imigrantes e o conhecimento aprofundado de histórias de
do de migrantes, mesmo vida, as características e especificidades da viagem até o Brasil
em condições perigosas
e degradantes, envolve o foram sendo reveladas. A quase totalidade dos que chegaram
conhecimento e o con-
sentimento da pessoa ao país através do Acre era indocumentada e vítima das redes
contrabandeada sobre o
ato criminoso. Já no trá- compostas por informantes, aliciadores e coiotes. Os agentes
fico de pessoas, o consen- eram, em geral, equatorianos, peruanos e brasileiros, incluindo
timento da vítima é irre-
levante para que a ação também os próprios haitianos, que atuavam estrategicamente
seja caracterizada como
tráfico ou exploração de nos diversos países e localidades por onde se estabelecia a rota4.
seres humanos, pois ele é,
na maioria dos casos, ob- O deslocamento de imigrantes normalmente incluía viagens de
tido sob malogro. O con-
trabando termina com a
barco ou avião do Haiti para o Panamá e Equador, para depois se
chegada do migrante em dirigirem de carro ou ônibus até o Peru, país de acesso aos estados
seu destino, ao passo que
o tráfico envolve, após a brasileiros do Amazonas e do Acre. Até 2013, foram consolidadas
chegada, a exploração da
vítima pelos traficantes, duas principais rotas de entrada de haitianos no Brasil, sendo
para obtenção de algum
benefício ou lucro, por uma pela cidade de Tabatinga, no Amazonas, e outra por Assis
meio da exploração (ES-
CRITÓRIO..., 2016).
Brasil, no Acre.
Para o caso específico do Na tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, a cidade
fluxo de haitianos ana-
lisado por esta pesquisa, de Tabatinga possui cerca de 50 mil habitantes e representou
não há um consenso ofi-
cial quanto a qualificação uma das portas de entrada dos haitianos, mas de fluxo variável
da rede que o viabilizou.
Em um exercício de apro- e menor. Esse caminho era especialmente difícil pela disposição
ximação para descrição e geográfica, distância da cidade em relação a capital do estado e a
explicação do fenômeno,
a pesquisa tem optado ausência de serviços de assistência e proteção por parte do poder
pela adoção da termi-
nologia contrabando de público e de organizações não governamentais. Com exceção
migrantes. A título de
exemplificação, registra- de ações paliativas da Pastoral da Mobilidade Humana (Igreja
-se que o tráfico de pes-
soas é o terceiro negócio
Católica local), não existiam dispositivos de assistência para os
ilegal mais lucrativo do imigrantes (SILVA, P. 2014; VÉRAN et al., 2014), o que tornou
mundo, ficando atrás
dos referentes a drogas inconstante o uso dessa rota, praticamente inutilizada nos
e armas. Estimativas in-
dicam que a cada ano últimos dois anos.
ele movimenta cerca de
U$ 32 bilhões e faz -> Na região da Amazônia Sul Ocidental, na tríplice fronteira
entre Brasil, Peru e Bolívia, a cidade acreana de Assis Brasil foi o
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palco do fluxo mais constante e consolidado, sendo a principal -> pelo menos um mi-
lhão de novas vítimas.
porta de entrada de haitianos no país no período de 2010 a 2015. Esse tipo de negócio
possui diversas finalida-
O eixo estrutural dessa rota é a Interoceânica, estrada binacional des, todas envolvendo
violações de direitos hu-
que assegura a ligação terrestre do oceano Pacífico, no litoral sul manos, podendo estar
ligado à superexplora-
do Peru, ao oceano Atlântico, no noroeste brasileiro, através do ção dos trabalhos rural,
estado do Acre5, especificamente pelas cidades acreanas de Assis urbano e doméstico, à
escravidão contempo-
Brasil, Brasileia e Epitaciolândia. A construção da rodovia teve rânea, ao comércio de
órgãos, aos casamentos
início em 2002 e ela passou a funcionar plenamente em dezembro forçados, à adoção ilegal
de crianças, mas a sua
de 2010, mas sua inauguração oficial ocorreu apenas em julho de forma mais comum per-
manece sendo a explora-
2011. A concretização da obra viabilizou, portanto, a chegada dos ção sexual (REPÓRTER
Brasil, 2012). Por fim, é
primeiros grupos de haitianos ao Acre, ao final do ano de 2010. importante ressaltar que
no debate sobre migra-
De acordo com o que a maioria dos entrevistados relatou ção, estudos questionam
a predominante utili-
à pesquisa, os imigrantes partiam da capital haitiana, Porto zação da linguagem do
Príncipe, e seguiam de ônibus até Santo Domingo, capital da tráfico em substituição
à perspectiva de direitos,
República Dominicana, que fica na mesma ilha. Nesse local alertando que o parado-
xo da “luta antitráfico”
compravam passagem de avião até o Panamá. Da Cidade do é o impedimento ao di-
reito fundamental à livre
Panamá, eles prosseguiam de avião para Quito ou Guayaquil, circulação, em nome da
proteção das “potenciais
as duas maiores cidades equatorianas. Ao desembarcarem no vítimas” (DIAS; SPRAN-
DEL, 2012, p. 40).
