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Congresso Comemorativo aos

10 anos do Estatuto da Cidade

10
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
www.kadcomunicacao.com.br

Organizadoras:
Betânia de Moraes Alfonsin
Elaine Adelina Pagani
Simone Somensi
Vanêsca Buzelato Prestes
Betânia de Moraes Alfonsin - Elaine Adelina Pagani
Simone Somensi - Vanêsca Buzelato Prestes
(Organizadores)

CONGRESSO COMEMORATIVO AOS


10 ANOS DO ESTATUTO DA CIDADE

II CONGRESSO DE DIREITO URBANO-AMBIENTAL

VOLUME 1

Porto Alegre
Fundação Escola Superior de Direito Municipal
2011
PREFEITURA MUNICIPAL DE PORTO ALEGRE
José Fortunati - Prefeito

PROCURADORIA-GERAL DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE


João Batista Linck Figueira - Procurador-Geral

ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL –


SECCIONAL DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
Claudio Pacheco Prates Lamachia - Presidente
Elaine Adelina Pagani - Presidente da Comissão Especial
de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano – CEDUPU

C749a Congresso de Direito Urbano-Ambiental (2.: 2011 : Porto FUNDAÇÃO ESCOLA DO MINISTÉRIO PÚBLICO – FMP
Alegre, RS).
Anais do II Congresso de Direito Urbano-Ambiental: Mauro Luís Silva de Souza - Presidente
Congresso comemorativo aos 10 anos do Estatuto da Anízio Gavião Filho - Diretor da Faculdade de Direito da FMP
Cidade. – Porto Alegre : Exclamação, 2011.
v. 1 FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DE DIREITO MUNICIPAL
Vanêsca Buzelato Prestes - Diretora
ISBN 978-85-65070-003
Laura Antunes de Mattos - Vice-Diretora

1. Direito Urbano-Ambiental. 2. Estatuto da Cidade. 3. ASSOCIAÇÃO DOS PROCURADORES DO MUNICÍPIO DE PORTO ALEGRE
Congresso. I. Título. Armando J. C. Domingues - Presidente
Eduardo Gomes Tedesco - Vice-Presidente
CDU – 34:711
COMISSÃO ORGANIZADORA DO CONGRESSO
Catalogação na Fonte: Bibliotecária Responsável Márcia Metz CRB10/2068 Betânia de Moraes Alfonsin
Elaine Adelina Pagani
Cristiane da Costa Nery
João Batista Linck Figueira
Maren Guimarães Taborda
Simone Somensi
Vanêsca Buzelato Prestes

COMISSÃO EXECUTIVA DO CONGRESSO


Amanda Costa Moreira Teixeira
Ingrid Rais Silva
Mariana Christofoli Ramos
Tamara Machado
Kad Comunicação Integrada
A revisão de Língua Portuguesa e a digitação, bem como os conceitos emitidos Linha Mestra
em trabalhos assinados, são de responsabilidade de seus autores.
Prefácio

A complexidade dos temas contemporâneos de atribuição munici-


pal, decorrentes do Estado Federal Cooperativo estabelecido pela Cons-
tituição de 1988 geraram o que tem sido denominado municipalização
das políticas municipais.
Este processo tem exigido atuação pró-ativa dos Municípios na
construção das políticas públicas, tendo por fio condutor os princípios
constitucionais.
O atuar na perspectiva de concretização de direitos gera mudança
de paradigma de atuação da Administração Pública e tem influenciado
e modificado também o atuar da Advocacia Pública Municipal. Procu-
radoria com assento em Conselhos Municipais, participação ativa em
grupos de trabalho, compreensão de conceitos técnicos que preenchem
e complementam conceitos jurídicos estão a exigir a especialização, a
compreensão e o aprofundamento de matéria técnica.
O Estatuto da Cidade é por excelência uma lei que permite aplicar
este direito emergente e possibilita concretizar políticas públicas trans-
versais.
Assim, nos temas urbano-ambientais, em face da série de institu-
tos inovadores e potenciais concretizadores de direitos, exige da Advo-
cacia Pública a imersão nos problemas para emergir alternativas que
considerem a universalidade dos pontos tratados e de forma multidis-
ciplinar. Isto só ocorre compreendendo o problema em todas as suas
facetas. Participar de vistorias, conhecer as áreas objeto da interven-
ção, conversar com as pessoas envolvidas, compreender a motivação
dos conceitos técnicos das demais áreas de conhecimento, trabalhar
o princípio da proporcionalidade de forma tópica, são tarefas que se
apresentam para a Advocacia Pública na contemporaneidade.
Por este motivo e imbuídos deste espírito é que a Procurado­ria-
Geral do Município de Porto Alegre, a ESDM - Escola Superior de Direito
Municipal e a APMPA - Associação dos Procuradores do Município de
Porto Alegre renovam a parceria que originou os Congressos de 2002
no qual se debateu o advento do Estatuto da Cidade e de 2006, nos 5
anos da Lei, para propiciar o debate de experiências que a concretizam.
Desta vez, em conjunto com a FMP e a OAB/Comissão de Direito Urba-
nístico, pretendemos focar nas experiências desenvolvidas ao longo dos
10 Anos do Estatuto, demonstrando sua consolidação.
É com muito orgulho que a PGM de Porto Alegre recebe os visitan-
tes, propicia a troca e o registro das experiências, bem como apresenta
Sumário
a presente publicação que dá conta da diversidade do trabalho realiza-
do pelos Municípios brasileiros. Apresentação ................................................................................................. 15

João Batista Linck Figueira CAPÍTULO I - Reflexões aos 10 anos do Estatuto da Cidade:
ideias estruturantes
Procurador-Geral do Município de Porto Alegre
Lei n.º 11.977/09: marco regulatório da regularização fundiária e
quebra de paradigma...................................................................................... 19
Candida Silveira Saibert

O imposto predial e territorial urbano sob a égide da progressividade


constitucional aplicada.................................................................................... 29
Cintia Estefania Fernandes

Direito ao planejamento urbano..................................................................... 53


João F. Rovati

Notas metodológicas sobre a interpretação do direito urbanístico................ 61


Luciano de Faria Brasil

Tutela do direito à paisagem urbana: proteção e disputa............................... 73


Marise Costa de Souza Duarte

CAPÍTULO II - A Ordem Jurídico-Urbanística e os


Megaeventos Esportivos

A recuperação de mais-valias urbanas e os eventos esportivos..................... 95


Andrea Teichmann Vizzotto

A Copa de 2014 e a política urbana preconizada pelo Estatuto da


Cidade: um estudo dos impactos sociais e ambientais em Porto Alegre...... 113
Betânia de Moraes Alfonsin; Fabiano Young; Jacqueline Custódio;
Joana Prates Garcia Scorza; Maria Juliana Meneghetti Peres

Impactos urbanísticos e econômicos da Copa de 2014 em Porto Alegre à


luz do Estatuto da Cidade............................................................................. 131
Betânia de Moraes Alfonsin; Fabiano Young; Jacqueline Custódio;
Joana Prates Garcia Scorza; Maria Juliana Meneghetti Peres
Aplicação do instrumento urbanístico – operação urbana consorciada – Gestão democrática da cidade e o direito à moradia................................... 309
à realização das obras para a Copa do Mundo de 2014: o caso de Carlos Eduardo Silva
Porto Alegre - RS........................................................................................... 151
Fernanda Peixoto Goldenfum A importância do planejamento na gestão dos processos de regularização
fundiária como vetor para efetivação do direito social à moradia:
caso do município de Canoas/RS.................................................................. 325
CAPITULO III - Gestão Democrática e Direito ao Planejamento Urbano Elaine Adelina Pagani

Gestão democrática da cidade: reflexões críticas......................................... 169 A regularização fundiária de interesse social e os aspectos da
Fábio Scopel Vanin sustentabilidade e do planejamento urbano................................................. 343
Fábio Scopel Vanin
Direito à cidade sustentável e as estruturas políticas jurídicas de promoção
de gestão democrática no município de Ilhéus, estado “Há tempos de plantar e tempo de colher o que se plantou...”
da Bahia (2066-2011)................................................................................... 179 A Demarcação Urbanística na Lei 11.977/2009.......................................... 365
Gabriele Araújo Pinheiro; Wagner de Oliveira Rodrigues Jacqueline Severo da Silva

Os territórios de participação nas experiências dos orçamentos A política nacional de habitação e os conjuntos habitacionais para
participativos de Porto Alegre e Belo Horizonte........................................... 195 idosos: o caso de Araraquara-SP.................................................................. 375
Helena Bonetto; Éder Luís da Silva Rodrigues Luzia Cristina Antoniossi Monteiro; Carolina Maria Pozzi de Castro;
José Francisco
Os dez anos do Estatuto da Cidade e a necessária revisão dos
Instrumentos de Participação Popular...........................................................211 A regularização fundiária e a participação social.......................................... 391
João Telmo de Oliveira Filho; Carla Portal Vasconcellos Tiago Gonçalves da Silva

O processo participativo do plano diretor de Florianópolis Usucapião coletiva – dificuldades de efetivação do instituto....................... 409
e a deslegitimação da autoridade política.................................................... 225 Viviane Clemêncio Machado Escallier
Lorena Babot; Paulo Renato Ernandorena

A eficácia da participação popular no processo de gestão democrática CAPÍTULO V – Política Urbana, Mudanças Climáticas e Código Florestal
da cidade de Porto Alegre............................................................................. 243
Maria do Carmo Boklage Evolução legislativa do trabalho do direito à moradia em áreas de
preservação permanente no Brasil................................................................ 429
Contribuição do Estatuto da Cidade para a ampliação da participação Amanda Silvano
social e da governança – a experiência de planos diretores participativos
em municípios mineiros................................................................................. 259 Bacia hidrográfica como unidade de planejamento:
Maria Izabel Marques do Valle uma questão conceitual ou legal................................................................... 447
Cristina Lengler; Cristiano Stamm
A Consensualidade no regime jurídico administrativo e o
Estatuto da Cidade: gestão democrática da cidade..................................... 277 Avaliação dos processos erosivos nas margens do Rio Capivari e seus
Rafael Ramos efeitos no meio ambiente no município de Capivari do Sul (RS)................... 467
Magalia Monteiro Cardoso

CAPÍTULO IV - Regularização Fundiária e Políticas Habitacionais Delimitação das APP de topo de morro: lacunas na legislação brasileira
e proposição de uma metodologia................................................................ 485
Questões Jurídicas na Implantação do Programa Minha Casa Minha Vida.....291 Mariana Lisboa Pessoa
Ana Luísa Soares de Carvalho
Análise das principais causas de tendências desfavoráveis a CAPÍTULO VII – Tutela do Direito à Paisagem Urbana,
sustentabilidade ecológica: Jardim Social Presidente Collor na cidade Patrimônio Histórico, Arquitetônico e Cultural
de São Carlos/SP........................................................................................... 505
Regina Célia Foschini
Dossiê Serra do Navio................................................................................... 663
Construção civil sustentável e o princípio do poluidor-pagador................... 529 Adriely Salvador Ferreira; Ana Cynthia Sampaio da Costa;
Tatiana Monteiro Costa e Silva; Denize Maria Maymone Mamede de Luana Rocha de Souza; José Alberto Tostes
Arruda; Fernanda Cristina Brandão Silva Camargo; Giovana Mari Vieira
da Silva Ternovoi de Moraes; João Tito Schenini Cademartori Neto;
Marcela Aragonez de Vasconcellos Monteiro da Silva Os instrumentos processuais de tutela do patrimônio cultural histórico-
paisagístico: análise do caso da igreja São Pedro em Gramado-RS-Brasil.... 679
Ana Karina Zago; Ângelo Bonalume;
CAPÍTULO VI – Plano Diretor e Instrumentos de Política Urbana
Deise Salton Brancher; Queli Melwius Boch
Plano estratégico da Zona Sul: uma abordagem
para além do Plano Diretor........................................................................... 545 Os lugares como patrimônio cultural da cidade:
Andrea Oberrather; Synthia Ervis Kras Borges a transformação do bairro Menino Deus e da sua identidade ..................... 699
Andrea Teichmann Vizzotto
Zoneamento de usos: uma análise sob a luz de princípios de
sustentabilidade urbana, aplicada ao município de Esteio - RS .................. 557
Débora Dall’ Agnol Terreno da Fase em Porto Alegre: O morro é nosso?................................... 713
Charles Pizzato
Estatuto da Cidade e o conceito de função social da propriedade urbana
Edson Ricardo Saleme; Silvia Elena Barreto Saborita .................................. 577
Patrimônio Histórico-Cultural em Taquara/RS: preservação e planejamento..... 733
A função social da cidade e da propriedade urbana enquanto princípio Cristina Fernandes Mansueti
orientador de regulamentação do solo criado no planejamento
urbanístico porto-alegrense.......................................................................... 587
Áreas especiais: além do interesse social, uma caracterização do território..... 749
Fabio Caprio Leite de Castro
Joseane da Silva Almeida
Projetos especiais – entre as intenções e os resultados .............................. 599
Gladis Weissheimer; Maria Tereza Fortini Albano Morro Santa Teresa: o Tombamento de um Patrimônio Cultural.................. 759
Robson da Silva Dutra Lima
Planejamento Urbano e Acessibilidade......................................................... 613
Juliana Barancelli Thomé Francisco
O desenvolvimento sustentável e a tutela do direito à paisagem: diretrizes
Outorga onerosa do direito de construir: quando a exceção vira regra. para a defesa do patrimônio cultural de Vila Juerana, Ilhéus,
A experiência na cidade turística de Gramado (RS)...................................... 631
Bahia (2009-2011)........................................................................................ 771
Mariana Melara Reis; Queli Mewius Boch
Thamilis Costa Braitt; Wagner de Oliveira Rodrigues
Planejamento e gestão metropolitanos em aglomerações urbanas formadas
por municípios de médio e pequeno porte: o caso da região metropolitana O Estatuto da Cidade na preservação de paisagens culturais:
de Maceió...................................................................................................... 649
O caso da ZEIP de Paranapiacaba – Santo André – SP............................... 783
Selene Maíra Morales
Vanessa Gayego Bello Figueiredo
CAPITULO VIII – O Judiciário Diante da O licenciamento ambiental municipal como instrumento de efetivação
Nova Ordem Jurídico-Urbanística do desenvolvimento sustentável no estado do Rio Grande do Sul............... 945
Fernanda Favarini Odorissi; Natacha John
Da construção à ressignificação dos espaços:
um elo entre o direito urbanístico e a justiça de transição........................... 805 Desenvolvimento das infra-estruturas de telecomunicações nas cidades.... 963
Christine Rondon Teixeira Andre Imar Kulczynski; Lafaiete Everardi dos Santos; Zilmino Tartari

A arrecadação de imóveis abandonados e o cumprimento da função


Os conflitos indenizatórios decorrentes da proteção do meio
social da propriedade.................................................................................... 977
ambiente urbano e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
Marcelo Dias Ferreira
e do Superior Tribunal de Justiça.................................................................. 819
Daniel Gaio Especulação imobiliária no município de Porto Alegre: a imobilidade
legislativa como obstáculo à gestão urbanística........................................... 989
Políticas públicas na garantia de um município ambientalmente Marcos Luiz Lovato
sustentável e o controle jurisdicional através da ação civil pública.............. 829
Fábio Scopel Vanin O estudo de impacto urbano para a expansão industrial: uma proposta..... 1003
Pablo Luis Barros Perez
Direitos humanos, direitos sociais e as questões habitacionais brasileiras... 851
João Paulo Rezende Russo; Raquel Fabiana Lopes Sparemberger; Estatuto da Cidade x Gestão Urbano-Ambiental x Análises Integradas..... 1021
Rogério Santos Rammê Rosane Zottis Almeida; Maria do Carmo Gualdi Lebsa;
Liamara Nique Libermas; Ricardo Kerber
O Judiciário diante da nova ordem jurídico urbanística – O Distrito Federal.... 871
Luciana Medeiros Costa; Marisa Isar; Vera Ramos;
CAPÍTULO X – Planejamento Urbano e Projetos de Revitalização
Cristiano de Sousa Nascimento
A responsabilidade socioambiental na preservação do ambiente urbano... 1033
A efetividade da ação civil pública na tutela dos direitos
Adir Ubaldo Rech; Adivandro Rech
urbano-ambientais no município de Porto Alegre......................................... 885
Luciano Saldanha Varela Planejamento urbano e acessibilidade: o direito a uma cidade inclusiva...1045
Alexsandro Rahbani Aragão Feijó; Viviane Gomes de Brito

CAPÍTULO IX – A Gestão Urbano-Ambiental na A generalização tipológica nos programas de produção


Nova Ordem Jurídico-Urbanística habitacional estatais: vantagens e desvantagens........................................1059
Demétrius Jung Gonzalez
Os impactos na nova ordem jurídica urbanística no planejamento
e na gestão urbano-ambiental...................................................................... 905 Loteamentos urbanos, sua evolução histórico-legislativa e influências
Carlos Eduardo Silva positivas do Estatuto da Cidade..................................................................1083
Juliane Altmann Berwig
Conflitos de competência quanto ao licenciamento ambiental
Direito à moradia digna e educação emancipadora.
no município de Cuiabá................................................................................. 915
O paradigma da Rede de sustentabilidade da Vila Chocolatão.................. 1101
Catarina Gonçalves de Almeida; Nely Tocantins
Vânia Gonçalves de Souza; Denise Souza Costa
Gênese, conceitos e legislação básica sobre estudos de impacto
em meio urbano............................................................................................ 925 PROGRAMAÇÃO ........................................................................................ 1119
Denise Bonat Pegoraro
Apresentação

Neste ano, estamos completando dez anos da aprovação do Es-


tatuto da Cidade, Lei Federal de Desenvolvimento Urbano – Lei n.º
10257/01. Considerada uma ruptura paradigmática quando de sua
aprovação, o Estatuto da Cidade encontrou obstáculos administrati-
vos, judiciais, processuais e políticos para sua implementação, dada a
novidade normativa contida na legislação. Em que pese as dificulda-
des, muitos Municípios brasileiros foram capazes de conduzir relevan-
tes experiências de gestão urbana por meio da elaboração de Planos
Diretores participativos e da aplicação dos instrumentos previstos no
Estatuto da Cidade.
Neste contexto, insere-se o Congresso Comemorativo aos 10 anos
do Estatuto da Cidade, realizado nos dias 5, 6 e 7 de outubro de 2011,
em Porto Alegre. O Congresso objetivou promover uma avaliação da efe-
tividade da norma contida na Lei Federal de Desenvolvimento Urbano
por meio de uma análise e discussão a respeito desse processo de im-
plantação da Lei, destacando (I) os obstáculos remanescentes, (II) os
principais desafios para garantir sua efetividade e, muito especialmente,
divulgando as melhores práticas relacionadas aos temas estratégicos
que vertebram a Lei Federal: o planejamento urbano, a gestão democrá-
tica das cidades, a democratização do acesso à terra pela regularização
fundiária de assentamentos informais, o combate à retenção especu-
lativa de imóveis urbanos e, finalmente, a recuperação da valorização
imobiliária decorrente dos investimentos públicos.
Combinando painéis, em que estiveram presentes especialistas de
âmbito nacional, com oficinas temáticas simultâneas para aprofundar os
temas em grupos menores, o evento pretendeu permitir a ampla partici-
pação dos congressistas na construção de uma avaliação realista acerca
da efetividade do Estatuto da Cidade.
Ressaltamos que o trabalho envolvido na organização deste evento
foi largamente recompensado, especialmente a partir do momento em
que passamos a receber os trabalhos (papers e pôsteres) que muito enri-
queceram o Congresso. Destacamos que os trabalhos apresentados de-
monstram não apenas a profunda reflexão que ocorre no Brasil sobre a
nova ordem jurídico-urbanística, mas também o compromisso social e a
dedicação dos profissionais de diferentes áreas vinculadas à gestão das
cidades. Foram apresentadas diversas e relevantes experiências nacio-

Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 15


nais de gestão urbana por meio da aplicação dos instrumentos previstos
no Estatuto da Cidade.
E como resultado deste processo, apresentamos aqui os anais do
Congresso Comemorativo aos 10 anos do Estatuto da Cidade, cujo ob-
jetivo é servir de referência teórico-prática para as discussões realizadas
durante as oficinas temáticas, bem como nas atividades cotidianas de
todos os participantes, cidadãos protagonistas na gestão de suas cida-
des.
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
Esta publicação está organizada em dez capítulos, sendo o primeiro
destinado as ideias estruturantes apresentadas pelos palestrantes e que
nortearam a formatação do Congresso. Nos demais capítulos são apre-
sentados os trabalhos agrupados segundo critérios de pertinência nas
seguintes oficinas: 1. A Ordem Jurídico-Urbanística e os Megaeventos
Esportivos, 2. Gestão Democrática e Direito ao Planejamento Urbano,
3. Regularização Fundiária e Políticas Habitacionais, 4. Política Urbana,
Mudanças Climáticas e Código Florestal, 5. Plano Diretor e Instrumentos
de Política Urbana, 6. Tutela do Direito à Paisagem Urbana, Patrimônio
Histórico, Arquitetônico e Cultural, 7. O Judiciário diante da Nova Or-
CAPÍTULO I
dem Jurídico-Urbanística, 8. A Gestão Urbano-Ambiental na Nova Or-
dem Jurídico-Urbanística, 9. Planejamento Urbano e Projetos de Revita-
lização.
Por fim, aproveitamos este espaço para homenagear a todos e a
Reflexões aos 10 anos do Estatuto da
todas que não se contentam em apenas almejar cidades melhores, mas Cidade: ideias estruturantes
protagonizam e fazem acontecer as transformações, empenhando suas
energias e esforços na efetiva construção de cidades democráticas, in-
clusivas e sustentáveis.

Betânia Alfonsin
Elaine Pagani
Simone Somensi
Vanêsca Buzelato Prestes

16 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Lei n.º 11.977/09: marco regulatório
da regularização fundiária
e quebra de paradigma
Candida Silveira Saibert1

Resumo: No presente texto é feita breve análise do capítulo


III da Lei Federal n° 11.977/09, sob o enfoque da definição
legal de regularização fundiária e suas implicações na for-
mulação de políticas públicas pelos Municípios brasileiros.

Palavras-chave: Regularização fundiária. Projeto de Regula­


rização. Planejamento e Gestão Urbanos. Licença ambiental.

1. Introdução

A regularização fundiária foi prevista dentre os instrumentos da


política urbana elencados pelo artigo 4º da lei nº 10.257/01, a serem
utilizados pelos Municípios para o alcance do pleno desenvolvimento
das funções sociais da cidade e da propriedade urbana. O Estatuto
da Cidade define nas diretrizes gerais o direito a cidades sustentáveis
como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental,
à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao tra-
balho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I). A re-
gularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por populações
de baixa renda estão previstas no inciso XIV do artigo 2º, preconizan-
do a adoção de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do
solo e edificação.
Tais diretrizes têm como destinatário precípuo o Município, ente fe-
derado a quem o artigo 182 da Constituição Federal atribuiu a respon-
sabilidade pela execução da política de desenvolvimento urbano.
Não obstante a concepção de regularização fundiária, muito antes da
publicação do Estatuto da Cidade, ter sido objeto de inúmeros estudos,
debates e pesquisas, as iniciativas do Poder Público para implementar

1 Procuradora-Chefe da Procuradoria de Assistência Jurídica e Regularização Fundiária da Procu-


radoria-Geral do Município de Porto Alegre, Especialista em Direito Público Municipal pela PUCRS.

18 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 19
políticas públicas de regularização centravam-se em aspectos específicos, suas quatro dimensões, considerando a realidade local na formulação
como a titularidade do imóvel, a execução de obras de urbanização no de legislação que não se limite às intervenções a serem promovidas na
assentamento, ou a regularização urbanística, pela edição de normas es- área sob regularização, mas que tenha por finalidade a incorporação dos
peciais de uso e ocupação do solo. A conjugação de todos esses aspectos, assentamentos regularizados à cidade formal.
entretanto, era de difícil implementação, especialmente diante da inexis- Assim, não só sobre procedimentos poderá o Poder Público Municipal
tência de uma diretriz geral que norteasse a atuação dos Municípios na legislar (art. 49 da lei n° 11.977/09), devendo inserir também nas demais
formulação e execução da política de regularização fundiária. normas de competência municipal (art. 30, I, II, VIII, da Constituição Fede-
Com a edição do Estatuto da Cidade pode-se avançar na elaboração ral), dispositivos atinentes a regularização fundiária, com especial destaque
dessas políticas, entretanto a regularização fundiária plena ainda não para dotação orçamentária dos órgãos municipais para esse fim.
prescindia de um exercício exegético das diretrizes gerais estabelecidas Além disso, a pluridimensão abrigada na definição do artigo 46 da
no artigo 2º, especialmente dos incisos I e XIV acima referidos. lei federal requer que o Poder Público empreenda medidas para atu-
A lei federal nº 11.977/09, que dispôs sobre o Programa Minha ação interdisciplinar dos diversos órgãos administrativos convergentes
Casa, Minha Vida, dedicou um capítulo específico para tratar da regulari- para a execução da política de regularização. Consoante ensinamento
zação fundiária de assentamentos urbanos, estabelecendo no seu artigo de SOUZA4, planejamento e gestão urbanos devem ser necessariamente
462 o conceito de regularização fundiária, consolidando o entendimento interdisciplinares:
há muito esposado pela doutrina pátria no sentido de que deve abran-
ger as dimensões jurídica, urbanística, ambiental e social, sob pena de Muito se clama por interdisciplinaridade na pesquisa científica con-
não alcançar sua finalidade precípua3. temporânea, mas o que mais se vê, na melhor das hipóteses, é plu-
O conceito legal vem, portanto, romper com o pensamento vigente na ridisciplinaridade (justaposição de conhecimentos disciplinares diver-
sos, agrupados de modo a evidenciar as relações entre eles; coope-
formulação das políticas públicas pelos órgãos municipais, impulsionando
ração sem coordenação) ou, mesmo, uma mera multidisciplinaridade
a sistematização, a interdisciplinaridade e a coordenação na atuação da (conhecimentos disciplinares diversos veiculados sem que haja uma
Administração Pública, de forma que possam ser utilizados os novos ins- cooperação entre os especialistas). A verdadeira interdisciplinari-
trumentos criados pela lei do Programa Minha Casa Minha Vida. dade pressupõe uma cooperação intensa e coordenada, sobre a
base de uma finalidade (e de uma problemática) comum.
2. A regularização fundiária de interesse social Quanto ao planejamento e à gestão urbanos, eles são, como já se enca-
na forma da lei federal nº 11.977/09 receu, ciência social aplicada e, como tal, devem ser interdisciplinares
por excelência. Mais ainda que a análise, ou diagnóstico – vale dizer, a
pesquisa empírica básica -, a pesquisa social aplicada, com a qual se
A lei n° 11.977/09 estabelece normas gerais sobre regularização
busca explicitamente contribuir para a superação de fenômenos tidos
fundiária, instituindo as bases para a formulação de políticas públicas como problemáticos e negativos, demanda intensa e coordenada coo-
por todas as esferas federadas. Contudo, o protagonismo do Município peração entre saberes disciplinares variados. A necessidade de diálogo,
é evidente, haja vista sua competência para execução da política de de- de aprendizado mútuo e de superação de fronteiras artificiais fica ainda
senvolvimento urbano. mais evidente quando se trata de pensar para além da problemática,
Nessa seara, importante a atuação municipal para integrar no pla- buscando refletir também sobre as soluções – ou, como já brincou al-
nejamento e gestão urbanos os processos de regularização fundiária nas guém, sobre a “solucionática”. (grifo nosso).

2 Art. 46. A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, am-
bientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus Com esse escopo que o artigo 48 da lei n° 11.977/09 propõe a
ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções observância de princípios específicos para a regularização fundiária, que
sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
3 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de regularização fundiária: justificação, impactos e
sustentabilidade. In Org. FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico e política urbana no Brasil. Belo 4 SOUZA, Marcelo Lopes. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planejamento e à gestão
Horizonte: Del Rey, 2000, p.195. urbanos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2006, p. 100.

20 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 21
apontam para a sustentabilidade urbanística, ambiental e social, bem melhorar a qualidade de vida de toda a comunidade e, via de conse-
como para a articulação com políticas setoriais de habitação, de meio qüência, da cidade como um todo.
ambiente, de saneamento básico e de mobilidade urbana. Esses princípios se coadunam com o disposto no artigo 182, “ca-
Um aspecto que merece destaque na norma federal é o reconheci- put”, da Constituição Federal, que visa o pleno desenvolvimento das fun-
mento de mais de uma tipologia de assentamento, formulando alterna- ções sociais da cidade e a garantia do bem-estar de seus habitantes. O
tivas diversas para regularização de assentamentos de interesse social conteúdo principiológico do artigo 182 deve orientar a formulação das
e de interesse específico. A característica principal dos assentamentos políticas públicas pelo Município, conforme ensinamento de DIAS6
irregulares passíveis de regularização fundiária de interesse social é a
ocupação predominante por população de baixa renda (art. 47, VII). O art. 182 da Constituição Federal é dispositivo que afirma a necessida-
Entretanto, as alíneas “a” a “c” do artigo em comento estabele- de de realização do desenvolvimento urbano, competência primordial do
cem outros critérios para a caracterização do assentamento, poden­do- Poder Público municipal, que há que se efetivar consoante determinados
objetivos. Trata-se de norma com caráter principial, isto é, com grande
se deduzir que se tratam de hipóteses alternativas5. O lapso temporal
densidade principiológica, pois elenca os vetores necessários à realização
de cinco anos definido na alínea “a” deve afastar qualquer discussão de políticas públicas nos espaços locais, a saber: o bem-estar social assim
judicial sobre desapropriação indireta por parte dos proprietários cons- como a garantia do pleno desenvolvimento das funções da cidade.
tantes da matrícula do Registro de Imóveis, possibilitando a implantação (...)
de infraestrutura pelo Poder Público, na forma preconizada pelo artigo Ainda, há que se acrescentar que, à especificação das diretrizes consti-
55, parágrafo único da lei, que estabelece que a realização das obras tucionais a guiar o desenvolvimento de políticas urbanas, somam-se os
poderá ocorrer mesmo antes de concluída a regularização jurídica das valores subjacentes ao sentido de bem-estar social e funções sociais da
situações dominiais dos imóveis. cidade, de total importância para a consecução de políticas públicas, e
que podem ser revelados por uma correta interpretação dos dispositi-
Não obstante essa possibilidade, a regularização fundiária de inte-
vos e princípios constitucionais relacionados aos valores qualidade de
resse social, assim como a de interesse específico, depende de apro- vida, bem-estar, dignidade humana, desenvolvimento urbano.
vação e licenciamento de projeto de regularização que atenda aos re- (...)
quisitos mínimos previstos no artigo 51. Denote-se que o inciso I deste O bem-estar social pressupõe uma vida sadia, em um ambiente
dispositivo refere que o projeto deverá definir os lotes que poderão ser físico que apresente estrutura eficiente e serviços que possam
regularizados e as edificações que serão necessárias ser relocadas. Aqui satisfazer às necessidades da população. Neste sentido, a cidade,
a lei claramente faz distinção entre o direito constitucional de moradia e enquanto ambiente construído, necessitará de planos políticos que
o direito de propriedade. possibilitem o desenvolvimento de suas funções sociais de forma a
garantir o bem-estar dos habitantes (CF/88, art. 182) paralelamente à
Ora, se são princípios da regularização fundiária a sustentabilidade
defesa do meio ambiente. (grifo nosso).
urbanística e ambiental, se deve haver articulação com as políticas de
meio ambiente e de mobilidade urbana, se deve buscar-se a integração
Deve, portanto, restar garantido o direto à moradia digna, ainda que
social da população beneficiada, então o projeto de regularização deve
em local diverso, priorizando-se evidentemente a permanência do mo-
compatibilizar os interesses individuais dos moradores do assentamento
rador no mesmo assentamento. Daí porque o § 3° do artigo 58 refere
com o interesse público à ordem urbanística e meio ambiente ecolo-
que não será concedido título de legitimação de posse aos ocupantes a
gicamente equilibrado, dotando-se o assentamento de condições para
serem realocados em razão da implementação do projeto de regulariza-
5 VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiária de assentamentos irre- ção fundiária de interesse social. Pois não se pode admitir que o projeto
gulares ocupados, predominantemente, por população de baixa renda, nos casos: de regularização deixe de contemplar a prestação dos serviços público
a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos; (Reda-
ção dada pela Lei nº 12.424, de 2011). básicos em face da pré-existência da situação consolidada.
b) de imóveis situados em ZEIS; ou
c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios declaradas de interesse para 6 DIAS, Daniella S. Desenvolvimento Urbano: princípios constitucionais. Curitiba: Juruá, 2002,
implantação de projetos de regularização fundiária de interesse social; pp. 150/151.

22 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 23
Assim, as vias devem possibilitar a entrada da coleta de lixo, da se perfazem com a manifestação convergente de todos os órgãos muni-
ambulância, do carro de bombeiros, da viatura policial. Deverá haver cipais competentes8.
previsão de espaços mínimos para a colocação de equipamentos co- Verifique-se que a lei n° 11.977/09 não exige expressamente a ins-
munitários, tais como escola, posto de saúde, praça; ainda que nem tituição de Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS - como requisito
todos possam ser contemplados, alguns deverão o ser. As soluções do à regularização fundiária de interesse social. Nesse sentido, o artigo 52
projeto de regularização devem ser construídas e concertadas com a prevê que para os assentamentos consolidados anteriormente à publi-
comunidade, mediante a participação em todas as etapas do processo cação da lei, o Município poderá autorizar a redução do percentual de
(art. 48, III). áreas destinadas ao uso público e da área mínima dos lotes definidos na
Para o alcance deste desiderato o Poder Público, antes mesmo de legislação de parcelamento do solo urbano.
iniciar o processo de regularização, deverá promover amplo esclareci- Porém, para a definição de regime urbanístico próprio, que contem-
mento dos moradores sobre em que consiste a regularização fundiária, ple as características da ocupação e possibilite a interlocução com o
incentivando a organização da comunidade e abrindo diálogo com os plano diretor, de forma a integrar o assentamento na cidade formal, e ao
mesmo tempo garantir a permanência da destinação da área regulariza-
diversos órgãos públicos envolvidos. Devem ser discutidas as demandas
da para a finalidade de habitação de interesse social, faz-se imperativo
e prioridades para solução dos problemas do assentamento a ser regu-
a instituição de ZEIS.
larizado. Este é um processo contínuo que não se esgota na elaboração
Outro aspecto que merece relevo é a faculdade conferida ao Mu-
do projeto e que desempenha papel fundamental para o sucesso do
nicípio pelo artigo 54, § 1°, para admitir, mediante decisão motivada,
plano de regularização.
a regularização fundiária de interesse social em Áreas de Preservação
O § 1° do artigo 53 da lei prevê que a licença do projeto de regula-
Permanente – APP - ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas
rização fundiária de interesse social corresponda ao licenciamento urba- em área urbana consolidada. A decisão deverá embasar-se em estudo
nístico e ambiental naqueles municípios que possuam órgão ambiental técnico que comprove que a intervenção para regularização promoverá
capacitado e conselho de meio ambiente. Isso se deve ao reconhecimen- a melhoria das condições ambientais em relação a situação anterior. Os
to de que os assentamentos irregulares constituem passivo ambiental requisitos que deverão ser observados no estudo técnico foram arrola-
das cidades7 e como tal deverão receber tratamento diferenciado de dos no § 2° do mesmo artigo9.
empreendimentos novos. Esse dispositivo guarda estreita relação com a Resolução CONA-
Não há o que se falar em licença prévia, de instalação ou de MA 369/2006, que dispôs sobre os casos excepcionais que possi-
operação na forma da Resolução CONAMA 237 para projetos de bilitam a intervenção em APPs, arrolando a regularização fundiária
regularização em áreas consolidadas. Não só a norma federal esta- sustentável dentre as hipóteses motivadas por interesse social. O
belece que a licença ambiental é única, como ainda determina que artigo 9° da Resolução definiu os requisitos e condições que devem
seja integrada com a licença urbanística. Tal entendimento pode 8 MIRANDA, Sandra Julien. Do ato administrativo complexo. São Paulo: Malheiros Editores,
perfeitamente ser estendido para os projetos complementares, tais 1998, p. 60.
como projetos de pavimentação, redes de água e esgoto, drenagem 9 § 2o O estudo técnico referido no § 1o deverá ser elaborado por profissional legalmente habi-
litado, compatibilizar-se com o projeto de regularização fundiária e conter, no mínimo, os seguintes
e outros que se façam necessários em face das características do elementos:
assentamento. I – caracterização da situação ambiental da área a ser regularizada;
II – especificação dos sistemas de saneamento básico;
Aqui fica mais visível a necessidade de o Município estabelecer um
III – proposição de intervenções para o controle de riscos geotécnicos e de inundações;
plano de trabalho interdisciplinar, haja vista que o licenciamento am- IV – recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de regularização;
biental e urbanístico são atos administrativos complexos, que somente V – comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental, considerados o
uso adequado dos recursos hídricos e a proteção das unidades de conservação, quando for o caso;
VI – comprovação da melhoria da habitabilidade dos moradores propiciada pela regularização pro-
7 VIZZOTO, Andrea Teichmann e PRESTES, Vanesca Buzelato. Direto urbanístico. Porto Alegre: posta; e
Verbo Jurídico, 2009, p. 72. VII – garantia de acesso público às praias e aos corpos d´água, quando for o caso.

24 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 25
ser observados na regularização fundiária sustentável, exigindo do 3. Considerações finais:
Poder Público a apresentação de Plano de Regularização Fundiária
Sustentável10. 1. O conceito legal de regularização fundiária contido no artigo 46
Sendo a lei posterior à resolução e, ao expressamente definir que a da lei n° 11.911/09 estabelece uma diretriz geral para os Municípios
decisão do Município deverá observará estudo técnico, pode-se concluir formularem a política de regularização fundiária plena, mediante siste-
pela abolição da exigência de apresentação de um Plano de Regulariza- matização, coordenação e interdisciplinaridade entre os diversos órgãos
ção Fundiária Sustentável. Muito embora os elementos de que deverão concorrentes para esse fim.
integrar o estudo técnico sejam bastante similares àqueles previstos na 2. A regularização fundiária deverá integrar o planejamento e ges-
resolução, vislumbra-se clara intenção de simplificar o processo de to- tão urbanos com a finalidade de incorporação dos assentamentos re-
mada de decisão pelo gestor municipal. gularizados à cidade formal. Para esse fim o Poder Público municipal
Os aspectos acima apontados são alguns que representam verda- deverá inserir na legislação local dispositivos atinentes à regularização
deira quebra dos paradigmas aplicados pelo Poder Público na elabora- fundiária nas quatro dimensões estatuídas na definição legal, bem como
ção e execução das políticas públicas de regularização fundiária. Não deverá prever dotação orçamentária para esse fim.
3. O projeto de regularização fundiária previsto no artigo 51 da lei
obstante o inarrável avanço que representa a lei, sua aplicação exigirá
n° 11.977/09 deverá buscar a sustentabilidade urbanística e ambiental
que gestores, técnicos, operadores do Direito e todos os demais atores
do assentamento, garantindo o direito à moradia digna e o interesse de
do processo abandonem velhas práticas e efetivamente implementem a
implantação dos serviços públicos no assentamento.
regularização fundiária plena em todas suas dimensões.
4. A instituição de ZEIS é importante medida para compatibili­zar-se o
assentamento com as normas do plano diretor, bem como para assegurar
10 Art. 9º A intervenção ou supressão de vegetação em APP para a regularização fundiária sus-
o gravame da área regularizada para habitação de interesse social.
tentável de área urbana poderá ser autorizada pelo órgão ambiental competente, observado o 5. Da exegese dos §§ 1° e 2° do artigo 54 da lei n° 11.977/09
disposto na Seção I desta Resolução, além dos seguintes requisitos e condições: depreende-se a inexigibilidade de apresentação pelo Município de Pla-
(...)
VI - apresentação pelo poder público municipal de Plano de Regularização Fundiária Sustentável
no de Regularização Fundiária Sustentável na forma da Resolução CO-
que contemple, entre outros: NAMA 369/06.
a) levantamento da sub-bacia em que estiver inserida a APP, identificando passivos e fragilidades
ambientais, restrições e potencialidades, unidades de conservação, áreas de proteção de manan-
ciais, sejam águas superficiais ou subterrâneas;
Referências
b) caracterização físico-ambiental, social, cultural, econômica e avaliação dos recursos e riscos am-
bientais, bem como da ocupação consolidada existente na área;
c) especificação dos sistemas de infra-estrutura urbana, saneamento básico, coleta e destinação ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de regularização fundiária: justifica-
de resíduos sólidos, outros serviços e equipamentos públicos, áreas verdes com espaços livres e
ção, impactos e sustentabilidade. In Org. FERNANDES, Edésio. Direito urbanís-
vegetados com espécies nativas, que favoreçam a infiltração de água de chuva e contribuam para
a recarga dos aqüíferos; tico e política urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000
d) indicação das faixas ou áreas que, em função dos condicionantes físicos ambientais, devam res- DIAS, Daniella S. Desenvolvimento Urbano: princípios constitucionais. Curitiba:
guardar as características típicas da APP, respeitadas as faixas mínimas definidas nas alíneas “a” e
Juruá, 2002
“c” do inciso I deste artigo;
e) identificação das áreas consideradas de risco de inundações e de movimentos de massa rochosa, Lei Federal n° 11.977/2009. < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
tais como, deslizamento, queda e rolamento de blocos, corrida de lama e outras definidas como 2010/2009/Lei/L11977compilado.htm> Acesso em 10/09/2011.
de risco;
MIRANDA, Sandra Julien. Do ato administrativo complexo. São Paulo: Malhei-
f) medidas necessárias para a preservação, a conservação e a recuperação da APP não passível de
regularização nos termos desta Resolução; ros Editores, 1998
g) comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade urbano-ambiental e de habitabili- Resolução 369 CONAMA. < http://concursoparqueolimpicorio2016.iabrj.org.
dade dos moradores; br/documentos/pqo-legislacao/AMBIENTAL/09-2006_Res_CONAMA_369.
h) garantia de acesso livre e gratuito pela população às praias e aos corpos de água; e i) realização
de audiência pública.
pdf> Acesso em 10/09/2011

26 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 27
SOUZA, Marcelo Lopes. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planeja-
mento e à gestão urbanos. 4a. ed. Rio de Janeiro: Bertand Brasil, 2006
O imposto predial e territorial
VIZZOTO, Andrea Teichmann e PRESTES, Vanesca Buzelato. Direto urbanístico. urbano sob a égide da progressividade
Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009
constitucional aplicada
Cintia Estefania Fernandes1

1. DA PROGRESSIVIDADE

A Constituição Federal além de prever a função social da proprieda-


de, elegeu o Imposto Predial e Territorial Urbano como um dos instru-
mentos de realização de tal garantia, aplicando a este a progressividade,
estabelecendo ainda a função da cidade, cuja ordenação deve ser es-
tabelecida por meio de plano diretor e a sua inobservância implica na
imposição de IPTU com alíquotas progressivas no tempo. Além disso, o
nosso sistema constitucional tem como viga mestra o princípio da isono-
mia, o qual se aplica a todos os impostos, impondo a personalização da
tributação imobiliária no sentido de atender o Estado Social Democráti-
co de Direito.
Prevê a Constituição Federal:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre:


I – propriedade predial e territorial urbana;
...
§1º. Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art.
182, § 4º, II, o imposto previsto no inciso I poderá:
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel;
II – Ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel.”

Redação anterior à Emenda Constitucional nº 29/00:


“§1º. O imposto previsto no inc.I poderá ser progressivo, nos termos
de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função
social da propriedade.”

1 Procuradora do Município de Curitiba; Julgadora Tributária; Doutoranda em Gestão Urbana pela PUC/
PR; Mestre em Direito do Estado / Direito Tributário pela UFPR; Especialista em Políticas do Solo Urbano,
pelo Lincoln Institute of Land Policy – Cambridge-MA-EUA; Professora do IBET; Professora do Programa
Nacional de Capacitação das Cidades do Ministério das Cidades; Professora do Lincoln Institute, Cambrid-
ge-MA, EUA – Programa da América Latina e Caribe; Professora do Centro Universitário Curitiba (Unicuri-
tiba); Professora convidada de Tributação Imobiliária – UFPR; Professora da Academia Brasileira de Direito
Constitucional; Autora do livro IPTU - Texto e contexto. São Paulo: Quartier Latin, 2005, 448p;Vice-Presi-
dente da Comissão de Advocacia Pública da OAB-PR; Palestrante em eventos nacionais e internacionais.

28 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 29
Entendemos que cabe preliminarmente traçar dois pontos relevan- Diversas são as formas de progressividade que podem ser adotadas
tes, primeiro cumpre dizer que não se pode ter uma interpretação isola- em um sistema tributário, dentre elas, tem-se as estipuladas por Aires
da dos artigos contidos na Constituição, segundo, que o conteúdo desta Fernandino BARRETO,4 ainda na vigência da Constituição de 1967, com
não foi formulado inutilmente, não se podendo desconsiderar precei- a Emenda Constitucional nº 1 de 1969, o que diante da pertinência de
tos por ela predeterminados, seja o que era disposto anteriormente à seu raciocínio, e da aplicabilidade à atual Constituição, se faz interessan-
Emenda Constitucional nº 29/00, nos termos da redação original do art. te reproduzir:
156, §1º, da CF, seja nos termos do art. 156, §1º, incisos I e II, decor-
rentes do advento da mesma. Progressividade no tempo
José Souto Maior BORGES esclarece que “essa arquitetura cons- A variação progressiva no tempo, a intensificação da carga tributária,
titucional da função social da propriedade não deve ser solapada ano a ano, seria utilizada como instrumento minimizador da especu-
pela exegese isolada dos textos específicos, como o art. 182 onde, lação imobiliária.
[...]
aliás, é reiterada (§2º), a evidenciar-lhe a peculiar importância.”2.
Progressividade no espaço
Para um melhor entendimento, devemos inicialmente distinguir a
Caracteriza-se a progressividade no espaço pela utilização de alíquo-
progressividade, a proporcionalidade e a seletividade. Ricardo Mariz tas diferenciadas, consoante a região em que se situe o imóvel, cons-
de OLIVEIRA, João Francisco BIANCO, Silvana Mancini KARAM e Pedro truído ou não.
Guilherme Accorsi LUNARDELLI, fazem a seguinte conceituação: [...]
Progressividade fundada no valor venal do imóvel
“Com efeito, proporcionalidade significa alíquota determinada e Viável, no âmbito do IPTU, a adoção de alíquotas seletivas por faixas
imutável, sendo aplicável sempre ela, qualquer que seja a gran- de valor venal.
deza da base de cálculo. ... A progressividade consistiria, no caso, na fixação de alíquotas cres-
A progressividade também acarreta o crescimento do tributo centes, à medida que ditos valores variassem, também, para maior.
na razão direta do crescimento da base de cálculo, mas não ape- [...]
nas em números absolutos, pois que também em números relativos. Na aplicação da progressividade, nesse caso, pode-se optar pela pro-
É que a progressividade significa alíquotas cada vez maiores, gressão simples, pela qual a matéria tributável (valor venal) seria atin-
quanto maior for a base de cálculo.... gida, integralmente, pela alíquota correspondente à faixa de valor esti-
Seletividade importa em dar tratamento diferenciado, isto é, pulada, ou se poderia optar pelo critério da progressão graduada, por
selecionado, entre vários fatos possíveis de se subsumirem à força da qual cada alíquota maior aplicar-se-ia, tão-somente, sobre a
hipótese de incidência de um mesmo tributo.... parcela do valor venal contida entre os limites de uma faixa e outra.
Teoricamente, o critério da seletividade tanto se ajusta ao critério da [...]
proporcionalidade quanto ao da progressividade, porque pode ocor- Progressividade em razão da superfície
rer a existência de alíquotas meramente proporcionais, mas diferen- Modalidade admissível de tributação progressiva é a que se estriba
tes de caso para caso, como também pode haver tabelas de progres- na maior ou menor área de terrenos loteáveis ou suscetíveis de des-
sividade diferentes de caso para caso. ... membramentos.
Em suma, proporcionalidade (alíquota percentual inalterável) e Perseguido o objetivo de imposição de fracionamento regular de gle-
progressividade (alíquotas proporcionais crescentes na razão bas urbanizáveis, é lícito que o legislador adote alíquotas mais gra-
do crescimento da base de cálculo) podem ou não ser seletivas vosas, desestimuladoras da manutenção de grandes áreas ociosas, a
(diferentes alíquotas para diferentes situações).”3 (O negrito não entravar o desenvolvimento racional das cidades.
consta do original).
4 Ressalta-se que Aires Fernandino BARRETO, juntamente com Ives Gandra da Silva MARTINS,
alteraram o posicionamento quanto à possibilidade da aplicação de alíquotas progressivas no IPTU,
2 BORGES. José Souto Maior. IPTU: Progressividade. In: Revista de Direito Tributário. São só entendendo aplicável a progressividade extrafiscal no tempo, nos termos do art. 182, § 4º, in-
Paulo: RT, v. 59, p. 74. ciso II da CF/88, seguindo a orientação do Supremo Tribunal Federal, conforme artigo intitulado (A
3 OLIVEIRA, Ricardo Mariz e outros. Princípios Constitucionais Tributários. In Caderno de Pesqui- inconstitucionalidade da progressividade ..., p. 41-83). Manual do Imposto sobre a propriedade
sas Tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1993, v. 18, p. 407. predial e territorial urbana. São Paulo: RT, 1985, p. 123-128.

30 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 31
[...] vinculados ao princípio da isonomia.”6, e sendo assim deverão neces-
Destinação do imóvel sariamente ser observados pelo sistema tributário nacional com o fito
A destinação do imóvel pode representar elemento diferenciador de de atender as exigências constitucionais que lhe são destinadas.
alíquotas a serem aplicadas.
Cabe aos Municípios brasileiros, diante da autonomia e do interesse
É cabível a adoção de alíquotas mais fortes para gravar os imóveis
ociosos e, bem assim, os industriais, comerciais e especiais, em con-
local determinar normativamente o critério quantitativo, alíquota, a ser
fronto com os residenciais. adotado para fins de IPTU.
[...]
Equipamentos urbanos
A presença ou não de equipamentos é, desde logo, critério diferen- 2. DO ENTENDIMENTO FIRMADO PELO
ciador entre zonas urbanas e rurais. Vale dizer, a transformação entre SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
zonas urbanas e rurais. Vale dizer, a transformação, a passagem de
uma área desta para aquela categoria, pressupõe de plano, ter sido
O Supremo Tribunal Federal se posicionou no sentido de que a pro-
adotada de pelo menos dois dos melhoramentos indicados nos ns. I a
gressividade só poderia atender a função social prevista no art. 182,
V do § 1º do art. 32 do CTN.
[...] §4º, II, razão pela qual só poderiam os Municípios instituir IPTU com
Progressividade conforme o gabarito das construções ou o número de alíquota progressiva no tempo, um tributo “sanção” dirigido aos con-
pavimentos tribuintes que mantivessem seus imóveis não edificados, subutilizados
A homogeneização da altura dos edifícios, com o objetivo de preser- ou não utilizados, devendo para tanto ser observada a ordem estabele-
vação da estética urbana ou de preservação paisagística, justifica a cida no respectivo dispositivo legal e seus incisos, bem como lei federal
utilização de alíquotas diferenciadas, em certas regiões, núcleos, vias que culminou no Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001.
ou logradouros das cidades. Segundo o Recurso Extraordinário n.º 153.771-0-MG, julgado pelo
[...]
Plenário do STF em 20.11.1996, nove votos a um, hoje entendimento
Critério misto de aplicação de progressividade
O desenvolvimento urbano ordenado carece, com freqüência, do es- sumulado, Súmula 6687, tem-se:
tabelecimento de uma política que atinja, rapidamente, o equilíbrio
econômico e social, em nível municipal. O natural crescimento da “IPTU – Progressividade. – No sistema tributário nacional, o IPTU ine-
urbe aliado, muitas vezes, ao fenômeno inafastável da migração impli- quivocamente é um imposto real.
cam espraiamento do homem no espaço físico. Sob o império da atual Constituição, não é admitida a progressivida-
[...] de fiscal do IPTU, que com base exclusivamente no seu artigo 145,
As alternativas de graduação das alíquotas antes examinadas §1º, porque este imposto tem caráter real, que é incompatível com a
podem e devem conjugar-se em processo simbiótico, para, em progressividade decorrente da capacidade econômica do contribuin-
ritmo acelerado, possibilitar a contenção da febre da especu- te, quer com arrimo na conjugação desse dispositivo constitucional
lação, o destemor às cargas tributárias normais, conducentes (genérico) com arrimo no art. 156, §1º (específico).
ao abuso e ao desrespeito à legislação de uso e ocupação do A interpretação sistemática da Constituição conduz inequivocamente
solo, das normas edilícias, das de localização das atividades co- à conclusão de que o IPTU com finalidade extrafiscal a que alude o
merciais, industriais, de serviços e outras que tais.5 (destaques inciso II do §4º do artigo 182, é a explicitação especificada, inclusive
nossos). com limitação temporal, do IPTU com finalidade extrafiscal aludido no
artigo 156, I, §1º.
Por fim há que se salientar que, nos moldes do entendimento do
professor Marçal JUSTEN FILHO, “a progressividade, seletividade e 6 JUSTEN FILHO, Marçal. Princípios Constitucionais Tributários. In Caderno de Pesquisas Tributá-
rias. São Paulo: Resenha Tributária e Centro de Extensão Universitária, 1993, v.18, p. 149.
proporcionalidade são subprincípios constitucionais, diretamente
7 Súmula 668: É inconstitucional a Lei Municipal que tenha estabelecido, antes da emenda
constitucional 29/2000, alíquotas progressivas para o IPTU, salvo se destinada a assegurar o cum-
5 BARRETO; MARTINS. Manual do imposto sobre a propriedade predial, p. 123-128. primento da função social da propriedade urbana.

32 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 33
Portanto, é inconstitucional qualquer progressividade, em se tratando Emenda Constitucional n°29/2000. (Relator Ministro Marco Aurélio.
de IPTU, que não atenda exclusivamente ao disposto no artigo 156, DJE 86, 09/05/2011, p. 10/05/2011. Ementário 2518-02).
§1º, aplicado com as limitações expressamente constantes dos §§2º
e 4º do artigo 182, ambos da Constituição Federal. Importante destacar que na íntegra do Acórdão supra transcrito se
Recurso extraordinário conhecido e provido, declarando-se inconsti- reconhece a justiça social-imobiliária, a obrigatoriedade dos tributos
tucional o subitem 2.2.3. do setor II da Tabela III da Lei 5.641, de
possuírem caráter pessoal, a relação jurídico-tributária sempre entre su-
22.12.89, no Município de Belo Horizonte.”8
jeitos de direitos, a aplicação do princípio da capacidade contributiva
para tributos ditos “reais”, da isonomia tributária, conforme a seguir se
Data maxima venia, não podemos nos curvar jamais a este enten-
extrai do voto-vista do Ministro Ayres Britto9:
dimento, sob pena de aceitarmos uma interpretação constitucional res-
tritiva, não só deixando de considerar dispositivo expresso na Consti-
“A Constituição quer, sim, que se leve em conta a capacidade contri-
tuição, art. 156, §1º (nos termos da redação anterior) e art. 156, §1º, butiva do sujeito passivo, mesmo quando se trate de impostos reais.
incisos I e II (nos termos da redação atual, decorrente da Emenda Cons- Isto porque: a) tal linha de conta é que tira a Constituição do papel
titucional nº 29/00), que sempre possuiu vigência imediata, diferente para concretizar de modo conjugado os princípios da função social da
da estabelecida no art. 182, §4º, II da CF, como também afrontarmos o propriedade, da justiça fiscal e da isonomia tributária; se assim não
princípio da autonomia municipal, da própria função social da proprie- fosse, para que a Constituição faria expressa referência a impostos
dade; da responsabilidade territorial dos municípios e do direito coletivo reais, a exemplo do IPTU, ITR, ITBI, num contexto de explícita refe-
ao planejamento urbano, todos autoaplicáveis (arts. 5º, XXIII, §1º, 30, rência à capacidade contributiva? E tal referência significa a imposi-
ção constitucional dos seguintes vetores hermenêuticos: a) nos im-
VIII e 182 da CF) sendo em verdade um poder-dever do Estado.
postos pessoais, a administração tributária faz o que é próprio dessa
Vários são os fundamentos jurídicos existentes que dão legitimidade espécie de tributos: a rigorosa observância do critério da capacidade
ao Município estabelecer alíquotas progressivas, através de lei própria, contributiva;b) nos impostos reais, o mesmo critério da aferição da
com o fito de realizar a função social da propriedade, que não a progres- capacidade contributiva prevalece, a menos que seja impossível (este
sividade no tempo, a qual se destina exclusivamente, ao solo urbano não o sentido da locução “sempre que possível” constante do §1° do art.
edificado, subutilizado ou não utilizado. 145). E tenho como certo que a EC 29 teve o sentido de reforçar tais
Com o advento da Emenda Constitucional n° 29/00 verificou-se o proposições normativas. Com o que a Constituição evidencia que a
reconhecimento expresso por parte do Poder Constituinte Derivado da relação jurídica tributária é entre sujeitos de direitos (o tributante e
o tributado), insista-se, e não entre o sujeito tributante e o objeto da
compatibilização da personalização do IPTU e, portanto, da aplicabilida-
tributação. Equivale a concluir: pouco importa que o tributo seja da
de do princípio da capacidade contributiva aos tributos imobiliários. espécie real, pois o que interessa é o sujeito passivo da obrigação
Tal reconhecimento veio a ser chancelado também pelo Supremo tributária. O imposto sempre jungido à regra elementar de que quem
Tribunal Federal, por unanimidade, nos Recursos Extraordinários n.°s tem mais, ou ganha mais, ou interage mais economicamente, deve
586.693 e 423.768, que entendeu ser a Emenda n°29/00 constitu- pagar mais (em linhas gerais, é isso). Fórmula que possibilita a con-
cional, declarando também a constitucionalidade da legislação de São creção maximizada ou otimizada dos princípios da função social da
Paulo, Lei Municipal n° 13.250/2001. propriedade, da justiça social-tributária e da isonomia, como tantas
vezes dito neste voto.
RE 423.768-SP – Plenário – IMPOSTO PREDIAL E TERRITORIAL UR- 25. Ainda nessa vertente de argumentação, sinta-se que a redação
BANO – PROGRESSIVIDADE – FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE primitiva do §1° do art. 156, em combinação com o inciso II do §4°
– EMENDA CONSTITUCIONAL N° 29/00 – LEI POSTERIOR. Surge do art. 182, apenas falou de uma específica imposição extrafiscal do
legítima, sob o ângulo constitucional, lei a prever alíquotas diversas IPTU: a progressividade no tempo. Como se dissesse: para otimizar
presentes imóveis residenciais e comerciais, uma vez editada após a a imposição do IPTU, a lei pode, inclusive, adotar a extrafiscalidade

8 STF – RE 153771-0 – MG – TP – Rel. do acórdão, Min. Moreira Alves, Rel. Min. Carlos Velloso 9 RE 423.768-SP – Plenário. Relator Ministro Marco Aurélio. DJE 86, 09/05/2011, p. 10/05/2011.
– DJU 05.09.97. Ementário 2518-02. Voto-vista Ministro Ayres Britto, p. 318, 323.324.

34 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 35
temporal: ou seja, até mesmo a extrafiscalidade temporal se inclui no Japão, pode-se dizer que não existiu um Estado onde no fim do século
âmbito de incidência extrafiscal do IPTU. Não que essa modalidade passado ou no princípio do presente, não existissem impostos com
de imposição progressiva fosse a única, pois a progressividade fiscal alíquotas progressivas.”10
também é ferramenta explícita de concreção daqueles três conjuga-
dos princípios constitucionais, aqui tão encarecidos. E é claro que a Nos Estados Unidos, desde 1898, se entendeu pela possibilidade,
Constituição é de ser interpretada pelo modo que melhor concretize o independentemente de qualquer previsão legal, da aplicação do princí-
conjunto de seus princípios nucleares.”
pio da progressividade tributária, conforme cita Victor UCKMAR.11
Pertinente ainda, a transcrição do entendimento de José Afonso da
Estamos diante de um novo olhar, isto é, o reconhecimento de uma SILVA sobre o tema:
interpretação integral e sistemática do texto constitucional, o reconhe-
cimento de que os instrumentos jurídicos vigentes devem servir para a “a progressividade prevista no art. 156 é genérica e pode ser estabe-
construção do Estado Social Democrático de Direito. lecida com base em critérios diferentes do estabelecido no art. 182,
Não se pode engessar a Constituição Federal, não se pode calar os §4º, que é vinculado à situação específica ali indicada.
dispositivos nela contidos, sob a afirmação de que o que nela está cla-
ramente escrito e prescrito, deve ainda ser emendado e mais uma vez O entendimento de Souto Maior BORGES, se identifica com a afir-
externado para ser reconhecido como válido. mação supra especificada:
A partir da Constituição de 1988 a progressividade fiscal e extra-
fiscal dos tributos imobiliários, e aqui se leia, o IPTU, o ITBI, o ITR e o Trivial que a progressividade no tempo é apenas uma das manifesta-
ITCMD, sempre foi compatível com o sistema constitucional tributário, ções desse fenômeno muito mais amplo, a progressividade no espa-
sendo a Emenda Constitucional n° 29/00 apenas mais um instrumento ço; segundo o valor do imóvel, a superfície, a sua destinação, o gaba-
de reconhecimento, pois se trata de uma compatibilidade com o Siste- rito ou número de pavimentos, critérios mistos (v., por todos, Misabel
ma Constitucional, com o âmago da estrutura social democrática, e não Derzi, ob. cit., pp. 296 e ss).”12
uma regra solta, aleatória e excepcional apenas agora passível de ser
aplicada ao IPTU. Extrai-se da doutrina transcrita que efetivamente não há como impedir
os Municípios de estabelecer no âmbito de seus territórios, a progressivida-
de da alíquota do IPTU sempre atendendo a função social da propriedade,
3. A PROGRESSIVIDADE PREVISTA NO ART. 156, §1º, I E II DA nos termos da antiga redação do art. 156, §1º da CF, a qual permanece
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PERSONALIZAÇÃO vigente, pois a função social da propriedade ali prevista, depende apenas
CONSTITUCIONAL DA TRIBUTAÇÃO IMOBILIÁRIA. de lei municipal para ser implementada, devendo observar o plano diretor
no caso de se vincular também ao ordenamento urbano em situações dis-
Se fizermos uma análise retrospectiva, observaremos que a alíquota tintas, e perfeitamente possíveis, da progressividade no tempo.
progressiva sempre foi aplicada no Brasil, muito antes do advento da Tem-se neste caso uma extrafiscalidade genérica, visando o cum-
Constituição Federal de 1988. primento da função social da propriedade urbana, tomada esta na sua
Misabel DERZI e Sacha Calmon Navarro COELHO, antes da Consti- acepção ampla, isto é, complementar à prevista no art. 182, § 4º, inciso
tuição Federal de 1988, já ensinavam que a progressividade: II da CF/88, que se trata de uma extrafiscalidade específica, possível
para o solo urbano, não edificado, não utilizado ou subutilizado.
“Não é incompatível com o princípio da igualdade e da proporciona-
10 DERZI, Misabel Abreu Machado e COELHO, Sacha Calmon Navarro. Imposto sobre a Proprie-
lidade. Ao contrário, é hoje aceita, e segundo relata Uckmar, da Ale- dade Predial e Territorial Urbana. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 68.
manha à Áustria, da França à Itália, da Holanda à Suíça, à Noruega, à 11 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 1976, p. 76,
Espanha, aos Estados Unidos, ao Canadá, ao México, à Austrália, ao nota 13.
12 BORGES. José Souto Maior. Op. cit., p. 73.

36 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 37
Esta conclusão ocorre inevitavelmente em face da função social da “A regra da igualdade não consiste senão em aquinhoar desigualmen-
propriedade, expressamente prescrita no art. 5º, XXIII da CF/88, da au- te aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigual-
tonomia municipal para implementar tal função, decorrente da neces- dade social, proprorcionada à desigualdade natural, é que se acha a
verdadeira lei da igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a de-
sidade do sistema tributário observar o princípio da isonomia eis que
siguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade
sempre foi aplicável ao IPTU, assim como ao ITBI, ao ITCMD e, ao ITR, a
real. Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da
progressividade de suas alíquotas. criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que vale, mas
Tal afirmação independe de emenda constitucional, pois está funda- atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem.”13
mentada na interpretação sistemática do texto constitucional de forma
autoaplicável. O reconhecimento da constitucionalidade da Emenda nº A igualdade impõe, como condição sine qua non, a aplicação da
29/2000, como já dito, só vem ao encontro dos fundamentos já traça- progressividade aos impostos imobiliários, como afirma Geraldo ATALI-
dos, sendo marco do reconhecimento expresso do paradigma adotado BA, “Parece claro que a pessoalidade dos tributos induz, claramente, a
no Brasil que atende o Estado Social Democrático de Direito, o princípio progressividade, sob pena de uma igualdade de aparência – meramente
da isonomia, da função social da propriedade e da cidade e tem na tri- formal – redundar no tratamento igual de pessoas desiguais, com viola-
butação imobiliária um instrumento de gestão territorial latu sensu. ção, portanto, do preceito do inc. II do art. 150.”14
Não há e nunca houve vedação constitucional de que o tributo Geraldo ATALIBA, ao tratar do IPTU, estabelece que:
imobiliário (IPTU, ITBI, ITR e ITCMD) seja progressivo, ao contrário, a
progressividade atende ao princípio da igualdade, a qual não pode ser O que a nosso ver, ocorre, no contexto da nossa Constituição, é que
aplicada só no momento da tributação do IPTU, e aqui se entenda a devendo o legislador dar-lhe tratamento técnico geral de impos-
progressividade em todas as suas acepções e modalidades, o objetivo to real, não está impedido (pelo contrário!) de modulá-lo levan-
fundamental da Constituição Federal de se construir uma sociedade do em consideração certas peculiaridades pessoais genéricas
justa, bem como a destinação da propriedade à sua função social, que dedutíveis da objetividade de dados sócio-econômicos forneci-
dos pela realidade urbana, tais como: estagnação ou decadên-
não se restringe apenas, à política do plano diretor de ordenação da
cia de bairros ou áreas, proximidade de favelas, conexão com
cidade strictu sensu, mas também à realização da justiça social, o que cancros urbanos, inserção em zona problemática do ponto de
se concretiza quando se tributa mais aqueles que tem mais e menos os vista social, etc.
que tem menos, assim como aqueles que mantém seus imóveis cons-
truídos subutilizados ou não utilizados, incompatíveis com o planeja- Do exposto, conclui-se que a tributação imobiliária no Brasil, com o
mento urbano e a ordenação do território, num contexto finalístico, advento da Constituição Federal de 1988, passou a ter vinculação direta
isto é, o uso e a localização do imóvel, e não meramente em face do com a função social da propriedade latu sensu, art. 5°, XXIII da CF/88,
grau e das condições de utilização do solo como dispõe o art. 182 sempre estando vinculada à extrafiscalidade seja esta preponderante
da CF/88 quando prevê a progressividade no tempo vinculando-a à ou não, seja no contexto da redistribuição de riquezas, eis que a tribu-
função social da cidade, regulamentado pelo art. 5° do Estatuto da tação direta tem o condão de dimensionar melhor a justa tributação, ao
Cidade, Lei 10.257/2001. contrário da tributação indireta, contribuindo com maior eficiência para
A igualdade impõe que se tribute diferentemente os desiguais, na a concretização do princípio da solidariedade, seja por meio da progres-
medida em que se diferenciam. Então estabelecer alíquotas diferentes sividade e/ou da diferenciação de alíquotas em face do uso e da locali-
para situações diferentes atende ao princípio da isonomia tributária, zação, aqui estando expressamente albergados os imóveis construídos
principalmente se aplicadas por meio de tabelas progressivas gradua- não utilizados ou subutilizados.
das.
Neste sentido já ensinava DUGUIT, citando ARISTÓTELES, cuja per- 13 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949, p. 33 e 34.
tinência não passou despercebida por Rui BARBOSA: 14 ATALIBA, Geraldo. IPTU: progressividade. Revista de Direito Tributário. São Paulo, a 15. N. 56,
p. 79, abr – jun. 1991.

38 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 39
Indubitavelmente a tributação imobiliária no Brasil, a partir da Cons- lei municipal ordinária, independente da existência do plano diretor, mas
tituição de 1988, deve ser vista sob um novo ângulo, um novo para- com este devendo se harmonizar, se existente, no caso da previsão cons-
digma compatível com um Brasil sustentável, eis que passou a ser um tante do inciso II, não estando submetida apenas ao reordenamento de
instrumento obrigatório dos entes federados para atender a responsabi- áreas urbanas, tendo como escopo uma tributação preponderantemente
lidade territorial que lhes foi delegada, assim como o direito coletivo ao fiscal, no que tange ao inciso I, e uma função preponderantemente extra-
planejamento urbano, arts. 5º, XXIII, 30, I e VIII e 182, § 2º da CF/88. É fiscal lato sensu, no que tange ao inciso II, tratando-se aquela, de função
possível afirmar, não mais se tratar de uma competência tributária facul- social vinculada ao abastecimento dos cofres públicos em busca do aten-
tativa eis que diante deste novo paradigma a tributação imobiliária deve dimento do bem comum, ou manutenção do Estado, vinculada à capa-
ser aplicada com fulcro nos fundamentos constitucionais que lhe são cidade contributiva do contribuinte e com isto assegurando a igualdade
conexos, não só em face do que dispõe a Lei de Responsabilidade Fiscal material através de uma justiça redistributiva e solidária, e no caso do
no que tange às despesas, mas em face da responsabilidade dos entes inciso II, vinculada à função social da propriedade, em situações outras,
federados em relação à receita, pois esta passou também a atender a considerando o uso e a localização do imóvel, atendendo a circunstâncias
função social da propriedade, da cidade, por meio da ordenação do in- distintas das previstas pelo art. 182, §2º e § 4º, inciso II da Constituição.
teresse local vinculado à gestão do território e do planejamento urbano O direito tributário evoluiu ao longo dos tempos passando a assumir
na sua expressão mais pura, em face do direito coletivo ao planejamento a função de agente realizador de política fiscal, através da redistribuição
urbano. de renda na sociedade, além de fundamental instrumento catalisador da
Conforme escólio de Edésio Fernandes, “de fato a Constituição de gestão territorial urbana.
1988 criou um direito coletivo novo, qual seja, o direito ao planejamen- A progressividade prevista no art. 156, §1º, inciso II, caracteriza-se
to urbano”.15 precipuamente por compelir o proprietário a usar ou deixar que outros
Neste diapasão tem-se que a nova Emenda Constitucional veio a usem funcionalmente o imóvel, atendendo as premências ambientais e
convalidar a personalização da tributação imobiliária por meio da pro- sociais, impostas pelo bem estar coletivo, enquanto o art. 182, § 4º, in-
gressividade, e mais, veio a diferenciar claramente dois tipos de alíquo- ciso II, serve precipuamente para exigir que o proprietário edifique, use
tas possíveis para o IPTU, a alíquota progressiva em razão do valor do o solo, parcelando ou edificando, neste caso por meio da construção,
imóvel e a alíquota diferenciada em face do uso e da localização do reforma ou manutenção de acordo com a função social predeterminada
imóvel, neste caso abrangendo a gestão do território também em face em Plano Diretor.
dos imóveis edificados. Poder-se-ia, no caso do art. 156, § 1º, inciso II, imaginar situações
O Poder Constituinte Derivado, respaldando-se da análise sistemá- como a de um imóvel que esteja construído respeitando o aproveitamen-
tica do texto constitucional, seguindo a visão da majoritária da doutrina to mínimo obrigatório, portanto, mas mantendo-se fechado por vontade
nacional, veio a deixar explícito o que já constava textualmente da Cons- do proprietário para fins de especulação imobiliária (uso), imóvel este
tituição Federal na sua redação original constante do art. 156, §1º, isto que se situa em local central e estratégico para o desenvolvimento da
é, a possibilidade da aplicação de alíquotas progressivas ao IPTU em cidade nos termos de Plano Diretor. Poderia a lei municipal, estabelecer
situações diversas das estipuladas pelo art. 182, §4º, II da CF, o que alíquotas diferenciadas e progressivamente mais elevadas, do que as
veio a ser respaldado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal16, incidentes em imóvel devidamente utilizado em mesmo local. Poderá o
conforme já exposto no item anterior. Município gravar mais pesadamente os imóveis que quando utilizados
A imposição de alíquotas do IPTU, constantes do art. 156, §1º, in- causem poluição (ambiental, sonora ou visual), um maior consumo de
cisos I e II da Constituição Federal, têm sua implementação através de energia elétrica ou água, enfim usos que venham a causar algum trans-
torno à coletividade.
15 FERNANDES Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey,
2000. p. 22. Ainda relativamente a este tipo de tributação extrafiscal, poder-se-ia
16 RE 423.768-SP – Plenário (Relator Ministro Marco Aurélio. DJE 86, 09/05/2011, p. 10/05/2011. ter um supermercado ou um grande shopping center, localizados (locali-
Ementário 2518-02).

40 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 41
zação) em regiões centrais da cidade, que com isto trouxessem grande cional, não afeta a nulidade de todo o lançamento, alcançando ape-
problema de tráfego, também aqui, as alíquotas utilizadas poderiam ser nas a parte que excede o valor devido, segundo a legislação aplicável
mais gravosas, incentivando que tais empreendimentos se situassem em ao fato gerador.
3. A restituição do IPTU pago a maior por força de lei reputada
outras regiões, menos gravosas para o bem-estar coletivo.
inconstitucional deve obedecer à legislação anterior. Correspon-
Cumpre, ainda que brevemente, quanto ao tema relacionado à con- dendo o tributo lançado ao montante devido à luz da legislação
sequência normativa do IPTU, critério quantitativo, alíquotas, destacar aplicável, desnecessário proceder-se ao novo lançamento.
o entendimento do Supremo Tribunal Federal atinente às alíquotas a Recursos desprovidos. Sentença modificada, em parte, em reexame
serem aplicadas nos casos de declaração de inconstitucionalidade de necessário. Voto vencido. (Destaques não constam do original).
leis que estabelecerem progressividade fiscal ao IPTU anteriormente a
EC 29/00. Ressalta-se que em entendimento mais recente o Supremo Tribu-
Um primeiro momento o STF se pronunciou no seguinte sentido: nal Federal18 decidiu pela desnecessidade da constituição negativa do
lançamento, todavia, determinando que seja aplicada a alíquota míni-
“ITBI. Progressividade : L. 11.154/91, do Município de São Paulo : ma da lei declarada inconstitucional, o que juridicamente é questioná-
inconstitucionalidade. vel diante do vício da inconstitucionalidade que afeta a norma desde
A inconstitucionalidade, reconhecida pelo STF (RE 234.105), do sis-
sua raiz.
tema de alíquotas progressivas do ITBI do Município de São Paulo
Data maxima venia, observa-se que a Corte Suprema, diante da de-
(L. 11.154/91), art. 10, II), atinge esse sistema como um todo, de-
vendo o imposto ser calculado, não pela menor das alíquotas claração de constitucionalidade da Emenda Constitucional n° 29/2000,
progressivas, mas na forma da legislação anterior, cuja eficácia, cujo fundamento só pode ser calcado numa interpretação sistemática
em relação às partes, se restabelece com o trânsito em julgado da do texto constitucional, a qual já restou desvelada neste artigo, tentou
decisão proferida neste feito” (Ementa extraída da RDDT n° 60, pág. de maneira emergencial, salvaguardar os Municípios brasileiros de repe-
185; Rext. 259.339-7 SP; Rel. o Sr. Min. Sepúlveda Pertence; DJU tições de indébito espúrias nos casos de demandas pela inconstituciona-
16.6.2000) (o grifo não consta do original). lidade do IPTU progressivo fiscal, ainda que fulcrando tal zelo em funda-
mentos socioeconômicos que, segundo a jurisprudência recentemente
Neste mesmo sentido é o entendimento do Tribunal de Justiça de firmada, podem atrelar-se à aplicação de lei declarada inconstitucional,
Porto Alegre, inclusive quanto à manutenção do ato de lançamento tri- no que tange à alíquota mínima a ser aplicada.
butário17: Estando resguardado o lançamento tributário, não há que se falar
em constituição negativa do lançamento, argumento muitas vezes tra-
“TRIBUTÁRIO. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. IPTU. ALÍQUOTA PROGRES- zido pelos contribuintes que pretendem se beneficiar de eventual de-
SIVA. VALOR VENAL DO IMÓVEL. INCONSTITUCIONALIDADE. APLI-
cadência do ato, o que resta totalmente afastada. Cumpre, no entanto,
CAÇÃO DA LEGISLAÇÃO ANTERIOR.
Consoante jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal, é a aplicação da menor alíquota extraída da legislação não progressiva,
inconstitucional a Lei Complementar nº 7/73 do Município de Porto anterior à declaração de inconstitucionalidade, conforme jurisprudência
Alegre, com a redação proferida pela Lei Complementar nº 7/73 do mais antiga da Corte Suprema,19e anteriormente citada.
Município de Porto Alegre, com a redação conferida pela Lei Comple-
mentar nº 212/89, que instituiu alíquotas progressivas em razão do
valor venal do imóvel. 18 Imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana - IPTU. Inconstitucionalidade da pro-
gressividade antes da emenda constitucional n. 29/2000. Possibilidade de aplicação da alíquota
Sendo o lançamento o ato de aplicação material da norma tributária, mínima. Precedentes. nulidade do lançamento: necessidade de análise da legislação infraconstitu-
a determinação do valor do tributo, segundo lei declarada inconstitu- cional. ofensa constitucional indireta. agravo regimental ao qual se nega provimento. AI 663016
AGR / SP - São Paulo AG. REG. no agravo de instrumento relator(a):  Min. Cármen Lúcia
17 Tribunal de Justiça de Porto Alegre, Segunda Câmara Cível, Reexame Necessário nº Julgamento:  20/10/2009. Órgão julgador:  Primeira Turma dje-213. divulg 12-11-2009. pu-
70001846294/2000, Relatora Maria Isabel de Azevedo Souza, data do julgamento 13.12.2000, blic 13-11-2009.
voto vencido. 19 RDDT n° 60, pág. 185; RE 259.339-7 SP; Rel. o Sr. Min. Sepúlveda Pertence; DJU 16.6.2000.

42 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 43
4. PROGRESSIVIDADE NO TEMPO APLICÁVEL AO IPTU. O Estatuto da Cidade é uma lei que permite aos Municípios nova for-
ma de tributação, mas não é uma lei que tem o condão de garantir
Prevê a Constituição Federal: aos Municípios mais recursos pela utilização do IPTU.
O IPTU com alíquotas progressivas no tempo não será maior, consi-
“Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Po- derando-se a arrecadação total deste imposto, se essa modalidade de
der Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem alíquotas for utilizada, pode ser inclusive menor.
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais O proprietário de referido imóvel será notificado pelo poder munici-
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
pal para parcelar ou edificar o imóvel compulsoriamente, devendo a no-
...............................................................................................................
§ 1º . A propriedade urbana cumpre a sua função social quando
tificação ser averbada no cartório de registro de imóveis, isso se revela
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expres- um ônus, para que terceiros saibam que pesa sobre o imóvel o dito ônus
sas no plano diretor. no caso de eventual negociação sobre ele.
............................................................................................................... A notificação será feita por servidor de órgão competente do Mu-
§4º . É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica nicípio ao proprietário do imóvel, ou no caso deste ser pessoa jurídica,
para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal, aquele que tenha poder de gerência ou de administração, ou por edital,
do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou quando frustrada por três vezes a notificação pessoal.
não utilizado que promova seu adequado aproveitamento, sob
O Poder Municipal há que estabelecer prazos para o cumprimento
pena, sucessivamente, de:
da obrigação, mas a Lei Federal já estabeleceu prazos mínimos a serem
I – parcelamento ou edificação compulsórios;
II – imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana por ela atendidos: primeiramente, conforme o disposto no § 4º do art.
progressivo no tempo; 5º, não poderão ser inferiores a um ano, a partir da notificação para
III – desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida públi- que seja protocolado o projeto no órgão municipal competente. E prazo
ca de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de no mínimo dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar
de resgate de até 10 anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, as obras do empreendimento, aplicando-se evidentemente, as regras lo-
assegurados o valor real da indenização e os juros legais.” (Destaques cais sobre edificações. No entanto, se se tratar de empreendimento de
nossos). grande porte, a lei municipal específica em caráter excepcional da lei e
do Estatuto, poderá prever a conclusão em etapas, assegurando-se que
Aqui nos deparamos com uma progressividade de cunho eminente- o projeto aprovado compreenda a obra como um todo.
mente extrafiscal, que também deve ser compatível com o Estado Social O Estatuto determina que a lei municipal deve prever os prazos que
Democrático de Direito, com a função social da propriedade e da cidade. não poderão ser inferiores aos acima descritos, bem como, o prazo para
A propriedade urbana é formada e condicionada pelo direito urba- o término das obras.
nístico, a fim de cumprir a sua função social específica, realizar as fun- O Estatuto da Cidade viabiliza a implementação do IPTU progressivo
ções urbanísticas e propiciar moradias, condições adequadas de traba- no tempo, que não terá fim arrecadatório, sendo um instrumento para
lho, de recreação, de circulação, realizando as funções sociais da cidade, que os proprietários promovam o adequado aproveitamento do solo,
nos termos do art. 182 da CF. ou seja, um meio de dar à propriedade, função social, anterior à desa-
Para alcançar as diretrizes elencadas no artigo 2º da Lei propriação com fins urbanísticos, o que reforça a inaplicabilidade,neste
10.257/2001, esta enumera uma série de instrumentos que poderão caso, do princípio da vedação de tributo com efeito confiscatório.
ser utilizados (art. 4º). Planejamentos, institutos políticos, institutos de As obrigações de parcelamento e edificação compulsórios são
direito civil, estudos, e entre eles, separados no inciso IV, os institutos transferidas ao novo proprietário, sem interrupção de quaisquer prazos,
tributários e financeiros: “a) imposto sobre a propriedade predial e terri- quando houver transmissão do imóvel, por ato inter vivos ou causa mor-
torial urbana – IPTU; b) contribuição de melhoria; c) incentivos e benefí- tis, posterior à data da notificação, art. 6º do Estatuto da Cidade.
cios fiscais e financeiros”.
44 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 45
Uma vez descumpridas estas obrigações, o Município deve proceder c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou inade-
a aplicação do IPTU progressivo no tempo, mediante a majoração da quados em relação à infra-estrutura urbana;
alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos (art. 7º do E.C). d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam fun-
cionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-es-
O valor das alíquotas será fixado em lei municipal específica e não
trutura correspondente;
excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subu-
alíquota máxima de 15%. tilização ou não utilização;
Se em cinco anos não for atendida a obrigação, o Município mante- f) a deterioração das áreas urbanizadas;
rá a cobrança pela alíquota máxima até que seja cumprida e garantida g) a poluição e a degradação ambiental.
a prerrogativa do Município proceder à desapropriação do imóvel, com
pagamento em títulos da dívida pública. Frisa-se também que o Estatuto dá ênfase à gestão democrática
O patamar máximo da alíquota de 15% permanece nesse percen- da cidade, fazendo com que todas as diretrizes sejam debatidas com a
tual e para alguns Municípios, poderá permanecer anualmente, pois a participação da população e de associações representativas da comuni-
desapropriação é facultativa. dade, com a promoção de audiências e consultas públicas.
Poderá haver inclusive uma operação consorciada com o próprio Quanto à afirmação de alguns autores, no sentido de que a progres-
poder público, uma figura interessante de incorporação imobiliária, com sividade no tempo tem caráter sancionatório, desde já devemos escla-
a participação do Município. Entrega-se a propriedade para o Município recer que tal afirmativa não procede, ante a previsão do art. 3º do CTN,
e em troca recebe lotes ou unidade edificados pelo Município, para que recepcionado pela CF/1988, o qual não admite tributo com caráter de
possa dar cumprimento a edificação ou parcelamento compulsórios. sanção de ato ilícito. O IPTU progressivo no tempo é um tributo cuja
O Estatuto veda a concessão de isenções ou de anistia relativas à funcionalidade das alíquotas é extrafiscal.
tributação progressiva no tempo. Destaca ainda Valéria FURLAN:
O Plano Diretor é obrigatório para o Município que pretenda insti-
tuir o IPTU progressivo no tempo. “Não se trata de tributar um fato ilícito, pois o fato ensejador do IPTU
é a propriedade imobiliária, nada mais – portanto, um fato lícito. A
A lei que instituir o Plano Diretor deverá ser revista, pelo menos, a
natureza sancionatória advém, isto sim, da persistência do proprietá-
cada dez anos, e deve englobar o Município como um todo, alcançan- rio em fazer, mau uso do seu imóvel, o que acarreta um agravamento
do todas as diretrizes previstas no Estatuto, devendo possuir cadastro de alíquotas.”20
territorial atualizado, se possível, multifinalitário, nos termos da Diretriz
Nacional de Cadastro proposta pelo Ministério das Cidades. A sanção é norma estranha à norma impositora do tributo. Normas
Assim, os técnicos dos órgãos competentes devem verificar se o Pla- distintas com objetivos diferenciados.
no Diretor em vigor cumpre o estabelecido no Estatuto e providenciar Nesse mesmo sentido Elizabeth Nazar CARRAZZA: “O caráter san-
legislação municipal que individualize os imóveis que não cumprem as cionatório da progressividade no tempo ora em exame, não decorre da
diretrizes urbanísticas previstas. incidência do IPTU sobre um ato ilícito. O IPTU, mesmo nesse caso, in-
Este estudo é imprescindível uma vez que o Estatuto é muito abran- cide sobre o fato lícito de uma pessoa ser proprietária de um imóvel
gente e subjetivo no que tange às definições destas diretrizes, até por- urbano. A sanção advém, sim, do mau uso (de acordo com a lei local)
que é uma lei que abrange os mais diversos tipos de municípios. O artigo que esta pessoa faz de sua propriedade urbana”.21
2º elenca em dezesseis incisos tais diretrizes, por exemplo: O critério material da hipótese de incidência tributária do IPTU é ser
proprietário, detentor do domínio útil ou possuidor com ânimo de dono
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: de imóvel urbano, portanto, demandando um fato lícito.
a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes; 20 FURLAN, Valéria C.P. Imposto Predial e Territotial Urbano. São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p.152.
21 CARRAZZA, Elizabeth Nazar. Progressividade e IPTU. Curitiba: Juruá, 1999, p. 98.

46 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 47
A consequência tributária também permanece íntegra, o que se tem do proprietário do imóvel, que enriquece indevidamente através da im-
é a alteração da funcionalidade aplicada à alíquota, que passa a ser pro- plementação da infraestrutura urbana, indo de encontro com o sistema
gressiva extrafiscal no tempo, quando se constatar não utilização, não de custos e benefícios da construção da cidade, o que é inadmissível se-
edificação ou subutilização do solo urbano. gundo o sistema constitucional, implicando na legítima tributação com
De hialina clareza o escólio do grande Mestre Souto Maior Borges: alíquotas de até 15%.
Tal dispositivo se refere às áreas não edificadas ou não utilizadas, aos
se se analisar sob uma perspectiva estritamente fiscal, ou seja, mais terrenos sem construção, ou com construção que não obedeça ao mí-
precisamente estruturalista, verificar-se-á que a estrutura de uma nimo obrigatório do potencial construtivo do terreno, ou ainda às cons-
isenção extrafiscal é dada não para fins de assegurar a prevalência truções paralisadas, inacabadas, deterioradas, ou em ruínas, que não
da capacidade contributiva ou por razões de ausência de capacidade
atendam as condições mínimas de habitabilidade,vinculadas ao mau uso
contributiva, mas em função de considerações ligadas à promoção
do desenvolvimento econômico. Numa perspectiva estruturalista, ve- do solo urbano e que impliquem em questões e condições edilícias, em
rifica-se o seguinte: uma isenção extrafiscal e uma isenção fiscal têm face da inobservância da notificação de parcelamento e/ou edificação
um sujeito ativo, têm um sujeito passivo, têm um objeto, têm um fato compulsórios, para fins de construção, reforma e manutenção, necessá-
jurídico tributário, têm um vínculo obrigacional, têm todas as caracte- rias ao atendimento da função social da propriedade e da cidade no que
rísticas – uma em relação à outra - que servem para estruturar a exis- tange à utilização do solo urbano.
tência do tributo e da obrigação respectiva. Então a conclusão é: isen- Antes do advento do Estatuto da Cidade, José Souto Maior BOR-
ção extrafiscal é um falso problema (exatamente o que eu denunciava GES, afirmava que não é “lícito sustentar que o art. 182 não contempla
aqui). Como a minha visão sistemática não contempla um campo para
os imóveis construídos, com fulcro no § 4º. Subutilizado ou não utilizado
esta perspectiva problemática, que é diversa, expul­sa-se o problema
como um falso problema: isenção extrafiscal não é questão jurídica, é
tanto pode ser o terreno quanto o prédio”.23
pré-jurídica. Digo eu, se se desvia a análise para a perspectiva funcio- Concordamos com esta assertiva, todavia, reafirmamos que o IPTU
nalista ela será plenamente autorizada em termos normativos.22 progressivo no tempo deve ser aplicado para fazer frente ao não atendi-
mento do parcelamento e edificação compulsórios, notificação esta que
O art. 182 está previsto no capítulo da ordem econômica e financei- antecede e condiciona a instituição do IPTU extrafiscal no tempo, nos
ra e trata da política urbana, objetivando, como o próprio artigo prescre- termos da prescrição do art. 182, §4º, inciso I, da CF/1988. Ressalta-se
ve a “política do desenvolvimento urbano” e pontuando o direito coleti- que o respectivo dispositivo constitucional não previu a utilização com-
vo ao planejamento urbano. pulsória, esta vinculada ao uso do imóvel e não às condições edilícias do
Nos termos do caput do art. 182 e do seu §4º, o destinatário da mesmo.
norma é o Poder Público Municipal, poder executivo, o qual deverá exe- Ex positis, a interpretação do art. 5°, §1°� da Lei 10.257 de 10 de
cutar a política de desenvolvimento urbano de acordo com prescrições julho de 2001, que regulamentou a aplicação de alíquotas progressivas
gerais previstas em lei. no tempo, previstas no art. 182, § 4º, inciso II, deverá ser compatibili-
Por não ter o proprietário dado ao solo urbano a destinação esta- zada com o texto constitucional, também estando compreendidos como
belecida no Plano Diretor em legislação municipal decorrente, mantendo não utilizados os imóveis edificados que permanecem à margem das
solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, aqui cabendo condições de habitabilidade exigidas em face do interesse local.
também imóveis cuja construção tenha restado inacabada, paralisada, Ressalte-se ainda, que o inciso II, do art. 5º, § 1º da Lei
deteriorada, em ruínas, isto é, sem condições de habitabilidade, cuja no- 10.257/2001, veio a ser vetado pelo Presidente da República, o
tificação de parcelamento e/ou edificação compulsórios tenha restado qual possuía a seguinte redação: “utilizado em desacordo com a le-
inobservada, portanto, estando infringindo a função social da proprie- gislação urbanística ou ambiental”, pretendendo-se dar à expressão
dade no seu mais elevado grau, sem investimento adequado por parte
23 BORGES, José Souto Maior. O IPTU como instrumento de política urbana. In: VI Congresso
22 BORGES, José Souto Maior. Impostos estaduais e ..., p. 188. de Direito Tributário. Separata da Revista de Direito Tributário, 1992, p. 69.

48 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 49
subutilizado um sentido mais amplo, abrangendo também as hipóteses vando os ditames constitucionais, para os contribuintes que não aten-
de uso em desacordo com legislação municipal. dem ao estabelecido no plano diretor e incentivo fiscal para aqueles
As razões do veto foram as seguintes: que contribuem pra a revitalização da área degradada determinada no
centro da cidade, sendo um bom exemplo para os demais municípios
O inciso II do § 1º do art. 5º do projeto equipara ao imóvel subutiliza- brasileiros.
do aquele ‘utilizado em desacordo com a legislação urbanísitica ou am- Por fim cumpre pontuar que 15%, percentual máximo a ser apli-
biental’. Essa equiparação é inconstitucional, porquanto a Constituição cado às alíquotas do IPTU progressivo no tempo, não possui efeito de
penaliza somente o proprietário que subutiliza o seu imóvel de forma a
confisco.
não atender ao interesse social, não abrangendo aquele que a seu imó-
vel deu uso ilegal, o qual pode, ou não, estar sendo subutilizado. Vale
A alteração da função contida no critério quantitativo do IPTU, alí-
lembrar que, em se tratando de restrição a direito fundamental – direito quota progressiva no tempo (função extrafiscal), justifica-se para induzir
de propriedade -, não é admissível a ampliação legislativa para abarcar à observância do princípio da função social da propriedade e da cidade.
os indivíduos que não foram contemplados pela norma constitucional. A tributação imobiliária a partir do advento da Constituição Federal
de 1988 e do Estatuto da Cidade passou a ser instrumento imprescindí-
Destaca-se que estes casos estão albergados pela observância da vel não só para fins de arrecadação tributária, a qual deve estar fulcrada
função social da propriedade e permanecem sob a tutela municipal, a na isonomia e na solidariedade, mas também para ordenação responsá-
qual pode/deve se utilizar dos instrumentos tributários extrafiscais para vel do território de um Brasil cuja Carta Magna impõe o Direito Coletivo
atender o interesse local, o direito coletivo ao planejamento urbano e a ao Planejamento Urbano adequado à função social da propriedade e da
responsabilidade territorial, podendo coibir o uso indevido da proprie- Cidade. Este é o novo paradigma a ser observado.
dade que afronta tais postulados, como no caso de imóveis edificados
fechados, para fins de especulação imobiliária em zona cuja infraestru-
tura urbana está consolidada, só que por meio do IPTU, que poderá ser REFERÊNCIAS
progressivo fiscal e ter alíquotas diferenciadas em razão do uso e da
localização, nos termos do art. 156, §°1, II da CF/88. ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Comentários. In: MEDAUAR, Odete; Al-
Destaca-se ainda, que a aplicação de alíquotas progressivas no meida, Fernando Dias Menezes de. [coord.]. Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de
tempo do IPTU, somente poderão ser aplicáveis após o proprietário do 10.07.2001. São Paulo: RT, 2002. p. 53.
ATALIBA, Geraldo. IPTU: progressividade. Revista de Direito Tributário. São Pau-
imóvel (não edificado, subutilizado ou não utilizado), não ter atendido à
lo, a 15. N. 56, p. 75-83, abr – jun. 1991.
notificação de parcelamento ou edificação compulsórios, previstos no BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949.
art. 182, § 4º, inciso I da CF. BORGES, José Souto Maior. IPTU: Progressividade. In: Revista de Direito Tribu-
Sendo assim, há que se ter em mente que o art. 182, §4º, inciso II, tário. São Paulo: Malheiros Editores. v. 59, p. 74.
tem desdobramentos de regime jurídico distinto do previsto no art. 156, ____ . Impostos Estaduais e Municipais (ICMS, IPTU, ISS).- Mesa de Debates. In
§ 1º, inciso II, estando em consonância com o que dispõe o art. 5º, inciso Revista de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros Editores. v. 60, p. 166 a 190.
____. O IPTU como Instrumento da Política Urbana. In: VI Congresso de Direito
XXIII, o art. 170, inciso III e o art. 182, § 2º da Constituição Federal.
Tributário. Separata da Revista de Direito Tributário, 1992, p. 65 a 72.
Ressalte-se ainda que Municípios de vanguarda, como o Município BARRETO, Aires F.; MARTINS, Ives Gandra da Silva. Manual do Imposto sobre
de Curitiba/PR24, estão instituindo o IPTU progressivo no tempo, obser- a propriedade predial e territorial urbana. São Paulo: RT, 1985, p. 103 - 128.
___. A inconstitucionalidade da progressividade prevista na EC 29/2000. In:
24 Lei Complementar Municipal de Curitiba n° 74/2009. Art. 1°. Serão concedidos incentivos
fiscais para a dinamização do entorno do Paço Municipal assim como para recuperação e conser- PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord). IPTU, aspectos jurídicos relevantes. São
vação de edificações, para imóveis e atividades na área delimitada em mapa anexo. (...) Art. 12. Na Paulo: Quartier Latin, 2002, p. 41-83.
forma da Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001 – Estatuto da Cidade e da Lei Municipal CARRAZA, Elizabeth Nazar. Progressividade e IPTU. Curitiba: Juruá, 1996.
nº 11.266, de 2004, os imóveis não edificados, subutilizados e com edificações paralisadas ou
em ruínas localizados na área definida nesta lei (ou na lei dos incentivos do centro) ficam sujeitos CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 22ª ed. São Paulo:
aos instrumentos de edificação compulsória e à incidência de alíquotas progressivas no tempo do Saraiva, 2010.
Imposto Sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana – IPTU Progressivo.

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DERZI, Misabel de Abreu Machado; COELHO, Sacha Calmon Navarro. Do Impos-
to sobre a Proprieadade Predial e Territorial Urbana. São Paulo: Saraiva, 1982.
Direito ao planejamento urbano
____. Princípio da Igualdade no Direito e suas Manifestações. In: ATALIBA, Ge-
raldo; DÓRIA, A. R. Sampaio. Princípios Constitucionais Tributários. São Pau-
lo: IDEPE, 1991. Separata da Revista de Direito Tributário. João F. Rovati1
FERNANDES. Cintia Estefania. IPTU: Texto e contexto. São Paulo: Quartier La-
tin, 2005, p. 448.
FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Organiza-
dor Edésio Fernandes. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 630.
Em um país marcado por imensas desigualdades sociais e pelo fre-
FURLAN, Valéria C. P. Imposto Predial e Territorial Urbano. São Paulo: Malheiros qüente desrespeito a direitos humanos fundamentais, falar sobre “direi-
Editores, 1998. to ao planejamento urbano” pode parecer uma extravagância. Para um
JUSTEN FILHO, Marçal. Princípios Constitucionais Tributários. In Cardeno de grande número de brasileiros, o direito à moradia é ainda uma quimera
Pesquisas Tributárias. São Paulo: Resenha Tributária e Centro de Extensão Uni- – isso sem mencionar os direitos à educação, assistência médica, segu-
versitária, 1993, v.18, p.149. rança e tantos outros.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Malheiros
Editores.12ª ed., 1997.
Não abordarei o tema do ponto de vista jurídico. Não tenho compe-
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de, BIANCO, João Francisco, KARAM, Silvana Mancini, tência para tanto. Mas quero pelo menos registrar que, ao consultar o
LUNARDELLI, Pedro Guilherme Accorsi. Princípios Constitucionais Tributários. Estatuto da Cidade, tenho o sentimento de viver, como cidadão, na mais
In Caderno de pesquisas Tributárias. São Paulo: Resenha Tributária, 1993, v. completa ilegalidade.
18, p. 407. Segundo o Estatuto (artigo 2º), um dos objetivos centrais da política
UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional., trad. De Marco urbana seria “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da
Aurélio Greco, 1ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.
cidade e da propriedade urbana” mediante “a garantia do direito a ci-
dades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia,
ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras
gerações”. Temos uma política urbana? Essa política urbana, se exis-
te, garante o direito a cidades sustentáveis? Aliás, a terra e a moradia
de fato têm sido abordadas como direitos? Quem afinal tem acesso às
infra-estruturas urbanas? Quem efetivamente exerce o direito aos trans-
portes, aos serviços públicos, ao lazer? As decisões que hoje tomamos
(ou deixamos de tomar) garantem o exercício desses direitos para as
presentes e futuras gerações?
Antes de avançar no exame do direito ao planejamento urbano, é
preciso fazer um esclarecimento sobre o lugar a partir do qual lanço meu
olhar em direção ao tema.
De certa maneira, em encontros como esse, dedicado aos 10 anos do
Estatuto da Cidade, sinto-me um peixe fora d’água. Integro o quadro
docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Minha água,
por assim dizer, é a sala de aula, o laboratório de pesquisa. Ali me sinto

1 Professor e pesquisador do Programa do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urba-


no e Regional, da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PRO-
PUR/UFRGS).

