Pedro Duarte
Resumo: Em que residiria a especificidade do ensaio como gênero literário? Indisciplinado, contrário
aos parâmetros de uma escrita em linha reta, com começo, meio e fim, o ensaio, defende este texto,
é subjetivo, mas não autorreferente; não é esboço de uma obra por vir, mas uma espécie de conversa
inteligente com uma plateia leiga.
Foi essa a força que firmou o gênero em terras nacionais. Gilberto Freyre e Sérgio
Buarque de Holanda, apesar da erudição que traziam já nos anos 1930, não se submeteram
ao hermetismo especializado quando investigaram o Brasil. Fosse a antropologia ou a
sociologia, tudo estava a serviço de uma prosa arejada, capaz de fornecer um retrato
inovador da miscigenação racial e da cordialidade. Suas hipóteses, como as de seu
antecessor, Paulo Prado, não eram as mais exatas. Eram as mais sugestivas. Tudo bem.
Eles não eram cientistas, eram ensaístas.
Essa era a tese central de Georg Lukács, o pioneiro da teoria do ensaio no século
20. No texto de abertura de seu livro "A Alma e as Formas", publicado aqui recentemente
pela editora Autêntica, o filósofo tenta determinar a autonomia do gênero, ou seja, o que
singulariza o ensaio perante outros modos de pensar.
Fantasia
O ensaísta pensa a partir das obras dos outros. Nisso ele, de fato, tem algo
infantil. Como diz Theodor Adorno, mais um filósofo que teorizou sobre o ensaio no
século 20, esse tipo de texto não tem vergonha, como tampouco as crianças, de se
entusiasmar com o que os outros já fizeram. O ensaio reflete o que é amado e
odiado. Tem jogo e prazer. Supõe que é somente com a participação da fantasia
subjetiva que algo de verdadeiro pode se revelar sobre um objeto.
Esse elemento subjetivo do ensaio esteve presente desde sua origem, uma
vez que Montaigne escreve na primeira pessoa do singular e afirma que pinta a si
mesmo nos textos. No entanto, esse "eu" –que nunca aparece como substantivo,
mas só como pronome– não é um fundamento racional que dê aos textos algum tipo
de garantia absoluta. Esse eu está em contato com o mundo e os outros.
Como diz o nome, ensaio é ensaiar. Ele nunca está definitivamente pronto,
pois já abdicou da pretensão de totalização perfeita de seu objeto. O superego do
ensaio é leve. Não carrega a culpa ancestral pela perda do paraíso e nem a
esperança utópica por um futuro redimido. Ensaiar é experimentar. O ensaio é mais
tateante que certeiro, mais investigativo que conclusivo, mais reflexivo que
determinante, mais sugestivo que assertivo, mais experimental que coercitivo. É um
espaço para a dúvida curiosa que procura, sem saber bem como: sem se fiar nem
em um eu subjetivo nem em uma disciplina objetiva.
Eis porque o ensaio encontra-se culturalmente espremido entre nós. Meio que
sem lugar. Na academia, ele deveria ser ciência. Nos jornais, deveria ser factual.
Parece que não temos mais espaço, ou tempo, para descaminhos.
Intelectual
Não é somente o gênero do ensaio que sai perdendo, porém, e sim nossa
cultura. Entre o jargão técnico da universidade e a avalanche informativa dos meios
de comunicação, o ensaio é vocacionado à conversa inteligente com a plateia leiga.
Tanto que parte de suas dificuldades coincide com o declínio da figura do intelectual
público.
Esses são só alguns casos entre vários e sem chegar a uma geração mais
nova que tem se esforçado na direção do ensaísmo. Destaque-se, ainda, a revista
"Serrote", do Instituto Moreira Salles, que é exclusivamente destinada à publicação
de ensaios: editada por Paulo Roberto Pires, ele mesmo um estudioso do gênero, já
passa de 20 números. Ou a longevidade dos ciclos de palestras organizados por
Adauto Novaes, que derivam em livros com ensaios.
Trajeto reto
Isso tudo tem circulação restrita, claro. O ensaio não é norma, é desvio.
Costumamos preferir textos com o trajeto reto –artigo acadêmico, tratado científico,
sistema filosófico, reportagem factual, opinião jornalística. Logo, a forma do ensaio,
por si só, já é crítica.
No caso do Brasil, essa forma talvez fosse ainda mais necessária do que é
em outros cantos do mundo. Se aqui tudo parece que ainda é construção mas já é
ruína, como cantou Caetano Veloso citando o antropólogo Claude LéviStrauss, o
gênero do ensaio revela a dimensão vital, e não lamentável, dessa sentença. Nele,
nenhuma construção se dá por perfeita, acabada. Há uma precariedade inerente,
como a incompletude de ruínas. O completo só pode ser fruído. O incompleto nos
leva adiante. O ensaio não petrifica a inteligência num formato categórico. Paga o
preço da imperfeição para manter o intelecto animado pela imaginação.
Por isso, o ensaio não tem um método prévio que o guie. Jean Starobinski o
considera o gênero mais livre que há. Mas o ensaio tem uma tarefa. Precisa achar o
modo de acesso singular àquele objeto que tem diante de si. Nunca vai encaixá-lo
somente em um sistema pronto. Daí deriva sua heterogeneidade. Cada um é um. O
gênero não possui fronteiras bem definidas, flerta com outros e, mais que
interdisciplinar, é indisciplinado.
Ensaios, como se sabe, devem ser bem escritos, mas não por serem
necessariamente eloquentes e agradáveis ou então fáceis e simples, e sim porque
cultivam a forma, sabendo que o conteúdo só é o que é nela: o "que" não se separa
do "como", a ideia não se separa do modo como ela é expressa. O ensaio enfrenta,
a cada vez, a questão de sua apresentação.
PEDRO DUARTE, 34, é professor de filosofia da PUC-Rio, autor de "Estio do Tempo: Romantismo e
Estética Moderna" (Zahar) e "A Palavra Modernista: Vanguarda e Manifesto" (Casa da Palavra).