Equador, passavam pelo serviço de fiscalização do aeroporto 5
A estrada é um dos
como turistas, se reorganizavam durante alguns dias e seguiam grandes projetos da Ini-
ciativa para a Integração
em viagem para Lima, em ônibus ou veículo fretado, inclusive, da Infraestrutura Re-
gional Sul-Americana
segundo alguns relatos, com trechos percorridos a pé e a nado. (IIRSA). Foi custeada por
Nesse percurso, eles evitavam, por exemplo, a zona urbana da organismos financeiros
internacionais, tendo
cidade peruana de Tumbes, na fronteira entre Equador e Peru, por objetivos principais
o escoamento de commo-
onde há o serviço policial de migração dos dois países. Para dities agrícolas e minerais
pelo Pacífico, com vistas
tanto, os coiotes conduziam os grupos de imigrantes por rotas ao mercado asiático; a
alternativas até o ingresso em território peruano. construção de uma rede
de infraestrutura entre
Já no Peru, passavam pelas cidades de Mâncora, Talara, a Amazônia e o Pacífico,
para o abastecimento dos
Piura, Chiclayo, Trujilo, Chimbote, Huaraz, até chegarem a centros industriais; e a
diminuição e a flexibili-
Lima, em viagem terrestre com duração, em média, de 25 a 30 zação das fronteiras para
a integração econômica
horas. Na capital peruana também havia uma reorganização da internacional, com foco
viagem durante alguns dias, mas logo ela seguia por via terrestre, no livre mercado. Sobre
os interesses do capital,
pela Interoceânica, responsável pela ligação do Peru com o Brasil. viabilizados pela IIRSA
na Amazônia, consultar
Partindo de Lima, passavam por Cusco e chegavam a Puerto Cunha e Cunha (2008)
e Iberê (2015), e para
Maldonado, após 25 horas de viagem, aproximadamente. Nessa
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No acampamento de
(BRASIL, 2012). Assim, os haitianos passavam a contar com mais
imigrantes sediado em celeridade na regularização da sua situação e com o protocolo do
Rio Branco, em abril
de 2015, entrevistados pedido de refúgio humanitário em mãos, podiam fazer a retirada
relataram situações tí-
picas de conflito entre do Cadastro de Pessoa Física (CPF) na Receita Federal ou nos
os abrigados: haitianos
furtavam passaportes de
Correios, assim como a Carteira de Trabalho e Previdência
outros compatriotas para Social, em até uma semana.
vendê-los aos senegale-
ses, que possuíam grande Por sua vez, os imigrantes de outras nacionalidades também
interesse e recursos fi-
nanceiros para a compra faziam solicitação de refúgio, mas como eles não contavam com
desses documentos. Com
isso, senegaleses tenta- o mesmo amparo dado aos haitianos, que assegurava o visto
vam se passar por haitia-
nos e conseguir regula-
automático, os seus processos seguiam o trâmite convencional
rizar sua documentação da polícia, durando cerca de 10 a 20 dias para que eles tivessem
com mais brevidade.
acesso ao protocolo do pedido e pudessem dar prosseguimento
14
No Brasil, de acordo
com a Lei 9.474/1997, à retirada dos outros documentos. Assim, além das diferenças
o refúgio é concedido
quando o estrangeiro
econômicas, culturais e religiosas bem demarcadas entre os
comprova que sofreu grupos, havia um fator de ordem política que distinguia os
perseguição política, ét-
nica ou religiosa no país haitianos dos demais, contribuindo para o acirramento das
de origem. Assim, o Co-
mitê Nacional para os relações entre os imigrantes13.
Refugiados (Conare), ór-
gão vinculado ao Minis-
O documento chamado de “visto de permanência provisória
tério da Justiça, entende por motivos humanitários” recebido pelos haitianos, ainda que
que a situação dos hai-
tianos indocumentados garanta certa agilidade no trâmite burocrático, tende a mantê-los
que chegam ao país pelo
Acre não se coaduna com em uma condição de provisoriedade e precariedade. Esse arranjo
as exigências normativas
para concessão de refú- legal da política brasileira evita a deportação dos imigrantes que
gio. O problema passou
então para a apreciação
chegam ao país, dado que a lei proíbe a deportação de solicitantes
do CNIg, responsável de refúgio durante o período de tramitação do pedido. Da mesma
pelas políticas nacionais
de migração, que conce- forma, os imigrantes de outras nacionalidades, por também
de aos haitianos o visto
humanitário. Posterior- serem solicitantes de refúgio, não são deportados, mas obtêm o
mente, diante da nova
situação imposta pela visto provisório com permissão para trabalhar, que é prorrogado
chegada de imigrantes
indocumentados de ou-
de seis em seis meses até uma decisão final sobre o pedido de
tras nacionalidades, são refúgio14. Essas circunstâncias questionam, portanto, o discurso
concedidos a eles vistos
provisórios com permis- humanitário do governo federal, que recebe, abriga e documenta
são para o trabalho, até
que o Conare avalie a os imigrantes para que eles possam se inserir no universo laboral,
pertinência da solicitação
de refúgio.
mas não assegura a permanência e a proteção definitivas deles
como trabalhadores e cidadãos no país.
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LETÍCIA HELENA MAMED - Professora de Teoria Social/Sociologia do Centro de Filo-
sofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre (Ufac), membro do Grupo
de Pesquisa Mundos do Trabalho na Amazônia (Ufac-CNPq) e doutoranda do Progra-
ma de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp), com bolsa do Programa de Formação Doutoral Docente (Prodoutoral/Capes).
<leticiamamed@gmail.com>
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