52 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 53
à vontade. E existe uma grande diferença entre ministrar uma aula ou uma ciência, mas um saber situado entre a ética do poder e o processo
ser autor de um artigo, apresentando os resultados de uma pesquisa, e de construção de verdades compartilhadas.
ser ator em um debate público que envolve necessariamente, além de Como acontece em outros domínios da vida social, o debate sobre
valores, conflitos de natureza política. Há uma grande diferença entre as coisas da cidade evolve conflitos, discordâncias e contradições – que,
protagonizar uma atividade cuja finalidade principal é a formação pro- além de inevitáveis, são muito bem vindos, na medida em que carregam
fissional e participar de um Congresso que acolhe um público variado consigo a possibilidade de constituição de identidades coletivas. Assim,
e com responsabilidades diversas, como é o caso desse encontro, cuja como preliminar, penso que é impossível refletir sobre o urbanismo ou
finalidade, entre outras, é a formação de opinião. o planejamento urbano sem considerar a dimensão política do debate
Os papéis tendem a se misturar perigosamente nesse tipo de en- sobre a cidade – e também, evidentemente, do debate sobre os direitos
contro. Não por ser professor universitário minha opinião, como cida- associados à cidade.
dão, é mais importante do que outra. Não por ser professor da UFR- O problema é que, nos dias de hoje, em alguns círculos, a simples
GS represento a instituição. A UFRGS, felizmente, é uma Universidade evocação da palavra política provoca desconforto. Não creio que seja
aberta e plural, marcada por perspectivas e opiniões contraditórias so- um exagero afirmar que nos textos e falas de poderosos veículos de
bre quase todos os assuntos. Não por ser pesquisador represento “o” comunicação nacionais, de maneira direta ou velada, a palavra política
conhecimento. O conhecimento não é produto somente da pesquisa é freqüentemente associada à palavra corrupção. Tal associação talvez
científica – resulta, na minha visão, de processos mais abrangentes e não seja uma particularidade brasileira. Porém, em nosso país, ela tem
complexos. Sei que é quase impossível “descolar” uma figura da outra sido alimentada por uma visão absolutamente simplificadora da relação
– o professor, do cidadão; o pesquisador, do conhecimento; o autor, estado-sociedade, segundo a qual o Estado é o lugar do pecado e a so-
do ator. Mas preciso esclarecer que me expresso aqui sobretudo na ciedade o lugar da virtude. Daí a frase tantas vezes pronunciada, “todos
condição de cidadão. os políticos são corruptos”. Esta construção aposta no declínio da vida
Penso que esta preliminar não está dissociada do tema desse Con- pública. Alguns aderem a ela por ignorância, ingenuidade ou desapon-
gresso. É minha convicção que precisamos repensar nossas formas de tamento. Outros porque a afirmação dessa representação significa uma
participação nesse tipo de encontro. Vou tentar esclarecer meu ponto espécie de salvo conduto para as pequenas e grandes contravenções
de vista através de um exemplo. Entre outras atividades que exerço na praticadas na esfera privada.
Universidade, sou professor de um curso de arquitetura e urbanismo. Em outras palavras, penso que, nos últimos anos, como aconteceu com
Ali, além de colega dos meus colegas, convivo com estudantes que são outros temas e aspectos da vida social, o debate sobre a cidade e seu
futuros colegas. Posso me sentir à vontade, como autor, para escrever planejamento tem sido pautado pela representação de um Estado (leia-
uma análise crítica deste ou daquele projeto arquitetônico ou urbanísti- -se, o domínio da política) que, grosso modo, seria o lugar da ineficiência,
co. Mas, embora isto não esteja escrito e não seja proibido, recuso-me da ineficácia e da corrupção – e de uma sociedade (leia-se, o mercado,
a participar de um debate público cujo tema, segundo a minha abor- o domínio da economia) que seria o seu contrário. Sendo assim, a ação
dagem, necessariamente implicará na desqualificação do trabalho re- do poder público precisaria ser contida ou, quando considerada indis-
alizado por um colega. Por suas propostas autorais, devo aos colegas pensável, deveria se espelhar em critérios de desempenho sancionados
arquitetos o mesmo respeito que reivindico para as minhas. Paul Ricoeur pelo mercado. Fruto dessa visão, a esfera pública se fragilizou e, ao mes-
(1991) escreveu certa vez que a intenção ética precede a lei moral – e, mo tempo, ganharam força narrativas tão simplórias quanto perigosas,
para que não seja mero exercício de retórica, algumas vezes exige que como a do locutor que – dedo em riste – aponta reiteradamente para o
tomemos a palavra; outras, recomenda o silêncio. agente público que supõe corrompido sem jamais mencionar o agente
Os termos urbanismo e planejamento urbano até hoje são objeto privado que o corrompeu.
de muitas controvérsias teóricas e conceituais. Para Bernardo Secchi A desqualificação da vida pública e o desprezo da política têm graves
(2009), por exemplo, o urbanismo – este é o termo que utiliza – não é conseqüências para o debate e o enfrentamento de muitos dos nossos

54 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 55
problemas, urbanos ou não. O problema não é novo e já era abordado, à política urbana. A leitura dos artigos 182 e 183 da constituição até
por exemplo, em belo mito da Grécia Antiga, que passo a resumir. pode provocar longos debates técnicos. Mas será que já esquecemos
No princípio, os homens viviam em bandos isolados e, por isso, não con- que o texto dos referidos artigos resultou do debate de uma Emenda
seguiam defender-se de animais mais fortes do que eles. Com o passar Popular, apresentada pelo Movimento Nacional pela Reforma Urbana
do tempo, os homens aprenderam a emitir sons, a articular palavras, a e apoiada por cerca de 150 mil assinaturas? E será que já esquecemos
fabricar calçados e roupas, a cultivar alimentos e a construir suas mora- que, por ação de uma maioria conservadora, os constituintes – ao as-
dias. Surgiram então as primeiras aldeias e núcleos urbanos. Entretanto, sociarem o tema da função social da propriedade ao plano diretor – na
embora assim reunidos, os homens continuavam a se ferir mutuamente. prática protelaram o enfrentamento do problema?
Segundo Zeus, isso se devia ao fato de não dominarem a arte da política. Abro um parêntese para relembrar e homenagear o Movimento Nacio-
Preocupado, pensando que a espécie estava ameaçada de desapareci- nal pela Reforma Urbana, do qual se originou o Fórum Nacional da Re-
mento, Zeus então ordena que Hermes distribua entre todos os homens forma Urbana, reunindo entidades como: Movimento Nacional de Luta
o pudor e a justiça, para que, com base na prática coletiva desses va- pela Moradia (MNLM), União Nacional por Moradia Popular (UNMP),
lores, pudessem construir um lugar onde houvesse laços criadores de Central de Movimentos Populares (CMP), Confederação Nacional de As-
amizade. E assim, segundo o antigo mito grego, teria nascido a cidade sociações de Moradores (CONAM), Federação Nacional das Associações
– ou a polis, palavra que, como todos sabem, está na origem da palavra de Empregados da Caixa Econômica Federal (FENAE), Federação Na-
política. cional de Arquitetos (FNA), Federação Interestadual dos Sindicados de
O tema incomoda, mas não temos como fugir dele. Ano após ano nos Engenheiros (FISENGE), Federação de Órgãos para Assistência Social e
comovemos com as trágicas imagens das enchentes e deslizamentos Educacional (FASE), Instituto Polis, Instituto Brasileiro de Administração
de terra experimentados por diversas cidades brasileiras. Não preciso Municipal (IBAM), Instituto Brasileiros de Análises Sociais e Econômicas
evocar aqui outras imagens, igualmente trágicas, associadas a diversas (IBASE), Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Centro
formas de injustiça, desconforto e violência hoje presentes no cotidiano pelo Direito à Moradia Contra Despejos – CHORE Américas, Associa-
da cidade. O que quero sugerir com essa reflexão? Quero simplesmente ção Brasileira de Geógrafos (ABG), Federação Nacional de Estudantes de
dizer que não é por falta de “conhecimento” que certos problemas vivi- Arquitetura e Urbanismo (FENEA), Centro de Assessoria à Autogestão
dos por nossas cidades se repetem ou se perpetuam. Nossos principais Popular (CAAP), Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urba-
desafios são de outra natureza e estão relacionados muito mais aos con- nismo (ABEA), Fundação Bento Rubião – Centro de Defesa dos Direitos
flitos presentes na complexa construção social da vida coletiva do que Humanos, Rede Observatório das Metrópoles e tantas outras organiza-
ao domínio das técnicas e das ciências. ções.
A trajetória do Estatuto da Cidade, talvez mais do que seu conteúdo, O fato é que o Estatuto da Cidade somente seria aprovado em 2001,
ilustra bem o sentido por mim conferido ao debate sobre o direito ao doze anos após a promulgação da Constituição. O fato é que, passados
planejamento urbano. dez anos desde a aprovação do Estatuto, a sociedade brasileira pouco
Trata-se de uma longa história, toda ela marcada por disputas políti- avançou com relação ao tema que esteve no centro das querelas consti-
cas. Ao recuperá-la, vou apenas mencionar a iniciativa empreendida ain- tucionais sobre o urbano do final dos anos 1980 – a questão da função
da durante a ditadura, na segunda metade dos anos 1970, pelo governo social da propriedade.
do general Figueiredo, visando instituir uma legislação federal de uso Passados tantos anos, nossas instituições políticas e jurídicas continuam
do solo, a chamada Lei do Desenvolvimento Urbano, que – e é isto que dando mais atenção ao direito de propriedade do que à exigência do
quero ressaltar – já contemplava instrumentos posteriormente incluídos efetivo cumprimento da função social propriedade. E esta não é uma
no Estatuto da Cidade. opinião. É uma conclusão fundamentada em pesquisas sobre os planos
A trajetória do Estatuto da Cidade, contudo, tem sido associada quase diretores já elaborados com base no Estatuto da Cidade (Santos Junior
sempre à Constituição de 1988 e à regulamentação do capítulo relativo et al., 2011). Aliás, para comprovar o sentido maior dessa conclusão,

56 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 57
basta passear por nossas cidades e ver o que está acontecendo com emergiu da crise do fordismo e do estado de bem-estar e, a partir dos
elas, fruto do recente “aquecimento” do setor imobiliário, catapultado anos 1990, passou a orientar um sem número de experiências gover-
por importantes programas públicos de financiamento. Nunca os preços namentais em diferentes esferas de poder, à esquerda e à direita do es-
da terra e dos imóveis foram tão elevados e, nesse âmbito, raros são pectro político (Paula, 2005). A extensão e generalização da experiência
os casos em que encontramos alguma atuação digna de nota por parte gerencialista no Brasil aparentemente tem tornado a máquina pública
do poder público. Na ausência de articulação entre política urbana e ainda mais fragmentada, na medida em que resulta na criação de novas
planejamento local (ou, dependendo do ponto de vista, por causa dessa estruturas político-administrativas que convivem com àquelas herdadas
articulação), por um lado se oferece à população mais pobre a possibi- do passado. As instâncias de gestão de projetos se multiplicaram, mas,
lidade de adquirir uma casa, mas, por outro, assenta-se mais um “tijolo” pelo tipo de mediação política que articulam, acentuam a dependência
na construção de uma cidade ainda mais segregada e segregadora – tor- das nossas cidades aos desígnios do mercado.
nando mais distante e improvável o sonho da construção de uma cidade Em resumo, tudo o que dissemos sugere que o debate sobre o direito ao
socialmente menos desigual e culturalmente mais diversa, de uma cida- planejamento urbano não pode ser dissociado do debate sobre a cidade
de mais acolhedora por sua arquitetura e menos voraz em sua interação e o planejamento que queremos.
com o ambiente, enfim, de uma cidade mais justa e bela.
Diante desse quadro, é importante observar que, para alguns, nos-
sas dificuldades relacionam-se à “ausência” de planejamento (Ribeiro, REFERÊNCIAS
2010), para outros, ao contrário, são produto de uma nova concepção
de planejamento, dito estratégico, para o qual todos os espaços da ci- NOVAIS, P. (2010). Uma estratégica chamada “planejamento estratégico”. Rio
dade devem ser abordados segundo critérios mercantis, e para o qual os de Janeiro: 7Letras, 2010.
serviços públicos devem ser organizados segundo critérios de eficiência PAULA, A. P. P. (2005). Por uma nova administração pública: limites e possibili-
e eficácia consagrados pelo mercado (Novais, 2010). dades da experiência contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2005.
O planejamento, escreveu alguém, nada mais é do que a gestão RIBEIRO, L. C. Q. O desastre. Do planejamento. Carta Capital (on line), 26 de
do futuro (Souza, 2002). Outros teóricos o definem como bem público janeiro de 2011.
e por isso o comparam a um serviço público. Podemos esclarecer me- RICOEUR, P. (1991 [1985]). Avant la loi morale: l’éthique. In: Symposium;
lhor o significado dessas noções a partir de algumas perguntas. Como Encyclopedia Universalis; pp. 62-66.
vai a gestão do futuro de nossas cidades? Nossas cidades dispõem de SANTOS JUNIOR, Orlando et al. – orgs. (2011). Os planos diretores pós-Es-
serviços voltados para a gestão do seu futuro? Qual a qualidade des- tatuto da Cidade. Balanço crítico e perspectivas. Rio de Janeiro: Letra Capital;
ses serviços? Como esses serviços articulam conhecimentos técnicos e Observatório das Metrópoles, 2011.
autoridade política? O que sabemos, como cidadãos, sobre as idéias e SECCHI, Bernardo (2008). Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva,
propostas sustentadas por tais serviços? 2006.
Estudos recentes demonstram que, no Brasil, confunde-se freqüen- SOUZA, M. L. (2002). Mudar a cidade – uma introdução crítica ao planejamen-
temente plano e planejamento urbano (Villaça, 1999). Daí porque temos to e à gestão urbanos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
centenas de cidades que dispõem de planos e não dispõem de qualquer VILLAÇA, F. (1999). Uma contribuição para a história do planejamento urbano
serviço de planejamento. Quanto às cidades que dispõem de serviços de no Brasil. In: DÉAK, C.; SCHIFFER, S. (org.). O processo de urbanização no Bra-
planejamento, as mesmas pesquisas revelam que, nas últimas décadas, sil. São Paulo: EDUSP/FUPAN, 1999, pp. 171-243.
de um modo geral: seus planos, flexibilizados, tornam-se cada vez mais
obedientes às demandas do mercado; seus serviços de planejamento
tornaram-se cada vez mais frágeis, no plano técnico e político, perden-
do terreno para o chamado gerencialismo – o modelo de gestão que

58 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 59
Notas metodológicas sobre a
interpretação do direito urbanístico
Luciano de Faria Brasil1

Resumo: O artigo pretende examinar o ambiente em que


se produzem os operadores paramétricos de interpretação
e aplicação das normas jurídico-urbanísticas, com a locali-
zação do tema no âmbito político, jurídico, econômico e so-
cial. Essa indicação dos pontos referenciais que sustentam a
interpretação do direito urbanístico atende às necessidades
de uma pré-compreensão da temática, situando os opera-
dores do direito.
Palavras-chave: direito urbanístico, economia, ordem urba-
nística, pluralismo radical.

Uma questão recorrente para os operadores do direito que lidam


com as questões urbanas é a dos padrões ou diretrizes a serem se-
guidos na interpretação do direito urbanístico, pois esses indicativos
constituem pressupostos necessários na aplicação das normas urba-
nísticas. A multiplicidade de concepções teóricas e ideológicas sobre
o fenômeno urbano levou à diversidade correspondente de modos de
leitura e compreensão do ordenamento jurídico incidente; devendo
ser salientado, ademais, que essa abundância de modelos teóricos
prospera em um ambiente intelectual marcado pela derrocada dos
modos tradicionais de leitura e apreensão da ordem jurídica. Nesse
panorama, se não houver clareza quanto aos elementos necessários
na interpretação do direito urbanístico, há sempre o perigo do surgi-
mento de novas ortodoxias, cristalizando mais uma vez a interpreta-
ção das normas jurídico-urbanísticas em torno de um modelo fecha-
do, incompatível com o dinamismo da realidade urbana contemporâ-
nea.

1Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, classificado na Promotoria de Justiça de Habitação


e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre. Graduação em Ciências Jurídicas e Sociais na
UFRGS. Mestrado em Filosofia na PUCRS. Professor do curso de Especialização em Direito Urbano
Ambiental da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul – FMP.

60 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 61
Em tal cenário, para evitar o risco antes mencionado, é importante nos aspectos técnico-estatais e na instância decisiva constituída pelos
situar o direito urbanístico, destacando a sua integração na realidade planejadores urbanos.3
econômica, na totalidade do ordenamento jurídico, no âmbito da teoria No outro extremo, o direito urbanístico brasileiro é figurado por
política democrática e no campo da interpretação das normas jurídi- ângulo distinto, sendo visto como a resultante de uma seqüência de
cas. Esclarecer o pano de fundo da ordem jurídico-urbanística brasileira lutas sociais ligadas à temática da Reforma Urbana. A ênfase é dada
afigura-se indispensável para a delimitação do contexto em que são pro- aos agentes da sociedade civil, especialmente aos movimentos sociais
duzidos os operadores paramétricos das respectivas normas jurídicas. A urbanos, fazendo com que o enfoque predominante na interpretação do
matéria é vasta e demanda estudo rigoroso, pelo que o presente texto direito urbanístico esteja na afirmação de direitos sociais, especialmente
não tem outro propósito que não o de fornecer alguns apontamentos aqueles de natureza difusa ou coletiva (com reflexo na temática do aces-
para futuras pesquisas, limitando-se a algumas notas para posterior de- so à justiça). O móbil da produção e interpretação do direito urbanístico
senvolvimento, sem maiores pretensões. está radicado na sociedade civil, de forma endógena, em seus agentes
coletivos de organização e transformação social.
2 As repercussões judiciais na interpretação do direito urbanístico va-
cilam em torno do espaço teórico constituído entre esses extremos. To-
Como produto da dinâmica social, o direito urbanístico não está davia, é claro que o direito urbanístico não se exaure nas alternativas as-
alheio à relação difícil que historicamente se estabeleceu no Brasil entre sim postas, pois, se é composto pelo acúmulo juridicamente positivado
a sociedade civil e a autoridade estatal:2 embora a diversidade de visões de lutas sociais, também representa parcela do plexo de interesses de
sobre o tema, ensejando distintos matizes de exposição e interpretação, toda a gama restante de agentes sociais, com interesses eventualmen-
os construtos teóricos versando sobre a interpretação do direito urba- te – ou necessariamente – contrapostos, como, por exemplo, o poder
nístico tendem a oscilar dialeticamente entre esses dois pólos. Assumin- público e a ampla parcela não-organizada da cidadania. É necessário,
do o risco de uma leitura reducionista da literatura existente, pode-se pois, encontrar um ponto além – ou acima – das “visões” em conflito,
identificar, de um lado, um campo de reflexão dominado pela presença superando dialeticamente os pólos em disputa. Parece claro que o eixo
e atuação do poder estatal, primariamente nas figuras conceituais do axial, o centro de gravidade do direito urbanístico, não pode residir na
planejamento urbano e da gestão urbana. No pólo oposto, é possível tecnocracia, nem da celebração de lutas sociais. Que fazer?
avistar uma tendência que identifica a produção do moderno direito ur-
banístico brasileiro como uma conquista da sociedade civil organizada, 3
fruto de uma conjuntura de lutas sociais.
Na vertente polarizada pela atuação estatal, o direito urbanístico é, A definição do ambiente cultural necessário à compreensão do di-
reito urbanístico brasileiro deve partir do elemento fundamental da rea-
em primeiro lugar, um assunto do poder público, que se serve de suas
lidade que se propõe a reger normativamente: a constatação de que as
normas para concretizar comandos administrativos em face da coletivi-
normas jurídico-urbanísticas operam na conjuntura específica do regime
dade urbana. A ação do poder público é condicionada pela atividade do
econômico do capitalismo. A Carta de 1988 é explícita em assegurar
planejamento, concebida como um processo técnico capaz de projetar
a livre iniciativa e a propriedade privada como elementos basilares da
o desenvolvimento urbano e solver com antecedência os problemas da
ordem econômica nacional (conforme preceitos contidos no art. 170,
cidade. Por isso mesmo, a gestão urbana é pensada como práxis admi-
nistrativa de forte caráter técnico. Trata-se de uma visão dos assuntos
urbanos que se poderia denominar tecnocrática, em razão da ênfase 3 Tecnocracia, no caso, compreendida como “sistema de organização política e social fundado
na supremacia dos técnicos”, sendo o tecnocrata aquele que “busca apenas soluções técnicas ou
racionais para os problemas, sem levar em conta aspectos humanos ou sociais” (HOUAISS, Antônio.
2 Sobre a relação entre Estado e sociedade civil, consultar BOBBIO, Norberto. Estado, governo, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa / Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, elaborado no
sociedade: por uma teoria geral da política. 3. ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de
e Terra, 1987, especialmente a discussão contida nas páginas 49-52. Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2683).

62 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 63
“caput” e inciso II, da Constituição Federal). É fundamental atentar no uma operação hermenêutica complexa, na qual devem ser sopesados
fato de que o direito urbanístico atua sob o regime do capital, vale dizer: vários elementos, a importância do conceito é evidente, pois é a porta
opera na composição das questões urbanas que, em maior ou menor de entrada do direito urbanístico no universo da tutela processual cole-
grau, são permeadas pela lógica de acumulação capitalista. tiva, fazendo a ligação da questão urbana com o rol dos bens, direitos e
Como na sociedade capitalista há um “(...) maior disciplinamento e interesses transindividuais.5
ordenação dos poderes do Estado, inicialmente no apoio da estrutura Sabe-se que a conceito em questão possui uma dupla face, uma
geral de acumulação existente (...)”4, é claro que o ordenamento legal dimensão descritiva e uma dimensão prescritiva: a ordem urbanística é
obra em inteira consonância com o sistema econômico prevalente. Des- tanto o ordenamento (“o conjunto orgânico de imposições vinculantes
se modo, as normas jurídicas, inclusive as de caráter urbanístico, estão (são as “normas de ordem pública” a que alude o art. 1º, parágrafo
decisivamente comprometidas, em última instância, com a reprodução único [do Estatuto da Cidade]) que condicionam positiva e negativa-
da ordem econômica, sem que essa constatação afaste a relativa auto- mente a ação individual na cidade”), quanto um estado (“um estado de
nomia conceitual da esfera jurídica em face de outros setores da dinâmi- equilíbrio, que o conjunto dos agentes envolvidos é obrigado a buscar
ca social. e preservar”).6 Além disso, o conceito faz a integração do conjunto de
É por isso que a Constituição Federal fala em ordem econômica: trata- conteúdos do direito urbanístico (centrados com freqüência no exercício
-se de um recorte essencial da realidade social, da parcela de organização de uma determinada função administrativa) com a temática da sustenta-
da realidade que diz com os meios de produção e com a lógica de repro- bilidade, conforme diretriz específica da lei (no art. 2º, inciso I, da Lei n.
dução da estrutura material da sociedade. A ordem econômica referida 10.257, de 10 de julho de 2001), para a promoção do equilíbrio entre
no texto constitucional nada mais é do que a fração vital da ordem social as funções sociais da cidade.
em sentido lato, i.e., da regulação social, cujas relações materiais são ob- Deve ser enfatizada essa representação da ordem urbanística como
jeto de descrição e conformação pelo ordenamento jurídico. um estado de equilíbrio (vale dizer: um determinado estado da ordem
econômica e social), pois essa descrição indica com clareza meridiana o
4 papel do direito urbanístico na reprodução da ordem capitalista vigente
(sem impugnar, por óbvio, os aprimoramentos que façam com que o
Não é por acaso que as disposições relativas à ordem econômica sistema social funcione de modo mais eficiente, pois não se trata de um
e ao ordenamento urbanístico encontrem-se agrupadas sob a mesma equilíbrio qualquer, mas de uma ordem social aperfeiçoada que tenha a
denominação – “Da Ordem Econômica e Financeira” – na Carta Cons- sustentabilidade como um de seus eixos). A ordem urbanística é, pois,
titucional vigente. A política urbana figura ao lado dos princípios gerais uma parcela importante da estrutura mesma da realidade, um fragmen-
da atividade econômica, da política agrícola e fundiária e do sistema to da ordem econômica e social que é protegida pela legislação e que
financeiro nacional. Há uma imbricação crucial entre ordem econômica ordena teleologicamente o texto constitucional.
e ordenamento jurídico-urbanístico que alcança a própria terminologia
legal, indicando uma conexão que deve ser considerada na interpreta- 5
ção do direito urbanístico.
O ordenamento jurídico-urbanístico brasileiro está estruturado em Prosseguindo no exame da conformidade da ordem urbanística com
torno de certos conceitos fundamentais, que estabelecem relações ma- a ordem econômica propugnada pela Constituição Federal, cumpre dar
triciais no interior do sistema jurídico. Uma dessas noções basilares é
o conceito de ordem urbanística. Embora a atribuição de sentido e a 5 BRASIL, Luciano de Faria. O conceito de ordem urbanística: contexto, conteúdo e alcance. In:
identificação do conteúdo material da locução em exame demandem Revista do Ministério Público-RS, n.º 69. Porto Alegre: AMP/RS, 2011, no prelo.
6 SUNDFELD, Carlos Ari. O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais (art. 2º). In: DALLARI,
Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio (Coordenadores). Estatuto da Cidade (Comentários à Lei Federal
4 HEILBRONER, Robert L. A natureza e a lógica do capitalismo. Trad. Lólio Lourenço de Oliveira. 10.257/2001). 3ª edição, atualizada de acordo com as Leis ns. 11.673, de 8.5.2008 e 11.977, de
São Paulo: Ática, 1988, p. 146. 7.7.2009. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 54.

64 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 65
alguns passos no campo da denominada análise econômica do direito mica, é necessário avançar, promovendo a forçosa articulação entre o
(law and economics), que consiste na aplicação de métodos oriundos da reconhecimento do contexto econômico que atua o ordenamento jurídi-
teoria da economia para a pesquisa de problemas jurídicos. A investiga- co e a condicionante necessária de interpretação e operação da ordem
ção econômica do direito aborda temas como o estudo das instituições legal constituída pela democracia política, que serve de quadro institu-
(new institutional economics), eficiência na alocação de recursos, exter- cional para toda a discussão.
nalities, custos de transação, etc. Cuida-se de ferramenta interessante O percurso que levou à identificação do direito urbanístico como
para o entendimento das questões ligadas à eficácia prática dos direitos, componente perfeitamente integrado na ordem econômica tem justa-
à relevância das instituições para o funcionamento regular do mercado mente esse caráter preparatório, servindo de base à inquirição sobre
e à garantia da cidadania. determinadas características de cunho jurídico-político da ordem urba-
Segundo essa perspectiva, há uma preocupação em fazer com que nística. Além disso, ao exposição anterior teve o propósito de aprestar a
a ordem jurídica esteja apta a atuar para corrigir as falhas do mercado questão relativa à concepção de democracia capaz de lidar com as ten-
e de governo. Em razão de sua integração estrutural no bojo da ordem sões que atravessam o ambiente urbano (e, em conseqüência, afetam a
econômica, o ordenamento jurídico-urbanístico apresenta um valor ines- interpretação da legislação pertinente).
timável para a análise econômica do direito. Com efeito, ao “definir os Essa indagação sobre os lineamentos do direito urbanístico e sua
limites do direito de propriedade e as condições de exercício dos pode- relação com as teorias da democracia é crucial para afastar em definitivo
res regulatórios do Estado, o direito urbanístico configura o quadro insti- o risco do retorno velado de uma perspectiva tecnocrática. Com efeito,
tucional em que opera a política urbana”. Por isso, a “redução das falhas a remissão do debate jurídico à metodologia econômica e a positiva
de mercado e de governo depende, portanto, dos princípios e institutos caracterização da ordem urbanística como um segmento privilegiado da
do direito urbanístico”.7 ordem econômica convidam à assunção de fundamentos interpretati-
Como se pode verificar, a redução das falhas do mercado imobiliário vos alinhados com o aprimoramento do mercado e com a correção das
e da política urbana praticada pelo governo (com a correção das inefici- suas ineficiências. Corre-se eventualmente o perigo de olvidar a tensão
ências existentes no cenário econômico urbano) apresenta-se como um permanente que existe entre os mecanismos de mercado e o funciona-
objetivo do direito urbanístico congruente com a posição ocupada por mento de um regime político permeado pela premissa majoritária.
esse ramo do ordenamento jurídico no contexto do sistema capitalista.
A finalidade é justamente alcançar o estado de equilíbrio antes mencio- 7
nado, para que resulte no funcionamento ótimo da ordem econômica
(e, em conseqüência, da ordem urbanística). Sublinha-se essa condição Para fugir a esse risco é que, como antes dito, impõe-se certa defini-
para demonstrar, mais uma vez e de modo cabal, a plena integração da ção do perfil jurídico-político do direito urbanístico, reafirmando, nesse
legislação urbanística no âmbito do complexo econômico-político que percurso, sua pretensão à autonomia relativa dentro do discurso científi-
caracteriza a sociedade brasileira. co. Essas são questões relevantes, e que, por certo, não têm a ambição
de encontrar respostas nestas parcas linhas. Entretanto, alguma aproxi-
6 mação ao tema é necessária, até porque a extrema contemporaneidade
manifestada nos contornos peculiares da ordem urbanística brasileira
Comprovada definitivamente a relação de coerência entre o orde- remete à necessidade de uma compreensão atualizada da teoria demo-
namento jurídico-urbanístico vigente, pelo exame do regime econômico crática, para adaptá-la às exigências da cidadania no momento presen-
constitucional, da posição topológica da política urbana na Constituição te.
Federal e pela caracterização do direito urbanístico pela análise econô- A autonomia do direito urbanístico é evidente, só sendo possível
explicar a resistência a essa idéia como circunstância de natureza ideo-
7 PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico: plano diretor e direito de propriedade. 2. ed. rev. e lógica, tendo em vista que a agenda do ordenamento jurídico-urbanís-
atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 71.

66 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 67
tico está estruturada em torno de conflitos sobre a terra urbana e das O confronto crítico com as diversas concepções de democracia (demo-
relações que sobre ela incidem.8 Os dois campos teóricos com os quais cracia liberal, pluralismo clássico, democracia representativa, etc.) leva a
os críticos pretendem vincular a ordem urbanística não (mais) possuem uma atenção ao modelo teórico do pluralismo contemporâneo ou radical,
essa capacidade de absorção temática: o “guarda-chuva” conceitual do no qual o fato crucial da luta política (ou seja, da dimensão do conflito)
direito administrativo não consegue sustentar a especificidade que per- tem um papel central e uma função integradora que é decisiva para uma
meia a realidade urbana, encontrando-se ainda preocupado com antigos sociedade pluralista (como são as sociedades ocidentais pós-li­berais). O
debates; enquanto o direito ambiental está mergulhado em uma pauta reconhecimento da condição agonística como uma dimensão inescapável
própria, alinhada com a defesa do espaço natural, o que estabelece um da estrutura social constitui um ganho teórico irrenunciável, pondo diante
determinado viés em relação à questão social. dos ativistas e dos operadores do sistema jurídico-político a exigência da
É preciso reconhecer no direito urbanístico e em sua pauta de con- reflexão sobre instituições que possibilitem canalizar os antagonismos, mol-
teúdos, de modo determinante, um caráter essencialmente conflituoso e dando-os para espaços decisórios em um contexto democrático e plural.
fragmentário, colado a um panorama de disputas ideológicas em torno do Na formação de instituições que permitam o exercício do pluralismo
mercado imobiliário urbano e, simultaneamente, de afirmação coletiva de em sua totalidade, o ordenamento legal exerce uma função decisiva,
direitos sociais. É um espaço de conflitos conceituais e práticos, uma are- conformando as relações jurídicas em linhas democratizantes. Contudo,
na de luta marcada pela “ponderação jurídico-subjectiva de pressões”, na mais importante do que o simples delineamento de instituições é a re-
feliz expressão do doutrinador lusitano.9 A partir desses sinais distintivos, flexão critica por parte dos agentes que operam suas engrenagens. O
e tendo em conta a natureza dos institutos que compõem o seu eixo es- problema do aprofundamento da democracia é uma questão de filosofia
trturante, cumpre alojar o direito urbanístico na grande árvore do direito política, postulando um novo modo de pensar o poder estatal, o direito
público, perfilhando os princípios gerais correspondentes.10 e a sociedade. O desafio consiste na criação de um ambiente cultural ra-
dicalmente democrático que atravesse a sociedade, penetrando as rela-
8 ções públicas e privadas e moldando as instituições em sua totalidade.12
Quanto ao direito urbanístico, é claro o valor de sua participação
Essas características do direito urbanístico mostram-se compreensíveis na introdução de uma forma radicalmente plural e democrática de com-
perante a moldura da democracia contemporânea. Em uma quadra his- preender a ordem jurídica. O desafio específico no campo da ordem
tórica em que a democracia parlamentar (constituída segundo a herança urbanística consiste na afirmação de institutos jurídicos que reconhe-
do liberalismo europeu do pós-guerra) apresenta sinais de esgotamento, é çam o conflito essencial sobre os bens imobiliários urbanos, seu uso,
preciso buscar respostas no âmbito da teoria da democracia, pesquisando sua gestão e seu entorno, e que possibilitem o aprendizado de novas e
e elaborando modelos teóricos que possam dar conta da emergência de múltiplas formas de prática democrática no cotidiano. Com isso, manti-
novos atores e novos foros de debate e deliberação.11 Nesse passo, é ne- das as fronteiras da legalidade, mostra-se possível ultrapassar os limites
cessário inscrever a dimensão do conflito no próprio cerne de um modelo convencionais da democracia representativa.
teórico que sustente as práticas democráticas que emergem na contempo-
raneidade, articulando-as com o sentido da produção jurídica. 9

8 FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas sobre a trajetória Quando é realçada a função do direito urbanístico no seio da ordem
do Direito Urbanístico no Brasil. In: VALENÇA, Márcio Moraes (editor/organizador). Cidade (i)legal. econômica e social, na qual está integrada a ordem urbanística, e no
Rio de Janeiro: Mauad X, 2008, p. 59-60.
9 ANTUNES, Luís Filipe Colaço. Direito urbanístico: um outro paradigma: a planificação modesto-
12 “What we need is a hegemony of democratic values, and this requires a multiplication of demo-
-situacional. Coimbra: Almedina, 2002, p. 69.
cratic practices, institutionalizing them into ever more diverse social relations, so that a multiplicity
10 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 145-179. of subject positions can be formed through a democratic matrix. It is in this way – and not by trying
11 Sobre o tema, consultar CUNNINGHAM, Frank. Teorias da democracia: uma introdução crítica. to provide it with a rational foundation – that we will be able not only to defend democracy but also
Trad. Delamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2009. to deepen it”. (MOUFFE, Chantal. The return of the political. London, New York: Verso, 2005, p. 18).

68 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 69
momento em que se pode discernir o conflito como estando inscrito no ta importância: sendo um direito um produto cultural, a tradição cultural
cerne dessa mesma ordem, é difícil que não se pense estar diante de e as tendências de desenvolvimento da cultura são os pressupostos da
um oximoro. Afinal, quando se procura definir certas características do operação da compreensão. Afinal, estamos desde sempre – ao contrá-
ordenamento jurídico-urbanístico, o discurso crítico tem por objeto a rio dos fatos naturais – imersos nos fenômenos sociais em observação,
ordem ou o conflito? Na aproximação a uma resposta possível, não há movendo-nos no domínio da circularidade hermenêutica.
aqui quadratura do círculo ou tentativa de conciliar o inconciliável, mas Examinando o contexto cultural que circunda o direito urbanístico,
apenas um esboço de esclarecimento mais sofisticado da questão do vários dados foram constatados: (a) a necessidade de ruptura do dua-
equilíbrio na ordem capitalista. lismo na interpretação do direito urbanístico; (b) a constatação de que
Com efeito, o paradigma do equilíbrio é apenas um dos modelos as normas jurídico-urbanísticas operam na conjuntura específica do re-
teóricos de compreensão do capitalismo (remontando à teoria do equi- gime econômico capitalista; (c) a representação da ordem urbanística
líbrio econômico geral, concepção inicialmente formulada por Léon Wal- como um estado de equilíbrio, indicando o papel do direito urbanístico
ras). Entretanto, mesmo esse equilíbrio pode ser imaginado de forma na reprodução da ordem capitalista vigente (ainda que o paradigma do
complexa, contendo um elemento forte de instabilidade. Como exem- equilíbrio seja apenas um dos modelos de compreensão do funciona-
plo, tome-se a noção de self-organized criticality, desenvolvida no âm- mento do capitalismo); (d) que o objetivo do direito urbanístico, segundo
bito da física teórica e transportada para a economia, em que pontos a perspectiva da análise econômica do direito, aponta para a redução
críticos podem funcionar como um centro de atração, organizando-se o das falhas do mercado imobiliário e da política urbana; (e) que há uma
sistema em torno de situações relativamente instáveis. O conceito tem tensão estrutural entre os mecanismos de mercado e o funcionamento
sido aplicado com êxito no estudo das flutuações econômicas. de um regime político permeado pela premissa majoritária; (f) que o
Essa pequena menção à natureza complexa do equilíbrio na ordem direito urbanístico tem um caráter essencialmente conflituoso e frag-
capitalista tem apenas a intenção de apontar o caráter fundamentalmen- mentário, vinculado a um cenário de disputas em torno do mercado
te dinâmico do processo social urbano e da ordem jurídica associada à imobiliário urbano e, simultaneamente, da afirmação coletiva de direitos
realidade urbana. Não se pode refletir acerca da questão urbana com sociais; (g) que o desafio específico no campo da ordem urbanística, na
conceitos estáticos, sob pena de ensejar o congelamento indevido das perspectiva do pluralismo radical, consiste na afirmação de institutos
categorias de análise e a formação de modelos teóricos fechados. Encarar jurídicos que reconheçam o conflito essencial que atravessa a realidade
a ordem urbanística como parte de um processo social dinâmico tem seus urbana, possibilitando o aprendizado de novas e múltiplas formas de
reflexos na interpretação das situações jurídicas e dos direitos sociais. prática democrática.
Esses elementos fundamentais formam o pano de fundo da ativi-
10. dade interpretativa no campo do direito urbanístico. Afastar-se desses
pressupostos de pré-compreensão das normas pode levar a uma con-
Cumpre esboçar algumas conclusões, a título de arremate. cepção ilhada do contexto real em que se desenvolve a hermenêutica
Os pontos sucessivamente abordados nas notas enunciadas têm o do direito posto. Há o risco, por um lado, de cair no fetichismo da nor-
desígnio de compor o ambiente em que se produzem os operadores ma, desconsiderando-se o dinamismo do processo social subjacente à
paramétricos de interpretação e aplicação das normas jurídico-urbanís- produção e interpretação do direito. De outro lado, há a tentação de
ticas. Em razão disso é que houve a necessidade de localizar o tema no afirmar um modo de compreensão que escape aos limites definidos do
âmbito político, jurídico, econômico e social, com ampla indicação dos sistema jurídico, rompendo com as premissas advindas do domínio da
pontos referenciais trazidos no contexto de uma “pré-compreensão es- realidade e perdendo a conexão com o universo hermenêutico de que
pecífica jurídica e de teoria jurídica”.13 Pré-compreensão da mais absolu- participam os demais operadores.
Por trás desses riscos, espreita uma velha armadilha muitas vezes
13 MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes vista na dinâmica social: escapar ao jugo sufocante de velhas tradições
do direito. Trad. Peter Naumann e outros. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 223.

70 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 71
para, logo depois, em uma atmosfera de confusão conceitual, cair sob o
domínio de novas ortodoxias. O intérprete que compreender esse pano-
Tutela do direito à paisagem urbana:
rama – e estiver disposto a enfrentar os desafios da contemporaneida- proteção e disputa
de – tem o dever de se acautelar contra esse perigo, empenhando seu
labor na produção hermenêutica de um direito urbanístico atualizado. Marise Costa de Souza Duarte1
Essa é a tarefa inescapável de nossos dias.
Resumo: O artigo vem discutir a tutela da paisagem urba-
ReferênciaS na visualizando sua inserção em um contexto de disputas
pelo uso e ocupação do solo urbano. Para tanto, são pontu-
ados elementos essenciais para a compreensão do direito à
ANTUNES, Luís Filipe Colaço. Direito urbanístico: um outro paradigma: a plani- paisagem urbana e a proteção do patrimônio paisagístico,
ficação modesto-situacional. Coimbra: Almedina, 2002. enfocando o dever geral de efetivação/concretização desse
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da po- direito (materialmente constitucional) por parte do Estado,
lítica. 3. ed. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. visualizando o caminho - em sentido progressivo – que per-
BRASIL, Luciano de Faria. O conceito de ordem urbanística: contexto, conteúdo correu a tutela jurídica de proteção à paisagem no sistema
jurídico brasileiro e enfocando a realidade encontrada na
e alcance. In: Revista do Ministério Público-RS, n.º 69. Porto Alegre: AMP/RS,
cidade de Natal/RN, onde, de modo evidente, teoria e a prá-
2011, no prelo. tica se unem e se revelam.
CUNNINGHAM, Frank. Teorias da democracia: uma introdução crítica. Trad. De-
lamar José Volpato Dutra. Porto Alegre: Artmed, 2009. Palavras-chave: paisagem urbana – patrimônio paisagísti-
FERNANDES, Edésio. Do Código Civil ao Estatuto da Cidade: algumas notas co – cidade – proteção jurídica - direito fundamental – de-
sobre a trajetória do Direito Urbanístico no Brasil. In: VALENÇA, Márcio Moraes ver estatal - disputa.
(editor/organizador). Cidade (i)legal. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008, p. 43-62.
HEILBRONER, Robert L. A natureza e a lógica do capitalismo. Trad. Lólio Lou-
renço de Oliveira. São Paulo: Ática, 1988. 1. Introdução
MOUFFE, Chantal. The return of the political. London, New York: Verso, 2005.
MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódi- O direito à paisagem urbana se constitui na atualidade um dos
ca estruturantes do direito. Trad. Peter Naumann e outros. São Paulo: Revista principais temas a requerer a atenção do Direito Urbanístico, do Direi-
dos Tribunais, 2007. to Ambiental e do Urbanismo, como também do Poder Judiciário que,
PINTO, Victor Carvalho. Direito urbanístico: plano diretor e direito de proprieda- especialmente nos últimos tempos, vem sendo provocado a se debru-
de. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. çar sobre a matéria. Assim ocorre vez que, ao lado do reconhecimento
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, (ainda que de forma não expressa) desse direito no âmbito das normas
1992. constitucionais brasileiras e de uma progressiva ampliação da tutela ju-
--------. O Estatuto da Cidade e suas Diretrizes Gerais (art. 2º). In: DALLARI, Adil- rídica do patrimônio paisagístico (em sua acepção cultural e ambiental),
son Abreu; FERRAZ, Sérgio (Coordenadores). Estatuto da Cidade (Comentários se constata que a efetivação dessa tutela no meio urbano se encontra
à Lei Federal 10.257/2001). 3ª edição, atualizada de acordo com as Leis ns. posta em um contexto de disputa permanente pelo uso e ocupação do
11.673, de 8.5.2008 e 11.977, de 7.7.2009. São Paulo: Malheiros, 2010, p. solo, onde muitas vezes prevalece os interesses do capital financeiro (es-
44-60. pecialmente imobiliário) que tem na paisagem um elemento agregador
de valor aos imóveis, constituindo-se como forte contributo à reprodu-
ção do capital na cidade.
1 Procuradora do Município de Natal/RN. Doutora em Arquitetura e Urbanismo (UFRN). Mestre
em Direito Público (UFRN). Professora de Direito Ambiental e Urbanístico

72 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 73
A partir dessa compreensão essencial, o presente artigo pretende uma coisa, porém, se revela incontestável: a relação entre a concepção
colocar em pauta relevantes questões a serem consideradas quando se de paisagem e nossa percepção de lugar. Assim ocorre vez que, embora
estuda o direito à paisagem urbana e a proteção do patrimônio paisa- possamos falar em diferentes tipos de paisagens (como as naturais, as
gístico no Brasil; buscando, a partir de situações concretas ocorridas no rurais e as urbanas), a paisagem se constitui elemento fundamental na
âmbito da construção da legislação urbana na cidade de Natal/RN, sus- percepção do espaço que conhecemos ou pelo qual transitoriamente
citar a necessidade de se focalizar meios de enfrentamento, por parte da passamos; tendo uma forte relação com nossa emoção. Assim, as pai-
sociedade, no sentido de provocar o dever de efetivação/concretização sagens revelam imagens de locais pelos quais as pessoas se deslocam,
desse direito, por parte do Estado, em prol dos interesses públicos que se constituindo elementos marcantes de orientação no meio urbano e
se colocam na base dessa proteção, num contexto em que as cidades sendo parte de seu cotidiano e de sua vida em sociedade.
se colocam, cada vez mais, como objeto de satisfação de interesses do Segundo Milton Santos (1999, p.86), “a paisagem é história conge-
mercado imobiliário, não raras vezes com o aval desse mesmo Estado. lada, mas participa da história viva. São as suas formas que realizam, no
espaço, as funções sociais. Assim, pode-se falar, com toda legitimidade,
de um funcionamento da paisagem.”
2. A paisagem, a paisagem urbana, Para Ana Fani Carlos (1994. p.44), “a paisagem não é só produto
o patrimônio paisagístico e o direito da história; ela reproduz a história, a concepção de que o homem tem
à paisagem: compreensões necessárias e teve do morar, do habitar do trabalhar, do trabalhar, do comer e do
beber, enfim, do viver”.
Quando falamos de paisagem logo nos vem a mente a imagem de um Adentrando na concepção de paisagem urbana, nos valemos das
cartão postal2, “associada a paragens bucólicas, recantos aprazíveis ou lições de José Afonso da Silva (2010, p.302), segundo o qual é “a roupa-
sítios notáveis com visuais grandiosos” (NOBRE, 2001, p.6); o que vem gem com que as cidades se apresentam a seus habitantes e visitantes”;
revelar uma primeira dimensão da compreensão da paisagem: a estética. constituindo-se “tão mais atraente quanto mais se constitua uma trans-
Contudo, na atualidade a definição de paisagem ultrapassa essa di- formação cultural da paisagem natural do seu sítio, e tanto mais agres-
mensão essencialmente estética - o esteticismo gratuito3 - para se colo- siva quanto mais tenham violentado a paisagem natural, ‘sem acrescen-
car como direito no âmbito da construção das normas de planejamento tar-lhe valor humano algum’” (SILVA, 2010, p.302). Destaca, ainda, o
urbano, suscitando deveres, por parte do Poder Público, no sentido de autor, que
sua efetivação/concretização.
Mas, como podemos conceber paisagem, paisagem urbana, patri- Uma cidade não é um ambiente de negócios, um simples mercado
mônio paisagístico e direito à paisagem? Entendemos que a compreen- onde até sua paisagem é objeto de interesses econômicos lucrativos;
são desses termos se coloca essencial para buscar, no âmbito do siste- mas é, sobretudo, um ambiente de vida humana, no qual se projetam
valores espirituais perenes, que revelam às gerações porvindouras a
ma jurídico brasileiro, as bases da (já configurada) ampla e forte tutela
sua memória. (SILVA, 2010, p.302).
jurídica do direito à paisagem urbana.
Inicialmente, é de se destacar que embora a conceituação de paisa-
Tendo como essência o caráter de representatividade, a paisagem
gem não se coloque, de forma uníssona, pela literatura especializada4;
urbana possui componentes fundamentais exteriorizados “no traçado
urbano, nas áreas verdes e outras formas de arvoredo, nas fachadas
2 Como bem lembra Nobre (2001, p.6). O autor destaca que “os trechos de litoral, florestas,
arquitetônicas e no mobiliário urbano, com suas várias espécies” (SILVA,
desertos, lagos e montanhas são frações da natureza que por si só correspondem ao ideal de pai-
sagem presente imaginário social” (NOBRE, 2001, p.6). 2010, p.303).
3 No dizer de José Afonso da Silva (2010, p.301, 302). Orientando-nos por essas valiosas lições, podemos dizer que a pai-
4 Um geógrafo, por exemplo, conceituará paisagem de forma diferente do arquiteto, que o fará sagem urbana, em constante transformação, resulta de uma interação
diferentemente do engenheiro, que destoará da concepção do jurista, que, por sua vez, não será a
entre o homem e o ambiente, se relacionando à identidade da pessoa
mesma que a do cidadão comum.

74 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 75
com o lugar, com o espaço em que vive (suscitando um sentido de me- sibilite o acesso e a garantia do direito à paisagem. Assim, deve ser
mória de lugar), e que, por isso, adquire enorme importância na vida das assegurada a existência de espaços na cidade através dos quais tanto se
pessoas que habitam o ambiente urbano. efetive o direito à paisagem, como se garanta a proteção do patrimônio
No caminho trilhado pelas idéias essenciais relativas à paisagem, e à paisagístico já constituído.
paisagem urbana, se coloca o termo patrimônio paisagístico, no qual se Disso decorre a constatação de que no meio urbano o direito à pai-
expressa um valor especial à paisagem: a concepção de que aquele ele- sagem possui uma dimensão essencialmente espacial, suscitando o cor-
mento de identidade e representatividade passa a ser concebido como respondente dever estatal de sua efetivação/concretização através do
um patrimônio: um bem cultural e ambiental que, podemos dizer, envol- qual se impõe, por exemplo, a proteção de espaços urbanos que cons-
ve os conceitos de patrimônio material, imaterial e natural. Em outras tituem o patrimônio paisagístico da cidade ou por meio dos quais se
palavras: aquilo que era apenas percepção e memória, passa a suscitar usufrui do direito à paisagem. Aí incide a proteção do Direito, que vem
a idéia de bem protegido, a partir de um sentimento de pertencimento, fornecer um arsenal de regras e princípios que vincularão o exercício das
de apropriação dos valores advindos da paisagem, que passa a se cons- atividades estatais.
tituir bem cultural e ambiental. Nesse contexto, se coloca a noção de
que, dentre as formas de acesso aos bens ambientais, se inclui o acesso 3. A tutela ao direito à paisagem e ao patrimônio
à contemplação da paisagem (MACHADO, 2009, p. 65)5, que deve ser paisagístico no sistema jurídico brasileiro
assegurado pelo Estado.
A partir dessa compreensão se colocam bases jurídicas consistentes Entendendo que no sistema jurídico brasileiro a proteção à paisa-
para a concepção da existência de mais um direito fundamental6 posto gem encontra amplo e forte amparo, a partir da constatação de que há
no ordenamento jurídico brasileiro: o direito à paisagem, que passa a um bem a ser protegido em face de sua própria natureza - o patrimônio
integrar simultaneamente o âmbito do direito ao meio ambiente eco- paisagístico – com fundamento na idéia de um direito a ser resguardado
logicamente equilibrado e dos direitos culturais, e que suscita o corres- através da ação do Poder Público, que possui o dever de efetivação/con-
pondente dever geral de efetivação/concretização por parte dos entes cretização desse direito; importa verificar como se dá sua tutela jurídica.
estatais. Embora o ideário de proteção ao patrimônio paisagístico tenha se
Por outro lado, posto no meio urbano, o direito à paisagem se con- originado de concepções elitistas e estéticas7, advindas da proteção ao
tra albergado no âmbito do direito à cidade, associando-se – no sistema patrimônio cultural, não há qualquer dúvida de que, na atualidade, o fun-
jurídico brasileiro – aos direitos à terra urbana, à moradia, ao sanea- damento de sua proteção se assenta no campo dos interesses difusos.
mento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços Por outro lado, importante considerar que embora inexista uma
públicos, ao trabalho e ao lazer, especificados no art.2º da Lei Federal definição de patrimônio paisagístico na legislação brasileira, diante de
n.10.257/2001 (Estatuto da Cidade). uma abordagem doutrinária (ainda que dispersa) sobre a matéria, onde
Compondo essa abordagem e no âmbito do dever estatal de efeti- aquele se insere no contexto da proteção ao patrimônio cultural (esse,
vação/concretização dos direitos fundamentais que se exercem no meio fartamente estudado), não resta dúvida de que a conceituação de patri-
urbano, se destaca a cogente adoção, por parte do Estado, de medidas mônio paisagístico não pode estar dissociada da concepção de patrimô-
positivas de garantia e proteção efetiva à fruição desses direitos. Para nio cultural.
tanto, deve o Estado colocar à disposição dos indivíduos tanto presta- No âmbito constitucional, desde a Carta de 1934 encontramos ex-
ções de natureza jurídica (normativa) como fática (material) que pos- pressamente prevista a proteção às belezas naturais e ao patrimônio
histórico, artístico e cultural (art.10, III, e art. 148) como competências
5 Destaca-se que esse entendimento do renomado autor foi expressamente considerado em atribuídas à União e aos Estados.
decisão judicial proferida no ano de 2007, pelo Juiz da 3ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio
Grande do Norte, Francisco Barros Dias, em Ação Civil Pública (processo 2006.84.00.000011-9), 7 Nos termos postos por Pires (1994), a proteção do patrimônio cultural teve seu processo de
interposta visando a preservação da paisagem da orla costeira de Natal-RN. institucionalização advindo de impulsos considerados elitistas de instituições como a Igreja, o Esta-
6 Na perspectiva dos direitos materialmente constitucionais. do, e alguns setores da sociedade, como a intelectualidade, sobretudo a de vocação literária.

76 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 77
A Constituição de 1937 dispôs que “os monumentos históricos, artís- 80.978, de 12 jul. 1977, entrou em vigor no Brasil a “Convenção Relativa
ticos ou naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural”, mais conhecida
dotados pela Natureza gozam de proteção e dos cuidados especiais da Na- como “Carta de Paris”. Como bem ressalta Barreto Júnior, esse documento
ção, do Estado e dos Municípios” (art.134), equiparando os atentados co- internacional veio modernizar o conceito de patrimônio cultural posto na
metidos contra eles àqueles cometidos contra o patrimônio nacional (§1°). Carta de Atenas (1931)8, podendo ser considerado como “um dos primei-
No contexto do Estado Novo, foi editado o Decreto-Lei n.25/37 desti- ros textos legais em que se encontra a concepção sistêmica do meio am-
nado à proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, considerado biente, tratando os aspectos naturais urbanos e culturais como parte de
como tal “o conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja um todo”. (BARRETO JÚNIOR, 2009, p. 93). No campo das normas inter-
conservação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fatos nacionais destacamos que, concretizando uma visão integrativa, na qual
memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueo- se inclui a proteção à paisagem, a “Convenção Européia sobre Responsa-
lógico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”, devendo os mesmos se- bilidade Civil por Danos Resultantes de Atividades Prejudiciais ao Meio
Ambiente”, firmada em Lugano no ano de 1993, veio traçar o conceito de
rem inscritos em um dos livros de Tombo previstos naquela norma (art.1º
meio ambiente incluindo: “recursos naturais, seja abióticos, seja bióticos,
e §1°). No mesmo Decreto-Lei, ainda em vigor, foram equiparados aos
como o ar, a água, o solo, a fauna e a flora, e a interação entre tais fatores;
bens integrantes do patrimônio histórico e artístico brasileiro “os monu-
propriedades que formam parte da herança cultural; e os aspectos carac-
mentos naturais, bem como os sítios e paisagens que importe conservar e
terísticos da paisagem” (art.2º, §10)”. (SOARES, 2001, p. 24).
proteger pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza
Seguindo nesse caminho progressivo, podemos dizer que, no Brasil,
ou agenciados pela indústria humana” (§2° do art.1º). através da Lei n.7347/85 (Lei da Ação Civil Pública), a proteção à pai-
Em 1946, a Constituição Brasileira estabeleceu que “as obras, mo- sagem foi alçada à seara dos interesses difusos, vez que ali se encontra
numentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os mo- expressamente consignado que os “bens e direitos de valor artístico,
numentos naturais, as paisagens e locais dotados de particular beleza, estético, histórico, turístico e paisagístico” se colocam como objeto de
ficam sob a proteção do Poder Público” (art.175). proteção especial, a demandar ação de responsabilidade civil por danos
Tratando do dever do Estado no amparo à cultura, a Constituição morais ou patrimoniais aos mesmos causados.
de 1967 dispôs que “ficam sob a proteção especial do Poder Públi- Nessa esteira jurídica da proteção à paisagem como direito de na-
co os documentos, as obras e os locais de valor histórico, artístico, os tureza difusa, a disciplina normativa contida na Constituição Federal de
monumentos e as paisagens naturais notáveis, bem como as jazidas ar- 1988 passou a se constituir fundamento central. Vejamos como se colo-
queológicas” (parágrafo único do artigo 172). A Emenda Constitucional ca a matéria na Carta Magna, a partir de seu artigo 216, in verbis:
de 1969 não mudou a prescrição trazida pela Constituição de 1967, Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza ma-
colocando a matéria em seu artigo 180, parágrafo único. terial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
Importa destacar que, no contexto da legislação ordinária federal, a de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
Lei nº 6.513/77 veio dispor sobre a criação das Áreas Especiais e de Lo- formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
cais de Interesse Turístico, considerando como tais as áreas destinadas I - as formas de expressão;
à proteção dos recursos naturais notáveis, as paisagens naturais, dentre II - os modos de criar, fazer e viver;
outros. Na mesma Lei encontramos a definição das Áreas Especiais de III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
Interesse Turístico, como “os trechos contínuos do território nacional, IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
inclusive suas águas territoriais, a serem preservados e valorizados no destinados às manifestações artístico-culturais;
sentido cultural e natural, e destinados à realização de planos e projetos V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artís-
de desenvolvimento”. (Lei Federal nº 6.513/77). tico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (grifos nossos)
Nesse contexto, é de se ressaltar que, no mesmo ano de 1977, por
8 Que, conforme Barreto Júnior (2009, p. 93), inspirou profundamente os conceitos incorpora-
força do Decreto Legislativo nº 74, de 30 jul. 77 e do Decreto Federal nº dos pelo Decreto 25/37; se colocando mais ao lado da Carta de Veneza (1964) que “os contextua-
lizava na própria história, no sítio urbano e reconhecia o valor das habitações modestas.”

78 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 79
Posto desse modo, evidente é o fato de que a proteção do patrimô- Federal, considerando-se bem de interesse público, ou seja, de todos os
nio paisagístico se coloca no âmbito dos direitos culturais, compreendi- brasileiros17 - ainda se aplicam as disposições de proteção contidas na
dos também como direitos fundamentais (COSTA, 2009, p. 55)9. Lei Federal n° 7661/88 e no Decreto Federal n° 5300/2004, em que
Aliado a essa constatação, tem-se que, em face da abrangência do se encontram importantes normas para resguardo a esse patrimônio si-
conceito de meio ambiente, no qual se inclui o meio ambiente cultural, tuado na Zona Costeira.18 Tal proteção se faz essencial considerando a
sobre o patrimônio paisagístico também incide a tutela jurídica ambien- fragilidade ambiental dessas áreas, a riqueza de seu ecossistema e a
tal, com amparo no regime de proteção aos direitos fundamentais. Essa constante e crescente pressão imobiliária sobre os mesmos; situação
conclusão vem se compatibilizar com a ideia de bens culturais ambien- que se expressa de forma evidente nas cidades litorâneas.
tais que se agregam à categoria dos direitos humanos fundamentais, Não se pode omitir, ainda, o fato de que o Estatuto da Cidade (Lei Fe-
conforme considera Leuzinger (2009, p. 55-56). deral 10.257/2001) estabelece como uma de suas diretrizes a proteção,
Disso decorre que a proteção ao patrimônio paisagístico está intrin- preservação e recuperação do meio natural e construído, do patrimônio
secamente associada à tutela do direito ao meio ambiente sadio e seus cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art.2º, inc. XII).
espaços especiais protegidos, revelando-se o entendimento de que o Por fim, merece destaque o fato de que, também no âmbito do Di-
patrimônio paisagístico se coloca como uma das múltiplas faces de uma reito Civil, houve uma preocupação com o patrimônio paisagístico, no
mesma realidade ambiental10 e, portanto, se submete a tutela jurídico- momento em que o Código Civil de 2002 (Lei 10.406) dispôs expressa-
am­biental contida no ordenamento pátrio. Nesse contexto, ainda apre- mente quanto à obrigatoriedade de que o direito de propriedade seja
sentam-se algumas normas constitucionais que expressam a atribuição exercido de acordo com a legislação especial de preservação de alguns
do Poder Público na proteção do patrimônio paisagístico, quais sejam: bens ambientais, como a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
art.23, III11; art.24, VII12, VIII13; art.30, IX14; art. 21515 e art.225, III16. ecológico e o patrimônio histórico e artístico, evitando a poluição do ar
Quanto ao patrimônio paisagístico situado em Zona Costeira – ­ que e das águas, e suas finalidades econômicas e sociais. (§1°19 do artigo
possui proteção especial dada pelo §4° do artigo 225 da Constituição 1228).
Disso podemos inferir que sobre a proteção ao direito à paisagem
urbana e aos espaços ambientais voltados à proteção do patrimônio
9 Segundo a mesma, com amparo no §2° do artigo 5º da Carta Constitucional, que “reconhece a
existência de direitos fundamentais positivados em outras partes do texto constitucional bem como paisagístico no meio urbano incidem, necessariamente, tanto as normas
em tratados internacionais, além do possível reconhecimento de direitos fundamentais não escritos referentes à função socioambiental da propriedade (tendo como norte
e daqueles decorrentes do regime e dos princípios da Constituição.”
as regras e princípios contidos no Estatuto da Cidade), como aquelas
10 Utilizando o pensamento de Figueiredo (2009, p. 149).
específicas de proteção aos bens de natureza cultural e as normas desti-
11 Que concede competência comum à União, Distrito Federal, Estados e Municípios para “prote-
ger os documentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, os monumentos, as nadas ao resguardo dos bens ambientais na cidade; o que deve nortear
paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”. a elaboração e modificação das normas de planejamento urbano. Tudo
12 Que concede competência legislativa concorrente à União, Estados e Distrito Federal para isso, visualizando-se o dever do Poder Público na efetivação/concretiza-
“proteção do patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico”.
ção do direito à paisagem urbana.
13 Que também no âmbito da mesma competência legislativa prevê a responsabilidade por danos
aos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, juntamente com os Contudo, sabemos que na atualidade a produção do espaço urbano
danos ao meio ambiente e ao consumidor. possui relação direta com a necessidade de atender a lógica de um mo-
14 Que concede a competência aos Municípios para “promover a proteção do patrimônio histó-
rico-cultural local, observada a ação fiscalizadora federal e estadual”, atribuição que se alia à com-
petência municipal para legislar sobre assuntos de interesse local (inc.I) e suplementar a legislação 17 Conforme Freitas (2006, p. 74), ao lembrar que essa é interpretação a ser dada quando se trata
federal e estadual em que couber (inciso II). de bens listados como de patrimônio nacional.
15 Que trata da obrigação do Estado, de garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais, 18 Destaca-se na Lei 7661/88 disposição que determina a prevalência das normas mais restri-
dentre outras coisas. tivas com relação às normas e diretrizes sobre o uso do solo, do subsolo e das águas, bem como
16 Que, como já visto, prevê a obrigação do Poder Público de definir espaços territoriais e seus limitações à utilização de imóveis estabelecidas nos Planos de Gerenciamento Costeiro Nacional,
componentes a serem especialmente protegidos, com vedações como a supressão sem autorização Estadual e Municipal (§2° do art.5º).
legal e a utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção. 19 Essa norma veio compor o princípio da função socioambiental da propriedade.

80 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 81
delo econômico onde, em geral, interesses econômicos privados se so- (também não implementado) e no Plano Diretor de 1984, com a criação
brepõem àqueles voltados à efetivação/concretização de direitos sociais das Zonas Especiais Turísticas (ZETs).
e difusos. Nesse contexto, o mercado imobiliário está sempre em busca As primeiras preocupações governamentais com o incentivo ao tu-
de melhores localizações, um dos elementos fundamentais do aumen- rismo (ao final da década de 1970) trouxeram a criação normativa de
to de sua lucratividade. Desse modo, as áreas que albergam recursos espaços destinados à proteção “do verde e da paisagem”, porém, já
naturais e as que possuem qualidades paisagísticas, aliadas a sua boa dando início a uma preocupação mais geral com o equilíbrio ambiental
localização no território da cidade, ficam cada vez mais cobiçadas. da cidade. O primeiro deles foi o Parque das Dunas (criado em 1977), a
Visualiza-se, então, uma constante instabilidade na configuração do partir do qual isso se expressou de forma bastante clara.
ambiente urbano, fazendo com que ele se coloque vulnerável aos in-
teresses mais importantes (em determinadas ocasiões) para os grupos
que controlam o poder político e econômico, seja no âmbito do Estado-
Adminis­trador ou do Estado-Legislador. Fragiliza-se, assim, a proteção
do direito à paisagem urbana e o resguardo ao patrimônio paisagístico
constituído no meio urbano.

4. A proteção do direito à paisagem e ao patrimônio


paisagístico na cidade em disputa: o caso de Natal20.

A situação da cidade de Natal/RN parece ser bastante emblemática


da intrínseca relação entre direito à paisagem urbana, patrimônio paisa- Figura 1 – Vista aérea do Parque das Dunas. Fonte: QUAPÁ/SEL – FAUUSP/UFRN (2010).
gístico, dever estatal e disputa pelo uso e ocupação do solo. Por ser uma
cidade litorânea, dotada de relevantes atributos ambientais (onde se insere E o segundo, voltado à proteção da beleza da paisagem da enseada
o paisagístico), especialmente em sua área costeira, Natal convive com uma de Ponta Negra e Morro do Careca, foi o espaço, no Bairro de Ponta
situação na qual, ao lado da enorme cobiça do mercado imobiliário (espe- Negra, onde se instituiu a restrição non aedificandi (em 1979).
cialmente o turístico) na apropriação dessas áreas costeiras, se verifica um
arsenal normativo consistente e progressivo de proteção do direito à paisa-
gem e ao patrimônio paisagístico que se constituem essas áreas.
Isso se constata desde o ano de 1968, onde o Plano Urbanístico e
de Desenvolvimento de Natal (denominado Plano Serete)21 já visualizava
a importância de preservação dos aspectos paisagísticos da orla marí-
tima e a necessidade de implantação de um sistema de parques urba-
nos (o que viria garantir melhores índices de área verde por habitante).
Essa preocupação do Plano Serete com as áreas costeiras, no sentido
de preservação da paisagem, vai se confirmar no Plano Diretor de 1974
20 Grande parte dos apontamentos aqui registrados pode ser encontrada em Duarte (2010). Figura 2 – Vista parcial da área non aedificandi de Ponta Negra, enseada da mesma
21 Elaborado pelo escritório de arquitetura privado, em um momento histórico em que a constru- praia, Morro do Careca e dunas fixas contínuas. Fonte: Base de dados GEHAU/DARQ
ção de normas urbanas se filiava a um modelo de planejamento e gestão urbana excludente, cen- (2010).
tralizado e autoritário (ATAÍDE, 1997, p. 115), o que se compatibilizava com o momento político em
que foi gerado, no qual não se visualizava qualquer noção de direitos a serem protegidos no espaço
urbano. Na verdade, o Plano Serete não passou de um documento intencional (ATAÍDE, 1997, p. A partir da sua criação, esses espaços passaram a ser vistos pela so-
110), não sendo objeto de implementação, embora tenha se servido como base para a elaboração ciedade como pertencentes ao patrimônio da cidade e, portanto, dignos
dos Planos Diretores de 1974 e 1984.

82 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 83
de defesa e proteção legal. Essa situação permanece até os dias atuais destacar duas bastante emblemáticas. Uma delas foi proferida na Ação
onde se verificam várias manifestações de defesa desses espaços, seja Civil Pública (Processo nº 001.05.011076-5) interposta pelo Ministério
no âmbito da sociedade ou dos poderes estatais (Executivo, Legislativo Público Estadual (tendo o Município de Natal ingressado no pólo ativo),
e Judiciário). Contudo, no âmbito das ações ou omissões dos poderes contra a as ocupações irregulares ocorridas na área non aedificandi de
Executivo e Legislativo, se constatam expressões de um processo de Ponta Negra (integrante da ZET-1). Ali entendeu o julgador que, por su-
fragilização de suas normas de proteção22; ao mesmo tempo em que primir a paisagem natural ali existente, a instalação daqueles empreendi-
também se verificam posições divergentes do Judiciário, ora em favor mentos afrontou o direito à paisagem (inclusive das gerações futuras), o
da proteção dos direitos ao ambiente e à paisagem que se expressam que poderia ser constatado por qualquer pessoa que transitasse no local.
nesses espaços, ora em seu prejuízo (DUARTE, 2010, p.217). Em sua sentença, disse o julgador: “No local onde antes se apreciavam as
A instituição das ZETs veio gravar toda a orla marítima de Natal de belezas naturais do litoral norte-rio-grandense, hoje se enxergam apenas
uma proteção especial, conciliando a intenção governamental de incen- estruturas de concreto”; proclamando, ainda, in verbis:
tivar o turismo com a manutenção da paisagem costeira. As primeiras
regulamentações das ZETs (ZET-1 e ZET-3), já ocorridas em um contexto A paisagem não pode ser entendida apenas como parte de interes-
de transição democrática (1987), trouxeram uma primeira aproximação ses econômicos lucrativos. Antes de tudo, deve ser um ambiente de
da noção de direitos urbanos ao desejo de proteção da paisagem, vindo vida humana e instrumento de resgate da memória para as próximas
gerações”
a configurar uma nova fase de proteção dessas áreas. Contudo, desde
(.....)
o momento da elaboração do Plano Diretor de 1984, já se registram
evidências do processo de fragilização das normas de proteção dessas
É imprescindível que sejam equacionados os interesses divergentes
áreas a partir das disputas que se verificam pela sua apropriação. Inicial-
e contraditórios dos agentes produtores do espaço urbano, sejam eles
mente isso se verifica no âmbito do dever do Executivo de implementa-
públicos ou privados, para que sejam mantidas as Áreas de Controle de
ção da legislação e, ao longo do tempo, através das ações ou omissões
Gabarito, como previstas no Plano Diretor de Natal, e ainda que todas
dos poderes Executivo e Legislativo.
as áreas contidas na Zona Especial de Interesse Turístico sejam regu-
Em face de sua localização privilegiada e seus relevantes atributos
lamentadas, para que os habitantes de Natal não continuem a correr
paisagísticos, e considerando o crescimento do turismo na cidade, ao
o risco de perder referências visuais incorporadas ao seu cotidiano, a
longo do tempo vão se revelando maiores riscos à manutenção da pro-
exemplo do que aconteceu na praia de Areia Preta, onde a visão do
teção legal dessas áreas costeiras, dando-se o acirramento da disputa
Farol de Mãe Luiza somente sobrevive na memória dos natalenses.24
pelo acesso ao solo no qual se encontram encravadas e o forte interesse
Outra importante decisão foi proferida, embora em caráter liminar,
imobiliário por elas.
na Ação Civil Pública (Processo n. 2006.84.000000119), em março
No âmbito do Judiciário, verificam-se importantes manifestações de
de 2007, onde o Juiz Federal Francisco Barros Dias determinou a de-
reconhecimento do direito à paisagem e do patrimônio cênico-paisagísti-
molição dos quatro últimos andares de um empreendimento hoteleiro
co protegidos através das restrições de controle de gabarito legalmente
em construção. Ainda que essa decisão liminar tenha sido reformada
previstas para o uso e ocupação nessas áreas (sem desconsiderar a exis-
posteriormente (embora não tenha havido o julgamento definitivo da
tência de medidas judiciais em sentido contrário). Dentre elas23 podemos
ação até o momento de encerramento da pesquisa)25, é de se ressaltar
22 Em nossa tese de doutoramento intitulada “ESPAÇOS ESPECIAIS EM NATAL (MORADIA E MEIO a enorme importância que tal decisão possui no entendimento quanto à
AMBIENTE): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de proteção aos direitos
fundamentais na cidade contemporânea”, defendida no ano de 2010, pesquisamos esse processo 24 Disponível em: <www.tjrn.jus.br:8080/sitetj/pages/pesquisa/frame_pesquisa_seij.jsp>. Acesso
de fragilização da proteção legal dos espaços especiais destinados á proteção da paisagem em em: 10 jan. 2010. No contexto daquela decisão (ainda não transitada em julgado até o encerramen-
Natal (juntamente com as Zonas de Proteção Ambiental – ZPAs e as Áreas Especiais de Interesse to da pesquisa realizada no ano de 2010), destaca-se relevante entendimento por parte daquele
Social - AEIS) Julgador.
23 Outras decisões proferidas pelo Poder Judiciário em Natal podem ser encontradas em Duarte 25 Ao final do ano de 2009, essa ação judicial permanecia em tramitação no âmbito daquele Juízo
(2010). Federal de primeiro grau.

84 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 85
necessidade de preservar o patrimônio cênico-paisagístico daquela orla ção/concretização do direito á paisagem e ao meio ambiente sadio (em
costeira (bem difuso), que encontra forte tutela jurídica, como já vimos. que se revelam importantes atributos naturais a serem protegidos, com
Colocando em pauta a ideia de que os hotéis na Via Costeira, “verdadei- grande reconhecimento por parte da sociedade). Também através do Pla-
ros paredões de concreto”, vêm tomando totalmente a visão da praia, no Diretor de 1994, surge um novo instrumento de proteção a uma área
do mar e do horizonte, na direção do mar, e trazendo agressão aos bens urbana de enorme relevância: a área de controle de gabarito do entorno
e valores estéticos e paisagísticos26, assim considerou aquele Juiz Fede- do Parque das Dunas, que também veio representar a efetivação/concre-
ral: tização do direito à paisagem urbana e a proteção de um bem da mesma
natureza social, coletiva e difusa: o patrimônio paisagístico.
É, portanto, interesse de toda a população, que a paisagem da Via
Costeira não seja transformada, não sofra mutação de natural para ar-
tificial, ou seja, onde se vê a praia e mar, substitua-se por construções
de hotéis que limitam a visão antiga apenas a seus hóspedes, afron-
tando o interesse difuso de uma cidade ordenada e ornamentada de
forma plasticamente agradável e bela.27

Destacando, a importância da atividade turística para a economia


local, o julgador entendeu pela necessidade que essa atividade seja
“contemporizada com o bem-estar da população local e com bens que
são caros à humanidade”. Assim, nas palavras de Barros Dias,
Não é correto pensar, por mais lucrativa que seja a atividade turís- Figura 3 – Vista parcial da área de controle de gabarito do entorno do Parque das Dunas,
tica, que tudo deve ser feito, mesmo em detrimento da população local a partir do Campus Universitário.
e de bens de valor inestimável, para que se desenvolva esta atividade
destinada ao turismo. Diante do que até aqui destacado, podemos dizer que “as visuais do
Também não se pode pensar que a Via Costeira, por ser área turís- Oceano Atlântico, do Parque das Dunas e do Morro do Careca em Natal
tica, deve ficar restrita apenas a esta atividade. Não há que pensar que se constituem marcos e limites que constituem um conjunto cênico paisa-
as belezas da Via Costeira, aqui incluída a beleza estética e paisagísti- gístico definidor de uma identidade local” (NOBRE; SILVA, 2009, p.323)30,
ca, é área restrita, propriedade privada, dos que exploram o turismo e que, portanto, se constituem patrimônio paisagístico a ser assegurado.
e dos turistas que vêm nos visitar, Esta é uma visão de natureza me- Contudo, ao lado desses avanços, verificam-se, nos anos que se
ramente patrimonial, calcada numa ética tradicionalmente de cunho seguiram, sérias tentativas de desconstrução das normas de prote-
individual.28 ção à paisagem e ao patrimônio paisagístico que se constitui a orla
Importante considerar que o Plano Diretor de 199429 veio conceder costeira da cidade. As revisões ao Plano Diretor de 1994, ocorridas
reforçada proteção a esses espaços que, em nosso entendimento, passa- em 1999 e 2000 foram conduzidas essencialmente por interesses
ram a se constituir em espaços especiais ambientais voltados à efetiva- do mercado imobiliário com aval do Executivo e da maioria do Legis-
lativo. Além disso se constatou, por parte do Executivo, a ausência
26 Conforme se observa às fls 12 da decisão liminar contida na Ação Civil Pública, Processo de regulamentação de um importante espaço ambiental destinado
n.2006.84.00.000011-9. à proteção do direito à paisagem e ao patrimônio paisagístico da
27 Idem. cidade: a Zona Especial de Interesse Turístico 4 (Redinha). Isso tudo
28 Fls.13 daquela mesma decisão liminar.
29 Resultado de um processo de construção onde pela primeira vez houve um amplo debate
democrático sobre a cidade e as normas de planejamento urbano, numa perspectiva de buscar a 30 Sob essa visão tais elementos paisagísticos possuem a função de um “Ponto Marcante” na
sustentabilidade com justiça social. paisagem da cidade (NOBRE, 2001).

86 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 87
veio revelar incontestáveis evidências do processo de fragilização do
direito à paisagem.
O Plano Diretor de 2007, que veio revisar o Plano de 1994, veio
reafirmar o regramento de proteção às Áreas de Controle de Gabarito
– ACG, Áreas Non AEdificandi – ANAE e Zonas de Proteção Ambien-
tal - ZPA31, com a inclusão de novas normas voltadas à ampliação
daquela proteção, registrando-se a ampliação da limitação física de
algumas áreas ou de restrições voltadas ao resguardo de seus atribu-
tos ambientais (como na área de controle de gabarito da Via Costeira
– ZET-2). Contudo, ao lado da ampliação da proteção legal a essas
áreas, constataram-se diversas evidências de fragilização, especial-
mente no âmbito Legislativo, expressadas em ações ou tentativas
de modificação da legislação protetiva, especialmente nos espaços
Figura 4 – Vista parcial da Zona Especial Norte englobando parte da ZPA-8
considerados “empecilhos” à reprodução do capital no meio urbano,
Fonte: Arquivo pessoal da autora (2010).
como na Via Costeira e especialmente na ACG do entorno do Parque
das Dunas. Permeando tudo isso, há um evidente entrelaçamento entre os in-
Nos anos que se seguiram ao Plano Diretor de 2007 até os dias teresses do Executivo e os interesses dos setores econômicos privados
atuais registra-se uma incisiva atuação da sociedade e do Ministério (em especial, a construção civil) a partir do ano de 200934, em paralelo a
Público no sentido de defesa do patrimônio paisagístico do Morro do um acirramento na busca da reprodução acelerada do capital imobiliário
Careca e seu entorno; ao lado da permanente cobiça dessas áreas pelo na cidade, potencializada pela escolha de Natal como uma das cidades
mercado imobiliário, especialmente o turístico32. Nos últimos anos essa onde se realizarão os jogos da Copa do Mundo de 201435. Nesse con-
situação se estendeu a áreas de enorme relevância ambiental paisagís- texto, se considera absolutamente fragilizada a manutenção das normas
tica e ambiental situadas na Zona Norte (privilegiadas pela visão do rio de proteção ao direito à paisagem e ao patrimônio paisagístico da cida-
de, pelo menos em sua acepção de interesse difuso; o que impõe uma
e do mar)33, para onde atualmente se impulsiona o desenvolvimento da
atuação incisiva da sociedade em favor de seus direitos, associada a um
cidade e cujo uso e ocupação vem se colocando em um campo de enor-
forte controle social sob as ações estatais.
me disputa. A isso se soma a ausência de regulamentação, por parte do
Executivo, de outra área de enorme relevância para o resguardo do di-
reito à paisagem e ao patrimônio paisagístico da cidade: a Zona Especial 5. Conclusões articuladas:
Norte.
É com base nessas constatações que podemos chegar a algumas
conclusões quanto à tutela do direito à paisagem urbana e à proteção
31 Ao todo são 10 (dez) ZPAs legalmente instituídas, porém até o momento atual apenas a metade
foi regulamentada.
32 Importante destacar que no ano de 2006 já havia se revelado, intensamente, uma situação 34 Momento a partir do qual se renovam situações de agressão a direitos de natureza social e
de disputa pelo uso e ocupação do solo no entorno do Morro do Careca; o que ocorreu quando difusa (como o direito à paisagem).
do licenciamento de grandes empreendimentos imobiliários naquela área; objeto de forte reação 35 Colocada perante a sociedade a decisão administrativa do Executivo de concorrer a ser uma
por parte da sociedade que provocou a ação do Ministério Público Estadual e posterior atuação das sedes brasileiras daquele evento esportivo, não se registra qualquer debate do tema com a
do Executivo Municipal no sentido de rever as licenças concedidas (concluindo pela anulação das sociedade, especialmente a relação daquele evento esportivo com as normas de planejamento
mesmas); o que até o momento teve a chancela do Judiciário. Ver Duarte (2010). urbano postas no Plano Diretor de 2007; cujos impactos ambientais e sociais na cidade não foram
33 ZPA-8 e Zona Especial Norte. objeto de amplo debate.

88 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 89
do patrimônio paisagístico, visualizando-se o correspondente dever es- 1997. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Ciências Sociais, Universida-
tatal de efetivação/concretização desse direito (materialmente constitu- de Federal do Rio Grande do Norte, 1997.
cional) num contexto de enormes disputas pelo uso e ocupação do solo BARRETO JÚNIOR, Luis Fernando Cabral. O controle judicial das omissões do
urbano, visualizando-se especialmente a situação da cidade de Natal/ Poder Público no dever de proteção ao patrimônio cultural. Revista Magister de
RN. Direito Ambiental e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, ano V, n. 25, p. 91-104,
1. Ainda que se considere que a tutela jurídica à paisagem, à paisa- ago./set. 2009.
gem urbana e ao patrimônio paisagístico tenham caminhado em sen- CARLOS, Ana Fani Alessandri Carlos. A (re)produção do espaço urbano. São
tido progressivo no sistema jurídico brasileiro, há que se visualizar que Paulo. EDUSP, 1994.
a efetivação/concretização desse direito através da atuação estatal,
COSTA, Beatriz Souza. A proteção do patrimônio cultural como um direito fun-
se coloca no âmbito da disputa pelo uso e ocupação do solo urbano.
damental. In: AHMED, Flávio; COUTINHO, Ronaldo. Patrimônio cultural e sua
2. No caso de Natal, constatamos que, embora criados em um mo-
mento onde ainda se verifica uma incipiente disputa pelo solo urbano, tutela jurídica. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009.
ao longo do desenvolvimento da cidade e da construção da legislação DUARTE, Marise Costa de Souza de. Espaços Especiais em Natal (moradia e meio
urbana, os espaços ambientais - através dos quais se possibilita a efe- ambiente): um necessário diálogo entre direitos e espaços na perspectiva de pro-
tivação/concretização do direito à paisagem, integrando o patrimô- teção aos direitos fundamentais na cidade contemporânea, 2010. Tese (Doutora-
nio paisagístico da cidade - vem sendo objeto de progressiva cobiça, do em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
se submetendo a pressões dos setores imobiliário/construtivo, o que Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte. (UFRN), 2010.
ocorre principalmente nas áreas nobres da cidade e nas áreas de ex- FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. Curso de Direito Ambiental. 3. ed. Curi-
pansão do capital imobiliário.
tiba: Arte & Letra, 2009.
3. Constatou-se em Natal que as pressões ocorrem de diferentes mo-
dos e meios, ora capitaneadas pelo Legislativo, ora pelo Executivo, ora FREITAS, Mariana Almeida Passos de. O Direito Ambiental e a construção de
por ajuste entre ambos. Algumas vezes, o meio mais fácil e rápido de marinas no litoral. In: LIBERATO, Ana Paula. Direito Socioambiental em debate.
eliminar os “empecilhos” que tais espaços representam na manutenção Curitiba: Juruá, 2006.
do processo de reprodução do capital é a modificação da legislação no LEUZINGER, Márcia Dieguez. Natureza e Cultura: unidades de conservação de pro-
sentido de suprimir ou alterar as normas de proteção desses espaços, teção integral e populações tradicionais residentes. Curitiba: Letra da Lei, 2009.
para favorecer interesses econômicos e privados em desfavor de inte- MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 17. ed. São Pau-
resses sociais e difusos. Outras vezes, as pressões ocorrem no momen- lo: Malheiros Editores, 2009.
to anterior, no sentido da não aprovação de normas de proteção que
NOBRE, Paulo José Lisboa. Entre o cartão-postal e a cidade real: um estudo
possam inviabilizar o “planejamento privado da cidade”36.
sobre paisagem e produção imobiliária em Natal-RN. 2001. 128f. Dissertação
4. Disso tudo decorre a necessidade de se visualizar todo o sistema
de proteção ao direito à paisagem e ao patrimônio paisagístico da (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo), Universidade Federal do Rio Grande
cidade, integrando-o com as normas constitucionais e federais perti- do Norte, Natal, 2001.
nentes, buscando suscitar a ação da sociedade organizada no sentido NOBRE, Paulo José Lisboa; SILVA, Heitor de Andrade. A paisagem costeira de
de provocar o Poder Público em favor dos interesses públicos que Natal/RN onde se espacializa uma conflituosa relação sócio-ambiental: relato
estão na base dessa proteção. de uma experiência acadêmica. In: TÂNGARI, Vera Regina; ANDRADE, Rubens
de; SCHLEE, Mônica Bahia (Org.). Sistema de Espaços Livres: o cotidiano, apro-
priações e ausências. Rio de Janeiro: Coleção PROARQ, FAU-UFRJ, 2009. v 1.
Referências p. 314-327.
PIRES, Maria Coeli Simões. Da proteção ao patrimônio cultural: o tombamento
ATAÍDE, Ruth Maria da Costa. Habitação de interesse social nos Planos Direto- como principal instituto. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
res de Natal – 1984/1994: o desafio para incluir, a exclusão que permanece. SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. São
36 Emblematicamente isso ocorreu com a ZPA-8 (ecossistema manguezal e estuário do Potengi/ Paulo: HUCITEC, 1999.
Jundiaí), Zona Especial Norte e com a ZET-4 (Redinha).

90 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 91
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2010.
SOARES, Guido Fernando Silva. Direito internacional do meio ambiente: emer-
gência, obrigações e responsabilidades. São Paulo: Atlas, 2001.
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
CAPÍTULO II

A Ordem Jurídico-Urbanística e
os Megaeventos Esportivos

92 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


A recuperação de mais-valias urbanas e
os eventos esportivos
Andrea Teichmann Vizzotto1

Resumo: Este trabalho pretende lançar ao debate a ne-


cessidade de efetivação das diretrizes gerais de política ur-
bana previstas no artigo 2º da Lei Federal n. 10.257, de
5-7-2001, o Estatuto da Cidade, no que diz respeito à recu-
peração de mais-valias urbanas. A proximidade de eventos
esportivos mundiais traz à tona o tema como modo de finan-
ciamento das cidades.
Palavras-chave: política urbana, diretrizes gerais, recupera-
ção de mais-valias, lucro extraordinário do valor econômico
da propriedade, Estatuto da Cidade, eventos esportivos.

1. Introdução

Os direitos sempre foram espelhos das épocas (ALTAVILA, 2001).

O crescimento rápido e desordenado das cidades é um dos proble-


mas enfrentados pelas sociedades contemporâneas que é gerador de de-
sequilíbrio na ocupação de áreas urbanas. Uma das decorrências desse
processo é a formação de espaços urbanos providos de suficiente infra-
estrutura e serviços públicos em contraposição a outros desprovidos de
equipamentos mínimos necessários ao bem-estar e a qualidade de vida
dos cidadãos. A lógica capitalista de ocupação possui papel importante na
construção da cidade e muitas vezes é alimentada por ações administra-
tivas e legislativas ou por investimentos realizados pelo poder público. As
decisões jurídico-administrativas, mesmo que motivadas, podem provocar
a alteração da característica e da qualificação do solo, com desigualdades
quanto ao uso e à qualidade do espaço urbano, quer sob o ponto de vista
urbano-ambiental, quer sob o ponto de vista social e econômico.

1 Procuradora do Município de Porto Alegre. Especialista em Direito Municipal pela Faculdade Ritter
dos Reis e Fundação Escola Superior de Direito Municipal. Especialista em Revitalização de Patrimô-
nio Histórico em Centros Urbanos pelo Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Planejamento Urbano e Regional Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da disciplina de Direito Municipal-
-Urbanístico do curso de Direito da Faculdade Cenecista de Osório, Rio Grande do Sul.

94 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 95
Por isso, merece especial análise o processo de ocupação do es- primeira vez, a Constituição Federal de 1988 reservou à política urbana
paço das cidades nessa linha da lógica capitalista. Esse modo de pla- um capítulo específico. Se antes do novo cenário esse tema restringia-se
nejamento e de gestão do espaço urbano é pautado pela circulação e ao campo teórico e tributário, na atualidade brasileira, se pode afirmar
acumulação individual do capital, apropriação privada do solo urbano, que há lastro jurídico e legal para a implementação da recuperação de
fragmentação do espaço no modelo especulativo, assim como pela divi- mais-valias como modo de financiamento das cidades, tal como previsto
são territorial segundo classes sociais. no artigo 2º, IX a XI da Lei Federal n.10.257, de 5-7-2001. Trata-se de-
O que se destaca nesse processo é a apropriação individual decor- ver imposto ao gestor público, não mera faculdade.
rente da valorização imobiliária da propriedade, que pode decorrer ou Em que pese o tempo transcorrido, passados 10 anos da edição do
por ação do titular da terra ou por ação de terceiros. Na primeira hipó- Estatuto da Cidade e 22 anos da promulgação da Constituição Federal
tese esse lucro, por decorrer do esforço pessoal do proprietário, a ele de 1988, pode-se afirmar que os gestores públicos, doutrinadores, Po-
pertence, evidentemente. No segundo caso há que se ter cautela quanto der Judiciário e proprietários de imóveis ainda não se apropriaram des-
à natureza e origem da valorização do imóvel urbano. Quando esse lucro se novo olhar sobre a cidade. Isso é prejudicial ao alcance uma política
extraordinário decorre de atuação do poder público é preciso verificar pública urbana efetiva e eficaz. E esse fato pode ser afirmado em razão
a forma desse processo. Deve ser questionado se ocorreu de modo uni- da pouca, ou nenhuma, aplicação das diretrizes do artigo 2º, IX e XI da
forme para determinada área da cidade, preservando a igualdade entre Lei Federal nº 10.257 junto aos municípios. Tampouco há decisões judi-
os proprietários, ou de modo isolado, tratando de situação concreta e ciais específicas sobre o tema e a doutrina brasileira existente é escassa
pessoal, alijada do planejamento urbano. Conforme o resultado dessa se comparada à importância do tema.
análise, caminhos distintos deverão ser percorridos. Há então, que se O que se pretende aqui é inserir no debate é o papel dos municípios
separar o joio do trigo. na atração e recepção de eventos de grande porte, especialmente os
A partir deste contexto pode ser constatada a evolução do papel do eventos esportivos que se aproximam, e o dever de recuperação dos
Estado na ordenação do território e na formulação de políticas públicas lucros extraordinários apropriados individualmente pelo titular da pro-
urbanas. O poder público deixou de ser mero ordenador territorial para priedade. Essa análise é importante especialmente quando esse incre-
se transformar no executor da política pública urbana efetiva, eficiente mento extraordinário é gerado por ação administrativa, legislativa ou in-
e eficaz que engloba questões mais abrangentes do que a mera organi- vestimentos públicos específicos. Mais do que isso, necessário verificar
zação do território. Isso significa que, hodiernamente, o Estado contem- de que forma recuperar esses recursos e como devolvê-los à sociedade
porâneo deve executar a política urbana por meio de medidas de plane- na forma de investimentos urbanos, tão necessários ante a nova ótica
jamento e de gestão do espaço no âmbito não apenas geográfico, mas constitucional-urbanística.
econômico, cultural e da justiça social. Ou seja, deve atender às funções Não fosse o amor ao debate, o assunto proposto merece relevância,
sociais da cidade e para cumprir esse papel necessita do respectivo las- haja vista a proximidade do Campeonato Mundial de Futebol em 2014
tro financeiro. e as Olimpíadas de 2016 que serão realizados no Brasil. Não cabe aqui
No marco administrativo-urbanístico hoje em vigor, não mais se ad- discutir os aspectos positivos ou negativos dessa escolha política. Resta
mite que o gestor municipal descumpra o dever de recuperação de mais- discutir apenas de que modo essas competições esportivas, tidas como
va­lias urbanas decorrentes de ação do poder público, mas diversas hi- verdadeiros bálsamos às cidades, devem efetivamente contribuir ao fi-
póteses em que isso poderá ocorrer, tal como será examinado. A possi- nanciamento da política urbana.
bilidade de recuperação de mais-valias urbanas não é tema inédito. Pelo Por isso, o trabalho não pretende esgotar o tema, mas apenas trazer
contrário, há doutrina e experiências suficientes para demonstrar que à lume, a necessidade de revelar a recuperação de mais-valias urbanas,
hoje essa compensação não se constitui mera faculdade, mas dever do diretriz principiológica inserida no Estatuto da Cidade, como instrumen-
administrador público. No Brasil a apropriação individual dos lucros ex- to essencial ao planejamento e à gestão, como modo de financiamento
traordinários decorrentes da urbanização ganhou destaque quando, por das cidades.

96 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 97
2. O Estatuto da cidade e as adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e finan-
diretrizes gerais de política urbana: ceira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano,
de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a
A natureza da cidade demanda um olhar dinâmico e sistêmico. Pro- fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais. Ou seja, na execu-
va disso é que, na atualidade, os planos estratégicos, são os que mais ção da política urbana, embora a lei não tenha determinado um modo
se ajustam ao planejamento e gestão do espaço urbano. O Estatuto da de proceder específico- e nem poderia- impôs a justa distribuição dos
Cidade seguiu essa linha de raciocínio e está estruturado por meio de ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, assim como
diretrizes gerais de política urbana. Antes de impor o modo de fazer aos a recuperação das mais-valias oriundas de investimentos públicos. Para
gestores municipais, estabelece diretrizes de planejamento e de gestão assim proceder, deverá o administrador público adequar os instrumen-
que devem ser cumpridas a fim de que se alcance a estratégia normati- tos tributários e financeiros de modo que se alcance o bem estar social.
zada. Passou-se, então, a se exigir do administrador público municipal, Dada a natureza vinculativa das diretrizes gerais de política urba-
executor dessa política urbano-ambiental2 ações administrativas dinâmi- na, não se compreende a razão para que tais imposições legais este-
cas, sistêmicas, integradas e condizentes com as diretrizes vinculativas jam ainda adormecidas no texto da lei. As diretrizes gerais estruturam
postas pelo artigo 2º. Note-se que diretrizes de planejamento e gestão toda a política urbana que não restará implementada na sua totalidade
não são meros conselhos ou sugestões ao gestor local, mas imposições enquanto não estiverem presentes todos os pilares do sistema urbano
legislativas e, por isso, vinculativas. Enfatizam a aplicação e interpreta- alinhados pelo artigo 2º do Estatuto da Cidade. Como se disse, cabe-
ção sistemática e conjuntural das normas jurídicas, orientando a direção rá ao gestor local verificar quais os modos de inserir as diretrizes na
da política pública urbana. Portanto, pode-se afirmar que as diretrizes execução da política urbana. Sua não observância contaminará toda a
principiológicas do artigo 2º do Estatuto da Cidade atuam como condi- ação administrativa ou legislativa, justamente pelo não atendimento às
cionantes inarredáveis da política pública. A propósito: orientações do sistema jurídico de política urbana4. Essas conseqüên-
cias, especificamente no que pertine ao disposto pelo artigo 2º, IX a IX
Assim, as diretrizes principiológicas do artigo 2º do Estatuto da Ci- da Lei Federal n. 10.257, poderiam, em tese, gerar a responsabilização
dade, dada a sua natureza, atuam como condicionantes inarredáveis
dos administradores, pela não arrecadação de receita pública.5 6
dessa política pública (E qual a repercussão prática no campo do Di-
reito, dessas afirmações de princípio? São três: por um lado, possibili-
tar a sanção jurídica da inércia do Poder Público (omissão em ordenar
o emprego do solo e proteger o patrimônio coletivo)); por outro, for- 3. O princípio da função social da propriedade
necer parâmetros normativos para controle das orientações seguidas
pela política urbana, com isso viabilizando a invalidação das normas e Não há como abordar a política urbana e especialmente os limites e
atos a eles contrários; ainda, permitir o bloqueio dos comportamen- possibilidades de recuperação de mais-valias sem, ao menos, contextu-
tos privados que agridam o equilíbrio urbano-ambiental.3
4 Exemplo disso é a decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
A Lei Federal nº 10.257 previu expressamente a justa distribuição Ação Direta de Inconstitucionalidade - Lei municipal nº 1.635/2001 de Guaíba que altera o art. 55
da lei municipal nº 1.102/92 (plano diretor) - ordenamento urbano local - ausência de participação
dos ônus e benefícios decorrentes do processo de urbanização, assim das entidades comunitárias legalmente constituídas na definição do plano diretor e das diretrizes
como a recuperação de mais-valias oriundas de investimentos públicos, gerais de ocupação do território - falta de ampla divulgação e da devida publicidade - risco de pre-
como duas das diretrizes vinculativas de planejamento e de gestão do juízos irreparáveis ao meio ambiente e à qualidade de vida da população pela não concretização do
prévio estudo de impacto ambiental para viabilizar a alteração prevista na lei impugnada - afronta
território da cidade previstas no artigo 2º, IX e XI. Para não deixar dú- aos artigos 1º, 8º, 19, 177, § 5º e 251 da Constituição Estadual e artigos 29, inciso XII e 37
vidas, estabeleceu no artigo 2º, inciso X da lei a obrigatoriedade de “caput” da Constituição Federal. Ação julgada procedente. (Ação Direta de Inconstitucionalidade
Nº 70008224669, Tribunal Pleno, Tribunal de Justiça do RS, Relator: João Carlos Branco Cardoso,
2 Sobre o conceito de política urbano-ambiental ver PRESTES, Vanesca; VIZZOTTO, Andrea. Direi- Julgado em 18-10-2004). In www.tjrs.jus.br, acesso em 20-5-2008.
to urbanístico para concursos. Porto Alegre: Verbo Jurídico: 2009. 5 Artigo 14 da Lei Complementar n. 101, de 4-5-2000.
3 DALLARI, Adilson; FERRAZ, Sérgio (Orgs.) Estatuto da cidade. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 55. 6 Artigo 10 e 11 da Lei Federal n. 8.429, de 2-6-1992.

98 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 99
alizar o exercício do direito de propriedade dentro da lógica constitucio- nação da cidade expressas no plano diretor. O próprio comando cons-
nal e jurídica brasileira. titucional denota a ligação direta entre a cidade e o exercício do direito
Se as diretrizes gerais de política urbana são pilares do planejamento de propriedade, tanto que delega aos planos diretores a ordenação da
e da gestão do espaço urbano, os princípios jurídicos são valores que cidade e os condicionantes do exercício do direito de propriedade.
também condicionam a atuação do gestor público7. Especificamente com Esse direito de propriedade representado pela garantia de uso, gozo
relação à política urbana, necessário ser referido o princípio da função so- e fruição do bem, observado o caráter social dessa utilização, possui um
cial da propriedade8 que aparece em vários momentos do texto constitu- valor, que é atribuído pelo mercado14. Portanto, o exercício do direito de
cional seja como direito fundamental9, como princípio de política econô- propriedade, pressuposto da execução da política urbana, fundamenta
mica10 e como fundamento da política urbana11. Sua compreensão passa e demanda que o administrador público recupere aos cofres públicos
pelo redimensionamento do olhar que se volta não à propriedade em si, as mais-valias urbanas decorrentes de lucro extraordinário pela ação de
mas ao indivíduo, devendo responder a uma necessidade social12. Sendo terceiro e individualmente apropriado, como fonte de receita ao finan-
assim, a função social da propriedade implica na transformação destinada ciamento das cidades
a incidir diretamente sobre o fundamento dos direitos dos proprietários
e especificamente no conteúdo desse direito. O enfoque da propriedade
passou a ser direcionado à sociedade e não ao proprietário do bem titular 4. A recuperação de mais-valias:
desse direito. É como se houvesse uma segmentação da propriedade no
sentido de ter o proprietário que adotar um novo perfil de comportamen- A ideia de mais-valia não é nova, muito menos peculiar ao Direito
to voltado ao coletivo. É ele, a um só tempo, titular de direito subjetivo e Urbanístico. Trata-se de conceito trazido do mundo da ciência econômi-
depositário de deveres de índole social, para cujo alcance lança mão dos ca como modo de recuperação do lucro extraordinário apropriado indi-
poderes inerentes ao seu domínio13. vidualmente em razão de atuação de outrem. Fácil entender quando se
Na atualidade a amplitude do exercício do direito de propriedade refere Karl Marx15 e o binômio capital-trabalho. Já nos escritos de Marx,
ainda suscita discussões, diga-se de passagem, estéreis, haja vista a cla-
reza do disposto pelo artigo 182, parágrafo 2º da Constituição Federal.
Eventuais controvérsias somente poderiam ser atribuídas à incompreen- 14 FURTADO, F. Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: debili-
dade na implementação, ambiguidades na interpretação. Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
são do princípio que orienta o exercício do direito de propriedade, seja mo, Universidade de São Paulo São Paulo, 1999. Tese.
pelo olhar do titular do bem, seja por parte do administrador público. RABELLO, Sonia de Castro. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais valias fundiárias na
A Constituição de 1988 determinou que a propriedade urbana cum- América Latina (edição especial). Financiamento do desenvolvimento urbano no Brasil: desafios
para a implementação do Estatuto da Cidade, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Muni-
pra sua função social, atendendo as exigências fundamentais de orde- cipal e Lincoln Institute of Land Policy, Rio de Janeiro, dez., 2008.
SANDRONI, Paulo. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais valias fundiárias na
América Latina (edição especial). Financiamento do desenvolvimento urbano no Brasil: de-
7 Exemplo disso está no caput do artigo 37 da Constituição Federal. Independentemente de os
safios para a implementação do Estatuto da Cidade, promovido pelo Instituto Brasileiro de
princípios jurídicos da legalidade, impessoalidade, moralidade administrativa, publicidade e efici-
Direito Municipal e Lincoln Institute of Land Policy, Rio de Janeiro, dezembro 2008.
ência estarem plasmados no texto constitucional, à evidência, dada a sua natureza de valor, são de
SMOLKA, Martin. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais valias fundiárias na Améri-
observância obrigatória por parte do administrador público.
ca Latina (edição especial). Financiamento do desenvolvimento urbano no Brasil: desafios para a
8 Artigo 2º, caput da Lei Federal n. 10.257. implementação do Estatuto da Cidade, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Municipal e
9 Artigo 5º, XIII da Constituição Federal. Lincoln Institute of Land Policy, Rio de Janeiro, dez., 2008.
_______. Anotações de aula. Seminário Internacional Tributação Imobiliária ‘International Seminar
10 Artigo 170, III da Constituição Federal.
on Property Taxation’. O IPTU e outros instrumentos de política local. Salvador/Bahia, nov., 2007,
11 Artigo 182, parágrafo 2º da Constituição Federal. promovido pela Escola de Administração Fazendária e pelo Lincoln Institute of Land Policy.
12 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: _______; AMBORSKI, David. Captura de mais-valias para o desenvolvimento urbano: uma compara-
Livraria do advogado, 1998, p. 50. ção interamericana, maio, 2000. (texto reproduzido)
13 RABAHIE, Marina Mariani de Macedo. Função Social da propriedade. In: DALLARI, Adilson _______; FURTADO, Fernanda. Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América
Abreu; FIGUEIREDO, Lúcia Valle (Coord.). Temas de direito urbanístico - 2. São Paulo: Ed. Revista Latina: bravura ou bravata? 2001. (texto reproduzido).
dos Tribunais, 1991, p. 233. 15 MARX, Karl. O capital. 3ª. Ed., Edipro, 2008.

100 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 101
de George16 e de Ricardo17 se percebe a preocupação e a referência a sultado agregado provém de esforço de outrem, mais precisamente, da
ideia de mais-valia na questão da propriedade e da utilização da terra. administração pública, por meio de ato administrativo, legislativo ou de
Modestamente, nos limites deste trabalho, pode-se afirmar que a ideia investimento em infraestrutura.
de mais-valias parte do pressuposto de devolver a origem, no todo ou
parte, o lucro extraordinário apropriado individualmente, decorrente de Por recuperación de plusvalías se entiende la movilización de parte (o
ação de outrem. al límite de la totalidad) de aquellos incrementos de valor de la tierra
atribuible a los esfuerzos de la comunidad para convertirlos en recau-
No campo da economia política David Ricardo já imaginava um
dación pública por la vía fiscal (a través de impuestos, tasas, contribu-
modelo econômico baseado na renda da terra retida pelo proprietário. ciones y otras formas) o más directamente en mejoramientos in loco
Também Henry George abordou a tributação da propriedade na forma en beneficio de los ocupantes o de la comunidad en general
de imposto único. Ainda quanto à taxação do valor da terra, outra forma (…)
de incidência sobre as mais-valias: A pesar de eso, estos incrementos de valor de la tierra, sin una inter-
vención por parte del sector público para su recuperación, son apro-
For example, some of the additional benefits claimed for a land value piados de forma privada por los propietarios de la tierra beneficiada20.
tax are that it reduces speculation in land, increases the density of
urban development when it replaces a typical property tax, promotes A recuperação de mais-valias urbanas pode ser concretizada por
economic development generally, encourages investment in real prop-
vários instrumentos. Conforme Furtado21 a necessidade de recuperação
erty, and fosters compact development by stimulating infill develop-
das mais valias alcança um enfoque ético na medida em que a obtenção
ment and reducing leapfrog development.18
privada dos benefícios públicos é anti-social porque o incremento do
valor da terra é recebido pelo proprietário de forma gratuita. Há que se
Portanto, a mais-valia trazida ao campo do direito tributário e da
considerar que, nessa apropriação gratuita que os atos administrativos,
política urbana parte da premissa que, ao legislar ou ao realizar inves-
legislativos ou investimentos públicos geradores das mais-valias, são fi-
timentos, o poder público poderá acarretar a valorização dos imóveis
nanciados por recursos da coletividade. Por isso, devem ser ressarcidos.
situados na área objeto da lei ou dos incrementos públicos. Nesse ponto
Se a propriedade urbana é valorada em razão da acessibilidade à
há que se diferenciar a valorização genérica como efeito da lei ou do
infraestrutura e aos serviços urbanos22, evidente que nesse incremen-
investimento realizado, daquela valorização pontual, individual, decor-
to há a atuação do poder público por meio de suas escolhas político-
rente de legislação ou investimento específico.
adminis­ trativas. Essa valorização extraordinária do imóvel demanda
práticas e estratégias diferenciadas no sentido de recuperar aquilo que
4.1. As mais-valias urbanas:
foi decorrência de atuação do poder público23. Se não é possível, nesse
momento, alterar a lógica capitalista de apropriação do espaço urbano24
Como dito acima, a proposta de recuperação de mais-valias urba-
necessário que, a despeito das dificuldades encontradas, se programem
nas é a de capturar os incrementos do valor da terra atribuídos aos
esforços do poder público, é dizer, da sociedade, para convertê-los em 20 SMOLKA, M; FURTADO, F apud ALFONSIN. Betania de Moraes. A política urbana em dispu-
ta: desafios para a Efetividade de novos instrumentos em uma perspectiva analítica de di-
arrecadação para melhorias para a cidade19. É o que se denomina de reito urbanístico comparado: Brasil, Colômbia e Espanha. Rio de Janeiro: Universidade Federal
lucro extraordinário do valor da propriedade, justamente porque o re- do Rio de Janeiro, 2008. Tese.
21 Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: debilidade na imple-
16 HENRY, George. Progresso e pobreza. São Paulo: Nacional, 1935. mentação, ambiguidades na interpretação. São Paulo, 1999. Tese (doutorado). – Faculdade de
17 RICARDO, David. On the Principles of Political Economy and Taxation. 3ª ed. London: John Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999, p. 09 e 71.
Murray, 1821. Disponível em: <www.econlib.org/library/Ricardo/ricP.html>. 22 .(GRAU, Eros. Direito Urbano. 1977, p. 24.
18 INGRAM, George K. Foreword. In: DYE, Richard F.; ENGLAND, Richard W (Eds.). Land Value Taxa- 23 BARTRUSIS, Nelson. Valorização da propriedade fundiária urbana. Caderno Metrópoles,
tion. Massachusetts, Lincoln Institute of Land Policy, 2009, p. 2. São Paulo, v. 16, 2006, p. 122.
19 Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina: bravura ou bravata? 24 HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo:
2001. (texto reproduzido) Annablume, 2006, p. 27.

102 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 103
mecanismos de recuperação da valorização da terra por ato alheio ao dade28. Por isso, o Estado não pode atuar como vassalo nesse processo.
proprietário do imóvel urbano. Sua atuação29, afora as medidas de investimentos e de atratividade de
Embora seja pouca a experiência brasileira no assunto na captura eventos para a cidade, como modo de promoção econômica do territó-
do lucro extraordinário individual do proprietário privado decorrente de rio30, deve ir além, em direção ao retorno direto de receitas decorrentes
atos administrativos, legislativos ou de investimentos de infraestrutrura da mais-valia, cumprindo especificamente o que estabelece o artigo 2º,
financiados pelo poder público, há experiências tanto na América Latina IX a XI do Estatuto da Cidade.
como na Europa que demonstram o sucesso dessas operações.25
Seja mais-valia decorrente de atuação genérica ou particular do po- 4.1.1. As mais-valias urbanas na forma de contribuição
der público, o lucro extraordinário daí advindo pode ser capturado por de melhoria e outorga onerosa do direito de construir:
meio de várias ferramentas postas à disposição do gestor público local.
Às vésperas da realização de eventos esportivos no país, esse tema ne- Transposto o conceito de mais-valia urbanas, tem-se as contribuições
cessita estar pautado em toda e qualquer ação legislativa e administra- de melhoria instituídas para fazer face ao custo de obras públicas de que
tiva, com cumprimento das diretrizes gerais da política urbana. Com a decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada
opção de receber no Brasil esses espetáculos, as hipotéticas benesses e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para
daí decorrentes, também demandarão ações legislativas e administra- cada imóvel beneficiado.31 Tem-se, ainda, o instituto da outorga onerosa do
tivas urbanas em um espectro mais amplo, exigindo um novo olhar do direito de construir como outro modo de ressarcimento do poder público
administrador público. em razão da construção a maior realizada pelo proprietário do imóvel32.
Os investimentos públicos serão, evidentemente, necessários se essa Nessa linha de raciocínio a legislação ou os investimentos públicos
foi a opção político-administrativa adotada. Nesse caso, urge verificar, pon- poderão ter efeitos diversos: Genéricos, com valorização geral aos imó-
tualmente, se o interesse público estará envolvido nessa operação, tradu- veis de determinada área da cidade. Nesses casos, com as ferramentas
zido como o cálculo positivo e efetivo de benefícios à comunidade local. da tecnologia33, seria possível individualizar a valorização de cada imó-
Isso significa dizer que os investimentos utilizados para viabilizar eventos vel, incrementando-se o uso da contribuição de melhoria como instru-
desse porte comportam não apenas a aplicação de recursos públicos, mas mento tributário e financeiro de política urbana.
a possibilidade de recuperação desses recursos investidos pelas formas ur-
28 A propósito, para ilustrar, convém mencionar a Copa do Mundo realizada na África do Sul em
banísticas legalmente oferecidas, especialmente as mais-valias urbanas. 2010. Ali as práticas administrativas limitaram-se, ao que parece, à captação do evento esportivo,
Fala-se muito em administração pública gerencial e empresarial, sem consideração da questão relativa à sustentabilidade ambiental e econômica decorrente da cons-
trução de estádios de futebol. Um ano após o evento, a imprensa internacional noticia que o Cape
pela introdução de instrumentos característicos da atividade privada no
Town Stadium, um dos principais estádios de futebol, foi utilizado apenas duas vezes após o evento.
âmbito público26. Pois a legislação brasileira oferece os instrumentos que Estima-se o gasto de R$ 7,84 bilhões em estádios e infraestruturas para a realização do Campeo-
precisam ser incorporados às práticas administrativas de planejamento nato Mundial de Futebol em 2010. Foram recebidos durante o evento cerda de 400 mil turistas,
que lá deixaram cerca de R$ 1,48 bilhão. Todas as 10 arenas lá construídas estão ociosas, exceto
e gestão urbana27. A ausência dessa previsão de planejamento e gestão o Soccer City de Johannesburgo, palco de shows e rúgbi. Para evitar a maior deterioração dos
mais ampla, seja no ponto de vista de administração do espaço, seja empreendimentos já foram gastos, após 2010, foram gastos R$ 7,2 milhões só no Green Point, de
Capetown, cuja demolição já se discute. Disponível em http://vozafricadosul.blogspot.com/2011/05/
sob o aspecto econômico-financeiro acarretará efeitos indesejáveis à ci-
copa-do-mundo-2010.html. Acesso em 8-9-2011.
29 Se a escolha administrativa foi a de sediar os eventos esportivos...
25 ALFONSIN. Betania de Moraes. A política urbana em disputa: desafios para a Efetividade
de novos instrumentos em uma perspectiva analítica de direito urbanístico comparado: 30 Ver Lei Complementar n. 434 e alterações posteriores. O Plano Diretor de Desenvolvimento
Brasil, Colômbia e Espanha. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008. Tese. Urbano e Ambiental estabelece a promoção econômica e a produção da cidade, como estratégias
de planejamento e gestão da cidade de Porto Alegre.
26 Esse pensamento decorrente da ótica liberal, em parte foi constitucionalizado por meio das
Emendas Constitucionais n. 19 e 20 no ano de 1998. 31 Artigo 81 do Código Tributário Nacional. Além da previsão no Código Tributário Nacional, as
contribuições de melhoria estão previstas como instrumento tributário e financeiro no artigo 4º.,
27 Na Espanha tanto a realização da Copa do Mundo em 1982, as Olimpíadas em 1992 como
inciso IV, letra “a” do Estatuto da Cidade.
o Fórum Barcelona 2004, catapultaram algumas cidades espanholas à condição de cidades espe-
táculos, como retorno bastante positivos dos investimentos no espaço urbano. Isso somente foi 32 Artigo 28 e seguintes do Estatuto da Cidade.
possível em razão de amplo e longo planejamento do espaço urbano. 33 Especialmente o georreferenciamento,

104 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 105
Do mesmo modo, a outorga onerosa do direito de construir, pode há um desejo de transformação da cidade que demanda ações planejadas
ser considerada um dos modos de recuperação de mais-valias urbanas. a longo e médio prazo. A cidade desejada sempre será concretizada em um
Com ônus decorrente da criação de solo além do coeficiente básico pre- futuro não imediato. A função do planejamento e da gestão da cidade é essa,
visto pelo plano diretor, o interessado remunera o poder público em ra- administrar e gerir as transformações do espaço urbano. Por isso, a operação
zão da construção a mais. Pode-se afirmar assim que a outorga onerosa decorrente da retribuição ao poder público pela valorização do imóvel é line-
do direito de construir é uma medida compensatória ao adensamento ar, quase matemática. Ou seja, mediante planejamento e gestão, realizada a
do solo urbano34·. A propósito da natureza jurídica da outorga onerosa obra pública com valorização imobiliária individual, tem-se fato gerador para
do direito de criar solo, denominada de solo criado, convém referir: a cobrança de contribuição de melhoria nos termos e limites da respectiva
da previsão legal. O mesmo processo ocorre com a concessão onerosa do
Recurso Extraordinário. Lei Nº3.338/89 do Município de Florianópolis/
Sc. Solo Criado. Não configuração como tributo. Outorga onerosa do direito de criar solo, segundo as regras do plano diretor.
direito de criar dolo. Distinção entre ônus, dever e obrigação. Função De acordo com os dados da Rede de Pesquisa de Avaliação de Planos
social da propriedade. Artigos 182 e 170, III, da Constituição do Brasil. Diretores Participativos36, no ano de 2009, a justa redistribuição de ônus
1. Solo Criado. e benefícios decorrentes da urbanização, a recuperação de mais-va­lias ou
Solo criado é o solo artificialmente criado pelo homem sobre ou sob a adequação tributária às formas de investimentos realizados pelo poder
o solo natural, resultado da construção praticada em volume superior
público, apenas foram reproduzidas nos planos diretores. Todavia, des-
ao permitido nos limites de um coeficiente único de aproveitamento.
2. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. PRESTAÇÃO DE providas de qualquer eficácia no planejamento e gestão das respectivas
DAR CUJA SATISFAÇÃO AFASTA OBSTÁCULO AO EXERCÍCIO, POR QUEM cidades em razão da ausência da devida regulamentação em nível local.
A PRESTA, DE DETERMINADA FACULDADE. ATO NECESSÁRIO. ÔNUS. O que não se compreende é como, com as dificuldades de investimen-
Não há, na hipótese, obrigação. Não se trata de tributo. Não se tra- tos enfrentadas pelas cidades, os administradores locais deixam de lado a
ta de imposto. Faculdade atribuível ao proprietário de imóvel, mercê aplicação prática de recuperação de mais-valias na forma comentada.
da qual se lhe permite o exercício do direito de construir acima do
Nesse cenário próximo à realização de eventos esportivos em cida-
coeficiente único de aproveitamento adotado em determinada área,
desde que satisfeita prestação de dar que consubstancia ônus. Onde des brasileiras, urge que os municípios modifiquem sua forma de atua-
não há obrigação não pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever ção, saindo da mera concessão de benefícios e prerrogativas aos em-
e obrigação e entre ato devido e ato necessário. preendimentos privados, para analisar a possibilidade de cobrança de
3. ÔNUS DO PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL URBANO. lucros extraordinários auferidos individualmente. Essa seria outra fonte
Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano, cuja execu- de financiamento das cidades, atendendo-se não apenas às diretrizes
ção incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do disposto no
de política urbana, ao princípio da função social da propriedade e ao
artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento voltado à correção de
distorções que o crescimento urbano desordenado acarreta à promo- princípio constitucional da igualdade. É incompreensível estar fora desse
ção do pleno desenvolvimento das funções da cidade e a dar concreção debate a possibilidade de recuperação de mais-valias urbanas decorren-
ao princípio da função social da propriedade [art. 170, III da CB]. tes de lucro extraordinário advindo de ações genéricas, tais como ações
4. Recurso extraordinário conhecido, mas não provido35. administrativas ou legislativas ou investimentos em empreendimentos
particulares. Essa ultima hipótese demanda análise específica.
Nesses casos, tanto legislação como a infraestrutura decorrem do pla-
nejamento e gestão dinâmica do solo urbano. Nessas operações, em tese, 4. 1.2. A recuperação de mais-valias urbanas
e os eventos esportivos:
34 VIZZOTTO, Andrea. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do instru-
mento jurídico-urbanístico. Porto Alegre: UFRGS, Faculdade de Arquitetura, 2008. Dissertação O que se tem visto, até o momento, é o movimento das administra-
(mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de
Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. 2008. ções públicas, nos três níveis de governo, em direção à busca de recur-
35 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 387047, Ministro Relator Eros Rober-
to Grau, julgamento em 02-05-2008. Disponível em: <www.stf.gov.br>. Acessado em: 03-05-2008. 36 Disponível em: <www.observatoriodasmetropoles.net>. Acessado em 02-10-2010.

106 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 107
sos e investimentos como modo de preparação e recepção dos eventos no ordenamento jurídico-urbanístico, afronta o princípio constitucional da
esportivos em 2014 e 2016. Não se ventila nesse processo a discussão igualdade, previsto no artigo 5º da Constituição Federal.37 38
sobre a recuperação de mais-valias urbanas. O que se percebe é a mo- A alteração individualizada de regime urbanístico para determinados
vimentação em direção à captura desses eventos, por meio de finan- imóveis como justificativa à viabilização de empreendimentos esportivos
ciamentos públicos e também por meio de alteração da legislação de é a prova mais evidente de que a capacidade construtiva, um dos elemen-
planejamento urbano, não como modo de organizar o espaço urbano, tos do regime urbanístico, se traduz em valor econômico. A constituciona-
sob a escusa de viabilização de empreendimentos privados necessários lidade dessas leis excepcionais demandaria uma análise específica, mas
à realização de eventos esportivos. Explica-se: no presente trabalho apenas ilustram que há uma apropriação individual
A cidade é planejada de acordo com as suas peculiaridades. Por de lucro extraordinário decorrente de ação do poder público.
meio de diagnóstico prévio, cada pedaço do tecido urbano, segundo Mesmo que se pudesse defender a constitucionalidade e justificar
suas características, é tratado de modo diferenciado pela legislação a excepcionalidade dessas leis como modo justificar da realização dos
básica de política urbana, que é o plano diretor. Essa legislação é apro- eventos esportivos, ainda assim, restaria outra questão, e essa é sim
vada com observância da participação popular, tradução da diretriz de objeto do presente trabalho. Admitida a constitucionalidade dessas leis
política urbana inserida no artigo 2º, II do Estatuto da Cidade. O plano excepcionais, com o lucro auferido pelo particular, o poder público não
diretor traduz a cidade real com o intuito de transformá-la na cidade estaria diante de fato gerador de contribuição de melhoria ou de outorga
desejada. Por isso denomina-se plano e demanda planejamento e ges- onerosa do direito de construir ( já que a outorga foi gratuita, decorrente
tão! da excepcionalidade da lei!). Entretanto, inegável o lucro extraordinário
No planejamento da cidade o regime urbanístico dos imóveis é fixado decorrente de ação de outrem e que deveria ser recuperado.
de acordo com a situação daquele pedaço de tecido urbano, computadas Muito embora hipótese represente apenas um exemplo, o discurso go-
ai a previsão de desenvolvimento a médio e longo prazo e características vernamental da viabilização dos eventos esportivos é preocupante e poderá
sociais, ambientais e culturais da região. Evidente que, por isso, o regime ur- se refletir não apenas no planejamento das cidades brasileiras, mas, espe-
banístico dos imóveis se traduz em valor econômico. Há uma relação direta cialmente na potencial valorização de determinados imóveis, sem a respec-
entre a capacidade construtiva desse imóvel e o seu valor de mercado. tiva recuperação das evidentes mais-valias urbanas geradas. É preciso que
Assim que, na alteração do regime urbanístico dos imóveis, essa me- o poder público esteja atento a essas questões a fim de que não financie
dida deveria decorrer, tão somente, da revisão de todas essas variáveis e direta ou indiretamente o mesmo empreendimento mais de uma vez. Uma,
a fixação de novos parâmetros deve ser de modo uniforme à região, de ao conceder a excepcionalidade, outra por meio de financiamentos diretos
modo a garantir a mínima igualdade, quando isso fosse necessário. e, por fim, por deixar de arrecadar o lucro extraordinário decorrente de
Essas considerações se relacionam diretamente com o momento pré- ação administrativa, legislativa ou infraestrutura específica.
Evidente que há vários fatores envolvidos neste processo, desde a
vio à realização dos eventos esportivos, a medida que, no afã de viabilização
irreversível ocupação capitalista do espaço urbano até fatores políticos
de empreendimentos privados, pode-se configurar a adoção de medidas
afastados dos critérios legais. Sem criticas ou elogios à opção brasileira
excepcionais com a quebra do padrão de regime urbanístico da região da
de sediar o Campeonato Mundial de Futebol de 2014 e os jogos olím-
cidade. Em ocorrendo tal hipótese, com a excepcionalidade de regime ur-
picos em 2016, a questão é saber qual o modo mais econômico, eficaz
banístico de determinado imóvel, descaracterizando o regime urbanístico
e eficiente de se trazer melhoria de infraestrutura e alta de arrecadação
da área que foi fixado por meio de critérios técnicos e com a participação
de tributos para os municípios. Salutar a discussão pela necessidade de
da sociedade, configurar-se-ia um benefício individual, com lucro extraor-
pautar essas questões relativas às mais-valias urbanas, tema absoluta-
dinário não gerado pelo proprietário. Por meio de ações administrativas,
legislativas ou de infraestrutura dessa natureza há uma quebra de para- 37 CORREIA, Fernando Alves. O plano urbanístico e o princípio da igualdade. Coimbra: Alme-
digma daquele planejamento que foi desejado pela comunidade, ao apro- dina, 2001.
38 A propósito ver recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o princípio da igualdade
var os planos diretores. Esse procedimento além de não encontrar guarida nas operações urbano-ambientais. REsp 302.906/SP, relator ministro Herman Benjamin, 2ª Turma,
julgado em 26-8-2010, DJ de 01-12-2010.

108 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 109
mente alijado, ao que se tem visto, de toda a discussão político-adminis- no discurso político-administrativo, por meio de medidas efetivas para que
trativa relativa aos eventos esportivos. os investimentos diretos ou indiretos realizados pelo poder público possam
As diretrizes do inciso IX a XI do artigo 2º do Estatuto da Cidade retornar aos cofres municipais como forma de financiamento das cidades.
demandam do administrador local uma visão mais ampla e não apenas
direcionada ao evento em si, mas as possibilidades daí advindas, não
apenas como financiador do evento em si, mas como investidor, recu- Referências
perando os recursos públicos para financiamento das cidades. É preciso
que se estabeleça um ciclo que se auto-alimente. Ou seja, estimular a ALFONSIN, Betania de Moraes. A política urbana em disputa: desafios para
realização de eventos e espetáculos diversos, com investimentos públi- a Efetividade de novos instrumentos em uma perspectiva analítica de di-
reito urbanístico comparado: Brasil, Colômbia e Espanha / Betania de Mo-
cos, se assim for entendido como necessário, mas com contrapartida
raes Alfonsin – Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
daqueles particulares que obtiverem lucros extraordinários em sua pro- Tese (doutorado) – Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Rio
priedade. Trata-se de imposição, não uma opção. de Janeiro, RJ, 2008.
ALTAVILA, Jayme. Origem dos direitos dos povos. São Paulo: Ícone, 2001.
ARANTES, OTILIA [et al]. A Cidade do pensamento único: desmanchando
5. Conclusões articuladas: consensos. Petrópolis: Vozes, 2002.
AVILA, Humberto. Teoria dos princípios. 9ª. Ed., Malheiros, 2009.
BARTRUSIS, Nelson. Valorização da propriedade fundiária urbana. Cader-
a) a política urbana brasileira ganhou contornos constitucionais que no Metrópoles, São Paulo, v. 16, p. 121-139, 2006.
demanda um olhar do administrador público, ao deixar de ser mero or- BRASIL. Constituição (1988), de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da
denador de território, para ser planejador e gestor do espaço urbano de União, Poder Constituinte, Brasília, DF, 05 de outubro de 1988.
modo a atender as funções sociais da cidade e da propriedade; _______. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts.
b) O Estatuto da Cidade oferece várias ferramentas para implemen- 182 e 183 da CF. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11 de
julho de 2001.
tação das diretrizes vinculativas de política urbana. Não se admite no or-
_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 387047. Mi-
denamento jurídico-urbanístico brasileiro que as diretrizes gerais sejam nistro Relator Eros Roberto Grau, julgamento em 02-05-2008. Disponível em:
desatendidas pelos gestores municipais; <www.stf.gov.br>. Acessado em: 03-05-2008.
c) a recuperação de mais-valias urbanas, diretriz de política urbana, CAVALAZZI, Rosangela. O Estatuto Epistemológico do Direito Urbanístico
traduzida pelo artigo 2º, IX a XI do Estatuto da Cidade pode ser tra- Brasileiro: possibilidades e obstáculos na tutela do Direito à Cidade. In
duzida como a justa distribuição de ônus e benefícios decorrentes da COUTINHO, Ronaldo; BONIZZATO, Luigi (orgs). Direito da cidade: novas con-
cepções sobre as relações jurídicas no espaço social urbano. Rio de Janeiro:
urbanização;
Lúmen Júris, 2007.
d) mais precisamente a recuperação de mais-valias urbanas de ação do CORREIA, Fernando Alves. O plano urbanístico e o princípio da igualdade.
poder público, com incremento do valor econômico da propriedade, com Coimbra: Almedina, 2001.
lucro extraordinário é diretriz que demanda atenção do gestor público. DALLARI, Adilson; FERRAZ, Sérgio (Orgs.) Estatuto da cidade. São Paulo: Ma-
e) no que tange a recuperação de mais-valias, seja por meio de ação lheiros, 2006.
genérica ou individualizada, com geração de lucro extraordinário aos FURTADO, F. Recuperação de mais-valias fundiárias urbanas na América Latina:
debilidade na implementação, ambiguidades na interpretação / F. Furtado –
proprietários dos imóveis, o assunto é pouco debatido no Brasil.
São Paulo, 1999. Tese (doutorado). – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
f) as ferramentas de recuperação de mais-valias urbanas postas à Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
disposição dos gestores municipais estão timidamente previstas nos pla- GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de 1988. São
nos diretores, reduzidos a meras previsões formais sem regulamentação; Paulo: Malheiros, 1998.
g) às vésperas da realização de eventos esportivos, necessário que a _______. Direito urbano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1983.
recuperação das mais-valias urbanas, nas várias hipóteses esteja inserida HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak.
São Paulo: Annablume, 2006.

110 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 111
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RABELLO, Sonia de Castro. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais Joana Prates Garcia Scorza – acadêmica
valias fundiárias na América Latina (edição especial). Finaciamento do desen- Maria Juliana Meneghetti Peres – acadêmica
volvimento urbano no Brasil: desafios para a implementação do Estatuto da Ci-
dade, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito Municipal e Lincoln Institute
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SANDRONI, Paulo. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais valias fun- da Cidade. A lei federal que completa 10 anos em outubro de 2011 re-
diárias na América Latina (edição especial). Finaciamento do desenvolvimento gulamenta o capítulo da Política Urbana e estabelece uma série de dire-
urbano no Brasil: desafios para a implementação do Estatuto da Cidade, pro-
trizes orientadoras da política urbana a ser implementada pelas cidades
movido pelo Instituto Brasileiro de Direito Municipal e Lincoln Institute of Land
Policy, Rio de Janeiro, dezembro 2008. brasileiras. Inovador, o Estatuto da Cidade colocou o princípio da função
SINGER, Paul. Economia política da urbanização. São Paulo: Brasiliense, social da propriedade e o direito coletivo à cidade como espinha dorsal
1981. da política urbana. Às vésperas da primeira década de vigência, quando
SMOLKA, Martin. Anotações de aula. Curso de recuperação de mais valias fun- o Estatuto da Cidade começa a dar seus frutos e ver seus instrumentos
diárias na América Latina (edição especial). Finaciamento do desenvolvimento implementados no país, o Brasil “conquista” dois megaeventos esportivos.
urbano no Brasil: desafios para a implementação do Estatuto da Cidade, pro-
Há, todavia, uma agenda paralela ao “efeito-vitrine” dos megaeven-
movido pelo Instituto Brasileiro de Direito Municipal e Lincoln Institute of Land
Policy, Rio de Janeiro, dez., 2008. tos, frequentemente negligenciada pelas análises mais superficiais. O
_______. Anotações de aula. Seminário Internacional Tributação Imobiliária ‘In- fato é que nas cidades que sediam estes acontecimentos esportivos são
ternational Seminar on Property Taxation’. O IPTU e outros instrumentos de observados significativos impactos urbanísticos, ambientais, sociais,
politica local. Salvador/Bahia, nov., 2007, promovido pela Escola de Adminis- e econômicos e, na maior parte dos países em que se realizam, os me-
tração Fazendária e pelo Lincoln Institute of Land Policy. gaeventos implicam também em significativos impactos jurídicos.
_______; AMBORSKI, David. Captura de mais-valias para o desenvolvimento
Nos próximos cinco anos, o Brasil sediará dois eventos esportivos de
urbano: uma comparação interamericana, maio, 2000. (texto reproduzido)
_______; FURTADO, Fernanda. Recuperação de mais-valias fundiárias ur- enorme repercussão. A Copa do Mundo de futebol acontece em 2014 e
banas na América Latina: bravura ou bravata? 2001. (texto reproduzido) terá doze capitais de estados como cidades-sede: Belo Horizonte, Brasí-
VIZZOTTO, Andrea. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação lia, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza, Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio
do instrumento jurídico-urbanístico / Andrea Teichmann Vizzotto – Porto Ale- de Janeiro, Salvador e São Paulo. Além da Copa do Mundo, o Brasil
gre: UFRGS, Faculdade de Arquitetura, 2008. Dissertação (mestrado) - Univer- sediará ainda os Jogos Olímpicos de 2016, na cidade do Rio de Janeiro.
sidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de
Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre, RS, 2008. 1 Grupo de pesquisa e extensão em Direito Urbanístico da FMP

112 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 113
O presente artigo resulta de um estudo de caso realizado pelo Gru- 1.2 Impactos sociais
po de Pesquisa e Extensão em Direito Urbanístico da FMP na cidade
de Porto Alegre. O Grupo estudou durante um ano todas as obras que Sem dúvida alguma, os impactos sociais de um mega-evento espor-
serão realizadas no município e procurou identificar os impactos ocasio- tivo são os que mais impressionam. Por um lado, é inegável que o evento
nados pelas mesmas. Aqui apresentaremos a segunda etapa do trabalho gera empregos diretos e indiretos. Por outro, denúncias recentes dão
realizado pelo grupo: sob uma perspectiva analítica de Direito Urbanísti- conta de que muitas vezes as condições de saúde e segurança dos tra-
co, examinamos o processo de preparação da Copa do mundo de 2014 balhadores envolvidos com as obras da Copa do mundo são bastante
em Porto Alegre vis-à-vis as diretrizes da política urbana preconizadas precárias3.
pelo Estatuto da Cidade. Neste artigo, optamos por analisar apenas os As questões mais preocupantes relacionam-se com violações do
impactos ambientais e sociais da realização da Copa em nossa cidade. direito humano à moradia digna. Como muitas obras precisam ser re-
alizadas, despejos em massa têm ocorrido em todo o Brasil, gerando
grande perplexidade com a ausência de transparência nos processos
1. Impactos Ambientais e Sociais da de tomada de decisão sobre os destinos da população despejada, bem
Copa do Mundo no Brasil como com a freqüente negligência com que a relocalização das famílias
é tratada, que contrasta com a prioridade dada a obras de ampliação
A agenda ufanista da Copa do Mundo, tal como apresentada pelos de aeroportos e abertura / ampliação de avenidas. A matéria tem sido
governos e pela imprensa, muitas vezes hipertrofia as vantagens do mega- objeto de preocupação inclusive da Relatoria das Nações Unidas para o
evento e invisibiliza os impactos negativos que os eventos podem legar ao direito humano à moradia, como veremos.
país. No estudo teórico realizado pelo grupo sobre o tema, foi identificada Neste ponto, os impactos sociais fundem-se com os impactos jurí-
uma série de impactos relegados pelos governos na preparação do evento, dicos do evento, pois se percebe o risco de geração de traumas sociais
como uma pauta secundária. Considerar a importância dos impactos am- com despejos violentos e desrespeito aos diretos humanos, o que vem
bientais e sociais, no entanto, deve integrar o processo de planejamento de acontecendo em todo o Brasil e pode comprometer a imagem do país
um megaevento esportivo e, por óbvio, por tratar-se de um evento organi- ao longo do processo.
zado por uma instituição privada, compete ao poder público pautar o tema
e procurar minimizar os impactos em atenção ao interesse da coletividade.
2 Avaliação do processo de preparação da Copa do
1.1 Impactos Ambientais Mundo em Porto Alegre à luz do Estatuto da Cidade

Os impactos ambientais da realização da Copa do mundo são inegá- A título de estudo de caso, apresentamos aqui uma análise reali-
veis. A demolição de antigos estádios gera resíduos, há um considerável zada no município de Porto Alegre sobre a preparação da Copa de 2014
aumento do consumo de energia e de água, áreas de interesse ambiental vis-à-vis as diretrizes do Estatuto da Cidade. As diretrizes da política ur-
são urbanizadas, as obras determinam o corte de árvores nas cidades, bana foram estabelecidas no artigo 2º da Lei 10.257/01 (Estatuto da
aumenta a poluição do ar e, sobretudo, os deslocamentos realizados por Cidade) e as mesmas são importantes como forma de avaliar a aplicação
atletas e turistas incrementam significativamente a emissão de gases que dos instrumentos da política urbana, já que a Constituição Federal esta-
aumentam o efeito estufa responsável pelo aquecimento global2. beleceu que a política de desenvolvimento urbano deve ser executada

2 Estima-se que a “pegada de carbono” (medida de quanto um evento lança de dióxido de carbo- 3 Recentemente as obras da Arena do Grêmio, em Porto Alegre, foram paralisadas após uma
no na atmosfera) da Copa do Mundo realizada na África do Sul tenha sido de 896.661 toneladas de auditoria realizada pelo Ministério do Trabalho, após denúncias dos trabalhadores acerca das con-
carbono, acrescida de aproximadamente mais 1.850.000 toneladas geradas pelo transporte aéreo dições de trabalho no local. Ver notícia a respeito em http://www.clicrbs.com.br/esportes/sc/noticias/
necessário para o evento. Pelas estimativas internacionais, essa “pegada de carbono” foi oito vezes default,3226616,Obras-da-Arena-do-Gremio-sao-embargadas-pelo-Ministerio-do-Trabalho.html
maior que a da Copa da Alemanha, em 2006. (FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS, 2010, p. 18) Acesso em 25Ago.2011

114 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 115
pelo poder público municipal “conforme (de acordo) com as diretrizes formidade ao que diz Liana Portilho Mattos: “A norma que estabelece
gerais fixadas em lei”4. As diretrizes têm como objetivo o equilíbrio e não o direito às cidades sustentáveis tem seu fundamento nos princípios
o crescimento urbano. Este deverá respeitar os limites da sustentabili- da dignidade da pessoa humana e da solidariedade preconizados pela
dade, tanto em termos de padrões de produção e consumo, quanto em Constituição da República (artigos 1º, III, e 3º I).” (MATTOS, 2002, Pág.
expansão urbana (DALLARI, 2003, pags. 52 e 55). A inobservância das 87)
diretrizes, na esfera pública ou privada, acarreta a inconstitucionalidade Entendemos como observância ao principio da dignidade da pessoa
do ato praticado. humana uma cidade que proporciona aos seus cidadãos condições mí-
O Estatuto da Cidade traz um inovador programa de Reforma Urba- nimas de sobrevivência e bem-estar, como saúde, segurança, transporte,
na nas diretrizes do artigo 2º, mas aqui serão analisadas apenas as dire- lazer, moradia, ambiente saudável etc. O sentido de solidariedade está
trizes aplicáveis ao estudo de caso, no contexto das implicações sociais no fato de que o ambiente urbano deve ser desenvolvido sem degrada-
e ambientais. ção e, sim, com a preservação do meio natural ao qual está inserido,
para que as gerações que virão não sejam prejudicadas. No mesmo sen-
2.1 Direito a cidades sustentáveis. tido as cidades devem possuir um bom processo de governança urbana
para que não se deteriorem e as futuras gerações possam também usu-
I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o fruir da cidade.
direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-es­ Assim, busca-se o equilíbrio entre o desenvolvimento e a preserva-
trutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao ção, é o que ressalta Dallari: “Ao assentar suas diretrizes gerais, o Estatu-
lazer, para as presentes e futuras gerações; to expressa a convicção de que, nas cidades, o equilíbrio é possível – e,
por isso necessário.” (DALLARI, 2002, Pág.54)
Concretizada a participação da cidade de Porto Alegre na Copa do Por todo o exposto percebemos que a prioridade de uma cidade deve
Mundo - 2014 nos questionamos o quanto a cidade está preparada para ser o bem estar dos presentes e futuros cidadãos, independente dos
a realização deste evento, bem como quanto terá que ser investido para futuros eventos que possam nela ocorrer. Ter uma vida com dignidade
que se tenha um evento de acordo com as exigências da FIFA. em que os serviços básicos sejam oferecidos de forma adequada é o mí-
Entendemos que os investimentos para a Copa do Mundo trarão pros- nimo que podemos esperar do Estado, tema que neste período parece
peridade e melhorias à cidade, mas a preocupação principal do período é o constituir-se em uma agenda secundária.
motivo que leva a estes investimentos. A agenda parece invertida e as prio-
ridades focadas tão somente na realização dos jogos de futebol e não no 2.2 Gestão democrática
atendimento das necessidades da população e na melhoria na qualidade
de vida dos cidadãos em temas como saúde, transporte público adequado II – gestão democrática por meio da participação da população e
e eficaz, segurança, conservação de ruas, avenidas e praças, entre outros de associações representativas dos vários segmentos da comunidade
direitos garantidos pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade. na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e
O Estatuto da Cidade, em seu artigo 2º I, garante a toda popula- projetos de desenvolvimento urbano;
ção o direito a uma cidade sustentável, e que esta possa ser desfrutada
pelas presentes e futuras gerações. Quando nos reportamos às futuras De acordo com a Carta Mundial pelo Direito à Cidade, “o princípio da
gerações não podemos nos desviar da preservação do meio ambiente, gestão democrática da cidade é condição para o controle da Administra-
direito constitucionalmente garantido em seu artigo 225. ção Pública, da gestão das políticas públicas, da destinação e utilização
O conceito de cidade sustentável está vinculado aos princípios da dos recursos públicos para a reversão do quadro de desigualdade social”5.
dignidade da pessoa humana e ao principio da solidariedade, em con-
5 Disponível em http://www.forumreformaurbana.org.br/index.php/documentos-do-fnru/41-cartas-
4 Art. 182, caput, CRFB/88 -e-manifestos/133-carta-mundial-pelo-direito-a-cidade.html. Acesso em 28/07/11.

116 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 117
Subordinado a esse princípio, ao estabelecer essa diretriz, o Estatuto Em paralelo, estão ocorrendo encontros preparatórios para o V Con-
da Cidade (Lei Federal 10.257/01) evidencia uma característica essencial gresso da Cidade, previsto para novembro de 2011, que tem como mote
ao próprio Estado Democrático de Direito, que é a garantia da participação também a Copa8, discutindo desafios e soluções para Porto Alegre. A
do cidadão na tomada de decisões que envolvem a sociedade. Conforme idéia é traçar diretivas, considerando a cidade que se quer a partir de
pondera Liana Portilho Mattos, “esta diretriz encontra-se em consonância 2014, aproveitando o aporte financeiro que o evento mundial trará, e
direta com o princípio constitucional da soberania popular”, pois a vontade planejando o desenvolvimento urbano até 2022, quando Porto Alegre
do povo se manifesta através de seus representantes ou de forma direta6, completará 250 anos.
por meio de instrumentos disponíveis. (MATTOS, 2002, Pág. 88) Analisando sob o prisma da participação popular, a designação de
Um planejamento urbanístico democrático, que nos municípios encon- um país para sediar um megaevento mundial é feita através de proposta
tra sua aplicação mais precisa, deve sempre levar em conta as necessidades levada por representantes dos Estados, indicando a vontade da popula-
e aspirações populares, que só se tornam perceptíveis à medida que se ção por meio de participação representativa. O mesmo ocorre quanto à
criam espaços de participação, onde o cidadão é também protagonista do escolha das cidades-sedes. A partir do estágio de planejamento e exe-
planejamento e execução de seu espaço urbano. É a concretização da ges- cução, a participação popular pode, e deve, ser feita de forma direta, no
tão democrática, conceituada por Letícia Marques Osório “como a forma sentido de legitimar as modificações propostas e controlar atos admi-
de planejar, tomar decisões, legislar e governar as cidades com a participa- nistrativos, buscando preservar valores fundamentais como dignidade,
ção e controle social, de forma a dar legitimidade e sustentabilidade à nova solidariedade, igualdade e identidade cultural.
ordem jurídico-urbanística de natureza social”. (OSÓRIO, 2002, Pág. 69) Em Porto Alegre, o comitê gestor do V Congresso da Cidade, forma-
A gestão democrática é estruturadora do direito fundamental à ci- do por representantes de diversas entidades públicas, privadas e não-go-
dade (DALLARI,2002, p.338), e o Estatuto da Cidade fornece os instru- vernamentais, lançou uma convocatória no intuito de integrar um maior
mentos de política urbana que possibilitam sua efetivação, tendo cará- número de porto-alegrenses aos trabalhos. A partir dessa convocatória,
ter eminentemente transformador da realidade social. Apenas através iniciaram-se as reuniões nos 82 bairros de Porto Alegre, que se estende-
da combinação de uma íntegra representação parlamentar com a ativa rão para as regiões de planejamento e do Orçamento Participativo.
participação dos diversos segmentos da sociedade torna-se possível a Contudo, o convite do comitê gestor foi direcionado a alguns seg-
gestão da cidade que promova uma ordem urbana socialmente justa e mentos e pessoas, consideradas importantes para as discussões, não
includente (MATTOS, 2002, Pág. 70), onde estejam presentes a preser- tendo havido uma divulgação ampla à sociedade porto-alegrense. Mes-
vação do meio ambiente e a proteção do patrimônio histórico e cultural. mo no material de apoio e de divulgação, a metodologia que está sendo
A possibilidade de intervenção no planejamento das políticas urba- utilizada e a própria linguagem não são claras e acabam por dificultar
nas e de controle popular das ações da administração pública de que à população o entendimento dos eixos temáticos e das propostas de
trata esta diretriz tem inteira aplicação na preparação das cidades para participação.
a Copa de 2014. No caso específico de Porto Alegre, a prefeitura criou a Como metodologia, foi usada a denominada Bússola de Desenvolvi-
SECOPA (Secretaria Extraordinária para a Copa do Mundo 2014), com o mento Local, que identifica indicadores de desenvolvimento nos quatro
objetivo de gerenciar, em parceria com as demais secretarias municipais, eixos temáticos: econômico, da cidadania, humano e urbano. Tais indi-
a preparação de Porto Alegre para a Copa do Mundo de 2014. Para in- cadores vêm sendo apontados por intermédio de mediadores da prefei-
tegrar a sociedade civil na preparação para o Mundial, a SECOPA criou tura nas reuniões feitas nos bairros, assinalando os níveis de desenvolvi-
o Comitê Organizador Sede - Porto Alegre 2014, que trabalha com sete mento atual e definindo metas e ações para o futuro.
eixos temáticos abrangendo as áreas como Mobilidade Urbana, Turismo O que se nota na prática, entretanto, é que as questões específicas
e Rede Hoteleira, Meio Ambiente e Sustentabilidade, entre outros7. pertinentes à Copa do Mundo não têm aparecido nas discussões que
8 Disponível em http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_novo/default.php?p_noticia=
6 Conforme art. 1º, § único, da Constituição Federal de 1988
139251&5O+CONGRESSO+DA+CIDADE:+PLANEJANDO+A+PORTO+ALEGRE+DO+FUTU
7 Disponível em http://www.secopapoa.com.br/default.php?p_secao=5, Acesso em 27/07/2011. RO. Acesso em 28/07/2011.

118 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 119
estão sendo realizadas, ficando o próprio tema da preparação da cida- vimento da cidade, ofertar os equipamentos urbanos de forma equilibra-
de para o mega-evento esportivo invisibilizado durante os debates, que da à população, de forma a atender, adequadamente, os seus interesses
se dispersam em torno de outros temas. A questão problemática desta e necessidades, observando as peculiaridades dos mais diversos grupos
agenda oculta, é o encobrimento de problemas tais como a remoção de populacionais urbanos.
moradores, pouca transparência de contratos firmados pela prefeitura Sabe-se que para que uma cidade seja sede de uma Copa do mundo
com empreiteiras e ainda a hipervalorização imobiliária gerada pela bo- há uma série de exigências feitas pela FIFA - associação responsável pela
lha especulativa da Copa do mundo. sua realização – cujo cumprimento demanda em vultosos investimentos
No caso de Porto Alegre, verificamos que a remoção de moradores do Poder Público. Destaca-se que a FIFA, após análise técnica das defici-
é uma das questões cruciais, pois afeta o exercício do direito fundamen- ências da cidade para a realização do evento, outorga à cidade, inclusive,
tal à moradia, e preocupa a forma como os processos estão se dando um caderno de encargos a serem obrigatoriamente cumpridos, podendo
em comunidades próximas às obras da Av. Tronco, por exemplo. Um dos até mesmo ocorrer a exclusão da cidade na grade de programação do
problemas que precisam ser discutidos é o direito daquelas comunidades evento caso a mesma não se prepare conforme sugerido.
continuarem na região, posto que o direito à moradia não é, segundo Ora, apesar de a FIFA apresentar um discurso de defesa dos inte-
Raquel Rolnik, apenas “o direito a uma casa, quatro paredes e um teto, resses da população e de demonstrar grande preocupação com o lega-
mas uma moradia com acesso à escola, posto de saúde, fontes de renda, do que a realização desse megaevento esportivo deve deixar para as
emprego. A localização é um elemento absolutamente essencial”9. cidades-sede, é visível que os investimentos necessários causam certo
A gestão democrática, diretriz da política urbana, no que concerne às desequilíbrio na localidade. Em Porto Alegre, estão previstas diversas
intervenções necessárias para a Copa, mostra-se descaracterizada, uma obras públicas relacionadas com a Copa do Mundo que trarão benefí-
vez que a efetiva participação popular não tem caráter decisório em ne- cios apenas para uma pequena parcela da população, com altos gastos
nhuma das etapas. Em contrapartida, existem movimentos de resistência, com equipamentos urbanos que, embora necessários, não são impres-
representados pelos Comitês Populares da Copa, canais através do quais cindíveis.
a população pode se expressar e dar a sua opinião sobre o megaevento. Assim, a diretriz aqui analisada deixa de ser respeitada se conside-
Para que a Copa do Mundo 2014 gere real desenvolvimento, tra- rarmos que estes recursos poderiam ser mobilizados para necessidades
zendo qualidade de vida para a população e preservando a identidade e interesses mais prementes da população, tais como saúde, educação
cultural da cidade, o projeto preparatório para o evento deve resultar, etc. O que se vê, entretanto, é que os investimentos são focados nas
necessariamente, de um processo democratizado, que garanta à popu- obras que garantam a realização da Copa do Mundo em Porto Alegre,
lação, de forma concreta, o direito à informação, à transparência e à restando os demais interesses públicos em segundo plano. Não há, por-
participação da comunidade no processo de tomada de decisões. tanto, o desejado equilíbrio de oferta de equipamentos urbanos e comu-
nitários indicado na diretriz aqui analisada, como já vimos.
2. 3 Interesse da população como norte Por outro lado, é preciso considerar que é justamente a realização
da Copa do Mundo que permite a mobilização destes recursos. Em con-
V – oferta de equipamentos urbanos e comunitários, transporte e sequência do forte apelo que o evento possui, a captação destes valo-
serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da popula- res torna-se mais facilitada, seja por uma questão política – eis que as
ção e às características locais; intenções políticas de todos os envolvidos vão no mesmo sentido -, seja
por uma questão econômica – em razão da maior possibilidade de ob-
Esta diretriz traz consigo a obrigação de o Poder Público, ao realizar tenção de crédito facilitado e da grande expectativa de retorno imediato
investimentos relacionados com o processo de crescimento e desenvol- com a Copa –, seja, ainda, por uma questão social, já que a população
brasileira e portoalegrense é amplamente favorável ao evento, vendo
9 Entrevista de Raquel Rolnik disponível em http://www.viomundo.com.br/entrevistas/raquel-rol- com bons olhos, de maneira geral, as obras relacionadas à Copa. Assim,
nik-removidos-pelos-megaeventos-sao-os-ultimos-a-saber.html. Acesso em 29/07/11.

120 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 121
não houvesse a previsão deste megaevento na cidade, talvez esses re- realização das obras, em nosso entendimento com o mesmo rigor tradi-
cursos não fossem aplicados em lugar algum, nem nas obras agendadas cionalmente aplicado em Porto Alegre.
em razão da Copa do Mundo, nem no atendimento das necessidades e
interesses mais urgentes da população. Conclui-se, portanto, que, em- 2.5 Tutela dos bens ambientais e culturais
bora a diretriz aqui analisada não venha sendo seguida literalmente na
preparação de Porto Alegre para a Copa do Mundo de 2014, na prática, XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural
a diretriz é frequentemente negligenciada. e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e ar-
queológico;
2.4 Produção e consumo sustentáveis
A proteção do patrimônio coletivo, ainda que se constitua um dever
VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de anterior ao Estatuto da Cidade, pois positivado em nossa Constituição
expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, Federal, teve, na referida Lei, a determinação de competências, orienta-
social e econômica do Município e do território sob sua área de influência; ções e limitações no que tange estes valores (DALLARI, 2002, p. 54). É
a ferramenta que o legislador utilizou para elencar os fatores que devem
Mais uma vez o Estatuto da Cidade remete aos cuidados que a ci- ser considerados quando se estabelecem políticas públicas, buscando o
dade deve ter com o meio ambiente. Uma cidade deve pensar em de- equilíbrio no desenvolvimento urbano e uma cidade sustentável.
senvolvimento e crescimento, mas sempre de acordo com os limites da É, portanto, uma diretriz que se vincula de forma direta com a sus-
sustentabilidade ambiental. tentabilidade, bem como reflete um ponto de intersecção entre o Direito
Os cidadãos necessitam de um mínimo para sobreviver com quali- Urbanístico e o Direito Ambiental (MATTOS, 2001, p.95).
dade de vida em um meio urbano adequado, o saneamento básico e a Quando se trata de preparar uma cidade para receber um megaevento,
coleta de lixo adequada contribuem para isso. o planejamento urbano acaba passando por um processo de flexibilização
Para Granziera, “A questão da sustentabilidade, assim, coloca-se sobre das regras postas, com a justificativa dos prazos prementes e da mudança
o tripé da economia, sociedade e meio ambiente, que devam estar equilibra- de prioridades para se adequar às demandas. O problema surge, no entan-
dos. E cabe ao Poder Publico [...] compatibilizar o desenvolvimento econômi- to, quando alguns pressupostos básicos, tais como os elencados na dire-
co, com a proteção do ambiente [...]”.(GRAZIERA. 2007. Pág. 181). triz ora em análise, são afrontados na busca da transformação urbanística.
De igual maneira a Copa do Mundo nos traz uma reflexão com rela- De acordo com os projetos apresentados pela prefeitura de Porto Alegre,
ção aos padrões de produção e consumo da população, pois por se tra- verifica-se que está havendo negligência, por exemplo, no que diz respeito
tar de um mega evento, estes padrões só tendem a aumentar em larga à proteção e a preservação do meio ambiente natural e construído.
escala. Devem ser analisados os impactos que as obras terão também A duplicação da Avenida Edvaldo Pereira Paiva, a Beira-Rio, via uti-
com as matérias primas utilizadas e com os resíduos gerados. lizada para acesso ao estádio do Sport Club Internacional, é um projeto
Os questionamentos que emergem são: a cidade de Porto Alegre que “rasga” o Parque Marinha do Brasil, afastando ainda mais a popu-
está preparada para realização de um evento deste porte? Todos os cui- lação do elemento distintivo da cidade, que é o Lago Guaíba. O mesmo
dados com relação ao meio ambiente foram tomados para a realização acontece com o projeto de revitalização do Cais do Porto, que, embora
das obras? E com relação à recepção dos turistas, a cidade está ecolo- não seja uma obra prioritária para o desenvolvimento das atividades
gicamente preparada para recebê-los? E após o evento, que cuidados desportivas, é considerado um “novo cartão postal”, impulsor de turismo
com meio ambiente estão sendo planejados? no período da Copa do Mundo. Neste projeto, existe a previsão de duas
Se faz necessário a realização de políticas publicas que assegurem torres comerciais de 100m de altura a serem construídas sobre as águas
a realização da Copa do Mundo sem degradar o ambiente em que vive- do nosso lago, dificultando ainda mais a fruição do local pela popula-
mos, devendo observar-se estrito controle das devidas licenças para a ção em geral. São dois casos em que fica evidente o descompromisso

122 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 123
em harmonizar os espaços urbanos, contrariando, inclusive, a idéia de sociedade no que diz respeito a empreendimentos ou atividades que
interação entre urbanismo e turismo, pois os planos e programas turís- sejam potencialmente danosos ao meio urbano, considerado como mais
ticos devem assegurar a preservação, restauração, recuperação ou valo- abrangente que o meio ambiente natural (MATTOS, 2002, p.95).
rização do patrimônio cultural ou natural existente, sem descuidar dos Para que essa diretriz seja implementada, o próprio Estatuto forne-
aspectos sociais envolvidos (SILVA, 2008, p.393): ce, de forma exemplificativa, instrumentos a serem utilizados em seu Ca-
Sob a perspectiva de preservação histórica, a proposta de revitali- pítulo IV. Entre os citados, encontram-se debates, audiências e consultas
zar as áreas próximas à rodoviária e de mobilidade urbana referente à públicas, conferências sobre assuntos de interesse urbano e iniciativa
Avenida Voluntários da Pátria apresentou, desde o início, problemas. O popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desen-
projeto prevê a duplicação da avenida, que abriga edificações do início volvimento urbano.
do século passado, com obras, inclusive, do arquiteto alemão Theo Wie- Também, esta norma tem estreita relação com o Estudo de Impacto
derspahn, colocando em risco o patrimônio histórico de Porto Alegre. de Vizinhança, regulado pelo Estatuto da Cidade, nos artigos 36 a 38,
Assim, uma nova versão do projeto foi apresentada e aprovada por que vincula o direito individual de propriedade à sua compatibilidade
unanimidade pelo Conselho Municipal do Patrimônio Histórico Cultural com a situação geral da cidade (DALLARI, 2002, p.55). É um instru-
(Compahc): serão preservadas exclusivamente as fachadas históricas, op- mento que permite que se tomem medidas preventivas a fim de evitar o
ção que possibilita a manutenção da maior parte do desenho inicial do tra- desequilíbrio no crescimento urbano, garantindo condições mínimas de
çado viário10. Conforme disciplina a diretriz XII e ensina Jose Afonso da Sil- ocupação nos espaços habitáveis (DALLARI, 2002, p.306).
va, embora a remodelação de áreas ou bairros envelhecidos e deteriorados, De forma mais específica, a diretriz XIII configura uma determinação
como é o caso em questão, seja indispensável, também o é a preservação para que a comunidade envolvida seja chamada a opinar sobre as obras
da memória da cidade, mediante a proteção do ambiente urbano (SILVA, que acarretem um grande impacto sócio-ambiental. É o caso das obras
2008, p. 336). Resta saber até que ponto a simples manutenção das facha- previstas para a preparação de Porto Alegre como uma das sedes da
das corresponde à proteção, preservação e recuperação deste patrimônio. Copa, que sabidamente farão uma brutal intervenção na cidade e na
Mais uma vez, fica claro que a agenda de prioridades da Copa se- vida dos portoalegrenses. O V Congresso da Cidade foi a ferramenta
gue as determinações preponderantemente econômicas e de mercado, que a prefeitura encontrou para cumprir esta determinação. Ainda que
ocasionando um desequilíbrio que coloca em segundo plano o meio am- alguns dos agentes públicos não tenham a total compreensão do papel
biente natural e construído, bem como o patrimônio cultural, histórico, da participação popular neste projeto, é fato que existe uma abertura à
artístico e paisagístico de Porto Alegre. população, mesmo que não seja a ideal. A proposta da administração
pública é integrar esforços dos três setores da sociedade – público, ini-
2.6 Debate sobre impactos ambientais ciativa privada e sociedade civil organizada – para promover o planeja-
mento da cidade de forma descentralizada e participativa.
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interes- Para efetivar a participação dos cidadãos, condição imprescindível
sada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades para legitimar as decisões do poder executivo, foi utilizada a rede já
com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou constituída a partir do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urba-
construído, o conforto ou a segurança da população; no Ambiental, ligado à Secretaria Municipal de Planejamento. A partir
desta rede, foram identificadas lideranças dentro da comunidade, que
A diretriz XIII trata da aplicação direta da gestão democrática, re- em conjunto com representantes das regiões de planejamento e do or-
afirmando a importância da participação popular dentro do Estatuto çamento participativo, constituem comitês de articulação e mobilização,
da Cidade. Tal norma busca enfatizar a necessidade da participação da garantindo a audiência à população.
Em que pese a existência deste espaço de participação, constata-se,
10 Site da Secretaria Extraordinária da Copa 2014 – Prefeitura de Porto Alegre. Disponível em : em alguns casos, que a consulta à população tem se mostrado insufi-
http://www.secopapoa.com.br/default.php?reg=20&p_secao=9. Acesso em 16.08.2011.

124 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 125
ciente. Um exemplo é o que acontece na obra de alargamento da Ave- tar a concretização da tutela estatal do direito social de moradia”. (MAT-
nida Tronco, que deverá desalojar cerca de 1.800 famílias11. Comunida- TOS, 2002, Pág.96). Com isto verificamos que o Estado tem o dever de
des que serão diretamente atingidas não estão sendo informadas com promover a regularização fundiária para assegurar a segurança da posse
antecedência dos projetos de remoção, criando-se a impossibilidade de e o direito social de moradia, garantido no artigo 6º da Constituição
debate ou a apresentação de alternativas. Federal.
Além disso, a supervalorização de algumas áreas é um fator que A regularização fundiária busca regularizar áreas ocupadas por pes-
impede a adequada aplicação desta diretriz. Eventos como o da Copa soas menos favorecidas e com isso melhorar suas condições de vida,
favorecem os investimentos imobiliários e, muitas vezes, constituem-se não se tratando de uma faculdade do gestor público, mas de uma dire-
um meio de realizar transformações urbanísticas que, em condições nor- triz da política urbana.
mais, deveriam ser submetidas a determinados procedimentos formais O direito a moradia está relacionado ao principio fundamental da
e/ou legais, ou, ainda, não seriam aceitas por grande parte da popula- dignidade da pessoa humana, e, neste sentido vale a pena ressaltar os
ção. Assim, instala-se um verdadeiro estado de exceção12, onde planos componentes do direito à moradia, elencados pelo comentário geral n.4
diretores são alterados e a sociedade civil não é chamada a participar. do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Uni-
Tem sido através da intervenção dos Comitês Populares da Copa das, conforme explanado por Nelson Saule Júnior (2006, Págs. 218,
que a diretriz XIII acaba sendo efetivamente aplicada. A partir destes 219): Segurança jurídica da posse, disponibilidade dos serviços, mate-
movimentos de resistência, a população vem organizando-se e começa riais, benefícios e infra-estruturas, gastos suportáveis, habitabilidade,
a ser ouvida, tal como ocorreu em Porto Alegre. No dia 25 de março de acessibilidade, localização e adequação cultural.
2011, houve uma audiência pública solicitada pelo referido Comitê, que Ainda, conforme Nelson Saule Júnior (2006, Pág. 219), é pertinente
discutiu os impactos das obras que serão realizadas. Nesta audiência, ressaltar o Comentário n.7, pois normatiza a proteção do direito à mora-
convocada pelo Ministério Público Federal, foram convidadas as comu- dia quando considera que ocorre violação aos direitos humanos a práti-
nidades atingidas pelas obras, o Ministério Público Estadual, a Prefeitura ca de despejos forçados. No mesmo sentido, outra provisão do mesmo
Municipal, o Governo do Estado e as secretarias municipais e estaduais comentário: “todo individuo tem direito à adequada compensação por
envolvidas com a Copa, num exemplo emblemático do papel que pode qualquer dano, tanto material quanto moral, pelo qual foi afetado”.
ser cumprido pela população no controle da Administração Pública no Por todo o exposto, se faz necessário uma reflexão para a situa-
que diz respeito à observância das diretrizes do Estatuto da Cidade. ção de muitas famílias que estão sendo deslocadas para a realização
de obras que visam a preparação de Porto Alegre para a realização da
2. 7 Regularização Fundiária Copa do Mundo. Um dos casos mais visíveis é a situação da Vila Tronco,
integrante do complexo de vilas da Grande Cruzeiro.
XIV – regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por Neste caso o ideal seria a prefeitura compatibilizar a abertura da
população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas espe- Avenida Tronco com a regularização fundiária da área, já que se trata de
ciais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas um direito das famílias que ali vivem há décadas. Não sendo possível, a
a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; discussão é sobre como as famílias serão realocadas, em que condições,
para onde irão, se serão indenizadas com um valor digno, se seus direi-
Conforme as palavras da Liana Portilho Mattos: “(...) o Estatuto da tos serão respeitados. É de suma importância que esta transição seja fei-
Cidade estabeleceu a regularização fundiária como diretriz geral a orien- ta com o máximo de clareza e com a participação das famílias atingidas
pela obra ao longo de todo o processo, inclusive como uma exigência da
11 Conforme estimativa da ONG Cidade em seu órgão de divulgação De Olho Na Cidade, ano 14, gestão democrática da política urbana, conforme o que foi já analisado
n.30, abr 2011. p.1
na diretriz II. Na prática este processo está deixando a desejar, havendo
12 Expressão utilizada por Raquel Rolnik em entrevista sobre os megaeventos ao site Caros Ami-
gos. Em http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php?option=com_content&view=article&id necessidade de acompanhamento do desenrolar do processo para que
=1342:entrevista-raquel-rolnik&catid=127:noticias&Itemid=59. Acesso em 29/07/11.

126 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 127
o legado da Copa, neste caso, não seja uma história de violação de di- Mundo deve contribuir para a construção do direito à cidade sustentá-
reitos. vel no Brasil, sobretudo agora que o Estatuto da Cidade completa uma
A Relatora das Nações Unidas para o direito humano à moradia década.
adequada, Raquel Rolnik, em visita a Porto Alegre e referindo-se a este
caso, disse que “Porto Alegre ainda tem a chance de criar modelos de REFERÊNCIAS
modernização da cidade que sirvam de exemplo para o Brasil”. Espera-
-se, neste caso, que a Relatora das Nações Unidas tenha razão e que AGRELLI, Vanusa Murta; SILVA, Bruno Campos (Coords). Direito Urbanístico e
Porto Alegre respeite as diretrizes da política urbana que prevêem re- Ambiental: Estudos em Homenagem ao Professor Toshio Mukai. Rio de
gularização fundiária e urbanização das áreas ocupadas por famílias de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008.
baixada renda. Se não for assim, deve ser proporcionada a mudança DALLARI, Adilson; FERRAZ, Sérgio (coord.) et all. Estatuto da Cidade. (Comen-
para um local adequado e próximo, a fim de garantir a segurança jurídi- tários à Lei Federal 10.257/01). 2ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2003.
ca da posse das famílias atingidas pela obra viária. FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Org.). Direito urbanístico: estudos
brasileiros e internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006
CONCLUSÕES GRAZIERA, Maria Luiza Machado. Meio Ambiente Urbano e Sustentabilidade.
Revista de Direito Ambiental. Eladio LeceY e Silvia Cappelli (coord.). 2007. Nº
Os impactos econômicos, urbanísticos, ambientais, sociais e jurídi- 48
cos gerados pela preparação do Brasil para receber a Copa do Mundo MATTOS, Liana P. Capítulo I, Diretrizes Gerais, in MATTOS, Liana P. (Org.) Es-
são muito significativos e não podem ser negligenciados. Especialmente tatuto da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. . Belo
os impactos que fragilizam a ordem jurídica brasileira devem ser avalia- Horizonte: Mandamentos, 2002.
dos com muito cuidado. Em nosso entendimento, o processo de prepa- MATTOS, Liana Portilho (Org.) Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte:
ração das cidades brasileiras para sediar os megaeventos esportivos que Mandamentos, 2002.
se avizinham deve garantir que as parcerias público / privadas efetivadas OLIVEIRA, Regis Fernandes de. Comentários ao Estatuto da Cidade. 2º Edição.
a para a realização dos eventos reconheçam conquistas jurídicas e polí- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005
ticas recentes. OSÓRIO, Letícia Marques, Diretrizes Gerais, in MATTOS, Liana P. (Org.) Estatu-
Embora a mídia contribua para manter a idéia de que o país inteiro to da Cidade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
anseie pela Copa e mostre uma euforia da população a respeito do as- SECOPA - Secretaria Extraordinária para a Copa do Mundo 2014. Disponí-
sunto, o preço a ser pago, incluindo o social, é muito alto. Entendemos vel em http://www.secopapoa.com.br/default.php?p_secao=5. Acesso em
como conquistas jurídicas inegociáveis, por exemplo, a gestão democrá- 03/08/2011
tica das cidades; a transparência e controle social dos gastos públicos; o SILVA, Jose Antonio Tietzmann e. As Perspectivas das Cidades Sustentáveis:
respeito aos direitos humanos, em especial à moradia digna; o respeito Entre a Teoria e a Prática. Revista de Direito Ambiental. Antonio Herman V.
ao direito difuso ao meio-ambiente ecologicamente equilibrado, a res- Benjamin e Edis Milaré (coord.). 2006. Nº 43.
ponsabilidade sócio-ambiental de todos os atores envolvidos, tanto no VIZZOTTO, Andrea Teichmann; PRESTES, Vanesca Buzelato. Direito Urbanístico.
setor público quanto privado e finalmente (mas não menos importante), Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009.
a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
A reflexão sobre o caso de Porto Alegre demonstra que, neste pon-
to do percurso, as diretrizes estabelecidas para a política urbana pelo
Estatuto da Cidade estão sendo, em boa medida, desprezadas, como
se a Copa do Mundo fosse um evento à parte a justificar atos que não
encontram respaldo na legislação. Em nosso entendimento, a Copa do

128 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 129
Impactos urbanísticos e econômicos da
Copa de 2014 em Porto Alegre à luz do
Estatuto da Cidade
Betânia de Moraes Alfonsin – Professora Coordenadora1
Fabiano Young – acadêmico
Jacqueline Custódio – acadêmica
Joana Prates Garcia Scorza – acadêmica
Maria Juliana Meneghetti Peres – acadêmica

Introdução

Os megaeventos esportivos são competições internacionais que,


por seu porte, introduzem transformações estruturais nas cidades em
que se realizam e atraem a atenção de bilhões de pessoas em uma es-
cala planetária. Em uma sociedade globalizada, estes megaeventos são
disputados por países e cidades como uma oportunidade para alavan-
car a economia local, promover reestruturações urbanas, bem como dar
visibilidade aos atrativos das cidades-sede.
Há, todavia, uma agenda paralela ao “efeito-vitrine” dos megae-
ventos, freqüentemente negligenciada pelas análises mais superficiais.
O fato é que nas cidades que sediam megaeventos esportivos são ob-
servados significativos impactos urbanísticos e econômicos e, na maior
parte dos países em que se realizam, os megaeventos implicam também
em expressivos impactos jurídicos. Nos próximos cinco anos, o Brasil
sediará dois megaeventos esportivos de enorme repercussão. A Copa
do Mundo de futebol acontece em 2014 e terá doze capitais de estados
como cidades-sede: Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Curitiba, Fortaleza,
Manaus, Natal, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Pau-
lo. Além da Copa do Mundo, o Brasil sediará ainda os Jogos Olímpicos
de 2016, na cidade do Rio de Janeiro.
O presente artigo resulta de um estudo de caso realizado pelo Gru-
po de Pesquisa e Extensão em Direito Urbanístico da FMP na cidade
de Porto Alegre. O Grupo estudou durante um ano todas as obras que
serão realizadas no município e procurou identificar os impactos urba-
nísticos e econômicos das mesmas. Aqui apresentaremos a segunda eta-
1 Grupo de pesquisa e extensão em Direito Urbanístico da FMP

130 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 131
pa do trabalho realizado pelo grupo: sob uma perspectiva analítica de padrões de acessibilidade estabelecidos pela FIFA são padrões inferiores
Direito Urbanístico, examinamos o processo de preparação da Copa do às Normas Técnicas Brasileiras de acessibilidade.
mundo de 2014 em Porto Alegre vis-à-vis as diretrizes da política urbana Um megaevento esportivo implica a necessidade de melhoramen-
preconizadas pelo Estatuto da Cidade. tos em iluminação pública, pavimentação de calçadas deterioradas e a
substituição de mobiliário urbano sucateado e depredado. Todas essas
obras e intervenções, muitas vezes acarretam alterações na paisagem
1 Impactos Urbanísticos, Econômicos e urbana. Essas alterações podem ser positivas ou, ao contrário, represen-
Jurídicos da Copa do mundo no Brasil tarem grave violação do “direito à paisagem”.
Finalmente, registre-se a impressionante valorização imobiliária
A agenda ufanista da Copa do Mundo, tal como apresentada pe- decorrente de investimentos públicos nos períodos que antecedem os
los governos e pela imprensa, muitas vezes hipertrofia as vantagens do megaeventos esportivos. Em função da Copa do mundo, o Brasil está
megaevento e invisibiliza os impactos negativos que os eventos podem vivendo uma bolha especulativa que encarece o preço dos terrenos nas
legar ao país. No estudo teórico realizado pelo grupo sobre o tema, cidades como um todo.
foram identificados uma série de impactos relegados pelos governos na
preparação do evento, como uma pauta secundária. Considerar a impor- 1.2 Impactos Econômicos
tância dos impactos urbanísticos, econômicos e jurídicos, no entanto,
deve integrar o processo de planejamento de um megaevento esportivo Os megaeventos esportivos produzem impactos profundos na econo-
e, por óbvio, por tratar-se de um evento organizado por uma instituição mia dos locais onde se realiza. A Fundação Getúlio Vargas, em parceria com
privada, compete ao poder público pautar o tema e procurar minimizar a Ernst & Young, desenvolveu um modelo de Insumo-Produto Estendido,
os impactos em atenção ao interesse da coletividade. baseado na Matriz Insumo-Produto (MIP) do Instituto Brasileiro de Geo-
grafia e Estatística (IBGE). O modelo ‘representa a economia brasileira por
1.1 Impactos urbanísticos meio de 55 atividades econômicas, 110 categorias de produtos e 10 per-
fis de renda/consumo da população, e permite estimar os impactos totais
Como impactos urbanísticos importantes, é possível apontar que os (diretos, indiretos e induzidos) das atividades relacionadas à Copa sobre a
megaeventos esportivos provocam um aumento de pólos geradores de produção nacional, emprego, renda, consumo e arrecadação tributária’. O
tráfego, não apenas com a construção, reforma e ampliação de estádios, modelo projeta que os investimentos em atividades relativas à Copa pode-
arenas e outros equipamentos para sediar o evento, mas também com a rão ser quintuplicados, e disponibiliza números impressionantes:
expansão do parque hoteleiro das cidades-sede e com a construção de
equipamentos para alojamento de atletas. Na maior parte dos casos, ob- “Além dos gastos de R$ 22,46 bilhões no Brasil relacionados à Copa
serva-se ainda a construção, abertura e ampliação de vias para suportar para garantir a infraestrutura, e a organização, a competição deve-
rá injetar, adicionalmente, R$ 112,79 bilhões na economia brasilei-
o tráfego gerado pelo evento e melhorar a mobilidade urbana. Em função
ra, com a produção em cadeia de efeitos indiretos e induzidos. No
do grande fluxo de passageiros, a FIFA exige a melhoria da infra-estrutura total, o País movimentará R$ 142,39 bilhões adicionais no período
e o aumento da capacidade de aeroportos e metrôs. Muitas vezes, o me- 2010-2014, gerando 3,63 milhões de empregos-ano e R$ 63,48
gaevento demanda obras urbanísticas que, pelo Plano Diretor, não seriam bilhões de renda para a população, o que vai impactar, inevitavel-
as mais urgentes para a cidade, invertendo as prioridades estabelecidas mente, o mercado de consumo interno. Essa produção também de-
pelo processo de planejamento urbano. Observa-se também com preo- verá ocasionar uma arrecadação tributária adicional de R$ 18,13
cupação a sobrecarga da infra-estrutura de drenagem pluvial, de esgotos, bilhões aos cofres de municípios, estados e federação. O impacto
de fornecimento de água e de energia. Para garantir a acessibilidade uni- direto da Copa do Mundo no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro
é estimado em R$ 64,5 bilhões para o período 2010-2014 – valor
versal, uma série de adaptações são necessárias, mas em alguns casos, os
que corresponde a 2,17% do valor estimado do PIB para 2010, de

132 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 133
R$ 2,9 trilhões. (...) Os setores mais beneficiados pela Copa do Mun- os desafios em seis áreas prioritárias: mudanças climáticas, desastres e
do serão os de construção civil, alimentos e bebidas, serviços presta- conflitos, manejo de ecossistema, governança do meio ambiente, subs-
dos às empresas, serviços de utilidade pública (eletricidade, gás, água, tâncias perigosas e eficiência do uso de recursos naturais. Quanto ao
esgoto e limpeza urbana) e serviços de informação. Em conjunto, to- aproveitamento do legado, é ressaltada a capacidade de cada país de
das essas áreas deverão ter sua produção aumentada em R$ 50,18 gerenciá-lo (ERNST & YOUNG e FGV, 2011).
bilhões (ERNST & YOUNG e FGV, 2011).”
1.3 Impactos Jurídicos
De acordo com este estudo, as cidades sede devem receber investi-
mentos de R$ 14,54 bilhões, o que vai impactar os PIBs municipais em Uma das questões que mais chama atenção no processo de prepa-
R$ 7,18 bilhões, conforme demonstra a tabela abaixo (ERNST & YOUNG ração de um megaevento esportivo são os impactos jurídicos gerados
e FGV, 2011). no país e nas cidades-sede. No Brasil, já foram anunciadas alterações
formais no Estatuto do Torcedor (lei 12.299/10) para permitir a venda
R$ 1.000.000,00 de bebidas alcoólicas nos estádios2; foi alterado o regime de licitações
Cidade (Estádio) Impacto PIB Municipal Impacto direto brasileiro, com a adoção de um “Regime Diferenciado de Contratações”
PIB direto 2010 % PIB Municipal para a Copa das Confederações, a Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos
Fortaleza (Castelão) 430,00 32.490,30 1,40% de 2016 (lei 12.462/11). Além disto, tem-se observado um processo de
Natal (Cidade das Dunas) 758,60 10.650,70 7,11% inobservância de várias outras leis importantes como é o caso do Estatu-
Recife (Cidade Copa) 378,70 27.504,10 1,40% to da Cidade (lei 10.257/11) e as diretrizes estabelecidas para a Política
Salvador (Fonte Nova) 625,70 35.481,40 1,80%
urbana no Brasil e, nas cidades-sede, uma relativização do Plano Diretor.
Manaus (Vivaldão) 664,70 45.672,60 1,50%
2 Avaliação do processo de preparação da Copa do
Cuiabá (Verdão) 597,30 10.489,10 5,70%
Mundo em Porto Alegre à luz do Estatuto da Cidade
Brasília (Estádio Nacional) 606,90 132.270,80 0,50%
Belo Horizonte (Mineirão) 717,40 50.724,60 1,40%
A título de estudo de caso, apresentamos aqui uma análise realizada
Rio de Janeiro (Maracanã) 987,40 185.270,80 0,50% no município de Porto Alegre sobre a preparação da Copa de 2014 em
São Paulo (Morumbi) 723,30 424.826,00 0,20% face às diretrizes do Estatuto da Cidade. As diretrizes da política urbana fo-
Curitiba (Arena da Baixada) 343,20 50.169,30 0,70% ram estabelecidas no artigo 2º da Lei 10.257/01 (Estatuto da Cidade) e as
Porto Alegre (Beira Rio) 339,30 44.385,00 0,80% mesmas são importantes como instrumento de avaliação da aplicação dos
Tabela 1 – Copa 2014: impacto econômico nas cidades-sede instrumentos da política urbana, já que a Constituição Federal estabeleceu
que a política de desenvolvimento urbano deve ser executada pelo poder
A discussão em torno dos impactos econômicos traz à tona a susten- público municipal conforme (de acordo) com as diretrizes gerais fixadas em
tabilidade das cidades e a repercussão do legado da Copa. No estudo lei. As diretrizes têm como objetivo o equilíbrio e não o crescimento urbano.
em questão, ‘assegurar o desempenho para o desenvolvimento susten- Este deverá respeitar os limites da sustentabilidade, tanto em termos de
tável nesse tipo de competição global significa contribuir para a redução padrões de produção e consumo, quanto em expansão urbana (DALLARI,
de custos sociais e ambientais, de ineficiências e desperdícios, além de 2003, pags. 52 e 55). A inobservância das diretrizes, na esfera pública ou
colaborar para maior integração com a sociedade e com o desenvolvi- privada, acarreta a inconstitucionalidade do ato praticado.
mento contínuo das pessoas, das comunidades e dos relacionamentos O Estatuto da Cidade traz um inovador programa de Reforma Ur-
entre a sociedade e o meio ambiente’. O estudo segue critérios adotados bana nas diretrizes do artigo 2º, mas aqui serão analisadas apenas as
pela United Nations Environment Programme (Unep), que leva em conta diretrizes aplicáveis ao estudo de caso.
as dimensões econômicas, sociais e ambientais, integradas para vencer
2 Note-se que a cerveja Budweiser é uma das patrocinadoras da Copa de 2014.

134 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 135
2.1 Cooperação 1988, arts. 174, § 1º; 21, IX e XX; 25, § 3º; 182, § 2º, § 4º, I, II e III e
183, § 1º (DALLARI, 2003, pag. 50).
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais Essa diretriz integra a oferta de serviços públicos e de equipamentos
setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao urbanos na elaboração da política urbana, afastando a tão comum compar-
interesse social; timentalização e segmentação dessas questões no planejamento municipal,
que ocasionou tantos males às cidades (FRANCISCO, 2001, pag. 44).
Essa diretriz complementa a diretriz anterior, que trata da gestão de- Essa diretriz encontra na preparação de Porto Alegre para a Copa
mocrática, onde a iniciativa privada e os demais setores da sociedade uma estrutura governamental criada ad hoc, onde entidades governa-
atuam na cooperação através da participação da população e de associa- mentais e civis operam para a realização do evento. O Comitê Organi-
ções representativas de diversos segmentos da sociedade, para atender zador Sede - Porto Alegre 2014, organizado pela SECOPA, promove a
ao interesse social geral. Observe-se que a esfera pública não se restringe participação da sociedade através de suas entidades representativas. As
sete câmaras temáticas têm como propósito o diálogo com as câmaras
à esfera estatal, e a esfera privada soma-se a esta (MATTOS, 2002, pág.
nacionais e o Comitê Organizador Local, no Rio de Janeiro. A SECOPA
89). Neste contexto, o chamamento à cooperação é feito à esfera pública,
será dissolvida após a ocorrência dos jogos (SECOPA, 2011).
que engloba a estatal e a privada, o que consolida a democracia partici-
A principal dúvida em relação a essa diretriz diz respeito a qual in-
pativa. O Estatuto introduz a obrigatoriedade da participação popular na
teresse social será atendido com a urbanização pretendida para a hos-
definição da política urbana (FRANCISCO, 2001, pág. 39).
pedagem da Copa, ou seja, quem sai lucrando com os jogos. Em geral,
Em relação à cooperação entre os governos, nenhuma política pública o brasileiro, amante do futebol, tem uma pré-concepção positiva a res-
deve existir isoladamente, devendo coordenar-se com a política geral do peito da ocorrência dos jogos, tendendo a uma permissividade quanto
Estado e com as demais políticas setoriais. Nesta linha, um dos aspectos da a qualquer fato que os envolva. Já as pessoas atingidas por despejos
política urbana é a coordenação externa, que é a maneira pela qual deve certamente terão um posicionamento diferente, assim como as pessoas
compatibilizar-se com as demais políticas. Para tanto, através de um siste- que têm a informação de como esse processo de urbanização está se
ma de racionalidade decisória, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu dando, a quais interesses serve e quem realmente lucra com ele.
que as normas e decisões em matéria urbanística têm sua validade con- As exigências das federações esportivas para que os países possam
dicionada à obediência a normas de maior abrangência tanto no sentido sediar megaeventos esportivos têm gerado lucros exorbitantes para a
territorial, onde a política espacial da cidade deve ser compatibilizada com FIFA (Fédération Internationale de Football Association), o COI (Comitê
a política nacional de ordenação do território, quanto no sentido temático, Olímpico Internacional) e os patrocinadores. Os grandes eventos espor-
onde a política espacial da cidade deve adequar-se a uma política genérica tivos têm sido financiados com o dinheiro público para proporcionar lu-
de desenvolvimento. Para isso, a Constituição instituiu alguns instrumentos cro privado, pois os patrocinadores recebem os benefícios e os governos
básicos de estruturação e de execução (DALLARI, 2003, pag. 50). assumem os riscos, gastando fortunas inacreditáveis em um cenário de
Os instrumentos de estruturação compreendem os planos que de- risco e/ou pobreza para construir uma megaestrutura para hospedar os
finem os objetivos da política urbana e têm como instrumento maior o jogos, que normalmente é subutilizada ou abandonada depois. As infor-
planejamento (tratado na próxima diretriz), que articula competências mações sobre a organização da Copa não são transparentes, e os órgãos
federais, estaduais e municipais. O planejamento em geral é determi- organizadores possuem mecanismos que os eximem completamente de
nante para o setor público e indicativo para o setor privado, mas os qualquer responsabilidade, que acaba por recair sobre os governos (GA-
planos municipais são determinantes para o setor privado. Os instru- FFNEY, 2011a; FIFA, 2011). Fatores típicos do neoliberalismo, como a
mentos de execução são formados por institutos como a imposição de valorização do cidadão pela sua capacidade de pagar por segurança,
parcelamento ou edificação compulsórios, o IPTU progressivo, a desa- educação e transporte, e a privatização do espaço público, estão pre-
sentes nesses eventos (GAFFNEY, 2011b).
propriação para fins de reforma urbana, o usucapião especial de imóvel
Apesar de o cenário urbano porto-alegrense apresentar situações
urbano, a concessão de uso, conforme dispõe a Constituição Federal de
onde a carência reclama ações que beiram o filantropismo e onde qual-
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quer benefício decorrente da Copa é, evidentemente, bem vindo, não se ção do meio-ambiente, obrigando que haja, por parte da esfera pública,
pode ignorar que a implantação da infra-estrutura para hospedar a Copa muito mais ações de correção do que de prevenção.
pode provocar distorções graves (que podem ser provocadas em função, Neste contexto, a política urbana apresenta-se indispensável para im-
por exemplo, dos despejos que sejam efetuados violando o Direito à plantar a ordem urbanística que vai permitir o pleno desenvolvimento das
Moradia) no atendimento do interesse social. Em seu favor, urge lançar funções sociais da cidade e da propriedade urbana. A ordem urbanística
um olhar atento aos acontecimentos e atuar onde for possível. tem como primeiro sentido o de ordenamento, como um conjunto orgânico
de normas de ordem pública que vinculam a atuação individual na cidade.
2.2 Direito ao Planejamento O segundo sentido é de busca de um estado de equilíbrio, ou sustentabili-
dade, cuja preservação envolve e obriga a todos (DALLARI, 2003, pág. 55).
IV – planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição O planejamento é um princípio instrumental que permite ao poder
espacial da população e das atividades econômicas do Município e do ter- público desenvolver sua ação urbanística, através do planejamento geral
ritório sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do Estado no planejamento do desenvolvimento, o que engloba planos
do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente; setoriais e planos de desenvolvimento econômico e social, no planeja-
mento ambiental através do zoneamento ambiental e no planejamento
Historicamente, o poder público brasileiro reservou a área da pe- orçamentário do Estado através do plano plurianual, das diretrizes or-
riferia da cidade aos loteamentos e conjuntos habitacionais populares çamentárias e do orçamento anual, conforme dispõe a Lei 10.257/01
construídos pelo Estado, com um custo social elevado devido à falta (Estatuto da Cidade) em seu art. 4º, I, II, III, ‘c’, ‘d’, ‘e’, ‘g’ e ‘h’. O instru-
de infra-estrutura e à carência de serviços. Isso resultou em um padrão mento da ação urbanística de particulares são os planos urbanísticos,
descontínuo, rarefeito e antieconômico de ocupação do solo, de nature- consubstanciados no plano diretor e na disciplina do parcelamento, uso
za predatória ao meio-ambiente (OSÓRIO, 2002, pág. 73). Esse modus e ocupação do solo, de acordo com a Lei 10.257/01 (Estatuto da Cida-
operandi, ainda presente na política urbana brasileira, tem fortes reper- de) art. 4º, III, ‘a’ e ‘b’. Os planos urbanísticos legitimam a ação urbanís-
cussões no mercado imobiliário, que é moldado por esta tendência. Em tica do Estado (DALLARI, 2003, pág. 56).
decorrência, observam-se zonas com loteamentos populares que sur- Em relação à Copa de 2014, o planejamento tem ficado refém des-
gem rapidamente e formam cinturões de miséria segregados em torno te grande evento, ao invés de usá-lo para mudar a cidade (GAFFNEY,
das concentrações urbanas, ou a rápida deterioração de zonas onde o 2011a). A cidade que abriga um megaevento deve estar equipada com
poder público consolidou loteamentos irregulares recentes. infra-estrutura de transportes, hoteleira, etc. (GAFFNEY, 2011b).
O enfrentamento deste problema faz surgir algumas indagações de Raquel Rolnik, urbanista brasileira que é relatora especial para o
caráter prático, sob o ponto de vista do urbanista público: ao implan- direito à moradia adequada junto ao Conselho de Direitos Humanos da
tar um loteamento popular, onde localizar as pessoas de menos renda? ONU, afirma que na construção dessa infra-estrutura, comumente ocor-
Como fazer para que o mercado imobiliário ceda espaços infra-estru- re o despejo de famílias situadas em loteamentos informais, porque é
turados aos loteamentos populares? Como já vimos, compreende-se mais barato pagar a um posseiro do que a um proprietário. Acontece
função social da cidade como a garantia de um feixe de direitos como que o direito de moradia não é um direito de posse, é um direito hu-
moradia, educação, circulação, saúde, cultura, lazer, etc. Como o espaço mano. A autora relata que recebeu denúncias a respeito de despejos,
da cidade é objeto de parcelamento público e privado, a política urbana provindas inclusive de Defensorias Públicas e Ministérios Públicos. As
deve viabilizar a função social da cidade como um todo e para as par- violações podem ser divididas em dois grandes grupos: primeiro, em
tes que a compõem. Isso é feito através da ordenação do uso do solo, relação à falta de transparência, direito à informação e à participação.
sem a qual o crescimento da cidade torna-se desordenado e distorcido A falta de transparência faz com que a maioria das comunidades desco-
(DALLARI, 2003, pág. 54) e ameaça a sustentabilidade da cidade, o nheça os projetos antes de serem removidas, não há fóruns de discussão
que normalmente a transforma em um lugar perigoso e insalubre para a dos projetos, informações sobre os pagamentos (cheques-despejo), que
geração presente e para as futuras, e um poderoso agente de degrada- normalmente são ínfimos, nem apresentação de alternativas à remoção.

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Direitos que compõem o direito à moradia, como o direito à informação, local com semelhantes facilidades. Em razão disso, outra observação a
à transparência e à participação da comunidade atingida, têm sido sis- ser feita sobre essa diretriz é que a distribuição espacial a ser feita dessa
tematicamente violados. O segundo grupo de violações diz respeito às população a ser praticamente expulsa das casas situadas na Vila Tronco
alternativas às desapropriações: segundo o Direito de Moradia, ou deve- tende a se restringir a lugares longínquos e não tão bem servidos de
-se esgotar as possibilidades que visem evitar a remoção, ou minimizar infra-estrutura urbana, o que vai ser mais um desrespeito ao Direito de
o número de remoções. Não sendo possível, o desapropriado deve ter Moradia dessa parcela da população.
alternativas para que possa escolher, ao invés de ser imposta uma solu- Por fim, em relação ao planejamento das atividades econômicas,
ção. Porque vai ocorrer um megaevento, não quer dizer que deva haver resta comentar sobre as isenções fiscais que foram concedidas em ter-
a suspensão de direitos humanos, ambientais, etc., dando surgimento mos de ISSQN e de ICMS, os dois impostos sobre a produção que mais
a uma espécie de Estado de exceção ou de emergência em função de arrecadam no Brasil. A receita de ISSQN e a receita de ICMS que vai
guerra ou desastre. O que tem acontecido se aproxima cada vez mais deixar de ser arrecadada vai somar milhões de reais Inicialmente, fica
desse estado de exceção, como vimos (ROLNIK, 2011). Em Porto Ale- a dúvida se esse dinheiro não seria melhor empregado para incrementar
gre, historicamente, o planejamento da cidade formal tem um processo as atividades econômicas do município e também ‘realizar o desenvolvi-
de constituição lento e burocratizado, incompreensível ao leigo e muito mento e transformações de que a cidade tanto necessita’ preconizados
trabalhoso ao especialista3. Em função dos jogos, inúmeros projetos ur- pela SECOPA. Outra dúvida é em relação ao porquê de se conceder a
banísticos e imobiliários surgiram, e, sob a justificativa de embelezar a benesse da isenção, pois a decisão do local da realização da Copa já
cidade para a Copa, propunham mudanças das regras urbanísticas tradi- havia acontecido muito antes de ser concedida a isenção e dificilmente
cionalmente utilizadas na cidade, como, por exemplo, a implantação de alguém deixaria de entrar em alguma licitação de obras da Copa em
prédios de 33 andares na orla do Rio Guaíba, até hoje utilizada somente função da cobrança desses impostos.
para o lazer dos moradores da cidade.
Oficialmente, houve aparentemente um direcionamento no sentido 2. 3 Controle preventivo do uso do solo
de aproveitar as verbas que serão destinadas à COPA de 2014 para
‘realizar desenvolvimento e transformações de que a cidade tanto neces- VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar: Antônio
sita’ (SECOPA, 2011). Em Porto Alegre, há previsão de desapropriação a) a utilização inadequada dos imóveis urbanos;
em 6 das 10 obras que serão realizadas, e previsão de reassentamento b) a proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes;
em 2 delas: na Avenida Tronco (Vila Tronco), e na Avenida Severo Dullius c) o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos ou ina-
(Vilas Dique e Nazaré). As obras da Avenida Tronco são consideradas as dequados em relação à infra-estrutura urbana;
de maior relevância no conjunto de obras a serem concluídas até 2014. d) a instalação de empreendimentos ou atividades que possam fun-
Será construída em uma área de grande vulnerabilidade social, o Com- cionar como pólos geradores de tráfego, sem a previsão da infra-estru-
plexo de vilas da Grande Cruzeiro. Neste ponto, poder-se-ia considerar tura correspondente;
que o cumprimento dessa diretriz no caso da Vila Tronco seria através de e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua
uma ação para corrigir uma distorção de crescimento urbano, mas existe subutilização ou não utilização;
uma preocupação com a maneira como as desapropriações estão sendo f) a deterioração das áreas urbanizadas;
conduzidas, pois os valores oferecidos aos posseiros são ínfimos. A área g) a poluição e a degradação ambiental;
é próxima ao Centro de Porto Alegre e bem estruturada em relação à
mobilidade urbana. Segundo as negociações recentes, seus posseiros O inciso VI do art. 2º do Estatuto da Cidade contém efeitos perver-
não vão receber o suficiente na desapropriação - o que constitui um sos da urbanização que a ordenação do uso e ocupação do solo a cargo
desrespeito ao seu Direito de Moradia - para poderem se situar em um do município deve evitar, preconizando, segundo José Afonso da Silva,
‘uma estrutura mais orgânica para as cidades, mediante a aplicação de
3 A aprovação de loteamentos é antecedido pela aprovação de vários estudos e projetos. Para
aprofundar, consultar os Manuais em http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja/CTAAPS/default.htm. instrumentos legais de controle do uso e da ocupação do solo - com o
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quê se procura uma desejável e adequada densidade populacional e das construção de um shopping center no Cais do Porto ou na rodoviária de
edificações nos aglomerados urbanos” (SILVA, 2008, pag. 239). Porto Alegre sem previsão de melhorias na infra-estrutura. A localização
O item ‘a’ determina que o imóvel urbano não seja utilizado inadequa- atual da rodoviária de Porto Alegre causa transtornos, pois está em um
damente, ou seja, que não haja um uso em desacordo com o que estipula dos nós viários mais importantes que dão acesso à cidade, e o fluxo de
o plano de zoneamento de uso contido no plano diretor da cidade, pois as ônibus municipais corta o fluxo dos que querem sair da cidade. Esta pro-
diversas áreas da cidade estão dedicadas ao exercício de funções urba- blemática seria facilmente resolvida se fosse realocada para quaisquer
nas elementares e específicas (muitas vezes incompatíveis entre si, como dos diversos e enormes terrenos adjacentes onde se localizam pavilhões
uma zona de interesse turístico junto a um depósito de lixo, ou uma casa de depósitos, muitos abandonados e à mercê da ocupação informal, o
noturna junto a um hospital, etc.), com o objetivo de proteger o bem-estar que também viria de encontro com a letra ‘f’ da diretriz VI, pois evitaria
da população. O zoneamento de uso destina-se a colocar as diversas ati- a deterioração das áreas urbanizadas na medida em que estaria dando
vidades em um local adequado, inclusive as atividades incômodas (SILVA, um novo e importante uso para uma área estagnada da cidade. Na linha
2008, pag. 242). Nesta linha, o inciso ‘b’ do mesmo artigo refere-se ao dessas diretrizes, as ocupações informais já estabelecidas nesses locais
impedimento da proximidade de usos incompatíveis ou inconvenientes. O centrais poderiam ser realocadas em alguns dos diversos edifícios aban-
zoneamento de uso consiste em uma manifestação concreta do planeja- donados que se localizam no Centro de Porto Alegre, ganhando essas
mento urbanístico, abrangendo um conjunto de normas legais que confi- pessoas em qualidade de vida e, consequentemente, em oportunidades.
guram o direito de propriedade e o direito de construir, conformando-os A retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua su-
aos princípios da função social. Essa natureza do zoneamento decorre butilização ou não utilização é focada pela letra ‘e’ e diz respeito à ob-
não tanto do poder de polícia, mas da faculdade que se reconhece ao servação da função social da propriedade, dispondo de instrumentos
poder público de intervir, por ação direta, na ordem econômica e social, de concretização como o IPTU progressivo, não sendo mais uma norma
na propriedade e no direito de construir, condicionando-os à sua função de ordem programática. Como exemplo para essa diretriz, poder-se-ia
social, porque restritos ao interesse público4. Os diversos tipos de uso (re- citar os mesmos galpões abandonados que estão sem utilidade alguma
sidencial, comercial, industrial, etc.) e suas combinações causam a inten- senão, dentre outras causas, a especulação imobiliária.
sidade de uso, o que determina a densidade de população (SILVA, 2008, Por fim, a letra ‘g’ determina que a ordenação e controle do uso do
pag. 245). Esta, por sua vez, estabelece a infra-estrutura necessária para solo evitem a poluição e a degradação ambiental, em respeito à sus-
que as atividades possam se operacionalizar e desenvolver. Se a infra- tentabilidade da cidade quanto ao meio-ambiente, preservando-a para
-estrutura já está consolidada, a letra ‘c’ da diretriz VI preconiza que não as gerações presentes e futuras. Entendemos que todos estes aspectos
seja efetuado o parcelamento do solo, a edificação ou o uso excessivos poderiam ser melhor trabalhados no processo de preparação da Copa,
ou inadequados em relação à infra-estrutura urbana, pois o uso além da pois se não são contemplados na execução das obras, acabarão produ-
capacidade pode ocasionar uma sobrecarga dessa infra-estrutura, ocasio- zindo exatamente os efeitos que se pretende evitar.
nando problemas aos futuros usuários.
A letra ‘d’ trata sobre vedação da instalação de empreendimentos ou 2.4 Produção e consumo sustentáveis
atividades que possam funcionar como pólos geradores de tráfego, sem
a previsão da infra-estrutura correspondente. Está diretamente relacio- VIII – adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de
nada à letra ‘c’, pois indica que a instalação de uma atividade de grande expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental,
porte deve ser acompanhada de um upgrade da infra-estrutura, de for- social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;
ma a atender adequadamente os futuros usuários. O desatendimento
da diretriz contida nesta norma acarretaria problemas como no caso da Mais uma vez o Estatuto da Cidade remete aos cuidados que a ci-
dade deve ter com o meio ambiente. Uma cidade deve pensar em de-
4 Jurisprudência: TJSP, re. Des. Durval Pacheco de Matos, RDA 65/161; rel. Des. Alves Braga, RT senvolvimento e crescimento, mas sempre de acordo com os limites da
490490/66 e RT 270/169; TASP, rel. Juiz Acácio Rebouças, RT 281/642; rel Juiz J. Cavalcanti Silva,
RT 272/598; STF, 1ª T., rel. Min. Luiz Gallotti, RT 348/586.
sustentabilidade ambiental.

142 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 143
Os cidadãos necessitam de um mínimo para sobreviver com quali- deve, fundamentalmente, respeitar a primazia do interesse público so-
dade de vida em um meio urbano adequado, o saneamento básico e a bre o interesse de uma parcela pequena da população.
coleta de lixo adequada contribuem para isso. Partindo para o foco do nosso estudo, vê-se que esta diretriz não
Para Granziera, “A questão da sustentabilidade, assim, coloca-se sobre vem sendo satisfatoriamente atendida na preparação de Porto Alegre
o tripé da economia, sociedade e meio ambiente, que devam estar equilibra- para a Copa do Mundo de 2014. É nítido que, em razão deste megae-
dos. E cabe ao Poder Publico [...] compatibilizar o desenvolvimento econômi- vento, as atenções do Poder Público estão voltadas para as obras ne-
co, com a proteção do ambiente (...)”.(GRAZIERA. 2007. Pág. 181) cessárias para a sua realização, sendo os instrumentos utilizados em pri-
De igual maneira a Copa do Mundo nos traz uma reflexão com rela- vilégio da Copa, sem importar a real necessidade e aproveitamento da
ção aos padrões de produção e consumo da população, pois por se tra- população. A nosso ver, contrariando a diretriz em análise, o elemento
tar de um megaevento, estes padrões só tendem a aumentar em larga norteador para a aplicação dos instrumentos urbanos em Porto Alegre,
escala. Devem ser analisados os impactos que as obras terão também neste momento histórico, é, especificamente, a Copa do Mundo, e não
com as matérias primas utilizadas e com os resíduos gerados. o interesse da coletividade.
Os questionamentos que emergem são: a cidade de Porto Alegre Ressalta-se, porém, que a Copa do Mundo permite um aproveita-
está preparada para realização de um evento deste porte? Todos os cui- mento de recursos que, sem este megaevento, possivelmente não esta-
dados com relação ao meio ambiente foram tomados para a realização riam disponíveis para o município, eis que garante condições políticas e
das obras? E com relação à recepção dos turistas, a cidade está ecolo- sociais que possibilitam a captação de valores para tais investimentos. A
gicamente preparada para recebê-los? E após o evento, que cuidados Copa é, portanto, um importante catalisador de recursos e viabilizador
com meio ambiente estão sendo planejados? de obras já previstas e, em boa medida, benéficas para o município,
Faz-se necessário a realização de políticas publicas que assegurem ainda que sem a realização do megaevento dificilmente tais obras pu-
a realização da Copa do Mundo sem degradar o ambiente em que vive- dessem ser reputadas como prioritárias para o bem-estar geral da po-
mos, devendo observar-se estrito controle das devidas licenças para a pulação porto alegrense.
realização das obras, em nosso entendimento com o mesmo rigor tradi-
cionalmente aplicado em Porto Alegre. 2.6 Recuperação da valorização imobiliária

2.5 Política econômica e interesse coletivo As diretrizes IX e XI serão analisadas em conjunto.


IX – justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo
X – adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e de urbanização;
financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urba- XI – recuperação dos investimentos do Poder Público de que tenha
no, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral resultado a valorização de imóveis urbanos;
e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais; O desenvolvimento sustentável, como princípio norteador, impõe
O inciso X do art. 2º do Estatuto da Cidade apresenta uma diretriz que o processo de urbanização tenha a função de elevar a qualidade de
geral de política urbana que visa uma justa distribuição de benefícios vida de todos que vivem na cidade, rompendo a presente lógica de ex-
e prejuízos causados pelo processo de urbanização, de forma que os clusão e de segregação social (SAULE JÚNIOR, apud MATTOS, 2002). A
diversos instrumentos que o Poder Público dispõe para gerir o desenvol- distribuição justa dos encargos e dos benefícios do processo de urbani-
vimento urbano devem ser utilizados de maneira a atender equanimente zação representa o reconhecimento do princípio da diferença (igualdade
toda a população. A Administração Pública tem, portanto, que destinar distributiva de Rawls) na apropriação do espaço urbano. Essa distribui-
a maior parte de seus instrumentos para as áreas mais necessitadas na ção pode ser consubstanciada no financiamento de novos espaços e
cidade, não sendo justo que dirija, por exemplo, uma parcela maior do equipamentos públicos e coletivos, a serem implantados especialmen-
seu orçamento para regiões já bem dotadas de infra-estrutura. Assim, te em áreas com carência estrutural, como resultado da aplicação de

144 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 145
instrumentos de captação da valorização decorrente dos investimentos em zonas que possuem capacidade de efetuar o pagamento (FURTADO,
públicos (OSÓRIO, 2000, pág. 74). 1997; CÁCERES e SABATINI6 apud ARRIAGADA e SIMIONE, 2002).
O Estatuto da Cidade e o plano diretor de diversas cidades estabele- Os preceitos legais em nível nacional que autorizam uma contribui-
cem mecanismos que permitem devolver à coletividade, através do Poder ção ou taxa de valorização a ser usada para permitir ao setor público
Público, a valorização imobiliária decorrente dos investimentos públicos a captura do incremento do valor da terra associado ao investimento
efetuados na infra-estrutura urbana, como por exemplo, a Contribuição público, estão presentes em quase todos os países latino-americanos
de Melhoria, o Solo Criado, as Operações Consorciadas (OSÓRIO, 2000, (SMOLKA e AMBORSKI, 2000). No Brasil, essa captura de valor é par-
pág. 73). A Contribuição de Melhoria é um tributo, regida pelo Direito cialmente efetuada através da contribuição de melhoria, que foi intro-
Tributário. Tem como finalidade fiscal a arrecadação de receita aos cofres duzida na Constituição Federal em 1934. De acordo com a legislação
públicos, e uma de suas finalidades extra-fiscais é a recuperação do inves- brasileira, esse tributo tem como limite total o custo da obra e como
timento do poder público que tenha resultado em valorização de imóveis. limite individual a mais-valia imobiliária decorrente da obra. Em
Qualquer imposto sobre a propriedade em geral e, particularmente, função disso, a contribuição de melhoria somente pode ser instituída no
sobre o valor da terra, é uma forma de captura de plusvalias. Qualquer Brasil para cobrir o custo da obra que valorizou os imóveis e não para
ferramenta de planificação que tenha como finalidade a redistribuição captar a mais-valia imobiliária, a qual pode ultrapassar a despesa incor-
dos aumentos de valor do solo se aplica à idéia de captura de plusvalias
rida na implantação da obra (CALMON, 2003). Portanto, a Contribuição
(SMOLKA e AMBORSKY, 2000; ARRIAGADA e SIMIONE, 2000, FURTA-
de Melhoria é um tributo destinado a assegurar ao erário público ape-
DO, 2000). A Recuperação de Plusvalias diz respeito ao processo pelo
nas parte da valorização alcançada pela propriedade em decorrência da
qual o incremento do valor da terra é total ou parcialmente recuperado
obra pública, independente de ato do proprietário.
pelo setor público, através de tributos ou melhorias locais para o bene-
Em 2001, dos 4885 municípios brasileiros, aproximadamente 23%
fício da comunidade. Normalmente esse incremento decorre de ações
que apresentaram seus dados financeiros à Secretaria do Tesouro Na-
do setor público (pela concessão de autorização para o desenvolvimento
de usos do solo e densidades específicas ou por obras de infra-estrutura cional tiveram receitas parcas provenientes de contribuições de melho-
urbana) ou por força do mercado imobiliário, e raramente é provoca- ria (BRASIL, 2002). Em 2009, esse percentual caiu para 21%, para um
do pelos proprietários dos terrenos, diretamente. A insuficiência crônica cálculo efetuado entre os 5.439 municípios que apresentaram seus da-
na oferta de terra servida, a urbanização da pobreza e o hiato entre a dos à Secretaria do Tesouro Nacional, e a receita arrecadada com esse
base fiscal e as necessidades sociais tendem a tornar muito alto o efeito tributo foi de 0,4% do total da receita tributária municipal arrecadada
da provisão de serviços de infra-estrutura urbana sobre a valorização no período (STN, 2011). É um tributo subutilizado, com possibilidades
da terra (SMOLKA e AMBORSKY, 2000). Comparando as alternativas de crescimento de arrecadação. Em Porto Alegre, a Contribuição de
de cobrança de plusvalias que são centradas em obras com as que se Melhoria ainda não foi instituída. O pouco uso desse tributo deve-se à
restringem a alterações normativas do uso do solo, há indicações de dificuldade da individuação dos valores-limites do cálculo de apropria-
que apontam para uma maior viabilidade do segundo tipo, pois podem ção da valorização provocada pela obra. Outra dificuldade é o temor da
desenhar-se ad-hoc e existe o consenso sobre a necessidade de que antipatia pública que têm os políticos municipais de instituírem mais um
os instrumentos de planificação urbana devam internalizar externalida- tributo ao já muito onerado bolso do contribuinte, que é seu eleitor.
des5. Justifica-se a cobrança de plusvalias para obras públicas somente A valorização do preço da terra decorrente dos investimentos pú-
blicos transforma-se em elemento de segregação e gentrificação, pois
5 Uma externalidade se produz sempre que uma pessoa ou empresa realiza uma atividade que cria um padrão urbanístico que o detentor de menos renda não tem
afeta o bem-estar de outros que não participam dessa atividade, sem pagar nem receber com-
pensação por essa afetação. As externalidades podem ser positivas ou negativas, de acordo com mais a capacidade de acompanhar (OSÓRIO, 2000 pág. 73). No caso
o seu efeito. As externalidades positivas levam os mercados a produzir quantidades (no ponto de brasileiro, o anúncio da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas
equilíbrio entre oferta e demanda de serviços) inferiores às socialmente desejáveis e vice-versa.
Internalizar uma externalidade significa alterar os incentivos individuais de maneira que os agentes
econômicos levem em conta os efeitos externos de suas ações. Por exemplo, o governo pode inter- 6 Cáceres, Gonzalo & Francisco Sabatini (1998) Chile neoliberal sin instrumentos de recuperación
nalizar uma externalidade positiva através de subsídios, para aumentar a quantidade de equilíbrio de plusvalías: viejas y nuevas experiencias en Santiago, Documentos serie azul No 23, Instituto de
até a quantidade socialmente desejável (FATÁS, 2003). Estudios Urbanos, Pontificia Universidad Católica de Chile.

146 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 147
geraram um forte incremento de preços no mercado de solo urbano, brasileiras para sediar os megaeventos esportivos que se avizinham deve
em um processo perverso para o conjunto da população. Esse processo garantir que as parcerias público/privadas efetivadas a para a realização
imobiliário e de valorização do solo urbano, de acordo com as diretri- dos eventos respeitem conquistas jurídicas e políticas recentes.
zes do Estatuto da Cidade, poderia ser visto como uma possível fonte As exigências da FIFA, aliadas à ineficiente gestão da administração pú-
de recursos importantes para o enfrentamento dos problemas sociais blica, aos não raros casos de corrupção e à busca pelo lucro exorbitante das
decorrentes do próprio megaevento. Se a valorização imobiliária fosse empresas privadas que se envolvem na preparação do megaevento esportivo
recuperada, ainda que parcialmente, em benefício da coletividade, seria acabam por “naturalizar” no imaginário coletivo uma série de regras excep-
possível propor o direcionamento de recursos para o desenvolvimento cionais que deveriam ser percebidas como ilegítimas, por tudo aquilo que
urbano de zonas pobres atingidas pelos impactos da Copa e medidas flexibilizam em relação às regras gerais válidas para as situações cotidianas
como esta, infelizmente, não estão sendo tomadas. e para o conjunto da população. Entendemos como conquistas jurídicas ine-
O Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis, de competência mu- gociáveis, por exemplo, a gestão democrática das cidades; a transparência e
nicipal e instituído em Porto Alegre, é o único que faz a recuperação controle social dos gastos públicos e, finalmente (mas não menos importan-
da valorização imobiliária decorrente de qualquer obra de urbanismo te), a supremacia do interesse público sobre o interesse privado.
em Porto Alegre, pois quando os imóveis são vendidos, o imposto tem A reflexão sobre o caso de Porto Alegre demonstra que, neste ponto
como base de cálculo o valor de mercado, ou seja, o valor da venda do do percurso, as diretrizes estabelecidas para a política urbana pelo Esta-
bem, que inclui a valorização imobiliária decorrente de obras públicas. O tuto da Cidade estão sendo, em boa medida, ignoradas, como se a Copa
Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana, por sua vez, só adquire do Mundo fosse um evento à parte a justificar atos que não encontram
algum caráter de recuperação de plusvalias quando é feita a renovação respaldo na legislação. Se o poder público não for capaz de garantir o
da Planta de Valores. Mesmo assim, por diversos motivos, a Planta de respeito às diretrizes da política urbana preconizadas pela Constituição
Valores não apresenta 100% do valor de mercado, e nem é recomen- Federal, a sociedade civil tem legitimidade para denunciar as irregularida-
dável que seja assim. Em estudo efetuado em franjas urbanas, que são des e cobrar o respeito à nova ordem jurídico-urbanística brasileira, espe-
locais de novos loteamentos em lugares limítrofes com a zona rural, o cialmente agora que o Estatuto da Cidade comemora 10 anos de vigência.
preço dos terrenos chega a alcançar 300% após a implantação da infra-
es­trutura urbana, seja por agentes públicos ou privados (PERES, 2011). REFERÊNCIAS
Outros instrumentos de recuperação de plusvalias que poderiam
ser utilizados neste momento de preparação da cidade para a Copa são ARRIAGADA, Camilo; SIMIONE, Daniela. Acceso al Suelo, Impuestos Locales y Finan-
as operações consorciadas (inciso VI do art. 33 do Estatuto da Cidade) e ciamiento del Desarrollo Urbano: el Caso de Santiago de Chile. Lincoln Institute Re-
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não se verificou movimento neste sentido nem no Gigante da Beira Rio, edu/pubs/dl/708_simioni%20web%20paper%202.doc. Acesso em: 05 jul. 2003.
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paração do Brasil para receber a Copa do Mundo são impactos muito FRANCISCO, Caramuru A. Estatuto da Cidade comentado. São Paulo: Editora
significativos e não podem ser negligenciados. Especialmente os impactos Juarez de Oliveira, 2001.
que fragilizam a ordem jurídica brasileira devem ser avaliados com muito FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS; ERNST & YOUNG. Brasil Sustentável: impac-
cuidado. Em nosso entendimento, o processo de preparação das cidades tos socioeconômicos da Copa 2014. ERNST & YOUNG, 2010. Disponível

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150 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 151
retrizes gerais e dos instrumentos da política urbana, tais como, a efe- interesse social. O artigo 31, § 1º, da mesma Lei, realiza a definição
tiva aplicação do plano diretor, do direito de preempção, da operação do se entende por Operação Urbana Consorciada, dispondo que é “o
urbana consorciada, da outorga onerosa do direito de construir (solo conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo Poder Público
criado), dentre outros. Conforme Pagani (2009, p.185), o objetivo para municipal, com a participação dos proprietários, moradores, usuários
a consecução desta Lei foi “combater a especulação imobiliária”. (grifos permanentes e investidores privados”.
nossos) Sendo assim, no Estatuto da Cidade - Lei nº. 10.257, de 10 de julho
É Importante ressaltar que, afim de que ocorra uma Operação Urbana de 2001 - visualiza-se um padrão estabelecendo a exigência de uma lei
Consorciada, consoante o disposto em Lei, é essencialmente necessário a municipal específica (que deve ser debatida e aprovada na Câmara dos
participação efetiva dos proprietários, moradores, usuários permanentes Vereadores), remetendo ao plano diretor. É indispensável analisar que
e investidores privados com a coordenação do Poder Público municipal, os requisitos para a realização de uma Operação Urbana Consorciada,
para que seja possível a aplicação desse instrumento urbanístico. estão delimitados no artigo 32, “caput”, do Estatuto da Cidade. O artigo
Villela Lomar (2003, p.251) opina que não há a exclusão da parti- já mencionado possui como exigências: a delimitação da área de aplica-
cipação de outros habitantes e usuários da cidade, visto que uma das ção deste instituto jurídico-urbanístico, que esteja explícito qual será a
diretrizes fundamentais do Estatuto da Cidade é a gestão democrática sua finalidade e as transformações estruturais, a projeção de melhorias
da cidade. sociais e ambientais que serão atingidas na área demarcada.
O autor prossegue, registrando que a concessão urbanística pode Ademais, no artigo 33, incisos I a VII, do Estatuto da Cidade, há a
ser considerada um importante instrumento para que seja possível a disposição de que a lei municipal específica (que aprovar a Operação
realização de uma Operação Urbana Consorciada, visto que os objetivos Urbana Consorciada), obrigatoriamente, deverá relatar um plano urba-
podem ser concretizados sem que haja a excessiva liberação de verbas no específico de Operação Urbana Consorciada, o qual deve conter: a
por parte do Poder Público. Menciona para tanto, que a concessão ur- previsão da definição da área que será atingida, o programa básico de
banística não foi citada no rol dos instrumentos da política urbana arro- ocupação da área, o programa de atendimento socioeconômico à popu-
lados no artigo 4º, do Estatuto da Cidade, no entanto, a sua utilização lação diretamente afetada, a disposição de quais são as finalidades da
não sofre algum impedimento, visto que o rol presente nesse artigo é Operação Urbana Consorciada em questão, o Estudo Prévio do Impacto
exemplificativo, admitindo a utilização de outros instrumentos não des- de Vizinhança (EIV), o relato de qual forma de retribuição (contrapartida)
critos nesta Lei. (VILLELA LOMAR, 2004, p. 111) será exigida dos proprietários, usuários permanentes e investidores pri-
O autor bem conceitua o instrumento da concessão urbanística vados e expor qual é a forma compartilhada de controle da Operação
como o contrato em que, ocorrendo uma prévia licitação, o Poder Pú- Urbana Consorciada com representação da sociedade civil no caso es-
blico delega à determinada empresa ou consórcio de empresas a reali- pecífico. (VILLELA LOMAR, 2003, p.249)
zação da urbanização ou reurbanização de certa região da cidade com Alfonsin (2005, p.307) adverte que o artigo 33, inciso IV, do Estatu-
o intuito de implantar diretrizes urbanísticas elencadas na lei do plano to da Cidade, trata das finalidades da Operação, devendo o Poder Públi-
diretor. Em se tratando de Operação Urbana Consorciada, é indispen- co alegar quais são os objetivos a ser concretizados com a realização da
sável a utilização da lei municipal específica que tenha permitido a sua Operação Urbana Consorciada, respeitando o Princípio da Publicidade,
aprovação. (VILLELA LOMAR, 2004, p.111) observância indispensável à Administração Pública (disposto no artigo
Dallari (2001, p.23 citado por VILLELA LOMAR, 2004, p.113) re- 37, “caput”, da Constituição Federal de 1988) por meio da divulgação
memora que a concessão urbanística obteve acolhimento pela Lei nº. do propósito em utilizar este instrumento jurídico-urbanístico. O objeti-
10.257, de 10 de julho de 2001 - o Estatuto da Cidade. O artigo 2º, in- vo deve estar de acordo com o interesse público (a saber, o Princípio da
ciso III, desta Lei, estipula que uma das diretrizes gerais da política urba- Supremacia do Interesse Público sobre o Interesse Privado).
na, em nosso país, é a cooperação entre os governos, a iniciativa privada No artigo 33, § 1º, do Estatuto da Cidade, há a previsão legal de
e outros setores da sociedade no processo de urbanização, visando ao que a destinação dos recursos adquiridos pelo Poder Público municipal

152 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 153
com a realização de uma Operação Urbana Consorciada será para que modelo auxilia inúmeras formas de atuação da Administração Pública. É
ocorra a sua própria realização. (CABRAL, 2007, p.18) imperioso ressaltar que o regime de parceria exige a cooperação mútua
Estatui-se que o instituto urbanístico - Operação Urbana Consorcia- entre a Administração Pública (Setor Público) e os seus administrados
da - engloba o Poder Público municipal e há uma disposição expressa (Setor Privado). O intuito cooperativo é a base da Operação Urbana
em lei estipulando que a partir da aprovação da lei específica, todas as Consorciada.
licenças ou autorizações que forem expedidas de forma contrária com o Todavia, a Operação Urbana Consorciada que seja um projeto ou
plano da Operação Urbana Consorciada em questão, serão nulas, con- esteja em fase de implantação deve respeitar as diretrizes gerais do
soante o artigo 33, § 2º, do Estatuto da Cidade. (GASPARINI, 2002, Estatuto da Cidade e da lei municipal específica aprovada pelo Poder
p.185) Legislativo - o plano diretor de cada Município. Vale destacar que as
Pires de Oliveira e Pires Carvalho (2002, p.151) orientam que apli- diretrizes gerais englobam a garantia do direito a cidades sustentáveis,
cando o Princípio da Recuperação de Investimentos pelo Poder Públi- a justa distribuição dos resultados do processo de urbanização, a recu-
co, arrolado no artigo 2º, inciso XI, do Estatuto da Cidade, o Município peração dos investimentos do Poder Público que resulte na valorização
admite a emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção de imóveis urbanos, a urbanização de áreas ocupadas pela população
(CEPAC), a fim de serem leiloados ou utilizados como custeio da Opera- de baixa renda, a igualdade de condições entre os agentes públicos e
ção Urbana Consorciada, respeitando o disposto no artigo 34, “caput”, privados na realização de seus empreendimentos como um processo de
do Estatuto da Cidade. urbanização, utilizando como base o Princípio da Função Social da Pro-
Villela Lomar (2004, p.106-107) arremata que a fim de que seja priedade Urbana. (VILLELA LOMAR, 2003, p.250)
possível a realização da Operação Urbana Consorciada desejada, há Gasparini (2002, p.180) conceitua Operação Urbana Consorciada
uma autorização para que uma lei municipal específica possa permitir a apoiando-se no Estatuto da Cidade. Para este jurista, o instrumento ur-
emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC) banístico em questão pode ser definido como um conjunto de medi-
com o objetivo de estes serem alienados com o intuito de que ocorra das urbanísticas que possuem a coordenação e a aplicação pelo ente
uma antecipação dos recursos financeiros necessários para a execução municipal e cuja execução é realizada com a participação de terceiros,
das intervenções urbanísticas planejadas. possuindo a finalidade de obter transformações urbanísticas estruturais,
Ademais, prossegue o autor que, a tais Certificados de Potencial Adi- melhorias sociais e valorização ambiental em determinada área urbana
cional de Construção (CEPAC) há a permissão para serem livremente que contém disposição em uma lei específica com base no plano diretor.
negociados, no entanto, seu uso (ou direito de construir) torna-se res- O Poder Público municipal exerce uma administração pública, onde
trito aos imóveis presentes na área em que ocorre a Operação Urbana há a necessidade de realizar empreendimentos a fim de obter benefícios
Consorciada, observando para tal, a regra estipulada no artigo 34, §1º, a uma população interessada. Observa-se que os recursos financeiros
do Estatuto da Cidade. (VILLELA LOMAR, 2004, p. 106) disponibilizados ao custeio de uma obra pública são, frequentemente,
Mukai (2007, p.13-14) conceitua a Operação Urbana Consorciada em quantias exorbitantes, tornando necessário para a consecução dos
como um tipo especial de intervenção urbana que objetiva a transforma- investimentos almejados que se recorra aos dispositivos de gerencia-
ção estrutural de determinado setor de uma cidade. Nesse instrumento mento de grande complexidade. É viável, nesses casos, estabelecer uma
urbanístico há o redesenho deste setor, podendo seu espaço ser público parceria com o setor privado para a realização de uma Operação Urba-
ou privado; presenciam-se investimentos públicos e privados a fim de na Consorciada com o intuito de obter contrapartidas para a população
realizar a execução, alteração, manejo e transação dos direitos de uso e diretamente interessada.
edificabilidade do solo e as obrigações de urbanização. Mukai (2008, p.25) constata que a Operação Urbana Consorciada
Carvalho Filho (2009, p.218) define uma Operação Urbana Consor- é um conjunto de intervenções possíveis de serem implantadas em uma
ciada como sendo um instrumento de política urbana, que representa região urbana específica, cujo objetivo é solucionar os diversos aspectos
um instituto criado e desenvolvido com base no regime de parceria, cujo da infraestrutura urbana. Por conseguinte, há uma autorização para efe-

154 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 155
tivar a construção, por meio de contrapartidas, visando à melhoria da sociais da cidade e da propriedade urbana. Maricato e Ferreira (2002,
infraestrutura urbana na área a ser objeto de realização de uma Opera- p.229) entendem que esta é uma característica presente na Operação
ção Urbana Consorciada. Urbana Consorciada, em que há uma outorga onerosa com caráter es-
Enfim, a Operação Urbana Consorciada utiliza-se de mecanismos de pecial em uma área determinada, podendo haver um conflito entre os
operação do Direito Urbanístico demonstrando ser um instrumento útil interesses que a Lei visa proteger e o mercado imobiliário excludente,
ao planejamento das cidades. Em nosso entender, as diretrizes gerais do observando o descrito no artigo 34, do Estatuto da Cidade.
Estatuto da Cidade elencadas na lei municipal específica - o plano dire- Verifica-se que os Certificados de Potencial Adicional de Construção
tor - devem ser respeitadas na elaboração do plano de uma Operação (CEPAC) são lançados na Operação Urbana Consorciada específica, com
Urbana Consorciada e em sua posterior implantação. o Poder Público exercendo o seu controle. São títulos que possuem um
Dessa maneira, a Operação Urbana Consorciada é considerada um objetivo social, visto que podem ser vendidos a fim de ser possível a
conjunto de intervenções que possuem a coordenação do Poder Público reurbanização de uma favela, uma recuperação de cortiços, ou seja, seus
municipal (o Poder Executivo), cuja definição se faz presente na lei mu- recursos podem realizar melhorias em toda uma cidade. (MARICATO e
nicipal específica - o plano diretor, com a finalidade de preservar, recu- FERREIRA, 2002, p.230)
perar ou transformar áreas urbanas específicas. Tais intervenções urba- A Operação Urbana Consorciada faz a iniciativa privada realizar o
nísticas podem ocorrer em obras públicas ou privadas, com os agentes financiamento de recuperação em áreas onde ocorrerá a própria Opera-
públicos e privados que atuam na sua realização, assumindo obrigações ção, possibilitando a venda do direito ao adicional de construção. (MA-
determinadas. RICATO e FERREIRA, 2002, p.230)
A Operação Urbana Consorciada possui como fundamento cons- A lei municipal específica da Operação Urbana Consorciada deve
titucional, afim de que seja possível criar e disciplinar tal instrumento estar de acordo com as diretrizes delineadas no plano diretor. Para o
urbanístico, o Princípio da Função Social da Propriedade, remetendo urbanista Villela Lomar (2003, p. 253-254), o plano diretor deve apre-
ao artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal de 1988, que sentar os elementos básicos que possibilitem a sua clara identificação, a
tratam sobre a propriedade, tornando-a um direito fundamental e social. especificação das transformações estruturais objetivadas, as melhorias
Por conseguinte, o fundamento legal para regular a vigência deste sociais e ambientais que se pretendam concretizar, e, se possível for,
instituto está presente no Estatuto da Cidade, na Seção X, em seus arti- apresentar a enumeração das ações, dos programas e dos projetos que
gos 32, 33 e 34. O fundamento legal possibilita ao Município a utiliza- põem em prática as suas diretrizes e as do Estatuto da Cidade.
ção da Operação Urbana Consorciada como um instrumento de trans- Todavia, averba Villela Lomar (2003, p.258) que a Operação Ur-
formações urbanísticas. bana Consorciada pode ocorrer voluntariamente por empreendedores
Gasparini (2002, p.181) compactua o entendimento de outros ju- privados. Porém o Poder Público, obtendo recursos financeiros, está au-
ristas que entendem que o ente municipal possui a competência para torizado a promover o ordenamento do território, realizando empreen-
realizar a criação e a disciplina da Operação Urbana Consorciada, ob- dimentos de urbanização ou de renovação urbana a fim de concretizar
tendo como base legal o artigo 30, inciso VIII, instituído pelo legislador as diretrizes existentes na lei do plano diretor, respeitando o preceito
constituinte de 1988. Tal artigo está descrito no Título III, que regula constitucional que possui como objetivo, ordenar o pleno desenvolvi-
a organização do Estado, no Capítulo IV, o qual trata da competência mento das funções sociais da cidade, arrolado no “caput” do artigo 182,
dos Municípios. O inciso supracitado dispõe que compete ao Município da Carta Política de 1988.
“promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante As contrapartidas, nas palavras de Prestes, estão presentes em
planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do obras públicas que são resultado das finalidades da Operação Urba-
solo urbano”. na Consorciada, na destinação de bens imóveis realizados pela mesma
Registre-se que o Estatuto da Cidade dispõe que a Política Urba- operação a fim de cumprir as finalidades objetivadas, na destinação de
na possui como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções habitação de interesse social e na oferta de lotes com preço compatível

156 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 157
com a renda da população necessitada, bem como pode resultar em Urbana Consorciada, requisito exigido pelo artigo 34, §2º, do Estatuto
uma contrapartida de natureza financeira, com destino à conta relacio- da Cidade.
nada à Operação Urbana Consorciada. (PRESTES, 2009, p.181) Consoante Gasparini (2002, p.186), a lei específica que aprovar a
Seguindo com essa perspectiva, Villela Lomar (2003, p.270) afirma Operação Urbana Consorciada a fim de ser realizada em determinada
que as leis do plano diretor ou a lei municipal específica estão aptas a área da cidade, poderá conter previsão, regulamentação e autorização à
realizar a autorização para aprovar benefícios urbanísticos capazes de emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC).
serem executados por investidores e proprietários imobiliários a fim de Tais títulos urbanísticos são concedidos em razão da Operação Ur-
desenvolverem as obras e aos serviços essenciais à Operação Urbana bana Consorciada envolver construções acima dos índices urbanísticos
Consorciada uma requalificação urbanística disposta na lei do plano di- considerados dentro da normalidade para determinada área da cidade.
retor. Para a concretização do exercício do direito, é conferido pelo Município,
Villela Lomar (2003, p.272) expõe com clareza que a contrapartida que cobra certo valor, obtido em função das vantagens auferidas pelo
pode resultar na autorização legal para a instituição de Certificados de beneficiado. (GASPARINI, 2002, p.186)
Potencial Adicional de Construção (CEPAC) e na determinação da aplica- Em época de realização de um megaevento esportivo, tal como a
ção dos recursos na área onde se enquadra a Operação Urbana Consor- Copa do Mundo de 2014, estabelece-se a necessidade de oferecer um
ciada citada no artigo 33, § 1º, do Estatuto da Cidade. amplo debate político-jurídico, com o intuito de propiciar a inauguração
Escrevem Carvalho Filho e Fortini (2008, p.253), sustentando que de um efetivo processo participativo, onde haverá a análise dos con-
na realização de uma Operação Urbana Consorciada, estão presentes os juntos de intervenções e medidas propícias a serem implantadas nas
atos de consentimento estatal em que o Poder Público demonstra que cidades-sede dos jogos.
concorda que os particulares realizem o exercício das atividades de seu Tais intervenções e medidas possíveis de serem aplicadas a fim de
interesse. Entre tais atos estão presentes as licenças e as autorizações. ocasionar a realização da Copa do Mundo de 2014, devem sofrer uma
Há a regulamentação no artigo 34, “caput”, § 1º e § 2º, do Estatuto análise de planejamento urbanístico de médio e longo prazo. Entende-
da Cidade, de que o Município possui a competência para expedir Cer- -se que os investimentos em recursos públicos devem se dar em obras
tificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), os quais serão adequadas ao capital das cidades-sede, visando ao interesse público.
alienados em leilão ou utilizados diretamente no pagamento das obras Para tanto, o Poder Público deve estabelecer um planejamento de-
necessárias à Operação Urbana Consorciada em questão. mocrático envolvendo a participação da sociedade atingida com a re-
Trata-se de pagamento em títulos públicos, visto que possuem um alização das obras para a concretização da Copa do Mundo de 2014.
valor, valendo como se fosse moeda corrente, podendo ser um meio O método de planejamento urbanístico de médio e longo prazo mais
de pagamento efetuado pelo Município aos terceiros responsáveis pela viável para a realização deste evento esportivo mundial é a utilização do
execução das obras. (CARVALHO FILHO e FORTINI, 2008, p.257) instrumento urbanístico - Operação Urbana Consorciada - prevista no
Faz-se mister ressalvar que a livre negociabilidade de tais certifica- Estatuto da Cidade (Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001) servindo
dos está presente no artigo 34, § 1º, do Estatuto da Cidade. A seu tur- de apoio ao Poder Público para a realização de melhorias na infraestru-
no, a conversão dos certificados em direito de construir só poderá ser tura urbana, possibilitando alcançar a plena acessibilidade nas cidades
consumado na área em que ocorrer a Operação Urbana Consorciada. beneficiadas com tal megaevento esportivo.
Segundo estatui Carvalho Filho e Fortini (2008, p.259), a constru- Entende-se por plena acessibilidade o livre trânsito nas cidades a
ção que for realizada acima do coeficiente de aproveitamento básico todos os residentes e aos turistas. É cabível a observação de que tal
dependerá de duas leis para obter a aprovação. Uma lei aprovará o acessibilidade é direito de todos, independentemente do meio social
plano diretor, o qual ficará responsável pela fixação das áreas em que a em que se esteja inserido, devendo estar presente o respeito ao direito
construção está sujeita a ultrapassar o limite. Outra lei é uma lei especí- à moradia e ao usufruto de uma cidade com infraestrutura adequada.
fica, a qual possui a competência para realizar a aprovação da Operação Em se tratando de infraestrutura, é importante a existência de aero-

158 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 159
portos que comportem a elevação na demanda de turistas (em época estádios (sendo nove públicos e dois privados), estima-se em torno de
de ocorrência de megaeventos esportivos, tal como a futura Copa do 5,1 bilhões, ou seja, 187 % a mais do que a previsão realizada pela
Mundo), de vias terrestres onde haja o livre trânsito de pedestres e dos Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em 2007, quando o Brasil foi
diversos meios de transporte, de uma rede hoteleira de boa qualidade, escolhido para sediar a Copa do Mundo de 2014. (VEJA, 2010)
de restaurantes, de shopping-centers, de estabelecimentos comerciais, O Tribunal de Contas da União (TCU) - órgão de fiscalização das
de supermercados, etc. contas da Federação, conforme disposição constitucional - disponibiliza
É imperioso que, nas cidades-sede de uma Copa do Mundo, a vio- através de meio eletrônico, a prestação de determinadas informações
lência seja efetivamente combatida pelos órgãos públicos e privados; relevantes à sociedade. Acerca da situação do estádio do Beira-Rio, lo-
que a Educação obtenha bons índices; que o Sistema de Saúde seja ade- calizado em Porto Alegre - RS, demonstra-se os seguintes dados: a ine-
quado à demanda, havendo vaga nos leitos hospitalares, profissionais xistência de recursos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
nos postos de saúde; e que a Segurança seja efetiva, com a implantação Econômico e Social) com o intuito de prestar auxílio na reforma deste
de um adequado sistema prisional, com a existência de uma boa admi- estádio; as obras estão sendo custeadas com recursos da iniciativa pri-
nistração pública e com a Justiça sendo eficiente. vada, incluindo o Sport Club Internacional; o estádio que será sede do
O instituto urbanístico – Operação Urbana Consorciada – é um Mundial em Porto Alegre - RS, realizou a previsão inicial de investimen-
instrumento definido na legislação infraconstitucional (o Estatuto da Ci- tos em torno de R$ 130 milhões; consoante o relatório do SINAENCO
dade), possuindo amparo nas normas e princípios constitucionais, pos- (Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consul-
sibilitando um efetivo controle da sociedade acerca das intervenções tiva), o estádio do Beira-Rio iniciou a demolição de sua arquibancada
urbanas efetuadas com base na utilização do capital privado, concomi- em dezembro de 2010; o Ministério do Esporte, em seu relatório de
tantemente com o capital público. Há a possibilidade de estabelecimen- fevereiro de 2011, dispõe que a obra está em situação de “drenagem e
to de uma Parceria Público-Privada (PPPs) para a consecução de investi- cobertura”. (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2011)
mentos nestas obras, sendo o ideal para a realização de um megaevento Raquel Rolnik refere que estão obtendo aprovação inúmeras excep-
esportivo como será a Copa do Mundo de 2014. cionalidades para a realização da Copa do Mundo de 2014, relativas à
Caso o Poder Público realize uma Operação Urbana Consorciada, Lei de Licitações (Lei nº. 8666, de 21 de junho de 1993), bem como
o capital investido pela iniciativa privada deverá ser investido na reali- à isenção de impostos, e a desnecessidade de determinadas garantias
zação das obras nas áreas urbanas, possibilitando além de um efetivo exigidas em épocas normais, tais como a realização de alterações no
controle social, a garantia da segurança jurídica com o capital investido plano diretor dos Municípios, não perpassando pelos processos normais
pelos particulares obtendo um retorno satisfativo à população residente de alteração. Tal quadro excepcional está sendo votado pelas Câmaras
nas cidades-sede e aos turistas que nelas transitarem2. Municipais, Assembleias Legislativas e o Congresso Nacional por meio
Importa ressaltar que nos estádios do Beira-Rio (time sul-riogran- da utilização das Medidas Provisórias (que tem força de lei, mas não
dense – Sport Club Internacional), em Porto Alegre, no Estado do Rio são leis), decretadas pelo Poder Executivo Nacional. (RAQUEL ROLNIK,
Grande do Sul, e da Arena da Baixada (time paranaense – Atlético – PR), 2011) (grifamos)
em Curitiba, no Estado do Paraná, as obras de construção e reforma na Tais reformas e ampliações deveriam ter sido realizadas por meio
infraestrutura serão realizadas através do patrimônio privado. Isto é, as de uma Operação Urbana Consorciada, com a instituição de parcerias
arenas restantes terão suas obras custeadas pelo patrimônio governa- entre os Poderes Público e Privado, e consultando a população dire-
mental. (VEJA, 2010) tamente interessada, com o objetivo de estabelecer um procedimento
A revista Veja, já referida, disponibiliza o dado de que, atualmente, democrático.
o custo para investir em obras para a realização do Mundial, em onze A Prefeitura Municipal de Porto Alegre elaborou o Projeto de Lei
Complementar nº. 608 de 2009, aprovado pela Câmara dos Vereado-
2 Embora a imprensa escrita não seja considerada fonte científica, trazemos as notícias inseridas res, com o mesmo fundamento de possibilitar a modernização do está-
no presente trabalho como mera ilustração do debatido.

160 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 161
dio de futebol com vistas à Copa do Mundo de 2014. Esta Lei Comple- a responsabilidade social de prestar contas aos cidadãos dos recursos a
mentar nº. 608 de 2009 discorre a respeito de outra área em que o serem utilizados à realização das obras para a Copa do Mundo de 2014,
Sport Club Internacional possui a propriedade, e as alterações objetivam possibilitando a participação popular. (grifamos)
elevar o valor de mercado do imóvel, ampliando a taxa de ocupação e Impõe-se a implantação de um efetivo sistema de fiscalização dos
dos índices de aproveitamento da área, permitindo a sua destinação ao investimentos realizados nas obras a fim de possibilitar a ocorrência da fu-
uso residencial qualificado, com a alegação de realizar vendas a fim de tura Copa do Mundo, no Brasil. Sugere-se a presença da iniciativa privada
obter recursos para serem investidos na construção da cobertura da neste processo, estabelecendo um regime democrático de participação.
arena. (CAFRUNE e GONÇALVES, 2009) Contudo, analisando a Lei nº. 10.257, de 10 de julho de 2001 – o
A fim de atender às estratégias de planejamento, Porto Alegre - RS, Estatuto da Cidade – observa-se que o instrumento urbanístico adequa-
tornou - se objeto de políticas de reestruturação, havendo investimentos do à realização das obras para a Copa do Mundo de 2004, em Porto
de organizações empresariais com a atuação da gestão pública. Tal fato Alegre - RS, seria a Operação Urbana Consorciada (instrumento previsto
foi possível com a flexibilização das normas, da realização das obras pú- na Lei supramencionada), o que não foi realizado, podendo trazer con-
blicas, da implementação de políticas atrativas desta forma de investir, sequências negativas para a cidade de Porto Alegre - RS.
com o auxílio da orientação e financiamento dos organismos internacio- Por consequências negativas em face da não utilização do instrumen-
nais, tais como o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvol- to urbanístico adequado à realização das obras para a Copa do Mundo
vimento (BID) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a de 2014, podemos destacar o risco de não haver a justa distribuição
Ciência e a Cultura (UNESCO). (CAFRUNE e GONÇALVES, 2009) dos benefícios e ônus do processo de urbanização e a existência de um
Em suma, houve a flexibilização da legislação urbanística e o não planejamento urbano municipal ineficiente. Além disso, não haverá a
cumprimento à legislação ambiental. efetiva parceria e coordenação entre os setores público (Poder Público)
No Jornal do Comércio foi divulgada a matéria “Ministro das Cida- e privado (iniciativa privada) municipais, concomitante com a participa-
des espera PAC da Copa até metade do mês”, onde há a informação de ção popular (proprietários, moradores e usuários permanentes), além de
que o levantamento realizado pelo mesmo jornal demonstra que a Copa não ocorrer significativas melhorias sociais e na infraestrutura urbana.
do Mundo de 2014 poderá gerar aproximadamente R$ 6 bilhões em in- Haverá dificuldade em realizar a devida fiscalização dos investi-
vestimentos para a cidade de Porto Alegre e sua Região Metropolitana, mentos nas obras, dando margem aos desvios burocráticos da própria
conforme citado por Echeverria (2010). função administrativa com a excessiva liberação das verbas pelo Poder
Echeverria (2010) realiza oportuna observação ao destacar que na Público. É imperioso que o Poder Público municipal efetivamente exerça
cidade de Porto Alegre deve-se realizar “intervenções estruturantes, a sua função de controle em sua atuação. Entende-se ser necessário ha-
principalmente no que diz respeito à mobilidade urbana”, fazendo a res- ver a compatibilidade entre os interesses público e privado, originando
salva de que “este foi o item mais exigido desde o início do processo de a existência de um intuito cooperativo. É imprescindível a presença do
candidatura”. Em certo momento, a Prefeitura de Porto Alegre, possibi- capital de investimento público e privado, com o intuito de ocasionar o
litou a liberação para “o início das obras no Estádio Beira-Rio, através desenvolvimento das atividades econômicas. Para tanto, deve haver a
das licenças ambientais, já que, sem estas, nenhum clube poderia reali- exigência de uma contrapartida financeira ou de outra natureza, a fim de
zar qualquer intervenção”. Neste caso, dever-se-ia utilizar o instrumento instituir benefícios urbanísticos.
urbanístico do Estudo Prévio de Impacto de Vizinhança (EIV), requisito Para bem finalizar, opinamos que, com a não realização de uma
exigido para a realização de uma Operação Urbana Consorciada. Operação Urbana Consorciada, na cidade de Porto Alegre - RS, haverá a
Conclui-se que a Copa do Mundo de 2014 oportunizará uma ampla não concretização das políticas públicas urbanas, pois a iniciativa priva-
visibilidade ao Brasil no cenário internacional, incentivando o turismo, da será atuante, no entanto, não haverá a efetiva participação popular.
ampliando os negócios e intensificando as relações internacionais e re- Nesse caso, não se concretizará a gestão democrática da cidade, e con-
gionais. Os órgãos governamentais, em todas as suas esferas, possuem sequentemente, a justiça social. (grifamos)

162 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 163
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CAPÍTULO III

Gestão Democrática e Direito ao


Planejamento Urbano

166 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Gestão democrática da cidade:
reflexões críticas
Fábio Scopel Vanin1

Resumo: A gestão democrática da cidade visa assegurar a


participação da população na construção e na definição de
instrumentos, que garantam a execução da política urbana
e a consecução dos seus objetivos. Entre outras formas de
participação, estão previstas a audiência pública na cons-
trução do Plano Diretor e os Conselhos de Desenvolvimento
Urbano, que tem a finalidade de garantir que as ações dos
governos neste setor sejam convergentes com os anseios da
população. Entretanto, há casos, em que na prática, estes
instrumentos são desvirtuados, sendo utilizados unicamente
para referendar decisões políticas já tomadas. Desta forma,
é necessária uma reflexão crítica acerca destes instrumen-
tos, para que se garanta sua efetividade.

Introdução

A gestão democrática é uma característica da Política Urbana do


Brasil. Neste sentido, a Constituição Federal de 1988 prevê, desde sua
promulgação, a participação de associações na construção do planeja-
mento urbano das cidades. Entretanto, é com o advento do Estatuto da
Cidade, que ela se torna uma diretriz da política urbana, garantindo a
participação da população de diversas formas, entre as quais estão as
audiências públicas na construção do Plano Diretor e os Conselhos Mu-
nicipais de Desenvolvimento Urbano.
A verdade é que a noção preponderante de democracia que ainda
impera na sociedade brasileira é aquela calcada na ideia única de repre-
sentação política, o que possibilita um desvirtuamento na utilização des-
tes instrumentos de participação popular, transformando-os, ao invés de
um espaço de troca de ideias e de construção, como um local onde são
referendadas posições previamente definidas pelas autoridades.
1 Mestrando em Direito Ambiental UCS – Especialista em Direito da Economia e da Empresa
FGV/RJ – Advogado OAB/RS. Professor e Coordenador do Curso de Ciência Política da Faculdade
América Latina.

168 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 169
Assim sendo, é necessário que se faça uma reflexão acerca dos efei- sigilo, da arbitrariedade, do tráfico de influencia; aumento do grau de
tos práticos da utilização destes instrumentos, justamente para que, ao correspondência entre as políticas públicas e as demandas sociais. 3
implementá-los, seja garantida a efetividade da participação da popula-
ção, conforme foi previsto na legislação. Apontadas as finalidades e a previsão constitucional sobre o tema, é
necessário que se avance, abordando também os preceitos contidos no
Estatuto da Cidade sobre a gestão democrática, para identificar qual o
Questões pertinentes à verdadeiro significado que se busca na participação da população.
Gestão Democrática das Cidades Conforme dispõe M. Bucci, “a gestão democrática remete a ideia
de um novo pacto territorial, em que o Direito não se distancie da Jus-
O planejamento da ocupação urbana dos Municípios passa pela tiça, mas garanta que a cidade seja espaço de convivência de todos os
avaliação e pelo enfrentamento de várias problemáticas, dentre as quais seus habitantes” 4, e nesse sentido Estatuto da Cidade traz, como uma
podem ser citadas, a regulação do mercado imobiliário, a destinação de suas diretrizes gerais, o princípio democrático, que tem seu desdo-
de recursos para investimento em infraestrutura urbana e a busca de bramento no art. 43, onde está disposto os instrumentos para a sua
eficiência na gestão pública. Ao lado destas questões, pode ser incluída implementação, dentre os quais encontram-se os órgãos colegiados de
a gestão democrática da cidade, prevista na Constituição Federal e do política urbana; debates, audiências e consultas públicas; conferências
Estatuto Cidade, e que dispõe sobre a necessidade de participação da sobre assuntos de interesse urbano; e a iniciativa popular de projeto de
população em determinados processos decisórios que envolvam o pla- lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano.
nejamento urbano. Nestes termos, pode-se perceber que o legislador garantiu que a
Nesse sentido, um dos preceitos a serem observados pelo Muni- participação da população no processo de planejamento da cidade
cípio, conforme dispõe a Constituição Federal é “a cooperação das as- pode se dar de diversas formas, entre elas, a Audiência Pública no pro-
sociações representativas no planejamento municipal” 2. Segundo N. cesso legislativo de construção do Plano Diretor, com será visto a seguir.
Saule Junior não se pode observar esse preceito isoladamente “fazendo
crer que apenas as associações poderão participar”, segundo o autor, As Dinâmicas e as Problemáticas da Audiência Pública
o sentido dado pela norma “passa pela ideia de heterogeneidade dos
participantes, sejam eles associações ou cidadãos”. Além disso, mere- Ao tratar do Plano Diretor, o Estatuto da Cidade também previu que
ce destaque que há o entendimento de que “é preciso garantir uma durante o processo legislativo que trata de sua elaboração, deverá ser
maior participação em todas as etapas do processo decisório, de forma garantida a “promoção de audiências públicas e debates com a partici-
a não caracterizar apenas o referendo, execução e sugestão por parte pação da população e de associações representativas dos vários seg-
do agente”. Segundo N. Saule Junior a participação popular no planeja- mentos da comunidade” 5 entretanto, segundo L. Alochio, a participação
mento da cidade tem várias finalidades: popular na construção do Plano Diretor, normalmente é abordada de
forma limitada, onde se têm somente relacionado “a necessidade de au-
A participação popular no planejamento e na gestão da cidade apre-
senta várias finalidades: controle e fiscalização social; juridicização e 3 SAULE JUNIOR, Nelson; CHUERI, Thais de Ricardo; VALLE, Raul Silva Telles do. Plano Diretor do
racionalidade no processo decisório; legitimidade; imposição de li- Município de São Gabriel da Cachoeira: Aspectos relevantes da leitura jurídica. In SAULE JUNIOR,
mites a discricionariedade administrativa, ruptura das tradições de Nelson. Direito Urbanístico: Vias Jurídicas das Políticas Urbanas. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor,
2007. P. 274-275.
2 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ 4 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. p. 335-354. In DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 337-338.
constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 13.11.2010. Art. 29. O Município reger-se-á por
lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois ter- 5 BRASIL. Lei n. 11.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Consti-
ços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos tuição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível
nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: XII - cooperação em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 06/01/2010. Art. 40.
das associações representativas no planejamento municipal. § 2o O plano diretor deverá englobar o território do Município como um todo.

170 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 171
diências públicas como corolário da gestão da democrática das cidades” forma, “o próprio projeto já estaria confeccionado com a opinião pública
tal questão, para o autor, apresenta-se como um problema, já que “o ouvida” e, somente deveria ocorrer no trâmite do processo legislativo,
método das audiências públicas não é um gênero: é uma entre inúmeras no caso de ser possível o poder de emenda, caso em que, o Poder Le-
espécies que permitem a participação popular democrática direta”. 6 gislativo deveria ouvir a população em novas audiências públicas, assim
L. Alochio entende que “não necessariamente a participação popu- “a população seria ouvida tanto na fase preliminar quanto no processo
lar deva seguir o formato proposto (ou imposto) pelo Estatuto da Cida- legislativo, perante os Parlamentos, caso as ideias iniciais tenham sido
de” fazendo um pertinente questionamento: “Será que a participação alteradas”. 9
não pode ocorrer de outra forma (até mais eficaz) do que a imaginada Desta forma, “as audiências públicas (processos de participação po-
pelos defensores dos modelos de uma assembleia?”: pular) nos processos de elaboração/implantação dos planos, e também
nos momentos de alteração e revisão, são verdadeiros atos-condição”
Não necessariamente uma reunião em assembleia física seria a me- considerando-se que “um ato-condição é aquele elemento, sem o qual,
lhor forma – ou mais democrática – para tal representação: pode ha- uma fase posterior não se pode desencadear” 10, sendo assim, o proces-
ver a consulta pública por meio da rede mundial de computadores,
so de participação popular faria parte de uma fase pré-legislativa 11, e
por exemplo. Enfim, é preciso afastar a visão paupérrima de que uma
assembleia ou reunião, com pessoas levantando a mão para votar, sua ausência faria com que o projeto já estivesse viciado, “antes mesmo
vá mudar o rumo do planejamento. Esse estereótipo, utópico, pouco de deflagrado o processo legislativo”, em outras palavras o autor defen-
acrescentou até agora, concessa venia, a não ser na visão de seus de que “as audiências públicas sejam ato-condição para a validade do
defensores. 7 projeto de lei” e não “parcelas do processo legislativo”. 12
Embora trazidas essas críticas sobre o modelo imposto, o autor res-
Não bastasse a possibilidade de outros formatos, segundo o mesmo salta que “não se deseja o fim dessas audiências, mas uma discussão
autor, a audiência pública, que ocorre sem uma devida regulamenta- mais coesa, a fim de que se estabeleçam garantias para a própria audi-
ção dá espaço para utilização de “expedientes criativos” por parte de ência, em vez de a deixarmos como campo fértil para manobras de toda
empreendedores da construção civil e outros interessados da iniciativa espécie” 13 e entende indispensável a participação popular na constru-
privada, como por exemplo “a cooptação de pessoas” que “em troca de ção do Plano Diretor, isto porque, “o direito de conhecer a mobilidade
lanche ou de um ínfimo pagamento” que se fazem presentes nas audiên- das normas urbanísticas é condição sine qua non para a validade do
cias públicas “votando de acordo com a determinação dos cooptadores” planejamento urbano, diante do modelo histórico de planejamento, as-
e “ocupando a quase totalidade dos lugares disponíveis no recinto das sumido pelo legislador constituinte”. 14
audiências, excluindo a população realmente interessada”. 8 Verifica-se, com os argumentos dos autores L. Alochio e N. Saule
Além da crítica ao formato “audiência pública / assembleia” outro Junior, duas constatações: Primeiro, há uma necessidade de ampliação
ponto, em que o autor defende uma reflexão, refere-se ao momento em
que é realizada a audiência. Na opinião de L. Alochio, a participação de- 9 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
veria ocorrer antes do início do processo legislativo, uma vez que, desta Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 213.
10 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 237.
6 Cf. ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares
e Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 233. “O que se faz importante 11 Cf. SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação de Leis. 2. Ed. São Paulo: Ma-
é um processo participativo. E tal deve ser dissociado da visão física de um auditório. Até por uma lheiros, 2006. p. 182. “A fase pré-legislativa desdobra-se em três momentos: informação, definição
razão: em nenhum lugar a Constituição Federal faz menção à audiência pública. Ocorre uma indu- e formulação”.
ção constitucional a participação democrática. [...] reduzir o discurso do processo de participação 12 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
popular à questão de audiências publicas é sobremaneira empobrecê-lo”. Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 238-239.
7 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e 13 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 212-214. Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 248.
8 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e 14 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 245-246. Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 242.

172 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 173
no debate, saindo das associações e passando para a população como nesse sentido, R. Leal, analisando o pensamento de Edmund Burke, dis-
um todo, sendo necessária a observação e construção de critérios que põe que “um dos principais fins da deliberação é o de produzir amplos
atentem para os riscos do desvirtuamento da participação na forma de consensos sobre temas de interesse comunitário, atribuindo verdadeira
assembleia. Segundo, há uma convergência dos autores no sentido que função epistêmica aos procedimentos deliberativos” e nesse sentido,
o debate não deve ficar restrito ao projeto de lei, mas sim, deve aconte- tem a função “de demarcar, através da discussão racional, o verdadeiro
cer inclusive - senão principalmente – na fase de construção do projeto. interesse da Nação”. 16
Ademais, os apontamentos críticos do autor L. Alochio reforçam que M. Bucci dispõe que “o local por excelência da formulação da polí-
não basta positivar desejos e demonstram como um instituto criado para tica urbana com a participação direta dos cidadãos e habitantes são os
garantir a eficácia do planejamento através da participação pode tornar- conselhos de desenvolvimento urbano”. A criação do conselho de desen-
-se uma barreira na sua implementação. Entretanto, as críticas do autor volvimento urbano é obrigatória, conforme dispõe o art. 43 do Estatuto
referem-se ao formato de assembleia, que é somente um dos previstos da Cidade, tratando-se de “organismos híbridos” que não serão nem “in-
no Estatuto da Cidade. Outro exemplo entre os elencados na norma, são teiramente comunitários, nem propriamente estatais”. 17 A criação deve
os conselhos que, teoricamente, originam-se de uma diferente corrente ser feita por lei municipal, prevendo a composição, a duração dos man-
que trata da democracia direta, como será abordado a seguir. datos, forma de indicação ou eleição dos participantes, além de definir
quais serão as atribuições e a definição, e, principalmente, se o papel do
conselho é consultivo ou deliberativo, como bem aponta M. Gohn:
Conselhos de Desenvolvimento Urbano:
Limitações e Competências Apesar da legislação incluir os conselhos como parte do processo de
gestão descentralizada e participativa, e constituí-los como novos ato-
res deliberativos e paritários, vários pareceres oficiais têm assinalado
M. Pereira propõe, para efeito de análise, as correntes de demo-
e reafirmado o caráter apenas consultivo dos conselhos, restringindo
cracia direta podem ser divididas em dois grandes grupos “que se dis- suas ações ao campo da opinião, da consulta e do aconselhamento,
tinguem pela interpretação das decisões coletivas” segundo o autor as sem poder de decisão ou deliberação. A lei vinculou-os ao Poder Execu-
duas correntes são a “agregativa” que concentra as teorias democráticas tivo do Município, como órgãos auxiliares da gestão pública. É preciso,
centradas no voto e a “deliberativa” que dispõe sobre as teorias de- portanto, que se reafirme em todas as instâncias, seu caráter essencial-
mocráticas centradas no diálogo, nesse sentido, “as teorias centradas mente deliberativo, já que a opinião apenas não basta. Nos municípios
no voto defendem um modelo no qual as preferências já estão dadas” sem tradição organizativa-associativa, os conselhos têm sido apenas
sendo indispensável, para que haja eficiência na sua utilização “uma jus- uma realidade jurídico-formal, e muitas vezes um instrumento a mais
nas mãos dos prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade,
ta agregação destas preferências”. Já, as teorias deliberativas, “buscam
como seus representantes oficiais, e não atendendo minimamente aos
desenvolver o processo de formação de vontade através do diálogo, que objetivos de controle e fiscalização dos negócios públicos. 18
precedem o voto”. 15
Na gestão democrática das cidades estão previstos instrumentos O caráter deliberativo dos conselhos é essencial que se substitua
baseados nos dois modelos. O modelo agregativo, através das audiên- “as relações com a sociedade no sentido de mera contribuinte e/ou des-
cias públicas, como por exemplo, no processo legislativo que dá origem
ao Plano Diretor e fora abordado até aqui. O modelo deliberativo é ma-
16 LEAL, Rogério Lesta. Demarcações Preliminares da Democracia Representativa: Matrizes Ha-
terializado através da figura dos conselhos, como será trabalhado a par- bermasianas. p. 10-98. In LEAL, Rogério Lesta (Org.). A Democracia Deliberativa como nova matriz
tir de agora. Cabe destacar, que a democracia deliberativa vem sendo de gestão pública: alguns estudos de casos. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2011. p. 12.
apontada por alguns estudos como uma nova matriz de gestão pública, 17 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. p. 335-354. In DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 341-342.
15 PEREIRA, Marcus Abílio Gomes. Modelos democráticos, deliberativos e participativos: similitu- 18 GOHN, Maria da Glória. O papel dos Conselhos Gestores na Gestão Urbana. In Repensando a
des, diferenças e desafios. p. 421-452. In DAGNINO, Evelina; TATAGIBA, Luciana (Org.). Democra- Experiência Urbana na América Latina: questões, conceitos e valores ed. Buenos Aires : CLACSO,
cia, Sociedade Civil e Participação. Chapecó: Argos, 2007. p. 421. 2000. p. 179.

174 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 175
tinatária dos serviços públicos, para uma lógica de atuação e (co)res- estatais” 22, entretanto, pela abordagem apresentada, percebe-se que
ponsabilidade dos autores sociais com as decisões”, nesse sentido, o embora a intenção do legislador tenha sido esta, é necessário cautela
entendimento dos autores R. Hermany e H. Pereira, podem ser trazidos na formulação das regras de implementação destes instrumentos, que
para esta análise, uma vez que, conselhos meramente consultivos não somente serão efetivos se conseguirem transmitir para a população de
contribuem para “o comprometimento e a responsabilidade das comu- forma clara e precisa os apontamentos técnicos, e, a partir deles iniciar
nidades locais no processo de gestão”. 19 um processo de construção de um planejamento urbano, que consiga
Além deste aspecto, outra questão a ser verificada e que impactará identificar e positivar, de maneira racional, os anseios sociais.
na efetividade de ação dos conselhos de desenvolvimento urbano é o
fator inerente a sua composição. Segundo a autora M. Bucci, “é preciso
que o Poder Público seja adequadamente representado” e nesse sen- Conclusões Articuladas
tido, um excesso de representação “transformaria o conselho em um
espaço de mera legitimação e referendo das decisões previamente to- 1. A gestão democrática, diretriz da política urbana, tem como
madas pelo Poder Executivo” e, uma sub-representação significaria “os exemplos de desdobramento, a audiência pública, que ocorre durante o
representantes da Prefeitura meros mensageiros aos escalões superio- processo legislativo do Plano Diretor e os Conselhos de Desenvolvimen-
res, sem o poder de negociar soluções e criar alternativas construtivas to urbano;
dentro do conselho”. O mesmo dilema apresenta-se em relação a socie- 2. Os instrumentos abordados no artigo, embora possam ser en-
dade civil, de modo que não haja uma distribuição desigual dos assen- quadrados em matrizes teóricas de democracia direta distintas, sendo a
tos no conselho de modo a não permitir que um setor vem a “sufocar o audiência pública exemplo do modelo agregativo, e os conselhos do mo-
poder dos demais” pelo excesso de espaço. 20 delo deliberativo, têm uma finalidade em comum, que é dar efetividade
Além desses aspectos, para que os conselhos cumpram o seu papel a participação da população, garantindo a construção de um projeto de
de instancias deliberativas, como instrumento de dialogo e construção de cidade baseado nos objetivos e nas diretrizes da política urbana;
soluções, também é indispensável que sejam disponibilizados meios que 3. Uma reflexão crítica acerca destes instrumentos é necessária para
garantam o seu efetivo funcionamento e isso diz respeito “a dotação orça- evitar que problemas de ordem prática desvirtuem sua funcionalidade
mentária própria” e “suporte técnico para o exercício das funções próprias”, e não garantam a efetiva participação da população na condução dos
além da atenção aos problemas da “pulverização das demandas nos conse- rumos da política urbana;
lhos” fator que exige um “grande poder de articulação” para que se tenha 4. A audiência pública precisa ser regulamentada, evitando que a
como resultado uma “intervenção de significado mais amplo” 21, em espe- participação se dê de forma clientelista e seja conduzida por grupos
cial no que diz respeito as demandas voltadas a um planejamento urbano de interesses socioeconômicos, além do que, é necessária uma partici-
que dependem, para sua efetividade, de uma construção transdisciplinar. pação da população na construção no Plano Diretor não só durante o
Desta forma, as audiências públicas e os conselhos são instrumen- processo legislativo, mas especialmente antes do seu início;
tos criados com o intuito de desenvolver uma “visão maximalista da 5. Os Conselhos precisam necessariamente deliberativos, formados
democracia, procurando levar a ideia da participação para além do pelo governo e sociedade de forma equilibrada, com o envolvimento
voto eleitoral periódico” na busca de “um maior controle das decisões de diferentes segmentos de representação social; sendo indispensáveis
condições estruturais e técnico-burocráticas, que farão com que os de-
19 HERMANY, Ricardo; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe Pereira. Políticas Públicas Locais de
Saúde: Uma Análise a partir do Princípio da Subsidiariedade Administrativa. p. 214-231. In REIS, bates do Conselho sejam calcados em dados científicos e haja uma cor-
Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta (Org.).Direitos Sociais e Políticas Públicas: Desafios Contem- reta percepção dos anseios sociais, garantindo a qualidade necessária
porâneos – Tomo 11. Santa Cruz do Sul: EDINISC, 2011. p.225.
na tomada de decisões.
20 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. p. 335-354. In DALLARI, Adilson
de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 342. 22 PEREIRA, Marcus Abílio Gomes. Modelos democráticos, deliberativos e participativos: similitu-
21 BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. p. 335-354. In DALLARI, Adilson des, diferenças e desafios. p. 421-452. In DAGNINO, Evelina; TATAGIBA, Luciana (Org.). Democra-
de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 343-344. cia, Sociedade Civil e Participação. Chapecó: Argos, 2007. p. 426.

176 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 177
Referências
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ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas estruturas políticas e jurídicas de
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BRASIL. Lei n. 11.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182
no município de Ilhéus,
e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana estado da Bahia (2006-2011)
e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/
LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 06/01/2010. Gabriele Araújo Pinheiro 1
BUCCI, Maria Paula Dallari. Gestão Democrática da Cidade. p. 335-354. In Wagner de Oliveira Rodrigues2
DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo:
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GOHN, Maria da Glória. O papel dos Conselhos Gestores na Gestão Urbana. Resumo: Inserido no contexto das inovações jus-urbanís-
In Repensando a Experiência Urbana na América Latina: questões, conceitos e ticas promovidas pelo Estado Democrático de Direito pós-
valores ed. Buenos Aires : CLACSO, 2000. 1988, o presente artigo aborda o direito fundamental à ci-
HERMANY, Ricardo; PEREIRA, Henrique Mioranza Koppe Pereira. Políticas Pú- dade sustentável seguindo pelos meandros da sua intima re-
blicas Locais de Saúde: Uma Análise a partir do Princípio da Subsidiariedade lação com o princípio da gestão democrática da cidade. Esta
Administrativa. p. 214-231. In REIS, Jorge Renato dos; LEAL, Rogério Gesta análise justifica-se, pois o ambiente citadino caracteriza-se,
(Org.).Direitos Sociais e Políticas Públicas: Desafios Contemporâneos – Tomo essencialmente, por ser um mosaico de elementos políticos,
11. Santa Cruz do Sul: EDINISC, 2011. sociais, culturais e filosóficos, em que é possível a manifes-
LEAL, Rogério Lesta. Demarcações Preliminares da Democracia Representativa: tação plural e heterogênea de potencialidades e interesses
humanos; com isto, as cidades reclamam por gestões parti-
Matrizes Habermasianas. p. 10-98. In LEAL, Rogério Lesta (Org.). A Democracia
cipativas e democráticas. Nesse sentido, é realizado um es-
Deliberativa como nova matriz de gestão pública: alguns estudos de casos. San-
tudo sobre a sistemática da gestão democrática do Municí-
ta Cruz do Sul: Edunisc, 2011. pio de Ilhéus, no Estado da Bahia, com fulcro nos principais
PEREIRA, Marcus Abílio Gomes. Modelos democráticos, deliberativos e parti- institutos jus-urbanísticos em vigor no ordenamento jurídico
cipativos: similitudes, diferenças e desafios. p. 421-452. In DAGNINO, Evelina; pátrio, conferindo especial ênfase à Constituição de 1988, à
TATAGIBA, Luciana (Org.). Democracia, Sociedade Civil e Participação. Chape- Lei Federal 10.257/2001 - autodenominada “Estatuto da Ci-
có: Argos, 2007. dade” - e ao Plano Diretor Municipal Participativo de Ilhéus,
SAULE JUNIOR, Nelson; CHUERI, Thais de Ricardo; VALLE, Raul Silva Telles do. Lei Municipal nº 3265/2006.
Plano Diretor do Município de São Gabriel da Cachoeira: Aspectos relevantes Palavras-chave: cidade sustentável; Estatuto da Cidade;
da leitura jurídica. In SAULE JUNIOR, Nelson. Direito Urbanístico: Vias Jurídicas plano diretor municipal e gestão democrática da cidade.
das Políticas Urbanas. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2007.
SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação de Leis. 2. Ed. São 1 Discente do Curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz; membro do Grupo de
Paulo: Malheiros, 2006. Pesquisa em Direitos Humanos e Fundamentais na Linha de Pesquisa “Sustentabilidade Ambiental e
Acesso à Cidade, pesquisadora de iniciação científica e estagiária de Direito da Defensoria Pública.
2
Mestre em Direito, área de concentração em Políticas Públicas e Processo, pela Faculdade de
Direito de Campos (Campos dos Goytacazes-RJ). Professor Assistente do Departamento de Ciências
Jurídicas da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), onde é coordenador da Pesquisa “Análise
jus-ambiental/urbanística da logística do Porto Sul, em Ilhéus” (fomento: UESC), líder do Grupo de
Pesquisa Institucional em Direitos Humanos e Fundamentais (CNPq), coordenador do Projeto de
Extensão “Cidadania e Vilas Sustentáveis” (fomento: FAPESB), membro do Comitê Científico da
UESC (representando o Departamento de Ciências Jurídicas) e membro do Conselho Editorial da
Revista DIKÉ, do Curso de Direito da UESC. Docente do Colegiado de Direito e representante, pelo
mencionado Curso, do Núcleo de Pesquisa e Extensão - NUPEX, da Faculdade de Ilhéus - CESUPI.

178 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 179
1. Introdução a desigualdade social, a violência e a industrialização baseada em baixos
salários, o contraste oriundo da coexistência entre a “cidade legal”, que
Após a promulgação da Constituição da República Federativa do concentra maiores investimentos públicos e cuja fiscalização sobre o uso
Brasil em 1988 o Ordenamento Jurídico Pátrio foi contemplado com do solo se dá com maior intensidade e a “cidade ilegal” composta por
inserção de diversos institutos jus-urbanísticos, participativos e demo- áreas irregulares, que pouco interessam ao mercado imobiliário e na qual
cráticos, que possuem o escopo de combater os efeitos do processo o poder público pouco investe para a realização dos direitos citadinos.
histórico, altamente excludentes, de construção das cidades brasileiras. A cidade “ilegal” (MARICATO, 2002) constitui única solução para a
O clamor social motivado pelo caos vivido nas grandes cidades bra- parcela da população que não possui recursos financeiros para adquirir
sileiras na segunda metade do Século XX pressionou o Constituinte a residências em áreas regulares e, por isso, se alocam em assentamentos
reservar no Texto Magno um capitulo especificamente para tratar da precários e recorrem a construções de imóveis sem planejamento e es-
política urbana. trutura material necessária para a construção da cidade.
No sentido de efetivar os novos institutos jus-urbanísticos foi atribu- Os resultados desse processo de marginalidade sócio-urbana são de
ído por via constitucional ao Poder Público, em cooperação com a So- grandes proporções e promovem uma ocupação predatória e irracional
ciedade Civil e entidades privadas, a árdua tarefa de repensar, planejar do solo urbano, ensejando catástrofes sócio-ambientais como enchen-
e fornecer mecanismos de concretização dos direitos pertinentes aos tes, epidemias, desmoronamentos, poluição, dentre outras.
espaços citadinos, dentre eles o direito fundamental à cidade sustentá- Nesse cenário de total desrespeito aos direitos humanos e funda-
vel, que implica uma série de transformações na forma de produção e mentais o planejamento urbano brasileiro precisa-se ser renovado de
consumo das cidades, ampliando o rol de direitos sócio-urbanos para modo a favorecer a participação democrática de todos os setores sociais
toda a população, com o intuito de abranger, em especial, áreas urbanas do campo e da cidade, para, através do princípio da gestão democrática
marginais, assim como integrar as populações rurais ou semi-rurais que da cidade, dar real sentido à efetivação do acesso à cidade.
se localizam no entorno dos centros urbanizados e são iguais titulares do A preocupação atual do planejamento urbano visa minimizar os im-
direito à cidade. pactos do crescimento desordenado das cidades, no qual as pessoas
Diante desta dialética sócio-jurídica, com o escopo de disciplinar os não se reconhecem como destinatários e construtores das cidades, uma
novos institutos jus-urbanísticos, a Constituição de 1988 prevê a elabo- vez que se propõe a oferecer à população recursos que, juridicamente,
ração de leis em âmbito federal (art. 182, materializado pela Lei Federal se traduzem na materialidade do direito à cidade sustentável.
10.257/2001 – Estatuto da Cidade) e municipal (art. 183, materializado Nesse sentido destaca Celso Antonio Pacheco Fiorillo:
pelos planos diretores municipais), para a regulamentação da política de
desenvolvimento e expansão urbana, ao passo que o Estatuto da Cidade Marcado pela necessidade de acomodar (...) milhões de seres humanos
estabelece diretrizes gerais e princípios que passarão a orientar o plane- e convivendo com realidades que apontam a existência de mais de um
milhão de pessoas em algumas capitais do país, o Brasil convive com a
jamento urbano, a exemplo, do princípio basilar da gestão democrática
formação de uma cidade irregular ao lado da regular, obrigando a consi-
da cidade, como serão caracterizados e analisados alhures.
derar, nos dia de hoje, uma realidade no campo jurídico que nasce com
o regramento constitucional (Constituição Federal de 1988), visando su-
perar as discriminações sociais da cidade pós-liberal e dar a todos os
Sustentabilidade ambiental-urbana e seus desafios brasileiros e estrangeiros que aqui residem os benefícios de um meio
na realidade municipal brasileira ambiente artificial cientificamente concebido. (FIORILLO, 2009, p. 348)

Os Municípios brasileiros atualmente refletem a conjuntura de fato- O direito à cidade, inserido no contexto do Estado Democrático de Di-
res históricos que culminaram no atual estado de crise urbana como o reito, qualifica-se pelo princípio da sustentabilidade urbana e pela gestão
patrimonialismo e o clientelismo fundados nas raízes coloniais do Brasil, democrática da cidade, repercutindo diretamente na dignidade da pessoa

180 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 181
humana ao passo que busca através de uma gestão participativa efetivar A sustentabilidade urbano-ambiental se impõe como fator imprescindí-
direitos fundamentais que possibilitam a maximização das potencialida- vel diante da atual crise urbana propagada mundialmente nos mais variados
des humanas nos espaços citadinos. (RODRIGUES, 2005, p138) espaços citadinos. Planejar a construção das cidades e buscar alternativas
A sustentabilidade urbano-ambiental é fator determinante e diferen- para promover o equilíbrio que demanda o conceito de cidade sustentável
cial da atual política de desenvolvimento urbano, pois a exemplo do que é o grande desafio a ser superado pelos atores sociais do século XXI.
afirma Celso Antonio Pacheco Fiorillo: Com aporte no Direito Urbanístico, as saídas por meio da legislação
e da atuação dos juristas encontram inspiração e legitimidade na Consti-
O uso da propriedade está condicionado ao ambiente cultural, meio tuição da República Federativa do Brasil de 1988, que inova ao reservar
ambiente do trabalho e meio ambiente natural da mesma maneira em seu texto um capítulo específico para tratar de política urbana e
que está, diretamente por força do Estatuto da Cidade, ao meio am-
ao trazer institutos importantíssimos de Direito Urbanístico, a exemplo
biente artificial, fundamento da lei n. 10.257/2001. Sendo a mais
importante norma regulamentadora do meio ambiente artificial, o do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e do Plano Diretor Munici-
Estatuto da Cidade, ao ter como objetivo ordenar o pleno desenvol- pal (legislação local), que deram novos contornos à regulamentação das
vimento das funções da cidade e da propriedade urbana, mediante normas jus-urbanísticas, com a missão de promover o desenvolvimento
algumas diretrizes gerais, criou a garantia do direito a cidade susten- urbano sustentável e superar a atual crise que degenera o desenvolvi-
tável.(FIORILLO,2009,p. 354) mento das cidades brasileiras (LEAL, 2003, p.78).

Os espaços citadinos historicamente ofereceram a ilusão de propiciar


aos migrantes do campo melhores condições de vida, o que tem atraído 3. Promoção Constitucional do Direito à Cidade
milhares de pessoas para as cidades, resultando este processo migratório Sustentável: Amparo legal e axiológico
em uma crise urbana sem precedentes na história das civilizações.
Por isso a ampliação trazida pela dimensão do direito à cidade sus- No Brasil, a política de desenvolvimento urbano - impulsionada pe-
tentável promove possibilidades de inversão desse cenário, ao oferecer los pilares do ideário reformista, trazidos pelo Movimento Nacional de
à população rural meios de acesso a mecanismos antes restritos aos Reforma Urbana e incorporada pela Constituição de 1988 - tem pro-
habitantes dos centros urbanos, ditando assim o desenvolvimento hu- porcionado uma série de mudanças paradigmáticas, rompendo com
mano em equilíbrio com o respeito à dignidade da pessoa humana e ao diversos padrões que, até então, dominavam a concepção jurídica de
meio ambiente, criando com isto um novo sistema de sustentabilidade propriedade e cidade. A cidade passa, então, a ser compreendido na
ambiental-urbano que respeita a realidade do campesino em detrimen- ordem jurídica como espaço cultural e coletivo, cuja função é atender
to ao habitante dos núcleos urbanos. aos interesses dos cidadãos com base nos princípios de justiça social, da
Sendo assim, o principio da sustentabilidade urbana, inserido no função social da cidade e da propriedade (LEAL, 2003, p.144).
contexto da cidade sustentável, implica na maximização das potenciali- O conceito de propriedade foi modificado através da idéia de fun-
dades humanas em consonância com respeito ao meio essencialmente ção social que permeia o uso desta no espaço urbano, surgindo daí duas
plural e complexo em que se constituem as cidades e o meio ambiente. orientações que exercem influências diretas na Ciência Jurídica: a função
É a constante busca por equilíbrio que deve existir entre os diferen- social da propriedade e a função social da cidade. Essas orientações
tes atores sociais, fundamentando-se na justiça social que se contrapõe têm revigorado o Direito brasileiro e que, por meio do Direito Urbanísti-
ao processo de exclusão historicamente propagado no Brasil. Reside na co, passou a representar instrumentos facilitadores do direito à cidade
promoção da qualidade de vida dos habitantes e no desenvolvimento como direito fundamental. (CARRERA, 2005, p. 29-30)
econômico compatível com a preservação sustentável dos recursos na- Os fundamentos do direito fundamental à cidade sustentável não se
turais, ao passo que propaga a ampliação de soluções em combate ao reduzem somente a expressar sua influência jurídica, política ou social,
aumento da pobreza que ocorre em escala mundial. mas também estimula a reflexão sobre a cidade como espaço filosófico,

182 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 183
no qual é possível o desenvolvimento das potencialidades humanas e a Com notória relevância o direito à cidade sustentável propõe uma
realização de condições de vida digna para o ser humano. nova forma de se pensar o espaço da cidade, baseando-se em mecanis-
Por esse viés a política de desenvolvimento urbano, no seu aspecto mos de cooperação entre os diferentes atores sociais, gestão democrá-
jurídico, é orientada por princípios como os da função social da cidade, tica da cidade e dignidade da pessoa humana. Implica em uma série de
função social da propriedade, exercício pleno da cidadania, igualdade transformações nos padrões de relações humanas, consumo, produção
material e não discriminação, proteção especial a segmentos sociais ex- e apropriação do solo e dos recursos naturais. As pessoas se tornam
cluídos e vulneráveis, impulso à economia solidária e às políticas impo- centro das preocupações, competindo às ações públicas guiar-se pelo
sitivas e progressivas, compromisso social do setor privado, sustentabili- pleno direito a qualidade de vida para todos.
dade urbano-ambiental, gestão democrática da cidade e vida digna nos
espaços da cidade. (CARRERA, 2005:45).
O direito à cidade sustentável torna-se o eixo central do Direito Ur- 4. Gestão democrática local:
banístico para onde convergem outros direitos fundamentais, não se entre a lei e a realidade institucional
restringindo somente na construção de moradias, para os que não a
possui, e na canalização de investimentos para a criação de empregos, Pensar os espaços citadinos e buscar alternativas para um desen-
fato que, se isoladamente fossem aplicados à realidade atual das cida- volvimento sustentável que possibilite a realização dos pilares do Estado
des brasileiras, já seria um grande avanço. Ele compreende também, a Democrático de Direito em harmonia com o respeito à dignidade da
efetivação de direitos civis e sociais, a exemplos do acesso aos meios de pessoa humana é um grande desafio, árduo no que tange a sua concre-
transportes públicos amplos e inclusivos, do sistema de educação e de tização, principalmente quando nos voltamos para realidade do país e
proteção a saúde universal, gratuito e de qualidade, do saneamento bá- consideramos os níveis atuais de consciência social e atuação dos repre-
sico sustentável para toda a população e a promoção/proteção do meio sentantes políticos do povo brasileiro.
ambiente equilibrado e sustentável, além de segurança pública ampla e Por sua vez o principio das gestões democráticas da cidade, é extre-
competente e lazer disponível a todos 2. mamente importante para os novos rumos dos Municípios brasileiros,
Do mesmo modo a consciência da sustentabilidade urbano-am- pois se direciona para o fortalecimento do papel dos cidadãos em sua
biental encontra fulcros legais a partir dos artigos 182, 193 e 225 da atuação política, principalmente nos Municípios, ao impulsionar a reali-
CRFB/1988 e também, em sede de lei federal, no art. 2º, inciso I, da zação de políticas públicas que possibilitem o direito ao amplo debate
Lei Federal 10.257/2001 que expressamente prevê o direito à cidade e poder decisão nas questões urbanas. Significa a democratização de
sustentável como garantia fundamental, reflexo de sua percepção como governança local, ofertar a segmentos historicamente excluídos o direito
princípio e direito fundamental conforme o art. 5º,§ 2º, da CRFB/1988. de se manifestar acerca dos problemas sociais que lhes afetam cotidia-
Após a disposição legal de todos estes nortes jurídicos acima descri- namente. Esse princípio busca proporcionar a todos os cidadãos o direi-
tos ficou-se estabelecido uma série de instrumentos jurídicos, tributários, to de participar na defesa de seus interesses, promovendo mecanismos
políticos e sociais dispostos a enfrentar os dilemas urbanos a partir da de participação popular para a concreção de vida digna para todos.
atuação do Poder Público em parceria plena com a Sociedade e os entes O Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001) com o escopo
sociais organizados, de modo que o desafio mais contemporâneo têm sido de disciplinar o princípio da gestão democrática da cidade (art. 43) esta-
a realização prática dos conceitos de cidade sustentável, meio ambiente belece como instrumentos úteis para a dinâmica dos Municípios órgãos
ecologicamente equilibrado, função social da cidade e da propriedade colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal,
e, na voga atual, do planejamento participativo, principalmente quando debates, audiências e consultas públicas, conferências sobre assuntos
encarado em nível local – ou seja, na seara dos Municípios brasileiros. de interesse urbano, nos níveis nacional, estadual e municipal e iniciativa
popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvol-
2 JARDIM, Zélia Leocádia da Trindade. Regulamentação da Política Urbana e Garantia do Direito vimento urbano.
à Cidade. 2007.

184 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 185
Na mesma direção a realização de debates, audiências e consultas As conquistas de âmbito jus-urbanísticos alcançadas atualmente são
públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes or- decisivas e extremamente relevantes para delinear os novos rumos da
çamentárias e do orçamento anual, como condição obrigatória para sua cidadania brasileira. Porém a positivação dos referidos direitos significa
aprovação pela Câmara Municipal deve ocorrer para a justa dimensão início de trajetória e nunca fim, é somente pelo viés da consciência social
das contas locais com a indução ao desenvolvimento local (art. 44). e engajamento político da população que a realização desses direitos
Estes e demais princípios relacionados à matéria são reflexo do pro- será plena a todos. Por conta disto é que a importância do Plano Diretor
cesso de reconhecimento e positivação das normas que, atualmente, local se revela ímpar diante da necessidade de planejar localmente os
regem o Direito Urbanístico brasileiro e que são frutos de diversas con- espaços habitáveis, fato que se revelará em nosso estudo de caso que se
quistas político-sociais, a começar pela previsão normativa na Constitui- revela a seguir.
ção da República Federativa do Brasil sobre a política urbana, fato inédi-
to na seara jurídica do país. A CRFB/1988 prevê, no capitulo referente à
política urbana, a elaboração de institutos jurídicos de âmbito federal e 5. Gestão democrática e instrumentos jurídicos de
municipal para regulamentar o planejamento urbano. sua atuação em Ilhéus, Estado da Bahia.
No tocante à forma programática de estabelecer estratégias, instru-
mentos e ações em prol do espaço urbano-ambiental a federação (atra- Atualmente o planejamento urbano municipal deve ser caracteriza-
vés de todos os níveis federativos) deverá implementar, isoladamente ou do por promover a integração entre as diretrizes gerais estabelecidas em
em cooperação com os demais segmentos da sociedade instrumentos leis hierarquicamente superiores, a saber, a Constituição da República
de indução urbana e de correção das desigualdades sócio-urbanas no Federativa do Brasil de 1988 e o Estatuto da Cidade, conjugando-as
intuito de alcançar uma ordem urbana fundamentada na realização das com as principais características sócio-culturais existentes no Município.
funções sociais da cidade e da propriedade urbana. 3 Diante dessa dialética normativo-social é valido salientar que, na re-
Portanto, a referida norma federal constitui-se em principal marco re- alidade local, o Plano Diretor Municipal assume o papel de realização do
gulatório infraconstitucional do Direito Urbanístico pátrio, insígnia da nova direito fundamental a cidade sustentável, e tem a sua validade adstrita
Ordem Constitucional do Estado Democrático de Direito e que serve de ver- à observância dos princípios constitucionais da gestão democrática, da
dadeira carta de princípios e instrumentos para a elaboração de leis federais, justiça social, da função social da propriedade e da cidade, da susten-
estaduais e municipais sobre planejamento das cidades, pois vai ao encontro tabilidade urbano-ambiental e, principalmente, da dignidade da pessoa
das diversas conquista da cidadania brasileira. (SILVA, 2006:59-60) humana, sob pena de ser eivado de inconstitucionalidade.
O poder público possui grande e incomparável responsabilidade na Os Municípios possuem, em especial, grande responsabilidade na
realização do diálogo em prol do modo e da forma da produção de ci- execução da Política Urbana, já que a eles foi outorgado pela Consti-
dades justas, sustentáveis e democráticas, com base no elo cooperativo tuição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 182, o
entre os cidadãos e o Estado. É no espaço das cidades que as poten- desafio de elaborar, instituir mediante lei e executar, cooperativamen-
cialidades humanas se desenvolvem e por isso não se pode prescindir te, o Plano Diretor Municipal, que se traduz em legislação principal no
na construção desta, de efetiva participação de todos, ao povo cabe co- processo de concretização da política de desenvolvimento e expansão
operar na concretização do planejamento urbano e atuar na constante urbana (LEAL, 2003:143-144).
fiscalização, a cidade deve ser pensada por todos e para todos. O Plano Diretor, enquanto lei municipal e mecanismo técnico e po-
lítico, deve regulamentar, essencialmente, os aspectos físicos, referentes
3 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Comentário ao Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de
10.7.2001. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005. No Estatuto da Cidade encontram-se im-
à ocupação do solo, assim como lançar diretrizes baseando-se em fatores
portantes instrumentos urbanísticos, a exemplo, do direito de superfície, a concessão do direito sociais, no intuito de garantir inclusão e vida digna para seus habitantes.
real de uso, edificação e o parcelamento compulsório, o direito de preempção, a urbanização con- Para tanto, e por força da Carta Magna de 1988, a legislação se tornou
sorciada, o plano diretor, o imposto predial progressivo, a outorga onerosa do direito de construir,
a usucapião especial urbano, a concessão especial para fins de moradia, o estudo do impacto de obrigatória para cidades que possuem mais de 20 (vinte) mil habitantes,
vizinhança, o consórcio imobiliário e a gestão democrática da Cidade.

186 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 187
porém as que não possuem esse quantitativo populacional não estão dis- conjunto de órgãos, normas, recursos humanos e técnicos necessários
pensados da observância e efetivação dos princípios constitucionais perti- à coordenação da ação planejada da administração municipal, como
nentes a política urbana até porque é obrigação de todos, sejam entidades um processo contínuo, dinâmico e flexível, que deverá articular os ins-
políticas ou sociedade, desenvolver de maneira sustentável os ambientes trumentos de gestão do desenvolvimento municipal, pautando-se pela
urbanos, ambientais e coletivos. (CARVALHO FILHO, 2005: 263-266) atuação constante e estimulada da Sociedade Civil no processo de pla-
Em obediência ao disposto no texto constitucional - art. 182, §1º, nejamento do desenvolvimento municipal.
que estabelece a obrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor para Dentro desta lógica destacam-se os objetivos elencados pelo art.
os Municípios com mais de vinte mil habitantes - o Município de Ilhéus, 209 para a realização deste mister, como segue:
localizado na Região do Sul do Estado da Bahia promulgou, em novem-
bro de 2006, o Plano Diretor Municipal Participativo (PDMP), Lei Mu- Art.209. Os objetivos do Sistema Participativo de Gestão Urbana e
nicipal nº 3265/2006, que estabelece diretrizes fundamentais para a Ambiental são os seguintes
ocupação da cidade de Ilhéus, considerando aspectos como as caracte- I – inserir de forma qualificada a atividade de planejamento municipal
dentro da estrutura organizacional da administração pública;
rísticas físicas, atividades econômicas predominantes, vocações, proble-
II – capacitar a estrutura da administração pública para recepcionar
mas, potencialidades assim como os princípios e normas diretoras do as formas estimuladas de participação popular nos processos decisó-
Direito Urbanístico brasileiro. rios;
O PDMP de Ilhéus foi construído dentro de uma experiência demo- III – possibilitar o exercício da cidadania plena pela convocação dos
crática, ou seja, com a participação de alguns segmentos da comunida- moradores de Ilhéus para atuarem como parceiros na gestão do mu-
de ilheense nas audiências públicas que se seguiram na elaboração da nicípio;
legislação. Ao longo do processo de elaboração do Plano Diretor houve IV – promover a qualificação da máquina pública local para que a
manifestação da Sociedade Civil através de líderes comunitários de bair- mesma possa refletir, no atendimento ao usuário final dos serviços pú-
blicos, as decisões tomadas coletivamente pelo Poder Público e pela
ro e distritos e também do setor privado do Município, que contribuíram
Sociedade Civil. (ILHÉUS, 2006)
demonstrando os problemas a serem enfrentados pelo planejamento
urbano ilheense.
Para o alcance destes objetivos – cultura de planejamento local com
A construção de seu texto legal chegou a definir as suas peculia-
capacitação para uma nova postura democrática com os cidadãos ilhe-
ridades próprias referentes as prioridades eleitas pela comunidade e
enses – são propostas como ações, no art. 211, um programa de qualifi-
também vocações do Município, a exemplo da ênfase concedida aos
cação do servidor municipal, um sistema de acompanhamento de ações
aspectos relacionados ao desenvolvimento sustentável, desenvolvimen-
públicas, a realização da integração estratégica entre as secretarias
to humano, política municipal de turismo e a preservação das áreas de
municipais que atuam com o planejamento urbano e, principalmente, o
proteção ambiental do Município.
Conselho Municipal da Cidade de Ilhéus, órgão supremo de deliberação
O PDMP de Ilhéus, em observância ao estabelecido pelo Estatuto da
das questões urbano-ambientais dentro do Município.
Cidade no Capitulo IV “Da Gestão Democrática da Cidade”, estabeleceu
Com os sucedâneos históricos que ocorreram nas gestões munici-
a criação de um órgão colegiado, intitulado Conselho Municipal da Cida-
pais de Ilhéus nos anos seguintes (entre 2006 a 2008), em 2009 voltou
de, que está elencada dentre as estruturas promotoras de gestão demo-
a reflexão sobre a necessidade da formação de um Conselho da Cidade
crática de cidade criadas no Município de Ilhéus destaca-se o Conselho
(chamado de “Conselho Municipal da Cidade de Ilhéus”) passou a cons-
Municipal da Cidade.
tar na agenda governamental, realidade que no art. 219 do PDMP já
Para isto o PDMP de Ilhéus reservou em seu texto um capitulo es-
se expressa com a composição feita por seis representantes do Poder
pecificamente para tratar de gestão democrática, criando o chamado
Público Municipal, sendo um de cada secretaria (Planejamento, Meio
“Sistema Participativo de Gestão Urbana e Ambiental” (art. 207), que
Ambiente, Turismo, Governo, Assistência Social e Trabalho, Agricultura,
tem como missão constituir o arranjo institucional compreendido como
Pesca e Interior), cinco representantes de entidades da área dos movi-

188 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 189
mentos sociais e populares, dois representantes de entidades da área de participar na defesa de seus interesses, promovendo a concreção de
empresarial, dois representantes de entidades da área de trabalhadores vida digna para todos.
(sindicatos), três representantes de entidades da área profissional, aca-
dêmica e de pesquisa e dois representantes de organizações não-gover­
namentais. Conclusão
A primeira reunião, ainda para discutir a entidade e os representan-
tes da municipalidade, ocorreu no dia 29 de julho de 2009, quando foi Diante da demanda, altamente crescente, por mecanismos promo-
criado um grupo de trabalho que teve a incumbência de elaborar o seu tores de cidadania, as cidades brasileiras enfrentam o desafio de pro-
regimento interno – situação que perdurou até o mês de fevereiro de porcionar aos seus habitantes a realização de direitos fundamentais e
2011, com a aprovação de um texto preliminar a respeito. sustentabilibilidade urbano-ambiental, porém de encontro ao dever ser
No sentido de pensar, planejar, discutir e formular sugestões para constata-se que os Municípios pátrios não possuem estrutura e planeja-
a criação do planejamento urbanístico ilheense ocorreu, nos dias 29 e mento adequado para tanto, e por isso, estão inseridos em um contexto
30 de janeiro de 2010, a quarta conferência das cidades, momento em de graves problemas socioeconômicos, cuja marca maior é o urbanismo
que o Conselho Municipal da Cidade foi constituído, quatro anos após segregador, no qual a sociedade não participa da gestão da cidade e não
a edição do PDMP e a posse do seus conselheiros dos setores privados, se reconhece como principal destinatária dos mecanismos citadinos.
públicos e de líderes comunitários e da academia tiveram a oportuni- Sendo assim, é nesse cenário, onde não há mais espaços para a
dade de opinar e expor suas sugestões e expectativas para o presente/ apatia e no qual os problemas sociais afetam diretamente a todos, que
futuro do desenvolvimento urbano da cidade de Ilhéus. surge a necessidade de um enérgico posicionamento jurídico, estatal e
O Conselho Municipal da Cidade de Ilhéus é instrumento impres- social, a fim de superar “velhos” problemas e se preparar para os que
cindível para realização do direito fundamental à cidade sustentável, estão surgindo.
pois visa concretizar, enquanto órgão gestor democrático, o principio Através de uma nova perspectiva, que funda-se na gestão demo-
das gestões democráticas da cidade, que é extremamente importante crática da cidade,os novos institutos jus-urbanisticos, a exemplo, do di-
para os novos rumos dos Municípios brasileiros, pois direciona-se para reito fundamental a cidade sustentável, a função social da cidade e da
o fortalecimento do papel dos cidadãos em sua atuação política ao im- propriedade urbana, o Estatuto da Cidade e Plano Diretor municipal, se
pulsionar a realização de políticas públicas que possibilitem o direito ao propõem a repensar os espaços habitáveis e fornecer mecanismo para a
amplo debate e poder decisão nas questões urbanas(ANTUNES, 2010, otimização dos recursos conciliando-os com a participação democrática
p. 330-331) e popular na gestão das cidades, através de órgãos não só consultivos,
A posse dos membros ocorreu, definitivamente, em 07 de fevereiro mas também deliberativos.
de 2010 e, a par das discussões atuais, saneamento básico e moradia Promover a realização desses institutos é tarefa de todos, em espe-
– com o programa do “Minha Casa, Minha Vida” – foram as principais cial do Poder Público municipal, uma vez que este é o principal incum-
pautas de discussão. Segundo pretensões do Conselho, o cumprimento bido da realização do Plano Diretor Municipal. No Município de Ilhéus-
das diretrizes do Plano Diretor e a edição da Agenda 21-Ilhéus é um dos -BA, a maioria dos novos institutos de Direito Urbanístico, a exemplo da
principais temas a serem enfrentados. previsão de gestão democrática da cidade, já encontram-se positivaram,
O Conselho da Cidade de Ilhéus caminha ao encontro da demo- através do Plano Diretor municipal, porém, concretizá-los oferecendo
cratização da governança local, pois fomenta a ampla participação de aos cidadão o direito fundamental a uma cidade sustentável e cons-
segmentos historicamente excluídos, ao passo que proporciona o direito cientizar a população que ela possui importante instrumentos de gestão
de se manifestar acerca dos problemas sociais que lhes afetam cotidia- participativa e empoderamento social, é o próximo passo.
namente. Este órgão deliberativo é fruto do princípio da gestão demo- A efetivação das aludidas norma legais esta adstrita a uma série
crática da cidade e busca proporcionar a todos os cidadãos o direito de transformações que envolvem fatores que perpassam pela tomada

190 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 191
de consciência cidadã, assim como, a efetiva cooperação entre o setor FERNANDES, Edésio. Direito do Urbanismo: entre a “cidade legal” e a “cidade
público e o privado. Embora a responsabilidade caiba, precipuamente ilegal”. Belo Horizonte : Del Rey, 1998.
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ção de todos, seja no sentido gerir, através de órgãos participativos ou rica Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
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192 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 193
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bi, 2005.
participativos de Porto Alegre
e Belo Horizonte
Helena Bonetto1
Éder Luís da Silva Rodrigues2

Resumo: A redemocratização brasileira tem sido marcada


por inúmeras experiências de democracia participativa, en-
tre as quais encontramos o Orçamento Participativo (OP)
que se caracteriza por ser um processo em que a população
decide de forma direta a aplicação dos recursos em obras e
serviços que serão executados pelas administrações munici-
pais. O fenômeno do OP tem sido estudado por pesquisa-
dores de diferentes áreas de conhecimento, contudo a vasta
literatura existente tende a privilegiar as questões relativas
aos avanços políticos deixando em segundo plano as ques-
tões referentes às espacialidades dos OPs. É dentro deste
contexto que se encontra a relevância desta pesquisa, a qual
terá como objeto as experiências dos OPs de Porto Alegre
e Belo Horizonte, a partir da revisão bibliográfica tentando
identificar qual o tratamento dado aos recortes espaciais
em cada uma das experiências. Além disso, foi analisada a
constituição das regiões orçamentárias como territórios de
participação, isto é, como as divisões territoriais adotadas
em ambas cidades potencializam ou não a participação po-
pular nos OPs.
Palavras-chave: Orçamento Participativo, participação, re-
cortes espaciais, território.

1. INTRODUÇÃO

A implantação de Orçamentos Participativos em inúmeras cidades


brasileiras a partir da década de 1990, foi historicamente marcada pelo
êxito da experiência de Porto Alegre, o que tornou essa cidade referên-
1 Orientanda do Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul - Oscar Alfredo Sobarzo Miño.
2 Graduando em Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

194 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 195
cia reconhecida pelo seu modelo de gestão participativa. O Orçamento espaciais adotados e como os OPs estão integrados no planejamento/
Participativo (OP) é considerado um marco histórico para a democracia gestão territorial.
brasileira, pois abriu a possibilidade de uma co-gestão do orçamento O artigo primeiramente abordará os dados obtidos sobre os mode-
público entre a população e o governo local. los organizacionais dos OPs de Porto Alegre e Belo Horizonte. Após, a
Para fins deste artigo o OP, conforme Avritzer (2003), é definido descrição dos dados obtidos nos documentos disponibilizados nos web-
como um mecanismo que visa à articulação entre a democracia repre- sites das Prefeituras realizar-se-á a reflexão teórica e a comparação dos
sentativa e a democracia participativa, sendo caracterizado por quatro modelos a partir dos recortes espaciais adotados e a integração entre
elementos: a) o OP contribui para a abertura da soberania da democra- planejamento/gestão territorial nas experiências dos dois municípios.
cia representativa para democracia participativa através de um conjunto
de assembléias regionais e temáticas que utilizam critérios, nos quais
todos os cidadãos podem participar com igual poder de deliberação; 2. OP DE PORTO ALEGRE
b) o OP introduz no cenário da democracia representativa elementos
de participação local, tais como a assembléia regional, e elementos de Os estudos realizados por Fedozzi (2001), Avritzer (2003), Gugliano
delegação, tais como os conselhos na escala municipal, combinando (2010), sobre o OP de Porto Alegre apontam que suas raízes são ante-
métodos da tradição de democracia participativa; c) o OP fundamenta- riores às administrações do Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso,
-se no princípio de auto-regulamentação, pois as regras são definidas esses estudos destacam que a implantação do OP em Porto Alegre é re-
pelos seus participantes e podem sofrer alterações periódicas; d) o OP é sultante de diversos fatores, entre os quais se destaca a existência de ex-
uma tentativa de reversão de prioridades na distribuição de recursos do periências anteriores de participação popular no Estado, especialmente
orçamento público em escala municipal através de uma fórmula técnica a experiência adotada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT) dos
que varia de cidade para cidade, tendo como objetivo a identificação de conselhos populares e a tradição associativista da cidade.
prioridades orçamentárias que privilegiam os setores mais carentes da No andamento da experiência do OP porto-alegrense é importante
população. destacar o período de 1989 a 2004 em que administração do Partido
As experiências de Orçamento Participativo tem se tornado objeto dos Trabalhadores (PT) estimulou a participação cidadã. Contudo, a der-
de estudo de diversas áreas do conhecimento, entretanto as abordagens rota do PT não significou o término do OP, pois a nova administração do
tendem a privilegiar as análises dos avanços políticos oriundos de sua Partido Popular Socialista (PPS) manteve essa política e, ainda, implan-
implantação, deixando em segundo plano as questões referentes à sua tou outro mecanismo de participação – a Governança Solidária – que
espacialidade (SOUZA, 2000). visa ampliar a participação pública na gestão da capital gaúcha. O OP
É dentro deste contexto que se encontra a proposta deste artigo em Porto Alegre está alocado na Secretaria Municipal de Coordenação
de analisar e comparar os modelos organizacionais adotados nos OPs Política e Governança Local (SMGL), que teve sua estrutura organizacio-
de Porto Alegre e Belo Horizonte. Para isso, os procedimentos meto- nal estabelecida em 29 de dezembro de 2004.
dológicos adotados foram: a) pesquisa documental nos websites das
Prefeituras de ambos os municípios, selecionando os seguintes aspec- 2.1 Modelo organizacional adotado pelo OP de Porto Alegre
tos dos modelos organizacionais dos OPs para fins de comparação: os
ciclos, os tratamentos dados aos recortes espaciais, os instrumentos/ O recorte espacial adotado pela cidade foi à divisão em regiões que
critérios utilizados para a distribuição dos recursos e a integração en- historicamente estão ligadas às tradições associativistas, sendo inicial-
tre OP e o planejamento/gestão territorial de ambas as cidades; b) mente cinco grandes regiões. Atualmente, o município está dividido, se-
após, a identificação destes aspectos foram realizadas algumas refle- gundo o Regimento Interno do OP – Critérios Gerais, Técnicos e Regio-
xões teóricas a partir da comparação entre as duas experiências com nais de 2010/20113, em dezessete regiões (Figura 01).
a finalidade de identificar semelhanças e diferenças entre os recortes
3 Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/op/> Acesso em: 12 abril 2011.

196 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 197
Podemos observar
que as regiões são com-
postas por bairros dife-
rentes ou não, por exem-
plo: a região da Restinga
é constituída apenas por
um bairro, já a região no-
roeste é constituída pelos
bairros Boa Vista, Cristo
Redentor, Higienópolis,
Jardim Itu, Jardim Lin-
dóia, Jardim São Pedro,
Passo da Areia, Santa Ma-
ria Goretti, São João, São
Sebastião, Vila Floresta e
Vila Ipiranga.
Nas regiões são re-
alizadas as assembléias
regionais nas quais são Figura 02 - Ciclo OP de Porto Alegre - Fonte: Regimento OP, 2011/2012.
levantadas as demandas
da população, segundo a Os critérios para demandas do OP regionais e temáticos obedecem
hierarquização das obras às seguintes ordens de hierarquização: 1º) Prioridade da micro-região
e dos serviços prioritários Figura 01 - Regiões do OP de Porto Alegre ou comunidade; 2°) Prioridade dos Delegados(as); 3°) Carência do ser-
daquelas comunidades. Fonte: www.portoalegre.rs.gov.br viço ou infraestrutura; 4°) População atingida. A aplicação dos critérios
Além disso, é realizada a acontece obedecendo cada uma destas etapas: a) Cada Associação ou
definição número de delegados e a eleição de delegados e conselheiros. comissão de rua faz o levantamento de suas necessidades; b) Em assem-
O OP ainda possui seis temáticas para decisão em assembléias, são
bléia de cada micro-região, ou nas assembléias temáticas, as comunida-
elas: circulação, transporte e mobilidade urbana; saúde e assistência social;
des decidem: I - Uma ordem de prioridade por tema; II - Em cada tema,
educação, esporte e lazer; cultura; desenvolvimento econômico tributação
e turismo; organização da cidade; desenvolvimento urbano e ambiental. as demandas são hierarquizadas. Nas assembléias regionais ou temáti-
O ciclo do OP (Figura 02), ou seja, as etapas a serem seguidas no cas: I - Aplica-se o cálculo para verificar a hierarquização dos temas da
processo, é anual e está estruturado em: reuniões preparatórias, roda- Região ou Temática, com 17 (dezessete) temas, atribui-se notas de 17
da de assembléias regionais e temáticas, eleição dos delegados, eleição (dezessete) a 1 (um). Na soma obtêm-se os temas de maior índice.
dos membros do Conselho do Orçamento Participativo, hierarquização Os critérios gerais para a distribuição de recursos entre as regiões e
das obras e serviços, visita dos delegados às primeiras demandas solici- temáticas obedecem à seguinte ordem: a) Nas assembléias regionais e te-
tadas, posse dos novos delegados, entrega da hierarquização das obras, máticas os participantes escolhem as quatro primeiras prioridades dentre
análise técnicas das demandas pelo Governo, discussão e votação da os dezessete temas existentes (saneamento básico, água e esgoto cloa-
matriz orçamentária e início da distribuição de recursos para as regiões cal, habitação, pavimentação, circulação e transporte, saúde, assistência
e temáticas no Conselho do Orçamento Participativo4. social, educação, áreas de lazer, esporte e lazer, iluminação pública, de-
senvolvimento econômico, cultura, saneamento ambiental, acessibilidade
4 Para maiores informações consultar o Regimento do Orçamento Participativo - 2010/2011. Dis- e mobilidade urbana, juventude e turismo). b) São atribuídas notas às
ponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/op/usu_doc/pa002010-op_reg_int.
pdf> Acesso em: 05 abr. 2010.
prioridades de cada região ou temáticas, segundo as prioridades (Quadro
198 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 199
01). c) Posteriormente, são somadas todas as notas de todos os partici- ídas em função do OP em 1993 e
pantes e chega-se às quatro primeiras prioridades regionais e temáticas. 1996, respectivamente.
d) Somente as quatro primeiras prioridades da região ou temática serão O ciclo do OP Regional de Belo
as que receberão os recursos, com exceção do Departamento de Águas Horizonte é bianual. O ciclo é realiza-
de Esgoto (DMAE) que possui critérios próprios. do em duas etapas. Na primeira ro-
dada são divulgados os recursos dis-
Quadro 01 - Notas das Prioridades do OP de Porto Alegre poníveis, são entregues formulários
PRIORIDADE NOTA por bairro e são realizadas reuniões
nas comunidades para definir as de-
Primeira 04
mandas prioritárias e para preencher
Segunda 03 os formulários de solicitação. Os téc-
nicos da prefeitura fazem a pré-tria-
Terceira 02
gem das solicitações de demandas
Quarta 01 para verificar o seu enquadramento
Fonte: Elaboração dos autores a partir de dados obtidos no Regimento do OP 2011/2012. nas diretrizes técnicas; caso haja al-
gum impedimento legal ou técnico,
É necessário registrar que as análises dos documentos disponíveis a comunidade deve preencher um
no website da Prefeitura de Porto Alegre não indicam de forma evidente novo formulário e substituir a priori- Figura 03 - Regiões do OP
dade por outra. Na segunda rodada de Belo Horizonte
a integração entre OP e outras políticas públicas adotadas para planeja-
Fonte: Uportalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/
mento/gestão territorial da cidade. são realizadas assembléias por sub-
comunidade
-região em que são selecionadas 25
solicitações para cada regional e ocorre a vistoria técnica e são elaboradas
3. OP DE BELO HORIZONTE as estimativas de custo. Nesta etapa são escolhidos os delegados que par-
ticiparão da Caravana de Prioridades e do Fórum Regional de Prioridades
O Orçamento Participativo de Belo Horizonte foi implantado em 1993, Orçamentárias.
na administração do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual tinha como prin- Após essas duas etapas ocorre a Caravana das Prioridades, na qual
cipal objetivo resolver os problemas sociais da cidade, para isso assumiu o todos os delegados visitam os 25 empreendimentos pré-selecionados
compromisso de adotar uma administração baseada na participação po- pela Regional. No Fórum Regional de Prioridades Orçamentárias são
pular. Atualmente, o OP de Belo Horizonte está dividido em: OP Regional, discutidas e aprovadas 14 obras por regional. Essas obras farão parte
OP Habitação e OP Digital. O OP está alocado na Secretaria Municipal de do Plano de Empreendimentos do OP. Nesta etapa também é eleita uma
Planejamento, Orçamento e Informação (SMPL). Para fins de comparação comissão formada por pessoas da comunidade para acompanhar e fis-
entre OP de Porto Alegre e Belo Horizonte será descrito aqui o OP Regional. calizar o cronograma das obras aprovadas, a execução orçamentária, os
gastos e a prestação de contas, relacionados às definições do Fórum. A
3.1 Modelo Organizacional adotado pelo OP de Belo Horizonte comissão, denominada Comforça, é considerada de interesse público,
portanto seus membros não podem ser remunerados.
O recorte espacial (Figura 03) adotado na cidade é identificado, nos O ciclo do OP se encerra com o Fórum Municipal de Prioridades
documentos disponibilizados pela prefeitura, como dimensão territorial Orçamentárias, em que a comunidade entrega ao Prefeito o Plano de
do OP e compreende: a divisão da cidade em nove regiões administrati- Empreendimentos do OP.
vas, 42 sub-regiões e 79 Unidades de Planejamento (UP), bairros e vilas, A distribuição territorial dos recursos tem como critérios gerais:
sendo que as sub-regiões e as Unidades de Planejamento foram institu- aprovação de uma obra por sub-região e no máximo uma obra por bair-

200 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 201
ro, e o Plano Regional de obras tem sido de 14 empreendimentos por área social, firmando-se, assim, como um instrumento importante de
Região, ou 14 mais 1 se ainda houver recursos. Os critérios mais especí- articulação desses processos já instituídos na cidade. Cada uma das
ficos obedecem aos seguintes aspectos: Secretarias, ou dos órgãos setoriais gestores que tenham interface
com o OP, é chamado a formular, atualizar e sistematizar as diretrizes
1) Os recursos destinados ao OP são divididos de acordo com o núme- próprias de suas áreas de intervenção. Sob a coordenação da Se-
ro de habitantes e com um índice que mede a qualidade de vida de cada cretaria do Planejamento, as indicações realizadas pelas comunida-
unidade espacial do OP denominado de Índice de Qualidade da Vida Ur- des são examinadas, à luz destas orientações, garantindo-se, assim, a
bana (IQVU). Esse índice síntese é composto por 38 indicadores que abran- observância de possíveis restrições ou anuências, baseadas em diag-
gem 10 diferentes variáveis (educação, saúde, infra-estrutura urbana, habi- nósticos e critérios objetivos sobre os temas em discussão. Por outro
lado, isto significa também um desafio para que esses processos e
tação, abastecimento, saneamento, cultura, segurança urbana, esporte e
ações passem por um maior nível de articulação dentre os próprios
meio ambiente). O IQVU é calculado para as unidades de planejamento da órgãos governamentais, propiciando que conversem, dialoguem mais
cidade, medindo as desigualdades em termos de disponibilidades de bens entre si. O Orçamento Participativo trás, na sua formulação, na sua
de serviços públicos, apontando as áreas mais carentes de investimentos. dinâmica e na sua metodologia, esse desafio e cumpre, assim, o im-
2) A criação de sub-regiões especiais que se compõem de Unidades portante papel de fazer com que a cidade discuta o planejamento de
de Planejamento de IQVU mais alto e que têm assegurado 10% dos re- uma forma mais integrada e participativa; e a partir dos principais
instrumentos referenciais já estabelecidos. (URB-AL, 2007, p. 9)
cursos do OP. Estas detêm 30% da população da cidade.
3) O mapeamento das áreas prioritárias para inclusão social, onde
se encontra a população em situação de maior vulnerabilidade, cujas
demandas de OP recebem um peso que se traduz em fator multiplicador 4. REFLEXÕES SOBRE OS RECORTES ESPACIAIS ADOTADOS
dos votos na segunda rodada e no Fórum Regional. PELO OP DE PORTO ALEGRE E BELO HORIZONTE
4) Foram introduzidas mudanças nas prioridades em relação à dis-
tribuição dos recursos na dimensão territorial. Estas mudanças estão A experiência dos Orçamentos Participativos tornou-se objeto de
associadas à criação das Sub–Regiões Especiais, que incorporam os se- estudo de diversas áreas do conhecimento, contudo a vasta literatura
tores médios da população ao processo do OP, e das Áreas Prioritárias produzida sobre o tema tende a privilegiar as questões relativas aos
que recebem maior volume de recursos e programas sociais articulados avanços políticos oriundos de sua implantação, tais como alargamento
às intervenções urbanas conquistadas no OP. da democracia no Brasil (AVRITZER, 2003), a importância da participa-
Através da análise dos documentos disponibilizados no website da Pre- ção da população nas decisões sobre o orçamento da cidade (FEDOZZI,
feitura de Belo Horizonte foi possível identificar que o OP está integrado 2000; 2001), deixando em segundo plano as questões referentes à sua
com o planejamento urbano e a gestão da cidade, pois em 1996 foram espacialidade. Segundo Marcelo Lopes de Souza:
incorporadas ao Plano Diretor as Unidades de Planejamento (UPs) com a
finalidade de instituí-las como referência para a distribuição de recursos O orçamento participativo tem sido estudado sem que os seus condicio-
do OP. Além disso, o OP está articulado a outros programas da Prefeitura, nantes e as suas conseqüências espaciais sejam devidamente conside-
tais como: Plano Global Específico de Vilas e Favelas (PGE), que se consti- rados. Embora a literatura a respeito ainda não seja propriamente muito
numerosa, devido à relativa novidade do objeto, já há um número razoável
tui como um instrumento de planejamento que elabora estudos sobre a
de trabalhos sobre o assunto, assinados tanto por brasileiros quanto por
realidade das áreas da cidade informal e orienta intervenções em zonas de estrangeiros. Infelizmente, nenhum desses trabalhos dá à espacialidade do
interesse social (vilas e favelas); Programa BH Cidadania que se constitui na fenômeno em tela a devida atenção, em que pese a sua organização pos-
integração de políticas para áreas prioritárias de inclusão urbana e social. suir um evidente e fortíssimo componente espacial (organização da popu-
Segundo o Manual Metodológico: Instrumentos de articulação entre Plane- lação por bairros ou agregados de bairros para extração de delegados e
jamento Territorial e Orçamento Participativo (URB-AL R9-A6-04): definição de prioridades de investimento) (SOUZA, 2000, p. 41).

O Orçamento Participativo se desenvolve levando também em con- As principais pesquisas realizadas nesta perspectiva são encontra-
sideração as diretrizes setoriais de toda a área urbana e de toda a das nos trabalhos publicados pelo geógrafo Souza (2000; 2006). O au-
202 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 203
tor, assim como outros cientistas sociais, nos chama a atenção para a exemplo: as Unidades de Planejamento (UPs) não seguiram referencias
desnaturalização do uso do conceito de espaço, pois muitas vezes o das organizações populares, mas sim uma divisão que permitisse o cálculo
espaço é visto somente como um palco onde acontecem as relações so- do Índice de Qualidade de Vida Urbana (IQVU) (SOUZA, 2006, p.352).
ciais. Assim como Souza (2000; 2006), outros autores como Wallerstein É possível observar que as reflexões de Souza (2006) são importantes
(2006), Santos (2002) e Haesbaert (2004), destacam a importância da para pensarmos a relação entre participação popular e a construção de
dimensão espacial para análise dos fenômenos sociais. divisão territorial que é utilizada como referência para OP em ambas as
Para Souza (2000) duas dimensões do espaço social merecem destaque cidades. As divisões territoriais estão intimamente ligadas com as possibi-
no processo de participação popular na elaboração do orçamento: o espaço lidades e limites da participação popular nos OPs. Entre os limites impos-
enquanto território e o espaço enquanto lugar. O espaço como território, é tos pelas divisões territoriais apontados por Souza (2006) encontramos:
entendido como sendo “um espaço delimitado por e a partir das relações a separação de um bairro em duas ou mais divisões territoriais, podendo
de poder” (SOUZA, 1995, p. 78). O espaço como lugar pode ser entendido provocar a desarticulação da população na participação do OP; a exten-
como espaço vivido e percebido, dotado de uma “personalidade própria e são excessivamente grande das divisões territoriais dificulta o acesso às
referencial para construção de identidades” (SOUZA, 2000, p. 47). assembléias e a outras reuniões, pois o descolamento exige investimento
Ao analisar os recortes espaciais dos OPs de Porto Alegre e Belo Ho- financeiro, que muitas vezes parte da população não possui; a heteroge-
rizonte, Souza (2006) faz importantes observações sobre a divisão terri- neidade dos bairros que compõem determinadas divisões territoriais, por
torial adotada em ambas as capitais e sua articulação com a participação exemplo: bairros de classes sociais mais altas e bairros extremamente
popular. Para essa avaliação o autor utilizou indicadores de consistência pobres, na maioria das vezes as prioridades se diferenciam. Esta hetero-
participativa, definidos a partir da articulação entre a participação popu- geneidade pode provocar a exclusão de um desses grupos das decisões
lar e o Estado, na construção das regiões orçamentárias que se constituí- referentes àquela unidade espacial. Contudo, para aprofundamento des-
ram como referência para as decisões dos OPs. Segundo o autor: tas questões se fazem necessárias ainda investigações empíricas.
Através da pesquisa nos documentos disponibilizados pela Prefeitura de
[...] Com efeito, os atores sociais, por mais que, idealmente, consigam
não perder de vista os interesses do município “como um todo” se Porto Alegre e Belo Horizonte foi possível observar que os recortes espaciais
organizarão para verem satisfeitos, antes de mais nada, as demandas adotados pelos municípios são denominados como “regiões”. Contudo, se-
referentes aos seus territórios: as “regiões” e, um nível mais elementar, gundo Souza (2000, p. 47) “estes recortes espaciais são impropriamente cha-
os bairros comuns e as favelas. (SOUZA, 2006, p. 343) mados de regiões, pois são expressões de poder, definem fronteiras, condi-
cionam e orientam a participação, portanto definem territórios”. Entretanto, é
Para Souza (2006) um dos pontos mais importantes do OP de Porto importante destacar que apesar dos recortes espaciais em ambas as cidades
Alegre foi a construção de sua divisão territorial por ter sido um proces- serem chamados de regiões, em Belo Horizonte os documentos evidenciam
so realizado conjuntamente com a população. que o modelo organizativo do OP desta cidade contempla a dimensão terri-
torial de forma diferenciada do OP de Porto Alegre (Quadro 02).
Em 1989, ao constatar-se a inadequação da divisão territorial her-
dada do plano diretor de 1979, que dividia o município em apenas
quatro grandes áreas, a Prefeitura, tendo como ponto de partida reu- Quadro 02
niões com líderes de grandes associações de moradores, deflagrou Recorte espaciais OP Porto Alegre e OP Belo Horizonte
um frutífero processo de discussão, ao longo do qual foi elaborada a RECORTES ESPACIAIS
divisão territorial que deveria servir de referências para o processo de
OP Porto Alegre OP Belo Horizonte
orçamento participativo. (SOUZA, 2006, p. 346)
9 regiões administrativas
Por outro lado, Souza (2006) avalia que o OP de Belo Horizonte pos- 17 regiões 42 sub-regiões
79 Unidades de Planejamento
sui baixa consistência participativa, pois a divisão territorial implantada na
Fonte: Elaboração dos autores
capital mineira foi construída pelo Estado sem participação popular. Por
204 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 205
No quadro comparativo acima podemos observar que em Belo Ho- não garante critérios para a determinação de bairros ou áreas prioritá-
rizonte existe uma preocupação com diferentes escalas em que o OP rias para os investimentos.
é concebido e nas quais os diferentes interesses de cada território são A Prefeitura de Porto Alegre realizou o georreferenciamento das de-
confrontados. É importante destacar a distribuição dos recursos a partir mandas por região, as quais foram levantadas nas plenárias regionais do
da multiplicidade de escalas, pois as aprovações das obras seguem os OP realizadas em 2011. A Figura 04 mostra a distribuição espacial das
critérios gerais, de uma obra por sub-região e, no máximo, uma obra obras na Região Leste da cidade.
por bairro. A diferenciação de distribuição dos recursos com base em Na figura podemos observar que as demandas levantadas pela po-
escalas diferenciadas nos leva às reflexões sobre a relação entre ação pulação não estão distribuídas de forma uniforme em todos os bairros.
política e escalas: Podemos também nos questionar sobre: Como ocorre o levantamento
das demandas? Quais os bairros que estão mais organizados para a par-
Otro aspecto de importancia fundamental, corresponde a las implica- ticipação na plenária regional e, consequentemente, para a reivindicação
ciones psico-socio-territoriales según la escala de referencia, ya que das necessidades destas populações? Como influenciam esses aspectos
los planteamientos y las actuaciones del individuo o de los grupos
na territorialização dessa política pública? Embora, no texto não sejam
sociales no son uniformes para la escala con la que se relaciona, según
su actitud o sus intereses. Esta es uma fuente de conflitos dado que, dadas as respostas a essas questões, elas demonstram a importância da
a medida que la escala se aproxima al ámbito de la vida cotidiana, dimensão espacial na implantação do orçamento participativo.
los intereses que se defenderán en relación a su territorio estarán
más ligados a los elementos psico-sociales inmediatos, mientras que
una escala de alcance más extenso, será más adecuada para poder
proyectar las convicciones y la ideología de los individuos, dado que
la concreción material de sus actuaciones queda más desvinculada de
su vida cotidiana. (SÁNCHEZ, 1992, p. 80)

A diferenciação da distribuição de recursos utilizada por Belo Hori-


zonte em escalas pode evitar a concentração de recursos em apenas al-
guns bairros ou áreas de uma determinada região e obriga ou possibilita
a comparação de interesses de diferentes recortes espaciais da cidade,
ou seja, potencia que os “territórios da participação cidadã” estabele-
çam as prioridades a partir da confrontação das suas diferentes necessi-
dades.
Nesse sentido, encontramos uma experiência que demonstra a im-
portância da dimensão espacial na leitura da participação cidadã. A par-
tir das análises de Souza (2006) podemos afirmar que no OP de Belo
Horizonte as demandas de cada grupo representante de cada “território
de participação” terão mais eficácia, no sentido de conseguir a sua ma-
terialização, na medida em que exista uma articulação nas diferentes
escalas espaciais (regiões administrativas, sub-regiões e unidades de
planejamento) em que é discutido e priorizado o orçamento.
No caso de Porto Alegre, essa diferenciação de escalas não encontra
Figura 04 - Demandas da Região Leste apontadas em 2011 no OP Porto Alegre
correspondência no modelo organizativo do OP, o qual possui uma única
Fonte: Observatório de Porto Alegre 2011
divisão em 17 regiões, que mesmo compostas por bairros diferentes,

206 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 207
5. INTEGRAÇÃO ENTRE OP E O PLANEJAMENTO/GESTÃO distribuição de recursos e a articulação entre o OP e as demais políticas de
TERRITORIAL DAS CIDADES DE planejamento gestão do território, tais como os Planos Globais Específicos,
PORTO ALEGRE E BELO HORIZONTE o Plano Diretor de Belo Horizonte e o Programa BH Cidadania.

No Brasil, segundo o estudo realizado por Reis e Pires (2007),


sobre planejamento, ordenamento e gestão territorial, a preocupa- 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
ção com a dimensão territorial nas políticas públicas não é recen-
te. No entanto, o território se tornou central nas políticas públicas O presente artigo não teve como objetivo estabelecer uma hierar-
somente nas últimas décadas, período no qual o país passou pela quização dos OPs de Porto Alegre e Belo Horizonte. A análise realizada
redemocratização e pela construção da Constituição de 1988, que dos documentos disponíveis nos websites da prefeituras revelou que
possibilitou que os mais diferentes setores da sociedade pudessem apesar de apresentarem semelhanças no contexto histórico de suas
participar na condução das políticas públicas adotadas pelo Estado implantações, os OPs desenvolveram diferentes estruturas organiza-
brasileiro. cionais.
Além disso, segundo Gugliano et al (2010): Podemos considerar que os modelos organizacionais adotados em
Porto Alegre e Belo Horizonte estão ligados aos contextos locais de cada
Em termos orçamentários, a nova Constituição previu a existência uma das cidades, evidenciando assim a necessidade de análises que
de três mecanismos para elaboração do orçamento público: o Plano considerem o espaço como um condicionante dos fenômenos sociais.
Plurianual (PPA), referente a despesas, obras e serviços que durarem
Além disso, através da análise realizada foi possível verificar que a
mais de um ano; a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), por meio da
qual se definem principalmente as metas e prioridades para o período
expansão do OP não se caracteriza por uma uniformidade de formatos
subseqüente à elaboração do PPA; e a Lei Orçamentária Anual (LOA), e que apesar de toda literatura produzida sobre apontar o OP porto-
que é propriamente o orçamento que será executado no ano. Mesmo -alegrense como referência, a sua estrutura não se reproduz da mesma
existindo normatização nacional, a Constituição também garantiu au- forma em Belo Horizonte.
tonomia aos municípios no tocante à forma como esses procedimen-
tos deveriam ser executados, o que abriu uma brecha considerável
para o desenvolvimento de um modelo participativo de gestão das REFERÊNCIAS
finanças públicas, perspectiva reforçada com a aprovação do Estatuto
da Cidade, a partir de 2001. (GUGLIANO et al, 2010, p. 190)
AVRITZER, Leonardo. A inovação democrática no Brasil: o orçamento participa-
tivo. São Paulo: Cortez, 2003.
A Constituição de 1988 possibilitou a implantação dos OPs no Bra- BELO HORIZONTE (Prefeitura Municipal). Transformar BH é uma escolha sua.
sil, contudo Porto Alegre e Belo Horizonte adotaram diferentes modelos Orçamento Participativo 2011/2012. Metodologia e Diretrizes. Belo Horizon-
de organização. A partir da análise realizada nos documentos disponi- te, 2011. Disponível em: http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.
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Alegre não evidencia a integração com outras políticas de planejamento
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e gestão territorial da cidade. FEDOZZI, Luciano Joel. O poder da aldeia: gênese e história do orçamento par-
No caso de Belo Horizonte a existência da integração entre planeja- ticipativo de Porto Alegre.  Porto Alegre: Tomo Editorial, 2000.
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historicamente integrado ao planejamento da cidade. Os seguintes aspec- GUGLIANO, Alfredo Alejandro y otros. “Trajetórias dos orçamentos participa-
tivos: notas sobre os processos de Porto Alegre, Montevidéu e Buenos Aires”.
tos demonstram essa integração: o plano diretor de 1996 aprovou as Uni-
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208 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 209
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Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01) e outras normas correlatas3, espe-
cialmente os referentes à “gestão democrática da cidade”, em processos

1 Advogado e doutor em planejamento urbano e regional (Propur-Ufrgs), professor universitário


(IMED). . joaotelmofilho@uol.com.br.
2 Arquiteta. Doutoranda em planejamento urbano e regional (Propur-Ufrgs), professora universi-
tária (UPF). carlaportal@upf.br.
3 Podemos citar, dentre outros, os dispositivos referentes aos direito reais, à posse e a proprie-
dade no novo Código Civil Brasileiro, os dispositivos da Lei 6766/76 (Lei do Parcelamento do Solo
Urbano e suas alterações), do Código Florestal Brasileiro as Resoluções 001 do Conselho Nacional
do Meio Ambiente e a Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades.

210 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 211
como os de elaboração e revisão de planos diretores municipais, bem de grupos organizados da sociedade detêm o poder de decisão em uma
como na realização de audiências e consultas públicas em questões vin- sociedade.
culadas ao planejamento urbano. As concepções acerca dos modelos de democracia liberal passam pela
Procuraremos referir brevemente aspectos da teoria democrática e concepção elitista (SCHUMPETER, 1942), do pluralismo como forma de
sua evolução histórica: da democracia representativa à democracia par- disputa entre elites e da política como negócio (DAHL, 1956). Os problemas
ticipativa e das formas de efetivar ou aprofundar a democracia partici- do sistema de representação em relação a elitização e profissionalização da
pativa no planejamento e gestão urbanos, verificando em que dimensão política encontram na teoria da democracia participativa (MACPHERSON,
se inserem os “planos diretores participativos”. 1977 e PATEMAN, 1992). a solução através da legitimação da democracia
Com a conformação do capítulo da política urbana na Constituição pela participação popular nos processos. A questão central, no entanto, a
Federal de 1988 e a edição do Estatuto da Cidade em 2001 muito se partir dos trabalhos dos autores deixa de ser sobre a importância democra-
avançou no sentido de promover a democratização do planejamento es- cia participativa e passa a ser o modo de efetivá-la.
pecialmente nos processos de elaboração e revisão dos planos diretores. A teoria participativa evolui para a noção de política deliberativa,
Entretanto, a realidade tem demonstrado uma série de dificuldades em concebida a partir do trabalho de HABERMAS (1993, 2002 e 2003)
promover e qualificar espaços com efetiva participação das populações. até a uma concepção crítica da deliberação que pode ser chamada de
O objetivo deste artigo é, assim, promover uma discussão acerca dos “emancipatória” ou “inclusiva” da democracia, concebida a partir dos
instrumentos de participação disponibilizados pelo Estatuto da Cidade e trabalhos de autores como DUSSEL (2000) SANTOS (2002 e 2006) e
da necessidade de revisão de alguns destes instrumentos. Gaventa (2006).
A idéia de democracia deliberativa amplia o conceito pluralista de
participação que definido como aquele no qual há abertura à participação
2. Breves considerações sobre popular, porém sem se vincular a elas, através dos sistemas de demo-
o planejamento urbano e democracia cracia semi-direta (audiências e consultas públicas consultivas, conselhos
consultivos). A democracia deliberativa inclui o requisito da auto-determi-
A discussão acerca da democratização do planejamento e gestão nação política em que o cidadão é o agente que vai determinar a agenda
das cidades engloba necessariamente o debate acerca da participação e tomar as decisões, como no caso dos conselhos deliberativos.
efetiva das populações nos processos de decisão política nas comuni- Já a idéia de democracia emancipatória ou inclusiva é formulado a
dades em que estão inseridas e inclui antigos questionamentos teóricos partir da crítica do modelo deliberativo e da aplicabilidade da demo-
sobre as formas de efetivar a democracia e a participação. cracia deliberativa em situações políticas, sociais e culturais específicas.
A concepção de democracia e participação prevista no Estatuto da Um modelo de democracia participativa inclusiva pode ser considerado
Cidade (Lei 10.257/01) e legislação correlata e sua conformação nos como modelo avançado da democracia, que mantém a estrutura básica
planos diretores municipais através da elaboração e aplicação do cha- do governo liberal, mas com diferenças em relação ao enfoque ético-
mado Plano Diretor Participativo pelos municípios e a possibilidade de -político da democracia liberal incluindo-se as idéias de aceitação da
gestão democrática da cidade aponta para o critério de validação das participação, o estímulo a deliberação racional, a busca da eqüidade e
políticas públicas a partir da idéia de democracia participativa. da inclusão política dos excluídos.
Os âmbitos e os critérios de validação das “expectativas” democrá- A evolução da idéia de democracia influencia os modelos teóricos
ticas, bem como os modos de efetivação da democracia no espaço ur- e as práticas de planejamento urbano no país. Retomando as principais
bano são questões que carecem do aprofundamento teórico acerca do correntes que se estabeleceram e aproveitam a evolução das concep-
sentido da democracia e da participação popular na modernidade. ções de democracia, podemos citar a evolução dos modelos clássicos de
A democracia pode ser compreendia a partir da teoria liberal repre- planejamentos físico-territorial, para o planejamento urbano estratégico
sentativa como modelo de decisão em que representantes de elites ou e dois tipos de planejamento participativo: o planejamento comunicati-

212 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 213
vo ou deliberativo e propostas de planejamento participativo emancipa- 3. A constitucionalização da política urbana
tório ou inclusivo.
Para AVRITZER (2002, p. 23) a solução do dilema da efetivação da As práticas históricas de planejamento urbano no Brasil fundadas
participação passa pela superação do modelo democrático elitista que no modelo intervencionista, tecnocrático e autoritário não acompanham
emergiu no pós-guerra. Um modo de superação é proposta por GAVEN- as mudanças políticas e culturais do país no período da redemocratiza-
TA (2006, p.15), a partir do trabalho de Fung e Wright (2003) Empowe- ção. O modelo tradicional de planejamento entra em declínio no país no
red Participatory Governance (2003) – EPG propõe o aprofundamento fim da década de 1980, pela crise fiscal e as dificuldades econômicas do
da democracia através de um pragmatismo orientado para a solução de país e dos municípios brasileiros, bem como pelo próprio desinteresse
problemas concretos. político no planejamento.
Isto se daria através da substituição dos modelos de Democracia A necessidade promover alterações na forma de governar e planejar
Restrita ou Rala (Thin Democracy), fundada na manutenção das buro- as cidades e a pressão de profissionais e dos movimentos sociais na
cracias democrática e na devolução da decisão popular (consulta, ple- Assembléia Nacional Constituinte fez com que na Constituição Federal
biscito, referendo), pelo modelo da Democracia aprofundada (Deep de 1988 fosse designado um capítulo específico para tratar do tema da
Democracy), fundada no igualitarismo na representação e no incentivo “política urbana”. Conforme disposto no artigo 182, a política de desen-
a democracia associativista, o que pode ser representado no quadro volvimento urbano deve ser fundada nos princípios da função social da
abaixo: cidade e da propriedade urbana e que terá suas diretrizes previstas em
lei.
QUADRO 1: Dimensões da democracia conforme Fung e Wrigt Com base no artigo 24, inciso I, a União, no âmbito da com-
Democracia Retrita Democracia Profunda
petência concorrente sobre direito urbanístico, tem como atribuição
(Thin Democracy) (Deep Democracy)
estabelecer as normas gerais de direito urbanístico por meio de lei
federal de desenvolvimento urbano, que deve conter as diretrizes do
Eleição e Repre- Sistema partidário, Sistema de participação igua- desenvolvimento urbano e regional, os objetivos da política urbana
sentação eleitorado desengajado litário, eleitorado engajado nacional, a regulamentação dos artigos 182 e 183 da Constituição,
além de instituir os instrumentos urbanísticos e o sistema de gestão
Corporativismo buro- desta política.
Associativismo Democracia associativista
crático
“ Constituição da República Federativa do Brasil
Participação Di- Empowered Participatory (...)
Plebiscito e referendo Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
reta Governance – EPG
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
Fonte: GAVENTA, 2006, p. 20. objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da ci-
dade e garantir o bem estar de seus habitantes. (grifei)
O que se percebe a partir do marco do Estatuto da Cidade é a afirma-
ção do modelo de planejamento participativo, com um misto dos sistemas O Estatuto da Cidade (Lei 10.257, de 10.07.2001) é a lei fe-
estratégicos (especialmente no planejamento territorial e nas estratégias deral de desenvolvimento urbano exigida constitucionalmente. O
induzidas à partir dos planos diretores), deliberativo com constituição de Estatuto regulamenta os instrumentos de política urbana que devem
instâncias e fóruns deliberativos e inclusivo no sentido de ampliar e esti- ser aplicados tanto pela União, como pelos Estados e Municípios e que
mular a participação (Deep Democracy). E é exatamente em relação ao passa a servir de diretriz para o planejamento e gestão das cidades.
aprofundamento da participação que reside uma boa parte dos proble- Ao mesmo tempo, o as diretrizes gerais da política urbana fixa-
mas do modelo participativo constitucionalmente previsto. das pelo artigo 182, § 1º e depois pelo Estatuto da Cidade obri-

214 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 215
gam os municípios com mais de vinte mil habitantes, municípios Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento
integrantes das regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, áreas básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
de interesse turístico e de empreendimentos de impacto ambiental a § 4o No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização
de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
que tenham seus “novos” planos diretores aprovados ou revisados até
garantirão:
outubro de 2006, prazo posteriormente alterado para junho de 2008.
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação
da população e de associações representativas dos vários segmentos
3.1 O Estatuto da Cidade e a explicitação do da comunidade;
princípio da democracia participativa II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e informações
O princípio da democracia participativa está inserido no artigo 1°, produzidos.
parágrafo único da Constituição brasileira que acolhe os postulados da
democracia representativa e participativa. Em que pese o sistema repre- A instrumentalização normativa da participação popular nos planos
sentativo ser o elemento nuclear do conceito de democracia – expres- diretores municipais é uma questão bastante complexa. O princípio da
são do princípio da maioria, o texto constitucional acabou por estabe- participação popular, nos termos do Estatuto da Cidade, instrumenta-
lecer a compatibilidade entre democracia representativa e democracia liza-se através de audiências e de consultas públicas, processo que é
participativa, de forma que estas não se excluem ou concorrem, mas se detalhado na Resolução 25 do Conselho Nacional das Cidades:
complementam.
O planejamento urbano proposto pelo Estatuto da Cidade insere-se Art. 3º O processo de elaboração, implementação e execução do Pla-
no Diretor deve ser participativo, nos termos do art. 40, § 4º e do art.
na dimensão participativa: A redação do inciso II, do artigo 2°, do Esta-
43 do Estatuto da Cidade.
tuto da Cidade aponta a participação popular como diretriz fundamental §1º A coordenação do processo participativo de elaboração do Pla-
dentro do sistema de gestão democrática proposto. no Diretor deve ser compartilhada, por meio da efetiva participação
de poder público e da sociedade civil, em todas as etapas do pro-
Artigo 2° cesso, desde a elaboração até a definição dos mecanismos para a
(...) tomada de decisões.
II - gestão democrática por meio da participação da população e de Art. 4º No processo participativo de elaboração do plano diretor, a
associações representativas dos vários segmentos da comunidade, na publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do Estatu-
formulação e acompanhamento dos planos, programas e projetos de to da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos:
desenvolvimento urbano; I – ampla comunicação pública, em linguagem acessível, através dos
meios de comunicação social de massa disponíveis;
II- ciência do cronograma e dos locais das reuniões, da apresentação
A lei federal prevê uma série de instrumentos para a efetivação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com antecedência de
do princípio da democracia participativa como a obrigatoriedade da no mínimo 15 dias;
ocorrência de audiências e consultas públicas, na elaboração e III- publicação e divulgação dos resultados dos debates e das propos-
gestão do plano diretor e no acesso público a todas as informações tas adotadas nas diversas etapas do processo.
dos processos, conforme o artigo 40, § 4o 4. (grifei)
Conforme os artigos sexto e sétimo, na elaboração do plano diretor
4 Vide recentes decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul no provimento
das Ações Direta de Inconstitucionalidade n.º 70002576072, referente a Lei Complementar as deliberações das audiências públicas devem ser consideradas quan-
Municipal n.º 44/2001 da cidade de Bento Gonçalves, em razão da violação aos princípios da do da discussão e aprovação do plano diretor.
democracia participativa e da separação dos Poderes pela iniciativa legislativa de vereador para
alteração da lei do Plano Diretor e, do provimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
70008224669 em razão da ausência de participação de entidades comunitárias, da falta de Art.6º O processo participativo de elaboração do plano diretor deve
divulgação e da devida publicidade no processo de elaboração do Plano Diretor da cidade de ser articulado e integrado ao processo participativo de elaboração
Guaíba-RS.

216 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 217
do orçamento, bem como levar em conta as proposições oriundas de Na prática, estes dispositivos forçam a implementação de processos
processos democráticos tais como conferências, congressos da cida- democráticos e participativos com objetivo de efetivar práticas demo-
de, fóruns e conselhos. cráticas6. Percebe-se uma clara disposição legislativa de superação da
Art.7º No processo participativo de elaboração do plano diretor a pro-
ideologia autoritária, centralizadora e paternalista que permeia as prá-
moção das ações de sensibilização, mobilização e capacitação, devem
ticas de planejamento urbano no país e obrigando os administradores
ser voltadas, preferencialmente, para as lideranças comunitárias, movi-
mentos sociais, profissionais especializados, entre outros atores sociais. ao cumprimento das tarefas no sentido de promover a democratização
do planejamento e da gestão. Dentre as razões da participação há de
O funcionamento das audiências públicas e amplamente detalhado se destacar que promove a reflexão crítica sobre a realidade, o compar-
no artigo oitavo da resolução: tilhamento e maior responsabilização sobre o público e os interesses
coletivos, a priorização dos aspectos a partir do olhar do cidadão e dos
Art. 8º As audiências públicas determinadas pelo art. 40, § 4º, inciso I, do seus interesses, o aprendizado e o crescimento da cidadania, do mesmo
Estatuto da Cidade, no processo de elaboração de plano diretor, têm por modo que evita privilégios a grupos restritos da sociedade e a corrup-
finalidade informar, colher subsídios, debater, rever e analisar o conteúdo ção.
do Plano Diretor Participativo, e deve atender aos seguintes requisitos: As inovações legislativas trazidas pela Constituição Federal e pelo
I – ser convocada por edital, anunciada pela imprensa local ou, na
Estatuto da Cidade e outros dispositivos legislativos ainda são, na prá-
sua falta, utilizar os meios de comunicação de massa ao alcance da
população local; tica, muito limitadas em relação à efetividade da participação popular
II – ocorrer em locais e horários acessíveis à maioria da população; nos processos. As administrações municipais embora incorporem, por
III – serem dirigidas pelo Poder Público Municipal, que após a exposi- força de lei, a idéia da participação popular na elaboração dos planos
ção de todo o conteúdo, abrirá as discussões aos presentes; diretores e na formalização de “instâncias participativas” como fóruns,
IV – garantir a presença de todos os cidadãos e cidadãs, independen- conferências e conselhos, pouco avançam no sentido de ampliar e qua-
te de comprovação de residência ou qualquer outra condição, que
lificar esta participação.
assinarão lista de presença;
V – serem gravadas e, ao final de cada uma, lavrada a respectiva ata, O planejamento participativo ou político, no dizer de ABIB e OLIVEI-
cujos conteúdos deverão ser apensados ao Projeto de Lei, compondo RA (2001) efetivou-se, no país, como modelo de planejamento e gestão
memorial do processo, inclusive na sua tramitação legislativa. das cidades, a partir da aprovação do Estatuto da Cidade, em 2001.
Embora tenha ocorrido a ampliação dos canais de participação como os
Na leitura dos dispositivos do Estatuto da Cidade e da Resolução 25 do Conselhos e órgãos colegiados e a institucionalização dos orçamentos
Conselho das Cidades a aprovação pública dos planos diretores participa- participativos nos últimos anos, o resultado desta ampliação é ambíguo:
tivos pressupõe a prévia e obrigatória realização obrigatória de audiências
e/ou de consultas públicas e ainda uma série de outros requisitos para pro- é possível sugerir que mesmo nas experiências mais avançadas de
mover a participação das populações nos processos. Podemos considerar participação popular na gestão pública [...], as duas correntes históri-
a participação popular como fundamento jurídico e normativo do planeja- cas do associativismo brasileiro (mais assistencialista ou mais reivindi-
catória) continuam presentes e entrelaçadas nas práticas associativas
mento urbano como um todo e nos planos diretores em especial. Entretan-
do município. [...] na medida que a corrente denominada participacio-
to, muitos destes requisitos tidos como obrigatórios raramente têm sido nista [...] institucionalizou instâncias de participação direta na gestão
cumpridos na elaboração dos planos diretores municipais5. de políticas públicas, o ideário difuso e híbrido parece se reconstruir
e impregnar grande parte dessas experiências inovadoras e experiên-
5 O artigo 53 do Estatuto da Cidade altera o artigo 1° da Lei 7.347/85 - lei da ação civil pública
de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente e outros interesses difusos e coletivos cias associativas (RICCI, 2002, p. 69-70).
- o artigo inclui na lei, a possibilidade de acionar na Justiça os responsáveis por danos à ordem
urbanística, podendo incidir sobre o Prefeito a sanção de improbidade administrativa e obrigar, 6 No guia Plano Diretor Participativo. Guia para elaboração pelos municípios e cidadãos, editado
em liminar ou no mérito (art. 3.°). A ação poderá ser promovida por associação civil legalmente pelo Ministério das Cidades em 2004, são propostas as seguintes etapas para elaboração dos pla-
constituída há pelo menos um ano e que tenha a previsão de promover a ação civil pública em seu nos diretores participativos: leituras técnicas e comunitárias, formulação e pactuação de propostas;
estatuto, bem como pelo Ministério Público. definição dos instrumentos e determinação do sistema de gestão.

218 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 219
Conforme COSTA (2008) as experiências brasileiras de planejamen- dos representantes nestas instâncias não está imune às influências po-
to participativo a nível local têm se institucionalizado mais por exigên- líticas e dos grupos de pressão, especialmente dos grupos econômicos
cias das outras instâncias governamentais (obrigações decorrentes das que tem grande interesse nos valores relativos à terra urbana.
leis federais e do repasse dos recursos de órgãos governamentais), do Estas questões alcançaram especial interesse em razão do adensa-
que por iniciativas próprias, ocasionado um comportamento formalista mento construtivo e a valorização dos estoques imobiliários nas cidades,
e o que poderíamos denominar de prefeiturização de muitos conselhos. que vem ocorrendo nos últimos anos. A capacidade das prefeituras e os
Esta situação de cooptação política das instâncias pelos políticos e Conselhos Municipais decidirem sobre questões como os índices cons-
pela burocracia estatal tem fundamento no desconhecimento e na relati- trutivos, estoques do solo criado, localização e liberalização de empre-
va desconfiança quanto aos espaços participativos, como os conselhos e endimentos, dentre outros, fazem com que em muitos processos ocorra
muitos dos orçamentos participativos municipais. Outra questão diz res- um interesse velado de grupos empresariais e a cooptação e manipula-
peito à questão dos recursos e capacidades dos atores sociais para se ção da participação por parte de políticos locais e empresários9.
engajar nessas práticas: Pessoas e grupos sociais com menos recursos Embora se perceba gradativamente, avanços em relação à tomada
tenderiam a participar menos, o que influi na composição das instâncias de consciência e pressão da sociedade civil bem como nas decisões ju-
participativas e o que ocorre significativamente em relação aos conse- diciais referentes aos temas do planejamento e gestão das cidades10,
lhos. No dizer de RICCI (2002, p. 72-96): a participação das populações nestes processos tem sido restringida
pelas administrações locais, que salvo exceções, tem pouco interesse na
[...] os conselheiros não apresentam o perfil médio da população. Os con- ampliação e qualificação efetiva da participação popular11.
selhos atraem e envolvem segmentos mais organizados da sociedade.
Assim, as práticas participacionistas não conseguiram, até o momento,
se enraizar na cultura e práticas da política nacional. Nem mesmo nas
localidades onde elas foram implementadas por governos locais parece 4. Conclusões
ocorrer uma mudança significativa na cultura política local, podendo-se
sugerir que nos encontramos numa transição ou relação intrincada entre Disponibilizar espaços de participação é fácil, o difícil é garantir a
os modelos formais e tradicionais e modelos participativos de gestão pú- qualidade desta participação, em razão dos interesses envolvidos. Este
blica. [...] a lógica seletiva da política formal brasileira [que] parece conta-
minar vários mecanismos de participação popular na gestão pública, e a
renda aparece como fator de seleção ou exclusão política. 9 Vide o processo de revisão do atual plano diretor de Porto Alegre em que o Ministério Público
do Estado do Rio Grande Sul solicitou a anulação de audiência pública para a revisão do plano. O
Ministério Público do Estado, através da Promotoria de Defesa das Questões Fundiárias e Ordem
Como acima referido, nos espaços formais de participação, majo- Urbanística, ingressaram com Ação Civil Pública no Foro Central, com pedido liminar de anulação
ritariamente participam e tem poder de decisão os representantes do da audiência pública realizada no dia 26 de maio que tratam da revisão do Plano Diretor de Porto
Alegre, indicando uma série de irregularidades na realização das reuniões, em razão de cooptação
executivo e legislativo municipal, e/ou os membros de grupos organiza- de participantes e restrição da participação de entidades.
dos da sociedade, especialmente os grupos econômico-empresariais7, 10 Do ponto de vista institucional, o poder judiciário no país, como um todo, tem trabalhado mais
ocorrendo um misto de prefeiturização com um modelo de mediação de no sentido de responder às demandas nos casos concretos, quando provocado, e não tem, salvo ex-
ceções, criado canais específicos de comunicação com entidades comunitárias e a sociedade para
interesses das administrações públicas com o de grupos empresariais8. tratar de questões urbano-ambientais.. Como exemplo positivo temos os provimentos do Tribunal
Mantêm-se em geral, o centralismo das decisões no poder executi- de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, como o More Legal e mais recentemente a criação de
vo, tanto poder de nomear representantes quanto na possibilidade de vara especializada para tratar de questões urbano-ambientais.

influenciar na organização e na composição de órgãos como os Conse- 11 O Ministério das Cidades, através da Secretaria Nacional de Programas Urbanos, oferece uma
série de programas para a capacitação técnica de municípios, tais como o programa de apoio à imple-
lhos dos Planos Diretores e os Conselhos da Cidade. A forma de escolha mentação e elaboração de planos diretores, bem como o repasse de recursos para a elaboração de
planos diretores com metodologia participativa. Além desse, uma série de programas federais, como o
7 Vide SOUZA, Marcelo Lopes de, Mudar a Cidade, uma introdução crítica ao planejamento e à Programa Habitar Brasil, Programa Reabilitação de Áreas Centrais, Programa de Apoio na Realização de
gestão urbanos. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2002. Planos Diretores Participativos, Programa de Regularização Fundiária, Projeto Monumenta (Ministério
8 Vide OLIVEIRA FILHO, João Telmo. A participação popular no planejamento urbano. A experiên- da Cultura), Programa de Desenvolvimento do Turismo - Prodetur (Minstério do Turismo) e Programa
cia do plano diretor de Porto Alegre. Tese de Doutorado. Propur-Ufrgs, 2009. Nacional de Apoio e Financiamento à Gestão dos Municípios PNAFM (Ministério da Fazenda).

220 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 221
talvez seja o maior dilema a ser enfrentado para a efetivação de uma Estes problemas guardam relação a problemas estruturais da pró-
“política urbana” realmente democrática e participativa: a de não trans- pria democracia, como na dificuldade de criar “cultura participativa”
formar a participação em um modelo de decisão a serviço de interesses quanto no descompromisso dos administradores públicos quanto às de-
políticos particulares e demandas de grupos mais organizados da socie- mandas populares.
dade e, ainda pior, legitimado pelo discurso democrático. Entendemos que o âmbito de validação das expectativas democrá-
A sociedade já incorporou os termos e idéias gerais relativas à par- ticas passa pela ampliação e reestruturação dos ambientes de partici-
ticipação, mas ainda não domina as regras envolvidas, como os aspec- pação direta e, também na melhoria dos sistemas deliberativos como
tos que influenciam a sua qualidade de vida e quais os benefícios ou os Conselhos Municipais que tratam das questões urbanas, o que são
prejuízos envolvidos nestas decisões, ou seja, há a necessidade de um questões políticas, mas também jurídicas.
processo didático pedagógico de ensinagem sobre a cidade. Certamente ampliaram-se os instrumentos de democracia partici-
A história e o processo do planejamento e da gestão urbanos pativa nas decisões urbanas, só que estas determinações democráticas
revelam muito da ideologia política dominante das administrações para tornarem-se efetivas, dependem, e muito, da organização e pres-
públicas do país, muitas voltadas para a manutenção dos interesses são da sociedade, de um comportamento ético democrático do admi-
das classes mais favorecidas e pelo processo autoritário e tecnocrá- nistrador, bem como da efetividade dos controles do Ministério Público
tico de decisão. Os modelos de planejamento e gestão das cidades e do Poder Judiciário e da ampliação da vinculação normativa das admi-
têm evoluído no sentido de possibilitar a ampliação da participação nistrações municipais.
das populações e na transparência na gestão. O Estatuto da Cidade é uma lei avançada que disponibiliza elemen-
Do ponto de vista jurídico, a partir da promulgação da Constitui- tos para a conformação de um planejamento democrático e participati-
ção Federal de 1988 está disposto uma série de instrumentos para a vo, entretanto, entre o “discurso da lei” e as práticas políticas ainda há
efetivação de uma política urbana democrática, em um processo que um grande distanciamento.
necessariamente possibilita a ampla participação popular, como critério Neste momento em que se completam 10 anos da promulgação do
de legitimidade. Neste sentido, os atuais planos diretores, fundados nas Estatuto da Cidade é necessária uma releitura crítica dos instrumentos
diretrizes do Estatuto da Cidade rompem com padrões de planejamento e dos institutos democráticos previstos, ampliando e “explicitando”
estabelecidos, devolvendo, em muitos dos seus aspectos, a titularidade ainda mais o sentido da participação proposta e incluindo regras de
do poder de decisão política a sociedade. efetividade destas expectativas, especialmente as previstas nas resolu-
Os atuais planos diretores municipais, por força da lei, deveriam avan- ções do Conselho Nacional das Cidades, incorporando-os no texto do Es-
çar no sentido de democratização dos processos decisórios, entretanto, tatuto da Cidade, bem como na obrigatoriedade da existência de planos
tem ocorrido uma série de problemas na efetividade de muitos dos ins- diretores participativos em todas as cidades brasileiras e, ainda, ampliando
trumentos previstos no Estatuto da Cidade, tanto do ponto de vista do as sanções pelo não cumprimento destas disposições, para só assim po-
acesso da população quanto do controle popular destes processos. dermos falar na instituição formal de um modelo de planejamento e gestão
A intenção normativa expressa nos dispositivos do Estatuto da Ci- efetivamente democrático a participativo para as cidades brasileiras.
dade mescla instrumentos do planejamento estratégico com o do pla-
nejamento participativo e aponta no caminho de democratizar o plane-
jamento, através da maior abertura a participação e, ao mesmo tempo, BIBLIOGRAFIA
mediar diversos interesses como empresariais e populares é complexa e
necessita tomada de decisões políticas corajosas do administrador pú- ABIB, S e OLIVEIRA, R. de: Participação popular no Planejamento urbano: uma
blico para garantir estes instrumentos. Pode-se afirmar que mesmo em construção teórico-metodológica. Artigo disponível em http:/www.geodesia.
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222 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 223
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estruturação, competências e funcionamento do Conselho das Cidades, e dá


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política na transição paradigmática. Volume 1. A crítica da razão indolente: timidade; Florianópolis
contra o desperdício da experiência. Cortez Editora: São Paulo, 2000.
SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Democratizar a Democracia. Os cami-
nhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 1 Artigo elaborado para participação no Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a cidade: uma introdução crítica ao planeja- Cidade / II Congresso de Direito Urbano-Ambiental, Porto Alegre, outubro de 2011, na área temáti-
ca “Gestão democrática, direito ao planejamento urbano e planos diretores”.
mento e à gestão urbanos. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
SOUZA,___________. A prisão e a ágora: Reflexões em torno da democratização 2 Arquiteta e urbanista, Mestre em Desenvolvimento Sustentável e consultora da Fundação
CEPA, e-mail: lorena_babot@yahoo.com.br.
e do planejamento das cidades. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, 2007.
3 Consultor Jurídico em Meio Ambiente, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Engenharia
e Gestão do Conhecimento, da Universidade Federal de Santa Catarina, e-mail: horema@terra.com.br.

224 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 225
Introdução bilidade, e despolitização, conceito que falseiam, com legitimidade,
conceito que menosprezam.4
Com a edição da Lei n°. 10.257/2001 - Estatuto da Cidade, os mu-
nicípios brasileiros ficaram obrigados a elaborar (ou revisar) os seus Pla- Esse contexto de neo-colonialismo travestido de democracia, des-
nos Diretores a luz da nova ordem urbanística constitucional instituída, pejado sobre uma sociedade ainda atordoada por décadas de regime
dotada de portentosos instrumentos de regulamentação do uso da pro- autoritário e pela surpreendente velocidade das transformações, opera
priedade urbana em prol do interesse público e notadamente inspirado mutilações na definição clássica de democracia esposada por AFONSO
pela democracia direta. DA SILVA (1998:120):
Florianópolis deflagrou o processo participativo para elaboração de
A democracia, em verdade, repousa sobre dois princípios funda-
seu novo Plano Diretor em 2006, mas, transcorridos mais de cinco anos,
mentais ou primários, que lhe dão a essência conceitual: a) o da
ainda não foi alcançado um resultado definitivo. soberania popular, segundo o qual o povo é a única fonte do poder,
Estando o Poder Público compelido a dotar o ordenamento jurídico que se exprime pela regra de que todo o poder emana do povo; b)
deste portentoso instrumento, inclusive com sanções que podem con- a participação, direta ou indireta, do povo no poder, para que este
duzir à improbidade administrativa, e a sociedade civil desejosa de exer- seja efetiva expressão da vontade popular; nos casos em que a par-
cer suas prerrogativas em face do crescente declínio da qualidade do ticipação é indireta, surge um princípio derivado ou secundário: o da
ambiente urbano e natural, ou seja, havendo um propósito comum por representação.
parte dos segmentos envolvidos, a demora na conclusão do processo é
atribuída aos conflitos de interesses coexistentes. A propósito, TOURAINE (1998:29) aponta como tarefa da demo-
Outrossim, a ausência de mecanismos alternativos de resolução de dis- cracia contemporânea “assegurar ao indivíduo a fruição de sua dupla
putas, como a negociação e a mediação, inexistentes no caso em estudo, re- dimensão social”: de igual (perante a lei) e de diverso (diante do social).
mete a solução desses antagonismos ao Poder Judiciário, como ocorreu com Essa valorização do ator social só é possível, na visão do autor, pela
a ação civil pública n°. 023.09.072721-8, ajuizada pela União Florianopoli- superação dos modelos clássicos de democracia, divididos nas verten-
tana das Entidades Comunitárias – UFECO com vista a sustar “quaisquer atos tes revolucionárias e liberais, que, apesar das divergências, expressam o
que venham a impedir, desacreditar ou frustrar o processo de elaboração, ideal da “política das luzes” para o qual o progresso social só é possível
implementação e execução do Plano Diretor Participativo de Florianópolis”, pela eliminação dos atores conscientes e organizados.
representando entraves insuperáveis ao andamento do processo. A democracia participativa, a toda evidência, apresenta-se como antí-
doto às mazelas do sistema político informado por interesses subliminares
1. Democracia e Participação sediados em além fronteiras, em condições de formar no povo a consciên-
cia constitucional de suas liberdades e de seus direitos fundamentais.
A derrocada do sistema socialista, em meados da década de 80, é
Portanto, contrato social, direitos humanos, soberania, princípio
considerado um dos fenômenos mais relevantes do Século XX, ao qual
da autodeterminação dos povos são armas da liberdade, armas
se seguiu incontinenti a hegemonia do (neo)liberalismo e a globalização.
que se não enferrujam nem envelhecem, tão coevas e prestantes
O papel da sociedade civil nos processos de redemocratização dos para as nações deste continente quanto o foram nos séculos XVIII
países da América do Sul tem sido alvo de inúmeros trabalhos (AFONSO e XIX para as nações do chamado Primeiro Mundo. (BONAVIDES,
DA SILVA, 1992; BASTOS, 1998; BONAVIDES, 1998). A maioria deles 2005)
concorda que:

Nos Países do ocidente avançado os governantes e os publicistas em 4 BONAVIDES, Paulo. As bases da democracia participativa. Palestra proferida no I Encontro
seus juízos acerca do Terceiro Mundo confundem trégua com paz, ar- Nacional da Associação Juizes para a Democracia. Recife (PE), 01/12/2005, tema “Por um direito
constitucional de lutas e resistência”. Disponível em http://www.achegas.net/numero/vinteesete/p_
mistício com capitulação, descontentamentos sociais com ingoverna- bonavides_27.htm, acessado em 01/09/2011.

226 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 227
A participação, entretanto, está a exigir novas formas de atuação 40, § 4°., inciso I, da Lei n°. 10.257/2001 – Estatuto da Cidade, que
governamental, como ressalta ROPELATO (2008:93): regulamenta a Política Urbana e estabelece:

A exigência de que os cidadãos possam participar do trabalho polí- Art. 40 - O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento
tico de seus representantes, não apenas depositando de quando em básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
quando seu voto nas urnas, mas também por meio da discussão e do § 4°. - No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização
estudo, do apoio ou da contestação, é uma das questões cruciais que de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo municipais
as democracias modernas devem decidir enfrentar adequadamente. garantirão:
I - a promoção de audiências públicas e debates com a participação
A ideia de participação política pode ter muitas formas diferentes de da população e de associações representativas dos vários segmentos
realização. Segundo BAGGIO (2009:89): da comunidade;

Para que os problemas das sociedades políticas contemporâneas


possam obter uma solução coerente com a cultura democrática, é 2. As Audiências Públicas
necessária uma participação de caráter “forte” dos cidadãos, o que
exige a redefinição dos objetivos da vida em comum, de forma que A Resolução n°. 25/2005, do Conselho das Cidades, dispõe:
recuperem a atualizem a idéia de “bem comum” [...] Essa participação
“forte” realiza-se de modo geral, na forma de mobilização extraordi- Art. 8º - As audiências públicas determinadas pelo art. 40, § 4º,
nária todas as vezes que estão diretamente em jogo os direitos e os inciso I, do Estatuto da Cidade, no processo de elaboração de plano
interesse de uma comunidade local ou categoria de cidadão. (p. 89) diretor, têm por finalidade informar, colher subsídios, debater, rever e
analisar o conteúdo do Plano Diretor Participativo, e deve atender aos
O conceito de participação, segundo o autor, “indica um vínculo que seguintes requisitos:
leva a reconhecer a existência de um bem comum da sociedade à qual I – ser convocada por edital, anunciada pela imprensa local ou, na
pertence”. sua falta, utilizar os meios de comunicação de massa ao alcance da
Supõe, também, uma dimensão “intersubjetiva”, ou seja, a partilha população local;
II – ocorrer em locais e horários acessíveis à maioria da população;
de uma visão de mundo interior e a busca de coordenar ações (MATU-
III – serem dirigidas pelo Poder Público Municipal, que após a exposi-
RANA, 2009) para construir consensos (HABERMAS, 2001). ção de todo o conteúdo, abrirá as discussões aos presentes;
Para além das diferenças antropológicas e idiossincrasias dos indi- IV – garantir a presença de todos os cidadãos e cidadãs, independen-
víduos, os governos precisam criar as condições para que exercite uma te de comprovação de residência ou qualquer outra condição, que
racionalidade transcultural e se alcance uma verdade compartilhada, assinarão lista de presença;
sobretudo mediando a comunicação, no sentido de inibir técnicas de V – serem gravadas e, ao final de cada uma, lavrada a respectiva ata,
violência lingüística ou embustes retóricos, abrindo mão ele próprio de cujos conteúdos deverão ser apensados ao Projeto de Lei, compondo
qualquer debate estratégico (BAGGIO, 2009). memorial do processo, inclusive na sua tramitação legislativa.
Nesse sentido, relevante é o papel da administração pública, quan-
do compelida e responsável a propiciar a participação popular, como, Como se observa, as finalidades das audiências públicas são “in-
nas audiência públicas do plano diretor participativo, que adote uma formar, colher subsídios, debater, rever e analisar o conteúdo do Plano
postura de transparência, renunciando ao oportunismo de tirar proveito Diretor Participativo”.
das limitações ao exercício da alteridade e, ao revés, buscando suprir as Carlos Henrique Dantas da Silva, na obra Plano Diretor Teoria e Prá-
deficiências intersubjetivas com adequada atmosfera ao encontro. tica, assevera:
Inúmeras são as facetas que o tema da participação suscita, mas
Audiências públicas são reuniões coletivas (...), as reuniões devem ter
para o objetivo deste estudo importa ter presente o disposto no artigo caráter expositivo e consultivo, evitando as deliberações. (...) O cará-
228 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 229
ter consultivo é dado quando se pergunta abertamente aos presentes, Analisando-se as emendas, constata-se que se trata de modifica-
mediante a conclusão de temas determinados, quais são as suas su- ções pontuais e casuísticas, muitas delas restritas a locais específicos,
gestões, reivindicações, necessidades, etc.5 quando não a empreendimentos definidos.

A audiência pública pode ser considerada também como um instru-


mento que leva a uma decisão política ou legal com legitimidade e trans- 4. O Processo Participativo do
parência. Trata-se de uma instância no processo de tomada da decisão Novo Plano Diretor de Florianópolis
administrativa ou legislativa, através da qual a autoridade competente
abre espaço para que todas as pessoas que possam sofrer os reflexos O Município de Florianópolis, objetivando enquadrar-se nas novas
dessa decisão tenham oportunidade de se manifestar antes do desfecho diretrizes gerais da Política Urbana introduzidas pela Lei n°. 10.257/01 -
do processo. Ou, como salienta Evanna Soares, Procuradora Regional Estatuto da Cidade baixa o Decreto n°. 4.215, de 12 de junho de 2006,
do Ministério Público do Trabalho na 7ª Região (CE): criando o “Grupo Executivo do Plano Diretor Participativo de Florianópo-
lis”.
Através dela (audiência pública) que o responsável pela decisão tem
A metodologia consistiria em: - Criar núcleo gestor; Eleger os repre-
acesso, simultaneamente e em condições de igualdade, às mais varia-
sentantes distritais; Aprovar a leitura comunitária; Aprovar as diretrizes
das opiniões sobre a matéria debatida, em contato direto com os inte-
ressados. Tais opiniões não vinculam a decisão, visto que têm caráter sínteses e Apresentar o anteprojeto de Lei do Plano Diretor
consultivo, e a autoridade, embora não esteja obrigada a segui-las,
deve analisá-las segundo seus critérios, acolhendo-as ou rejeitan­do- 4.1 As Primeiras Audiências Públicas Municipais
as6.
Em 06 de julho de 2006 o Poder Executivo Municipal realiza a Pri-
meira Audiência Pública, destinada à “formação do Núcleo Gestor do
3. O Plano Diretor de Florianópolis Plano Diretor Participativo”, o qual foi constituído de representantes do
Poder Público e Organizações da Sociedade Civil.
O vigente Plano Diretor do Município de Florianópolis (Distrito sede) Em 01 de agosto de 2006 tem lugar a Segunda Audiência Pública,
data de 1997, quando foi instituído pela Lei Complementar n°. 001/97. objetivando dar continuidade à primeira, na qual se extraiu uma propos-
Já as normas sobre o zoneamento, o uso e a ocupação do solo nos Bal- ta vencedora para a composição do Núcleo Gestor, que ficou com 26
neários da Ilha de Santa Catarina (Plano Diretor dos Balneários) são ain- assentos.
da mais antigas, editadas através da Lei n°. 2.199/85, de 03 de janeiro
de 1985. 4.2 A Instituição do Núcleo Gestor
Até o momento, referidas leis já sofreram mais de quatrocentos e
oitenta alterações, segundo o Instituto de Planejamento Urbano de Flo- Em 26 de março de 2007, o Poder Executivo municipal edita do
rianópolis – IPUF, órgão responsável pelo planejamento municipal e co- Decreto n°. 4.770, de 26/03/2007, instituindo o “Núcleo Gestor do Pla-
ordenação do processo participativo7. no Diretor Participativo de Florianópolis” designando seus respectivos
integrantes:
5 SILVA, Carlos Henrique Dantas da. Plano diretor: teoria e prática. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 10 membros do Poder Público
158.
20 membros das Organizações da Sociedade Civil
6 SOARES, Evanna. A audiência pública no processo administrativo. Disponível em http://jus.
uol.com.br/revista/texto/3145/a-audiencia-publica-no-processo-administrativo acessado em
30/08/2011. Este mesmo Decreto subdivide o território municipal em 13 distri-
7 Disponível em http://floripamanha.org/2006/12/plano-diretor-ja-recebeu-480-emendas/ aces- tos, a saber:
sado em 30/08/2011.

230 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 231
Na segunda fase, ocorrida ao longo de 2007 e 2008, pretendeu-se
a “apresentação consolidação e aprovação das leituras comunitárias”,
bem como a “aprovação das diretrizes para elaboração do Plano Diretor
Participativo de Florianópolis.”
As Audiências Públicas Distritais ocorreram em um número de 34
(trinta e quatro):
Região Sul (Sete Audiências)
Região Norte (11 Audiências)
Região Leste (Sete Audiências)
Região Sede Ilha (Seis Audiências)
Região Sede Continente (Três Audiências)

4.4 A Audiência Pública Municipal para


Apresentação das Diretrizes Distritais

Se nas duas primeiras audiências públicas pretendeu-se (1ª.) a “for-


mação do Núcleo Gestor do Plano Diretor Participativo” e (2ª.) concluir a
“formação do Núcleo Gestor do Plano Diretor Participativo” e “submeter à
apreciação da plenária o cronograma para elaboração da leitura comuni-
tária nos diferentes Distritos”, a Terceira Audiência Pública Municipal,
realizada 03 de julho de 2008, tinha como Ordem do Dia a “apresentação
Os Distritos foram agrupados em cinco regiões: Região Sul, Região das diretrizes distritais e segmentos sociais e diretrizes sínteses”.
Norte, Região Leste, Região Sede Ilha, Região Sede Continente.
Posteriormente o Decreto n°. 4.771, de 26 de março de 2007, no- 4.5 A Dissolução do Núcleo Gestor
meou “os membros titulares e suplentes do Núcleo Gestor do Plano Di-
retor Participativo de Florianópolis”, estabelecendo mandato “até 31 de Em março de 2009, o Prefeito de Florianópolis, após ter sido reelei-
dezembro de 2007, podendo tal prazo ser prorrogado em decorrência to, houve por bem dissolver o Núcleo Gestor.
da durabilidade dos trabalhos de elaboração do Plano Diretor pelo Gru- A iniciativa consistiu no fechamento das instalações físicas e no res-
po Executivo” (art. 2°.). gate dos móveis e equipamentos até então disponibilizado para o traba-
lho dos integrantes do Núcleo.
4.3 As Audiências Públicas Distritais Segundo a Prefeitura, a construção do Plano Diretor entrara numa
fase técnica, na qual os estudos e as propostas seriam analisados por
uma consultoria especializada.
Após a composição do Núcleo Gestor seguiu-se a realização de Au-
Mas, o ato foi considerado um rompimento abrupto e intempestivo
diências Públicas Distritais, que se desdobraram em duas vertentes.
com o processo participativo que vinha se desenrolando, cujas conse-
A primeira delas, transcorrida em 2006, objetivou deflagrar o processo
qüências se fizeram notar mais adiante.
participativo e, conforme a “Ordem do Dia” das respectivas Atas: “a) pres-
Na opinião dos integrantes do núcleo gestor o rompimento do pro-
tar esclarecimentos sobre o Plano Diretor Participativo de Florianópolis: b)
cesso participativo foi marcado pelo afastamento do coordenador do
iniciar o processo de composição do Núcleo Distrital: c) definir os represen-
núcleo e presidente do IPUF na época o Sr. Ildo Rosa pelo prefeito Dario
tantes distritais (titulares e suplentes) para compor o Núcleo Gestor.”
Berger, combinado com o fechamento das bases distritais.

232 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 233
4.6 A Contratação de Consultoria Especializada 4.8 Os Encontros Participativos

Em 22 de maio de 2009 o Município de Florianópolis lança o Edital O primeiro dos “Encontros Participativos”, também denominados de
de Concorrência Pública n°. 001/Glc/Ipuf/2009, cujo objeto era: “Oficinas”, teve lugar em dezembro de 2009 e foi destinado a debater
os seguintes temas:
1.1.1 (...) elaboração de projetos, estudos e pesquisas, envolvendo
horas técnicas, despesas com transporte e diárias de pessoal técnico/ Ordenamento territorial, moradia social e mobilidade.
auxiliar e mobilização, e divulgação à sociedade civil para conclusão Saneamento, Biosfera urbana, e projetos norteadores de desenvolvi-
da nova etapa do Plano Diretor Participativo Sustentável de Florianó- mento como atratores de desenvolvimento sustentável.
polis, baseado no processo participativo realizado nos anos de 2007 Sistema de gestão da produção da cidade que consiste na definição
e 2008, e nos avanços técnicos produzidos pelo IPUF, no sentido de de mecanismos de articulação institucional e com a comunidade para
garantir a efetividade de sua implementação, conforme especifica- a tomada eficiente e transparente de decisões sobre o planejamento
ções constantes em anexo.
Já o segundo Encontro ocorreu em fevereiro de 2010 e destinava-se a:
Em 04 de agosto de 2009 é assinado o Contrato Administrativo
com a Fundação CEPA, empresa binacional, com sede em La Plata, Ar- Verificar o modelo geral aplicado detalhadamente ao território para
gentina, e Porto Alegre, que já havia participado do Projeto Reserva da fazer eventuais ajustes de interesse local, incluindo macrozoneamen-
to, sistema viário, mobilidade e grandes equipamentos e atratores.
Biosfera em Ambiente Urbano, em Florianópolis.
Incorporar as necessidades de equipamentos e demandas sociais e a
conformação de centralidades a partir das diretrizes do PDP no marco
4.7 A Audiência Pública Municipal para do modelo proposto.
Aprovação das Diretrizes Sínteses Debater os padrões de uso e ocupação para cada zona e as tipologias
edilícias mais recomendáveis.
Em 19 de novembro de 2009 é realizada a Quarta Audiência Pú-
blica Municipal com vistas à “Apresentação das Macro Diretrizes do 4.9 A Audiência Pública Municipal para Apresentação
Plano Diretor Participativo” e “Apresentação do Processo de Encontro do Anteprojeto de Lei no Novo Plano Diretor de Florianópolis
Participativos” que teriam lugar na seqüência do processo.
Em 18 de março de 2010 foi realizada a Quinta Audiência Pública
Em outros termos, destinava-se essa quarta audiência a concluir “as
Municipal para “Apresentação do Anteprojeto de Lei do Plano Diretor
discussões da etapa referente as diretrizes das leituras comunitárias e
Participativo de Florianópolis”.
técnicas e dar conhecimento das demais etapas do Plano Diretor Parti-
cipativo de Florianópolis”.
4.10 A Interrupção do Processo
Embora a audiência tenha transcorrido sem incidentes, a União Flo-
rianopolitana das Entidades Comunitárias – UFECO, integrante do Núcleo
A audiência pública destinada a apresentação do anteprojeto de lei do
Gestou, às vésperas ajuizou a ação civil pública n°. 023.09.072721-8, novo Plano Diretor Participativo de Florianópolis não chegou a se concreti-
com vista a sustar “quaisquer atos que venham a impedir, desacreditar zar, pelos motivos constantes em sua respectiva Ata, adiante transcritos:
ou frustrar o processo de elaboração, implementação e execução do
Plano Diretor Participativo de Florianópolis”. Em seguida, o Superintendente do IPUF iniciou os trabalhos saudando a
O pedido de liminar que objetivava suspender a audiência pública mesa, as autoridades e a todos os presentes, bem como, devido aos mais
não foi deferido, assim como o recurso interposto (Agravo de Instrumen- variados tipos de manifestações advindas de parte da platéia, solicitou
civilidade para que a Audiência Pública possa ser realizada, e ainda, se
to n°. 2009.068705-0) não foi provido, resultando válido o ato. não houver condição do início dos trabalhos, a audiência será suspensa.
Ato contínuo, incitando o público, o Vereador licenciado Ricardo Vieira,
234 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 235
adentrou ao recinto, munido de megafone, e proferindo palavras de jeto do novo Plano Diretor da cidade de Florianópolis, recentemente
ordem, de maneira que a referida audiência não pudesse prosseguir. concebido, a fim de que possamos remetê-lo à apreciação da Câmara
Com essas manifestações contrárias e conduzidas pelo Vereador citado Municipal de Vereadores.
acima, populares invadiram o palco do Teatro Álvaro de Carvalho – TAC,
com faixas de protestos e caixas de som impossibilitando a continuida-
Este decreto é o registro de uma nova estratégia para convocar os
de dos trabalhos.
[...] representantes das regiões, porém, ainda que vários deles demons-
Neste momento, a mesa recolheu-se ao fundo do palco a fim de aguar- trassem interesse em participar contribuindo com os estudos de modo
dar o final da manifestação para dar continuidade a Audiência Públi- informal, a articulação política do núcleo autoconvocado minimizou a
ca, contudo, diante da animosidade dos manifestantes, e do risco a participação dos representantes distritais, tendo em vista a contrarie-
segurança dos presentes os mesmos aguardaram até às 20h30mim, dade dos seus integrantes em serem afastados da gestão do processo
dando assim por encerrada a Audiência Pública pelo Superintendente participativo.
do IPUF, Sr. Átila Rocha dos Santos. Culminando na manifestação popular que impediu a realização da
audiência publica em março de 2010 e também do encaminhamento do
projeto de lei à Câmara de Vereadores.
5. O Momento Atual Após estes fatos a comissão especial inicia um processo de avalia-
ção do projeto de lei e em seguida o prefeito Dario Berger através do
No dia 24 de agosto de 2011 a prefeitura de Florianópolis realizou decreto nº 9052 de 31 de maio de 2011, decreta um ajuste da comis-
uma reunião com o núcleo gestor do processo participativo do plano são com novos integrantes para coordenação, acompanhamento e en-
diretor e o ministério público nas esferas estadual e federal. Esta reunião caminhamento do anteprojeto do plano diretor participativo sustentável
estabeleceu um marco na história do processo participativo, após três de Florianópolis.
anos de discussões sobre a legitimidade do projeto de lei, tendo em
Art. 1º (...) a fim de remetê-lo à apreciação da Câmara Municipal de
vista o rompimento do processo participativo estabelecido quando da Vereadores.
formação deste núcleo gestor . Art. 2º Fica sistematizado o trabalho, conforme o que segue:
Ainda que realizado um processo técnico com oficinas de apresen- I - Reconstituição do Núcleo Gestor;
tação e discussão sobre os conteúdos do projeto de lei, permaneceu o II - Realização de Audiências Públicas;
conflito da gestão municipal com o grupo denominado “núcleo gestor III - Execução da Conferência da Cidade ou similar.
autoconvocado” (parte do núcleo gestor) que seguiu realizando encon-
tros com a comunidade, entidades e universidades para discutir os ru- Com um prazo de sessenta dias, a partir da data de publicação do
mos do processo e do projeto. Decreto, para conclusão do trabalho e após um ano e quatro meses da
Em abril de 2010 o Decreto nº. 8056 constitui comissão especial ultima audiência pública onde a comunidade recusou a proposta de lei,
para apresentação e revisão do anteprojeto do plano diretor. Comissão a comissão especial convoca o núcleo gestor e o ministério público para
esta, formada por técnicos de diversas secretarias do município e coor- uma reunião ocorrida no dia 24 de agosto de 2011, onde se iniciou um
denada pelos secretários Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, Secretário Mu- processo de reintegração do núcleo gestor.
nicipal da Educação e Superintendente da Fundação Cultural de Floria- Essa reintegração significou um segundo marco na democracia para
nópolis Franklin Cascaes, e Eng. José Carlos Ferreira Rauem, Secretário a construção do planejamento urbano. O primeiro foi a iniciativa do go-
Municipal da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente. verno de desenhar um processo amplo, estruturado, aberto a comuni-
dade e tutelado tecnicamente, quando criou o núcleo gestor e as bases
Art. 1º (...) Estes como Membros, auxiliados pelos técnicos da Funda- distritais. O segundo, a reintegração do núcleo gestor, como o reconhe-
ção Cepa, entidade que elaborou a parte técnica da proposta do novo cimento da existência do capital social da cidade que manteve o com-
Plano Diretor, para coordenar e realizar os seminários para apresen- promisso de incluir-se no planejamento da cidade e conquistou o direito
tação, discussão e recebimento de novas sugestões sobre o Antepro-
de dar continuidade ao processo participativo.
236 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 237
Realizadas as etapas de leitura comunitária, leitura técnica e revi- Com a solução de continuidade representada pelo arbitrário des-
são da leitura técnica, iniciasse o processo de audiências públicas para mantelamento do Núcleo Gestor, ocorrida em março de 2009, ao qual
culminar no congresso de aprovação do projeto de lei pela sociedade. se seguiu longo período de desinformação, a retomada do processo,
Permanecendo a questão que coloca todo processo em dúvida:- o com a audiência pública de novembro de 2009, foi entendida como
projeto de lei é legitimo, considerando que o projeto foi elaborado des- uma violação ao pacto participativo e alvo de judicialização do processo,
vinculando a leitura comunitária da leitura técnica sob a gestão do núcleo com o ajuizamento da ação civil pública n°. 023.09.072721-8, ajuizada
gestor instituído pela própria prefeitura? Estabelecendo assim uma des- pela União Florianopolitana das Entidades Comunitárias – UFECO com
confiança social sobre o motivo real do afastamento do núcleo gestor. vista a sustar “quaisquer atos que venham a impedir, desacreditar ou
O momento em setembro de 2011 é de expectativa. A mediação do frustrar o processo de elaboração, implementação e execução do Plano
ministério público será a solução para o conflito social estabelecido pelo Diretor Participativo de Florianópolis”,
rompimento da gestão do núcleo gestor no processo participativo? Será Posteriormente, na audiência pública promovida em 18 de março
possível reestabelecer o diálogo e consensos?
de 2010, destinada a “Apresentação do Anteprojeto de Lei do Plano
Diretor Participativo de Florianópolis”, as manifestações populares – de
tal porte a impedir a realização do ato – denunciaram a falta de legitimi-
6. A Deslegitimação da Autoridade Política
dade do processo.
Em Ciência Política, legitimidade é o conceito com o qual se julga a
Conquanto as principais características do sistema democrático es-
tejam ligadas à participação popular, a história registra restrições inten- capacidade de um determinado poder para conseguir obediência sem ne-
cionais a esta participação, como informa ROPELATO (2008: 89): cessidade de recorrer à coerção, que supõe a ameaça da força, de tal forma
que um Estado é legítimo se existe um consenso entre os membros da co-
É a tese do “excesso de democracia”, formulada nos Estados Unidos, em munidade política para aceitar a autoridade vigente (BOBBIO, 2004).
meados da década de 1970, pela Trilateral Commission (cf. Huntington & Para WOLKMER (1994:31):
Crozier, 1975): aumentar as oportunidades de participação levaria a es-
trutura democrática a uma crise, e a sobrecarga de pedidos de participa- Numa cultura jurídica pluralista, democrática e participativa a legitimi-
ção oriundos da sociedade civil acabaria por bloquear seu funcionamento. dade não se funda na legalidade positiva, mas resulta da consensua-
Conseqüentemente, em nome da estabilidade do sistema, seria necessário lidade das práticas sociais instituintes e das necessidades reconheci-
impor limites às oportunidades de participação dos cidadãos individual- das como ‘reais’, ‘justas’ e ‘éticas’.
mente e dos agrupamentos sociais, a fim de não dificultar a ação dos dis-
positivos de controle social e, assim, evitar o risco de uma deslegitimação
da autoridade política. O Poder Judiciário, reiteradas vezes, tem suspendido e anulado pro-
cessos participativos em casos como ausência da devida publicidade,
Em Florianópolis, não descumprimento do cronograma divulgado, não divulgação das regras
foi a “estabilidade do siste- para a participação durante a audiência pública, não apresentação pré-
ma” que motivou uma de- via dos estudos e análises aos Conselhos da Cidade ou que convocam
ficiência de participação a audiências sem dar tempo para as análises técnicas aprofundadas que
ponto de obstruir o pro- um Plano Diretor exige, porquanto não se admite que o processo cause
cesso, mas a intenção dos a mínima insegurança nos administrados.
governantes de promove- Ademais, a participação popular tem a natureza do devido processo
rem uma participação me- legal, e quando versa sobre circunstâncias que repercutem no direito de
ramente formal, buscando propriedade, não raro limitando-o ou retirando-lhe o conteúdo econômi-
legitimar decisões de an- co, a interação daqueles que possam vir a ter seus interesses atingidos
temão adotadas. é irrecusável.
238 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 239
Em São Paulo, o Ministério Público, na Ação Civil Pública n°. descrevendo as situações polêmicas, procurando estabelecer um diálo-
0111161-75.2008.8.26.0053, já obteve decisão judicial para “invalidar go com os administrados efetivamente produtivo capaz de formular uma
o projeto de lei municipal n°. 01-671/2007” que promovia a revisão adequada decisão administrativa que leve em consideração os anseios
do Plano Diretor da maior cidade do país, cuja sentença teve sua parte da população.
dispositiva vazada nos seguintes termos: O processo participativo de Florianópolis comprova a hipótese de
que a participação compromete a sociedade, porque envolve e gera uma
Posto isso, julgo em parte procedente a pretensão inicial para: i) in- ferramenta de poder de decisão imprescindível para garantir o planeja-
validar o Projeto de Lei Municipal n. 01-0671/2007; ii) determinar a mento das necessidades. Esse compromisso assegura a continuidade do
realização do efetivo processo de tramitação do anteprojeto de Lei de processo ainda que os interesses políticos mudem.
Revisão do Plano Diretor do Município de São Paulo, assegurando-se
Os valores de um povo estão subjacentes a todas as formas políti-
os princípios da Gestão Democrática da Cidade de São Paulo e da
participação popular, especialmente em relação aos atos de tramita- cas, jurídicas e sociais presentes no jogo democrático e reagem debaixo
ção provenientes do Poder Executivo. da ameaça de usurpação, agitando os quadrantes da sociedade e pro-
duzindo, mais cedo ou mais tarde, as erupções do vulcão político.
Conforme SUNDFELD (2002:56/57) Para além de se debruçar sobre o processo participativo do Plano Dire-
tor de Florianópolis, investigando as causas que levaram a um brutal impas-
O direito urbanístico, justamente por decorrer de uma visão totalizan- se na sociedade local, este trabalho busca a conscientização da importância
te de mundo e de, muito coerentemente, tratar o urbanismo como de um pacto político-participativo que assegure a governaça e qualifique a
função pública, sujeita-se ao risco, nada desprezível, de descambar democracia direta, redesenhando criticamente o conceito de legitimidade.
para o totalitarismo estatal. Induvidosamente não esgota a temática, mas ao revés, espera-se
que estimule o avanço do conhecimento de temas afins, como os me-
Posto isto, resta evidente que o governante que não propiciar a mais canismos de gestão do conhecimento e de mediação de conflitos, que
ampla e irrestrita participação da sociedade, compromete a legitimida- enorme contribuição traria aos processos participativos.
de do Poder, inclusive retirando a eficácia dos atos praticados ao arrepio
da gestão democrática das cidades. Porto Alegre, 05 de setembro de 2011.

Conclusões Referências

A sociedade civil organizada de Florianópolis (ou parte dela), ao im- AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional Positivo. 9ª edi-
pedir a realização da audiência pública de aprovação da proposta do ção, São Paulo: Malheiros, 1992.
Plano Diretor a ser submetida à Câmara de Vereadores, a que alude o BAGGIO, Antonio Maria. A inteligência fraterna. Democracia e participação
art. 10, da Resolução n°. 25 do CONCIDADE, deslegitimou o processo na era do fragmentos. In BAGGIO, Antonio Maria (organizador). O princípio
esquecido: exigências, recursos e definições da fraternidade política. Vol. 2, São
participativo conduzido pelo Executivo municipal.
Paulo: Cidade Nova, 2009.
O cotejo das diretrizes estabelecidas pelos núcleos distritais (leitura co- BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 19ª edição, São
munitária) com o Anteprojeto de Lei do Plano Diretor que estava sendo Paulo: Saraiva, 1998.
encaminhado ao Legislativo deixa evidente que a vontade popular manifes- BOBBIO, Norberto. MATTEUCCI, Nicola. PASQUINO, Gianfranco. Dicionário
tada no processo participativo em grande parte não fora atendida, notada- de Política. (2 volumes). Trad. Carmen C. Varrialle, Gaetano Loiai Mônaco, João
mente no que se refere à altura das edificações ou verticalização da cidade. Ferreira, Luis Guerreiro Pinto Caçais e Renzo Dini. Brasília: Editora UnB, 2004.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 7ª edição, 2ª tiragem,
Ora, a audiência pública será conduzida com boa-fé, quando o ór-
São Paulo: Malheiros, 1998.
gão público atuar com sinceridade, transparência, revelando dados e
240 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 241
BONAVIDES, Paulo. As bases da democracia participativa. Palestra profe-
rida no I Encontro Nacional da Associação Juizes para a Democracia. Recife
A eficácia da participação popular no
(PE), 01/12/2005, tema “Por um direito constitucional de lutas e resistência”.
Disponível em
processo de gestão democrática da
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01/09/2011
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Maria do Carmo Boklage1
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: jul. 2011.
______. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e Resumo: O presente trabalho pretende delinear a discus-
dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso são sobre a eficácia da participação popular na realidade do
em: jul. 2011. planejamento e gestão urbanos na cidade de Porto Alegre.
______. Resolução n. 25, de 30 de março de 2005. Ministério das Cidades. É apresentada a legislação brasileira, onde o princípio da
Conselho das Cidades. Emite orientações e recomendações sobre a aplicação participação popular está consagrado na Carta Magna e foi
da Lei n°. 10. 257/2001 no que tange aos princípios de participação social. detalhado no Estatuto da Cidade, que determina quais os
Disponível em:< http://www.cidades.gov.br/conselho-das-cidades/resolucoes- instrumentos legais devem ser utilizados. Como ilustração,
-concidades >. Acesso em: jul. 2011. analisamos a participação popular no Sistema Municipal
______. Resolução n. 34, de 01 de julho de 2005. Ministério das Cidades. de Gestão do Planejamento de Porto Alegre, que apresenta
Conselho das Cidades. Emite orientações e recomendações sobre a aplicação um processo estruturado de atuação e com resultados con-
da Lei n°. 10. 257/2001 no que tange ao conteúdo mínimo do Plano Diretor. cretos na elaboração do Plano Diretor de Desenvolvimento
Disponível em:< http://www.cidades.gov.br/conselho-das-cidades/resolucoes- Urbano e Ambiental da cidade. O perfil dos representantes
-concidades >. Acesso em: jul. 2011. dos Conselhos Municipais também é determinante na qua-
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Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política 05. São Paulo: RT, pela Fundação do Ministério Público (curso em andamento – titulação especialista); créditos com-
pletos no Mestrado em Transportes pelo Pós Graduação em Engenharia de Produção da UFRGS
1994. em 1993

242 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 243
Moradores de Porto Alegre (UAMPA), existiam na capital gaúcha 170 tes dos movimentos comunitários a refazerem seus discursos e reava-
associações de moradores. liarem suas estratégias e práticas, diante de uma realidade complexa e
Desde a década de 1930 a Lei Orgânica de Porto Alegre previa a refratária a fórmulas pré-concebidas. O OP necessitou de aprendizagem
existência dos Conselhos Consultivos do Plano Diretor (1939), de Con- coletiva, tanto dos governantes como dos representantes das comunida-
tribuintes (1948) e o de Serviços Públicos (1951), implantados e em des na sociedade civil. A experiência do OP em Porto Alegre deu à par-
funcionamento. Na década de 80 houve a expansão dos Conselhos Po- ticipação da sociedade novos horizontes. Houve um redirecionamento
pulares autônomos e das Uniões de Vilas, a implementação dos avanços de políticas públicas possibilitando a ampliação do acesso aos serviços
trazidos pela Constituição de 1988, bem como a implantação e con- básicos e estimulando a organização e a participação social das comu-
solidação do Orçamento Participativo (OP) em Porto Alegre nos anos nidades, particularmente das mais desatendidas. O OP de Porto Alegre
seguintes. foi selecionado pela ONU como uma das 40 melhores experiências de
Em 1988 foram criados os Conselhos Populares através da Lei Mu- gestão local para a Conferência Habitat II (Istambul, 1995) e tornou-se
nicipal nº. 195, de 30 de dezembro de 1988, ampliando e instituciona- referência nacional e internacional. A idéia dos Orçamentos Participati-
lizando os canais de participação direta das comunidades em Porto Ale- vos serviu de base para a implantação de novas formas de participação
gre. A nova lei reunia os conceitos de conselhos populares autônomos e no Brasil e em inúmeros países, havendo, porém, em alguns casos, a
o de conselhos institucionais de participação na administração pública. mera cópia fiel do original.
A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, de três de abril de 1990, Paralelamente, neste período de mudanças a partir de 1989, foi
no Art. 97 do Capítulo VII, determina as formas de participação popu- iniciado um processo de descentralização administrativa através dos
lar: sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, plebiscito, referendo, Centros Administrativos Regionais - CAR, que representam a presença
iniciativa popular, pela participação popular nas decisões do Município da Prefeitura de forma organizada e institucional nas regiões da cidade.
e no aperfeiçoamento democrático de suas instituições, pela ação fisca- Os CAR tornaram-se sinônimos das divisões geográficas da cidade, que
lizadora sobre a administração pública e pela tribuna popular. reúnem vários bairros com características semelhantes, para facilitar as
A Lei Complementar nº. 661, de sete de dezembro de 2010, dispõe ações de planejamento e gestão do município.
sobre as normas gerais dos Conselhos Municipais de Porto Alegre e re- Com a continuidade da administração eleita por quatro gestões,
voga a legislação anterior sobre esse tema. Destaque-se que em Porto percebemos avanços na organização de parcelas da população em tor-
Alegre os conselhos municipais apresentam caráter deliberativo, o que no da luta por direitos universais de acesso à infra-estrutura urbana, às
é uma peculiaridade da legislação em relação aos municípios brasileiros, políticas públicas e aos serviços, bem como avanços na luta contra os
como afirma a seguir: preconceitos.
No final dos anos 1990 foram implantados os Congressos da Cida-
Art. 1º - Os Conselhos Municipais reger-se-ão pelo disposto nesta Lei de, que sinalizavam, em suas resoluções, a necessidade de renovação e
Complementar, nos termos do art. 101 da Lei Orgânica do Município integração dos diversos instrumentos participativos existentes. Foram
de Porto Alegre. realizados Congressos em 1993, 1995, 2000 e 2003. Conforme infor-
Art. 2º - Os Conselhos Municipais são órgãos de participação direta
mado pela PMPA (2011) neste ano de 2011 estão sendo desenvolvidas
da comunidade na Administração Pública e têm por finalidade propor,
fiscalizar e deliberar sobre matérias referentes a cada setor da Admi- diversas atividades para preparar o V Congresso da Cidade a realizar-se
nistração Pública. em novembro. Desde o mês de março tem sido realizadas assembléias
pelos 82 bairros das cidades para mobilizar a comunidade na definição
Em 1989 foi implantado na cidade o Orçamento Participativo - OP de “Motes, Metas e ações para o desenvolvimento local e para a cidade
como modelo de participação popular, que promovia a fiscalização nos como um todo” (PMPA, 2011). A etapa seguinte foi a de reunião das de-
investimentos e a priorização das obras públicas diretamente pela popu- zessete regiões administrativas de Porto Alegre, para destacar as ações
lação. Este projeto obrigou tanto os novos dirigentes como os integran- que necessitam da mobilização e articulação regional. A terceira etapa

244 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 245
será nas oito regiões de planejamento da cidade, onde já são analisadas crescimento urbano do Município em seus aspectos físico, econômico,
e planejadas as questões do desenvolvimento urbano. No V Congresso social, cultural e administrativo; ao pleno aproveitamento dos recur-
da Cidade também serão agregados os aspectos do desenvolvimento sos administrativos, financeiros, naturais, culturais e comunitários do
Município; ao atendimento das necessidades e carências básicas da
humano, da cidadania e desenvolvimento econômico. A etapa final será
população quanto às funções de habitação, trabalho, lazer e cultura,
desenvolvida através dos eixos de Desenvolvimento Econômico, Huma-
circulação, saúde, abastecimento e convívio com a natureza; à conser-
no, Cidadão e Urbano, quando poderão ser organizados Grupos de Tra- vação do patrimônio ambiental do Município, por meio da proteção
balho específicos, Seminários e Conferências, com o objetivo de serem ecológica, paisagística e cultural; à integração da ação governamental
delineadas as grandes diretrizes estruturantes até 2022, que serão sis- municipal com a dos órgãos e entidades federais, estaduais e metro-
tematizadas e apresentadas, e integrarão o Pacto de Governança Muni- politanos, e, ainda, com a iniciativa particular; à participação comuni-
cipal. tária no processo de planejamento e a ordenação do uso e ocupação
Em 2005, além da continuação do Orçamento Participativo, o novo do solo, em consonância com a função social da propriedade urbana.
governo inicia a implantação do Programa de Governança Solidária Lo-
cal, como um novo mecanismo de democracia participativa. A partici- O PDDUA cria o Sistema Municipal de Gestão do Planejamento –
pação da sociedade porto-alegrense também se expressa nos Fóruns SMGP:
Regionais de Planejamento e demais Fóruns Temáticos, nos Conselhos
Setoriais Municipais, no papel dos Centros Administrativos Regionais e Art. 33 - Fica criado o Sistema Municipal de Gestão do Planejamento
- SMGP - como um processo contínuo, dinâmico e flexível, que tem
nas inúmeras organizações sociais e comunitárias autônomas que for-
como objetivos:
mam redes sociais e em permanente renovação na cidade. Esta diver- I - criar canais de participação da sociedade na gestão municipal;
sidade de canais de interação entre sociedade e administração Pública II - garantir o gerenciamento eficaz direcionado à melhoria da quali-
Municipal tornou Porto Alegre cidade conhecida como a Capital da Par- dade de vida;
ticipação (PMPA, ObservaPOA, 2011). III - instituir um processo permanente e sistematizado de atualização
do PDDUA.
1.1. A Participação Popular no Planejamento
e na Gestão Urbana De Porto Alegre No Art. 39 do PDDUA estabelece que o órgão de integração do
SMGP é o Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental -
Em relação ao planejamento e à gestão urbana de Porto Alegre, a CMDUA, que tem por finalidade formular políticas, planos, programas e
participação da sociedade está estabelecida no Plano Diretor de Desen- projetos de desenvolvimento urbano, ao qual compete: zelar pela aplica-
volvimento Urbano e Ambiental - PDDUA (Lei Complementar nº 434, de ção da legislação municipal relativa ao planejamento e desenvolvimento
1º de dezembro de 1999), recentemente alterada pela Lei Complemen- urbano ambiental, propor e opinar sobre a atualização, complementa-
tar nº 646 de 22 de julho de 2010. ção, ajustes e alterações do PDDUA, promover, através de seus repre-
Desde o primeiro Plano Diretor da cidade, Porto Alegre já apresen- sentantes, debates sobre os planos e projetos que incidam nas Regiões
tava uma visão bem mais ampla do que apenas o ordenamento físico no de Gestão do Planejamento, propor, discutir e deliberar sobre os planos
desenvolvimento urbano. VIZZOTO (2009, 97-98) esclarece os princí- e projetos relativos ao desenvolvimento urbano ambiental, receber e en-
pios do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1979: caminhar para discussão matérias oriundas de setores da sociedade que
sejam de interesse coletivo, propor ao SMGP a elaboração de estudos
No 1º Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Porto Alegre, sobre questões que entender relevantes, instalar comissões para asses-
instituído pela Lei Complementar nº. 43, de 21-7-79, pretendia-se a soramento técnico compostas por integrantes do CMDUA, podendo-se
promoção do desenvolvimento urbano da cidade de um modo inte- valer de órgãos componentes do SMGP, bem como de colaboradores
grado para obter a melhoria da qualidade de vida da população e o externos, zelar pela integração de políticas setoriais que tenham relação
incremento do bem estar da comunidade. Visava-se à ordenação de

246 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 247
com o desenvolvimento urbano ambiental do Município, propor a pro- 1.2. O Processo da Participação Popular no
gramação de investimentos com vistas a assessorar a implantação de Planejamento e na Gestão Urbana de Porto Alegre
políticas de desenvolvimento urbano ambiental para o Município, apro-
var Projetos Especiais de Impacto Urbano de 2º e 3º Graus, bem como A participação popular no Sistema Municipal de Gestão do Plane-
indicar as alterações que entender necessárias, aprovar os estoques jamento - SMGP constitui-se em um processo bastante complexo, cons-
construtivos do Solo Criado, aprovar critérios e parâmetros para ava- tituído por diversas instâncias e atividades: nas Regiões de Gestão, nos
liação de Projetos Especiais de Impacto Urbano de 1º, 2º e 3º Graus, Fóruns Regionais e no Conselho Municipal. A base físico-geográfica da
aprovar a metodologia para definição do valor do Solo Criado, aprovar estrutura do sistema de gestão está nas Regiões de Gestão do Planeja-
os valores semestrais, aprovar os planos de aplicação dos recursos do mento (RPG) que são oito e aglutinam as dezessete Regiões do Orça-
Solo Criado de acordo com o disposto nos incs. I a IX do art. 26 da Lei mento Participativo (OP), como mostra o mapa abaixo:
Federal nº 10.257, de 2001, e alterações posteriores. Como detalhado no site da Secretaria do Planejamento Municipal
Os membros do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano (PMPA, SPM, 2011), em cada uma das oito Regiões de Gestão do Pla-
Ambiental - CMDUA são renovados bi-anualmente, ou por ocasião das nejamento a comunidade escolhe os representantes que farão parte do
Conferências do Plano Diretor, como define o artigo 40 do PDDUA. O Fórum Regional de Planejamento. Estes cidadãos serão os integrantes
CMDUA conta com 28 integrantes: nove da comunidade, nove de enti- do Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental. Fazem
dades não-governamentais vinculadas ao planejamento urbano, e nove
de órgãos públicos. A presidência é exercida pelo titular da Secretaria Fonte: SPM-2011
do Planejamento Municipal. Os oito representantes da comunidade são
eleitos pelas Regiões de Gestão do Planejamento e um pelo Orçamento
Participativo, Temática Organização da Cidade, Desenvolvimento Urba-
no e Ambiental. O poder público participa com seis representantes do
Município, um do Estado e um da União.
A última revisão do PDDUA (em 2010) também estabelece, em rela-
ção à participação popular:

Art. 44. Além da participação global da comunidade na gestão do


planejamento urbano, a qual se dará por meio do CMDUA, fica asse-
gurada a participação comunitária em nível regional e local.
§ 1º Para garantir a gestão democrática da Cidade, deverão ser utili-
zados, entre outros, os seguintes instrumentos:
I – representações em órgãos colegiados de política urbana;
II – divulgação de informações sobre empreendimentos e atividades;
III – debates, consultas e audiências públicas;
IV – conferências municipais sobre assuntos de interesse urbano e
ambiental; e
V – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e pro-
jetos de desenvolvimento urbano.
§ 2º Para os Projetos Especiais de Impacto Urbano, fica assegurada a
divulgação referida no inc. II do § 1º deste artigo.
§ 3º Os instrumentos previstos no inc. III do § 1º deste artigo se-
rão utilizados nos Projetos Especiais de Impacto Urbano de 2º e 3º
Graus.

248 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 249
parte de suas atribuições indicar e participar de projetos urbanos que
tenham como objetivo detalhar o PDDUA nas suas Regiões. São respon-
sáveis pela execução destes projetos, que são desenvolvidos por Grupos
de Trabalho compostos por técnicos dos órgãos municipais que possuem
atuação setorial nestes territórios. Também participam no processo de
aprovação dos Projetos Especiais de Impacto Urbano, que provocam
alterações mais profundas na vida cotidiana dos cidadãos, bem como Reunião

promovem reuniões nas quais são apresentados e debatidos projetos ou


planos de interesse da sua região. Os conselheiros do CMDUA analisam
projetos especiais que provocam impacto na cidade (shopping centers,
hipermercados, loteamentos, assuntos relativos à regularização fundiá-
Eleição dos
ria, entre outros). Representantes
A administração pública de Porto Alegre instituiu uma estrutura de R GP

apoio ao processo de planejamento e gestão da cidade, com a criação


do Programa de Regionalização e Participação (PRP), que deve reali- Cidadão
zar a ligação entre a Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) e os
conselheiros representantes das regiões, promovendo a interlocução ne-
cessária e a consolidação dos canais de participação, conforme prevê
o inciso II do artigo 25 do PDDUA. O Sistema Municipal de Gestão do
Planejamento é composto, além da SPM, pelas diversas secretarias en-
volvidas nos projetos específicos. As Secretarias integrantes serão acio-
Reuniões CMDU
nadas através de Grupos de Trabalhos intersecretarias ou de comissões
permanentes, como a Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento
(CAUGE). O Programa de Regionalização e Participação também deve
estabelecer, junto com os Conselheiros Regionais, formas de exercer as Reunião Grupo de
Trabalho PDDU A
atribuições do CMDUA. Uma das atribuições mais importantes do Pro-
grama de Regionalização e Participação é planejar e coordenar o proces-
so de renovação dos integrantes dos Fóruns Regionais de Planejamento.
Congresso
As eleições ocorrem a cada dois anos e exigem uma grande mobilização, da Cidade
pois ocorrem em cada uma das oito regiões de planejamento. O proces-
so eleitoral adotado segue orientações fornecidas pelo Ministério Públi-
co e ocorre em duas etapas. Numa primeira, é feito o cadastramento das
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO POPULAR
pessoas que desejam participar das eleições, seja como candidato, seja
como eleitor. É necessário ter mais de 16 anos e residir na região. Na Pudemos observar, ao longo dos anos, que ainda muitas dificulda-
segunda etapa, ocorre a eleição propriamente dita. des deverão ser superadas até que se possa considerar sedimentada a
O esquema a seguir busca identificar as diversas etapas a ser venci- participação popular em Porto Alegre. Percebemos que os processos
das para que se realize a participação de um cidadão no ciclo de ativida- de participação estão muito burocratizados, aumentando a dificuldade
des envolvidas no planejamento e gestão urbanos de Porto Alegre. para que seja possível a inserção do cidadão dito comum. Por exemplo:

250 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 251
para participar da discussão de um projeto de uma região da cidade informações, como da capacidade do grupo em se fazer representar e
será necessário ser bastante atuante - e ter tempo - e estar próximo dos exigir que ele preste contas de sua atuação. Trata-se, portanto, de uma
representantes da região, sob pena de não tomar conhecimento das da- via de mão dupla, onde representantes e representados têm responsa-
tas das reuniões específicas, uma vez que a divulgação tem sido precária bilidades na construção de uma representação de qualidade.
no sentido de despertar o interesse. Outra grande dificuldade a ser enfrentada é a recusa por parte da
O processo de participação popular, acima de tudo, significa que o sociedade em legitimar os instrumentos de participação popular, o que
governo está partilhando o poder, e isto não se faz gratuitamente. Este é é bem descrito por PONTUAL (2008, p. 3):
o grande desafio para a efetiva sedimentação deste processo. Da parte
do governo há a necessidade de abrir mão de parte do poder e de parte O campo conservador da sociedade brasileira sempre colocou em dú-
da comunidade o abrir mão da autonomia total, uma vez que passa a vida a validade e legitimidade do grau de representação dos conse-
lhos, das conferências, dos orçamentos participativos e outras formas
estar “comprometida” com o poder também.
de democracia participativa, argumentando que os mesmos teriam
No decorrer do tempo, verificamos que a participação democrática um déficit de representatividade quando comparados com a legiti-
passa por uma transformação: há cerca de 15 anos havia a necessidade midade dos representantes no executivo e no legislativo eleitos pelo
premente de participar – “quanto mais gente melhor”, uma demonstra- voto universal. A partir desta concepção, estes setores buscam, no
ção de força numérica. Hoje se questiona a qualidade desta participação exercício de governos e no parlamento, ignorar a existência ou dimi-
– para quê participar, qual o projeto a ser defendido – sem perder de nuir a importância de propostas e decisões tomadas em espaços e
instâncias de democracia participativa. Em outras situações preferem
vista a necessidade de integrar o maior número de pessoas ao processo.
a estratégia de disputar a representação nestes espaços, partidarizan-
Identificam-se insuficiências na sensibilização de enormes contingentes do-os, para poder enfraquecê-los depois, tornando-os linhas auxilia-
de desorganizados, de dispersos e de indiferentes com a riqueza do pro- res dos governos por eles dirigidos.
cesso democrático (PMPA, 2009).
Será que quem participa é efetivamente representativo? Esta é Com referência aos representantes nos conselhos, também verifica-
uma questão importante, porque a falta de representatividade pode mos a necessidade de qualificação técnica dos representantes popula-
deslegitimar os espaços de participação da sociedade. A falta de pro- res para que tenham condições de avaliar corretamente os projetos e
cedimentos e regras amplamente compartilhados para a autorização planos complexos do Plano Diretor. Também é necessária a capacitação
dos representantes e seu controle pelos representados nos indica uma política dos participantes, de modo a possibilitar que tenham o entendi-
tarefa a ser realizada ainda. Essa questão se justifica na medida em mento da realidade em que vivem e consigam condições de negociar as
que os espaços de participação foram criados para que segmentos melhorias para toda a comunidade. A reflexão de CACCIA BAVA (2000,
sub-representados nos Poderes Executivo e Legislativo tivessem canais 05) sobre a abrangência e dimensão da participação nos conselhos nos
de acesso ao poder, levando consigo suas demandas e visões de mun- auxilia na avaliação da sua importância:
do. Se os representantes falham em levar os anseios da população,
eles contribuem para que estes espaços fiquem desacreditados e dei- (...) Um tremendo desafio do momento é garantir o funcionamento
xem de ser uma alternativa aos mecanismos tradicionais de represen- destes espaços públicos de negociação, valorizá-los enquanto ins-
tação. Através de um processo de informação e prestação de contas, tâncias de decisão sobre as políticas nas quais atuam. E para isso
torna-se clara não apenas a responsabilidade do representante frente é preciso qualificar a participação destes representantes eleitos da
ao grupo de seus representados, mas também o movimento contrário: sociedade civil, tornar sua participação expressão de uma disputa de
é responsabilidade dos representados subsidiar o representante com propostas de gestão na qual representem o que estamos chaman-
informações, opiniões e discussões realizadas naquele grupo e cobrá- do aqui de modelo de desenvolvimento humano e sustentável. Caso
isso não ocorra, estes espaços se esvaziam de importância política e
-lo quanto à sua atuação. A qualidade da representação exercida de-
passam a servir para legitimar as propostas vindas dos governos, seja
pende tanto do empenho do representante em prestar contas e buscar
qual for o seu conteúdo.

252 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 253
Na questão da participação também observamos que os movimen- Atuação dos Conselhos e Gestão Participativa – 2007:
tos sociais acabam sendo esvaziados à medida que os seus principais
representantes assumem atuações institucionais. É um grande desafio A função do Conselho segundo a prática dos conselheiros
aos movimentos conseguir manter a mobilização, a única forma de vin-
63,4% - exerce a função de controle e fiscalização da gestão pública
culação efetiva com as bases populares. Para manter esses dois eixos de
58,5% - função deliberativa
atuação, porém, são necessários esforços muito grandes, com o com-
prometimento extremo dos participantes. 53,7% - caráter consultivo
A participação popular não acabou com as relações clientelistas que 29,3% - prestador de serviços
ainda se estabelecem com as trocas de favores por votos ou priorização
das demandas de uma região através da interferência de um político, Relação entre conselho e gestão participativa
mas propicia uma maior transparência no processo de planejamento 41,5% - muito contribuíram para a formulação das políticas públicas
e gestão. Hoje, com o aumento dos meios de comunicação, podemos 22,0% - pouco contribuíram
constatar que a comunidade está mais crítica, não vai “na conversa” de
12,2% - contribuíram medianamente
promessas políticas com tanta facilidade e também se mostra mais prag-
mática para alcançar os objetivos que almeja. Compromisso do poder público com as decisões tomadas pelo conselho
Para ilustrarmos a situação de Porto Alegre, vamos utilizar os dados
41,4% - acreditam que o mesmo tem um baixo e/ou nenhum compromisso
da pesquisa realizada com o objetivo de conhecer a representação da
sociedade civil nos conselhos gestores de políticas públicas, no período 24,4% - consideram que há um alto compromisso
de outubro a dezembro de 2007 (NAHRA, 2008, 1-14), quando dezes- 19,5% - médio compromisso
sete Conselhos estavam em funcionamento na cidade.
Verificamos que aparecem na pesquisa diversas das dificuldades já
Perfil dos representantes em Conselhos - Porto Alegre – 2007: citadas. Pela idade dos participantes, intuímos que os jovens tem sido
pouco motivados a participarem dos conselhos. As pessoas com menor
Sexo: Idade: carga de trabalho são as que se dispõem a atuar, devido ao tempo ne-
Feminino – 65,9% entre 51 a 60 anos - 34,1% cessário a dispender nas diversas reuniões. Isto significa que ampla fatia
Masculino - 34,1% de 41 a 50 anos - 24,4% da comunidade não se faz representar.
Também notamos a indefinição, na visão dos participantes, quanto
Estado civil Cor ou Raça ao papel dos conselhos, se deliberativos, consultivos ou de prestação de
Casados - 61,0% Brancos - 80,5% serviços, o que prejudica a sua atuação mais específica junto à adminis-
Solteiros - 19,5%. Pretos - 9,8% tração pública. Aparece na pesquisa a falta de confiança pelos represen-
Divorciados - 17,1 Pardos - 7,3% tantes de que exista um verdadeiro compromisso do poder público com
Tipo de trabalho Renda as deliberações dos conselhos, o que acaba por tornar baixa a credibili-
36,6% - são aposentados 2 a 4 salários mínimos - 29,3% dade desta relação.
29,3% - trabalham com carteira assinada 4 a 8 salários mínimos - 22,0%
17,1% - são funcionários públicos
3. CONCLUSÕES
Tempo disponibilizado
34,1% - três a sete horas semanais As novas necessidades da população em relação à gestão pública,
29,3% - 8 a 12 horas semanais agora registradas na legislação, possibilitam que sejam trazidos à luz as

254 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 255
dificuldades e os conflitos entre os diversos setores da sociedade, que PONTUAL, Pedro. Desafios à construção da democracia participativa no Brasil:
precisam ser mediados e solucionados de forma coletiva e democrática. a prática dos conselhos de gestão das políticas públicas. Observatório dos Di-
Os variados interesses dos cidadãos precisam ser assimilados e compre- reitos do Cidadão Polis/IEE-PUC-SP. São Paulo, janeiro de 2008. Disponível em:
endidos pelos gestores, de forma a que sejam atendidas as reivindica- <www.polis.org.br>. Acesso em 19/10/2009
ções da população, que, muitas vezes, constituem-se de atendimentos PORTO ALEGRE. Lei complementar nº 434, de 1º de dezembro de 1999. Dis-
de fácil solução. põe sobre o Desenvolvimento Urbano no Município de Porto Alegre. Institui o
Avaliamos que a participação popular em Porto Alegre pode ser con- Plano diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto alegre e dá ou-
siderada bastante significativa e que várias ações tem sido realizadas no tras providências. Diário Oficial do Município de Porto Alegre. Poder Executivo.
sentido de sanar as deficiências, por iniciativa tanto dos representantes Porto Alegre. RS, 24 de dezembro de 1999. p. 1-120.
quanto dos órgãos gestores. _______________. Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, 03 de abril de
Sob os mais diversos aspectos, verificamos que a participação po- 1990. Diário Oficial do Município de Porto Alegre, Poder Legislativo, Porto Ale-
pular é extremamente positiva e torna-se cada vez mais arraigada nos gre. RS, 03 de abril de 1990. p. 23 e ss.
processos de construção das cidades. Passa a ser “A” forma mais com- _______________. Lei Complementar nº 646, de 22 de julho de 2010. Altera
pleta de elaboração, uma vez que, no mínimo, possibilita a aproximação e inclui dispositivos, figuras e anexos na Lei Complementar nº 434, de 1º de
daqueles diretamente interessados nos resultados do seu processo de dezembro de 1999 – Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de
execução por serem o objeto desses resultados. Não é, porém, um pro- Porto Alegre (PDDUA) –, e alterações posteriores, e dá outras providências.
cesso simples nem sem reveses, mas uma meta que deve ser constante- Diário Oficial do Município de Porto Alegre. Poder Executivo. Porto Alegre. RS,
mente buscada como forma de atingir os melhores resultados. 29 de julho de 2010. p. 1-108.
Dessa nova forma, a sociedade como um todo deverá assumir o pa- _______________. ObservaPOA - Observatório da Cidade de Porto Alegre. Dis-
pel de avaliar constantemente a aplicação da legislação num processo ponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/observatorio/default.php?p se-
profundo de fiscalização, e, se necessário, proceder às alterações con- ção =6>. Acesso em: 21/07/2011.
forme a necessidade. Esse processo permanente deverá estar a par com
a dinâmica das cidades, organismos vivos e em constante mutação. ______________. Secretaria do Planejamento Municipal – Planejamento Urbano
– Como a população pode participar. Disponível em: <http://www2. portoale-
gre. rs.gov.br/spm/default.php?p_secao=127>. Acesso em: 15/06/2011.
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cação do instrumento jurídico-administrativo. Dissertação de Mestrado. Univer-
BRASIL. Constituição (1988), de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da sidade Federal do rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Programa de
União, Poder Constituinte, Brasília, DF, 05 de outubro de 1988. Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre. RS. 2008.
_______. Lei Federal nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arti- 231 p.
gos 182 e 183 da CF. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília, DF, 11
de julho de 2001.
CACCIA BAVA, Silvio - Dilemas da gestão municipal democrática – Instituto Po-
lis. São Paulo, publicado em 01/12/2000 - Disponível em: <http://www.polis.
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NAHRA, Clicia Maria Leite. A Representação da Sociedade Civil nos Conselhos
Gestores de Políticas Públicas de Porto Alegre. Porto Alegre, agosto de 2008.
Disponível em: <http://lproweb.procempa.com.br/ pmpa/prefpoa/ observato-
rio/ usu_doc/conselhos_soc_civil_2008.pdf>. Acesso em: 21/07/2011.

256 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 257
Contribuição do Estatuto da Cidade
para a ampliação da participação social
e da governança – a experiência de
planos diretores participativos
em municípios mineiros
Maria Izabel Marques do Valle1

Resumo: O trabalho analisa o desenho institucional propos-


to pelo Ministério das Cidades para a elaboração dos planos
diretores municipais, na trilha aberta pelos novos marcos
jurídico-urbanísticos instituídos pelo Estatuto da Cidade, a
partir do conceito de governança, associando a participa-
ção social à ampliação da democracia e se fundamenta nos
modelos analíticos propostos por Fung (2004) e Lubambo e
Coelho (2005). Aplica essa análise à implementação do de-
senho institucional em um conjunto de municípios de Minas
Gerais, procurando identificar os fatores comuns que contri-
buíram para a efetividade desses processos. As experiências
demonstraram a contribuição positiva das instâncias partici-
pativas para o engajamento dos atores e para a deliberação
pública, considerados os contextos locais.
Palavras-chave: Planos diretores participativos; participa-
ção social; governança; processos participativos.

1. Introdução

A busca pelas cidades sustentáveis e democráticas, bandeira levan-


tada pelos movimentos sociais desde a década de 80, culminou com a
aprovação do Estatuto da Cidade (EC), em 2001, novo marco jurídico-ur­
banístico brasileiro, que regulamenta os artigos sobre política urbana da
CF 1988 e consolida a função social da propriedade e da cidade e a ges-
tão democrática, definindo o plano diretor municipal como o instrumento
por excelência para isso.
Seguindo essa tendência, o primeiro governo Lula (2003/2006)
criou o Ministério das Cidades (MCidades) e estruturou uma política
1 arquiteta urbanista, mestre em administração pública pela Escola de Governo de Fundação
João Pinheiro, pesquisadora do Centro de Estudos de Políticas Públicas da Fundação João Pinheiro.

258 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 259
nacional de desenvolvimento urbano, apoiada, dentre outros pontos, na 2. Participação social, governança e empoderamento
elaboração dos planos diretores municipais, obrigatórios para municí-
pios acima de 20.000 habitantes ou integrantes de regiões metropolita- Apoiada nos autores Santos (2001), Boschi (1999), Azevedo e Abran-
nas. Como incentivo ao cumprimento dessa obrigatoriedade, o MCida- ches (2002) e Melo (1995), Côrtes (2005:15) sintetiza o conceito de go-
des lançou, em 2005, a “Campanha Nacional Plano Diretor Participati- vernança como a capacidade gerencial dos governos, a eficácia de suas
vo: Cidade de Todos”. Essa campanha envolve a disponibilização para os políticas públicas e o processo decisório na promoção do desenvolvimento
municípios de uma orientação normativa e metodológica que enfatiza a sustentável, em contextos democráticos. Pressupõe a intensificação das re-
participação social e a implementação dos instrumentos do EC. lações entre governo e sociedade civil, seja por meio da interação público/
Essa ênfase é o ponto que inaugura o que tem sido identificado privado ou da participação da sociedade civil nos processos de decisão,
como um novo paradigma do planejamento urbano: o Plano Diretor Par- acompanhamento e implementação de políticas públicas, expressas na ar-
ticipativo (PDP), denominação adotada pela “Campanha Nacional Plano ticulação de interesses sociais junto a governos em contextos democráticos.
Diretor Participativo: Cidade de Todos” e que aponta para uma questão Fung (2004), reforçando a relação entre participação, governança e
crítica: a mobilização e a efetiva participação da sociedade na constru- políticas públicas mais eficazes, aponta dois movimentos nesse sentido.
ção do plano diretor municipal, entendido como uma política pública Um mais amplo, de larga escala, que aborda de forma abrangente temas
resultado da atividade política e reflexo de uma política urbana nacional relativos à organização política e social como comportamento associativo,
emergência e impacto de novos movimentos sociais, competição eleitoral,
que incorpora os novos conceitos de gestão pública – descentralização,
atuação da mídia. E um outro, em menor escala, que acontece vinculado
participação e inclusão, destacados pela CF 1988.
às experiências desenvolvidas em esferas de poder local, denominadas por
A discussão aqui apresentada tem como pressuposto central a con-
ele de minipúblicos.
tribuição positiva do Estatuto da Cidade na ampliação da participação
Os minipúblicos correspondem a instâncias participativas que con-
social e desta para a ampliação da democracia e da boa governança, tribuem para o aperfeiçoamento da esfera pública, destacando como
com reflexos no empoderamento dos atores sociais, seja pelo fortale- pontos positivos dessas experiências: o esforço que representam para o
cimento dos espaços de socialização e descentralização do poder, seja engajamento cívico e a deliberação pública; a possibilidade de ampliação
pela ampliação desses espaços e de formas de articulação entre o Esta- pela multiplicação e melhoria dos minipúblicos; e o conhecimento que a
do e os sujeitos sociais, que permitem a manifestação de atores antes diversidade de experiências proporciona sobre a deliberação pública efe-
excluídos dos processos de formulação e implementação de políticas tiva e os detalhes de seus desenhos institucionais. Essa diversidade acaba
públicas, articulando a democracia representativa e a democracia parti- por fazer com que minipúblicos particulares tragam à tona temas centrais
cipativa. como educação política, solidariedade social, controle popular, fazendo
Nessa linha, destaca-se a institucionalização das instâncias partici- com que sua contribuição vá além da legitimidade e inclua accountabili-
pativas como forma de se contrapor a uma herança brasileira de autori- ty2, justiça social, governança efetiva e mobilização popular.
tarismo e clientelismo, contribuindo para o fomento à participação. Os
formatos institucionais das instâncias participativas podem contribuir 2 O conceito de accountability pode ser apresentado considerando as colocações de Wampler
(2005), que aponta três enfoques: vertical, horizontal e societário. O primeiro se refere ao controle de
para minimizar os problemas decorrentes da resistência em participar, autoridades públicas pelos cidadãos, via eleições e limita o papel do cidadão ao do eleitor. Representa
em função do individualismo e do comodismo das pessoas de modo ge- o direito de tomar decisões baseadas na informação, limita a autoridade do prefeito, no caso do municí-
pio, sendo um elo entre participantes e governo. O segundo se refere à distribuição de autoridade entre
ral, contribuindo para a formação de uma cultura de participação, com diferentes departamentos ou organismos governamentais, envolvendo ação em redes, transparência e
reflexos na ampliação da boa governança. responsabilização. Representa a implementação legal, envolvendo diversas instituições e seu monitora-
mento, se refletindo na confiança dos cidadãos. O terceiro se refere à pressão sobre agências estatais
No entanto, considera-se que a implementação desses arranjos por parte de organizações da sociedade civil para que autoridades e burocratas se submetam à sanção
da lei (ações judiciais, manifestações públicas, audiências públicas, instituições participativas). Neste
institucionais vai ser influenciada pelos contextos locais, em espe- caso, os cidadãos não são apenas “eleitores” ou “vigilantes”, mas atores reais no processo de produção
cial a partir da atuação dos governos locais e, de forma complemen- de políticas públicas, com a possibilidade de tomar decisões vinculantes em instâncias de formulação
de políticas públicas. Representa o debate público e a mobilização, a pressão sobre o executivo e o le-
tar, da existência ou não de experiências anteriores de participação. gislativo, o qual pode se esquivar, receando a perda de autonomia e de vantagens baseadas na tradição
de trocas clientelistas mediando as relações entre a administração municipal e as bases eleitorais.

260 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 261
Ao conceito de minipúblico utilizado por Fung (2004), se associa Com relação aos primeiros, Lubambo e Coelho (2005) destacam que,
o de fóruns participativos, como espaços institucionalizados, ligados às em sociedades com alto grau de exclusão social e desigualdade como a
esferas subnacionais de governo, predominando a participação de re- brasileira, inclusive culturais e regionais, os maiores problemas de ação
presentantes de interesses sociais organizados, comportando também coletiva se referem aos grupos pobres e excluídos e compreendem: (i)
a participação direta de cidadãos (CÔRTES, 2005:15), ambos se con- custos de oportunidade, em especial renúncia à aquisição de renda nos
figurando como estruturas institucionais para a ação dos movimentos momentos dos encontros; (ii) custos de organização (transporte, entre
sociais, correspondendo aos espaços públicos de “encontro” entre a so- outros); (iii) baixo nível de informação; (iv) baixo poder de barganha e
ciedade civil e o governo ou instâncias participativas. negociação; (v) baixa efetividade das instituições políticas formais em
De acordo com Lubambo e Coelho (2005), dois pressupostos emba- contextos marcados por altos níveis de pobreza, exclusão social e de-
sam a relação positiva entre participação social e empoderamento, não sigualdades multidimensionais; (vi) assimetria de relações políticas que
excludentes e articulados. O primeiro se refere à dimensão constitutiva tornam esses grupos vulneráveis ao clientelismo e à cooptação.
do empoderamento, ou seja, ao valor da promoção da participação e do Com relação ao controle societário, esses dois autores destacam
empoderamento em si mesmos, pelo seu reflexo sobre as capacidades a preponderância da questão do acesso à informação e, consequente-
dos indivíduos, independente dos seus efeitos sobre a eficiência e a efi- mente, dos níveis de transparência das ações públicas. A assimetria na
cácia de políticas públicas. distribuição da informação está presente entre grupos sociais distintos
O segundo pressuposto se refere à dimensão instrumental do empo- (pobres/excluídos e não pobres/não excluídos), entre governantes/gesto-
deramento, ou seja, ao valor da promoção da participação e do empo- res e não governantes, entre técnicos e cidadãos e se reproduz no inte-
deramento pelos seus efeitos na sociedade. Maior controle societário e rior das instituições governamentais, entre governantes e burocracias e
mais transparência podem contribuir para maior eficiência das políticas na sociedade, entre representantes e representados.
Como fatores que podem enfrentar esses problemas, Lubambo e
públicas, para a redução da apropriação privada de recursos públicos e
Coelho (2005) declaram que os elementos específicos do desenho ins-
da corrupção, além de gerar inputs para o processo decisório e retroa-
titucional podem se constituir em condições facilitadoras para o empo-
limentar a implementação e o monitoramento de políticas e programas,
deramento na sociedade. Nessa perspectiva, o formato institucional se
com ajustes e correções (SMULOVITZ e WALTON, 2003 apud LUBAM-
torna variável fundamental para o sucesso de experiências de gestão par-
BO e COELHO, 2005).
ticipativa e fortalecimento dos mecanismos de deliberação democrática,
A articulação entre estes dois pressupostos implica, por sua vez, a
considerando a herança cívica e as condições de descentralização do País.
articulação entre empoderamento e governança (em que está implícito
o conceito de accountability), sendo esta última o enfoque utilizado para
avaliar a contribuição da participação social na ampliação da democra- 4. O desenho institucional proposto pelo MCidades
cia e, por conseqüência, na formulação de políticas públicas. para a elaboração do plano diretor participativo

Segundo o guia editado pelo MCidades, o processo participativo para


3. Participação e desenho institucional a elaboração do PDP no município deve ser conduzido pelo Executivo
local, articulado com o Legislativo (responsável pela sua aprovação como
Ao lado dos pressupostos colocados, são destacadas duas classes uma peça legal) e com a sociedade, em todas as suas etapas, sendo que
de problemas, os quais incidem sobre os diversos níveis de empodera- a participação da sociedade não deve se limitar à presença em audiências
mento instituídos pelas estruturas de deliberação participativa criadas públicas. A Prefeitura deverá definir uma equipe de coordenação do pro-
no âmbito dos governos e delimitam o alcance dos seus resultados em cesso (Núcleo Gestor), com técnicos dos diversos setores da administração
face dos objetivos almejados. São eles: os problemas de ação coletiva, municipal, complementada, se for o caso, por profissionais especialistas
fundamentados no trabalho clássico de Mancur Olson (1999) e os pro- contratados, sendo condição para isso a transferência de conhecimento
blemas de controle societário (cidadãos x burocratas/governantes). para as equipes locais e a capacitação dessas equipes para a elaboração e
262 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 263
implementação do plano diretor. Desse Núcleo Gestor deverão participar a) caráter da participação e da deliberação: o desenho institucio-
representantes dos diversos segmentos da sociedade civil. nal enfatiza a necessidade de que os encontros permitam e propiciem
As etapas previstas para o desenvolvimento dos trabalhos contemplam a participação ampla e indiscriminada de cidadãos e segmentos da
sociedade, devendo a seleção e o recrutamento se dar de forma a es-
o levantamento de informações e trabalho de campo; o conhecimento da
pelhar a territorialidade dos atores sociais no município, com foco nas
realidade local associando o conhecimento técnico e o conhecimento da po- comunidades de menores recursos, se constituindo em canal de voz
pulação; as discussões de proposições em conjunto com toda a sociedade; para os setores excluídos. Para tanto, deverão ser adequadamente
e a formatação final do anteprojeto de lei, que deve incluir os mapeamentos programados os encontros com relação ao seu número, sua localiza-
correspondentes, a ser encaminhado à Câmara Municipal para o processo de ção, suas agendas e o perfil dos participantes.
aprovação. Essas etapas são perpassadas pelas inovações na metodologia, O desenho institucional contempla momentos de discussão, momentos
cujo foco é converter o planejamento não só em solução técnica, mas no de sistematização e momentos de deliberação. Para que todos tenham
direito a voz, se organiza em fóruns participativos ou minipúblicos para
resultado da articulação política entre os atores sociais, destacando: consulta e deliberação, para os quais deverão ser definidas regras cla-
ras, decididas coletivamente, onde se dá a manifestação dos interesses
a) a mobilização: identificação dos atores sociais presentes no mu-
divergentes, a explicitação dos conflitos, a construção do pacto.
nicípio, suas territorialidades e formas de organização, os canais de
b) transformação individual: o arranjo proposto prevê, com ênfase, as
participação, convocação e sensibilização da sociedade;
atividades de informação e capacitação. Busca envolver os participantes
b) a capacitação: do Núcleo Gestor, dos multiplicadores, da socieda-
nas discussões por meio dessas atividades e, ainda, do encadeamento
de, informando sobre a realidade como um processo de desenvolvi-
das rodadas para construção do Plano Diretor (leitura da cidade, for-
mento desigual, assim como dos objetivos e abrangência de um plano
mulação de estratégias, construção do pacto, aprovação do PDP). Pode
diretor, e, ainda, sobre os procedimentos para a participação da so-
constituir-se, assim, em um processo de aprendizado e de transformação
ciedade na sua elaboração, de forma ampliada;
individual para os participantes, em um processo cíclico e contínuo. Equi-
c) a leitura participativa: “ler a cidade” por meio da leitura técnica
para o conhecimento local e do cotidiano dos participantes ao conhe-
(saber técnico e profissional que revele as diversidades da realidade
local) e da leitura participativa (saber dos diversos segmentos da so- cimento técnico e ao dos gestores públicos, informando a estes com o
ciedade local sobre sua própria realidade). As duas leituras devem ser resultado das deliberações e com as atividades de monitoramento.
sobrepostas, confrontadas, sistematizadas, permitindo que aflorem os c) controle popular: o arranjo proposto destaca a obrigatoriedade
principais conflitos e potencialidades; legal da gestão democrática, compartilhada entre governo e socie-
d) a pactuação das propostas: definição dos temas prioritários/cru- dade civil, na implementação e no monitoramento, como garantia de
ciais para o desenvolvimento do município e sua reorganização terri- incorporação e manutenção dos resultados das deliberações. Preten-
torial, identificando estratégias e instrumentos adequados como ca- de contribuir, dessa forma, para a boa governança, elevando a legiti-
minhos para se construir a cidade no futuro, pactuados com todos os midade do poder local e promovendo maior accountability, justiça e
participantes do processo, entre “a cidade desejada e a cidade pos- eficácia na formulação de políticas.
sível”, levando em conta as forças políticas, sociais e econômicas que d) efeitos políticos: ou seja, mobilização popular, ela pode ser in-
atuam no município, assim como as possibilidades orçamentárias; crementada na medida em que se torna claro para a população: (i)
e) o direito à publicidade e à informação: quanto aos documentos a importância e as conseqüências tangíveis do Plano Diretor no seu
produzidos e acesso público a esses documentos; dia-a-dia; (ii) a concretização dos resultados da deliberação pública
f) a gestão compartilhada e participativa para implementação e na implementação efetiva das decisões coletivas; e (iii) a possibilidade
monitoramento: avaliações, atualizações, ajustes sistemáticos, instân- concreta da sua atuação quanto às decisões governamentais, o que
cias de discussão e decisão, de forma coerente com a capacidade de decorre e resulta em empoderamento dos atores.
gestão do município.
Especificamente com relação aos níveis de empoderamento, o que
Esse desenho institucional proposto corresponde ao que Fung vai se refletir na boa governança e no sucesso das instâncias participati-
(2004) define como governança democrática participativa, permitindo vas e da deliberação pública em geral, o desenho institucional proposto
que os efeitos desejados quanto à ampliação da democracia e da boa é analisado segundo a classificação de Lubambo e Coelho (2005). O
governança possam ser atingidos, considerando os seguintes aspectos: primeiro nível de empoderamento (instituição de mecanismos de con-
264 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 265
sulta pública) é atingido na etapa de leitura da cidade. Os níveis seguin- d) formulação de propostas – procedimentos para a participação so-
tes (instituição de mecanismos inclusivos de deliberação e tomada de cial nas etapas de formulação de estratégias, de construção do pacto
decisões; e instituição de instâncias de monitoramento e fiscalização) e de formulação do anteprojeto de lei;
e) encaminhamento na Câmara Municipal – procedimentos para a
perpassam todo o processo de elaboração dos PDP, estando presentes
participação social na etapa de aprovação do plano diretor.
desde a constituição do Núcleo Gestor, mais fortemente vinculados às
etapas de formulação de estratégias, de construção do pacto e de for-
Quadro 1 – Síntese da implementação do desenho institucional
mulação do anteprojeto de lei, assim como à aprovação dos PDP nas
Câmaras Municipais e à sua implementação e monitoramento. Os dois proposto pelo MCidades para a elaboração dos PDP
últimos níveis (instituição de mecanismos de controle social com respon- em municípios de Minas Gerais
sabilização; e gestão direta de programas) são potencialmente atingidos
também nas etapas de implementação e monitoramento. Municípios
Barão de Cocais Barbacena
Dimensões
5. A implementação do desenho institucional Não há informação sobre
Comissão Gestora insti-
proposto pelo MCidades em municípios de Minas Gerais tucionalizada com repre-
a institucionalização do nú-
Institucionalização cleo de coordenação local.
sentação equilibrada en-
do núcleo de Não houve uma atuação
Um estudo sobre a implementação desse arranjo em sete municípios coordenação local
tre governo e sociedade,
destacada desse grupo nos
mineiros – Barão de Cocais, Barbacena, Governador Valadares, Lavras, com atuação destacada
trabalhos, apenas do coor-
nos trabalhos.
Pedro Leopoldo, Pouso Alegre e Santa Bárbara – cujos planos diretores denador local.
foram apoiados pela Fundação João Pinheiro, instituição pública estadu- Não esteve presente Não esteve presente nos
al, mostra que a aplicação de uma mesma metodologia e a atuação, de nos eventos, mas se fez eventos, mas acompanhou
Atuação do chefe
certa forma, uniforme de uma mesma equipe de trabalho, não implicou representar pelo vice- os trabalhos e apoiou a re-
do Executivo local
resultados semelhantes em termos da participação social na elaboração pre­feito, acompanhou e alização da leitura comuni-
apoiou os trabalhos. tária.
dos seus planos diretores. Isso remete à hipótese de que os contextos
locais são relevantes para o resultado do processo participativo, mesmo 8 oficinas participativas,
11 oficinas participativas,
tendo como suporte um arranjo institucional adequado, condicionando com uma média de 49
sendo 5 na sede municipal
os efeitos e conseqüências quanto ao aperfeiçoamento democrático. Realização da participantes, na sede
e 6 em 6 das 12 sedes de
O estudo analisou, de forma a facilitar a leitura e uniformizar a aná- leitura comunitá- municipal, sendo 1 para
distritos na área rural, com
ria capacitação das equipes
lise, as seguintes dimensões, em cada município: uma média de 50 partici-
locais e 2 com a popula-
pantes.
ção rural.
a) institucionalização do núcleo de coordenação local e apoio técnico
dos trabalhos no município – formalização, representatividade e for- Realizados 1 seminário Não houve discussão pú-
ma de atuação do Núcleo Gestor ou similar e da equipe técnica; na FJP com a equipe do blica, apenas com parte
Formulação de
b) atuação do chefe do Executivo local e seu papel na disponibilização município e 8 reuniões da equipe técnica do mu-
propostas
temáticas no município nicípio, resistente a parti-
de recursos e no incentivo à participação – participação nos eventos,
abertas ao público. cipar.
lançamento do plano diretor, acompanhamento dos trabalhos, forne-
cimento de suporte financeiro e logístico para mobilização da popula- Houve audiência pública
ção e divulgação de informações; Encaminhamento
para encaminhamento à O plano diretor ainda não
na
c) realização da leitura comunitária e mecanismos de capacitação de Câmara, que aprovou o foi encaminhado à Câmara
Câmara Municipal
participantes, multiplicadores e equipes técnicas – número e distribui- plano diretor sem dis- (outubro de 2007).
ção das oficinas participativas, número de participantes, mecanismos cussão pública.
de capacitação;

266 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 267
Com relação à primeira das dimensões, a institucionalização do Quadro 1 – Síntese da implementação do desenho institucional
núcleo de coordenação local, percebem-se variadas formas de cons- proposto pelo MCidades para a elaboração dos PDP
tituição do núcleo de coordenação dos trabalhos, algumas mais forma- em municípios de Minas Gerais (continuação)
lizadas e bem estruturadas, assim como formas de atuação diferentes,
chegando mesmo à ausência desse núcleo. Um ponto comum em todos
Municípios
é a não formalização das equipes técnicas, que, apesar disso, apoiaram Governador Valadares Lavras
os trabalhos desenvolvidos, mesmo que em graus variados. Dimensões
Com relação à atuação do chefe do Executivo local, as diferenças
são bem expressivas. Destaca-se o desinteresse, a ausência e/ou resis- Comissão Consultiva
Não houve institucionali-
tência do mesmo, prejudicando ou impedindo o cumprimento de todas instituída com represen-
zação do núcleo de coor-
as etapas previstas para a participação social na elaboração dos planos Institucionalização tação do governo e da
denação local, apenas do
do núcleo de sociedade, com mais de
diretores; isolando o coordenador local, desarticulando e/ou paralisan- coordenação local 100 membros. Não hou-
coordenador local, que
do os trabalhos; não disponibilização de recursos e falta de motivação acompanhou administrati-
ve atuação desse grupo
vamente os trabalhos.
da equipe. Isso parece indicar que, ao contratar os trabalhos de elabora- nos trabalhos.
ção dos planos diretores, a preocupação dos prefeitos se voltava apenas
para o cumprimento dos prazos legais estabelecidos pelo EC. Apenas esteve presente
Com relação à realização da leitura comunitária, de maneira geral no lançamento do pla- Presente no lançamento e
Atuação do chefe no diretor no município, na audiência pública final,
as equipes locais dos municípios tiveram um bom desempenho, realizando do Executivo local não acompanhou nem apoiou parcialmente e não
oficinas participativas distribuídas territorialmente, tanto nas áreas urbanas tampouco apoiou os tra- acompanhou os trabalhos.
como nas áreas rurais, considerando nessa divisão as características so- balhos.
cioeconômicas da população, em horários e locais acessíveis e dirigidos
por representante da administração municipal. A diferença aparece no 2 oficinas participati-
vas realizadas na sede, 6 oficinas participativas,
número de participantes, em função de uma dedicação maior ou menor sendo uma com repre- com uma média de 29
dessas equipes às ações de mobilização da população e divulgação de in- Realização da sentantes da população participantes, na sede
formações, assim como da presença de incentivos à participação para a leitura rural (25 pessoas) e uma municipal, sendo 1 com
população de renda mais baixa e das áreas rurais, como o fornecimento de comunitária com representantes da representantes da popula-
população urbana (45 ção rural. O município não
transporte e alimentação. As presenças mais expressivas aconteceram nos pessoas). O município tem distritos.
municípios onde se apresentaram mais bem estruturados os núcleos de tem 13 distritos rurais.
coordenação local e a atuação dos chefes dos Executivos foi mais positiva.
Com relação à etapa subseqüente, ou seja, a formulação de pro-
Não houve discussão
postas, o que se verifica é que, na maior parte dos municípios, esta Formulação de pública, apenas com
Realizadas 4 reuniões
etapa, que é primordial nesse processo, por ser a etapa em que as deci- temáticas no município
propostas equipes técnicas seto-
abertas ao público.
sões são tomadas, não foi bem estruturada. As discussões de propostas riais da prefeitura.
se concentraram nas áreas técnicas das prefeituras, em determinados
casos com alguns representantes de associações profissionais e da aca-
Não houve audiência
demia, com pequena participação de representantes dos setores econô- Houve audiência pública
Encaminhamento pública para o encami-
micos e praticamente nenhuma dos setores populares. para encaminhamento
na nhamento à Câmara,
à Câmara, plano diretor
Finalmente, com relação ao encaminhamento nas Câmaras Muni- Câmara Municipal plano diretor aprovado
aprovado sem discussão
cipais, a maioria das equipes municipais deixa a desejar, sob o ponto de sem discussão pública
pública.
em uma única sessão.
vista da participação social, sem cumprir a exigência legal da realização
de audiências públicas.
268 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 269
Quadro 1 – Síntese da implementação do desenho institucional Quadro 1 – Síntese da implementação do desenho institucional
proposto pelo MCidades para a elaboração dos PDP proposto pelo MCidades para a elaboração dos PDP
em municípios de Minas Gerais (continuação) em municípios de Minas Gerais (continuação)

Municípios Municípios
Pedro Leopoldo Pouso Alegre Santa Bárbara
Dimensões Dimensões

Núcleo Gestor institucionali-


zado, com participação muito
Reativado o Conselho Mu-
pequena de representantes
nicipal do Plano Diretor Institucionalização do Comissão Gestora institucionalizada com repre-
dos setores populares (ape-
Institucionalização (Compland), com adapta- núcleo de sentação equilibrada entre governo e sociedade,
nas um em 10 membros).
ções para ampliar a parti- coordenação local com atuação destacada nos trabalhos.
do núcleo de cipação de representantes
Não houve uma atuação bem
coordenação local articulada desse grupo nos
dos setores populares, com
trabalhos. Prefeito cassado,
atuação destacada nos tra-
vice renuncia, presidente da
balhos.
Câmara assume, reconstitui o
Núcleo Gestor.

Atuação do chefe do Esteve presente em praticamente todos os even-


Apenas esteve presente no Executivo local tos, acompanhou e apoiou os trabalhos.
Acompanhou e apoiou os
lançamento do plano diretor
trabalhos por meio da atu-
Atuação do chefe ação vigorosa dos repre-
no município, não acompa-
do Executivo local sentantes da administração
nhou nem tampouco apoiou
os trabalhos. Na fase seguin-
municipal no Compland. 11 oficinas participativas, sendo 5 na sede muni-
te, houve apoio.
cipal e 6 na área rural (4 distritos e 2 comunida-
Realização da des), com uma média de 63 participantes. Foram
7 oficinas participativas,
sendo 3 na sede munici-
15 oficinas participativas, leitura eleitos delegados para o acompanhamento da
sendo 1 de capacitação das comunitária formulação de propostas.
Realização da pal, 3 em 3 dos 4 distritos
equipes locais, 10 na sede Foi realizada uma oficina para capacitação das
da área rural e 1 em uma
leitura comunidade na área rural,
municipal e 4 na área rural (1 equipes locais.
comunitária sede de distrito e 3 comuni-
com uma média de 69 par-
dades), com uma média de
ticipantes, com a presença
49 participantes.
do Ministério Público.
Realizados 2 seminários e 6 reuniões temáticas,
Formulação de pro-
Realizadas reuniões sema- ambos na sede municipal, com a presença dos
postas
nais do Compland, abertas delegados e abertas ao público.
Realizadas 6 reuniões temáti-
Formulação de ao público, com divulgação
cas no município abertas ao
propostas dos temas tratados, com a
público.
presença do Ministério Pú-
blico.

Houve audiência pública para


Encaminhamento na Houve audiência pública para o encaminhamento
Foram realizadas 3 audi-
o encaminhamento à Câma- Câmara Municipal à Câmara, que aprovou o plano diretor sem dis-
Encaminhamento ências públicas para o en- cussão pública.
ra, que promoveu discussão
na caminhamento à Câmara
pública para a aprovação. O
Câmara Municipal e esta realizou audiências
retorno do prefeito cassado
públicas que antecederam
não conseguiu interromper o
a aprovação. Fonte: Elaboração pela autora.
processo.

270 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 271
As diferenças constatadas apontam para a influência dos contex- Nesse sentido, esse caminho aponta para a reformulação das rela-
tos locais na implementação do desenho institucional proposto para a ções Estado/sociedade na produção de cidades mais justas, democrá-
elaboração dos PDP e o seu reflexo na qualidade dos processos par- ticas e sustentáveis, com a efetiva participação da sociedade em sua
ticipativos, comprometendo a potencialidade que existe no desenho diversidade e multiplicidade, para além de apenas cenários e rituais par-
institucional quanto à construção de espaços públicos efetivos para os ticipativos como cumprimento de meras formalidades.
“encontros” entre a sociedade e o governo. Constituíram-se em fatores indutores: EC, desenho institucional
proposto, incentivos financeiros do governo federal.
Constituíram-se em fatores facilitadores: a atuação do governo lo-
Considerações Finais cal e experiências prévias com participação, sendo que o segundo não
se mantém na ausência do primeiro.
O desenho institucional proposto para a elaboração dos PDP se Permanecem como desafios: é um processo em curso, com desa-
mostra propício ao fomento à participação social e à sinergia Estado/so- fios para os segmentos populares (amadurecimento e visão a médio e
longo prazo); para os atores do mercado (disputar em arenas públicas);
ciedade, contribuindo potencialmente para a ampliação da democracia
para os governos (nova concepção de poder decisório); e para os técni-
e da boa governança. Mas não é suficiente para fazer cumprir a obriga-
cos (compatibilização saber técnico e atividades políticas).
toriedade legal da participação.
São contribuições desse processo: reconhecimento da pluralidade
O rebatimento do desenho institucional proposto nos municípios
de atores e legitimidade de seus interesses; aprendizado para a nego-
apresentou resultados diferenciados. A diversidade de realidades e
ciação e alianças fundados no interesse público; publicização de deman-
contextos municipais parece ter influenciado a forma como ocorreu o das e inclusão de grupos excluídos; participação cidadã se contrapondo
aprofundamento democrático, em graus e intensidades variados. Por se a concepções elitistas, tecnocráticas e autoritárias; fortalecimento dos
constituir em uma referência no nível do governo federal, com a flexi- movimentos sociais e visão de conjunto; contribuição potencial para a
bilidade necessária para abranger a heterogeneidade do universo dos transparência e responsabilização nas ações do Estado.
municípios brasileiros, a sua implementação ficou subordinada à com- Por sua vez, são limitações: resistência do Executivo em compartilhar
petência das equipes locais ou de técnicos especialistas contratados, e o poder; distanciamento entre democracia participativa e democracia deli-
à vontade política dos governos e das lideranças locais. berativa, risco do poder de veto dos vereadores desrespeitando as delibe-
As críticas percebidas nos levantamentos efetuados ao longo do es- rações públicas; custos da participação em especial para a população de
tudo sugerem que, para a consolidação dos processos participativos, é renda baixa e com menores recursos; assimetria de informação, resultando
fundamental haver confiança nos governos locais, e que essa confian- em dominação de setores melhor posicionados ou captura do processo de
ça se relaciona com o retorno à população, em termos da informação decisão pelos gestores governamentais ou técnicos especialistas.
quanto aos desdobramentos do processo e da implementação das deci- O universo e a diversidade das experiências locais sugerem novas
sões tomadas nos processos de deliberação pública, com a participação investigações a respeito dos resultados dos processos participativos,
direta dos cidadãos. Nesse sentido, essas críticas apóiam a hipótese de refletidos nos conteúdos dos PDP, em termos de justiça e efetividade
que uma atuação efetiva do governo local é preponderante para a efeti- das suas propostas; efeitos políticos relativos à mobilização da socieda-
vação da participação da sociedade na definição de políticas, existindo de; e repercussão quanto à transparência e accountability nas ações do
ou não experiências de associativismo e de participação. Estado, reformulando de fato as relações Estado/sociedade.
O caminho para a consolidação da relação entre processos parti-
cipativos e ampliação da democracia e da boa governança passa pela
convivência entre uma nova cultura política e estratégias convencionais Referências
de articulação e negociação, considerando os diferentes territórios, lu-
ANDRADE, I. A gestão participativa das políticas públicas: o desafio para os
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272 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 273
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274 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 275
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crática e experiências institucionais no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Editora 34, 2004.
administrativo e o Estatuto da Cidade:
gestão democrática da cidade
Rafael Ramos1

Resumo: Em face do processo de constitucionalização -


pós-1988 - do ordenamento jurídico brasileiro, encontra-
-se em profunda transformação o Direito Administrativo,
transitando de um modelo autoritário para um modelo
consensual, permitindo, pois, a participação da cidadania
ativa de forma a legitimar as relações de administração pú-
blica. Nessa toada, assumem singular importância os ins-
trumentos previstos no Estatuto da Cidade (v.g., audiências
e consultas públicas) na busca de uma gestão democrática
da cidade.
Palavras-chave: Administração Pública; Consensualidade;
Estatuto da Cidade; Gestão democrática.

Notas Introdutórias

A Constituição Federal de 1988, ao albergar o princípio demo-


crático (art. 1º, parágrafo único), assim como um amplo catálogo
de direitos fundamentais (Título II), promoveu a travessia do Brasil
de um país autoritário para um país democrático. Tal constituciona-
lização da ordem jurídica, por óbvias razões, não poderia deixar de
refletir-se nas relações de administração, que, constitucionalizada,
vê-se compelida a abandonar o modelo tradicional de gestão da res
publica, principalmente através de atos unilaterais, para adotar atos
consensuais com os quais atrai a sociedade em busca de soluções
dialogadas.
Dessa forma, o presente artigo pretende perscrutar os possíveis
reflexos da constitucionalização da ordem jurídica e seu conteúdo de-
mocrático, em especial do regime jurídico administrativo, nas relações
entre o Poder Público e o cidadão.
1 Assessor para Assuntos Jurídicos do DMAE. Mestre em Direito Público pela PUCRS.

276 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 277
Direitos Fundamentais e Democracia como é um fim em si mesma.9 A atividade administrativa do Estado tem que se
Fundamentos da Administração Pública Brasileira nortear pela realização da democracia e dos direitos fundamentais. Des-
sa forma, até mesmo a tradicional denominação “administrado” deve ser
A Constitucionalização do Direito2 vai ter uma influência decisiva no revista, pois denota um indivíduo subordinado, enquanto que a Consti-
âmbito do Direito Administrativo, até mesmo porque tal ramo do Direito tuição de 1988 exige um indivíduo proativo e protagonista.10
Público, há muito tempo, é considerado como “Direito Constitucional Essa nova posição do cidadão, no dizer de Patrícia Baptista, emba-
concretizado”.3 Assim, a interpretação/aplicação do Direito Administra- sada no discurso dos direitos fundamentais, demandou a alteração do
tivo tem que ser feita a partir dos mandamentos que derivam do texto papel tradicional da Administração Pública: constitucionalizada, vê-se
constitucional. A Constituição – como um sistema de regras e princípios compelida a abandonar o modelo autoritário de gestão da res pública
- hierarquicamente superior a todas as demais normas, expressa uma para se transformar em um centro de respeito, proteção e promoção
série de condicionamentos aos quais hão de adaptar-se todos os ramos dos direitos fundamentais dos cidadãos.11
jurídicos.4 Eis um dos motivos fortes para se cogitar de uma renovada interpre-
A partir da Constitucionalização do Direito Administrativo,5 segundo tação sistemática12 do Direito Constitucional Administrativo, norteada
Patrícia Baptista, o indivíduo, da condição de súdito, de mero sujeito pela aplicabilidade direta e imediata (art. 5º, § 1º, CF/1988) dos direi-
subordinado à Administração, foi elevado à condição de cidadão.6 E tos fundamentais,13 notadamente do direito fundamental à boa Adminis-
nem poderia ser de outra forma, pois a Constituição de 1988 elevou a tração Pública. De acordo com o professor Juarez Freitas, inspirado no
dignidade da pessoa humana a fundamento da República. Uma Cons- art. 41 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Carta de
tituição que se compromete com a dignidade humana lança, com isso, Nice, 2000), dito direito fundamental deve ser entendido como o direito
os contornos da sua compreensão do Estado e do Direito e estabelece à “Administração Pública eficiente e eficaz, proporcional cumpridora de
uma premissa antropológico-cultural.7 Respeito, proteção e promoção seus deveres, com transparência, motivação, imparcialidade e respeito
da dignidade humana como dever jurídico fundamental do Estado Cons- à moralidade, à participação social e à plena responsabilidade por suas
titucional constituem a norma fundamental do Estado.8 condutas comissivas e omissivas”.14
A Constitucionalização do regime jurídico administrativo vai levar, Logo, o agir administrativo deve pautar-se pelos mandamentos de
por conseguinte, na lição de Marçal Justen, à personalização do Direito transparência (publicidade) e de motivação dos atos administrativos, ve-
Administrativo de forma a reconhecer que a Administração Pública não dada toda e qualquer forma de atuação nebulosa e, por conseguinte, a
eliminação do “poder invisível”.15
2 Cf. BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. Revista Ademais, resulta evidente que, no Estado Constitucional, como ano-
de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, 2005. ta Juarez Freitas, e por uma exigência do direito fundamental à boa Ad-
3 Referida frase é atribuída ao publicista alemão, Fritz Werner. Cf. WAHL, Rainer. Aux origines du
droit public allemand contemporain. Revue du Droit Public, n. 3 (mai-juin. 2007), p. 837. 9 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 65.
4 PASTOR, Juan Alfonso Santamaría. Principios de Derecho Administrativo, vol. I. 3ª ed. Madri: 10 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 4ª ed. São
Centro de Estudios Ramón Areces, p. 87. Paulo: Malheiros, 2009, p. 45;
5 V. BINENBOJM, Gustavo. A constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil: um in- 11 BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo, p. 129.
ventário de avanços e retrocessos. Revista Brasileira de Direito Público, n. 14, p. 9-53, jul/set. 12 Cf. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
2006; Oliveira, Rafael Carvalho Rezende. A Constitucionalização do Direito Administrativo. Rio de 13 Segundo Ingo Sarlet “a melhor exegese da norma contida no art. 5º, § 1º, de nossa Consti-
Janeiro: Lumen Juris, 2009; FREITAS, Juarez. Direito Fundamental à boa administração pública e tuição é a que parte da premissa de que se trata de norma de cunho inequivocamente principioló-
a constitucionalização das relações administrativas brasileiras. Interesse Público, v. 60, p. 13-24, gico, considerando-a, portanto, uma espécie de mandado de otimização (ou maximização), isto é,
2010. estabelecendo aos órgãos estatais a tarefa de reconhecerem a maior eficácia possível aos direitos
6 Assim, BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª ed. Porto Alegre:
2003, p. 129-130. Livraria do Advogado, 2008, p. 288.
7 HÄBERLE, PETER. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET, 14 FREITAS, Juarez. Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa Administra-
Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 128. ção Pública. 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009, p. 22.
8 HÄBERLE, PETER. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal, p. 128. 15 V. BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006, p. 41.

278 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 279
ministração Pública, há que se pugnar por um “Direito Administrativo um Estado, declarado na Constituição, deve repercutir de maneira plena
mais de Estado que ‘de governo’ e, por conseguinte, pelo protagonismo nas relações de administração,22 a fim de que haja, ao invés de uma
do agente tipicamente estatal, que, com independência e sem vincula- relação pautada pelo conflito - Administração Pública versus cidadão
ção partidária, promove o bem de todos (art. 3º, IV, CF/1988)”.16 - uma relação de colaboração e cooperação entre o Poder Público e a
Os direitos fundamentais têm sido o componente do Estado Consti- sociedade, em prol da efetivação dos direitos (fundamentais) de todas as
tucional que mais decisivamente influencia a evolução do Direito Admi- dimensões e da concretização dos objetivos fundamentais da República
nistrativo, sobretudo a partir do 2º pós-guerra. Os direitos fundamen- brasileira, estampados no art. 3º, CF/1988.
tais atuam como limite às intervenções estatais e guiam o exercício da Daí a importância, por exemplo, de instrumentos previstos no pla-
discricionariedade administrativa. Também impõem obrigações de fazer no constitucional, tais como a exigência de participação do usuário na
a Administração e servem para resolução de colisões normativas.17 Por Administração Pública direta e indireta (§3º, art. 37), a representação
isso, atualmente se diz que o Direito Administrativo é dominado pelos aos Tribunais de Contas (art. 74, § 2º), a gestão democrática da seguri-
direitos fundamentais.18 dade social (art. 194, VII), da saúde (art. 198, III), bem como do ensino
Além disso, como a Constituição Federal de 1988 redemocratizou o público (art. 206, VI). Além disso, no plano infraconstitucional, há várias
nosso país ao positivar logo no seu art. 1º que o Estado brasileiro é um disposições prevendo essa participação, podendo-se mencionar, sem-
Estado Democrático de Direito, é claro que o componente democrático pre para ilustrar, a exigência da realização de audiências públicas em
também terá que permear e moldar todas as relações de administra- matéria orçamentária (art. 48, par. único, inciso I, da Lei complementar
ção.19 Referido caráter democrático veio a lume como uma tentativa de n. 101/2000 e art. 44 da Lei 10.257/2001), bem como a possibilidade
superar o distanciamento entre as concepções de democracia vigentes da utilização da arbitragem para o deslinde de controvérsias envolvendo
em nosso país – representativa e participativa – e o modo como ocor- a Administração Pública (art. 23-A da Lei n. 8987/1995).23
riam as atuações estatais,20 centradas no ato administrativo, um ato uni- O cerne, portanto, do Direito Administrativo, segundo Marçal Jus-
lateral por excelência. ten, não pode mais estar focado na figura do ato administrativo, mas,
Dessa forma, diante dessas exigências constitucionais, passou a ha- sim, na atividade administrativa, de molde a destacar a natureza proce-
ver, então, um clamor em favor da democracia administrativa.21 Isso se dimental da atuação estatal.24
deve ao fato, segundo Odete Medauar, de que o caráter democrático de

16 FREITAS, Juarez. Carreiras de Estado e o direito fundamental à boa administração pública. Administração Consensual como a Nova Face
Interesse Público, n. 53 (2009), especialmente p. 14-15. Em termos de Brasil, tais fatos são por
da Administração Pública Brasileira
demais problemáticos, pois, como anota Sérgio Buarque de Holanda, só excepcionalmente tivemos
um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos
e fundados nesses interesses. Ao contrário, ao longo da história, houve o predomínio constante das Como salienta Celso Antônio Bandeira de Mello, é quase um lugar-
vontades particulares, que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessí-
veis a uma ordenação impessoal. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: -comum, ainda que profundamente equivocada, a ideia de que o Direito
Companhia das Letras, 1995, p. 146. Administrativo é um Direito concebido em favor do Poder, “a fim de que
17 SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La Teoría General del Derecho Administrativo como Sistema. ele possa vergar os administrados.” Tal estado de ideias é reforçado, ten-
Trad. Mariano Bacigalupo et al. Madrid: Marcial Pons, 2003, p. 71.
do em vista algumas “formulações doutrinárias” que citam “poderes” da
18 Cf. WAHL, Rainer. Aux origines du droit public allemand contemporain, p.
837. administração,25 v.g., os chamados poderes discricionário, hierárquico,
19 Acerca do conceito de relações de administração, vide as lições do mestre LIMA, Ruy Cirne.
Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 2007. 22 MEDAUER, Odete. Direito Administrativo Moderno, p. 27.
20 MEDAUER, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 23 V. ARAGÃO, Alexandre Santos. A consensualidade no Direito Administrativo: acordos regulató-
2007, p. 26. rios e contratos administrativos. Revista de Direito do Estado, n. 1 (jan/mar 2006), p. 155;
21 MEDAUER, Odete. Direito Administrativo Moderno. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 24 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo, p. 1-2.
2007, p. 26-27; SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. Principes de base d’une réforme du droit adminis- 25 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28ª ed. São Paulo Ma-
tratif (partie 1). Revue Française de Droit Administratif, n. 3 (maio/jun. 2008), p. 439. lheiros: 2011, p. 43.

280 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 281
regulamentar e de polícia administrativa, contribuindo para que o regi- Fenômeno relativamente recente nas relações entre o Estado e os in-
me jurídico administrativo “seja visto como ramo do direito aglutinador divíduos na realização de fins de interesse público tem sido a busca
de ‘poderes’ desfrutáveis” pela Administração Pública ao seu mero alve- de decisões administrativas por meios consensuais.
Administração concertada, administração consensual, soft adminis-
drio.26
tration são expressões que refletem formas novas de democracia par-
Em harmonia com tal equivocada concepção, os “administrados”
ticipativa, em que o Poder Público, ao invés de decidir unilateralmen-
(rectius: cidadãos) sempre foram – e ainda em boa medida o são – ali- te, utilizando-se desde logo do ato administrativo, procura ou atrai os
jados de influir nas principais decisões administrativas, sob o argumento indivíduos para o debate de questões de interesse comum, as quais
de estarem ao abrigo do poder discricionário da Administração ou de- deverão ser solvidas mediante acordo.31
penderem de lei, votada e aprovada por seus representantes (reserva
legal). O ponto de destaque, como ressalta Gustavo Justino de Oliveira, “diz
Não obstante este estado de coisas, na aguda percepção de Diogo respeito à extensão e à intensidade com que técnicas consensuais vêm
de Figueiredo Moreira Neto, “o progresso tecnológico produziu o au- sendo empregadas, como soluções preferenciais – e não unicamente al-
mento dos índices de informação e educação da sociedade”, levando-a ternativas – à utilização de métodos estatais que veiculem unilateral e
a reclamar maior participação na atividade decisória estatal. Por isso, as impositivamente comandos para os cidadãos (...). Por isso, uma das linhas
pessoas não se conformam apenas em fazer a tradicional escolha dos de transformação do direito administrativo consiste em evidenciar que, no
seus representantes e, paulatinamente, passam a exigir que seus anseios âmbito estatal, em campos habitualmente ocupados pela imperatividade
e interesses sejam levados efetivamente em consideração27 “no proces- há a abertura de consideráveis espaços para a consensualidade”.32
so democrático-deliberativo de uma autêntica sociedade aberta”,28 mor- Essa Administração Pública democrática que aqui chamamos de
mente aqueles a cargo da Administração Pública.29 Indiscutivelmente, Consensual é uma nova postura que vai ter reflexos na tomada das de-
é a Administração Consensual que mais perfeitamente se acomoda ao cisões pelo Estado-Administração, passando-se a exigir o respeito ao
Estado Constitucional.30 devido processo (due process of law) em suas acepções processual e,
Captando com a costumeira perspicácia esse processo de transfor- principalmente, substancial.33 Nessa linha, vê-se como um importante
mação da Administração Pública brasileira, Almiro do Couto e Silva aver- marco a edição da Lei n. 9.784/1999 (Lei de Processo Administrati-
ba que vo no âmbito da Administração Pública Federal). Afinal, como registra
Marcelo Schenk Duque, “a Lei de Processo Administrativo Federal visa a
26 Na realidade, como diz Bandeira de Mello, tais “poderes” devem ser vistos como um “conjunto assegurar a informação e a participação adequada dos interessados no
de limitações aos poderes do Estado ou, mais acertadamente, como um conjunto de deveres da processo de decisão administrativa no âmbito de competência da Admi-
Administração em face dos administrados”. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito
Administrativo, p. 44. nistração Federal, reduzindo, à medida que assegura maior transparên-
27 Na esteira dos ensinamentos de Diogo de Figueiredo Moreira Neto, um referencial caracteri- cia nas razões de decidir, contendas desnecessárias na via judicial”.34
zador do Estado Democrático de Direito é o da legitimidade, pois tradicionalmente “o modernismo Ademais, a Constituição de 1988, como já frisado, deu, em boa
democrático se havia limitado a exigir investidura legítima dos representantes do povo, ganhou um
novo conteúdo do pós-modernismo democrático, passando a demandar, além da investidura legí-
hora, um impulso decisivo ao princípio democrático na sua dimensão
tima no poder (legitimidade pelo título), também um exercício legítimo do poder (legitimidade pelo
exercício) (...).” MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Quatro Paradigmas do Direito Administrativo 31 COUTO E SILVA, Almiro do. Os indivíduos e o Estado na realização de tarefas públicas. Revista
Pós-Moderno. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008, p. 21. No mesmo sentido, OLIVEIRA, Rafael da Procuradoria Geral do Estado do RS, n. 57 (2004), p. 191.
Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 161. 32 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A administração consensual como a nova face da administração
28 Valemo-nos aqui da lembrança do prof. Ingo Sarlet das lições de Peter Häberle. Hermenêutica pública no século XXI, p. 38; MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Políticas Públicas e Parcerias:
Constitucional - A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1997. juridicidade, flexibilidade negocial e tipicidade na Administração consensual. Revista de Direito do
29 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo. 2ª Ed. Rio de Janei- Estado, n. 1 (jan/mar 2006), p. 111.
ro: Renovar, 2001, p. 12. 33 A propósito MEDAUAR, Odete. A Processualidade no Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo:
30 OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A administração consensual como a nova face da administração Revista dos Tribunais, 2008.
pública no século XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação. Re- 34 DUQUE, Marcelo Schenk. Princípios e disposições gerais da Lei 9.784/1999. Revista dos Tribu-
vista de Direito Administrativo e Constitucional, n. 32 (abr/jun 2008), p. 31-50. nais, 893, março de 2010, p. 65.

282 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 283
participativa35 (além, é claro, da tradicional dimensão representativa), Como instrumentos da política urbana, o Estatuto da Cidade prevê,
tendo tal dimensão reflexos evidentes no que tange ao controle dos atos entre outros, a utilização do referendo popular e do plebiscito, assim
administrativos, falando-se, portanto, no controle social, ou seja, o con- como a gestão orçamentária participativa.
trole que a sociedade exerce sobre a gestão pública.36 No que tange à gestão orçamentária participativa no âmbito munici-
A toda evidência, a atual Constituição brasileira está voltada nota- pal, ela incluirá a “realização de debates, audiências e consultas públicas
damente para os direitos da cidadania. Não é à toa que a Constituição sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentá-
de 1988 foi chamada por Ulysses Guimarães de Constituição cidadã.37 rias e do orçamento anual como condição obrigatória para sua aprova-
Assim, o fato de ter sido eleita a moralidade como vetor jurídico-axioló- ção pela Câmara Municipal”. Diga-se de passagem que, em Porto Alegre,
gico no exercício da atividade administrativa, e de esta ter o controle de a gestão orçamentária participativa já é utilizada desde 1989. O chama-
sua observância depositada, em boa medida, nas mãos do cidadão38, do orçamento participativo é visto como um “processo dinâmico, pelo
que conta, para tanto, com a ação popular (art. 5º, LXXIII, CF/1988), qual a população decide, de forma direta, a aplicação dos recursos em
já demonstra a importância do controle social e, consequentemente, a obras e serviços que serão executados pela administração municipal”.40
exigência de uma cidadania mais ativa.39 Tal é a importância que a gestão democrática assume no Estatuto
da Cidade que há a positivação de um capítulo próprio (IV), prevendo
órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e
O Estatuto da Cidade e a gestão democrática da cidade municipal; debates, audiências e consultas públicas; conferências sobre
assuntos de interesse urbano nos níveis nacional, estadual e municipal;
Na senda da ideia de uma Administração Consensual, veio a lume, e ainda a iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e
no limiar do século XXI, o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), es- projetos de desenvolvimento urbano.
tabelecendo “normas de ordem pública e interesse social que regulam o No âmbito do Município de Porto Alegre, a Lei Complementar nº
uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do 434/1999 positiva o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambien-
bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. Referido tal de Porto Alegre. Logo em seu art. 1º, na linha do Estatuto da Cidade,
estatuto prevê, entre suas diretrizes, “a gestão democrática por meio da prevê que a promoção do desenvolvimento no Município de Porto Ale-
participação da população e de associações representativas dos vários gre tem como princípio o cumprimento das funções sociais da cidade e
segmentos da comunidade na formulação, na execução e no acompa- da propriedade urbana, garantindo “a gestão democrática por meio da
nhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urba- participação da população e das associações representativas dos vários
no”; a cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais segmentos da comunidade na formulação, na execução e no acompanha-
setores da sociedade no processo de urbanização; e a “audiência do mento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”.41
Poder Público municipal e da população interessada nos processos de O Plano Diretor de Porto Alegre prevê ainda o Conselho Municipal
implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencial- de Desenvolvimento Urbano Ambiental, integrado por entidades gover-
mente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o confor- namentais e não-governamentais, responsável por formular políticas,
to ou a segurança da população”. planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Além disso,
à semelhança do Estatuto da Cidade, institui instrumentos para garantir
35 V. BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São Paulo: Malheiros, a gestão democrática da Cidade (v.g., representações em órgãos cole-
2001. giados de política urbana; debates, consultas e audiências públicas; e
36 FREITAS, Juarez. O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais, p. 402.
iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de
37 Útil, a respeito, conferir as belas lições de CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o
longo caminho. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 7.
desenvolvimento urbano).
38 Cf. FREITAS, Juarez. O Princípio Constitucional da Moralidade e o novo controle das relações
de Administração. Interesse Público, v. 51, p. 13-41, 2008. 40 Vide http://www2.portoalegre.rs.gov.br/portal_pmpa_cidadao/?p_secao=16
39 V. BREYER, Stephen. Active Liberty. New York: Vintage Books, 2007, p. 15-16. 41 Redação dada pela L.C. n° 646, de 22 de julho de 2010.

284 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 285
Verifica-se, assim, serena releitura do regime jurídico administrativo BOBBIO, Norberto. O Futuro da Democracia. 10ª ed. São Paulo: Paz e Terra,
à luz do princípio democrático (art. 1º, parágrafo único), promovendo 2006.
profundas alterações na legislação infraconstitucional – protegida, é BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa. São
claro, pela proibição de retrocesso42 - para adaptar-se aos ventos de- Paulo: Malheiros, 2001.
mocráticos trazidos pela constitucionalização do ordenamento jurídico Breyer, Stephen. Active Liberty. New York: Vintage Books, 2007.
pátrio. Nessa ordem de ideias, o Estatuto da Cidade, com suas diretrizes CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil : o longo caminho. 5. ed. Rio
e instrumentos, é importante ferramenta na busca de uma gestão demo- de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
crática da cidade.43 CASSESE, Sabino. Tendenze e Problemi del Diritto Amministrativo. Rivista Tri-
mestrale di Diritto Pubblico, n. 4 (2004), pp. 901-912.
Schmidt-Assmann, Eberhard. La Teoría General del Derecho Administra-
Considerações finais tivo como Sistema. Madri: Marcial Pons/Instituto Nacional de Administración
Pública, 2003.
Pelo exposto, pode-se perceber que as relações de administração ___. Principes de base d’une réforme du droit administratif (partie 1). Revue
estão passando por um processo de filtragem constitucional, falando- Française de Droit Administratif, n. 3 (maio/jun. 2008), p. 439.
-se assim, sobretudo, em vez de em supremacia do interesse público COUTO E SILVA, Almiro do. Os indivíduos e o Estado na realização de tarefas
e poderes exorbitantes da Administração, em supremacia dos direitos públicas. Revista da Procuradoria Geral do Estado do RS, n. 57 (2004), p.
fundamentais do cidadão. Dessa forma, a ideia de uma Administração 191.
dotada de inúmeros “poderes” e contraposta à sociedade deve dar lugar DUQUE, Marcelo Schenk. Princípios e disposições gerais da Lei 9.784/1999.
a uma Administração preocupada em ter uma atuação efetivamente em Revista dos Tribunais, 893, março de 2010, p. 63-99.
comunhão com os anseios e necessidades da sociedade, vale dizer, uma FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito. 4ª ed. São Paulo:
Administração consensual. Malheiros, 2010.
___, O Controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais.
4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
Referências bibliográficas ___, Discricionariedade Administrativa e o Direito Fundamental à Boa
Administração Pública. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
ARAGÃO, Alexandre Santos. A consensualidade no Direito Administrativo: acor- HÄBERLE, PETER. Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Aberta dos
dos regulatórios e contratos administrativos. Revista de Direito do Estado, n.
Intérpretes da Constituição. Porto Alegre: SAFE, 1997.
1 (jan/mar 2006), p. 155.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28ª ___, A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SAR-
ed. São Paulo Malheiros: 2011. LET, Ingo Wolfgang (org.). Dimensões da Dignidade. Porto Alegre: Livraria do
BAPTISTA, Patrícia. Transformações do Direito Administrativo. Rio de janei- Advogado, 2005.
ro: Renovar, 2003. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo: Companhia
BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direi- das Letras, 1995.
to. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 240, p. 1-42, 2005.
JUSTEN FILHO. Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005.
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008. LIMA, Ruy Cirne. Princípios de Direito Administrativo. 7ª ed. São Paulo:
___, A constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil: um inventário de Malheiros, 2007.
avanços e retrocessos. Revista Brasileira de Direito Público, n. 14, p. 9-53, MAURER, Hartmut. Elementos de Direito Administrativo Alemão. Porto Ale-
jul/set. 2006; gre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 10ª ed. São Paulo: Re-
42 V. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, p. 355. vista dos Tribunais, 2006.
43 Cf. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Princípios do Direito Administrativo, p. 171.

286 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 287
___, A Processualidade no Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2008.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações do Direito Administrativo.
Rio de janeiro: Renovar, 2000.
___, Quatro Paradigmas do Direito Administrativo Pós-Moderno. Belo Ho-
rizonte: Editora Fórum, 2008.
___, Políticas Públicas e Parcerias: Juridicidade, Flexibilidade e Tipicidade na
Administração Consensual. Revista de Direito do Estado, n. 1 (jan./mar.
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
2006), pp. 105-117.
OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A Administração consensual como a nova face
da Administração Pública no século XXI: fundamentos dogmáticos, formas
de expressão e instrumentos de ação. Revista de Direito Administrativo e
Constitucional, n. 32 (abr./jun. 2008), pp. 31-50.
OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. A Constitucionalização do Direito Admi-
nistrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
___, Princípios do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 9ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2008. CAPÍTULO IV
WAHL, Rainer. Aux origines du droit public allemand contemporain. Revue du
Droit Public, n. 3 (mai-juin. 2007).
Regularização Fundiária e
Políticas Habitacionais

288 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Questões Jurídicas na Implantação do
Programa Minha Casa Minha Vida
Ana Luísa Soares de Carvalho1

Resumo: O objetivo do presente estudo é uma análise do


Programa Minha Casa Minha Vida sob o aspecto do Direito
Administrativo a partir da experiência prática da sua implan-
tação no Município de Porto Alegre e a sua interlocução com
a legislação normativa existente e elaborada para recepcio-
ná-lo.
Palavras-chave: Programa Minha Casa Minha Vida. Política
habitacional. Planejamento urbano. Conversão. Destinação
de área pública.

Contextualização do Programa
Minha Casa Minha Vida

Em 25 de março de 2009, foi publicada a Medida Provisória n° 459


com o objetivo de instituir o Programa Minha Casa Minha Vida (PMVMV),
com o ambicioso projeto de construção de 1 milhão de moradias desti-
nadas às famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos.
Embora tenha sido, inicialmente, regulamentado por uma Medida
Provisória, instrumento legislativo de caráter temporal e excepcional, o
Programa gerou uma expectativa de que a sua implantação seria capaz
de estimular a produção e organização da habitação social de norte a
sul do país, revolucionando o tratamento de uma das questões mais sen-
síveis das políticas públicas através de um sistema que, concomitante-
mente, promoveria também um forte impulso na indústria da construção
civil e, por decorrência, um aumento imediato nas vagas de emprego
deste setor e do setor de serviços.
A tramitação do projeto para conversão em lei resultou em altera-
ções de questões essenciais para a gestão dos recursos alocados para o
Programa. Pelo texto da Medida Provisória, o programa beneficiaria so-
mente municípios com mais de 100 mil habitantes. Além de contemplar

1 Procuradora do Município de Porto Alegre, da Procuradoria de Urbanismo e Meio Ambiente.


Especialista em Direito Municipal pela ESDM e Universidade Ritter dos Reis. Mestre em Planeja-
mento Urbano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

290 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 291
todos os municípios do país, o texto que converteu a medida provisória Como segundo eixo, estabelece o Programa Nacional de Habitação
na Lei n° 11.977/09 estabeleceu a destinação de R$ 1 bilhão para aten- Urbana, cujo objetivo é o subsídio da produção e aquisição de moradia
der municípios com população de até 50 mil habitantes, com foco nas para o segmento da população com renda familiar até 6 salários mí-
famílias com renda mensal de até três salários mínimos (R$ 1.395). nimos3, através da subvenção econômica da União no montante de R$
O Programa Minha Casa Minha Vida foi estruturado partir de três 2.500.000.000,00 (dois bilhões e quinhentos milhões de reais), confor-
eixos de sustentação: me dispõe o artigo 5° da lei comentada. A lei federal vincula a aplicação
Em primeiro, estabelece a finalidade do Programa Minha Casa Minha da subvenção econômica inscrita no artigo 5° à habitação social para
Vida consistente na criação de mecanismos de incentivo à produção e à famílias com renda de até 6 salários mínimos.
aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda de até Para o cumprimento do objetivo de prover moradia para este seg-
dez salários mínimos2, e define critérios para a seleção dos beneficiá- mento da população, o parágrafo 1° do artigo 4° da Lei Complementar
rios. O inusitado para um tipo de Programa com tal aporte financeiro pela n° 11.977/09 destacou duas entre as ações passíveis de serem rea-
União é a consagração em lei da vinculação com as políticas estaduais e lizadas no âmbito do Programa Nacional de Habitação Urbana, quais
municipais de atendimento habitacional, e a adoção dos critérios delibe- sejam: a produção ou aquisição de novas unidades habitacionais em
rados nestas instâncias, bem como a necessária adequação ambiental e áreas urbanas, e a requalificação de imóveis já existentes em áreas con-
urbanística dos projetos apresentados. A sua regulamentação proporcio- solidadas, ou seja, à regularização fundiária. 
na a integração das diretirzes de planejamento e desenvolvimento urbano Em terceiro, com orçamento de R$ 500.000.000,00 para subven-
à operacionalidade do Programa, recebendo os requisitos e critérios das ção, é criado pelo artigo 11 da Lei comentada o Programa Nacional
politicas habitacionais dos estados e municípios. de Habitação Rural, que tem a finalidade de subsidiar a produção de
Assim, no artigo 3°, parágrafo § 1°, estabelece que, em áreas ur- moradia aos agricultores familiares e trabalhadores rurais, definidos nos
banas, os critérios de prioridade para atendimento devem contemplar, termos da legislação própria.
também, a doação pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municí- No âmbito da produção habitacional urbana, foco deste artigo, o
pios de terrenos localizados em área urbana consolidada para implanta- objetivo do programa está definido entre promover o incentivo para a
ção de empreendimentos vinculados ao programa, inserindo o gestor de construção de novas unidades habitacionais para famílias com renda
política urbana no protagonismo do desenvolvimento da cidade. Estabe- mensal de até 10 salários mínimos e o subsídio para a produção e aqui-
lece no inciso II do dispositivo legal comentado, a necessária contrapar- sição de unidades habitacionais para a população com renda familiar
tida dos demais entes federativos na política de incentivos do Programa mensal de até 6 salários mínimos. A importância de frisar o objetivo do
através da implementação de medidas de desoneração tributária, para programa no que se refere à produção habitacional está na delimitação
as construções destinadas à habitação de interesse social. Também es- da destinação dos recursos financeiros, vinculados às finalidades des-
tabelece como critério para a priorização do investimento do programa critas na Lei n° 11.977/09, ou seja, o estímulo para a produção habi-
os Município que tenham implementado os instrumentos do Estatuto tacional destinado ao segmento populacional com renda familiar de até
da Cidade, Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001, voltados ao controle 10 salários mínimos e a subvenção para o segmento populacional com
da retenção das áreas urbanas em ociosidade.  Através destes critérios, renda familiar de até 6 salários mínimos.
o Programa propõe uma parceria com os Estados e Municípios para A história recente deste país recomenda atenção dos órgãos de
implementação da política de desenvolvimento urbano a partir da pro- gerenciamento dos recursos financeiros e de planejamento urbano,
dução de habitação social, estimulando o fortalecimento da legislação cuja capacidade de integração será percebida na resposta de qualifi-
urbanística do Estatuto da Cidade e aliando-se à realidade específica de cação urbana que a implementação do programa poderá dar a cada
cada município na informação das sua prioridades. cidade.
2 LC 11.977/09, art. 2o  O PMCMV tem como finalidade criar mecanismos de incentivo à produ- 3 LC 11.977/09, art. 4o  O Programa Nacional de Habitação Urbana - PNHU tem como objetivo
ção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com renda mensal de até 10 (dez) subsidiar a produção e a aquisição de imóvel para os segmentos populacionais com renda familiar
salários mínimos, que residam em qualquer dos Municípios brasileiros.  mensal de até 6 (seis) salários mínimos. 

292 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 293
No período entre 1964 à 1986, a política habitacional estava es- construção civil e da rede de serviços que ela movimenta. Entretanto,
truturada pelo Banco Nacional de Habitação (BNH) que utilizava os re- é necessária a integração das regras e diretrizes locais na operaciona-
cursos financeiros captados pelo FGTS em linhas de crédito habitacional lização do programa para que as formas de transformação e ocupação
operadas por diversas instituições financeiras. Mesmo tendo dinamizado da cidade sejam reflexos do desenvolvimento urbano e criação de boas
o setor da construção civil direcionado à habitação popular, o sistema condições de vida.
gerenciado pelo BNH4 pressupunha o retorno remunerado dos investi- Os Municípios desempenham um papel protagonista na implemen-
mentos, contemplando, já em 1964, a correção monetária das presta- tação do programa, assumindo contrapartidas, incentivos e medidas
ções mutuarias. de adequação organizacional ajustadas de acordo com as condições e
Além disso, o BNH sustentou a implantação de projetos habitacio- prioridades de cada ente público e da possibilidade de transformação
nais padronizados e desconectados com as distintas realidades de cada qualificada da cidade. Os termos de adesão disciplinam as obrigações
região, Estado e Município, o que sempre foi objeto de duras críticas dos atores públicos e, no caso dos municípios, incumbe, tomando como
dos organismos integrantes do Movimento de Reforma Urbana. Na dé- exemplo o caso do município de Porto Alegre:
cada de 70, o BNH trabalhou com uma política de liberação dos juros
e autorizou os agentes financeiros a operarem em faixas livres, o que I. Fornecer às pessoas jurídicas que atuam no ramo da construção/
desviou os recursos do FGTS para financiamentos de construções para incorporação imobiliária, relação de terrenos que sejam compatíveis
as classes média e alta. A derrocada do sistema ocorreu no Governo de e adequados à construção das unidades habitacionais sejam elas em
forma de casas e/ou edifícios, observando a legislação relativa à polí-
João Figueiredo, com a publicação do Decreto-lei n° 2.045 que limitou
tica urbana objeto do Plano Diretor Municipal e situação de regulari-
a correção dos salários a 80% do INPC (Índice Nacional de Preços ao dade dominial dos terrenos a serem ofertados;
Consumidor), enquanto as prestações dos financiamentos habitacionais II. Providenciar as autorizações, alvarás, licenças e outras medidas ne-
tinham aplicação integral do índice de correção, ocasionando elevada cessárias inerentes à aprovação e viabilização dos projetos arquitetô-
inadimplência que provocou a descapitalização do sistema e uma forte nicos, urbanísticos, e, complementares das unidades habitacionais ;
mobilização social com campanhas de boicote ao pagamento das pres- III. Adotar medidas em seu âmbito que contribuam para celeridade
tações. Em 1986, o BNH foi extinto, com a política habitacional em uma do licenciamento ambiental junto aos seus órgãos competentes, bem
fase de desarticulação institucional, o que aprofundou a crise do déficit como nas situações envolvendo concessionárias de serviços públicos
de energia elétrica, água e saneamento;
habitacional e deflagrou um processo de disputa dos espaços urbanos e
IV. Apresentar propostas legislativas à Câmara Municipal que disponham
de exclusão social que marcou a face das metrópoles brasileiras. sobre a desoneração fiscal relativa a incidência dos seguintes tributos:
O que de mais grave produziu a centralização da política habitacio- a) Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis por Ato Oneroso “ inter
nal do país, na fase em que o sistema foi operado pelo BNH, foi a deso- vivos”, especificamente e exclusivamente sobre as transmissões de
neração dos Estados e municípios em produzirem suas próprias soluções propriedade imobiliária que vierem a integrar o Programa;
ao déficit habitacional, com base nas suas realidades, potencialidades b) Imposto sobre Propriedade Predial e territorial urbana – IPTU –
e capacidade de planejamento da cidade e suas estruturas urbanas. A durante a fase de construção;
implementação do PMCMV pode inverter a centralização do sistema a c) Imposto sobre a Prestação de Serviços de Qualquer Natureza (ISS-
QN) incidente sobre a construção dos empreendimentos vinculados
partir da participação ativa e propositiva dos Estados e Municípios.
ao Programa.
Assim, a articulação entre planejamento urbano, recursos financei-
V. Apresentar proposta legislativa à Câmara Municipal que disponha
ros com a política habitacional proposta pelo PMCMV, fixadas nos ob- sobre os critérios e a forma de reconhecimento do empreendimento
jetivos claramente definidos em lei, poderá ser capaz de promover o habitacional a ser construído no âmbito do Programa, como de zona
desenvolvimento social e econômico, com o incremento da indústria da especial de interesse social – ZEIS;
VI. Manter cadastro atualizado do público alvo do Programa, sob a
4 BOTELHO, Adriano. O urbano em Fragmentos: A produção do espaço e de moradia pela práti- forma de aportes financeiros e de fornecimento de bens, serviços ou
ca do setor imobiliário. SP: Annablume, Fapesp, 2007. obras, a serem previamente estabelecidos com a UNIÃO;
294 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 295
VII. A seu critério, estender sua participação no programa, sob a for- critérios de priorização de investimento, pelo parágrafo 1°, inciso I do
ma de aportes financeiros e de fornecimento de bens, serviços ou artigo 3° da Lei n° 11.977/09, é a doação de terrenos localizados em
obras, a serem previamente estabelecidos com a União; área urbana consolidadas para a implantação de empreendimentos vin-
VIII. Fazer veicular nos meios de comunicação do MUNICÍPIO a divul-
culados ao programa.
gação do empreendimento habitacional, em parceria com as CONS-
A doação para o Fundo de Arrendamento Residencial de área de
TRUTORAS/INCORPORADORAS e/ou suas entidades representativas;
IX. Praticar outras atribuições afins e compatíveis, bem como as que domínio municipal tem a finalidade de destiná-la para a construção de
forem exigidas pela legislação aplicável de forma célere, visando a moradias de baixa renda, integrando o Programa Minha Casa Minha
agilização da tramitação do processo de aprovação do projeto.” Vida, cuja gestão operacional é feita pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL.
Atendendo ao Termo de Adesão firmado e às diretrizes da lei local
Com a adesão firmada, o município de Porto Alegre recebeu o - Lei Complementar n° 636/10, em seu artigo 9º.5 -, o Executivo Munici-
Programa Minha Casa Minha Vida através da Lei Complementar n° pal fica autorizado a doar ao Fundo de Arrendamento Residencial imóvel
636/10, que reguamentou as condições de sua aplicação, os bene- de sua propriedade para integrar o Programa MCMV na produção de
fícios urbanísticos, ambientais e fiscais, bem como o procedimento unidades habitacionais destinadas à população com renda de até 3
de licenciamento submetida à comissão de análise técnica específica, salários mínimos, mediante lei específica. A doação da área pública
criada para atender a habitação prioritária, assim denominada àquela municipal deverá ser submetida à Câmara de Vereadores, para o devido
destinada à população com renda familiar igual ou inferior a 6 salários processo de aprovação legislativa como condição legal para o procedi-
mínimos, conforme §3° do artigo 22 da Lei Complementar n° 434/99, mento da doação.
abarcando a população com faixa de renda familiar superior a 6 e até A construção das unidades habitacionais ocorre a partir da contra-
10 salários mínimos. tação de empreendimentos em condomínio ou em loteamento, cons-
Ou seja, a Lei Municipal estabeleceu a mesma classificação da lei fe- tituídos de apartamentos ou casas. A execução das obras do empre-
deral que regulamenta o programa, enquadrando os empreendimentos endimento é realizada por Construtora contratada pela CAIXA, que se
de acordo com a população destinatária, por faixas de renda familiar, a responsabiliza pela entrega dos imóveis concluídos e legalizados.
saber: a) 0 a 03 salários mínimos; b) 03 a 06 salários mínimos ; c) 06 a Os imóveis contratados são de propriedade exclusiva do FAR e
10 salários mínimos. Direcionou, assim, para os empreendimentos desti- integram seu patrimônio até que sejam alienados.
nados às populações com renda familiar nas faixas salariais de 0 a 3 e 3 Na parceria estabelecida com o Poder local, o aporte de recursos
a 6 salários mínimos a possibilidade de incentivos, da mesma forma do implica na doação de imóvel de propriedade municipal para integrar
que previu a Lei Federal n° 11.977/09, a teor do que dispõe seu art. 6º, esta modalidade do Programa para a produção de unidades habitacio-
contemplando aqueles que precisam de maior tutela com maior subsí- nais direcionadas à camada da população com renda de até 3 (três)
dio, como expressão do princípio da justiça social que deve orientar os salários mínimos.
atos do gestor público. Conforme o Manual da CAIXA, para o procedimento de doação, o
Questões relativas ao sistema de contrapartidas e incentivos urba- município deverá aportar os seguintes documentos:
nísticos ao programa serão, pontualmente, debatidos na ótica do Muni- • Carta de intenção de doação ou alienação do imóvel;
cípio e da necessária integração da legislação local ao PMCMV. • Minuta da Lei Autorizativa para doação ou alienação do imóvel;
• Título de propriedade do imóvel e matrícula atualizada contendo
os respectivos registros e croquis de localização do imóvel.
Doação de área pública ao FAR 5 LC 636/10, Art. 9º O Executivo Municipal fica autorizado a doar, mediante lei específica,
à Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pela operacionalização do Programa Minha Casa,
Uma das modalidades de contrapartida dos Municípios e Estados Minha Vida – Porto Alegre, em nome do Fundo de Arrendamento Residencial, instituído pela Lei
Federal nº 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, e alterações posteriores, áreas de terra de sua
para a implementação do PMCMV, e definido também como um dos propriedade para a construção de habitações para a execução de empreendimentos enquadrados
no disposto no inc. I do art. 3º desta Lei Complementar. (grifamos)

296 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 297
Submetida a área à análise da viabilidade pelo setor técnico da CAI- • Comprovante de publicação do Edital;
XA, e, na sequência, confirmadas as condições de admissibilidade, inicia- • Comprovante da divulgação do resultado;
-se o processo de escolha da construtora. Conforme as instruções da • Dados da construtora selecionada;
CAIXA contida no documento PROGRAMA MINHA CASA MINHA VIDA – • Projeto aprovado;
RECURSOS DO FAR, para a eleição da empresa construtora deve haver • Lei Autorizativa de alienação ou doação do imóvel ao FAR ;
um processo formal de escolha, observado os princípios de legalidade, • Documentação do imóvel/terreno.
finalidade, razoabilidade, moralidade administrativa, interesse pública e
eficiência, o qual poderá ser realizado pela prefeitura ou pela CAIXA. No O interesse público, bem como sua organização e financiamento
Manual do Programa Minha Casa Minha Vida – Habitação para famílias com verbas públicas, submetem a contratação para execução do em-
com renda de 0 a 3 salários mínimos - Recursos FAR, determina, expres- preendimento ao regime jurídico da administração pública, ou seja, às
samente, que é o Poder Público que realiza processo formal de escolha modalidades e condições do processo de licitação definidas em lei.
da Construtora que irá executar a obra. Desde os estudos de Francoise Gény, aparece a idéia de que não existe
De qualquer forma, nos termos da operadora do Programa, o pro- plenitude na legislação positiva, tese consagrada pela obra de Zitelmann,
cesso de escolha da construtora que executará o empreendimento deve- intitulada As lacunas do Direito. Em repercussão a essa doutrina, o legis-
rá observar os princípios da Administração Pública. O Manual da CAIXA lador brasileiro, já em 1942, determinou que o intérprete recorresse ao
adverte que caso o Poder Público não apresente projeto, o processo de costume, à analogia e aos princípios gerais do Direito, havendo lacunas na
escolha da Construtora envolverá, também, o projeto a ser implantado lei, e, ao mesmo tempo, negou a possibilidade ao juiz de deixar de senten-
no imóvel. ciar mesmo em face de lacunas ou obscuridades do texto legal (in Noções
Adverte, também, que não será aceita formalização da doação do imó- preliminares de Direito, Miguel Reale). A evolução desse entendimento está
vel ao FAR sem o respectivo projeto aprovado, e que a doação do imóvel expressa na Teoria do Ordenamento Jurídico, de Norberto Bobbio:
e a contratação das obras são formalizadas simultaneamente.
Estas condições impostas pela CAIXA, como operadora do Progra- “A teoria do ordenamento jurídico se baseia em três caracteres fun-
ma, são essenciais para a análise do procedimento que deverá ser ado- damentais: a unidade, a coerência, a completude; são estas as três
características que fazem com que o direito no seu conjunto seja um
tado para a escolha da construtora que realizará o empreendimento.
ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distintas das normas
Nesta esfera, as instruções da CAIXA consignam que, para subsidiar o singulares que o constituem”.6
trabalho dos municípios, disponibiliza material com roteiro e modelos
que servem como sugestão para auxiliar no desenvolvimento do proces- Na ótica da interpretação das leis entendidas como um sistema, não
so, e fazem a seguinte ressalva: há oposição à exigibilidade constitucional da licitação para a contra-
tação da empresa para a construção das unidades habitacionais neces-
As sugestões apresentadas podem ser usadas, a critério dos interes-
sariamente direcionadas à população com renda familiar de até 3 salá-
sados, como parâmetro para o caso em questão, não eximindo a ne-
cessidade do município de analisar a regularidade jurídica, para veri- rios mínimos em áreas doadas pelo município de Porto Alegre, conforme
ficação de sua aplicabilidade aos casos concretos, especialmente em fundamentação já exposta. A legislação afeta ao PMCMV não autoriza a
relação a sua adequação às normas legais e administrativas, com des- eleição de outra modalidade de contratação fora do modelo da Adminis-
taque às disposições da Lei nº 8.666/93, 10.188/01 e 11.977/09, tração Pública, responsabilizando o município pela regularidade legal do
não assumindo a CAIXA quaisquer responsabilidades na utilização procedimento, conforme destacado no manual da CEF acima citado.
desses termos, sem os cuidados pertinentes. Assim, as regras estabelecidas para a escolha da construtora que
executará o empreendimento devem ser claras e proporcionar a propos-
O manual arrola os documentos que os municípios deverão apre- ta mais vantajosa segundo os critérios de seleção, bem como garantir a
sentar comprobatórios do processo de escolha da construtora:
6 O positivismo jurídico, Ícone Editora, 1995, SP, p. 198.

298 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 299
igualdade de condições e oportunidades aos proponentes que respon- pública nos empreendimentos que decorrem de parcelamentos urbanos,
derem às condições pré estabelecidas para participação do processo. abrangendo a quase totalidade dos empreendimentos de produção habi-
Por isso, o objeto do contrato para implantação do empreendimento tacional de interesse social, além da redução do percentual de destinação
deve ser precisamente definido, assim como os requisitos de valoração de área pública para equipamentos comunitários, dos 20% estabelecidos
para o julgamento das propostas. no PDDUA, para 18% já expressa na Lei n° 547/06, para empreendi-
A segurança na adoção do sistema de contratação público reforça mentos de habitação prioritária. Além disso, estabeleceu possibilidades
o interesse na execução da política habitacional que protagoniza o em- de conversão da obrigação de destinação de áreas, como alternativas à
penho de áreas de domínio municipal para a produção de habitação ao política de incentivos e ao gerenciamento do planejamento urbano e suas
segmento mais carente da população urbana e a garantia da sua exe- carências no aporte de equipamentos públicos às áreas mais carentes.
cução. O modelo da administração pública é o que deverá ser utilizado Algumas considerações na execução da política de incentivos e con-
para o procedimento e formatação dos atos que dependem da interven- versões devem ser vistas no contexto do sistema jurídico posto.
ção e atuação do Município, ou de qualquer outro ente público. A destinação das áreas públicas em parcelamento do solo é conce-
bida como um ônus inerente ao processo de urbanização da gleba, tam-
bém denominado como concurso voluntário inserido no ordenamento
O planejamento urbano e a função da jurídico brasileiro, pelo menos, desde o Decreto-Lei n. 58, em seu artigo
destinação de área pública no parcelamento 3°�. O processo de parcelamento do solo tem o objetivo de extingüir a
urbano destinação ao PMCMV individualidade objetiva da gleba e, em seu lugar, obter a individualidade
objetiva dos lotes, mas não há qualquer idéia de comunhão, conforme
No livro que é referência ao estudo do planejamento urbano es- Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado, porque as vias de
tratégico, José Miguel F. Güell frisa que “resulta de capital importância, comunicação são abertas ao público e os espaços como praças, lugares
em primer lugar, identificar los cambios del entorno em curso y los de para arborização, ou reservatórios de águas são públicos.
previsible ocurrencia y, em segundo lugar, comprender y evaluar la im- Quer dizer que desde muito faz parte do processo de parcelamento
portancia del impacto de los mismos en el desarrollo urbano. A la luz de do solo, como instrumento de urbanização regularmente inserido no or-
esta evolución, los dirigentes de una comunidad urbana padrán tomar denamento jurídico vigente, a destinação das áreas públicas.
decisiones que conviertan los retos que afronta su ciudad em oportuni- Considerado como modo de aquisição da propriedade8 pelo Poder
dades de futuro para su desarrollo7. Público, desde muito a destinação das áreas públicas faz parte do proces-
O PMCMV estabelece uma necessária integração legislativa e de so de parcelamento do solo e a compreensão deste procedimento como
atuação entre os entes públicos envolvidos, onde, necessariamente, figu- instrumento de planejamento urbano, com o sentido de estruturação dos
ram os Municípios pela sua competência constitucional na organização equipamentos públicos necessários à comunidade que se estabelecerá no
e planejamento urbano e, principalmente, porque é o palco dos acon- local para atender as necessidades de circulação, de ocupação profissio-
tecimentos e conflitos que emergem da vida social urbana. A inserção nal, de lazer, culturais, enfim, para atender à vida urbana.
dos municípios no PMCMV é definida, caso a caso, a partir do termo de É no processo de parcelamento urbano que os órgãos de gestão
adesão que estabelece a política de incentivos que deve ser aportada da cidade tem a possibilidade de desenvolver a projetação do lugar no
como critério de preferência na seleção dos investimentos dos recursos âmbito da possibilidade de definição prévia da forma de ocupação e
do programa, conforme estabelecido na Lei n° 11.977/09.
Na política de incentivos urbanísticos, a legislação do Município de 8 PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Predial. Vol. 3, RJ: José Konfino Editor, 1948, p. 108:
Porto Alegre contemplou a redução ou isenção das áreas de destinação “Têm-se pretendido que as vias de comunicação e os espaços livres sòmente se tornem públicos
por ato dos interessados, entregando-as a Prefeitura Municipal. De modo nenhum. A aprovação
do loteamento faz públicas as vias de comunicação e públicos os espaços livres, com a ressalva
7 GÜELL, José Miguel Fernandes. Planificación Estratégica de Ciudades. Barcelona: Ed. Gustavo de serem ultimadas pelos loteadores as obras das vias de comunicação e dos espaços livres e da
Gili, S.A., 1997, p. 32. modificabilidade segundo o Decreto-lei n. 58”.

300 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 301
usos dos espaços públicos e privados, tanto quanto é possível o plane- ção das áreas públicas é inferior, insuficiente (poderia dizer: inadequada)
jamento definir a vida urbana que virá. Através da conformação do mo- ao percentual legal:
delo espacial proposto no projeto de parcelamento do solo às diretrizes
de planejamento, a gestão urbana detém a relevante função de fixar os “As leis urbanísticas municipais referentes ao parcelamento do solo
usos adequados para as diversas áreas do solo municipal. Ou: detém a determinam o mínimo de área que deve ser destinada ao primeiro
elemento do arruamento, acima indicado. Esse mínimo aproxima-se
possibilidade de destinar as diversas áreas para o exercício das funções
de 35% a 40% da gleba arruada. As regras, mais ou menos, são do
urbanas elementares, concebidas na regulamentação dos tipos de par- seguinte teor: da área total do plano de arruamento e loteamento se-
celamento, e, assim, encontrar lugar para os usos essenciais do solo e rão destinados, no mínimo: I – 20% para vias de circulação; II – 15%
colocar cada coisa em seu lugar, inclusive as atividades incômodas9. para área verdes; III – 5% para área institucionais. Mas, quando as di-
A definição das áreas públicas e suas funções vinculam ao modelo retrizes fixadas pela Prefeitura para determinado arruamento excede-
urbano planejado e às necessidades de estruturação dos equipamentos rem aos valores estabelecidos serão declaradas de utilidade pública
públicos necessários à urbanificação do setor. Trata-se de função pública para efeitos de desapropriação. Se, no entanto, a juízo do órgão com-
da maior relevância, porque tais definições estruturarão as políticas pú- petente da Prefeitura, o espaço para as vias de circulação for inferior
à percentagem prevista em relação à gleba arruada, a área necessária
blicas de atendimento aos direitos fundamentais da sociedade, a partir
para completar essa percentagem será adicionada às áreas verdes
da comunidade local. São espaços para implantação, no âmbito da vida ou para outro fim, conforme dispuser a lei; nunca, porém, deverá a
comunitária, de escolas, praças, postos de saúde, equipamentos que al- Prefeitura deixar que a diferença se integre nas quadras como pro-
cançam justiça social, dignidade e o que decorre destes princípios cons- priedade privada do arruador”10.
titucionais. A atividade dos órgãos técnicos municipais, nesta atribuição
de planejamento, tem a relevante finalidade de estruturação das políti- Nesta ótica, os instrumentos de permuta ou venda de área, ou con-
cas públicas e concretização dos direitos constitucionais, como acesso a versão em serviço de edificação de equipamentos públicos essenciais,
saúde, estudo, lazer, cultura, atividades ligadas as áreas de destinação ou de conversão em moeda corrente, como previsto em legislações ur-
pública decorrentes do processo de parcelamento urbano. banísticas de interesse local, têm uma necessidade imperiosa, tanto no
Porque o planejamento urbano não é uma atividade estanque, de âmbito do planejamento urbano e seus mecanismos reguladores, quan-
precisão matemática e lógica cartesiana, a quantificação das áreas pú- to na manutenção da ordem institucional vigente através da aplicação
blicas nos processo de parcelamento ficaram afetas à regulamentação do princípio da igualdade – um dos pilares do Estado Democrático de
urbanística local, conforme dispõe o artigo 4° da lei federal do Parcela- Direito. Todos os donos de glebas, em processo de parcelamento do
mento Urbano, Lei n° 6.766/79. solo, devem prever a destinação das áreas para implantação de servi-
Além disso, o desenvolvimento urbano, quer seja ele ordenado ou ços e equipamentos públicos e comunitários nos percentuais estabele-
não, produz equipamentos públicos que, em determinadas situações, cidos na lei municipal, dependendo da forma de parcelamento11. Não
podem suprir a demanda de serviços ou equipamentos em alguns locais,
em detrimento de outros mais carentes. Então, a idéia de compensação 10 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3a. ed.,SP: Ed. Malheiros, 2000, p. 323.
das áreas de destinação pública, onde os equipamentos destinados aos 11 Lei Complementar n. 434/99: Art. 144. A destinação de área pública, em loteamento, não po-
serviços públicos ou áreas de praça são considerados suficientes para derá ser inferior a 35% (trinta e cinco por cento) do total da gleba, nem superior a 50% (cinqüenta
por cento), salvo acréscimo no limite máximo por proposta do loteador.
atender a demanda da comunidade, aumenta as alternativas do planeja- Parágrafo único. Nas áreas destinadas a praças e escolas podem ser implantados outros equipa-
mento urbano na busca da qualificação ambiental e da rede de serviços mentos públicos comunitários, a critério do SMGP e ouvida a comunidade, desde que não acar-
retem ônus ao loteador e que sejam atendidos os requisitos estabelecidos em regulamentação
e estrutura pública. específica.
José Afonso da Silva, no livro Direito Urbanístico Brasileiro, é rigoro- Art. 149. Desmembramento é o parcelamento de imóvel em lotes destinados à edificação com
so quanto à necessidade de compensação nos casos em que a destina- aproveitamento do sistema viário oficial.
§1º No desmembramento, as áreas públicas serão destinadas a equipamentos públicos comunitá-
rios, no percentual estabelecido no Anexo 8.2.
9 SILVA, José Afonso. Direito Urbanístico Brasileiro. 3a. ed., SP: Ed. Malheiros, 2000, p. 233. §2º As áreas de destinação pública podem, a critério do SMGP, ser convertidas em moeda corrente

302 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 303
podendo atingir o percentual mínimo ou a inadequação das áreas para devem estar justificadas pelo planejamento setorial das demandas e nas
a destinação pública, impõe-se a compensação em outras áreas, servi- condições legais que a lei local elege para a promoção do desenvolvi-
ços ou conversão em moeda corrente nacional; enfim, a utilização dos mento da cidade com justiça social, que é quesito indissociável do prin-
instrumentos legais com tal finalidade funciona para a preservação de cípio da dignidade humana.
tratamento isonômico, porque pessoas e situações iguais devem ter o
mesmo tratamento perante a lei12. Estas alternativas à destinação de
áreas públicas estão num contexto de excepcionalidade no processo A redução e isenção do percentual da área
de parcelamento do solo, e devem atender as condições legais estabe- de destinação pública – a aplicação do incentivo
lecidas, para que não se transformem em um meio de depredação do nos empreendimentos do PMCMV
patrimônio público.
A idéia de constituição de instrumentos outros que importem em No caso dos incentivos concedidos para os empreendimen-
compensação de parte das áreas de destinação pública, nas situações tos inseridos pelo PMCMV, destinados à população com renda familiar
em que a lei a permite em atenção à qualificação ambiental, alinha- igual ou inferior a 6 salários mínimos, com relação à destinação de áre-
-se a competência regulamentar e à política de desenvolvimento urba- as para equipamentos públicos e comunitários, a legislação específica
no constitucionalmente submetida à responsabilidade do Poder Público da Demanda de Habitação Prioritária (Lei Complementar n° 547/2006)
municipal. Não se trata, aqui, de isentar da obrigação de destinação de reduziu o percentual, fixando em 18% mais a área resultante da ma-
área pública, mas de constituir o patrimônio municipal de outra forma lha viária estabelecida no EVU. Percentual reeditado na lei aplicável aos
que responda eficientemente às demandas da estrutura urbana. empreendimentos enquadrados no Programa Minha Casa Minha Vida
O Estado de Direito não concebe o exercício da função administra- (Lei Complementar n° 636/2010), permite, além disso, maior redução
tiva incompatível com o sistema jurídico que direta ou indiretamente ou isenção deste percentual nos casos de desmembramento de áreas,
autorize sua atuação, e o Constitucionalismo moderno não tem mais como incentivo para a produção de habitação social destinada a famílias
como principal função a limitação do poder, mas estabelecer a base de com faixa de renda entre 0 a 6 salários mínimos. Entretanto, a possibi-
todas as suas competências. O desempenho da função administrativa lidade é restritiva e condicionada à suficiência de equipamentos comu-
tem que, necessariamente, corresponder a um poder fixado pelo Direito, nitários localizados no entorno do empreendimento e que atendam as
visto que está sujeito aos princípios constitucionais diretamente aplicá- demandas da população já estabelecida e a que irá se estabelecer no
veis e não pode contrariar as normas jurídicas vigentes13. Nesta ordem, local. Diz o artigo 12 da Lei Complementar n° 636/2010:
as propostas de conversão da obrigação de destinação de área pública
Art. 12. Nos casos de desmembramento, na aprovação dos pro-
nacional, cujo valor será destinado à aquisição de outras áreas para implantação de equipamentos jetos para os empreendimentos enquadrados nos incs. I e II do art.
públicos comunitários, sendo que a forma de pagamento será objeto de regulamentação através de 4º desta Lei Complementar, o Município de Porto Alegre poderá
decreto do Poder Executivo.
§3º Será permitido o desmembramento de imóvel em Área Especial com o objetivo de destacar
dispensar ou reduzir o percentual de área destinada a equipamento
parte do mesmo desde que não descaracterize a Área Especial, caso em que as áreas de destinação comunitário prevista no art. 11 desta Lei Complementar, conside-
pública serão calculadas sobre a parcela destacada. rando a suficiência de equipamentos no entorno do empreen-
12 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4a. ed., SP: Ed. Malheiros, 2004, p.101: “A igualdade dimento.
pode funcionar como regra, prevendo a proibição de tratamento discriminatório; como principio,
instituindo um estado igualitário como fim a ser promovido; e como postulado, estruturando a apli-
cação do Direito em função de elementos (critério de diferenciação e finalidade da distinção) e da A redação do disposto no parágrafo primeiro do citado artigo 12
relação entre eles (congruência do critério em razão do fim)”. conduz a interpretação lógica de que, para a adoção do incentivo de
13 GRAU, Eros Roberto. Direito poste e Direito pressuposto. 4a. ed., SP: Ed. Malheiros, 2002, p. redução da área de destinação pública, deve haver suficiência de equi-
90: “toda a lei se encontra em uma tensão necessária em relação à concreção do atuar, porque é
geral e não pode conter em si a realidade prática em toda sua concreção; a lei é sempre deficiente, pamentos que absorvam a demanda da população já estabelecida no
não porque o seja em si mesma, mas sim porque, em presença da ordenação a que se referem as entorno do empreendimento.
leis, a realidade humana é sempre deficiente e não permite uma aplicação simples das mesmas”.

304 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 305
§ 1º Na hipótese da dispensa prevista no “caput” deste artigo, o Mu- Constitucional. Citando Binenboj, o “interesse público comporta, desde
nicípio de Porto Alegre assumirá a obrigação de destinar as áreas para a sua configuração constitucional, uma imbricação entre interesses difu-
equipamentos comunitários necessários, devendo ser providenciada sos da coletividade e interesses individuais e particulares, não se poden-
dotação orçamentária específica para esse fim. do estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre outros.
Com efeito, a aferição do interesse prevalecente em um dado confronto
O dispositivo acima citado regulamenta o caso de isenção da reserva de interesses é procedimento que reconduz o administrador público à
de áreas comunitárias e, por isso, vincula a necessária assunção da obri- interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e
gação de implementar os equipamentos comunitários pelo Município, que na lei, e, via de regra, obriga-o a realizar o seu próprio juízo ponderativo,
deverá, inclusive, providenciar a dotação orçamentária específica. Mas, no guiado pelo dever de proporcionalidade”14. Conforme o autor, a ponde-
caso de redução da reserva de áreas públicas e comunitárias, a regra apli- ração guiada pelo princípio da proporcionalidade deve criar standarts
cável é a do caput do artigo 12 e condiciona o incentivo ao diagnóstico de decisão com peculiaridades do caso concreto, de modo a evitar o
da suficiência dos equipamentos instalados no entorno em cotejo com a mal reverso, que é a acentuada incerteza jurídica provocada por juízos
capacidade de absorção da nova população que será instalada no local. de ponderação produzidos sempre caso à caso15.
Tal restrição está justificada na importância do instrumento de re-
serva de áreas para equipamentos públicos e comunitários no planeja-
mento urbano, e a capacidade de aporte da estrutura pública necessária CONCLUSÕES
para suporte dos serviços públicos essenciais às dignas condições de
vida que o Município deve garantir à população. A redução ou isenção a) A implementação do PMCMV, que objetiva o incentivo à produ-
para além do percentual fixado no artigo 11 da Lei Complementar n° ção e aquisição de novas habitações para a destinação à população com
636/2010 acarreta a redução patrimonial do Poder Público e também renda familiar de até 10 salários mínimos, deve integrar as diretrizes e
afeta sua capacidade do provimento de serviços essenciais. Por isso, que regras dos planos diretores e suas diretirzes de planejamento e desen-
a forma de incentivo concebida no artigo 12 está atrelada a ação de volvimento de forma a atender a realidade e os critérios de cada muni-
diagnóstico de planejamento urbano que vincula os órgãos municipais cípio, em cada Estado, para a instituição de uma política habitacional
de licenciamento urbano ambiental. articulada com o interesse local.
O diagnóstico dos equipamentos públicos e comunitários é o ele- b) Os atos que dependem da atuação do município devem ser exe-
mento de reavaliação do planejamento urbano, que confere a dinâmica cutados no modelo previsto à Administração Pública, submetendo ao
das suas deliberações, sobre a capacidade de absorção dos equipamen- processo de licitação as contrações de empresas para execução de em-
tos implantados no entorno em relação ao crescimento das demandas preendimentos em áreas de domínio municipal doadas ao FAR.
comunitárias e os princípios de desenvolvimento urbano ambiental, de c) A definição das áreas públicas e suas funções vinculam o modelo
forma a justificar os incentivos estabelecidos pelas leis locais. Insere-se urbano planejado e a estruturação dos equipamentos públicos neces-
o diagnóstico na instância de licenciamento urbano ambiental, onde os sários à urbanização dos espaços da cidade, conforme a lei local. Por
técnicos dos órgãos licenciadores atuam como gestores das suas áreas de isso, as propostas de conversão de destinação de área pública devem
representação e a sua manifestação na fixação de diretrizes e instâncias obedecer aos critérios legalmente eleitos no processo de parcelamento
de análise, aprovação do empreendimento, tem caráter deliberativo. urbano, justificada pelo planejamento setorial das demandas, com a fi-
Além disso, o diagnóstico é a justificativa técnica e a motivação do nalidade de promoção do desenvolvimento da cidade com justiça social,
ato administrativo, fundamentado no interesse público identificado com que é quesito indissociável do princípio da dignidade humana.
a demanda da produção de habitação social e o estímulo necessário
para propiciar tais empreendimentos, combinado com a necessária in-
14 BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo., RJ: Liv. e Ed. Renovar, 2006, p.
fraestrutura urbana, de equipamentos públicos e comunitários que ou- 105.
torgam condições de vida digna, saudável e justa, por diretriz da Carta 15 BINENBOJM, Gustavo. Ob. Cit., p. 106.

306 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 307
d) A concessão de incentivo urbanístico consistente na redução ou
dispensa da destinação de área pública em parcelamento do solo de
Gestão democrática da cidade
empreendimentos enquadrados no PMCMV está condicionada ao diag- e o direito à moradia
nóstico da suficiência dos equipamentos públicos instalados no entorno
da região do empreendimento para direcionar a atuação do município. Carlos Eduardo Silva1
e) A atividade dos órgãos técnicos municipais, no planejamento
urbano, resulta na informação e estruturação das políticas públicas e
concretização dos direitos constitucionais, como acesso a saúde, estudo, SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A função social da cidade
como base para a construção de espaços de governança
lazer, cultura, atividades ligadas às áreas de destinação pública decor-
urbana democrática - 3. Fundamentos da gestão democrá-
rentes do processo de parcelamento urbano. tica das cidades - 4. O direito à moradia nos assentamentos
informais - 5. Gestão democrática na implementação do di-
reito à moradia - 6. Conclusão - 7. Referências Bibliográficas
REFERÊNCIAS RESUMO: O fortalecimento da regulação pública do solo
urbano e a adoção de mecanismos que institucionalizam a
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 4a. ed., SP: Ed. Malheiros, 2004. participação direta da população no governo das cidades re-
BINENBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo., RJ: Liv. e Ed. Re- forçam o papel do município no desenvolvimento de políti-
novar, 2006. cas urbanas voltadas a garantir o direito à moradia, em con-
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico, SP: Ícone Editora, 1995. dições mais justas e democráticas. Assim, assume-se como
BOTELHO, Adriano. O urbano em Fragmentos: A produção do espaço e de mo- imperativo das políticas urbanas de habitação e de regula-
radia pela prática do setor imobiliário. SP: Annablume, Fapesp, 2007. rização fundiária de assentamentos informais, a discussão
GRAU, Eros Roberto. Direito poste e Direito pressuposto. 4a. ed., SP: Ed. Ma- dos rumos da cidade com os vários setores que compõem a
lheiros, 2002. sociedade, atendendo não só a preceitos de justiça distribu-
GÜELL, José Miguel Fernandes. Planificación Estratégica de Ciudades. Barcelo- tiva, mas como condição para a eficiência destas políticas.
na: Ed. Gustavo Gili, S.A., 1997. PALAVRAS-CHAVE: Gestão Democrática - Direito à Mora-
PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Predial. Vol. 3, RJ: José Konfino Edi- dia – Política de Habitação – Regularização Fundiária de As-
tor, 1948. sentamentos Informais – Função Social da Cidade.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 3a. ed.,SP: Ed. Malheiros, 2000.

1. Introdução

Durante o último século o Brasil transformou-se em um país cuja


maioria da população se concentra nos centros urbanos. No relatório
da Organização das Nações Unidas (ONU), divulgado no V Fórum Urba-
no Mundial, algumas cidades brasileiras destacaram-se na lista de desi-
gualdade, o que bem retrata que a política urbana é fundamental para
o encaminhamento de soluções às questões sociais mais sensíveis da
sociedade brasileira.
A melhoria da qualidade de vida nas cidades tem como pressupos-
to o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para todo o

1 Promotor de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística de Cuiabá e Mestrando em Direito Urba-


nístico pela PUC-SP.

308 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 309
território e classes sociais que nelas vivem, especialmente nos núcleos A análise do tema envolve a abordagem sobre os fundamentos e as-
populacionais que não atendem aos padrões urbanísticos e ambientais pectos da função social da cidade, visto como parâmetro para a constru-
estabelecidos pelas legislações urbanísticas e que foram constituídos de ção de espaços de governança urbana democrática, acerca do alcance
modo informal e irregular. do direito à moradia na implantação da política habitacional e nos pro-
A promoção do direito à cidade, ligado intrinsecamente ao reco- cessos de regularização de assentamentos informais urbanos, além da
nhecimento do espaço urbano como o adequado para a realização de implicação da gestão democrática na elaboração, definição e execução
todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, privilegia expe- das políticas voltadas a garantir o direito à moradia.
riências participativas de gestão, especialmente na elaboração, defini-
ção e fiscalização da implementação de políticas públicas nas cidades.
Aliás, o tema urbano, relacionado ao interesse local e às novas formas 2. A função social da cidade como base
de organização social nos centros urbanos, passou a ter uma ordem para a construção de espaços
de grandeza expressamente reconhecida em declarações, pactos e de governança urbana democrática
demais documentos internacionais, bem como nos ordenamentos de
diversos países, o que representa uma esperança no desenvolvimento O direito à cidade é o direito fundamental que todo o cidadão tem
de ações voltadas para o combate à desigualdade social e territorial de viver numa cidade sustentável, e deve compreender o acesso de to-
existente nas cidades. dos os que vivem na cidade à moradia, aos equipamentos e serviços
Isso se reflete no Brasil, nas competências e responsabilidades ur- urbanos, ao transporte público, ao saneamento básico, à saúde, educa-
banísticas fixadas na Constituição de 1988. Ao longo do século XX, após ção, cultura, esporte, lazer, enfim, aos direitos urbanos que são ineren-
avanços e retrocessos, a autonomia municipal tornou-se uma realidade tes às condições de vida da cidade.
em face do processo de descentralização federativo estabelecido pela Para que haja cidades justas, humanas, saudáveis e democráticas,
Carta Magna. Com efeito, uma das atribuições do Poder Público Muni- é preciso incorporar os direitos humanos no campo da governança das
cipal é o de alcançar o bem-estar dos habitantes da cidade, através do cidades, de modo que as formas de gestão e as políticas tenham como
desenvolvimento das funções sociais da cidade (CF, art. 182 caput). resultados de impacto a eliminação das desigualdades sociais, das prá-
Desse modo, conforme será abordado, o significado jurídico da ges- ticas de discriminação em todas as formas de segregação de indivíduos,
tão democrática deve ser buscado essencialmente do diálogo mantido grupos sociais e comunidades, em razão do tipo de moradia e da locali-
com o princípio da função social da cidade, conjugado, obviamente, com zação dos assentamentos em que vivam.2
os demais preceitos constitucionais e do Estatuto da Cidade. Há de se A experiência brasileira de buscar o reconhecimento institucional do
registrar, ainda, que a partir da Constituição de 1988, multiplicaram-se direito à cidade, a partir de uma ação política da defesa da implantação
os casos de legislações inferiores que incorporam não só os marcos que da reforma urbana, contribuiu para que fosse introduzido, gradativa-
informam a política urbana, como diversos outros destinados a fazer mente, nos Fóruns Internacionais Urbanos, o direito à cidade, na pauta
cumprir a função social da cidade e a garantir o direito à moradia. dos processos globais a tratar dos assentamentos humanos.3
A presente reflexão tem o propósito de demonstrar que a realidade
2 SAULE JÚNIOR, Nelson. O Direito à Cidade como paradigma da governança urbana democráti-
das nossas cidades direciona o Poder Público a implementar uma políti- ca. Disponível em: http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=28. Acesso em 15.07.2010.
ca urbana com o objetivo de garantir o direito à moradia. E, para tanto, 3 Cabe destacar o Tratado sobre a questão urbana, denominado “Por Cidades, Vilas e Povoados,
há de se possibilitar a criação de espaços de participação direta dos Justos, Democráticos e Sustentáveis”, elaborado na Conferência da Sociedade Civil Sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, durante a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e
cidadãos nos processos decisórios sobre o destino da cidade, seja na Desenvolvimento, na Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento
elaboração e na definição das políticas habitacionais e de regularização (ECO-92). Neste Tratado, o direito a cidades é concebido como direito à cidadania – direito dos
fundiária, como, ainda, no próprio agir administrativo, com enfoque no habitantes das cidades e povoados a participarem na condução de seus destinos. O Tratado com-
preende a gestão democrática da cidade, como a forma de planejar, produzir, operar e governar as
sentido e alcance do direito humano à moradia. cidades e povoados, submetida ao controle e participação da sociedade civil, destacando-se como
prioritários o fortalecimento e autonomia dos poderes públicos locais e a participação popular. A

310 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 311
O direito à cidade viabiliza-se através do cumprimento da função “O pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade deve ser en-
social da cidade, que, como princípio constitucional dirigente da política tendido como um interesse difuso dos seus habitantes, de modo que
urbana, foi introduzido na Constituição de 1988 pelo caput do artigo estes sejam considerados sujeitos de direito, podendo, perante as es-
feras do Poder Público e do Poder Judiciário, ser exigida a defesa do
182, que estabelece: “A política de desenvolvimento urbano, executada
cumprimento deste princípio nas situações em que o desempenho de
pelo poder público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei,
atividades e funções exercidas nas cidades resulte em conflitos de in-
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais teresses urbanos de intensa litigiosidade e complexidade – tais como
da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.” a instalação de uma penitenciária, ampliação e abertura de estradas
Embora o adequado desenvolvimento urbano constitua condição e de avenidas, destinação de áreas para aterros sanitários e usinas
fundamental para o desenvolvimento das atividades econômicas que de tratamento de lixo em bairros residenciais, áreas ocupadas para
ocorrem nas cidades, a finalidade mais imediata dos dispositivos pre- fins de moradia por populações pobres e marginalizadas em áreas
vistos nos artigos 182 e 183 é viabilizar a democratização das funções consideradas de preservação ambiental (áreas de mananciais e man-
sociais da cidade em proveito de seus habitantes, prevendo mecanismos gues), bem como de implantação de condomínios habitacionais de
alto padrão, horizontais e verticais – sem atendimento à legislação de
de promoção do adequado aproveitamento do solo urbano.4
parcelamento do solo urbano”5.
A propósito, a Lei 10.257, de 10.07.2001, autodenominada Esta-
tuto da Cidade, foi editada para dar concreção aos preceitos da política
O princípio da função social da cidade traduz, em sua essência, a
urbana contidos nos artigos 182 e 183 da Constituição de 1988 e que
vocação do coletivo sobre o particular, dando respaldo e sustentando
tem entre seus objetivos ordenar o pleno desenvolvimento das funções
o princípio da função social da propriedade; por isso que, mais que a
sociais da cidade. O Estatuto da Cidade agregou a ordem urbanística
propriedade, a cidade deve existir e servir a seus habitantes.6
no rol de direitos metaindividuais da Lei 7.347/85 (inciso VI do art. 1º),
Em linhas gerais, o princípio da função social da cidade tem a se-
com o fim de garantir a implementação de suas diretrizes, institutos e
guinte compreensão, essencial para os fins propostos nesse trabalho:
instrumentos de ordenação das cidades.
o uso socialmente justo do espaço urbano para que os cidadãos apro-
Logo, o direito à cidade, adotado pelo ordenamento jurídico, o
priem-se do território, democratizando seus espaços de poder, de pro-
coloca no mesmo patamar dos direitos difusos e coletivos, como, por
dução e de cultura, dentro de parâmetros de justiça social e da criação
exemplo, do consumidor, do meio ambiente, do patrimônio histórico e
de condições ambientalmente sustentáveis. Ou seja, o fortalecimento da
cultural e da criança e adolescente. Obviamente, a inserção do direito à
regulação pública do solo, com a introdução de novos instrumentos de
cidade na categoria dos interesses difusos decorre do fato do desenvol-
política fundiária que garantam o funcionamento do mercado de terras
vimento das funções sociais da cidade afetar a todos os seus habitantes.
condizente com os princípios da função social da propriedade imobiliá-
Ao tratar do tema, Nelson Saule Júnior assinala que:
ria, e da justa distribuição dos custos e benefícios da urbanização.
Resulta daí, que a gestão democrática da cidade surge como princí-
pio ligado ao direito à cidade, advinda da dimensão política e social do
função social da cidade, que no Brasil passou a ser princípio constitucional da política urbana, tem a
seguinte compreensão, neste Tratado: o uso socialmente justo do espaço urbano para que os cida-
que vem a ser entendido como função social da cidade. E ela pode ser
dãos apropriem-se do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cultura, compreendida como a forma de planejar, produzir, operar e governar as
dentro de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientalmente sustentáveis. cidades e povoados, submetida ao controle e participação da sociedade
Outro processo global importante, no qual foi introduzido em diálogo sobre o direito à cidade e a
reforma urbana, foi a Conferência Global sobre os Assentamentos Informais das Nações Unidades civil.
(Habitat II), realizada na Cidade de Istambul, em 1996. Atualmente, o Fórum Social Mundial tornou-
-se palco privilegiado para a internacionalização do direito à cidade, de onde tem sido elaborado a
Carta Mundial do Direito à Cidade. A primeira versão da Carta teve como subsídio a Carta Européia
dos Direitos Humanos na Cidade, elaborado em Saint Dennis, em maio de 2000. (Ibidem). 5 SAULE JÚNIOR, Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos irregulares. Porto
4 CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos Constitucionais do Estatuto da Cidade. In: DALLARI, Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004, p. 222
Adilson Abreu (Coord.); FERRAZ, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade (Comentários à lei federal 6 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri-SP, Manoele,
10.257/2001). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 22. 2004, p. 47.

312 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 313
3. Fundamentos da gestão democrática das cidades de desconcentração e descentralização da autoridade. Daí a compre-
ensão de que a Democracia pressupõe uma organização estatal que
As cidades surgem para cumprir uma função econômica e política prime pela divisão orgânica e territorial do poder político, em bases
incapaz de se realizar em espaços menos organizados e concentrados, equilibradas; quer dizer, sem hegemonia de um órgão estatal sobre
outro, ou de uma pessoa territorial sobre as demais”9.
sendo arena indispensável para a circulação humana e de capital e de
participação social.
A gestão democrática decorreu de uma mudança de paradigma vi- A noção de participação popular está intrinsecamente ligada à pró-
venciado pelo nosso sistema político constitucional, com a introdução pria concepção de democracia. Nesse sentido, ainda que não contasse
do conceito normativo de democracia participativa, advindo, especial- com nenhuma referência expressa no Texto Constitucional de 1988, ao
mente, do artigo 1º e parágrafo único e do artigo 14 da Constituição Fe- avesso do que verdadeiramente ocorre, deduziríamos a presença implícita
deral (os quais prevêem, respectivamente, o exercício direto da vontade de norma constitucional autorizante da criação de institutos de participa-
popular e as técnicas participativas estatuídas). ção popular na Administração Pública, através dos princípios democráti-
Necessário observar, por oportuno, que, do ponto de vista jurídico, cos e do Estado de Direito, princípios básicos de organização do Estado
a democracia é tida como princípio geral de Direito, expressamente re- Brasileiro, conforme definido pelo art. 1º da Constituição Federal. 10
conhecida pelo ordenamento constitucional brasileiro.7 Mas, de uma forma ou de outra, o ordenamento jurídico prevê ex-
Para Carlos Ayres Brito, a democracia constitui o valor-síntese da pressamente diversas formas de participação do cidadão na gestão pú-
Constituição, ou, de acordo com suas palavras “o próprio ser da Consti- blica. Nesse sentido, por exemplo, há previsão desta participação no
tuição, a sua quinteessência”8, não havendo na Constituição outro que planejamento municipal (art. 29, X, da CF), na gestão orçamentária e da
se lhe iguale em importância funcional-sistêmica. cidade (art. 4º do Estatuto da Cidade), no sistema de saúde e segurida-
A adoção do sistema democrático não importa somente no poder de social (art. 198, III e art. 194, VII, da CF), bem como na política de
de selecionar eleitoralmente os governantes, mas, também, de dividir habitação de interesse social e na regularização fundiária dos assenta-
com eles algumas funções de governo e ainda controlar o modo pelo mentos informais urbanos, temas que merecem especial destaque neste
qual tais governantes se desincumbem do mandato ou do papel institu- trabalho.
cional que lhes é confiado. E, para tanto, adverte o citado autor: Aliás, a participação da população nos processos de decisão e na
formulação das políticas vêm ainda reforçada na Lei Complementar
“É do nosso entendimento que o controle social do Estado, tanto quan- 101/2000, a chamada Lei de Responsabilidade Fiscal, que garante a
to a direta participação popular nos atos de governo, sejam atividades atuação dos cidadãos na construção das leis orçamentárias (parágrafo
tanto mais eficazes quanto mais numerosos forem os mecanismos de único do art. 48), bem como nas prestações de contas, visando a tranpa-
divisão interna do poder político (Federação, Separação dos Pode- rência na gestão pública e fiscal.11
res, Sistema Parlamentar de Governo...). É que o povo já encontra Nessa esteira, algumas cidades têm se notabilizado como espaços
os órgãos e pessoas estatais reciprocamente limitados. Mutuamente dinâmicos para o exercício dessas conquistas democráticas, através da
contidos. E aí passa a conviver de modo mais facilitado com instân- implantação de colegiados municipais de política urbana, que têm de-
cias governamentais já relativizadas ou quebrantadas, cotidianamen-
te, no seu poder institucional. O controle e a participação popular, 9 Ibidem, p. 185.

nesse contexto, apenas dão seqüência a mecanismos constitucionais 10 PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de participação popu-
lar na administração pública. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 74.
11 O § 2º do art. 165 da CF estabelece que a lei de diretrizes orçamentárias deve definir metas
7 Pode-se afirmar que princípios jurídicos são normas dotadas de um elevado grau de genera- regionalizadas anuais, portanto, metas de resultados, que servirão como norte para a aplicação dos
lidade e abstração e que formam a estrutura fundamental de um sistema jurídico. Diferenciam-se recursos públicos, visando a redução das desigualdades inter-regionais, segundo critério populacio-
das regras, que também são normas, pelo menor grau de generalidade e abstração e pela menor nal. Nesse ponto, algumas entidades da sociedade civil organizada tem se esforçado para disse-
importância estruturante destas dentro do sistema jurídico. Cf. GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto minar boas práticas orçamentárias, procurando difundir aos entes públicos a idéia de trabalharem
e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 19. com critérios transparentes de coleta de informações da população e de fixação de prioridades no
8 BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Editora Forense: Rio de Janeiro, 2006, p. 181. orçamento.

314 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 315
batido algumas questões relacionadas à política habitacional, de sanea- bientais estabelecidos pelas legislações urbanísticas e que foram consti-
mento ambiental e de mobilidade e trânsito. tuídos de modo informal e irregular.14
Experiências de gestão compartilhada na promoção de regulariza- Para enfrentar essa situação, a urbanização e regularização dos as-
ção fundiária de assentamentos informais urbanos têm permitido que sentamentos precários devem ser definidas como uma prioridade nacio-
tais intervenções tenham o acompanhamento direto da população in- nal no campo da política urbana, transformando-se em ação obrigatória
teressada, a qual é estimulada, em tais casos, a propor soluções para para os Governos nas três esferas federativas e tendo como fundamento
o controle da expansão e adensamento da ocupação, bem como para o direito à moradia.15
minorar os efeitos das remoções de áreas de risco.12 A propósito, o reconhecimento do direito à moradia como direito
Embora ao município não caiba a competência material exclusiva fundamental veio a ocorrer somente no ano de 2000, através da emen-
para a solução das complexas questões urbanísticas, visualiza-se que da constitucional n. 26, que o incluiu expressamente no rol dos direitos
tal ente têm sido protagonista na implementação de instrumentos de sociais (art. 6º).
participação popular na execução da política de desenvolvimento ur- Aliado a isso, o Estatuto da Cidade também é a base legal de funda-
bano.13 mento da promoção da regularização fundiária. Nota-se, por oportuno,
Esta nova dinâmica possibilita a ocorrência de dois fenômenos in- que tal marco normativo estabelece como diretriz da política urbana “a
teressantes nas políticas de desenvolvimento urbano e de habitação. regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por popula-
O primeiro deles relaciona-se à ampliação dos espaços de cidadania, ção de baixa renda, mediante o estabelecimento de normas especiais
o qual, por sua vez, é um catalisador para a eficiência desta política. de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a
Já, o segundo, é caracterizado pela municipalização da política urbana, situação socioeconômica da população e as normas ambientais”, nos
que tem possibilitado reformas nas relações intergovernamentais e nas termos do inciso XIV do artigo 2º.16
relações governo-cidadania, pela adoção de mecanismos que institu- Para tornar efetiva a proteção do direito à moradia, o Estatuto da
cionalizam a participação direta da população no governo da cidade. Cidade arrola como instrumentos da política de regularização fundiária,
nos termos do inciso V do artigo 4º, as Zonas Especiais de Interesse
Social (ZEIS), além de outros arrolados no mesmo dispositivo.17
4. O direito à moradia nos assentamentos informais
14 São os assentamentos precários, como as favelas, vilas, cortiços, loteamentos e conjuntos ha-
bitacionais populares, onde vive a população de baixa renda, gerando impactos negativos tanto
A realidade das nossas cidades direciona o Poder Público a imple- no aspecto social como no meio ambiente. Essa população não tem a propriedade e sim a posse
mentar uma política urbana e habitacional para a execução de progra- dessas áreas, sendo que muitas dessas áreas são públicas.
15 SAULE JÚNIOR, Nelson. Ob. cit. p. 341.
mas de regularização fundiária, com o objetivo de garantir o direito à
16 Para Betânia Alfonsin a concepção que melhor atende aos desafios da regularização fundiária é
moradia. aquela que integra as dimensões jurídica, urbanística, física e social. Para a autora, os processos de
Por certo, a melhoria da qualidade de vida nas cidades tem como regularização fundiária advêm de intervenção pública embebida de um propósito multidisciplinar,
objetivando legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em des-
pressuposto o meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado para conformidade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente
todo o território e classes sociais que nelas vivem, especialmente nos urbano do assentamento, no resgate da cidade e da qualidade de vida da população beneficiária.
Cf. ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e
núcleos populacionais que não atendem aos padrões urbanísticos e am- Sustentabilidade. Direito urbanístico e política urbana no Brasil – Organizador: Edésio Fernandes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 216.
12 O direito à moradia é reconhecido mesmo nos casos de áreas de risco, sendo necessário o re- 17 A instituição das ZEIS partiu de experiências realizadas por alguns municípios no vácuo criado
assentamento em moradia digna, por meio de um processo participativo e democrático, conforme pelo esvaziamento de políticas nacionais de habitação. Destacam-se, neste contexto, as inovações
disposto no art. 48, inciso III, da Lei 11.977/2009 (Programa Minha Casa Minha Vida). trazidas pelos municípios de Recife, São Paulo, Belo Horizonte, Diadema e Porto Alegre nas políticas
13 O Município não é a única esfera político-administrativa competente materialmente pelas ques- de regularização fundiária, no início dos anos 90, com os seguintes elementos comuns: os setores
tões urbanísticas, especialmente em alguns temas de relevo relacionados às cidades, como é o caso populares reposicionam-se na construção da política, como interlocutores e participantes; e a maior
das políticas de habitação e de saneamento básico. Tanto a Constituição Federal como o Estatuto presença do Município na implantação destas políticas. Cf. Cymbalista, Renato. Refundar o não fun-
da Cidade possuem normas expressas que atribuem a todos os entes federativos a competência dado: desafios da gestão democrática das políticas urbana e habitacional no Brasil. Disponível em:
material para lidar com tais questões. http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=95. Acesso em 16.07.2010.

316 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 317
Para Nelson Saule Júnior: Esta prevê, a partir de seu art. 46, a obrigatoriedade do Poder Pú-
blico realizar a regularização fundiária das áreas urbanas consolidadas
“A política nacional de regularização fundiária deve ter como parâ- através da demarcação urbanística, procedimento administrativo pelo
metro as experiências dos Municípios que promovam programas de qual o Poder Público, no âmbito da regularização fundiária de interesse
urbanização e regularização dos assentamentos urbanos irregulares
social, demarca imóvel de domínio privado, definindo seus limites, área,
e que apresentam condições precárias de habitabilidade, visando a
melhorar as condições de vida, tanto no aspecto da moradia, como localização e confrontantes, com a finalidade de iden­tificar seus ocu-
ambiental (implantação da rede de esgoto e tratamento dos resíduos, pantes e qualificar a natureza e o tempo das respectivas posses. Aliás,
canalização dos córregos, educação ambiental, recuperação e reposi- a nova lei permite, após o registro do auto de demarcação urba­nística
ção de áreas verdes); bem como a regularização fundiária visando a (inciso III do art. 47), a conversão da posse em propriedade pelo simples
conferir uma segurança jurídica à população moradora dos assenta- decurso do prazo de 05 anos da averbação da legitimação de posse no
mentos. Registro Geral de Imóveis (art. 60).
A concepção de estabelecer legislações e instrumentos restritivos, eli- Assim, a partir da Constituição de 1988, multiplicam-se os casos
tistas e com padrões fora da realidade – no que se refere às formas de
de legislações inferiores, especialmente municipais, como leis orgânicas
controle e uso da terra para fins de habitação, atividades comerciais,
indústrias e de serviços, preservação de áreas verdes, de proteção
e planos diretores, que incorporam não só os instrumentos de política
ambiental, ordenamento das edificações e da infra-estrutura urbana – urbana nela previstos, como diversos outros destinados a fazer cumprir
tem sido questionada nestes processos por novos paradigmas, como a função social da cidade e da propriedade urbana.
a constituição de uma nova ordem legal urbana contendo legislações Hoje, portanto, diante do quadro normativo existente, há direito
e instrumentos jurídicos e urbanísticos, destinada a proteger e reco- subjetivo público à regularização fundiária de loteamentos irregulares
nhecer os direitos da população que vive nos assentamentos precá- ocupados por população de baixa renda, conferindo obrigatoriedade ao
rios, bem como a sua aplicação mediante sistemas e mecanismos de- Poder Público na implementação de ações voltadas a garantir o direito à
mocráticos e participativos18”.
moradia a tais cidadãos.

As possibilidades abertas do reconhecimento do direito à moradia à


população moradora em assentamentos urbanos irregulares estão pre- 5. Gestão democrática na implementação
sentes também na Lei 6.766/79 e nas modificações nela introduzidas do direito à moradia
pela Lei 9.785/99 (legislação federal que dispõe sobre o parcelamento
do solo urbano). Em relação à regularização dos conjuntos habitacionais Como adrede abordado, a base do Estado Democrático de Direito,
e das favelas, é importante ser combinada a interpretação da lei sobre estatuído pela Constituição de 1988, forjou campo propício para vasto
condomínios e incorporações com a legislação municipal de parcela- desenvolvimento do princípio da participação popular, especialmente
mento do solo e o Estatuto da Cidade.19 na gestão das cidades.20
Mas, as inovações introduzidas pela Lei 11.977, de 07 de julho de Com fundamento nessa constatação, não é difícil constatar a
2009 (Programa Minha Casa Minha Vida), é que conferem especial rele- importância da participação da sociedade na formulação, decisão e
vo ao desenvolvimento de políticas urbanas voltadas à implementação execução das políticas públicas. Pode-se, desse modo, distinguir as
de programas de regularização fundiária de assentamentos informais
ocupados por população de baixa renda. 20 Do ponto de vista jurídico, o termo gestão significa administração, que, por sua vez, abrange tanto
a atividade de planejar, dirigir, comandar, como a atividade subordinada de executar. Assim, percebe-se
18 SAULE JÚNIOR, Nelson. Ob. cit. p. 341. que, em sentido amplo, administrar compreende o exercício de função política, que envolve planeja-
19 Os Municípios, por meio do Plano Diretor ou lei municipal específica (se o Plano Diretor não for mento e execução, enquanto em sentido estrito a Administração Pública abrange a função administra-
obrigatório), devem estabelecer a política de regularização de loteamentos irregulares, que pode tiva, atrelada à idéia de função executiva que compreende as atividades de fomento, serviço público,
incluir a delimitação das ZEIS, a elaboração de planos de urbanização de áreas inseridas nestas intervenção e polícia administrativa. Cf. MENCIO, Mariana. Licenciamento e gestão democrática. Direito
zonas, a definição dos instrumentos para intervenção (usucapião urbano, concessão de direito real ambiental e urbanístico: estudos do Fórum Brasileiro de Direito Ambiental e Urbanístico/Coordenadores:
de uso, etc.), programas de recuperação de áreas verdes, de assistência jurídica, etc. Clovis Beznos; Márcio Cammarosano. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 152.

318 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 319
modalidades participativas, ora inerentes à gestão do agir adminis- citar, por exemplo, os seguintes: a) Os entes federativos e instituições
trativo, ora como instrumento de controle deste. Nesse sentido, as do Estado brasileiro devem aplicar os princípios da paz e da função so-
audiências públicas, as consultas públicas são exemplos de como se cial da cidade, de forma conjugada com os princípios da função social
dá na prática a participação na elaboração das políticas; o referen- da propriedade, igualdade e da razoabilidade para a solução pacífica
do, as comissões de caráter deliberativo exemplificam, por seu tur- dos conflitos fundiários, de moradia de alta litigiosidade e complexidade
no, a participação no próprio processo de decisão; as comissões de que resultem em lesão aos direitos econômicos, sociais, culturais e am-
usuários de serviços públicos, as comissões de moradores que serão bientais de comunidades e grupos sociais vulneráveis nas cidades; b) A
beneficiados pelo processo de regularização fundiária de assenta- União, os Estados e os Municípios devem viabilizar espaços de gestão
mentos informais urbanos fornecem uma amostra de participação no democrática da cidade, como o Conselho e a Conferência das Cidades, e
próprio agir administrativo. utilizar os instrumentos das audiências e consultas públicas para tomada
Na perspectiva do direito à cidade, o ordenamento contém instru- de decisões sobre projetos de grande impacto sobre a vida dos habitan-
mentos jurídicos e urbanísticos com o objetivo de garantir que a cidade tes da cidade; c) A União e os Estados devem respeitar as decisões to-
e a propriedade urbana cumpram a sua função social e possibilitem madas em espaços democráticos e participativos legalmente constituí-
a vida digna de todos os citadinos, com acesso à moradia, ao sanea- dos em cada município, sobre temas estratégicos para a implementação
mento ambiental, à mobilidade, à saúde, à educação, ao trabalho e ao do direito humano à moradia adequada no Brasil.21
lazer. O atendimento das necessidades de moradia corresponde a um im-
No campo da implementação de políticas urbanas voltadas a ga- perativo de justiça distributiva. Mas, para que isto se realize não basta
rantir o direito à moradia, conforme analisado, as transformações pro- que conste nas normas como um objetivo a ser alcançado: é necessário
movidas na legislação urbanística acarretam ao Poder Público a obriga- que sejam previstos mecanismos de participação popular para que haja
toriedade da elaboração e implementação de ações que combatam a uma maior possibilidade de aquele fim legal ser implementado. Sabe-se
desigualdade sócio-espacial urbana para que a cidade seja um espaço que a participação popular é uma condição para a efetividade das polí-
de convivência, justa, democrática e sustentável. ticas de moradia, que não podem se limitar às intervenções urbanísticas
E, por certo, canais de participação devem ser viabilizados na elabo- de implantação da infra-estrutura urbana.
ração, decisão e execução destas políticas, através de gestão democrática Além de projetos na área de sáude, educação, emprego, é preciso
em processos de definição e implementação de programas e projetos de que o Poder Público articule-se com as comunidades para a concepção
habitação de interesse social, de mediação e solução de conflitos relati- e a implantação dos programas habitacionais de criação de moradias
vos ao direito à moradia de grupos sociais vulneráveis e na execução dos populares e de regularização fundiária. Nesse cenário, os Conselhos de
projetos de regularização fundiária de assentamentos informais urbanos. Habitação ou de Políticas Urbanas podem desempenhar valioso papel,
Assume-se como imperativo da política urbana a discussão dos ru- além de contribuir para a fiscalização das ações de implementação des-
mos da cidade com os vários setores que compõem a sociedade. Por ta política.
sinal, o Estatuto da Cidade, pelos artigos 43 e 44, define as ferramentas Não é por outra razão que a política habitacional ganhou novos ares
que o Poder Público e a sociedade devem utilizar, especialmente no mu- com a edição da Lei 11.124/2005, que instituiu o Sistema Nacional de
nicípio, para enfrentar os problemas de desigualdade social e territorial: Habitação de Interesse Social (SNHIS), o Fundo Nacional de Habitação
conselhos de política urbana, conferências da cidade, orçamento parti- de Interesse Social (FNHIS) e o Conselho Gestor do FNHIS. O novo siste-
cipativo, audiências públicas, estudo de impacto de vizinhança, dentre ma tem por princípio a articulação das três esferas de governo, visando
outros. ao fortalecimento institucional, além da participação da sociedade na
Neste diapasão, alguns pontos foram indicados pela ONU como fer- gestão desta política. Assim, a adesão dos Estados e dos Municípios à
ramentas para viabilizar a gestão democrática nas cidades, e que pos-
21 O Direito à Moradia no Brasil: violações, práticas positivas e recomendações ao governo brasi-
suem correlação especial com a garantia do direito à moradia. Pode-se leiro. Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU – 29 de maio a 12 de junho de
2004. Disponível em: http://www.polis.org.br/obras/arquivo_166.pdf. Acesso em 16.07.2010.

320 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 321
Política Nacional de Habitação perpassa necessariamente pela estrutu- res têm sido ferramentas imprescindíveis para uma efetiva mudança
ração dos respectivos Sistemas de Habitação de Interesse Social, com do modelo de cidade excludente e segregadora, ampliando as pos-
a criação do Fundo e do Conselho Gestor, conforme as exigências do sibilidades de utilização de instrumentos de intervenção direciona-
Sistema Nacional.22 dos a dar cumprimento à função social da cidade e da propriedade
O mesmo se vê na política de regularização fundiária de assenta- urbana.
mentos informais urbanos, que deve ter como base a discussão do pro- O fortalecimento da regulação pública do solo urbano e a adoção de
jeto de intervenção no assentamento que não parta necessariamente da mecanismos que institucionalizam a participação direta da população
opção pelo despejo, e que preveja a participação dos moradores e de no governo das cidades reforçam o papel do município no desenvolvi-
organizações sociais no plano de urbanização e de reassentamento. mento de políticas urbanas voltadas a garantir o direito à moradia, em
Logo, o direito à moradia é reconhecido legalmente aos moradores condições mais justas e democráticas.
de assentamentos informais em áreas urbanas que usem o barraco, a Pode-se afirmar, diante do quadro normativo existente, que há direi-
casa, para fins de sua moradia. Vale lembrar que a maioria das favelas to subjetivo público à regularização fundiária de loteamentos irregulares
ocupados por população de baixa renda, conferindo obrigatoriedade ao
nas grandes cidades existe há muitos anos. Mesmo nos casos de áreas
Poder Público na implementação de ações voltadas a garantir o direito à
de risco, o direito à moradia é reconhecido, sendo necessário o reas-
moradia a tais cidadãos.
sentamento em moradia digna, por meio de um processo participativo
Assume-se como imperativo das políticas urbanas de habitação e
e democrático, conforme dispõe o art. 48, III, da Lei 11.977/2009 (Pro-
regularização fundiária de assentamentos informais a discussão dos ru-
grama Minha Casa Minha Vida). 23
mos da cidade com os vários setores que compõem a sociedade, aten-
Portanto, é perceptível os ganhos da gestão democrática na efeti-
dendo não só a preceitos de justiça distributiva, mas como condição
vação do direito à moradia, tanto para a eficiência da política urbana para o êxito e a eficiência dessas políticas.
a ser implementada nesse sentido, como, também, para a renovação
das instituições governamentais, através de experiências de participa-
ção que geram práticas e estruturas horizontais, nas quais grupos sociais Referências
em situação de vulnerabilidade e exclusão podem reduzir o impacto das
relações assimétricas de poder. ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justifica-
ção, Impactos e Sustentabilidade. Direito urbanístico e política urbana no Brasil
– Organizador: Edésio Fernandes. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
6. Conclusão BRITTO, Carlos Ayres. Teoria da Constituição. Editora Forense: Rio de Janeiro,
2006.
Os parâmetros da política de desenvolvimento urbano introdu- CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos Constitucionais do Estatuto da Cidade.
zidos pela Constituição de 1988 e por diversas legislações inferio- In: DALLARI, Adilson Abreu (Coord.); FERRAZ, Sérgio (Coord.). Estatuto da Cidade
(Comentários à lei federal 10.257/2001). 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
22 Normalmente vem sendo criado no âmbito estadual os Conselhos Estaduais das Cidades, se-
guindo os moldes do Concidades federal, os quais contam com participação da sociedade civil CYMBALISTA, Renato. Refundar o não fundado: desafios da gestão democrá-
organizada e de movimentos populares. Estes fóruns têm sido espaços privilegiados de discussão tica das políticas urbana e habitacional no Brasil. Disponível em: http://www.
da política habitacional nos Estados e têm servido de catalisadores para a adesão dos municípios
polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=95. Acesso em 16.07.2010.
ao sistema nacional de política habitacional.
23 O ordenamento jurídico brasileiro não prevê “remoções” de famílias e comunidades inteiras como
DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Baru­eri-
medida política ou social. A legislação fala em reassentamento de moradias em áreas de risco à vida SP, Manoele, 2004.
ou à saúde. Se não for área de risco as famílias e comunidades deverão ter sua moradia regularizada GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Ma-
no próprio local em que habitam. Esse é um dos princípios da regularização fundiária no Brasil, con-
forme o art. 48, inciso I, da Lei 11.977/2009 (Programa Minha Casa Minha Vida). Em casos de risco, lheiros, 1996.
é obrigação do poder público prover uma moradia digna para essas pessoas em outro local.

322 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 323
MENCIO, Mariana. Licenciamento e gestão democrática. Direito ambiental e ur-
banístico: estudos do Fórum Brasileiro de Direito Ambiental e Urbanístico/Coor-
A importância do planejamento na
denadores: Clovis Beznos; Márcio Cammarosano. Belo Horizonte: Fórum, 2010. gestão dos processos de regularização
O Direito à Moradia no Brasil: violações, práticas positivas e recomendações
ao governo brasileiro. Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da
fundiária como vetor para a efetivação
ONU – 29 de maio a 12 de junho de 2004. Disponível em: http://www.polis.org. do direito social à moradia:
br/obras/arquivo_166.pdf. Acesso em 16.07.2010.
PEREZ, Marcos Augusto. A administração pública democrática: institutos de o caso do município de Canoas/RS
participação popular na administração pública. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum,
2009. Elaine Adelina Pagani1
SAULE JÚNIOR. Nelson. A proteção jurídica da moradia nos assentamentos
irregulares. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2004.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo demons-
_____________________. O Direito à Cidade como paradigma da governança trar a importância do planejamento na gestão das políticas
urbana democrática. Disponível em: http://www.polis.org.br/artigo_interno. de regularização fundiária como uma política pública urbana
asp?codigo=28. Acesso em 15.07.2010. capaz de possibilitar o exercício do direito social à moradia
de populações que habitam assentamentos informais. Nes-
se sentido, os processos de regularização fundiária apresen-
tam possibilidades, mas também limites específicos em face
das peculiaridades sociais, culturais, geográficas, políticas e
legais de cada localidade e comunidade para a sua implan-
tação, implementação e conclusão do processo. Diante dis-
so, cada situação concreta requer tratamento diferenciado
no processo de regularização fundiária. Como objeto especí-
fico desta análise optou-se pelo município de Canoas/RS, o
qual é um município relativamente jovem, mas que apresen-
ta cerca de um terço do seu território com assentamentos
informais. Assim, verificando a distribuição da irregularidade
fundiária no município fica evidenciada que a desigualdade
sócio-espacial atua como um fator de exclusão para o exer-
cício do direito social à moradia pelas populações locais.
Mas, que a regularização fundiária é capaz de propiciar o
acesso ao exercício do direito social à moradia. Ao final do
trabalho são apresentadas algumas considerações e diretri-
zes que objetivam contribuir para a minimização dos limites
existentes para implementação e conclusão dos processos
de regularização fundiária no município.
Palavras chave: Direito à moradia, planejamento, regulari-
zação fundiária, assentamentos informais, exclusão socioes-
pacial, Estatuto da Cidade.

1 Advogada, especialista em Direito Urbanístico e Gestão Estratégica do Território Urbano, mes-


tra em Direito, Professora da Faculdade Cenecista Nossa Senhora dos Anjos, Gravataí (RS), Presi-
dente da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da Ordem dos Advoga-
dos do Brasil, elaine@professor.facensa.edu.br

324 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 325
1. O município de Canoas no espaço e no tempo ligava Porto Alegre a São Leopoldo foi inaugurada em 14 de abril de
1874. Essa estrada de ferro passou pelo meio das terras da Fazenda do
Os primeiros habitantes das terras onde hoje está situado o municí- Gravataí, que nessa época eram de propriedade do Major Vicente Ferrer
pio de Canoas foram os índios das tribos Tapes e Minuanos. Entretanto, da Silva e de José Joaquim dos Santos Ferreira. O traçado da estrada
como o território da atual Canoas passou a ser passagem para os tropei- de ferro atingia capões de mato, por isso e para evitar prejuízos a sua
ros, estes começaram a se instalar nas terras. A partir de 1725, começa- propriedade, o Major Vicente Ferrer da Silva organizou uma guarda para
ram a chegar os primeiros tropeiros de gado oriundos de Laguna, Santa extrair as madeiras e construir canoas que eram levadas ao “Porto do
Catarina, e entre eles, destaca-se o povoador Francisco Pinto Bandeira. Sobrado” junto às margens do Rio dos Sinos. Segundo Ivonete Chiden
Ele foi o colonizador de Canoas. Nesta época da história, o Rio Grande Pereira, “Por esta razão, o local começou a ser chamado de “Capão das
do Sul era uma espécie de “Terra sem dono” e confundia-se com as pos- Canoas”, nome que deu origem à estação, ao povoado e, finalmente, ao
sessões espanholas, sendo que até a tomada de posse do território do município “Canoas”.5 Não obstante a isso, a origem do nome da cidade
Estado por Silva Paes, em 1737, o Rio Grande do Sul era considerado ainda mantém uma polêmica, pois, outra versão sustenta que o nome
um local estratégico para os propósitos portugueses de impedir o avan- Canoas origina-se do fato de que os índios que habitavam o território de
ço dos castelhanos e dos índios das Missões Jesuítas.2 Canoas construíam canoas.
Para contemplar os propósitos portugueses, Francisco Pinto Bandei- Na antiga sede da “Fazendo do Gravataí” foi construída a estação
ra foi designado para vir ao Sul e povoa-lo. Ele transpôs o Rio Gravataí e do trem. Com isso, o proprietário das terras, Maj. Vicente Ferrer da Silva,
assumiu posição estratégica na Colina do Abílio ao longo do Rio dos Si- colocou a venda um lote de chácaras de veraneio no entorno da estação,
nos a fim de impedir que o comércio de gado caísse em poder dos caste- pois o local era aprazível e bucólico. Logo, pessoas abastadas da capital
lhanos. Assim, desde 1733 na estância da paragem “Guaixim-Sapucaia”, compraram as propriedades e começaram a frequentar as chácaras com
instalou a “Fazenda do Gravataí” solicitando Carta de Sesmaria a Coroa habitualidade, passando inclusive, a constituir residências definitivas
Portuguesa. Atualmente, essa localidade é o bairro Estância Velha, con- com o passar do tempo.
siderado o marco inicial do município. Por volta de 1900, o povoado de Canoas já contava com uma popu-
Com a morte do primeiro povoador, da atual Canoas, Francisco Pin- lação de, aproximadamente, 600 habitantes. Em 1908, os Irmãos Las-
to Bandeira em 1771, a “Fazenda do Gravataí” passou sucessivamente salistas instalam uma escola agrícola e uma escola de ensino primário e
para a sua viúva, Dona Clara Maria de Oliveira, e desta, ao filho Brigadei- secundário em frente à estação de trem, no centro da cidade. A partir de
ro Rafael Pinto Bandeira. Mais tarde, com a morte de Rafael Pinto Ban- então, a paisagem de Canoas começa a mudar tomando ares de cidade,
deira, a Fazenda passou para a sua esposa, Josefa Eulália de Azevedo, ou seja, as antigas chácaras dão lugar a escolas, lojas, salões de baile,
mais conhecida como Brigadeira.3 A partir de então, os demais sucesso- igrejas e comércios. Todavia, Canoas ainda era integrante do município
res da família Pinto Bandeira deram início aos primeiros fracionamentos de Gravataí. Pelo Ato Municipal n°. 48, de 26 de dezembro de 1912,
das terras com a venda para terceiros. foi criado o Distrito de Canoas. Em 1937, foi instalado o 3°. Regimento
Com a construção da estrada de ferro tem-se um importante marco da Aviação Militar, hoje denominado o 5° Comando Aéreo Militar, fato
histórico do início do povoamento urbano de Canoas, que ainda estava que foi decisivo para que o Distrito de Canoas fosse emancipado do mu-
sob administração do município de Porto Alegre.4 A estrada de ferro que nicípio de Gravataí. Mas antes disso, pelo Decreto n°. 7.589, de 29 de
novembro de 1938, o Distrito de Canoas foi elevado a categoria de Vila,
2 PEREIRA, Ivonete Childen. Conhecendo Canoas das estância à urbanização. 7ª. ed., Porto e, posteriormente, pelo Decreto Estadual n°. 7.839, de 27 de junho de
Alegre: Nova Prova, 2009. p.12. 1939, foi criado o município de Canoas. Sendo que a instalação do mu-
3 SILVA, João Palma. As origens de Canoas. Conquista – povoamento – evolução. Prefeitura nicípio ocorreu em 15 de janeiro de 1940.
de Canoas. 2ª. ed., 1996. p.79.
4 Em 26 de dezembro de 1912, o território da atual Canoas passa a ser sede do 4º Distrito de
Gravataí. O atual município de Gravataí foi criado pela Lei n°. 1.247/1880 que, desmembrando-se 5 PEREIRA, Ivonete Childen. Conhecendo Canoas das estância à urbanização. 7ª. ed., Porto
de Porto Alegre manteve anexo o atual território de Canoas. Alegre: Nova Prova, 2009. p.13.

326 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 327
Em 1940 foi construída a Rodovia Getúlio Vargas, denominada Rita, e, o Rio Gravataí que faz limite ao sul com o município de Porto Ale-
BR116, o que impulsionou o desenvolvimento do município com a insta- gre. Dentre os Arroios que drenam o território de Canoas destacam-se o
lação das primeiras indústrias no território de Canoas. Arroio da Brigadeira que faz limite a leste com o município de Cachoeiri-
Em 1950 o município recebeu muitas pessoas vindas de outros mu- nha, o Arroio Sapucaia que faz limite a norte com o município de Esteio,
nicípios tornando-se conhecida como “cidade dormitório”, por abrigar o Arroio Araçá, o Arroio das Garças e o Arroio Estância.
um grande número de habitações de empregados operários que traba- Canoas além de constituir-se num pólo de ensino, por abrigar qua-
lhavam na capital. A instalação da Refinaria Alberto Pasqualini também tro Instituições de Ensino Superior, é conhecida pela sua forte vocação
foi um forte fator de contribuição para o crescimento econômico e po- industrial, sendo que nos últimos quatro anos cresceu mais de 20%. Se-
pulacional de Canoas. gundo dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
Hoje, o município de Canoas pertence à região metropolitana de ca – IBGE (2007), Canoas apresenta 1.796 indústrias de transformação.
Porto Alegre apresentando território totalmente urbano.6 Segundo da- As empresas dos segmentos de derivados de petróleo, implementos
dos do IBGE, Canoas possui, atualmente, 334.684 habitantes e a den- agrícolas, móveis, vidros, adubos, produtos automotivos, metal-mecâni-
sidade demográfica da cidade é de 2.553,0 hab/km², distribuída nos co e químico é que sustentam o setor industrial, reforçando assim o seu
124 km² de área7. O município de Canoas representa 0,0461% da área papel regional. Entre as principais indústrias estão a Alberto Pasquali-
do Estado do Rio Grande do Sul, 0,0220% da área da Região Sul e, ni REFAP S.A., IRIEL Indústria e Comércio de sistemas elétricos Ltda.,
0,0014% do território brasileiro. Internacional Indústria Automotiva da América do Sul Ltda., AGCO do
O município de Canoas constitui-se num pólo regional importante, Brasil Comércio e Indústria Ltda., MAXIFORJA S/A Forjaria e Metalúr-
pois está geograficamente localizado a norte com o município de Esteio, gica, AREVA Transmissão & Distribuição de Energia Ltda., International
ao sul com o município de Porto Alegre, a leste com o município de Ca- Springer Carrier, BUNGE Fertilizantes S.A., BIG, CARREFOUR, Bourbon
choeirinha, e, a oeste com o município de Nova Santa Rita. Está situado Zaffari, entre outros.
a doze (12) quilômetros de Porto Alegre e a cinco (5) quilômetros do Ae- Desta forma, Canoas é um município jovem e cem por cento urba-
roporto Internacional Salgado Filho, sendo que o acesso à cidade pode no (100%) que abriga em seu território uma considerável parcela da
ser feito por três rodovias federais (BR-116, BR-290 e BR-386) e por população gaúcha e ainda, apresenta um forte setor industrial, todavia,
uma rodovia estadual (RS-118), além da facilidade de ligação Aeropor- apresenta um terço do seu território com irregularidades fundiárias. É
tuária. O município também contará com a Rodovia do Parque, BR-448, um município que apresenta um território fragmentado e com muitos
ao oeste da BR-116, que ligará Porto Alegre a Sapucaia. Encontra-se assentamentos informais desprovidos de serviços e equipamentos urba-
ainda em fase de projeto a Rodovia do Progresso, também denominada nos confrontando os direitos sociais da população diretamente afetada.
de RS-010, a leste da BR-116, que terá cerca de quarenta e dois (42) A seguir será verificado de que forma o correu a ocupação do solo em
quilômetros, com início na BR-290, na altura da Avenida Assis Brasil, Canoas a partir da evolução urbana.
entre Porto Alegre e Cachoeirinha e, a chegada será na RS-239, entre
Campo Bom ou Sapiranga, conforme seguirem as negociações para a
implementação do projeto.8 A hidrografia do território de Canoas é for- 2. A produção do espaço em face da evolução urbana
mada por rio e arroios. Os rios que limitam o território de Canoas são:
o Rio dos Sinos, que faz limite a oeste com o município de Nova Santa O crescimento econômico de Canoas deu-se, principalmente, a partir de
1945, depois do fim da Segunda Guerra Mundial e, com a construção da
6 A partir do Censo de 2000, Canoas passa a ser considerada somente como área urbana. Assim Rodovia Getúlio Vargas – BR-116. Houve a implantação de muitas indústrias,
também determina o Art. 2°. da Lei n°. 5.341/2008.
além da instalação da Base do 5° Comando Aéreo Militar e a Refinaria Alber-
7 O município de Canoas estava distribuído num território de 131,1km² até 20 de março de
1992, todavia, com a Lei Estadual n°. 9.585/92, o Distrito de Nova Santa Rita foi emancipado de to Pasqualini, impulsionando assim o crescimento econômico do município.
Canoas, passando a ser denominado de Nova Santa Rita. Isso contribuiu para que muitas pessoas migrassem para Canoas.
8 Jornal ABC, 01/11/2009, ano I, n. 3567, p.11.

328 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 329
Geralmente, a ocupação inicial de uma cidade e a sua consequente semelhantes às cidades que iniciaram o povoamento a partir das mar-
expansão ocorre na parte mais alta devido a localização estratégica, to- gens de estradas, quer sejam rodovias ou ferrovias.11
davia, em Canoas isso não ocorreu de forma efetiva, ou seja, a ocupação Na década de 50, o território de Canoas passou a ser ocupado no lado
inicial ocorreu na parte mais alta, mas não houve o crescimento da cida- oeste com a aprovação do projeto que criou o Bairro Mathias Velho. Houve
de a partir da sua ocupação inicial.9 Nesse sentido: uma corrente migratória em busca das ofertas de trabalho e do baixo custo
da terra em relação a Porto Alegre. Ocorre também o início de uma peque-
“Em Canoas, as ocupações ocorrem a oeste, apesar de existirem em na ocupação no território lindeiro ao município de Cachoeirinha.
Estância Velha, terras bem mais favoráveis e atraentes à ocupação. Na década de 60, o território de Canoas continua sendo expandido
Entretanto, estas terras estavam registradas no nome de alguns pou- pelas ocupações de forma regular, especialmente ao longo da BR-116.
cos proprietários, de famílias tradicionais de Canoas, como os Rosas Intensifica-se o crescimento da ocupação junto à divisa com o município
ou ainda de instituições como o Banco Meridional. Uma das razões
de Cachoeirinha.
das ocupações ocorrerem a oeste é que ali as terras eram mais baixas
e, por consequência, menos valorizadas, portanto esquecidas pela es- Em nível nacional foi criado o Sistema Financeiro de Habitação, pela
peculação imobiliária, sendo lembradas apenas quando surgiu a opor- Lei nº. 4.380, de 21 de agosto de 1964, considerada uma das mais im-
tunidade de construir um conjunto habitacional popular.”10 portantes medidas do Governo para o setor da habitação com previsão de
atuação conjunta do Estado, da sociedade civil e dos agentes financeiros
Para fins de acompa- para o equacionamento do problema de moradia no País. Nessa mesma
nhamento da ocupação época e a partir da Lei nº. 4.830, de 21 de agosto de 1964, foram cria-
do município de Canoas das as Companhias de Habitação Popular - COHAB’s, como um órgão
torna-se oportuna a visu- operacional do Sistema Financeiro de Habitação e com estrutura subor-
alização do seu território, dinada às normas do Banco Nacional de Habitação, o qual traçava as
diretrizes gerais, regionais e locais para atender as suas atribuições acima
para tanto o mapa a seguir
expostas, através das COHAB’s como agentes financeiros e promotores.
apresenta o município de
Na década de 70, começam a surgir os bairros mais afastados do cen-
Canoas dividido por regi-
tro da cidade, dando início ao processo de periferização com as primeiras
ões, e cada região dividida
ocupações clandestinas e/ou irregulares. Nesse sentido transcreve-se o
por bairros. Atualmente trecho abaixo que demonstra ser a periferização um fenômeno nacional.
Canoas tem dezoito bair-
ros que estão localizados “No Governo Figueiredo (1979-1985) acelerou-se o processo de peri-
conforme apresenta o ferização das áreas urbanas, principalmente das regiões metropolita-
mapa – Figura 1. nas. No final da década de 70 e início dos anos 80, ocorreu o fenôme-
no de, nos grandes centros, prevalecer a aquisição da casa própria de
Fonte: http://www.canoas.rs.gov.br/Site/PDUA/pduaHome.asp acesso em 07 jul. 2010. modo diverso da escritura registrada em cartório ou por contratos de
financiamento do Sistema Financeiro da Habitação.”12

Até a década de 50, o município de Canoas não tinha leis que disci- Nessa década também é aprovado o Plano de Desenvolvimento Ur-
plinassem a utilização de uso do solo, todavia, o município se desenvol- bano de Canoas - Lei Municipal n°. 1.447, de 26 de dezembro de 1972.
veu de forma regular ao longo da BR-116, apresentando características
11 Para o desenvolvimento desse tópico utilizamos do trabalho e metodologia da Leitura Técnica e do
9 O município de Canoas, pela lógica, deveria ter se desenvolvido no lado leste, nas terras onde Diagnóstico Temático elaboradas pela Prefeitura municipal de Canoas com assessoramento da Consultora
se localiza o atual bairro de Estância Velha, por ser o local onde ocorreu o seu povoamento, com a Magna Engenharia LTDA. Empresa que foi contratada pela Prefeitura municipal de Canoas para revisão do
“Fazenda do Gravataí”. Além disso, é o local situado no ponto mais alto da cidade e conta com uma Plano de Desenvolvimento Urbano de Canoas – Lei n°. 1.447, de 26 de dezembro de 1972, e a elabora-
natureza privilegiada. ção do Plano Diretor Urbano e Ambiental, que resultou na Lei n°. 5.341, de 22 de outubro de 2008.
10 PENNA, Rejane (Coord.). e outros. Guajuviras. História de uma luta. Canoas – Para lembrar 12 PENNA, Rejane (Coord.). e outros. Guajuviras. História de uma luta. Canoas – Para lembrar
quem somos. Vol. 5. CELES.1998. p.12. quem somos. Vol. 5. CELES.1998. p.13-14.

330 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 331
Em 1979, foi aprovado pelo município de Canoas o projeto do Con- séria. Com a ausência do Estado no mercado de imóveis, as leis de mer-
junto Habitacional Ildo Meneghetti. Esse empreendimento foi projetado cado passaram a dominar o setor imobiliário.
pela Companhia de Habitação do Estado do Rio Grande do Sul – CO- Na década de 2000 até os dias atuais, o município de Canoas con-
HAB-RS com financiamento pelo Banco Nacional de Habitação - BNH.13 tinua com a expansão de seu território de maneira irregular, especial-
Originalmente, o projeto previa a construção de trinta mil unidades mente, em áreas públicas no bairro Guajuviras. Como resultado do cres-
habitacionais, com efeito, isso acarretaria um aumento aproximado de cimento das vilas irregulares temos a falta de infraestrutura, serviços e
cento e vinte (120) mil pessoas no município. Logo, a Câmara de Verea- equipamento urbanos.
dores não aprovou a construção de um número tão elevado de unidades Em contraste a esse cenário de irregularidades, Canoas passou a ser
habitacionais. Assim, o número de unidades habitacionais ficou em tor- um centro de investimento do capital imobiliário, recebendo diversos
no de seis mil unidades. empreendedores que lançaram bairros residenciais nobres providos de
Importante salientar que o Conjunto Habitacional Ildo Meneghetti é infraestrutura. A maioria desses empreendimentos apresenta-se na for-
também conhecido como Guajuviras, pois, localiza-se onde era a Fazen- ma de condomínios horizontais e verticais fechados e loteamentos.
da Guajuviras, hoje bairro Guajuviras. Do exposto, percebe-se que a produção do espaço em face da evo-
Na década de 80, por conta da conjuntura econômica e dos res- lução urbana no município de Canoas iniciou de forma não planejada.
pectivos planos Cruzado e Cruzado II, a COHAB-RS enfrentou diversas Segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísti-
dificuldades para prosseguir com as obras de construção do Conjunto ca – IBGE – pesquisado para os vários períodos de recenseamentos,
Habitacional Ildo Meneghetti. Os inscritos no programa da COHAB, já a população de Canoas era de, aproximadamente: 17.630 habitantes
sem esperança de receberem as suas moradias, resolveram invadi-las. em 1940; 19.471 habitantes em 1950; 100.000 habitantes em 1960;
Assim, em 19 de abril de 1987, ocorreu a maior ocupação planejada 153.759 habitantes em 1970; 214.970 habitantes em 1980; 270.672
do Estado, com trinta e cinco (35.000) mil pessoas disputando 6.900 habitantes em 1990; 306.093 habitantes em 2000; e, 332.056 habi-
unidades residenciais.14 Concomitantemente, ocorreram também ocu- tantes em 2009. Importante destacar que segundo dados parciais do
pações informais nos bairros Mathias Velho e Rio Branco. Censo 2010, Canoas tem 317.945 habitantes sendo o quarto município
Nesse período, seguiu-se uma intensa crise econômica que determi- mais populoso do Estado do Rio Grande do Sul, todavia, houve um de-
nou o arrocho salarial e a queda do poder aquisitivo com a consequente créscimo da população se comparado a estimativa realizada pelo mes-
inadimplência que atingiu o Sistema Financeiro de Habitação incapacitan- mo instituto em relação ao ano de 2009. Os dados do IBGE são utiliza-
do-o de implementar projetos e, consequentemente, culminando com o dos na definição da verba a ser repassada pela União a cada município,
Decreto-lei n°. 2.291/1986 que extinguiu o Banco Nacional de Habita- de acordo com o número de habitantes. Assim, a divulgação prévia dos
ção. No dia 05 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Fede- dados levantados pelo Censo 2010 tem o objetivo de oportunizar que as
ral brasileira, contemplando um capítulo dedicado à política urbana, esta- prefeituras conheçam os dados e possam contestá-los, se for o caso.
belecendo diretrizes com o objetivo de ordenar o pleno desenvolvimento O gráfico a seguir ilustra o crescimento populacional do município.
das funções sociais da cidade e garantir o bem estar dos seus habitantes.
Na década de 90, seguiram-se as ocupações irregulares no municí-
pio, em especial, junto ao Conjunto Ildo Meneghetti, nas áreas verdes e
institucionais. Em nível nacional, veio o plano econômico que determi-
nou o confisco das Cadernetas de Poupança e consequentemente uma
paralisação dos depósitos, fato este que comprometeu drasticamente
a política habitacional. O Estado reduziu sua participação no mercado
de imóveis, contribuindo para que se instalasse uma crise habitacional

13 PENNA, Rejane (Coord.). e outros. Guajuviras. História de uma luta. Canoas – Para lembrar Gráfico 1. Gráfico demonstrativo do crescimento da população do município de Canoas
quem somos. Vol. 5. CELES.1998. p.14.
desde 1940 até 2010. Fonte: Elaboração própria. Dados: Instituto Brasileiro
14 PEREIRA, Ivonete Childen. Conhecendo Canoas das estância à urbanização. 7ª. ed., Porto de Geografia e Estatística. http://www.ibge.gov.br
Alegre: Nova Prova, 2009. p.56.

332 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 333
Em face do crescente, acelerado e desordenado crescimento popula- O gráfico a seguir demonstra o número de invasões por ano e como
cional no município, foram surgindo inúmeros problemas decorrentes da tem sido continuo esse processo de ocupação do território de Canoas.
ocupação desigual e irregular do território, tais como falta de transporte,
carência de abastecimento de água, canalização de esgotos, saneamento
básico, serviços de saúde, educação, segurança, além de inúmeras situa-
ções de irregularidades territoriais. Nesse sentido, a seguir serão apresen-
tados os dados sobre a situação de irregularidade fundiária no município.

3. A espacialização da irregularidade no município

Conforme apontado no item anterior, a evolução da ocupação do


território do município de Canoas intensificou-se de forma irregular a
partir da década de 70. A partir dessa década o processo de ocupa- Gráfico 2. Gráfico demonstrativo dos assentamentos informais com o número de inva-
ção irregular ocorreu de forma periférica. Por serem as áreas periféricas sões por ano. Elaboração Consultora Magna Engenharia LTDA.
afastadas do centro da cidade eram desvalorizadas e, portanto, de fácil15 Fonte: Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e
aquisição pelos seus futuros ocupantes. do Departamento de Regularização Fundiária do município de Canoas.
Oportuno lembrar que morar de forma irregular abrange: assentamen-
tos informais resultado da ocupação de áreas públicas ou privadas; corti- Verifica-se que a maior parte dos assentamentos informais localiza-se
ços; loteamentos irregulares ou clandestinos, inclusive residências sem a nas áreas periféricas do município e, que foram ocupadas após a década
respectiva carta de “habite-se”. Além disso, morar de forma irregular implica de 70. Além dos assentamentos informais localizarem-se distantes do
viver a margem da sociedade, com carência ou mesmo a inexistência de núcleo central do município, também se distribuem distantes entre si o
infraestrutura, serviços e equipamentos públicos e projetos sociais. que contribui para a fragmentação do município e o distanciamento da
Segundo dados da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e do convivência social dos vários núcleos.
Departamento de Regularização Fundiária do município no ano de 200616,
Canoas tem sob o seu território cento e onze (111) assentamentos informais,
sendo sete (7) áreas federais, dezesseis (16) áreas estaduais, cinqüenta (50) 4. A gestão das políticas públicas
áreas municipais e, trinta e oito (38) áreas particulares. Sob essas áreas habitacionais no município
habitam 20.144 famílias em situação de irregularidade fundiária. Destas,
cerca de 1.150 famílias vivem em áreas de risco, tais como, diques, ao lon- Canoas é um município que apresentou um grande crescimento,
go da BR-116 e 386, faixas de domínio da RFFSA e da CEEE.17 tanto do ponto de vista econômico quanto demográfico. Milhares de
pessoas migraram para Canoas, especialmente a partir da década de 60
15 Aqui devemos esclarecer que a utilização da expressão “de fácil aquisição” significa adquirir e, a partir de então, esse índice foi sempre aumentando. Isso ocasionou
um local para morar mediante a ocupação de área ou compra-lo por preço mais baixo em relação um rápido processo de urbanização18 com reflexos negativos para a qua-
a locais próximos ao centro da cidade. Em contrapartida, a periferia torna-se um local difícil de
viver dignamente, pois não conta com a mínima infraestrutura de equipamentos e serviços públicos
lidade de vida da população, sobretudo no aspecto habitacional.
urbanos, além da insegurança jurídica da posse.
18 Segundo José Afonso da Silva esclarece: “Emprega-se o termo “urbanização”, para designar o
16 Atualmente, sob a nova gestão municipal, a Secretaria Municipal de Planejamento Urbano (criada pela processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural”. Ainda,
Lei n°. 3.658/1992) e o Departamento de Regularização Fundiária (Lei n°. 4.717/2002) do município de segundo o mesmo autor “a urbanização gera enormes problemas. Deteriora o ambiente urbano.
Canoas, foram unificados dando origem a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação. Provoca a desorganização social, com carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e
17 No Anexo I segue o levantamento dos assentamentos informais no município de Canoas classi- de saneamento básico. Modifica a utilização do solo e transforma a paisagem urbana”. In: Direito
ficados conforme a data da ocupação. Urbanístico Brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros. 2006. p. 26-27.

334 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 335
Constata-se que foi a partir da década de 70 que começaram a sur- nos, o País não se mostrou capaz elaborar uma política minimamente
gir as primeiras ocupações irregulares no território de Canoas.19 Com adequada para enfrentar o problema. Para recapitularmos, podemos
efeito, essas ocupações irregulares e/ou clandestinas foram se alastran- lembrar que, até meados da década de 80, as soluções estiveram
confiadas ao Banco Nacional de Habitação.”22
do. Paralelamente, não houve preocupação, por parte das autoridades
competentes, em relação à aplicação de políticas públicas municipais de
gestão de uso e ocupação do solo e as questões habitacionais, apesar
de que o município de Canoas já contava com a Lei n°. 1.447, de 26 de Entre a extinção do Banco Nacional de Habitação e a criação do
dezembro de 1972 – Plano de Desenvolvimento Urbano de Canoas.20 Ministério das Cidades houve uma estagnação na dinâmica da política
Não obstante a isso, essa falta de preocupação com a urbanização e habitacional no Brasil, ficando esta limitada a ministérios e secretarias
suas consequências para com as cidades não deve, num primeiro mo- criadas nos períodos dos governos seguintes.
mento, ser totalmente creditada ao Poder Público municipal, pois, até a Diante desse quadro, o município de Canoas não fugiu a regra do
Constituição Federal de 1988, os municípios não possuíam autonomia que aconteceu com os demais municípios brasileiros, ou seja, as pri-
para tratar de questões de ordenamento territorial local. Nesse sentido, meiras experiências de regularização de assentamentos informais e a
é oportuno esclarecer que ao longo do histórico das constituições brasi- implantação e implementação de políticas habitacionais somente pas-
leiras, algumas delas quase suprimiram a autonomia municipal, a exem- saram a ocorrer após a Constituição Federal de 1988 e, especialmente
plo da Constituição de 1967. Esta constituição, apesar de conferir con- após o Estatuto da Cidade. As questões de política urbana e habitação
dições jurídicas para a consolidação de uma política urbana, em face do sempre foram tratadas como questões de governo e, infelizmente não
regime ditatorial impediu que se criassem condições políticas e sociais foram tratadas como questões de Estado. Com efeito, as medidas to-
voltados para a solução dos problemas urbanos.21 Consequentemente, madas num período de governo municipal não foram levadas adiante
nesse período agravaram-se os problemas decorrentes da urbanização pelo governo sucessor, especialmente, quando o governo sucessor era
acelerada, tais como: a periferização dos centros urbanos, a segregação de partido diferente ao sucedido.
dos territórios e as desigualdades sociais. É possível citar algumas experiências de regularizações de assenta-
Nesse cenário nacional, pode-se afirmar que o problema de ocupa- mentos informais no município de Canoas, a partir da última década, que
ções irregulares é um problema do país e, conforme ensina Betânia: já finalizaram e outras que ainda estão em fase andamento.23 A antiga
Secretaria Municipal da Habitação desenvolveu ações na realização de
“O Brasil não tem conseguido fugir a esse quadro de exclusão, de projetos e formação de parcerias na construção de moradias populares
graves problemas habitacionais. No decorrer de sucessivos gover- via o Programa de Arrendamento Residencial (PAR)24 que, com o apoio
da Caixa Econômica Federal, possibilitou a entrega de 440 unidades
19 Conforme levantamento do número de assentamentos informais no município de Canoas classi- residenciais – apartamentos, localizados no Bairro Estância Velha.
ficados pela data de ocupação, consta que a primeira ocupação foi a Comunidade Remanescente O Projeto Moradia Solidária I, contando com verbas do Fundo Mu-
Quilombola denominada Chácara das Rosas em 1940, no bairro Marechal Rondon, em área
federal do INCRA com 17 pessoas. Entretanto, a Comunidade Quilombola não é resultado de uma nicipal da Habitação teve como meta beneficiar 319 famílias carentes
ocupação irregular, mas sim de uma área localizada no meio do mato que sempre foi ocupada por
negros escravos fugidos. A Comunidade Remanescente Quilombo das Rosas, atualmente com 24 22 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia: Instrumentos e experiências de regulari-
famílias, recebeu a titularidade oficial da área de 3.619 metros quadrados em outubro de 2009. zação fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório de Políticas Urbanas, IPPUR:
Fonte: Diário de Canoas, 31/10/2009, ano I, n° 5.417, p. 6. FASE, 2007. p. 20.
20 O Plano de Desenvolvimento Urbano de Canoas teve diversas alterações em sua redação ori- 23 Oportuno destacar que as experiências trazidas são meramente exemplificativas. Não será feita
ginal até a sua revogação pela Lei n°. 5.341, de 22 de outubro de 2008, que instituiu o Plano a análise minuciosa de nenhuma das experiências trazidas neste item, pois esta análise demandaria
Diretor Urbano Ambiental de Canoas. Todavia, antes de 1995 nenhuma das leis alteradoras do um trabalho específico com metodologia apropriada e que futuramente pretende-se desenvolver.
PDUA contemplou instrumentos de regularização para os assentamentos informais ou programas 24 O Programa de Arrendamento Residencial constitui-se num programa destinado à redução do
habitacionais. déficit habitacional por meio de arrendamento residencial com prazo de 15 anos para o pagamen-
21 SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasileiro. Ordena- to, sendo que ao final do período do arrendamento o arrendatário se torna proprietário do imóvel.
mento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do plano diretor. Porto Alegre: Sérgio O público alvo é composto por famílias que não sejam proprietárias de imóvel residencial ou imóvel
Antônio Fabris Editor, 1997. p. 91. financiado, com renda mensal inferior a seis salários mínimos.

336 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 337
inscritas nos programas de loteamentos populares. A regularização da questões habitacionais haja vista as regularizações jurídicas e urbanís-
Vila Getúlio Vargas, que foi realizada em parceria com o Banco do Brasil, ticas já realizadas, aquelas em fase de realização. Porém, embora se
proporcionou que 1,2 mil famílias pudessem receber a escritura pública constate o avanço da legislação municipal com a elaboração de progra-
das áreas ocupadas. mas habitacionais, obtenção de recursos e a participação da população,
A regularização do Núcleo Residencial Sete de Outubro, situa- os resultados alcançados na regularização dos assentamentos informais
do no Bairro Estância Velha, com 981 lotes, 20 quadras, com área ainda são mínimos frente à realidade do número de assentamentos in-
total de 310.249,50m², tendo como fundamento o Provimento nº. formais. O caminho ainda é muito longo para conseguir regularizar a to-
28/2004, da Corregedoria-Geral da Justiça, que instituiu o Projeto talidade dos assentamentos informais, mas os primeiros passos já foram
More Legal III. dados nesta direção.
Importante também é citar o Projeto Habitacional no Loteamento
103 Hectares25 localizado no bairro Guajuviras numa extensão de 15,6
hectares e que se destina a abrigar um total de 5 mil famílias, sendo 2,5 5. Conclusões
mil até 2013. O orçamento do projeto está previsto em R$ 12 milhões
de reais estando previsto equipamentos e serviços urbanos tais como: Diante do cenário apresentado é possível apontar algumas conclu-
posto de saúde, escola, creche e áreas de lazer. Este projeto habitacional sões articuladas tendo em vista as possibilidades e limites para a regu-
destina-se a abrigar famílias que vivem em áreas irregulares e de risco larização fundiária no município de Canoas como forma de garantir o
no município, especialmente, aquelas que vivem nas áreas invadidas do direito social à moradia.
bairro Guajuviras, tais como a da Vila Comtel em as famílias vivem sob A partir da moderna concepção do Direito Urbano e dos exemplos
rede de alta tensão, bem como, as famílias excedentes que devem ser de experiências de regularizações, concluídas e em andamento no mu-
realocadas de outros assentamentos informais a serem regularizados. nicípio de Canoas, descritas no item anterior, é possível sustentar que
Nessa situação, estão a Vila São João e o Loteamento Pôr-do-Sol onde os processos de regularização dos assentamentos informais apresentam
a regularização prevê o deslocamento de famílias que se encontram sob viabilidade de se desenvolverem, desde o início até a sua conclusão,
o leito viário e que irão para o Loteamento 103 Hectares. com êxito, pois o município está dotado das condições mínimas neces-
Em fase de regularização, como parte integrante do Programa Cano- sárias para a promoção de políticas públicas de desenvolvimento urba-
as Minha Terra implantado na atual administração municipal, encontra- no, regularização territorial e de habitação.
-se a ocupação do CAIC, situada no bairro Guadjuviras. Dita ocupação Outro ponto que possibilita com eficiência o tratamento dos assun-
ocorreu há cerca de 10 anos sobre uma área de cinco hectares e hoje tos de interesses locais relacionados nas questões que envolvem a regu-
abriga aproximadamente 180 famílias. O local da ocupação conta com larização territorial e a habitação é o fato do município ter uma estrutura
água encanada, luz e uma rua asfaltada, o que segundo o Programa institucional específica para esses assuntos.
Canoas Minha Terra são fatores que propiciam a regularização. No final Para que a regularização fundiária tenha sucesso e possa ter
do ano de 2009, uma comissão de moradores da área ocupada foi es- plenitude em todas as suas dimensões é importante que se faça um
colhida para acompanhar os trâmites da regularização fundiária com o estudo acerca do assentamento informal mediante o levantamento
departamento de regularização da Secretaria de Desenvolvimento Urba- do tempo e aspectos dominiais da ocupação, situações de risco,
no e Habitação.26 pesquisa social dos ocupantes e da comunidade, topografia do lo-
Desta forma, pode-se afirmar que, o município de Canoas tem buscado cal ocupado, entre outros procedimentos. Além disso, é importante
avançar nas questões que envolvem a política urbana, ambiental e nas que haja uma integração entre as ações do órgão municipal que
trata das questões de regularização e habitação (Prefeitura Munici-
25 http://www.canoas.rs.gov.br/Site/Noticias/Noticia.asp?notId=4051. Acesso em 22 ago. 2010. pal) e a Câmara de Vereadores, Registro Público de Imóveis, Minis-
26 http://www.canoas.rs.gov.br/Site/Noticias/Noticia.asp?notId=8151&pesquisa=Caic. Acesso em tério Público, Defensoria Pública, Poder Judiciário e as lideranças
22 set. 2010.

338 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 339
comunitárias, pois estes todos são atores envolvidos no processo de que todos os processos de regularização serão realizados sem obstá-
regularização territorial. culos, pois, muitas vezes as leis são elaboradas sem, contudo, obser-
Recentemente, o Prefeito municipal de Canoas sancionou três leis varem a realidade local, e assim quando da sua aplicação são simples-
e dois decretos que podem contribuir muito para os processos de re- mente inaplicáveis ou conflitam com outras leis. Em muitas situações
gularização fundiária e diminuição do déficit habitacional no município. concretas as leis que dispõe sobre instrumentos de regularização que
Tratam-se de leis com funções importantes para a regularização fun- visam garantir o direito à moradia não podem ser aplicadas porque
diária, desde que efetivamente aplicadas. A Lei n°. 5.365, de 08 de apresentam pontos de contradição com a legislação urbana, ambiental
janeiro de 2009, que dispõe sobre o Instituto Canoas XXI. O Instituto e até registral.
tem como principal missão melhorar a qualidade de vida da popu- Portanto, dispor de uma farta legislação não significa a resolução
lação, promovendo o planejamento estratégico das políticas públicas dos problemas urbanos, é preciso que seja percebida a realidade local.
voltadas ao desenvolvimento socioeconômico do município e o seu or- No caso de Canoas, é preciso perceber que a informalidade urbana
denamento territorial funcional. A Lei n°. 5.495, de 19 de abril de e a agressão ao meio ambiente natural não são produzidas apenas pelos
2010, que dispõe sobre o programa “Canoas Minha Terra”, regulamen- pobres que ocupam áreas de preservação ambiental ou de risco com
ta os instrumentos de regularização fundiária no município e dá outras suas precárias autoconstruções. Muitos condomínios de luxo e empre-
providências. O Projeto de Lei n°. 56, de 23 de setembro de 2010, endimentos comerciais desrespeitam a legislação urbanística e ambien-
aprovado pela Câmara de Vereadores, foi sancionado pelo prefeito no tal, sem, contudo terem uma adequada fiscalização e adequação, o que
dia 9 de novembro de 2010. O referido projeto de Lei dispõe sobre a dissocia o idealismo da lei do caso concreto.
execução do Programa Minha Casa, Minha Vida, instituído pela Lei n°. O município de Canoas está vivenciando uma expansão urbana con-
11.977, de 7 de julho de 2009, e tem o objetivo de viabilizar a cons- siderável, todavia, não dispõe sobre políticas públicas preventivas con-
trução de cinco mil moradias para equacionar o déficit habitacional do tra a irregularidades fundiárias futuras, apenas sobre as irregularidades
município. O Decreto n°. 571, de 08 de maio de 2009, que institui a que já estão consolidadas. Faz-se necessário criar políticas públicas vol-
Comissão de Controle Urbanístico (CCU) com a atribuição de examinar tadas a reversão do processo de produção irregular da cidade. Seja qual
e deliberar sobre as matérias relativas a aplicação da legislação urba- for a forma e o título conferido aos moradores atendidos pelos progra-
nística e analisar o Estudo de Viabilidade Urbanística (EVU) e o Estudo mas de regularização fundiária é necessário o acompanhamento social
de Impacto de Vizinhança (EIV) de empreendimentos e atividades e, o e educativo subsequente a regularização fundiária. Não basta receber
Decreto n°. 765, de 17 de julho de 2009, que dispõe sobre a Câmara a moradia, ainda que situada em local infraestruturado com serviços e
Setorial de Regularização fundiária (CSRF) com a atribuição de exami- equipamentos urbanos, é necessário um trabalho de acompanhamento
nar e deliberar sobre as matérias relativas à regularização fundiária de para que os moradores desenvolvam um sentimento de pertencimento
interesse social no Município de Canoas. que os permitirá excluírem nos processos da cidade.
Nessa perspectiva, atualmente, o município de Canoas dispõe de É necessária, a participação da população do assentamento e a cria-
Instituições diversas que podem realizar um trabalho sério, pioneiro e ção de programas de capacitação dos beneficiados com a regularização,
integrado para a obtenção de efetivos resultados em termos de regu- pois estes passam a ter de compreender e lidar com os ônus de uma
larização sustentável do território e diminuição do déficit habitacional, moradia regular. Vale dizer que, nada ou de pouco adianta fazer todo o
tanto nos aspectos quantitativos como qualitativos. E, em matéria de trabalho de regularização sem que as pessoas sejam educadas e infor-
legislação, o município possui diversas leis que propiciam a implementa- madas sobre como lidar com a nova realidade, pois o retorno a informa-
ção da regularização fundiária. lidade, nesse caso, é inevitável.
Outrossim, algumas limitações se apresentam diante dos proces- Convém lembrar ainda que a falta ou a insuficiência de recursos fi-
sos de regularização territorial no município de Canoas, dentre as quais nanceiros pode ser um limitador aos processos de regularização fundiá-
algumas destacam-se. A farta legislação acerca do tema não garante ria. Os processos de regularizações fundiárias envolvem diversas etapas

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urbanísticas, jurídicas e registrais que dependem de pagamentos de cus-
tas, honorários e emolumentos, ainda que a intervenção seja pequena.
A regularização fundiária de interesse
Geralmente, o orçamento que o município dispõe para os processos de social e os aspectos da sustentabilidade
regularização fundiária são insuficientes para o processo em todos os
seus passos. E, um processo de regularização fundiária que tem início,
e do planejamento urbano
mas não é concluído acaba por agravar os problemas da comunidade,
Fábio Scopel Vanin1
sobretudo a questão habitacional.
Por derradeiro, como possível fator limitador dos processos de re-
gularização fundiária e de projetos e programas habitacionais tem-se Resumo: Um dos efeitos do processo de urbanização é a
a falta de continuidade dessas políticas públicas frente à mudança de ocupação das áreas de preservação ambiental dos Municí-
administração municipal que ocorre a cada quatro anos. Geralmente, pios pela população desassistida. A Regularização fundiária
os processos de regularização fundiária são complexos e demorados, e de Interesse social apresenta-se como um instrumento para
por isso 4 anos é um tempo insuficiente para a conclusão da regulariza- a solução deste conflito socioambiental. O instituto é um
desdobramento da Constituição Federal e do Estatuto da
ção. O atual governo municipal tem se demonstrado sensível frente às Cidade e sua concepção deve observar questões urbanas,
questões fundiárias, pois tem pela frente o grande desafio de reduzir o ambientais, sociais e espaciais. Para que o instrumento cum-
déficit habitacional, especialmente para as populações com renda até pra o seu papel é necessário que esteja inserido no proces-
três salários mínimos. so permanente de planejamento do Município, devendo ser
utilizada com cautela pelo Poder Público, não podendo ser
Referências transformado em instrumento para sanar a falta de planeja-
mento dos governos.
Palavras Chave: Regularização Fundiária. Regularização
ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à moradia: Instrumentos e experiên- Fundiária de Interesse Social. Lei n. 11.977/2009. Cidade
cias de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Observa- Ilegal. Planejamento Urbano. Sustentabilidade.
tório de Políticas Urbanas, IPPUR: FASE, 2007.
PENNA, Rejane (Coord.). e outros. Guajuviras. História de uma luta. Canoas –
Para lembrar quem somos. Vol. 5. CELES, 1998. Introdução
PEREIRA, Ivonete Childen. Conhecendo Canoas das estância à urbanização.
7. ed., Porto Alegre: Nova Prova, 2009. O crescimento da população urbana e sua concentração em gran-
SAULE JUNIOR, Nelson. Novas perspectivas do direito urbanístico brasi- des centros, aliado ao modelo de exclusão do mercado imobiliário e a
leiro. Ordenamento constitucional da política urbana. Aplicação e eficácia do falta de políticas públicas de planejamento urbano e habitacional, tem
plano diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. como efeito a formação de ocupações irregulares nos Municípios brasi-
SILVA, João Palma. As origens de Canoas. Conquista – povoamento – evo- leiros. Dependendo do caso, essas ocupações possuem características
lução. 2. ed.. Prefeitura de Canoas, 1996. específicas, localizando-se em áreas públicas e privadas, de diferentes
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 4. ed. rev. e atual. São afetações, mas que indiferentemente da situação, acabam trazendo pre-
Paulo: Malheiros. 2006. juízos a sustentabilidade e ao planejamento das cidades.
A Constituição Federal é regulamentada, no que tange a política e
o planejamento urbano do Brasil, pelo o Estatuto da Cidade. No intui-
to de regularizar as situações de ilegalidade de ocupações, este regra-
1 Mestrando em Direito Ambiental UCS – Especialista em Direito da Economia e da Empresa
FGV/RJ – Advogado OAB/RS. Professor e Coordenador do Curso de Ciência Política da Faculdade
América Latina

342 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 343
mento indicou como um de seus instrumentos políticos a Regularização Assim, esse processo induzido faz com que as concentrações urba-
Fundiária. Nesse sentido, foi recentemente aprovada a Lei Federal n. nas se tornem cada vez mais gigantescas, “as populações se amontoam
11.977/2009, que reserva um capítulo específico a Regularização Fun- atingindo densidades inquietantes”. Segundo H. Lefebvre, muitos núcle-
diária e aponta regras gerais para este instituto. os urbanos antigos se deterioram e as pessoas se deslocam para perife-
O presente artigo tem como objetivo, traçar apontamentos, que devam rias consideradas mais produtivas. 3
ser observados na garantia de uma a regularização fundiária de interesse M. Castells, traz uma pertinente avaliação para esse processo, ele
social sustentável e inserida no planejamento urbano local. Para isso, será considera que “as possibilidades de emprego urbano são muito inferiores
estudado o processo de urbanização e a existência de duas realidades: a as dimensões da migração e as perspectivas de vida são bem reduzidas.”
cidade formal e a cidade ilegal, fator que caracteriza os aglomerados urba- 4
O efeito deste problema apontado por M. Castells é a criação de vilas,
nos do nosso país, e os diferentes tipos de ocupação ilegal, com ênfase a favelas, áreas de posse, entre tantas outras denominações. É importante
ocupação das áreas definidas como zonas especiais de interesse social. que se faça uma ressalva: não só os migrantes que fazem parte destas
Apresentadas as diferentes realidades ilegais, e definida qual delas vilas nos Municípios, esses locais são formados também por cidadãos
será trabalhada no estudo, será feita a contextualização do tema com da própria localidade que foram esquecidos no planejamento urbano e
base na legislação em vigor, em especial a Constituição Federal, Estatuto social local. Esses locais que têm como característica a segregação, são
da Cidade e Lei n. 11.977/2009, para após, tratar especificamente, de tratados pelo planejamento urbano de forma paternalista, não sendo
regularização fundiária de interesse social, onde serão apresentadas di- objeto de planejamento.
ferentes concepções para o termo regularização fundiária, para, ao final, É nesse desenho que surge um dos problemas urbanos mais graves: a
indicar requisitos básicos para uma regularização fundiária de interesse falta de planejamento urbano, ou, quando existente, leva em consideração
social sustentável inserida no planejamento urbano. somente uma parte da cidade, aquela que interessa, dando margem para
criação da “cidade fora das idéias” 5, que são localidades que emergem
paralelas as leis, devido a falta de uma preocupação sistêmica com o Muni-
O processo de urbanização e a existência de duas cípio.
realidades urbanas: a Cidade formal Normalmente, as ocupações irregulares se dão em áreas ambiental-
e a Cidade ilegal mente frágeis, como a beira de córregos, rios e reservatórios, encostas
íngremes, mangues, áreas alagáveis fundos de vale, merecem legislação
É indispensável, para que se enfrente a temática proposta para este específica, devido a esse fato não interessam ao mercado legal. Essas
artigo, que se entenda o processo de urbanização, em especial dos pa- localidades são consideradas como as que “sobram” para a moradia de
íses periféricos, que acaba por gerar, um duplo efeito: o constante cres- grande parte da população.6
cimento da população urbana e a concentração desta população em As conseqüências dessas ocupações nesses locais são muitas, como
aglomerados de grande porte. a poluição dos recursos hídricos e dos mananciais, banalização de mor-
Conforme explicam L. Silva e L. Travessos, o processo de urbanização
no Brasil ilustra bem esse duplo efeito, sendo que “entre 1940 e 2000 3 LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro. 2001. p. 12-13.
o país apresentou um crescimento da população urbana de 31,2% para 4 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra. 2000. p. 85. O autor acredita
81,2%, passando de uma condição basicamente rural para outra, predo- que o fator principal do crescimento acelerado dos aglomerados urbanos é a migração rural-urba-
na. Embora exista este movimento, ele considera que isso ocorre muito mais por uma decomposi-
minantemente urbana”. Além disso, as autoras destacam que em 1950 o ção da sociedade rural, do que um dinamismo da sociedade urbana.
Brasil tinha apenas duas cidades com mais de 1 milhão de habitantes e na 5 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES,
década de 1990, esse número saltou para 13 cidades.2 Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes.
2000. p. 152.
2 SILVA, Lucia Sousa e; TRAVASSOS, Luciana. Problemas ambientais urbanos: desafios para a 6 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES,
elaboração de políticas públicas integradas. Disponível em http://web.observatoriodasmetropoles. Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes.
net/download/cm_artigos/cm19_118.pdf. Acesso em 05/01/2010. p. 32. 2000. p.163.

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tes por desmoronamentos, enchentes, epidemias, com o mesmo enten- são esquecidas) pelo planejamento urbano: os loteamentos ilegais. Em
dimento, M. Coelho dispõe que: regra, não constituem áreas invadidas, mas podem representar inúme-
ras formas de ilegalidade em relação a documentação, e, principalmente
Os problemas ambientais (ecológicos e sociais) não atingem igual- exigências urbanísticas.11
mente todo o espaço urbano. Atingem muito mais os espaços físicos
Desta forma há dois problemas distintos a serem avaliados quando
de ocupação das classes sociais menos favorecidas do que os das
classes mais elevadas. A distribuição espacial das primeiras está as- tratamos da “cidade ilegal”: as favelas, caracterizados pela pobreza e se-
sociada à desvalorização de espaço, quer pela proximidade dos leitos gregação, e, os loteamentos irregulares, muitas vezes, servidos de alguns
de inundação dos rios, das indústrias, de usinas termonucleares, quer equipamentos urbanos e ocupados por famílias com um razoável poder
pela insalubridade, tanto pelos riscos ambientais (suscetibilidade das aquisitivo. Assim, o próximo tópico apontará alguns tipos de ocupação
áreas e das populações aos fenômenos ambientais) como desmoro- ilegal e delimitará qual será objeto de apreciação neste estudo.
namentos e erosão, quanto pelos riscos das prováveis ocorrências de
catástrofes naturais, como terremotos e vulcanismos.7

As diferentes “Cidades Ilegais”


Muitas vezes, essa situação cria um conflito entre os moradores já
instalados nessas áreas e os que habitam na cidade formal. Os mora-
dores de favelas, caracterizada pela situação de superlotação e falta de Embora a parte da “cidade ilegal” que mais atraia atenção dos estu-
planejamento, residem em pequenas casas onde investiram suas parcas dos, em especial, os que avaliam os aspectos sócio-ambientais dos Mu-
economias enquanto eram ignorados pelos poder público, são lembra- nicípios, sejam as favelas, caracterizadas pela segregação da população,
dos e passam lutar em um processo judicial que objetiva retirá-los do existem outras formas de ocupação que desrespeitam os preceitos da
local por questões de ordem ambiental. Nesse caso eles são vistos como legislação e comprometem a sustentabilidade dos centros urbanos.
inimigos da qualidade de vida e do meio ambiente: 8. A autora E. Maricato entende que não é só pela falta de normas e
de planejamento que a cidade ilegal se reproduz, mas por uma ação
A suscetibilidade dos solos à erosão correlaciona-se com as relações omissiva do Poder Público e também pelo exagero normativo, que torna
sociais de propriedades e com o acesso das diferentes classes sociais os custos da habitação na área urbana elevados e fora do alcance de
às técnicas de conservação do solo. Enquanto a classe alta dispõe de
grande parte da população, que migra para a ilegalidade:
grandes áreas que lhe permitem manter a vegetação e preservar o
solo, a classe pobre se aglomera e, ao aumentar a densidade popula-
cional, altera a capacidade de suporte do solo. 9 Um abundante aparato regulatório normatiza a produção do espaço
urbano no Brasil – rigorosas leis de zoneamento, exigente legislação
de parcelamento do solo, detalhados códigos de edificações profis-
É importante que se destaque que: a favela não é o único modelo de
sionais são formulados por corporações profissionais que desconsi-
ocupação ilegal. Sem dúvida, é o mais grave do ponto de vista socioam- deram a condição de ilegalidade em que vive grande parte da popu-
biental10, mas existem outras formas de ocupações que desprezam (ou lação urbana brasileira em relação a moradia e à ocupação da terra,
demonstrando que a exclusão social passa pela lógica da aplicação
7 COELHO, Maria Célia Nunes. Impactos Ambientais em Áreas Urbanas – Teorias, Conceitos e
Métodos de Pesquisa. p. 19-45 in GUERRA, Antonio José Teixeira; CUNHA, Sandra Baptista da. discriminatória da lei. 12
Impactos Ambientais Urbanos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 27-28.
8 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES,
Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes. 11 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES,
2000. p. 163-164. Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes.
9 COELHO, Maria Célia Nunes. Impactos Ambientais em Áreas Urbanas – Teorias, Conceitos e 2000. p. 154. Segundo a autora, “se somarmos os moradores de favela aos moradores de loteamen-
Métodos de Pesquisa. p. 19-45 in GUERRA, Antonio José Teixeira; CUNHA, Sandra Baptista da. tos ilegais temos quase a metade da população dos municípios do Rio de Janeiro e São Paulo. Estudo
Impactos Ambientais Urbanos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 28. elaborado da cidade de São Paulo mostrou que nos últimos 15 anos a oferta de lotes ilegais suplan-
10 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES, tou a soma de todas as formas de unidades habitacionais oferecidas pelo mercado privado legal.”
Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes. 12 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES,
2000. p. 153. Segundo a autora, Favela “trata-se de invasão a terra alheia (frequentemente de Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes.
propriedade pública ou confusa) por falta de alternativa.” 2000. p. 147.

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O raciocínio da autora confirma o que já havíamos afirmado: a ci- usado é necessário apontar que tipo de ilegalidade está presente, se são
dade ilegal não é formada somente pelas áreas invadidas pela popula- loteamentos irregulares ou clandestinos, posse de terras privadas, posse
ção segredada, uma vez que os loteamentos irregulares não constituem de terras públicas ou assentamentos habitacionais surgidos espontane-
terras invadidas, mas, mesmo assim, podem apresentar diversas formas amente, caracterizados por irregularidades jurídicas ou urbanísticas da
de ilegalidades, seja em relação a documentação de propriedade ou em ocupação do solo.
relação as exigências urbanísticas. Segundo a autora, os loteamentos irregulares ou clandestinos
Dados dão conta da gravidade do problema: se somarmos a quan- são áreas privadas, onde existe a figura de um loteador que promove, a
tidade de favelas com o número de ilegalidades existentes na cidade o seu critério, o parcelamento e a venda dos lotes. Nestes casos, o lotea-
que deveria ser exceção, que é cidade ilegal, acaba por se tornar regra, dor é visto como um “criminoso”, caçado pelo poder público, e as pes-
conforme explica E. Maricato: soas que adquiriram os lotes “vítimas” da situação irregular. Nesse caso,
o instrumento clássico utilizado para a regularização é a Lei Federal n.
Se somarmos a população moradora de favelas com a população 6.766/1979 e as leis municipais sobre o tema. 16
moradora de loteamentos ilegais teremos aproximadamente metade Outra ocupação ilegal é a posse da população de terras privadas.
de todos os habitantes de São Paulo e também do Rio de Janeiro
Nesse caso a regularização é obtida através da usucapião urbana, pre-
(CASTRO E SILVA:1997). Em relação à legislação urbanística (parce-
lamento do solo, zoneamento, meio ambiente apenas para citar as visto no art. 183 da Constituição Federal de 1988. Com o advento do
principais) e à legislação edilícia (código de obras), estamos diante de Estatuto da Cidade, criou-se a figura do usucapião especial coletivo, que
uma “situação na qual a regra se torna mais exceção do que regra e a é considerado um avanço desse instituto.
exceção mais regra do que exceção.13 A ilegalidade pode se dar também através da ocupação em terre-
nos públicos, em especial, áreas de uso comum do povo, destinadas a
Assim, ainda segundo E. Maricato, o loteamento ilegal e a favela se construção de escolas, praças e outros instrumentos, que não tiveram
tornaram as alternativas mais comuns de moradia da maior parte da po- as obras implementadas pelo poder público. Na situação apontada, a
pulação urbana de renda baixa e média baixa, sendo considerada uma legalização pode se dar através da concessão do direito real de uso, que
solução que o desenvolvimento urbano, no Brasil, deu para grande parte deve ser precedida de desafetação da área, mudando a sua finalidade.
para os moradores das grandes cidades. 14 Os assentamentos irregulares podem também, estar localizados em
Em estudo realizado sobre o tema, a autora B. Alfonsin15 apon- ZEIS – Zona Especial de Interesse Social. As ZEIS são zonas urbanas
ta, que para que se identifique qual instrumento de regularização será específicas, podendo conter áreas públicas ou particulares, ocupadas
por população de baixa renda. Estes locais são incluídos no zoneamento
13 MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a Cidade Ilegal. Disponível em http://www.
usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_conhecercidadeilegal.pdf. Acesso em da cidade possuindo padrões específicos de uso e são instituídas pelo
07/01/2011. p. 2. Nesse sentido, a autora explica o que distingue as favelas dos loteamentos irre- Plano Diretor ou por Lei Municipal específica. O Plano Diretor deve clas-
gulares: “O que define a favela é a completa ilegalidade da relação do morador com a terra. Trata-se
de áreas invadidas. O que a difere dos loteamentos ilegais é o contrato de compra e venda que sificar essas áreas e delimitar seus perímetros, definindo linhas gerais
garante algum direito ao morador do loteamento, também chamado popularmente de loteamento
clandestino. Muitas são as variantes que o loteamento ilegal pode assumir. Em geral a ilegalidade
dos critérios a serem estabelecidos nas ocupações destes locais. 17
pode estar na burla às normas urbanísticas: diretrizes de ocupação do solo, dimensão dos lotes, ar- Conforme leciona, C. Sundfeld, essas áreas “são aquelas onde as
ruamento, áreas públicas e institucionais, que devem ser doadas para o poder público, estão entre
as mais comuns. Há casos, entretanto, em que a ilegalidade está na documentação de propriedade, circunstancias de fato autorizam ou determinam um tratamento diferen-
na ausência da aprovação do projeto pela prefeitura ou no descompasso entre o projeto aprovado ciado, mais simples, menos elitista, dos índices urbanísticos, de maneira
e sua implantação. A irregularidade na implantação do loteamento impede o registro do mesmo
pelo cartório de registro de imóveis, prejudicando, conseqüentemente, os compradores.”
16 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e
14 MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a Cidade Ilegal. Disponível em http://www.
Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori-
usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_conhecercidadeilegal.pdf. Acesso em
zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 260..
07/01/2011. p. 2.
15 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e 17 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de prote-
Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori- ção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20
zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 218. CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em 23.11.2010. p. 4.

348 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 349
a assegurar o Direito a moradia”, afirmando ainda que “não se trata cidade ilegal é fruto da desigualdade socioeconômica. A superação desta
de criar privilégios, [...] mas sim, de aplicar o direito com razoabilidade, questão é necessária para que garanta a consecução desse objetivo.
promovendo um contemperamento entre os diversos objetivos e valores Neste mesmo sentido, a CF/1988, dispõe ser competência comum
constitucionalmente consagrados”18. da União, Estados, Distrito Federal e Municípios combater as causas da
Desta forma, são várias as formas e classificações de ocupações irre- pobreza e os fatores de marginalização, promover a integração social
gulares e ilegais, havendo diferentes instrumentos de regularização. Nes- dos setores desfavorecidos e programas de construção de moradias e
te artigo, será trabalhada a regularização fundiária de interesse social, melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico.
que é regrada na lei n. 11.977/2009, com especial atenção aos imóveis Desta forma, a observação do fundamento da dignidade da pes-
localizados nas ZEIS. Para que se possa avançar neste estudo, no pró- soa humana, a consecução do objetivo da erradicação da pobreza e o
ximo tópico, será feita a contextualização da Regularização Fundiária a cumprimento das competências indicadas, no âmbito da regularização
partir dos preceitos da Constituição Federal, do Estatuto da Cidade e da fundiária, se darão, principalmente, através do planejamento urbano.
Lei n. 11.977/2009. O planejamento urbano tem como finalidade garantir que a ocupa-
ção dos Municípios observe preceitos sustentáveis, em especial após o
advento do Estatuto da Cidade, que veio a regulamentar o art. 182 e
A Regularização Fundiária e seu tratamento 183 da Constituição Federal de 1988 e tem como uma das diretrizes a
na Constituição Federal de 1988, regularização fundiária e a urbanização de áreas ocupadas por popula-
Estatuto da Cidade e Lei 11.977/2009 ção de baixa renda. Para garantir essa diretriz, o mesmo regramento de-
finiu como um dos seus “institutos jurídicos e políticos” a regularização
A regularização fundiária é uma instituição jurídica, que tem fulcro fundiária 21, que será regido legislação própria, observados os preceitos
constitucional já nos fundamentos da República Federativa do Brasil, do Estatuto da Cidade.
dentre os quais está prevista a dignidade para a pessoa humana 19: um No art. 48 é apontado um conceito, dispondo que a regularização
dos objetivos do instituto é, sem dúvida, garantir que a população ur- fundiária consiste no conjunto de medidas judiciais, urbanísticas, am-
bana que ocupa áreas irregulares possa ter acesso a condições mínimas bientais e sociais que visam regular a situação de assentamentos em
de saúde, habitação, saneamento, dentre outras. Nesse sentido, cabe desacordo com as normas e com problemas de titulação, garantindo o
destacar o entendimento de E. Maricato: “A regularização fundiária é um direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais
complemento natural da urbanização. Apenas com a regularização jurí- da propriedade urbana e o direito do meio ambiente ecologicamente
dica podemos reconhecer como cidadãos os moradores dessas áreas”. 20 equilibrado.
Outro parâmetro que orienta o estudo deste importante instrumento Fica claro com esta definição que a norma guarda estreita ligação
jurídico e político de política urbana é o objetivo da República Federativa com as preocupações sociais e ambientais. Cabe destacar que entre os
do Brasil de reduzir as desigualdades sociais e erradicar a pobreza e a princípios da regularização fundiária apontados está a articulação com
marginalização. Sabe-se, pelo que já foi apresentado, que a existência da políticas habitacionais, ambientais, de saneamento e mobilidade e a am-
pliação do acesso à área urbanizada.
18 SUNDFELD, Carlos Ari. Instrumentos da Política Urbana. In DALLARI, Adilson de Abreu; FER- A norma dispõe sobre quem é competente em promover a regulari-
RAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 71-86. p. 81 zação fundiária. Neste ponto, a lei foi extramente abrangente, indicando
19 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 07.01.2010. Art. 1º A Repúbica
que ela poderá ser realizada pela União, Estados, Distrito Federal e Mu-
Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa 21 BRASIL. Lei n. 11.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constitui-
humana. ção Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. Disponível em
20 MARICATO, Ermínia. Conhecer para resolver a Cidade Ilegal. Disponível em http://www. http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 06/01/2010. Art. 4o Para
usp.br/fau/depprojeto/labhab/biblioteca/textos/maricato_conhecercidadeilegal.pdf. Acesso em os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos: V – institutos jurídicos e políticos: q)
07/01/2011. p. 6. regularização fundiária;

350 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 351
nicípios, e ainda, por seus beneficiários, de forma individual e coletiva. medidas para sanar a falta de planejamento do Poder Público, o que
Além deles, entidades como por cooperativas habitacionais, associações estaria em desacordo com os preceitos do Estatuto da Cidade. Sobre o
de moradores, fundações, organizações sociais, organizações da socie- tema, tratando, em especial da usucapião (embora, entenda-se que a
dade civil de interesse público ou outras associações civis que tenham reflexão vale para o caso apontado) cabe destacar a posicionamento do
por finalidade atividades nas áreas de desenvolvimento urbano ou regu- professor A. Rech:
larização fundiária, também estão aptas.
Ressalta-se também a previsão de requisitos para o projeto de regu- O usucapião especial urbano é um instrumento constitucional e re-
larização fundiária, que deve conter, no mínimo, elementos que definam gulamentado pelo Estatuto da Cidade, que tem a finalidade de urba-
áreas e lotes a serem regularizados; as vias de circulação existentes e nização de áreas ocupadas, sem título de propriedade e que busca
solucionar os graves problemas criado ao longo da história, anteriores
outras áreas destinadas ao uso público; medidas de sustentabilidade ur-
ao Estatuto da Cidade, quando não havia instrumentos legais para
banística, social e ambiental, incluindo compensações; a segurança para adotar normas urbanísticas de inclusão social. Ele não pode ser uti-
a população que reside em áreas de risco; e medidas de infra-estrutura lizado daqui para frente como instrumento urbanístico, pois a nova
básica. ordem urbanística possibilita a utilização de instrumentos preventivos
O estudo de como a Lei n. 11.977 trata a regularização fundiária de e não apenas terapêuticos. 22
interesse social é o tema do próximo tópico.
Ou seja, embora o caso presente não trate da usucapião, a refle-
xão é válida. Já antecipando algumas idéias que serão desenvolvidas
A regularização fundiária de interesse social, com um maior cuidado no último ponto do artigo, a regularização
com base na Lei Federal n. 11.977/2009 fundiária deve ser utilizada para incluir, principalmente, aqueles, que
devido a falta de políticas públicas urbanas e habitacionais do Poder
A regularização fundiária de interesse social é conceituada na Lei Publico ao longo da história, ficaram alijados, em última análise, aos
n.11.997/20009, como sendo aquela de “assentamentos irregulares direitos da cidade 23. Não se pode admitir, no contexto em que as
ocupados, predominantemente, por população de baixa renda”, e são normas em vigor orientam e dão instrumentos garantidores de um
apontados três casos que configuram esta situação: as áreas que sejam planejamento urbano inclusivo, que o Estado utilize, frequentemente
ocupadas de forma mansa e pacífica há pelo menos 5 anos; as loca- e indiscriminadamente instrumentos, que visam sanar sua ilegalidade
lizadas em ZEIS; e, áreas do Poder Público, em todas as suas esferas, de atuação tipificada pela falta de compromisso com o planejamento
declaradas de interesse para implantação de projetos de regularização do Município.
fundiária de interesse social. Feitas as necessárias ressalvas, voltamos ao estudo dos dispositivos
Desta forma, além das áreas localizadas na ZEIS, objeto principal legais que regulamentam a Regularização fundiária de interesse social.
deste estudo, as áreas ocupadas de forma pacífica há mais de cinco A norma guarda seção específica para regulamentar do procedimento
anos e aquelas do Poder Público declaradas de finalidade habitacional, a ser observado, dispondo que a regularização depende da análise e
mesmo fora das ZEIS, passaram a ser consideradas pela lei, como for- aprovação do projeto pelo Município.
mas de regularização fundiária de interesse social. Neste ponto a norma é correta. A competência pela aprovação do
Todavia, se faz necessário um comentário acerca destes dois últimos projeto é local e não poderia ser diferente: trata-se de assunto ligado a
modelos de regularização fundiária de interesse social indicados no tex-
to. A questão das ZEIS não preocupa tanto: o fato de terem sido objeto 22 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção de
de zoneamento pressupõe que houve planejamento na sua delimitação. um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p.180.

Mas nas outras duas formas – a posse pacífica e as áreas públicas – 23 ROCHA, Julio César de Sá da. Função Ambiental da Cidade. São Paulo: Juarez de Oliveira,
1999. p. 36. A efetivação da função social da cidade é cumprida quando o direito à cidade pode
caso não haja uma atenção especial, as mesmas, poder-se-ão torna-se ser exercido em sua plenitude: isto inclui o direito a vida com dignidade, a moradia, a alimentação,
a saúde, a segurança, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.

352 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 353
política de desenvolvimento urbano e deve ser executada pelo Municí- remoção da população irregular e seu reassentamento em outro local,
pio, conforme dispõe a Constituição Federal. 24 com o objetivo de garantir a proteção dos recursos naturais. Do outro
O projeto tem requisitos específicos, e corresponde ao licenciamen- lado, esta a perspectiva urbana, que defende a regularização da própria
to ambiental e urbanístico, sendo necessário, que o Município tenha ór- ocupação, tendo em conta os aspectos sociais. 25
gão ambiental capacitado e conselho municipal do meio ambiente para Neste debate há um entendimento de que “a intocabilidade destas
aprová-lo. áreas tem sido ineficaz para cumprir a função de proteção ambiental”,
Resta verificado desde já, que há preocupação da norma, como os pois “a proibição cria vazios urbanos propensos a novas ocupações in-
aspectos de sustentabilidade e planejamento urbano. O Município so- formais”. Segundo as autoras, “as APPs transformam-se em grandes es-
mente poderá exercer sua competência se apto para tal. Apenas anali- paços isolados dentro da malha urbana, em que a proibição de acesso
sará e aprovará os aspectos do projeto, contidos no art. 51, caso esteja não tem sido suficientes para evitar os danos aos recursos ambientais”,
organizado, e principalmente, conte com profissionais habilitados para sendo freqüentes a sua depredação, independente do tipo de uso. 26
fazer tal verificação. Com atenção para o tema, a Lei n. 11.977/2009, trouxe requisitos
O art. 54 segue a mesma linha: a preocupação com o planejamento específicos para a regularização fundiária de interesse social nas áreas
urbano e a sustentabilidade, dispondo que o projeto deverá considerar de preservação permanente. Conforme dispõe a norma, o Município,
características da ocupação e da áreas para definir parâmetros urba- pode, por decisão motivada, admitir a regularização fundiária nestes ter-
nísticos e ambientais específicos, além de identificar os lotes, as vias mos, em áreas ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em
de circulação e as áreas destinadas ao uso público. A função deste re- área urbana consolidada 27, desde que o estudo técnico comprove que a
gramento é flexibilizar ou tornar mais rígidas, dependendo do caso, as intervenção implica nas melhorias das condições ambientais em relação
normas de ocupação, para que se garanta a regularização da área, sem a ocupação irregular anterior.
grandes impactos ambientais ou urbanísticos. Desta forma, a norma respaldou o consenso indicado pelo debate,
As especificidades da área onde se localiza a ocupação é o ponto definindo que a ocupação pode ser mantida, desde que, haja melhorias
em que reside um dos maiores debates acerca da sustentabilidade do na condição ambiental da área regularizada. Entende-se, que o aponta-
instrumento: a regularização fundiária de interesse social nas áreas de mento de uma data, vai ao encontro do que foi afirmado anteriormente:
preservação permanente. a regularização fundiária é instrumento pra resolver questões históricas
Reiterando o que foi tratado no início do texto, o processo de ur- de falta de planejamento e não pode ser utilizada como remédio para
banização, da forma como se procede, acaba por colocar uma parte da sanar situações geradas pela falta de políticas públicas urbanas de ad-
população sem alternativa a ocupar áreas desprezadas pelo mercado ministrações presentes.
imobiliário e sem infra-estrutura, como é o caso das áreas de preser- O estudo técnico apontado deve acompanhar o projeto de regulariza-
vação permanente. O poder público, por sua vez, é ineficiente tanto no ção, regulado pelo art. 51 e deve conter, no mínimo, a caracterização da
cuidado na efetivação da proteção integral quanto nas alternativas de situação ambiental da área a ser regularizada; a especificação dos siste-
solução da problemática habitacional, ficando inerte diante deste grave
dilema. 25 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de prote-
ção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20
As autoras M. Bezerra e T. Chaer dispõe que duas visões diferencia-
CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em 23.11.2010. p. 2.
das predominam neste debate entre a comunidade ambiental e a comu- 26 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de prote-
nidade urbana, o que tem dificultado possíveis soluções nesse sentido. ção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20
De um lado esta a perspectiva ambiental, que aponta como solução a CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em 23.11.2010. p. 3.
27 De acordo com o disposto na Lei n. 11.977/200, art. 47, inciso II, área urbana consolidada é
24 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Competências Urbanísticas. in DALLARI, Adilson de Abreu; aquela que conta com uma densidade demográfica superior a 50 habitantes por hectare e malha
FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 61-70. p. 69. No mesmo viária implantada e que tenha, no mínimo dois dos seguintes equipamentos de infra-estrutura urba-
sentido: “A competência para promover e determinar o ordenamento do solo e a realização do na implantados: drenagem de águas pluviais urbanas, abastecimento de água potável; distribuição
desenvolvimento urbano é a instancia local.”. de energia elétrica; limpeza urbana, coleta manejo de resíduos sólidos.

354 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 355
mas de saneamento básico, a proposição de intervenções para o controle acerca de programas de regularização, e pode constatar as diferentes
de riscos geotécnicos e de inundações; a comprovação das melhorias das visões sobre o assunto.
condições de sustentabilidade urbano-ambiental; comprovação da me- Uma das concepções verificadas e segundo a autora “largamente
lhoria da habitabilidade dos moradores devido a regularização; e a garan- difundida no Brasil”, reduz a regularização fundiária a mera legalização
tia do acesso público as praias e corpos d`água quando for o caso. dos lotes em nome dos moradores. Neste caso, o Poder Público visa
Verifica-se desta forma, que a norma deu merecida atenção a delica- unicamente a continuidade do exercício do direito de moradia, transfor-
da temática da regularização fundiária de interesse social nas áreas de mando a posse em propriedade ou direito de uso. Entre os problemas
preservação permanente. É importante observar essa norma deve ser apontados nesta forma de regularização é que ela pode consagrar injus-
aplicada em consonância ao que dispõe a Resolução n. 369/2006 do tiças (como diferentes tamanhos de lotes e dificuldade de acesso as vias
CONAMA, para que as ações nesse sentido sejam eficientes no aspecto públicas) e, principalmente, a não garantia aos moradores da localidade
urbano-ambiental. o mínimo de infra-estrutura necessário. 29 Conforme já estudado, essa
Encerrando por hora o estudo dos regramentos que dispõe sobre a concepção não foi contemplada na Lei n. 11.977, que exige, no art. 55,
regularização fundiária de interesse social, merece destaque a exigência que o Poder Público implemente uma série de melhorias nas áreas sub-
legal de que o Poder Público implante, nas áreas reguladas, o sistema metidas à regularização fundiária de interesse social.
viário e a infra-estrutura básica, como vias de circulação; escoamento A segunda concepção indicada aponta a regularização fundiária como
das águas pluviais; rede para o abastecimento de água potável; e solu- urbanização do assentamento, que tem como foco principal a ordenação
ções para o esgotamento sanitário e para a energia elétrica domiciliar. do espaço através de um estudo de viabilidade urbanística, garantindo
A norma visa garantir que não haja abandono da localidade após a re- uma melhoria nas condições de habitabilidade do assentamento. A auto-
gularização, e consagra os já citados, fundamento da dignidade da pes- ra, neste caso, refere a importância destes projetos na melhoria de con-
soa humana e direito a cidade. Dando sequencia ao estudo, no tópico dições, em especial das favelas, mas ressalta que ele é deficiente se não
seguinte será verificado se a Lei n. 11.977/2009 reflete uma concepção for acompanhado de outras intervenções, como por exemplo, a já citada
de regularização fundiária sustentável. regularização jurídica, evitando futuros despejos ou desperdício de dinhei-
ro público. Isto ocorre, pois, normalmente esse tipo de regularização se
dá em áreas de propriedade do Poder Público, que é relapso na emissão
Uma concepção de regularização dos títulos de propriedade. Neste caso, uma mudança na política habita-
fundiária sustentável cional, praxe no Brasil, faz com que os moradores passem a depender da
vontade política na solução do problema, que se torna ainda mais grave,
Neste tópico serão trabalhadas algumas diferentes concepções de quando o Poder Público sequer gravou a área como de interesse social.30
regularização fundiária e indicado alguns pressupostos que devem ser Vale como argumento, para melhor entendimento da questão, a posição
observados para o instituto sob o prisma da sustentabilidade e do pla- do professor A. Rech neste tema: “têm nossas universidades formado
nejamento urbano. milhares de arquitetos e urbanistas, que produzem nas suas pranchetas
Mesmo com a entrada em vigor da Lei n. 11.977/2009, que acabou belos projetos, mas que não vinculam os administradores, pois não se
por dispor sobre regularização fundiária com observância a pressupos- efetivam em normas de direito público.”31
tos urbano-ambientais, é necessário que façamos um apanhado sobre as
29 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e
diferentes concepções dadas ao tema. Para esse exercício, serão toma- Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori-
das como base, as reflexões de B. Alfonsin 28, que coordenou pesquisas zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 211-212.
30 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e
28 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e Sus- Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori-
tentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 212-213.
Rey, 2001. p. 195-267. Entre os p. 210-217, Os comentários da autora acerca de regularização fundi- 31 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção de
ária, suas concepções e práticas, serão utilizados como referencial no desenvolvimento deste tópico. um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 12.

356 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 357
A terceira concepção apontada pela autora, diz respeito a re- Requisitos para garantia de uma regularização
gularização fundiária como regularização urbanística, que propõe, fundiária de interesse social sustentável inserida
em última análise, aproximar a cidade ilegal a legislação prevista no planejamento urbano local
no plano, havendo duas abordagens: uma que visa a recuperação
urbana dessas áreas para atender ao regime originalmente previsto Consoante dispõe o autor H. Acselrad, “diversas matrizes discursi-
no plano, e outra, que prevê a adaptação da legislação e do regime vas têm sido associadas à noção de sustentabiliade”, apontando que
urbano a realidade das ocupações irregulares.32 A segunda abor- entre elas podem se destacadas as matrizes da eficiência; de escala; da
dagem é aquela recepcionada pela legislação em vigor, conforme equidade; da auto-suficiência; e da ética. A matriz da eficiência pres-
indica o art. 54 da Lei 11.977/2009, que estabelece que o projeto supõe o combate ao desperdício, estendendo a eficiência econômica
de regularização fundiária de interesse social deva considerar ca- para relações não mercantis; escala, sugere um limite quantitativo ao
racterísticas e parâmetros ambientais e urbanísticos específicos de crescimento econômico; a da equidade, “articula analiticamente os prin-
cada área. cípios de justiça e ecologia”; a matriz da auto-suficiência aponta para a a
Assim, com as diversas concepções apresentadas, se faz neces- desvinculação de economias nacionais e das sociedades tradicionais no
sária definir o que se entende por regularização fundiária. Neste mercado global; e a da ética, traz um debate de valores, evidenciando
sentido, auxilia ainda o conceito de B. Alfonsin que dispõe que ao como ocorre “a interação da base material do desenvolvimento com as
analisar o tema, que trata-se de “um fenômeno que integra dife- condições de continuidade da vida no planeta”. 34
rentes dimensões”, sendo uma “intervenção que, para realizar-se O elaborado estudo de H. Acselarad demonstra a complexidade da
efetiva e satisfatoriamente, deve abranger um trabalho jurídico, ur- temática, ficando evidente que não há um entendimento unânime acer-
banístico, físico e social”, argumentando ainda que se ausentes al- ca do tema, o que possibilita diversas formas de abordagem. Dentro da
guma dessas dimensões não se atinge plenamente os objetivos do temática propsosta, M. Castells e J. Borja apontam para um entendi-
processo.33 mento adequado do termo desenvolvimento sustentável urbano:
Da forma como esta conceituada, no art. 46 da Lei n. 11.977/2009,
a regularização fundiária é concebida neste mesmo sentido: o conjunto El desarrolo sostenible presenta distintas dimensiones que deben ser te-
de aspectos jurídicos, urbanísticos, ambientais e sociais, que visam regu- nidas em cuenta en el diseño de lãs estratégias de desararrollo urbano.
larizar assentamento e garantindo o direito a moradia, da função social da El concepto “desarrollo sostenible” debe enfatizar el desarrollo como in-
cremento de riqueza material, como aumento de la calidad de vida – de
propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equili-
definición variable, según la cultura – y la reprodución de lãs condiciones
brado.
sociales, materiales e institucionales para seguir adelante con esre desa-
Como visto, a norma em vigor contempla a regularização fundiária
rrollo. Por tanto, la sostenibilidad no tiene una única dimenssión ambien-
em sua plenitude, cabendo aos Municípios efetivá-la através de seus tal, sino que incluye uma visión integral del desarrollo urbano.35
ordenamentos jurídicos e políticas públicas locais, que devem dispor es-
pecificidades para o instrumento. Os requisitos necessários, que garan- No mesmo sentido do conceito, também entendendo que o desen-
tam uma regularização fundiária sustentável inserida no planejamento volvimento sustentável urbano apresenta diferentes abordagens, H. Ac-
urbano é o tema do último tópico. selrad, dispõe que “encontramos três representações distintas da cidade,
as quais corresponderão também diferentes sentidos do que se preten-
de legitimamente capaz de fazer durar a integridade do urbano” sendo
32 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e
Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori- 34 ACSELRAD, Henri. Sentidos da Sustentabilidade Urbana In ACSELRAD, Henri. A Duração das
zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 214-215. Cidades – Sustentabiliade e Risco das Políticas Urbanas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p.
33 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e 43-70. p. 43.
Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori- 35 BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local y global: la gestión de las ciudades en la era de la
zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 215-216. información. Madri: Taurus, Habitat. P.195

358 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 359
elas: a representação técnico-material da cidade, através dos modelos da A urbanização recebida pelo assentamento implica que a áreas passe
racionalidade ecoenergética e do equilíbrio metabólico; a cidade como a ser servida por coleta de lixo, e esgotamento pluvial e cloacal, o que
espaço da qualidade de vida, representado pelos modelos da pureza, da previne a poluição ambiental do assentamento e seu entorno, bem
cidadania e do patrimônio; e a reconstituição da legitimidade das políticas como a contaminação de solos córregos e lençóis freáticos. Há casos
urbanas, com base mos modelos da eficiência e da equidade. 36 em que a população do assentamento organizou-se em cooperativas
de coleta seletiva e reciclagem de lixo como alternativa de geração
A. Rech, segue a mesma linha, e afirma que “o conceito de susten-
de renda para as famílias mais carentes da comunidade. Tudo isso
tabilidade ainda em construção é científico, epistêmico e vai sendo defi-
demonstra que a regularização fundiária impacta positivamente na
nido ao longo das diferentes abordagens [...]” indicando que, a nível de busca pela sustentabilidade das cidades contemporâneas. 38
planejamento urbano, ao tratar do tema, devem ser observadas:
Embora seja evidente, que de fato, a Lei n. 11.977.2009 contempla a
A ocupação adequada, mediante zoneamento ambiental, zonea-
complexidade do tema, é necessário que se faça uma crítica, que já guarda
mentos de ocupação sustentável, tanto na área urbana quanto rural,
relação com o que se considera segunda etapa, e diz respeito a inserção da
de atividades sustentáveis e de uma infra-estrutura urbana e rural,
com vias de escoamento do trânsito, sistema de transporte, áreas de regularização fundiária de interesse social no planejamento urbano.
lazer, atividades econômicas geradoras de emprego, distribuição de Recapitulando o que já fora dito, entre as formas de regularização
equipamentos institucionais, como hospitais, escolas, serviços públi- fundiária de interesse social previstas na norma estão três: de áreas lo-
cos, etc., são providências mínimas para garantir a sustentabilidade. calizadas nas ZEIS; de áreas ocupadas pacificamente a mais de 5 anos;
37 e áreas do Poder Público, que são declaradas para esta finalidade.
Dentro da perspectiva defendida, que contempla o planejamento
O presente texto não tem a pretensão de aprofundar cada um dos urbano, considera-se, assim como M. Bezerra e T. Chaer, que “o estabe-
modelos, mas, indicar, a partir da abordagem feita no decorrer do estu- lecimento de ZEIS é o primeiro passo a ser dado no sentido da regula-
do, de forma prática, requisitos básicos para uma regularização fundiá- rização” sendo “que todos os instrumentos afetos ao tema requerem a
ria de interesse social sustentável e inserida no planejamento urbano. declaração de ZEIS de forma antecipada”.
A utilização dos termos em separado: “sustentabilidade” e “inserida A possibilidade de admitir a regularização fundiária nos outros dois
no planejamento urbano” não ocorre por acaso e visa destacar a impor- casos apontados pela lei destoa do espírito do planejamento urbano
tância, do que consideramos duas etapas indispensáveis para a efetiva- apontado na Constituição Federal e no Estatuto da Cidade, permitindo
ção plena da regularização fundiária. que o gestor público local promova uma adequação do território sem a
A primeira etapa se dá, entre outros requisitos, a partir da observa- preocupação com o seu zoneamento.
ção dos regramentos contidos na Lei n. 11.977/2009, conforme visto Nesse contexto, a separação do termo “sustentabiliade” do termo “in-
no tópico anterior. A atenção aos princípios, aos elementos do proje- serção no planejamento” urbano ocorreu de forma proposital, no sentido
to, aos requisitos especiais definidos para a regularização nas áreas de de reafirmar que o Plano Diretor e a legislação municipal precisam efetivar
preservação permanente, e, a instalação de infra-estrutura da área pelo as normas contidas na Lei n. 11.977/2009, incluindo a área objeto de regu-
Poder Público já garantem requisitos básicos de sustentabilidade para a larização no zoneamento, estabelecendo requisitos urbanísticos específicos
regularização fundiária de interesse social. Neste sentido, cabe trazer o e dando a área a infra-estrutura necessária para as garantias sociais e am-
entendimento de B. Alfonsin: bientais, de forma a exercer a competência em âmbito local. 39

38 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e


36 ACSELRAD, Henri. Sentidos da Sustentabilidade Urbana In ACSELRAD, Henri. A Duração das Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori-
Cidades – Sustentabiliade e Risco das Políticas Urbanas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. p. zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 247.
43-70. p. 53-64. 39 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção de
37 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção de um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. Nos mesmos ter-
um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p.48-49. mos, mas referindo-se ao Usucapião urbano, dispõe que o Plano Diretor de Bento Gonçalves dispôs

360 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 361
Desta forma, com base nos apontamentos deste estudo, os requisitos 5. Embora presente essas diretrizes, a efetivação da norma depen-
básicos de uma regularização fundiária de interesse social sustentável e derá da regulamentação e de políticas pública desenvolvidos em nível
inserida no planejamento urbano, se darão através de uma verificação local. Os Municípios deverão, através do Plano Diretor e leis municipais
sistêmica dos aspectos ambientais, temporais, sociais e econômicos40 e tomar as medidas necessárias, em especial o zoneamento das áreas, a
serão os seguintes: identificação das particularidades sociais, ambientais especificação de índices urbanísticos e a disponibilidade de infra-estru-
e econômicas da área ocupada, com participação de todos interessados tura no local a ser regularizado.
na regularização; a inserção da área no zoneamento e planejamento urba- 6. Para que o instrumento cumpra o seu papel de inclusão social
no local; definição de parâmetros urbanísticos e ambientais específicos de com respeito as regras urbanísticas, ambientais e jurídicas, é necessário
regularização; cadastramento e titulação aos ocupantes; e, a articulação que esteja inserido no processo permanente de planejamento do Municí-
com as demais políticas setoriais garantindo infra-estrutura de habitação, pio, sendo adotada como uma política habitacional local, a qual, deve ser
saneamento básico, mobilidade urbana, segurança e consequentemente dada a devida prioridade, com base nas peculiaridades de cada cidade.
7. A regularização fundiária de interesse social deve ser utilizada
a permanência da população na área ocupada.
com cuidado pelo Poder Público, especialmente para resolver as situa-
Com o apontamento dos requisitos, encerra-se o presente artigo e
ções consolidadas, não podendo ser transformado em instrumento para
apresenta-se as conclusões articuladas:
sanar a falta de planejamento presente e futuro dos governos, uma vez
que, a legislação urbanística em vigor, em especial o Estatuto da Cidade,
dá, ao gestor público condições suficientes de planejar o Município de
Conclusões Articuladas: forma coerente e eficiente.

1. As características do processo de urbanização no Brasil, fez com


que parte expressiva da população, passasse a ocupar, em condições in-
Referências
dignas de sobrevivência, localidades de proteção ambiental, que jamais
deveriam ter sido ocupadas. ACSELRAD, Henri. A Duração das Cidades – Sustentabiliade e Risco das Políti-
2. Ao lado dessa problemática de impacto ambiental estão inseri- cas Urbanas. 2 ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009.
das questões sociais preocupantes, em especial aquelas atreladas ao di- ARANTES, Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Emília. A cidade do pensamento
reito de moradia, o que motivou um debate socioambiental, que incenti- único. 2. ed. Petrópolis. Vozes. 2000.
vou um avanço nas ideias acerca do instituto da Regularização Fundiária. ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. Lei de Responsabilidade Territorial Urba-
3. A regularização fundiária de interesse social apresenta-se como na: situação atual do debate. Disponível em http://www.mp.go.gov.br/portalweb/
o principal instrumento para a solução deste conflito socioambiental e hp/9/docs/doutrina_urbanismo1.pdf. Acesso em 23.11.2010.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização, as Conseqüências Humanas. Rio de Janeiro:
não pode ser observada de forma simplista: sua concepção vai além de
Jorge Zahar, 1999.
uma regularização documental, devendo ela, observar questões urba- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
nas, ambientais, sociais e espaciais para sua efetivação. BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local y global: la gestión de las ciudades en
4. Complementando a Constituição Federal e o Estatuto da Cida- la era de la información. Madri: Taurus, Habitat.
de, a Lei n. 11.977/2009, veio dar diretrizes ao instituto, abarcando os BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://
aspectos jurídicos, urbanísticos, ambientais e sociais e garantindo a titu- www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso
lação dos imóveis e o direito social a moradia, através de regramentos em 07.01.2010.
com foco na sustentabilidade. BRASIL. Lei n. 11.257 de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182
e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana
expressamente que as áreas objeto deste instrumento estão sujeitas as normas urbanísticas sob e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/
pena de desapropriação. P. 181. LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 06/01/2010.
40 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Políticas de Regularização Fundiária: Justificação, Impactos e BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária
Sustentabilidade in FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Hori- em áreas de proteção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em
zonte: Del Rey, 2001. p. 195-267. p. 245.

362 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 363
http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em
23.11.2010.
“Há tempos de plantar e tempo de
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. São Paulo: Paz e Terra. 2000.
DALLARI, Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo:
colher o que se plantou...”
Malheiros, 2006. A Demarcação Urbanística na
FERNANDES, Edésio. Direito Urbanístico e Política Urbana no Brasil. Belo Ho-
rizonte: Del Rey, 2001. Lei 11.977/2099
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to Urbanístico e Ambiental na Pauta da Regularização Fundiária Sustentável no Jacqueline Severo da Silva1
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RECH, Adir Ubaldo. A exclusão Social e o caos nas cidades. Caxias do Sul: experiências emblemáticas ocorridas, no já citado Município, como a
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consolidação da Vila Planetário, a criação da Equipe de Assistência Jurí-
RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a
construção de um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do dica Municipal – no âmbito da Procuradoria Geral do Município, o ajui-
Sul: Educs, 2010. zamento de ações individuais de usucapião e o ajuizamento da primeira
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malhei- ação coletiva de usucapião.
ros, 2010. O cenário em Porto Alegre era propício para a análise que se pre-
SILVA, Lucia Sousa e; TRAVASSOS, Luciana. Problemas ambientais urbanos: de- tendia, uma vez que ali se evidenciavam a implementação de, quiçá, três
safios para a elaboração de políticas públicas integradas. Disponível em http://
das mais importantes diretrizes da Política de Desenvolvimento Urbano,
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Acesso em 05/01/2010. depois contidas no texto do Estatuto da Cidade, quais sejam: da ges-
tão democrática e participação popular, da democratização do acesso a
propriedade urbana e do direito a cidade sustentável.
Naquela oportunidade concluía-se que a experiência implemen-
tada pela municipalidade rompia com a tradição jurídica de pro-
teção a propriedade privada, no plano ideológico. No entanto, no
plano jurídico-registrário e urbanístico a experiência de regulariza-
ção fundiária implementada pelo Município, no período já referido,
guardou algumas limitações, as quais seguirão apontadas no curso
do texto.

1 Advogada, mestre em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Assessora Jurídica da Secretaria de habitação e Saneamento do Estado do RS.

364 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 365
Veja-se que, no plano jurídico - matéria objeto desta abordagem - o
rompimento com a tradição jurídica de proteção à propriedade privada
foi parcial, pois os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988
careciam de regulamentação, especialmente no que diz respeito à usu-
capião coletiva. Por este motivo, os Municípios padeceram treze anos,
no aguardo de instrumental jurídico para atender tais demandas.
Somente com a regulamentação tardia é que a municipalidade foi
brindada com ferramenta jurídica capaz de atender de forma coletiva
a demandas de mesma natureza. Todavia, permaneceram limitações. A
dificuldade de identificar proprietários de glebas particulares ocupadas,
para fins de ajuizamento de ações de usucapião perdurou. Foram oito
longos anos.
Neste ano de 2011 comemoramos dez anos da vigência do Estatuto
da Cidade e oito anos da Edição da Lei Federal 11.977/2009, que ins-
tituiu o Programa Minha Casa Minha Vida, tendo criado a Demarcação
Urbanística, ferramenta jurídica que se apresenta como solução para o
enfrentamento de um dos maiores óbices à regularização das áreas pri-
vadas de ocupação consolidada. Após tantos anos de plantio, não teria
chegado a hora de colher o que se plantou? Neste sentidos passamos a
Vila Planetário antes e depois da “intervenção”
abordagem a seguir.

1. A Administração Popular antes mesmo da


vigência do Estatuto da Cidade – Vila Planetário,
exercitando um novo paradigma, 1989

Na primeira gestão da Administração Popular (1989-1992), se es-


tabeleceu um cenário onde esteve em disputa uma visão tradicional de
apropriação de terras no meio urbano, cujo padrão adotado era o da
mercantilização do solo, suplantado por outro, marcado pela democra-
tização do acesso à terra e à habitação, permitindo que a terra, no meio
urbano, cumprisse sua função social.
O atendimento à demanda por regularização fundiária da Vila Pla-
netário, com a manutenção dos ocupantes em área pública, num bairro
central da cidade, de alto valor imobiliário, representou uma ruptura
importante com uma ideologia que apostava na invisibilização2 dos po-
bres na cidade.
Anote-se aqui a existência de um conflito também ideológico nos
processos de Regularização Fundiária.
2 ALFONSIN, Betânia. Da Invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória legal da moradia de
baixa renda em Porto Alegre – Século XX, Porto Alegre, UFRGS, Porto Alegre, 2000.

366 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 367
2) A Experiência de Porto Alegre antes da maiores entraves no processo de regularização. Os títulos imprecisos,
vigência do Estatuto da Cidade - Plano a inexistência de fontes cartográficas por parte dos Cartórios de Regis-
Jurídico-Registrário e Urbanístico tro Imobiliário dificultou enormemente a pesquisa de propriedade para
ajuizamento das ações de usucapião. Por estes motivos, o ajuizamen-
Muitos observadores sustentam que a política de habitação ado- to das ações aguardou a satisfação da pesquisa cartorial por um bom
tada pela Administração Municipal de Porto Alegre, no período que se tempo. Há casos em que ações judiciais deixaram de ser ajuizadas pela
inscreve entre os anos de 1989 a 2004, representou um avanço, a pon- dificuldade de identificação dos proprietários das áreas usucapiendas.
to de poder vir a ser adotada por outros Municípios brasileiros. Essa Sem contar as situações em que os juízes retomaram a atualização da
política se caracterizou por incorporar as reivindicações do Movimento pesquisa cartorial no curso do processo, prejudicando a celeridade na
pela Reforma Urbana traduzidas na democratização do acesso à terra e prestação jurisdicional.
integração da população excluída à cidade formal.
Convém lembrar que, de um extenso rol de reivindicações do Mo- b) Entraves Urbanísticos - Reconhecendo os limites
vimento Pela Reforma Urbana, apenas dois artigos foram incluídos na de um processo complexo
Constituição Federal de 1988, o que foi suficiente para dar sustentação
a políticas que tiveram como eixo a redistribuição de terras e universali- A Constituição Federal de 1988, ironicamente, ao tratar das compe-
zação do direito à cidade. tências dos entes federados, estabeleceu no seu artigo 21 que compe-
O Município de Porto Alegre, tendo como sustentação a normativa fe- tia a União instituir diretrizes sobre Desenvolvimento Urbano, inclusive
deral, entre os anos de 1989 a 2004, criou o Programa de Regularização habitação, saneamento básico e transportes urbanos, remetendo para
Fundiária. Contemplou, por intermédio dele, as demandas do Orçamento os Estados, Municípios e Distrito Federal a competência para promover
Participativo. Criou a primeira Equipe de Assistência Jurídica Municipal programas de construção de moradias e melhoria das condições
de que se tem notícia no Brasil. Ajuizou, por meio da EAJM, inúmeras habitacionais e de saneamento básico. Inexistiam, todavia, políticas
ações individuais de usucapião. Desafetou áreas públicas de uso comum federais na área de habitação. Os Estados, Municípios e Distrito Federal,
para fins de concessão do direito real de uso. Instituiu gravame de AEIS a da mesma maneira, encontravam-se destituídos de dotação orçamen-
todas as áreas que ingressaram no Programa de Regularização Fundiária tária para o efetivo cumprimento dessas atribuições, ficando atirados
até 1998, conforme resolução do II Congresso da Cidade de Porto Ale- à própria sorte. Saliente-se, que, nesse contexto, a solução apresen-
gre, o que permitiu a utilização de padrões urbanísticos diferenciados na tada para suprir o déficit habitacional,pelo Governo Federal, foi a de
execução dos projetos de urbanização. Registrou loteamentos irregulares, disponibilizar empréstimos aos municípios brasileiros tendo como fonte
mediante utilização do Provimento “More Legal”, editado pela Corregedo- recursos provenientes do FGTS dos trabalhadores, por intermédio do
ria de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Programa Pró-moradia. Saliente-se que, somente os municípios com ca-
No entanto, existiram entraves durante o processo de implemen- pacidade de endividamento, poderiam se habilitar.
tação da política de regularização fundiária, alguns foram superados, Dentre outros, esse foi um dos fatores que contribuiu para que a
outros, continuaram carecendo de soluções. Para ilustrar segue citado Regularização Fundiária, em Porto Alegre, encontrasse limitações. Os
um, vinculado à demanda jurídica e registrária e outros vinculados às recursos disponíveis não eram suficientes para dar conta da demanda.
questões de ordem urbanística. Além disso os mesmos eram divididos anualmente entre uma série de
comunidades carentes, as quais pleiteavam regularização via Orçamen-
a) Entrave Jurídico-Registrário: to Participativo. As pessoas demandavam verba para urbanização rei-
teradas vezes, buscando a integral execução dos projetos urbanísticos.
Conforme relatos dos operadores da política da regularização fundi- Desta forma o processo de urbanização ia acontecendo gradualmente.
ária, a pesquisa cartorial se constituiu como um grande e, talvez, um dos Os moradores, além de disputarem a priorização da demanda por regu-

368 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 369
larização fundiária no processo do Orçamento Participativo necessita- O pós vigência: A usucapião coletiva
vam definir, no próprio local de ocupação, as prioridades para execução
das obras, motivo que, igualmente, contribuiu para a desmobilização Segundo muitos estudiosos, outra questão que merece destaque,
dos demandantes. por continuar inexplicável para as comunidades envolvidas no Proces-
Outro complicador foi o próprio processo de disputa de verba via so de Regularização Fundiária, é o de como as obras acontecem em
Orçamento Participativo. Ocorria que, a comunidade podia ou não vir descompasso com a regularização da posse da terra. O fato era que a
a ser contemplada. Aquelas comunidades que entravam na disputa e intervenção urbanística contemplava, senão toda, boa parte do núcleo
não ganhavam tinham a continuidade da obra frustrada. Caso não con- envolvido, e a intervenção jurídica contemplava situações individualiza-
templadas, poderiam ocorrer alterações fáticas na área o que implicaria das. Obras eram dinâmicas e regularização jurídica e registral: morosa.
na necessidade de execução de novo projeto urbanístico. Dadas as al- Essas questões deixam mais evidente a necessidade de adoção de insti-
terações referidas, possivelmente fosse necessário pleitear verbas para tuto como o da usucapião coletiva ou das ações plúrimas de usucapião
aquisição de área para reassentamento de moradores. para efeitos de regularização da posse da terra, não desmobilizando as
Assim, a insuficiência de recursos para a execução de todo o projeto pessoas que se organizam em função de problemas coletivos.
urbanístico constituiu-se como um entrave no processo de regulariza- E a usucapião coletiva veio e foi devidamente ajuizada em setembro
ção, embora tenham ocorrido inúmeras consolidações de situações de de 2001. Hoje comemoramos em Porto Alegre os dez anos de vigência
ocupação, por ocasião da execução de obras de infra-estrutura urbana. do Estatuto da Cidade e os dez anos de ajuizamento da primeira ação
Outro grande e delicado problema, conforme relatam os operado- coletiva de usucapião que, quiçá tenha se perdido no âmbito processual.
res da política de regularização fundiária, que se constituiu enquanto Ação sobre a qual não se tem notícia.
entrave para aprovação dos Estudos de Viabilidade Urbanística – EVU,
na Secretaria do Planejamento (SPM), foi a inexistência de padrões ur-
banísticos diferenciados a serem observados na execução de projetos 4) A Demarcação Urbanística na Lei n° 11.977/2009
urbanísticos de áreas ocupadas. Essa discussão rendeu bons pares de
anos, até a edição de um guia de recomendações de padrões urbanísti- Reconhecidamente o legislador por intermédio da Lei 11.997/09 ao
cos a serem utilizados na implantação de projetos urbanísticos de áreas introduzir no ordenamento jurídico a demarcação urbanística, promove
especiais de interesse social. avanço e simplificação no processo de regularização fundiária das ocu-
O Plano Diretor estabelecia padrões rígidos para o parcelamento pações irregulares.
do solo, em consonância com a Lei Federal n° 6766/1979 que cons- A Demarcação Urbanística coloca-se como alternativa para a regulariza-
tituíram-se enquanto óbices para a aprovação de projetos executados ção jurídica e registral daquelas áreas ocupadas cuja titularidade permane-
para áreas de ocupação, uma vez que dissociados dos padrões adota- cia não identificada, obstaculizando o ajuizamento das ações de usucapião,
dos para a cidade formal. Essas questões não representavam barreiras bem como daquelas em que os títulos apresentavam-se completamente
para implementação de obras, mas se tratavam de entraves para o ca- imprecisos, dificultando de igual maneira, o processo de regularização.
dastramento administrativo de vias, visando a publicação de decreto A ferramenta aqui tratada aplica-se a ocupações inseridas em par-
reconhecedor de sua existência, para posterior registro do arruamento, celamentos informais ou irregulares, localizadas em áreas urbanas públi-
perante o Cartório de Registro Imobiliário. cas ou privadas, predominantemente utilizadas para fins de moradia.
Observe-se que a definição de regime urbanístico diferenciado para A normativa federal estabelece o procedimento a ser adotado para
as áreas de assentamentos facilitou o registro dos mandados individuais fins de demarcação das áreas ocupadas que engloba desde a execução
de usucapião uma vez que cadastrado administrativamente o arruamen- e aprovação de projeto urbanístico, lavratura de auto de demarcação,
to, os lotes passavam a fazer frente para logradouro público regular de outorga de certidões de legitimação de posse até sua efetiva conversão
acordo com as exigências dos Ofícios Imobiliários em título de propriedade, mediante atendimento de requisitos.

370 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 371
Conclusão Este foi considerado como um projeto piloto na implementação dos
instrumentos previstos na Lei 11.977/2009. Esta iniciativa possibilita o
“Para tudo há seu tempo debaixo do sol”...Há tempo de plantar e co- registro do projeto de regularização do parcelamento da área e a emis-
lher o que se plantou - A Demarcação Urbanística na Lei 11.977/2009 são das certidões de legitimação de posse aos moradores.
Observa-se estar a um passo de colher o que arduamente se plan- Saliente-se que o cenário federal atual é favorável a implemen-
tou. Não estaria a demarcação urbanística a reclamar aplicabilidade? tação de projetos e programas com vistas à regularização fundiária de
Não esqueçamos que a consagração das garantias consubstanciadas no interesse social. Neste contexto podem os Estados, Municípios e Distrito
ordenamento jurídico encontram-se vinculadas à existência de políticas Federal, fazer uso da base legal, agora suficiente, e de verbas disponibi-
públicas que tenham por objetivo sua operacionalização. lizadas pela União, por intermédio, especialmente, do Programa Minha
A ruptura com a tradição jurídica de proteção à propriedade privada Casa Minha Vida e recursos provenientes do Fundo Nacional de Habita-
só se faz possível quando há a conjunção dos seguintes fatores: existên- ção de Interesse Social, objetivando o compasso entre a regularização
cia de base legal, programas vinculados à regularização fundiária e estru- urbanística, jurídica e registrária dos núcleos carentes.
tura político-administrativa capaz de atender a demanda. Consigne-se Considerando a base legal ora vigente e o contexto federal favorá-
que tais fatores devem estar aliados a políticas públicas comprometidas vel, é chegada a hora de colher o que se conquistou e preparar o terreno
com o ideário da reforma urbana, cujas diretrizes rompam com padrões para o plantio da nova safra.
tradicionais de apropriação do espaço urbano – na relevância da função
social da propriedade e do direito fundamental social à moradia. Além
disto, ditas iniciativas deverão observar a manutenção das famílias no REFERÊNCIAS
local de ocupação, admitindo o reassentamento, somente nos casos em
que as condições geológicas e topográficas não permitam a utilização ALFONSIN, Betânia. Da Invisibilidade à regularização fundiária: a trajetória
das áreas para fins de moradia. legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre – Século XX, Porto Alegre,
Tomemos como exemplo a experiência da própria União, que por in- UFRGS, Porto Alegre, 2000.
termédio do Ministério das Cidades, juntamente com a Fundação Bento SEVERO, Jacqueline Severo da. Irregularidade fundiária e usucapião especial
Rubião e a Secretaria Municipal de Habitação (SMH), Prefeitura da Cida- urbana : ruptura com a tradição jurídica de proteção à propriedade privada? A
de do Rio de Janeiro, atuaram em parceria no trabalho, que contou com experiência de Porto Alegre (1989-2004), UFRGS, Porto Alegre, 2005. http://
o apoio da Corregedoria Geral de Justiça do Estado e do 2º Ofício de www.anoreg.org.br
Registro de Imóveis averbando o primeiro Auto de Demarcação Urbanís-
tica de parte da favela da Rocinha (RJ), onde existem cerca de 5 (cinco)
mil domicílios. Trata-se de um marco para a regularização fundiária no
Brasil, com o início do processo de implantação dos novos instrumen-
tos criados pela Lei 11.977/2009, que regulamentou o Programa Minha
Casa, Minha Vida e a regularização fundiária de assentamentos em áreas
urbanas.
O trabalho consistiu na pesquisa fundiária dos imóveis integrantes do
Auto de Demarcação e seus confrontantes, na elaboração das plantas, dos
editais de convocação e memoriais descritivos, tanto do Auto quanto das
áreas remanescentes. Todo esse material foi encaminhado ao Cartório do
2º Ofício de Registro de Imóveis do estado do Rio de Janeiro, que junto
com a Corregedoria Geral de Justiça deu início ao processo de demarcação.

372 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 373
A política nacional de habitação e os
conjuntos habitacionais para idosos:
o caso de Araraquara-SP
Luzia Cristina Antoniossi Monteiro1
Carolina Maria Pozzi de Castro2
José Francisco3

Resumo: Com o aumento da população idosa no Brasil e no


mundo, os direitos essenciais à vida, como a moradia digna,
deve abarcar esse novo público, segundo as prerrogativas es-
tampadas no Estatuto do Idoso. As políticas públicas, ações
e programas elencados nesse especial diploma legal, serão
consolidados por meio das diretrizes e instrumentos expres-
sos no Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), apto a alavancar
questões atinentes ao desenvolvimento urbano e a sadia
qualidade de vida dos sexagenários. O presente artigo tem
como objetivo analisar a questão da moradia digna e a Po-
lítica Nacional de Habitação, ícones do surgimento da nova
Política Habitacional para o Idoso em cidades do Estado de
São Paulo, como é o caso de Araraquara que inaugurou em
dezembro de 2010 o primeiro condomínio exclusivo para ido-
so que auferem renda mensal de até um salário mínimo.
Palavras-chave: moradia digna, envelhecimento populacio-
nal, condomínios para idosos, políticas públicas urbanas.

1. Introdução

Com o aumento da população idosa no Brasil, crescem também os


problemas relacionados aos direitos sociais, em especial saúde e mo-
radia. Essa seleta parcela da população além de estar em acelerado
crescimento no mundo, demanda uma série de adaptações em termos
sócio-econômicos, espaciais e legais. O novo idoso ocupa mais e melhor

1 Advogada, mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Engenharia Urbana –


PPGEU da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, Docente do Curso de Graduação em
Gerontologia da UFSCar; cristinaantoniossi4@gmail.com
2 Arquiteta, mestre e doutora pela FAU-USP, Professora do Departamento de Engenharia Civil –
DECiv, da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar; ccastro@ufscar.br
3 Arquiteto, doutor em geografia pela UNESP- Rio Claro, Professor do Programa de Pós-Gradua-
ção em Engenharia Urbana-UFSCar; jfran@ufscar.br

374 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 375
o mercado de trabalho, envelhece com maior qualidade de vida e têm fundiária. Por isso a importância dos Planos Diretores Municipais cons-
seus direitos garantidos na lei federal 10.741/03, o Estatuto do Idoso. truírem essa política, uma vez que elas estão sujeitas à ação de forças
Analisando a problemática habitacional consolidada no Brasil atra- do nível local, freqüentemente conservadoras.
vés das várias décadas de governos populistas, nota-se que as políticas Nesse contexto afirma “em muitos casos, o desenho político é re-
desenvolvidas sempre foram pontuais, até hoje não solucionam o morar fratário à abertura de espaços centrais para a moradia popular, reser-
dignamente, sendo consequência direta do processo de urbanização in- vando-se aos mais pobres o lugar de sempre: nas bordas da cidade”
tenso, da “drenagem nos campos” (CHOAY, 2005: 03) e da retenção da (CYMBALISTA, 2005).
propriedade privada nas mãos de poucos. Marta Arretche (1996) informa que existem elementos de continui-
Nesse sentido, corrobora o pensamento da Igreja Católica que, atra- dade na trajetória do federalismo brasileiro que podem ser sintetiza-
vés da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil explicita: “sobre a pro- dos pela centralização decisória, presente também na Constituição de
priedade particular pesa uma hipoteca social, concluímos que o direito 1988, assim como aparecia na Constituição de 1946. Ou seja, tem-se
natural à moradia tem primazia sobre a lei positiva que preside à apro- um novo sistema político-democrático, mas fundamentado em bases da
priação do solo” (CNBB, 1982: 28). época da ditadura.
A base legal da moradia social no Brasil é preconizada pelo artigo 6º Segundo a autora, é certo que a nova ordem constitucional esta-
da Constituição Federal, elencada dentre os direitos sociais, além de figu- beleceu a descentralização do poder político outorgando ao município,
rar em diplomas legais e tratados internacionais. Contudo, ainda que não especialmente - enquanto parte da federação, responsabilidades e com-
constasse no rol do artigo 6º, a moradia é princípio de direito à vida, além petências tais - que chegam a ser por vezes incompatíveis com suas
de ser fator preponderante para a redução das desigualdades sociais e possibilidades política e financeira; a gestão da cidade, porém, fica atra-
regionais e da marginalização e redução da pobreza, conforme estabelece vancada pelas barreiras impostas pelo mesmo Estado que concentra na
o artigo 3º da Carta Magna, como expressão dos objetivos fundamentais ficção jurídica chamada União, e por vezes na figura dos Estados, deci-
da República Federativa do Brasil. Os direitos do idoso, a despeito de es- sões importantes como, por exemplo, a criação de normas gerais sobre
tarem regulados especificamente, estão abarcados nesse rol substancial. direito urbanístico (artigo XXIV, inciso I da Constituição Federal).
A história da habitação no Brasil demonstra que a questão sem- Em relação à moradia para idosos a política habitacional é ainda
pre foi intrincada, e o acesso ao mercado privado cada vez mais restrito mais restrita, tanto quanto pontual, embora ela esteja explicitamente
ao longo do tempo; além disso, as políticas irrelevantes fizeram com que garantida no Estatuto do Idoso. O novo perfil populacional que se conso-
à maioria da população sobrassem apenas as alternativas de moradia lida de agora em diante em todos os países do mundo, exige do Estado
“ilegais ou informais”. Segundo Luiz Kohara o problema da moradia no e da sociedade ações efetivas voltadas à garantia dos direitos funda-
Brasil “é resultante do modelo de desenvolvimento econômico e políti- mentais das pessoas consideradas na faixa do envelhecimento.
co, no qual prevalece o interesse pela obtenção de lucros sobre qual- Em relação aos condomínios exclusivos para idosos há a preocupa-
quer outro interesse, modelo esse que sempre foi imposto pelas elites ção da ausência de convivência do grupo com pessoas de outras idades.
dominantes” (KOHARA, 2009: 29). Assim a falta de integração intergeracional no local da moradia é forma
Conforme Cymbalista (2005) questões regulamentadas na Consti- de segregação e exclusão social? Nesse sentido, moradias especialmen-
tuição de 1988 como saúde (SUS), assistência social (LOAS), proteção te construídas para pessoas com sessenta anos ou mais são prejudiciais
da criança e do adolescente (ECA), foram implementados em prazo rela- à qualidade de vida? Algumas cidades já estão experimentando esse
tivamente curto, mas a política urbana demorou mais; e a política habi- tipo de habitação, como é o caso de Araraquara-SP, mas as respostas a
tacional segue sem regulamentação completa, ainda hoje com o progra- essas questões somente o tempo trará.
ma do governo federal Minha Casa, Minha Vida. De toda sorte, o fato é que, segundo dados da Organização Pan-
O autor afirma ainda que apesar de complexa a questão dos recur- Ame­ricana de Saúde (OPAS/1998), no século XX ocorreu um aumento
sos financeiros, difícil é articular a política habitacional com a política da longevidade e uma diminuição da taxa de fecundidade, e no século

376 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 377
XXI a saúde da pessoa idosa será o foco principal para desenvolvimento desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade.
econômico e social dos países. Desse modo a questão da moradia digna, Valem como pressuposto do gozo dos direitos individuais na medida
ínsita à própria vida e à saúde do ser humano, deve refletir e contribuir em que criam condições materiais mais propícias ao auferimento da
igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condições mais com-
para consolidar de forma positiva as questões sócio-econômicas do Bra-
patíveis com o exercício efetivo da liberdade (SILVA, 1997: 277).
sil.
Os direitos sociais dependem de prestações positivas do Estado,
2. A questão habitacional no Brasil
assim, em relação à moradia, as políticas públicas são imprescindíveis,
pois do que adianta o homem ter trabalho ou saúde se não tiver para
O entrave da questão habitacional é nitidamente perceptível ao lon-
onde voltar? Ou então: há trabalho ou saúde sem a segurança e o acon-
go dos governos que se seguem. Além disso ressalta-se que ela só foi
chego do lar? Importa para o homem, o sentido psicossocial e a salubri-
incluída nos itens referentes aos direitos sociais, previstos no artigo 6º
dade que a casa representa. Eder Sader corrobora esse entendimento:
da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988, após 12 anos de
vigência, através da redação dada pela Emenda Constitucional nº 26, “Em São Paulo, como em qualquer metrópole capitalista, o lugar de
de 14 de fevereiro de 2000. moradia constitui a base onde se realiza a reprodução da força de
O artigo 6º, após a Emenda ficou nos seguintes termos: “São di- trabalho; onde o trabalhador recompõe suas energias para retomar
reitos sociais a educação, a saúde,o trabalho, a moradia, o lazer, a se- aquela atividade que é decisiva para conformação e os rumos da so-
gurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a ciedade: a produção de bens úteis, que é também produção de valo-
assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. res de troca, os quais estabelecem a forma do intercâmbio essencial
O Estado Federado é responsável pela promoção de políticas pú- entre indivíduos. Da lógica do sistema, pois, o lugar de moradia é base
para um tempo de recomposição, necessário em função da produção
blicas tendentes mitigar problemas sociais, especialmente os de origem
capitalista” (SADER, 1988: 99).
habitacional, visando a realização dos preceitos de uma sociedade de-
mocrática, ainda que seja evidente os entraves como ineficiência da ges-
Além disso, para o mesmo autor, “embora submetida aos movimen-
tão, debilidade nos recursos financeiros, ausência de vontade política,
tos dominantes da reprodução capitalista, a família é sede de outros va-
dentre outros fatores.
lores e princípios de fundamento que não são redutíveis” (SADER, 1988:
Tendo em vista a democracia participativa que determina e integra
99). E a família necessita de um espaço adequado para dar o nome de
os rumos da legislação, nesse panorama, não parece que sobre alterna-
“lar”. O idoso merece um lar para aconchegar sua descendência.
tiva à gestão e às instituições do Estado Federado, senão a prática laten-
A conquista da casa própria, que ao longo dos anos apareceu como
te de lutar pacificamente para alavancar a habitabilidade, em especial,
alternativa à alugada e esteve relacionada a razões instrumentais para
atinente aos direitos à moradia digna da pessoa idosa.
diminuir os dispêndios com habitação, constituindo uma reserva de va-
Os direitos sociais, previstos na Constituição e no Estatuto do Idoso,
lor. Ela expressa também um valor cultural profundamente arraigado e
incluindo-se o da habitação, são direitos fundamentais do ser humano.
reafirmado, “a busca de estabilidade contra incertezas de mudanças não
TORRES (2001) afirma que a teoria destes direitos vem se desenvolven-
queridas, a segurança para coesão familiar, o poder de organizar seu
do a partir do interesse universal pelos direitos humanos.
próprio espaço” (SADER, 1988: 68), sendo um símbolo de consolidação
O constitucionalista José Afonso da Silva conceitua direito social:
que passa, inclusive, de geração em geração.
Nesse prisma, dentre as necessidades básicas a mais essencial é o
[...] podemos afirmar que os direitos sociais, como dimensão dos di-
reitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcio- direito ao abrigo, por isso a moradia deve fazer parte do mínimo essen-
nadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas cial para a sobrevivência humana. Torres leciona: “O mínimo existencial
constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais está ligado aos direitos fundamentais e deve ser garantido pelo Estado”
fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais (2004: 262). O autor afirma que todos merecem, para a sobrevivência,

378 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 379
igualdade de chances para a garantia das condições mínimas e para o Por esse motivo, medidas devem ser implementadas em conjunto, en-
florescimento da igualdade social, que pode ser diferenciada, dado o tre a sociedade e a administração pública, nas três esferas de governo, para
esforço de cada um. mitigar a demanda habitacional. A gestão pública deve orientar seus maio-
A lei da assistência social, nº 8742, de 07 de dezembro de 1993, res esforços no sentido de aprimorar a legislação municipal elaborando có-
garante o mínimo indispensável para a sobrevivência humana afirmando digos de obra, leis de parcelamento do solo, legislação de zoneamento,
nesses termos: para possibilitar chances maiores de acesso ao mercado imobiliário.
Aplicar a lei e os instrumentos legais existentes no Estatuto da Cida-
“A assistência social realiza-se de forma integrada às políticas seto- de, no Código Civil e em especial os índices de unidades habitacionais
riais, visando ao enfrentamento da pobreza, à garantia dos mínimos previstas no Estatuto do Idoso, é dever do administrador público como
sociais, ao provimento de condições para atender contingências so-
exemplo de atendimento à função social da propriedade “traduzida em
ciais e à universalização dos direitos sociais”.
satisfação de necessidades humanas vitais alheias à do proprietário”
(ALFONSIN. J. T., 2002: 09).
A universalização dos direitos sociais contribui para que todos os
cidadãos possam gozar do “bem-estar” proporcionado pelas políticas
públicas. No caso do idoso essa necessidade se torna ainda mais pre-
3. Breve histórico das Políticas Habitacionais
mente dada as particularidades e vulnerabilidades das pessoas sexa-
genárias.
No final do século XIX, a crise da moradia já havia se delineado e
A recente preocupação com a moradia garantida especialmente
as epidemias da época, aliadas à arbitrariedade e aos discursos sanita-
para o idoso, nos remete à luta pela inclusão da moradia na Carta Cons-
ristas e políticos, contribuíram de forma tênue para a evolução do pro-
titucional, alcançada sob a forte influência dos movimentos sociais enga-
blema. Melhor para a produção rentista da moradia, que se tornou um
jados na questão habitacional e à mobilização do Movimento Nacional
excelente negócio para o empresariado do setor, que obtinha com o
pela Reforma Urbana (MNRU) comprometido com a luta pela busca in-
aluguel uma fórmula para “fazer dinheiro” fácil.
cessante da inclusão e pela cidadania.
Nos anos de 1940/50 o Estado passa a intervir com políticas mais
Nesse sentido, a moradia, ainda que necessite de programas de ges-
intensificadas no final do Estado Novo. Embora houvesse condições - e
tão integrada entre as esferas de poder do Estado, deve ser considerada
tudo indicava que uma política habitacional seria concretizada eficien-
ínsita no mínimo necessário para o homem, preconizada pela assistência
temente - prevaleceram o interesse do mercado econômico e o corpo-
social. Não se trata de “entregar” ou “dar” a moradia para a população,
rativismo.
mas proporcionar, através de políticas e programas públicos/privados,
Na década de 1940 o sonho da casa própria protagonizou uma
condições para a obtenção do mínimo existencial necessário - a casa –
balburdia habitacional, embora o Estado e o mercado imobiliário não
no mercado imobiliário formal, em condições igualitárias.
conseguiram conter, embora tentativas como a lei de congelamento dos
O panorama nacional encontrado hoje aponta para o fato de que, na
aluguéis em 1942 e a criação da “Fundação da Casa Popular” objetivan-
grande maioria das vezes, somente uma pequena parcela tem acesso ao
do o financiamento de moradias no ano de 1946.
comércio formal no mercado de imóveis, que é muito restrito. Segundo
Os Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPs criados pelo go-
Maricato (2001), em algumas cidades esse índice não ultrapassa 30%.
verno Vargas, como medida reestruturadora do setor previdenciário pro-
Sem opção, a população de baixa renda – num percentual de 60% - se
responsabiliza pelas próprias moradias. Em relação aos idosos, embora piciaram recursos para financiar moradia entre os anos 1937 e 1964,
a legislação garanta mínimo de 3% das unidades habitacionais produzi- quando foram extintos sendo suas atribuições passadas ao BNH.
das pelos programas públicos ou com recursos públicos, o idoso tem di- Com a intervenção do Estado, que importou o modelo europeu de
ficuldades de financiar uma unidade habitacional porque não há ainda, legislação sanitarista, tentava-se acabar com as doenças que assolavam
uma linha de crédito própria para essa faixa etária. as cidades devida às precariedades dos loteamentos e a deficiente pres-

380 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 381
tação de serviços públicos deixados à cargo de empresas privadas. De put, afirma que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
acordo com Nabil Bonduki (2004), naquela época, a cidade ficou à mer- natureza. Somente essa afirmação bastaria para proteger os direitos
cê da ordem sanitária, que cometia, inclusive, atrocidades com a popu- fundamentais do ser humano, independentemente da faixa etária em
lação; assim, casas foram interditadas, demolidas e até queimadas, e a que ele se encontre.
inviolabilidade do domicílio tornou-se letra morta da lei. Porém, a República Federativa do Brasil entendeu por bem garantir
Em 1964, foi criado o Banco Nacional da Habitação - BNH, ligado um rol de proteção específica às crianças e aos adolescentes, através do
ao Sistema Financeiro Nacional - SFN, cujo objetivo era atender às ne- Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e aos idosos, considerados
cessidades habitacionais da população carente. Foram produzidas qua- em nossa legislação as pessoas com 60 anos ou mais. No caso das pes-
tro milhões de moradias, mas quem se locupletou com os benefícios soas sexagenárias a legislação estabelece diretrizes, políticas públicas,
instituídos para a aquisição da moradia social foi a classe média e os es- programas e projetos que visam a promoção da autonomia e da quali-
peculadores. Segundo Cymbalista (2005) apenas cerca de um terço do dade de vida das pessoas.
total de unidades habitacionais produzidas nessa fase, foram destinadas No ano de 1994, a lei federal nº 8.842, denominada lei da Política
aos setores populares. Nacional do Idoso regulamentada pelo Decreto Federal nº 1.948, de 3
Ao longo da história, o capital imobiliário poderoso, predador e es- de julho de 1996, foi promulgada com o objetivo de assegurar os direi-
peculativo se apodera, concentra e manipula recursos em detrimento do tos sociais do idoso, criando condições para promover sua autonomia,
acesso à população carente, instaurando um ciclo vicioso: imóvel mais integração e participação efetiva na sociedade.
escasso, melhor localizado, mais caro e cada vez mais inacessível. Rena- Essa legislação já estabelecia a obrigatoriedade do poder público
to Cymbalista (2005) atribui o aumento da precariedade habitacional ao garantir e assegurar habitação ao idoso facilitando o seu acesso aos
colapso da política de financiamento habitacional do país em meados da programas de moradia digna, necessidade de diminuição das barreiras
década de 80, com a quebra e desmonte do BNH. arquitetônicas nos espaços públicos e privados.
Após a promulgação da Constituição Federal em 1988, segundo Em 2003 é promulgado o Estatuto do Idoso, lei 10.741, que disci-
Cymbalista (2005) algumas experiências municipais de políticas habita- plina de forma completa e mais abrangente que a Política Nacional do
cionais foram fundamentais para responder aos desafios, influenciando Idoso, a integral que expressa o direito do idoso à moradia digna em
decisivamente a formulação de propostas em nível nacional, especial- capítulo dedicado exclusivamente à habitação (artigos 37/38).
mente quanto à participação da população, destacando-se os movimen- O artigo 38 estabelece que 3% das unidades em programas ha-
tos sociais engajado na questão da moradia. Como por exemplo, em bitacionais, públicos ou subsidiados com recursos públicos, devem ser
São Paulo (2001/2004) a luta para garantir habitação de interesse social destinados ao idoso. Esse percentual é fixo, porém há tramitando no
nas regiões centrais do município. Em 2003, houve a maior mobilização Congresso Nacional o PL 150/08 que visa introduzir a expressão “pelo
já vista de setores da sociedade, pela participação popular na política menos” 3%, dando oportunidade para que a porcentagem seja aumen-
urbana e habitacional no Brasil. A partir de agosto, foram realizadas mi- tada, elevando-se a quantidade de unidades destinadas ao idoso.
lhares de Conferências Municipais das Cidades e m muitos municípios. O mesmo artigo disciplina ainda, que o idoso tem prioridade na
aquisição de imóvel para moradia própria, mas em relação ao financia-
mento de moradias, não existe na Caixa Federal uma linha de crédito ex-
4. Envelhecimento populacional clusiva. Porém, a idade do comprador influencia na decisão do crédito.
e a questão da habitação Para os idosos com renda familiar entre três e cinco salários mínimos,
uma opção para conseguir comprar a casa própria é utilizar o chamado
A Constituição Federal de 1988 enfatiza, logo no artigo 1º, a cida- crédito solidário, que tem o objetivo de financiar moradias para pessoas
dania e a dignidade humana (incisos I e II). Em seguida o artigo 5º, ca-
de baixa renda.

382 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 383
Essas importantes conquistas legais se deram tendo em vista que o 5. A nova Política Habitacional para
Brasil não é mais um país de jovens. Vivenciamos um desordenado pro- Idoso do Estado de São Paulo: Vila Dignidade.
cesso de envelhecimento, sem bases sólidas para sua consolidação. A
expectativa de vida do brasileiro que no início do século XX era apenas Atento à nova sistemática legal no que diz respeito à moradia para
33 anos, hoje se aproxima de 70 anos. Nesse contexto, ressalta-se a idoso, o Programa Vila Dignidade foi instituído pelo Estado de São Paulo
importância das ações de profissionais multidisciplinares preocupados pelo Decreto nº 54.285, de 29 de abril de 2009, para oferecer aten-
com a questão e as organizações de idosos que lutaram para aprovar dimento às pessoas na faixa etária do envelhecimento de possui baixa
leis que garantissem um adequado sistema democrático inclusivo que renda. Este programa tem por objetivo a construção de pequenas vilas
proporcione melhor qualidade de vida para as pessoas consideradas na com até 24 moradias e uma área de convivência social.
faixa etária do envelhecimento. A intenção desse programa é contribui para a prevenção do asila-
Ademais é nesse sentido que o artigo 230 da Carta Magna estabe- mento de pessoas com 60 anos ou mais, promovendo sua independên-
lece o dever da família, da sociedade e do Estado cuidar e proteger o cia e sua autonomia. concebendo a moradia como um componente da
idoso: “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pes- atenção integral a essa parcela da população. Os requisitos para idosos
soas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo entrarem nesse programa são: pessoas com 60 anos ou mais, indepen-
sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. dentes para a realização de atividades de vida diária; renda mensal de
Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
até 2 (dois) salários mínimos; preferencialmente sós ou sem vínculos
(IBGE/2002) a partir da década de 50 até final dos anos 90 houve o
familiares sólidos; residente no município há pelo menos dois anos.
aumento do número de pessoas idosas na ordem de 8 milhões por ano.
O programa é implementado nas cidades que aderirem e se com-
Assim, em 1950, eram cerca de 204 milhões de idosos no mundo. Em
prometerem com as regras estabelecidas pelo governo do estado. Os
1998, quase cinco décadas depois, este contingente alcançava 579 mi-
recursos do tesouro do Estado de São Paulo são repassados pela Se-
lhões de pessoas (IBGE, 2002).
cretaria Estadual da Habitação à CDHU, que executa a construção em
As projeções indicam que, em 2050, a população idosa será de
1.900 milhões de pessoas, equivalente à população infantil de 0 a 14 terreno próprio ou da Prefeitura. A responsabilidade do município nessa
anos de idade. Uma das explicações para esse fenômeno é o aumento, importante empreitada é a aprovação de legislação pertinente e dos
verificado desde 1950, de 19 anos na esperança de vida ao nascer em projetos junto aos órgãos competentes, além da gestão desses espaços
todo o mundo (IBGE, 2002). e escolha dos beneficiados.
Ainda, segundo o IBGE/2002 dados demonstram que, atualmente, Interessante ressaltar que em razão do crescente envelhecimento
uma em cada dez pessoas tem 60 anos de idade ou mais e, para 2050, da população no país, e atendendo a legislação vigente no que tange
estima-se que a relação será de uma para cinco em todo o mundo, e de o direito e a prerrogativa do idoso morar com dignidade, atualmente
uma para três nos países desenvolvidos. Conforme projeções, o número não somente os programas públicos contemplam essa seleta população,
de pessoas com 100 anos de idade ou mais aumentará 15 vezes, pas- mas também as empresas privadas estão de olho nessa parcela da po-
sando de 145.000 em 1999 para 2,2 milhões em 2050. pulação. Assim, estão se adaptando à nova realidade e empregando nas
Dados do IBGE/2002 afirmam que no Brasil as pessoas centenárias suas construções, os padrões adequados a qualquer fase da vida, que
somavam 13.865 em 1991. No ano 2000 chegam a 24.576, apontan- inclua o idoso de forma igualitária.
do um aumento de 77%. São Paulo tem o maior número de pessoas A cidade de Avaré, localizada no interior do Estado, é a primeira a
com 100 anos ou mais (4.457), seguido pela Bahia (2.808), Minas Ge- inaugurar o condomínio Vila Dignidade, fotografia do local abaixo:
rais (2.765) e Rio de Janeiro (2.029) (IBGE, 2002).

384 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 385
consegui terminá-la em dezembro de 2010. A construção do conjunto
enfrentou inúmeros problemas, como a necessidade de drenagem do
solo até o bombeamento do esgoto para fora do condomínio. As foto-
grafias abaixo mostram a construção do conjunto habitacional na fase
de acabamentos e no dia da inauguração.

Vila Dignidade, Programa habitacional para idoso do Estado de São Paulo.

6. O Caso de Araraquara-SP

A cidade de Araraquara, localizada a cerca de 270 km da capital, na


região central do Estado de São Paulo é hoje uma cidade de economia
variada e comércio forte, elevado nível de ensino e grande vocação para
o turismo. Segundo o site oficial da cidade tem 100% de água e esgoto Respectivamente o condomínio na fase de acabamentos e vista do condomínio Recan-
tratados e inúmeros patrimônios históricos e culturais totalmente pre- to Feliz no dia da inauguração (MONTEIRO,Cristina/ 2010)
servados.
No município, a exemplo do que deve acontecer nos próximos anos
nas demais cidades do país, está se adequando às novas regras e à le-
gislação que especifica os direitos dos idosos guardados no Estatuto. No
que tange à questão da moradia, a cidade, inaugurou o primeiro condo-
mínio de usos exclusivo para pessoas com 60 anos ou mais, chamado
Recanto Feliz, no dia 17 de dezembro de 2010. Foram contemplados 33
idosos que irão habitar as 33 casas localizadas no conjunto habitacional
elaborado nos moldes de condomínio fechado. O perfil contemplado
para escolha dos novos habitantes, seguiu critérios rígidos, como renda
de até 1 salário mínimo e a capacidade de auto-cuidado do ancião.
Esse projeto habitacional não segue os padrões preconizados pelo
desenho universal, nem às normas de acessibilidade previstas em legis-
lação federal. Além disso, não está de acordo com o programa Vila Dig-
nidade, pois teve início anterior a esse, no ano de 2005. A gestão atual
herdou a obra abandonada, pela empresa licitada na gestão anterior e

386 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 387
Além desse conjunto recém inaugurado, a cidade está construindo morar dignamente no espaço urbano, seja em condomínios especial-
outro condomínio para idosos, nos padrões preconizados pela nova Polí- mente construídos para idosos ou conjuntos habitacionais intergeracio-
tica Habitacional do Estado, o projeto Vila Dignidade. Esse será entregue nais. Importante lembrar que políticas habitacionais afirmativas dimi-
aos moradores no mês de abril de 2011, seguindo todos os critérios de nuem de forma reflexa, as ocorrências de idosos colocados em situação
seleção estabelecidos pelo governo do Estado. de abandono em asilos e casas de repouso.
Diante desses projetos habitacionais especiais, como o Recanto Fe- No caso de Araraquara-SP, como o condomínio Recanto Feliz, é uma
liz e o Vila Dignidade, fica a questão em aberto, que só o tempo respon- experiência muito nova, resta aguardar um certo tempo para tirar as
derá: esses conjuntos diante da peculiar condições: exclusividade aos conclusões sobre o morar entre idosos, se constitui uma forma de inclu-
idosos, favorecem ou dificultam a inclusão social? A falta de convivência são, ou simplesmente construiu-se um novo gueto discriminatório de um
com outras gerações no local de moradia não constitui uma preocupa- grupo social.
ção ou forma de segregação de grupos?

Referências
7. Considerações Finais
ALFONSIN, Jacques Távora. In:MATTOS, Liana Portilho.(Org.) Estatuto da Ci-
Podemos considerar pela análise feita no artigo que as questões dade comentado. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002.
da moradia digna e do envelhecimento populacional são equitativamen- ARRETCHE, Marta. Federalismo e políticas sociais no Brasil.: problemas
de coordenação e autonomia. São Paulo em perspectiva, v. 18 n. 2 p. 17-26,
te intrincadas e estão diretamente relacionadas. Portanto posturas do
20004.
poder público e da sociedade como um todo são imprescindíveis para BONDUKI, Nabil. Origens da habitação no Brasil. São Paulo: Estação Li-
mitigá-las. O idoso, como qualquer outro ser humano, necessita do abri- berdade, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo [FAPESP],
go para sobreviver, é direito fundamental estabelecido na Constituição 2004.
Federal de 1988. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível
Políticas públicas devem ser implementadas nas cidades, seguindo as em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.
htm>. Acessado em: 11 de outubro de 2010.
peculiaridades locais e o novo perfil populacional, para tanto, instrumen-
BRASIL. Lei nº 10.741, de 1 de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do
tos e diretrizes estão postos no ordenamento jurídico, em especial nos Idoso e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial [da] República Federativa
Estatutos do Idoso e da Cidade. Ambos constituem arcabouço legal indis- do Brasil.
pensável para garantir a implementação do direito à cidade, em especial BRASIL. Lei N° 8842, de 4 de janeiro de 1994. Dispõe sobre a política na-
ao direito de morar com dignidade, independentemente da faixa etária, cional do idoso, cria o Conselho Nacional do Idoso e dá outras providências.
mas em especial abarcar as demandas dos novos idosos do século XXI.. Disponível em: < http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/
dh/volume%20i/idosolei8842.htm >. Acessado em: 17 de dezembro de 2010.
Essas questões devem passar pelo planejamento da cidade, imple-
CYMBALISTA, Renato. Refundar o não fundado: desafios da gestão democráti-
mentar a função social da propriedade, em áreas de ZEIS (zonas es- ca das políticas urbana e habitacional no Brasil. Disponível em http://habitao-
peciais de interesse social) e AEIS (áreas especiais de interesse social), -social.blogspot.com/2007/01/seminrio-estratgico-sobre-o-fehis.html, acesso
visando a inserção do idoso no contexto do processo decisório-partici- em 17/12/2010.
pativo, relativo à questão habitacional. O Brasil está avançando nessa CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL [CNBB]. Solo Urbano e
problemática, pois já instituiu na legislação federal, que protege a pes- Ação Pastoral. São Paulo: Paulinas, 1982.
CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2005.
soa com 60 anos ou mais, o direito à moradia digna (artigo 37 e 38 do
IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.   Perfil dos Idosos Respon-
Estatuto do Idoso). sáveis pelos Domicílios, 2002. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/
Os Estados e principalmente o município tem papel preponderante presidencia/noticias/25072002pidoso.shtm. Acessado em 17 de dezembro de
na implementação de programas e projetos que possibilitem o idoso 2010.

388 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 389
KOHARA, Luiz Tokuzi. Relação entre as condições da moradia e o desem-
penho escolar: estudo com crianças residentes em cortiços. Tese de Dou-
A regularização fundiária
torado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. São Paulo, 2009. e a participação social
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades alternativas para crise urbana. Petró-
polis: Vozes, 2001. Tiago Gonçalves da Silva1
Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). 25ª Conferência Sanitária Pan-
-Americana - 50a Sessão do Comitê Regional. Washington, D.C., 21-25 setem-
bro 1999Disponível//www.portalterceiraidade.org.br/horizontais/noticias_cida- Resumo: O trabalho apresenta como foco central a análise
dao/anteriores/anterior0084.htm da participação social nas ações de regularização fundiária
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janei- brasileira e do Recife/PE. Elege como foco de análise o equa-
ro: Paz e Terra,1988. cionamento do direito à moradia e do acesso à terra urbani-
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: zada nos assentamentos informais. Tem como hipótese cen-
Malheiros, 1997. tral que o Estado atua na dispersão dos conflitos inerentes à
TORRES, Ricardo Lobo. Teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: luta pela posse da terra, suavizando os movimentos sociais
Renovar, 2001. e arrefecendo as formas de participação social. Diante dis-
to, analisa a evolução da regularização fundiária no Brasil
e relata a história desta ação no Recife. Destaca por fim, o
contraponto da evolução dos programas e da legislação, no-
tadamente com a Lei nº 11.977/2009, sobre o tema da re-
gularização fundiária em relação às formas de participação
social, pontuando até que ponto as ações de regularização
contribuíram para o arrefecimento dos movimentos sociais,
dispersando os conflitos pela terra urbana.
Palavras Chave: Regularização Fundiária, Participação So-
cial, Mediação, Conflitos, Estado, Direito, Política Urbana,
Direito à Moradia.

1 - INTRODUÇÃO

O tema da regularização fundiária entra de vez no discurso da agen-


da política brasileira, capitaneada pela ação do Ministério das Cidades,
principalmente, com a promulgação da Lei Federal nº 11.977/2009
que formalizou, juridicamente, o conceito de regularização fundiária já
utilizado na doutrina brasileira.
Os movimentos sociais de luta pela moradia explodiam no país nos
anos de 1970-80, culminando com um grande esforço para que as fave-

1 Doutorando (2011) e Mestre em Desenvolvimento Urbano - MDU pela Universidade Federal de


Pernambuco (2009) e Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (1998).

390 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 391
las fossem reconhecidas no tecido urbano das cidades, bem como para Neste contexto, o Ministério das Cidades, instituído no ano de
transformar os anseios pela moradia em direito. 2003, em parceria com gestores públicos estaduais, municipais e com
No Recife, verifica-se a luta pela criação das ZEIS e pela institucio- os diversos segmentos sociais integrantes do Conselho Nacional das Ci-
nalização do PREZEIS, através de Lei Municipal que visa garantir a exe- dades, vem construindo uma Política Nacional de Regularização Fundi-
cução da regularização fundiária em todos os seus aspectos, garantindo ária em áreas urbanas. O Ministério sinaliza para diversos programas
uma melhoria urbanística da área, a legalização jurídica dos lotes e um que apóiam Estados e Municípios e atuam diretamente na regularização
incremento na cidadania da população. fundiária de interesse social, buscando consolidar o direito à moradia
Neste artigo, buscamos demonstrar o atual estágio da política de dos habitantes dos assentamentos informais, bem como a melhoria das
regularização fundiária praticada no Brasil, entendendo com uma das condições de urbanização das áreas trabalhadas.
ações que visam garantir a efetivação do direito a moradia. Resgatamos Ainda segundo o Ministério das Cidades, os resultados mostram
o histórico de lutas para implementação da regularização fundiária no que o tema da regularização fundiária entrou nas agendas municipais
Recife, trazendo princípios da política urbana que antecederam a forma- e estaduais de política urbana, dentre as quais foram selecionadas 120
lização pela Constituição Federal de 1988. experiências para publicação do Ministério das Cidades (2009), envia-
Tecemos comentários sobre a participação social e o seu desen- das por diferentes atores que implementam e elaboram ações de regu-
volvimento, advindos de um período de crise do Estado do bem es- larização fundiária. Essa publicação foi lançada na ocasião de abertura
tar social, como também, do período de redemocratização dos países do Seminário de Regularização Fundiária Urbana no Brasil, realizado no
sul-americanos que proporcionaram uma grande participação social da mês de outubro de 2009, em Brasília, no qual tivemos oportunidade
população, mas, no entanto, não deixamos de apontar uma das conse- de participar na qualidade de Gerente de Regularização Fundiária da
qüências verificadas que é o arrefecimento dos movimentos sociais. Prefeitura do Recife.
Por fim, ressaltamos que a tendência atual do estágio da regulari- Verifica-se um esforço nacional, impulsionado por ações do Gover-
zação fundiária não foi acompanhada de uma renovação nas formas de no Federal, pela regularização fundiária, para implementação prática no
participação social, tornando a participação num instrumento de refe- que diz a Constituição Federal Pátria, garantindo a todos os cidadãos
rendar as decisões políticas dos governos, mantendo a tensão social um local digno para morar.
em níveis compatíveis com o processo de acumulação de capital, se O Governo Federal têm apoiado com transferência de recursos e
caracterizando como mais uma ação política de mediação de conflitos. realização de capacitações os Estados, Municípios, ONGs, Associa-
O cerne da questão fundiária que é o instituto da propriedade, continua ções de moradores, defensorias públicas e agentes locais que atu-
sem uma discussão profunda, servindo de manutenção de um grande am em comunidades pobres, no intuito de promover a regularização
aparato de latifúndios fundiários urbanos. fundiária. Além disso, o Ministério das Cidades incluiu a temática da
regularização fundiária nos diversos programas desenvolvidos sob a
responsabilidade das Secretarias Nacionais de Habitação e Sanea-
2 – PANORAMA ATUAL DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA mento Ambiental, bem como nas ações incluídas no Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), buscando garantir a regularização
Regularização fundiária, atualmente, deixa de ser uma vontade dis- fundiária plena, exercida em todos os seus aspectos (Ministério das
cricionária do poder público, constituindo-se num direito subjetivo do Cidades, 2009).
morador ocupante. A regularização fundiária de interesse social é uma Além das ações de ordem de gestão política, é imperioso comentar
obrigação do poder público, que deve implementá-la como uma das for- a Medida Provisória nº. 459, de 25 de março de 2009, aprovada pelo
mas de concretizar um direito dos cidadãos brasileiros, que se configura Congresso Nacional como Lei Federal nº. 11.977/2009, que trouxe jun-
como o direito a moradia digna, reconhecido como direito fundamental to com o Programa Minha Casa Minha Vida, um capítulo dedicado ao
nos termos da Constituição Federal Brasileira. tema da regularização fundiária, constituindo-se na primeira lei nacional

392 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 393
de regularização fundiária urbana, consolidando formalmente o concei- torial existente nas cidades brasileiras. Como argumenta Alfonsin (apud
to de regularização fundiária, conforme seu Art. 46: Fernandes, 2001:216) “O respeito aos direitos humanos e a busca pela
qualidade de vida da população de baixa renda atingida por esses pro-
“A regularização fundiária consiste no conjunto de medidas jurídicas, jetos são aspectos indissociáveis da regularização fundiária, e ninguém
urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de as- ousaria dizer que esses efeitos não causem impacto na diminuição da
sentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo segregação urbana”
a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das
A Declaração Universal dos Direitos Humanos prevê o direito à mo-
funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.” radia, elencado no seu Art. XXV, ao dispor:

Toda pessoa tem o direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e


O conceito recepcionado nesta nova Lei encontrava-se pacificado
a sua família saúde e bem-estar, alimentação, vestuário, habitação, cuida-
na doutrina construída pelos estudiosos e acadêmicos e, também, em dos médicos e os serviços sociais indispensáveis, direito a segurança em
algumas legislações municipais, tais como a Lei do Prezeis, Lei Municipal caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de
do Recife que instituiu o Programa de Regularização Fundiária das ZEIS perda dos meios de subsistência em circunstância fora do seu controle.
do Recife, que traz no seu bojo o princípio da regularização fundiária
plena. A moradia caracteriza-se juntamente a outros direitos sociais como
A doutrina consolidou o conceito de regularização fundiária desen- um item primordial para efetivação da vida humana com dignidade. Não
volvido por Alfonsin (1997:24) que o define como: basta suprir a necessidade de habitação da sociedade, para garantia de
um padrão de vida digna, se faz necessário garantir o conjunto de itens
“Regularização fundiária é o processo de intervenção pública, sob os com dependência e relação intrínsecas, ou seja, o Estado deve compati-
aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência bilizar suas ações na busca da efetivação desses direitos.
de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconfor-
O debate sobre o direito à moradia realizado no âmbito internacional,
midade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente
melhorias no ambiente urbano do assentamento, no resgate da cida- através da propositura de diversos tratados e convenções, demonstra
dania e da qualidade de vida da população beneficiária” a necessidade atual para enfrentamento do abismo existente entre a
realidade social e as normas preconizadas no atual sistema normativo.
A nova Lei Federal foi muito feliz ao recepcionar o conceito já utili- Sendo o Brasil signatário da maioria dos tratados internacionais que
zado na doutrina e em legislações municipais, pois, busca garantir que a versam sobre o tema.
regularização fundiária tenha uma preocupação tripartite, consubstan- No entanto, em nossa recente pesquisa de Mestrado, tivemos como
ciando as dimensões da legalização da posse, da urbanização do am- objeto de estudo a mediação dos conflitos executada pela ação do Esta-
biente e da inclusão social da população. do, efetuada no desenvolvimento da política urbana, através do Direito,
A execução da regularização fundiária deve abranger ações de na- na equalização das lutas sociais no âmbito dos assentamentos irregu-
tureza jurídica, urbanística, física e social. Esse processo deve ser cons- lares do Recife. Entende-se por assentamentos irregulares as áreas de
truído numa conjuntura interdisciplinar para que ocorra uma realização baixa renda, construídas como solução habitacional das classes menos
completa, de forma conjunta e integrada, de todas as dimensões da favorecidas da população, que se expandem nas grandes cidades bra-
regularização fundiária. Não se trata de etapas de trabalho, mas, sim de sileiras como resultado do urbanismo capitalista excludente, bem como
dimensões de uma política pública que, deverão ser atendidas para uma de uma política de desenvolvimento urbano também excludente, for-
completa efetivação das ações de regularização fundiária pelo poder temente influenciada pelo modo de produção capitalista. Na pesquisa,
público. a mediação dos conflitos foi concebida como o conjunto de medidas
As políticas de regularização fundiária aplicadas neste contexto têm promovidas pelo estado para dispersão dos conflitos sociais, inerentes
a pretensão de modificar o quadro de exclusão social e segregação terri- ao processo de acumulação capitalista regido pelo próprio estado.

394 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 395
Para identificação desta ação política do estado recorreu-se, naque- te, impulsionados do Governo Federal, através da ação do Ministério
le trabalho, a uma metodologia trabalhada por Boaventura de Souza das Cidades, proporcionando, inclusive, um novo arcabouço jurídico
Santos (1984). Enunciava-se como uma teorização sociológica do di- para aplicação nas ações de regularização fundiária.
reito com capacidade de promover a análise da mobilização política do Entretanto, algumas questões vêm à tona numa análise preliminar,
direito nas lutas urbanas do Recife. Para realização da análise da media- qual o papel dos movimentos sociais no desenvolvimento da regulariza-
ção dos conflitos, através da política urbana, demonstrou-se a caracte- ção fundiária pelo Estado Brasileiro? Será que o atual desenvolvimento
rização do Estado e do Direito, bem como a relação existente entre os do tema da regularização visa garantir a participação da sociedade nos
conceitos, e como influenciam a resolução dos conflitos existentes na processos decisórios ou é apenas mais uma mediação do Estado?
sociedade, através da política, neste caso, precisamente, pelo que se
denomina política urbana.
A política urbana foi mostrada como uma ação do estado para de- 3 - HISTÓRICO DA REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA NO RECIFE
senvolvimento das cidades, especificada na pesquisa como uma ação de
regularização fundiária, efetivada através dos instrumentos jurídicos das Nos anos 1970-80, a luta pela moradia se constitui num grande ele-
zonas especiais de interesse sociais e da concessão de direito real de uso. mento dos movimentos sociais, principalmente, ao se incorporar na luta
Os assentamentos irregulares de baixa renda são constituídos fora pela liberdade e pelos direitos políticos vivenciados no país. O discurso
do ambiente de formalidade jurídica, reconhecido no processo de for- pelo direito passa a fazer parte do leque de reivindicação dos movimen-
mação regular das cidades. Entendendo-se que o crescimento formal tos sociais, notadamente, influenciadas pelas comunidades eclesiásticas,
das cidades se dá mediante aprovação de projetos de parcelamento, estimuladas pelo Arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara.
loteamento e construção edilícia, aprovados pelo município que, devem No final do ano de 1970, ocorrem mudanças significativas na exe-
ser registrados e averbados no Cartório de Imóveis competente. cução da política habitacional do país, promovidas através do agente
Neste sentido, compreende-se que as ocupações e invasões urba- financeiro denominado Banco Nacional de Habitação – BNH. É reco-
nas são os processos de formação e constituição dos assentamentos nhecida a necessidade de promover uma política habitacional que con-
irregulares, caracterizadas pelas favelas que, são concebidas como áre- temple os assentamentos pobres das cidades, envolvendo ações de ur-
as de ocupação espontânea ou, também, organizadas pelo movimento banização e legalização, requerendo com isso uma maior participação
social, para fins de moradia da população pobre, onde não se respeita dos estados e municípios na execução dos programas, tendo em vista o
as normas jurídicas que regule a relação entre os moradores e os pro- melhor conhecimento da situação existente na localidade trabalhada.
prietários das áreas; gravadas pela sua natureza jurídica como pública Os novos programas formulados caracterizam-se como uma resposta
ou particular. do estado às pressões dos movimentos sociais pela moradia. O estado
Verifica-se, também, a importância do processo de abertura política age suavizando o problema, atendendo uma faixa da população sempre
no país, consolidando a democracia, através do fomento das eleições desprezada no que se refere à luta pela moradia que, se apropria deste
e, fortalecendo os movimentos sociais de luta pelo direito à moradia. discurso para cobrar ações eficazes no reconhecimento deste direito.
Alguns temas dos movimentos são incorporados institucionalmente pelo A modificação das políticas de desenvolvimento urbano e habita-
estado nacional com a inclusão do capítulo específico sobre a política cional indicou um novo paradigma para a ação estatal, proporcionando
urbana na constituição federal, com a regulamentação dos seus arti- projetos que contemplam “a regularização urbanística e fundiária das
gos, com a promulgação da Lei Federal nº. 10.257 de 2001, conhecida favelas, a oferta de lotes urbanizados, a melhoria habitacional nos pró-
como Estatuto da Cidade, e, atualmente, com a promulgação da Lei prios assentamentos de baixa renda e o incentivo à autoconstrução”
Federal nº. 11.977 de 2009. (MIRANDA e MORAES, 2004: 1).
Diante do discorrido no texto, verifica-se que a temática da regulari- O processo de redirecionamento da política urbana brasileira incor-
zação fundiária entrou nas agendas políticas dos gestores, notadamen- porou um conjunto de discussões e fatores que aconteceram no país,

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tais como: o reconhecimento da ineficácia e do caráter de segregação cução da política urbana, tornando um imperativo essencial para fomen-
da política vigente; a crescente pressão do movimento de luta pela mo- tar mudanças de âmbito político-institucional capaz de promover uma
radia; a participação brasileira nos tratados de direitos humanos envol- gestão urbana mais eficaz e democrática, caracterizando uma posição
vendo o direito à moradia; e a promulgação de instrumentos jurídicos a contrária ao modelo centralizador-autoritário do regime militar. O Mu-
luz da realidade social e econômica nacional. nicípio do Recife passa a assumir esse papel, tentando resolver seus
Para contribuir com o debate, identificando um acontecimento na problemas em contato direto com a população. Delineiam-se, então,
história do Recife, De La Mora e Vilaça (2004: 3) apontam que mecanismos em que a sociedade e a população interessada possam
participar do processo de ordenação urbana.
“em 1979 o grupo de jovens do Movimento de Jovens do Meio Popu- Nesta época, acontece o movimento pela redemocratização do país
lar do bairro de Brasília Teimosa resolve mobilizar-se para conquistar e no seu bojo, urge o Movimento Nacional pela Reforma Urbana, cen-
a presidência e diretoria da associação do bairro e assim opor-se e trando suas lutas pela posse da terra, através de ações reivindicatórias
resistir à implantação de um projeto encomendado pela Prefeitura e contestatórias, bem como, construindo uma plataforma política uni-
do Recife e o Governo do Estado ao famoso urbanista Jaime Lerner,
versalista, distributiva e democrática que reafirmaria o reconhecimento
para expulsar para a periferia as famílias do bairro e destinar esse
pelo direito à moradia. Fato que ocasionou um processo de formulação
local para a implantação de grandes hotéis de alto padrão, marinas,
de instrumentos, através do direito, que possibilitasse uma intervenção
restaurantes e áreas de lazer de luxo”.
estatal no processo de produção do espaço urbano.
Com o estabelecimento de novas práticas de planejamento que le-
Esse movimento conhecido como “Movimento Teimosinho”, teve o
vam em conta a formação de espaços públicos de discussão ampliados,
apoio da Comissão de Justiça e Paz, de oposição política ao governo
com o reconhecimento do conflito e da pluralidade dos atores, o Poder
vigente, de órgãos de classe como o Instituto dos Arquitetos do Brasil -
Público vai, paulatinamente, alterando sua face centralizadora na me-
IAB e Ordem dos Advogados do Brasil - OAB e, também, do programa
dida em que são abertos espaços, através de canais institucionais de
de Pós Graduação em Desenvolvimento Urbano da Universidade Fede-
participação social, onde os movimentos sociais (reivindicatórios e con-
ral de Pernambuco, através de professores e alunos.
testatórios) passam a inserir-se no cenário da administração municipal,
A mobilização existente neste movimento proporcionou o reconhe-
construindo-se uma relação mais democrática entre a sociedade civil e
cimento do direito da população de continuar residindo na área, resul-
o Estado.
tando num projeto de urbanização e regularização fundiária, elaborado
À medida que as comunidades se organizavam, foram exercen-
em conjunto com representantes dos governos estadual e municipal,
do pressões e reivindicações junto ao Poder Público pela instalação de
moradores da comunidade e representantes do Movimento Teimosi-
infra-estrutura nos assentamentos. “Os movimentos da luta pela terra,
nho, bem como, as entidades que prestaram apoio.
..., possibilitaram as condições para que o poder público municipal vies-
A execução deste projeto em Brasília Teimosa se constitui uma que-
se a incluir na sua agenda intervenções nesses assentamentos”. (LEAL,
bra no modelo técnico e centralizador da política urbana vigente no Re-
2003:37).
cife. A partir de então, visualiza-se a construção de um novo modelo que
Neste período, a atuação dos movimentos sociais do Recife de luta
incorpora os princípios da democracia participativa.
pela terra, muda de uma ação de simples resistência, para constituir
Portanto, com a crise do Estado Nacional na década de 80, em
uma configuração reinvidicatória perante outras vertentes dos movi-
decorrência da grave crise fiscal e do endividamento crescente, há o
mentos sociais e, principalmente, perante o poder político constituído
esgotamento dos financiamentos das políticas públicas de urbanização,
na Prefeitura e no Governo Estadual.
agravando os problemas para atendimento das demandas, sempre cres-
Neste ensejo, reconhecendo a existência de favelas no Recife, o
centes, das camadas menos abastadas da população.
então Prefeito Gustavo Krause, através de um Decreto Municipal, de-
Neste contexto, a tendência foi proporcionar a implementação dos
limitou vinte e sete (27) comunidades da cidade como especiais. Com
conceitos de descentralização e de participação no planejamento e exe-

398 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 399
o intuito de proporcionar um tratamento diferenciado em relação ao sionasse a execução da política urbana de uma forma diferente, foi es-
restante do território municipal e, especificamente, o atendimento aos tabelecida a partir da primeira eleição dos prefeitos das capitais depois
requisitos para implantação do PROMORAR (Programa de Erradicação do período da ditadura militar brasileira, ocorrida em 1985.
de Sub-ha­bitação) no Recife. Foi organizado um seminário pelo movimento popular e ONGs que,
Miranda e Moraes (2004: 2) identifica a execução de três interven- contou com a presença de todos os candidatos a prefeito, no qual, fo-
ções, inseridas no PROMORAR, desenvolvidas no município do Recife: ram apresentadas todas as propostas do projeto, no sentido de contribuir
para uma gestão mais democrática da política urbana. Cada candidato re-
“Três projetos de urbanização foram elaborados para as favelas Coque, cebeu um projeto contendo a versão final do PREZEIS. Quatro candidatos
Coelhos e Brasília Teimosa; áreas que, historicamente, sofreram inten- vinculados a oposição se comprometeram no atendimento das propos-
sas pressões para a remoção de sua população e se tornaram marcos tas, bem como, na intensificação das discussões para chegar num deno-
da resistência popular. Esses projetos previam a criação de parâmetros
minador comum sobre a melhor forma de implementação das propostas.
urbanísticos especiais, de Comissões de Legalização da Posse da Terra e
do Grupo de Trabalho Executivo para Legalização das Áreas Especiais”. Posteriormente a posse do novo prefeito, foi realizada uma assem-
bléia do movimento popular para entrega solene e pública ao Prefeito
Em 1983, respondendo à pressão dos movimentos sociais, é votada da proposta do PREZEIS, que em seguida foi analisada e melhorada
e sancionada a Lei nº 14.511/83 – LUOS - Lei de Uso e Ocupação do pela Procuradoria Municipal e encaminhada ao Poder Legislativo como
Solo do Recife, – que institucionalizou os assentamentos habitacionais Projeto de Lei Municipal, sendo finalmente aprovada e sancionada pelo
de baixa renda, classificando vinte e sete (27) áreas da cidade como Prefeito em Março de 1987.
Zonas Especiais de Interesse Sociais – ZEIS, sobre as quais se deveriam Novamente, cita-se o artigo de De La Mora e Vilaça (2004: 4) para
promover a regularização fundiária, ações de urbanização e sua integra- identificar o momento histórico existente na época da promulgação da
ção à estrutura urbana. Foi o primeiro passo para o regular reconheci- Lei do PREZEIS:
mento do direito à moradia à população menos favorecida da cidade.
“Necessário se faz lembrar que a mobilização local que culmina com a ins-
No entanto, não estabeleceu os parâmetros para orientação da inter-
titucionalização deste importante mecanismo de inclusão social e gestão
venção pública no processo de regularização do assentamento. democrática ocorre simultaneamente ao processo de democratização e
Todavia, mais uma vez, verifica-se que o poder público municipal, de desmanche dos mecanismos de exceção e construção de uma nova
incorporando o momento político vigente, identifica a questão e deli- institucionalidade democrática: Fim da censura, anistia, e principalmente
mita o conflito, mas, por outro lado, não estabelece os mecanismos de os debates anteriores e durante as atividades da Assembléia Nacional
atuação e resolução do problema. Cria outra situação, balizada pela ins- Constituinte que veio a consagrar os princípios da Gestão Democrática
tituição da nova Lei de Uso e Ocupação do Solo, que é a instituição das das Políticas Públicas de modo geral e da Política Urbana em particular”.
ZEIS, e, com isso, dissipa o problema. Surgindo um novo tema para as
reivindicações dos movimentos sociais que, é a instituição dos mecanis- Ressalta-se então que foi sob sobre pressão dos movimentos so-
mos, programas e projetos que promovam a urbanização e a regulariza- ciais que, foi aprovada e sancionada a proposta de Lei elaborada pelo
ção fundiária dos assentamentos. Movimento Popular e Organizações Não Governamentais, surgindo, em
Inicia-se uma nova luta, capitaneada pela Comissão de Justiça e 1987, a Lei do PREZEIS com a finalidade de regular o uso e a ocupação
Paz, promovendo encontros para discussão e definição dos princípios, dos assentamentos populares, sob uma orientação de co-gestão, a par-
diretrizes, estratégias e mecanismos institucionais necessários. Surgia tir de canais de participação social.
assim, o projeto que deu origem ao Plano de Regularização das Zonas A concepção do ideário que pautou o surgimento do PREZEIS foi ca-
Especiais de Interesse Social – PREZEIS. racterizada por um grande ativismo democrático, onde as práticas demo-
A estratégia para garantir a transformação desse projeto, resultado cráticas de gestão tinham por objetivo romper com padrões tradicionais de
de uma grande mobilização social, num instrumento jurídico que impul- representação política que predominavam a relação Estado/Sociedade.

400 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 401
Atualmente no Recife, sessenta e seis (66) comunidades pobres fo- Já no Capítulo IV ficou expresso como deve ser realizada a regula-
ram transformadas em ZEIS, abrangendo 80% das 490 favelas que es- rização fundiária. Para tanto, o art. 20, da Lei do PREZEIS, autoriza o
tão distribuídas em 15% da área total do município, e em 25% da sua Município a utilizar os instrumentos jurídicos necessários, preferencial-
área ocupada. Estima-se que a população pobre que habita nas ZEIS é mente a CDRU – Concessão de Direito Real de Uso. No seu parágrafo
cerca de 40% (533.687 hab.) dos habitantes da cidade do Recife. (Re- 1º, proíbe o instituto da doação dos bens públicos situados nas ZEIS e
cife, Prefeitura, PPA, 2001, In: LEAL, 2003:39). o parágrafo 2º expressa que o Município prestará assessoria em ações
É importante destacar que das trinta e sete (37) áreas que tiveram a de usucapião para fins de regularização fundiária.
COMUL instalada, apenas em três (3) os processos finalizaram ou estão Verifica-se que os movimentos sociais tiveram decisiva participação
na fase final, fato que impulsionaram a desinstalação da COMUL, são as na discussão e elaboração dos projetos que originaram a criação das ZEIS
ZEIS João de Barros, Coronel Fabriciano e Greve Geral. e da Lei do Prezeis no Recife. Os moradores das comunidades de baixa
É neste modelo de dispersão de conflitos que, através da Lei do renda mostraram força, imbuídos num pensamento de garantir um peda-
PREZEIS, foi introduzido o tema da regularização fundiária nas políticas ço de chão, um lote urbanizado, para servir de moradia, exigindo, tam-
municipais executadas no Município do Recife, caracterizando-se como bém, a segurança na posse, evitando o fantasma dos despejos forçados.
um passo importante ao reconhecimento do direito à moradia. Neste sentido, surge as seguintes indagações: cadê aquela força dos
O PREZEIS traz como característica, a promoção da regularização movimentos sociais de outrora? O que houve para comprometer e es-
fundiária, combinando as dimensões urbanísticas e jurídicas, ou seja, friar a sina contestadora e batalhadora da sociedade existente?
busca-se, mediante o PREZEIS, garantir às comunidades a implantação
de infra-estruturas urbana e a prestação de serviços públicos, bem como
efetuar a legalização dos lotes ocupados, garantindo a segurança jurídi- 4 - PARTICIPAÇÃO SOCIAL
ca da posse, através de um título registrado em Cartório de Registro de
Imóveis. A participação social acontece no desenvolvimento de opinião
Esse entendimento garante ao mesmo tempo um trabalho com uma crítica e de obtenção de poder e direitos, acarretando uma maior
visão multidisciplinar, integrando as três dimensões da regularização descentralização e distribuição do poder que era concentrado numa
fundiária, mas, torna o processo de legalização muito moroso, em virtu- autoridade política ou num pequeno grupo hegemônico. É um proces-
de de que primeiro é pensado a urbanização da área e somente depois so constante de aperfeiçoamento, advindo com a prática e avaliação
se inicia a legalização. sistemática, principalmente, se praticada com organização e comuni-
Como as carências são enormes e os recursos escassos, vão se acu- cação.
mulando as demandas urbanísticas, paralisando ou atrasando o trabalho A participação pode acontecer com uma intenção integradora, visan-
de legalização. Já se identifica um fenômeno que apenas as áreas que do à melhoria de uma situação específica, ou numa forma transformado-
sofrem conflitos procuram e cobram as ações de legalização, causando ra, desenvolvida com a intenção de alterar estruturas políticas, econômi-
transtornos e inversões no processo linear do planejamento do PREZEIS. cas e sociais. O formato institucional e as normas de funcionamento das
A Lei do PREZEIS, instituída pelo poder municipal do Recife, no seu instancias participativas moldam a intensidade da participação.
capítulo III regulamenta e disciplina como deve ser efetuada a regulari- Nos Estados governados nos sistemas representativos de governo,
zação urbanística das ZEIS, colocando no seu bojo regras sobre: planos o incremento da democracia se verifica no direito de voto, através do
urbanísticos, tamanhos de lote, reserva de solo virgem, sistema viário, sufrágio universal, e no surgimento de diversos órgãos representativos.
desmembramento e remembramento de lotes e etc. A participação gera uma acumulação de capital social, composto
O Capítulo V disciplina o sistema de gestão do programa, instituindo por cidadãos e associações da sociedade civil organizada, constituin­
as suas instâncias, atribuições, papeis e competências, garantindo um do-se verdadeiros atores sociais que articulam ações e cobram decisões
espaço importante de discussão e planejamento das ações do PREZEIS. nos espaços estruturados de participação social.

402 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 403
Os movimentos sociais têm assumido uma nova dinâmica prota- ções políticas, econômicas e sociais, advindas de um Estado que não
gonizada por comunidades e grupos sociais em luta contra a exclusão oferecia soluções às demandas sociais, resultantes dos déficits acumula-
social, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais inclusivos. dos, das demandas de novos atores sociais e da grave crise fiscal.
São iniciativas locais em diferentes contextos e que crescentemente vão Países social-democratas passam a assumir propostas de descen-
desenvolvendo vínculos a formação de redes participativas. tralização com o objetivo de reestruturar e redemocratizar o Estado. No
A motivação pela participação de diversos atores sociais nas insti- caso brasileiro, ele teve comportamento bem típico da forma predomi-
tuições políticas se configura em novas configurações participativas, são nante nas políticas públicas. O discurso pela descentralização passou a
atores sociais oriundos de movimentos comunitários que se sentiram ser parte dos arcabouços teóricos dos setores de esquerda como res-
motivados a cunhar o significado do termo participação. Daí surgindo posta à crise do Estado autoritário e tecnocrático do regime militar.
formas efetivas de combinação entre elementos da democracia repre- A forma “descentralizada” de implementar as políticas e ações coin-
sentativa e participativa. cidem com o novo período de redefinição das organizações de grandes
A junção de procedimentos de democracia representativa com os corporações capitalistas e dos procedimentos e das instituições destina-
de democracia direta apresenta-se como uma possibilidade favorável dos a realizar a regulação pública dos mercados, bem como do quadro
para a organização dos movimentos sociais, implicando uma convivên- político e ainda das formas de organização da sociedade civil.
cia em diversos níveis, de diferentes formas de procedimentos, organi- A descentralização de políticas públicas, formalizada juridicamente
zação administrativa e de desenho institucional. através da Constituição Federal de 1988 é entendida pela sociedade
No Brasil, o clientelismo, a pouca capacidade de pressão e vontade como o desenvolvimento de medidas favoráveis à participação, bem
de participação da população e a distribuição desigual dos bens pú- como, à democratização das tomadas de decisão política, fortalecendo
blicos são questões emblemáticas que a democracia brasileira não foi o poder local.
capaz de lidar adequadamente. As velhas práticas continuam, impulsio- Ademais, registra-se que é na esfera de poder local que as ações de
nando o clientelismo, a baixa eficácia administrativa e os conflitos entre descentralização são mais percebidas. Portanto, promover uma mudan-
as classes dominantes. ça significativa na questão social se caracteriza como um dos grandes
As novas formas de participação social vêm impulsionando não ape- desafios dos governos municipais. O que pode representar, em algumas
nas às organizações da comunidade, mas à sociedade como um todo, situações, o rompimento com práticas clientelistas, característica que
ao cidadão individual, pois é embasada na universalização dos direitos predomina em cidades que dominadas por verdadeiros latifúndios polí-
e ampliação da cidadania. A participação é analisada por uma nova con- ticos regionais.
cepção jurídica, envolvendo o Estado num novo papel, caracterizado O desafio do processo de democratização dos governos locais está
como o de realizar a articulação dos canais de participação que ante- na expressão da inversão de valores nas ações de governo e através da
riormente, restava à sociedade civil. implementação das políticas públicas condizentes com o novo paradigma.
A participação é pontuada entre a relação entre sociedade civil e Para tanto, se faz necessária a construção de espaços políticos de
sociedade política. Aumentar a participação social pela via da formaliza- negociação que todos os atores sociais e políticos participem e decidam
ção jurídica requer a ampliação de espaços de discussão e de negocia- sobre as ações efetuadas no espaço da cidade, no sentido do fortale-
ção que possibilite a integração dos cidadãos organizados nas diferen- cimento e transparência da gestão, garantindo o efetivo controle social
tes estâncias de decisão política, que devem interferir nas definições das sobre a execução das políticas públicas.
demandas políticas da população. Esses novos espaços políticos se constituem em verdadeiras arenas
O debate sobre a descentralização política surge no Brasil a partir de decisão da esfera pública e se caracterizam como reuniões, assem-
da década de 80, concebida como uma nova ordem para o setor públi- bléias, fóruns, conselhos, conferências, etc., tendo como sujeito princi-
co, abrangendo os países capitalistas avançados e os subdesenvolvidos. pal a sociedade civil, através dos seus grupos, associações e organiza-
Esse processo de descentralização coincide com grandes transforma- ções livres, não estatais e não econômica.

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A sociedade civil organizada expressa as questões e conflitos sociais clientelista das lideranças pela intimidade e participação dos quadros
vivenciados nas esferas privadas, intervindo e realizando a mediação de direção políticas; as parcerias entre o público e o privado estabele-
entre a esfera pública e a estrutura institucional, através da formação cidas a partir de laços pessoais e com base em isenções fiscais ou de
dos espaços de discussões nas quais são formuladas novas ações pú- cessões de uso dos espaços públicos.
blicas e são travadas verdadeiras disputas sociais. Nesses espaços são A sociedade está cega, pois anda fundamentando suas ações na
pensados os novos os parâmetros públicos, definindo o que a sociedade insensatez, na irracionalidade. No mesmo sentido, as elites políticas
reconhece como direitos. encontram-se imóveis diante do desafio, colaborando com a piora dos
Neste debate sobre descentralização e participação, a hostes pú- problemas sociais e ambientais das cidades do país.
blica local é imbuída de grande significância, pois é nela que lhe é per-
cebida uma nova qualidade e função nas relações entre sociedade e “...o tamanho das nossas metrópoles, suas desigualdades, suas fa-
governo. Nos governos locais são visualizados as principais experiências velas e periferias, e sua violência são conseqüências necessárias da
disjunção entre economia, sociedade e território que caracteriza a
de participação popular, bem como, podem traduzir e ocultar os seus
nossa expansão periférica na economia-mundo capitalista” (RIBEIRO).
verdadeiros significados, pois são construídos novos espaços de discus-
são e novas formas de exercício da cidadania que em muitas casos não
A forma como serão garantidos os direitos sociais, civis e políticos
servem como instrumento de engrandecimento da democracia. Verifi­
irão se diferenciar, dependendo da capacidade de expressão e de orga-
ca-se, na maioria das experiências, que o controle político pelos setores
nização política da sociedade local, das condições socioeconômicas, ter-
hegemônicos e a cooptação das lideranças populares, ainda acontece,
ritoriais e culturais e da própria capacidade de organização institucional
mantendo-se o controle sobre as manifestações e lutas populares, for-
e financeira dos municípios.
çando um engessamento dos movimentos sociais que passam a serem
Ressalta-se que num processo de regularização fundiária, a partici-
instrumentos de referendar as ações políticas dos governos. pação social deve ocorrer durante todo o desenvolvimento do trabalho.
Deve ser realizada uma leitura técnica na fase de caracterização do as-
sentamento, devendo ser apresentada e discutida com a comunidade
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS local, construindo uma leitura comunitária. Nela devem ser discutidos
os problemas, as demandas e as prioridades, de forma que o trabalho
A abertura dos canais de participação e a ampliação na agenda pú- de regularização contribua com uma melhor solução de questões rele-
blica dos interesses populares representaram um capital social acumu- vantes, incluídas no processo, tais como: reassentamento, melhoria na
lado e um grande avanço na democracia brasileira. A participação tem urbanização, legalização jurídica e etc.
sido importante ferramenta para multiplicação dos espaços de gestão No entanto, verifica-se que o processo de participação social tem
democrática das cidades. sido restrito aos poucos representantes comunitários, não atingindo a
Os projetos de desenvolvimento local, articulados à gestão demo- maioria da população dos assentamentos, ocasionando muitas vezes
crática, têm tido um importante papel como formador de Capital Social. um baixo interesse da população em aderir aos processos de legaliza-
No entanto, existem barreiras de ordem institucional ou no campo da ção jurídica dos imóveis, e na maioria das vezes é por um simples des-
representação política dos atores. conhecimento do tema, pois vincula a cobrança de IPTU, por exemplo.
Ademais, realizando uma breve avaliação sobre as ações vinculadas As novas iniciativas políticas para desenvolvimento do tema da regu-
à participação social, é possível identificar diversos limites, tais como: a larização fundiária não tem privilegiado a participação social, deixando
desarticulação entre as ações decididas nas instâncias de participação as velhas formas conduzirem os processos, ou seja, não se aprimora o
e as estratégicas políticas de caráter estrutural das cidades; a existên- modus operandi da participação social, possibilitando, na verdade, por
cia de estrangulamentos nas máquinas administrativas, impedindo uma arrefecer o campo de luta dos movimentos sociais, favorecendo a legi-
renovação na ação política; a incapacidade institucional na promoção timação do Estado em detrimento da organização da sociedade civil, se
da compatibilização dos diversos interesses nas cidades; o novo papel caracterizado como mais uma vertente política de mediação de conflitos.

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Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. ções por parte dos doutrinadores e operadores de direito em
LEAL, Suely. Fetiche da Participação Popular: novas práticas de planeja- geral. Para tanto, buscou-se analisar os pontos mais contro-
mento, gestão e governança democrática no Recife – Brasil. Recife: Ed. vertidos citados na doutrina e por meio de experiência práti-
do Autor, 2003. ca. Nesse ínterim é imperioso destacar o papel do Judiciário
__________. O novo capital social das cidades brasileiras. Cadernos Metró- frente essas novas demandas coletivas e os meios que o Judi-
pole, nº 10, 2003. ciário dispõe para processar e julgar esses feitos. O objetivo
MINISTÉRIO DAS CIDADES. Regularização Fundiária Urbana no Brasil. é identificar possíveis empecilhos sociais ou processuais para
CARVALHO, Celso Santos, GOUVEA, Denise de Campos (Coordenadores) – Bra- que seja atingido o propósito primordial desse instituto, que
sília, 2009. é a regularização da posse de pessoas de baixa renda nos
MIRANDA, Lívia. MORAES, Demóstenes. Ainda há lugar para o PREZEIS do centros urbanos, e a consequente aquisição da propriedade
Recife? Disponível no site: http://www.ibdu.org.br/imagens/Aindahalugarpara- imóvel, direito fundamental para uma vida digna.
oPREZEIS.pdf, 2004. Palavras-Chave: Usucapião. Estatuto da Cidade. Judiciário.
RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz. As metrópoles e a questão social brasilei- Direito ao mínimo existencial.
ra. Ed. Revan.
SANTOS, Boaventura de Souza. O Estado, o Direito e a questão urbana.
In FALCÃO, Joaquim de Arruda (Org.). Conflito de direito de propriedade – INTRODUÇÃO
Invasões urbanas. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984.
SILVA, Tiago Gonçalves da. A Mediação de Direitos na utilização do con-
A intenção do presente trabalho é analisar, com auxílio de pesquisa
trato de Concessão de Direito Real de Uso. A Regularização Fundiária das
ZEIS do Recife. Recife: O autor, 2009. bibliográfica juntamente com outras fontes de informações, a efetivi-
SOUZA, Iracilde Silva de. A gestão democrática e os conflitos de governan- dade da Ação de Usucapião Especial Urbana Coletiva, inserida no or-
ça: os percursos do PREZEIS de Recife 1993/2004. Recife: O Autor, 2006. denamento jurídico brasileiro, por meio do Estatuto da Cidade, Lei nº
Legislações 10.257/2001.
CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA. 1988. O estudo desenvolvido no presente trabalho tem por finalidade
CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO - Lei Federal n. º 10.406/2002
apurar se o instituto da usucapião coletiva, em quase uma década de
ESTATUTO DA CIDADE – Lei Federal n. º 10.257/2001.
LEI FEDERAL Nº. 11.977 DE 2009 vigência, tem alcançado a finalidade pela qual foi inserida no universo
LEI DO PREZEIS – Lei Municipal nº. 16113/1995. jurídico pátrio, que é a regularização de áreas ocupadas de forma irre-
gular por pessoas hipossuficientes.

1 Bacharel em Ciência Jurídicas e Sociais pelo Centro Universitário Metodista do IPA

408 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 409
Será abordada a repercussão que o instituto teve desde sua origem, Quem já entrou em uma favela e a percorreu em seus meandros sabe
trazendo uma análise das críticas, elogios e ponderações por parte de que ali não há nenhuma qualidade de vida, convivendo os seus ha-
doutrinadores e operadores de direito. Como análise prática será estu- bitantes com doenças, emanações nauseabundas de esgotos à céu
aberto, mosquitos de toda sorte e outros insetos nefastos à saúde
dada a experiência realizada no Município de Porto Alegre, quanto à
humana. Isto, sem se falar da promiscuidade ali reinante, que leva os
utilização do instituto da usucapião coletiva como forma de regulariza-
bons, que são muitos, a se degradarem pela proximidade com facíno-
ção fundiária. ras de toda espécie, como traficantes de drogas, ladrões e assassinos.
Por conseguinte, será analisado diante de todo exposto se a usuca- A meta do Poder Público deveria ser a de eliminar as favelas, possibi-
pião coletiva tem alçando frutos na questão da aquisição da proprieda- litando a seus moradores a transferência para habitações populares
de pela população de baixa renda. condignas, construídas sob o patrocínio da Administração e acessí-
A preocupação em fazer essa análise é identificar se a usucapião veis ao bolso das pessoas menos favorecidas.
coletiva é um meio adequado para as municipalidades utilizarem nas Ao contrário, entretanto, surge o legislador e dá à luz preceito como o
políticas públicas de regularização fundiária. do art. 10 do Estatuto da Cidade, que, como dissemos, só irá servir para
gerar um problema gravíssimo, que é o da perpetuação das favelas!
Assim, torna-se necessário analisar se os mecanismos disponíveis
Demagogia? Espírito tacanho incapaz de perceber a barbaridade co-
no ordenamento jurídico brasileiro, em especial à usucapião coletiva, metida com tamanho disparate? Não sabemos!
irão alcançar êxito na garantia desse direito. A verdade dura e crua é esta: deu-se o início à perpetuação oficial das
favelas deste País. Mas os problemas decorrentes da edição do art.
1 – Do instituto da Usucapião Coletiva 10 do Estatuto da Cidade não param por aí. As enormes dificuldades
que irão surgir para o poder Judiciário processar e julgar ações de usu-
Desde sua introdução no ordenamento jurídico brasileiro, ocorrida capião especial coletiva de imóvel urbano são fáceis de se imaginar.
com a publicação do Estatuto da Cidade, em 10 de julho de 2001, o Como, por exemplo, produzir prova de que centenas ou quiçá milhares
de favelados não são proprietários de outro imóvel urbano ou rural?
instituto da usucapião coletiva tem sido alvo de críticas e ponderações,
Sabendo-se, por outro lado, como é flutuante a população das fave-
como também tem sido alvo de elogios de quem considera o seu conte- las, como evitar que indivíduos ali instalados há poucos dias ou meses,
údo como instrumento transformador de efetivação do direito da pro- mancomunados com outros, tentem “demonstrar”, com “testemunhas”,
priedade no Brasil. que habitam o lugar há mais de cinco anos? Como reunir centenas ou
Dentre os críticos do novo instrumento de aquisição da propriedade milhares de favelados para deliberarem, por exemplo, sobre a extinção
pode se citar José Carlos de Moraes Salles2, que assim se manifestou do condomínio dito especial nos termos do §4º do art. 10?
sobre o dispositivo contido no art. 10, da Lei nº 10.257/2001: Para tudo isso, não há respostas fáceis nem satisfatórias. Só enormes
problemas a serem resolvidos. E, provavelmente, à custa de dispen-
Pela simples leitura do preceito legal transcrito, observa-se, desde diosas desapropriações a serem levadas a efeito pelo Poder Público,
logo, a enormidade criada pelo legislador, para não se dizer a mons- para reurbanizar regiões em que forem perpetuadas essas favelas.
truosidade por ele praticada. Nem se diga que somos contra favelados, porque, na realidade, so-
Além de ampliar o contido no dispositivo constitucional regulamen- mos, isto sim, contra as favelas. Estas degradam os seres humanos
tado (o art. 183), que só versara sobre situações individuais de usu- que ali vivem, fato por nós constatado ao longo de mais de quarenta
capião especial urbana, não aludindo, portanto a casos de usucapião e três anos de vida vicentina. (grifo nosso)
especial coletiva de imóvel urbano, o legislador criou um monstrengo
difícil de ser digerido pelas administrações municipais, que estarão Igual entendimento possui Carlos Alberto Dabus Maluf3, que defen-
sujeitas, doravante, ao enfrentamento de problemas quase insolúveis, de que a usucapião é um ofensor do direito de propriedade insculpido
derivado da perpetuação de favelas que tal usucapião especial cole- na Constituição, conforme se depreende de suas razões:
tiva irá gerar.
3 MALUF, Carlos Alberto apud ALBUQUERQUE, Marina Cândida. A usucapião coletiva no novo
2 SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e móveis. 6ª ed. São Paulo: Código Civil. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutrina/imprimir.asp?id=4157>. Acesso em
Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 319. 11 de maio 2011.

410 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 411
As regras contidas nos §§4º e 5º abalam o direito de proprieda- Nelson Rosenvald5, procurador do Estado de Minas Gerais, exalta a usu-
de, incentivando a invasão de glebas urbanas e rurais, criando uma capião coletiva como um instrumento em prol da sociedade, senão vejamos:
forma nova de perda do direito de propriedade, mediante o arbitra-
mento judicial de uma indenização, nem sempre justa e resolvida a A usucapião coletiva de imóveis particulares é forte instrumento de
tempo, impondo dano ao proprietário que pagou os impostos que função social da propriedade, uma vez que permite uma alternativa
incidiam sobre a gleba. As regras esculpidas nesses parágrafos são de aquisição de propriedade em prol de possuidores que não tenham
agravadas pela letra do art. 10 e seus parágrafos da Lei nº 10.257, acesso a ações individuais de usucapião – porque o imóvel está en-
de 10.07.2001, conhecida como o Estatuto da Cidade, uma vez que cravado em loteamento irregular ou porque a área possuída é inferior
nela é permitido que essa usucapião especial de imóvel urbano seja ao módulo urbano mínimo. Com a opção pela usucapião coletiva, o
exercida em área maior de duzentos e cinquenta metros, consideran- legislador retirou a injustiça da prevalência da forma sobre o fundo,
do área maior do que essa “extensa área”. Prevê também que a po- permitindo-se não só a aquisição da propriedade pela comunidade de
pulação que a ocupa forme, mediante o requerimento da usucapião, possuidores, como a urbanização da área e ampliação da prestação
um condomínio tradicional; e mais, não dá ao proprietário o direito à de serviços públicos sobre os imóveis. [...] A usucapião coletiva detém
indenização. Tal forma de usucapião aniquila o direito de proprieda- a notável capacidade de favorecer os interesses individuais homogê-
de previsto na Lei Maior, configurando um verdadeiro confisco, pois, neos da coletividade que anseia pelo direito de propriedade, com a
como já dissemos, incentiva a invasão de terras urbanas, subtrai a vantagem de que a decisão coletiva impede que sejam mantidos os
propriedade de seu titular, sem ter ele direito a qualquer indenização. cortes efetuados por cada possuidor – cada família será atribuída
uma fração ideal do imóvel – possibilitando a urbanização racional da
Maria Helena Diniz4 pondera “que apesar de sua finalidade social, área como um todo. (grifo nosso).
poderá servir de estímulo à migração interna para as grandes cidades
sem condições de novos espaços livres, dando origem às favelas”. O que se observa das manifestações sobre o instituto da usuca-
Ibraim José das Mercês Rocha, procurador e secretário do Instituto pião coletiva, é que grande parte dos doutrinadores mais conservado-
Brasileiro de Advocacia Pública do Estado do Pará, manifesta-se favorá- res entende ser esta forma de usucapião um verdadeiro atentado ao
vel ao novo instituto, no seu dizer: direito de propriedade, e mais, que esta é uma forma de degradação
ainda maior do meio urbano nas cidades, através da proliferação das
Observa-se claramente um evidente destaque à função social da pro- favelas, centro das angústias dos governantes, especialmente das mu-
priedade, que deve ser casada com os interesses sociais de melhor
nicipalidades.
qualidade de vida da população de baixa renda, desenvolvendo o
As opiniões mais favoráveis advém de operadores do direito mais
meio ambiente social e possibilitando uma política urbana. Desta
forma, fica evidente que os interesses tutelados por essa lei se en- modernos, com a mentalidade mais arejada em relação aos interesses
quadram perfeitamente no âmbito dos interesses coletivos, onde so- metaindividuais6, e que vislumbram na usucapião coletiva uma forma
brelevam os interesses da comunidade aos interesses individuais ou de se atingir a finalidade da função social da propriedade, que é dar ao
particulares dos sujeitos, no âmbito dos chamados interesses metain- bem imóvel uma destinação útil à coletividade. O benefício dessa nova
dividuais. ação de aquisição de propriedade teria uma função híbrida no momento
Consolidada está a compreensão de que a propriedade sem função que se destina a garantir direitos de primeira dimensão7, como a pro-
social não têm o status que antes lhe atribuía, criando o Estado meios
de retirar-lhe do meio social quando não cumpra o seu especial cará- 5 ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos Reais. 5ª ed. Rio de Janeiro:
ter, destinando-se a um fim de utilidade social, criando mecanismos Lumen Juris, 2008.p. 295.

que permitam a reinserção da propriedade como utilidade à comuni- 6 Um Estado solidário, portanto, exige direitos que transcendam a esfera individual, nascendo
assim, os direitos metaindividuais, que são, em nosso ordenamento jurídico, divididos em direitos
dade; dentro destes meios é que vem se inserir a ação de usucapião individuais homogêneos, coletivos e difusos. GRANTHAM, Silvia Resmini . Os limites subjetivos da
coletivo, apresentando-se como um novo instrumento. coisa julgada nas demandas coletivas. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4186/
os-limites-subjetivos-da-coisa-julgada-nas-demandas-coletivas> Acesso em 01 junho 2011.
4 DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 4: direito das coisas. 21. ed. São 7 Embora muitos autores trabalhem com a “expressão gerações” adotou-se a expressão “dimensão”,
Paulo: Saraiva, 2006.p. 175. com base na interpretação de Ingo Wolfgang Sarlet, na obra “A eficácia dos direitos fundamentais”..

412 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 413
priedade individual, e direitos de segunda dimensão, e porque não dizer Cabe citar que o Município de Porto Alegre, capital do Rio Grande
de terceira dimensão, uma vez que propiciaria o direito social à mora- do Sul, possui cerca de 1.360.590 habitantes, divididos em 495,53
dia, e os direitos voltados ao bem estar coletivo, preservação do meio km², numa densidade demográfica em torno de 2.777,6 habitantes por
ambiente e promoção da paz nos centros urbanos. km². O Município possui quarenta e cinco bairros, e uma infinidade de
Não nos interessa tecer críticas aniquilantes à usucapião coletiva, ocupações irregulares, das quais não há uma estatística apurada em
como o faz José Carlos de Moraes Salles, tampouco enaltecê-la como números, pois se proliferam de forma desordenada, nas periferias e nos
o faz Nelson Rosenvald. O propósito é outro. Em pleno século XXI, não centros urbanos. A maior ocupação populacional concentra-se na zona
se quer regressar ao passado e fazer com que os membros do Poder norte da capital gaúcha.9
Judiciário, responsáveis pelo cumprimento das leis, voltem a ser consi- Tendo como premissa a regularização das ocupações irregulares a
derados bouche de la loi (a boca da lei), como já dizia Montesquieu no governança municipal, juntamente com seus técnicos (procuradores e
seu “Espírito das Leis”. O momento presente requer reflexões, inter- profissionais de outras áreas), começou articular-se para pôr em prática
pretações hermenêuticas que possibilitem a aplicação das normas le- a ação de usucapião coletiva no Município.
gislativas em consonância com a Lei Fundamental e a realidade social Na oportunidade, em 2002, Betânia de Moraes Alfonsin manifestara-se
vivida. Leis sem efetividade e aplicação prática no mundo jurídico, não sobre a implementação da ação de usucapião coletiva na capital gaúcha:
servem à sociedade. Por esse motivo, é necessário se pautar na análise
da real efetividade da usucapião coletiva, na véspera de seu décimo O instituto da usucapião especial urbana vem sendo aplicado por um
ano em vigor. Quem está com a razão, os críticos ou defensores da universo de municípios brasileiros, em especial naqueles administra-
usucapião coletiva? Não nos interessa apurar isso. Interessa tecer ob- dos por partidos de esquerda, como é o caso de Porto Alegre. Nestas
localidades o poder público tem implementado políticas, visando a
servações sobre a funcionalidade de tal dispositivo no ordenamento
inserção dos núcleos de baixa renda à cidade formal, possibilitando
jurídico brasileiro. assim, a democratização do acesso à terra através do instituto da
usucapião especial urbana e da concessão do direito real de uso, no
caso das áreas particulares e públicas, respectivamente.
2 – Dificuldades para efetivação Na segunda gestão da administração popular, na cidade de Porto Ale-
da ação de Usucapião Coletiva gre, houve a criação de uma equipe, junto à Procuradoria Geral do
Município tendo, dentre outras, a seguinte atribuição: orientação e
Para apurar de forma prática a efetividade da ação de usucapião es- defesa em qualquer grau de jurisdição das pessoas comprovadamen-
te necessitadas, em questões relativas à regularização fundiária. 10
pecial coletiva, foi procurado dentro de uma realidade próxima como es-
tão sendo administrados os mecanismos que possibilitam a regularização
Segundo a Dra. Vanêsca (informação verbal)11, foram realizados en-
da propriedade imóvel, por meio desta nova ação. Para tanto, entrou-se
contros com muitas comunidades de áreas ocupadas irregularmente no
em contato com a Procuradoria Geral do Município de Porto Alegre, em
Município, mas infelizmente nem todas puderam ser objeto de ação de
particular com a Dra. Vanêsca Buzelato Prestes8. Em entrevista pessoal,
realizada em 19 de maio de 2011, na Procuradoria Geral do Município, a usucapião coletiva. Os problemas que deflagraram essa situação foram
Dra. Vanêsca respondeu a questionamentos referentes à ação de usuca-
pião especial coletiva no âmbito do Município de Porto Alegre. 9 PORTO ALEGRE, Anuário Estatístico 2009 Prefeitura de Porto Alegre. Disponível em
<http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/anuario/usu_doc/anuario_internet_2009.pdf>.
Acesso em 01 junho 2011.
8 Procuradora e Corregedora-Geral da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre, Membro
do Corpo editorial da Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto, Alegre, Diretora da 10 ALFOSIN, Betânia de Moraes apud OSÓRIO, Letícia Marques. Estatuto da Cidade e Reforma
Fundação Escola Superior de Direito Municipal, ESDM, exercendo ainda atividades correlatas de Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras. Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor,
Coordenadora-Geral do Projeto Direito e Mudanças Climáticas nos Países Amazônicos do Instituto 2002. p. 143.
“O Direito por um Planeta Verde”, Diretora de Comunicação Social do Instituto “O Direito por um 11 Entrevista pessoal realizada no dia 19.05.2011, na Procuradoria Geral do Município de Porto
Planeta Verde”, Conselheira do Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos – Alegre, às 17:30h, na sala da Corregedoria-Geral, na Rua Siqueira Campos, 1300, 9 andar, centro,
CFDD/ Ministério da Justiça. Porto Alegre.

414 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 415
muitos. Dentre eles, a previsão do art. 12, do Estatuto da Cidade, refe- Lei dos Condomínios e Incorporações Imobiliárias (Lei nº 4.591, de
rente a legitimidade para a propositura da ação. 16.12.1964). As deliberações relativas à administração deste condo-
De acordo com a previsão legal citada acima, são legitimados para mínio serão tomadas por maioria de votos dos condôminos presentes,
atuarem como autores na ação, ordinariamente, os possuidores da área obrigando também os demais, discordantes ou ausentes.17
pretendida. Cada possuidor pode demandar isoladamente, uma vez que A propositura da ação por um dos possuidores, isoladamente ou
se trata de litisconsórcio facultativo (a demanda depende unicamente em litisconsórcio apresenta outro problema social: muitos possuidores
da vontade de quem ajuíza) e simples (a ação será improcedente apenas não têm interesse em se identificar nessas ações, principalmente os tra-
para aqueles que não preencherem os requisitos legais).12 ficantes que residem nesses locais. Há por parte desses criminosos tam-
Se apenas um dos possuidores propor a ação, este deverá indicar bém uma pressão sobre a comunidade, pois as irregularidades dessas
na petição inicial os demais possuidores, uma vez que estará figurando ocupações favorecem o exercício da atividade ilícita. A regularização da
como substituto processual de todos eles, apresentando-se como legiti- área, com posterior urbanização, faria com que os acessos dessas vielas
mado extraordinário.13
pudessem ser percorridos pela polícia com maior facilidade.
Além dos possuidores, que podem propor a ação conjunta ou iso-
A forma irregular e desorganizada das ocupações por população
ladamente, também está legitimada, como substituta processual, a as-
de baixa renda favorece e muito o tráfico de drogas, isso pode ser ve-
sociação de moradores, desde que regularmente constituída, com per-
rificado pelos excertos abaixo transcritos referente ao estudo sobre as
sonalidade jurídica e explicitamente autorizada pelos representados.14
favelas territorializadas por traficantes:
Fábio Caldas de Araújo, ilustre juiz de direito no Estado do Paraná, ana-
lisa essa norma com muita cuidado em sua obra, afirmando que o legislador
Uma favela territorializada por traficantes de drogas é, por conseguin-
do Estatuto da Cidade, confundiu os conceitos de representação e substi- te, uma favela que foi submetida ao controle (menos ou mais tirânico)
tuição processual, pois, na realidade, a norma contida no inc. III do art. 12 de criminosos que comercializam drogas ilícitas. Essa territorialização
trata de representação, porquanto a expressão “desde que explicitamente é, por assim dizer, comumente acompanhada pela desterritorializa-
autorizada pelos representantes”, constante do referido inciso, estaria a ção, ainda que apenas parcial, de entidades como associações de
indicar hipótese de representação e não de substituição processual.15 moradores – não porque elas desapareçam, mas porque se vêem en-
Alguns doutrinadores entendem que a associação de moradores é fraquecidas (e, não raro, são manipuladas) e, com isso, perdem poder
legitimada extraordinária e não mera representantes dos possuidores, (e, muitas vezes, legitimidade).
A territorialização de favelas por traficantes se inscreve nos marcos
podendo ajuizar a ação em nome próprio, independentemente da auto-
de um processo que o autor vem, há vários anos, denominando frag-
rização dos mesmos, bastando a autorização da maioria por assembléia. mentação do tecido sociopolítico-espacial da cidade (vide, por exem-
A petição, nesse caso, deve conter a indicação de todos os substituídos, plo, SOUZA, 1996b e 2000b).
para que o juiz possa examinar a situação de cada um deles, declarar [...]
quem adquiriu a propriedade e qual a fração ideal de cada um.16 Fica evidente que, para os traficantes, objetivamente, não interes-
O condomínio especial constituído pela sentença que declara- sa nenhum tipo de intervenção sobre o espaço favelado que possa
rá a propriedade na ação de usucapião coletiva, não será regido pela ameaçar as suas condições de segurança. Adicionalmente, pode-se
registrar que, uma vez que a presença e o domínio dos traficantes
12 RIGO, Vivian. A usucapião coletiva. Disponível em http://tex.pro.br/tex/listagem-de- se baseiam, em grande parte, em relação de dependência que eles
-artigos/219-artigos-abr-2006/5234-24-a-usucapiao-coletiva. Acesso em 31 maio 2011. estabelecem com a população da favela (seja mediante a renda que
13 RIGO, Vivian. A usucapião coletiva. Disponível em http://tex.pro.br/tex/listagem-de- o tráfico gera, seja por meio dos “presentes” que um ou outro tra-
-artigos/219-artigos-abr-2006/5234-24-a-usucapiao-coletiva. Acesso em 31 maio 2011. ficante, eventualmente, oferece à população local, seja, ainda pela
14 RIGO, Vivian. A usucapião coletiva. Disponível em http://tex.pro.br/tex/listagem-de- proteção – tão relativa e variável conforme o líder do tráfico local...-
-artigos/219-artigos-abr-2006/5234-24-a-usucapiao-coletiva. Acesso em 31 maio 2011. que os bandidos oferecem à população favelada), qualquer processo
15 ARAÚJO, Fábio Caldas apud SALLES, José Carlos de Moraes. Usucapião de bens imóveis e que conduza a uma diminuição dessa dependência poderá vir a ser
móveis. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 336. encarado com suspeita e hostilidade pelos criminosos.
16 RIGO, Vivian. A usucapião coletiva. Disponível em http://tex.pro.br/tex/listagem-de-
-artigos/219-artigos-abr-2006/5234-24-a-usucapiao-coletiva. Acesso em 31 maio 2011. 17 SÉGUIN, Elida. Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 200.

416 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 417
[...] possui 140 autores e até o momento possui quase duas mil páginas,
O efeito disso tudo vai além de eventuais dificuldades para interven- divididas em dez volumes.
ções estatais com o objetivo de regularizar fundiariamente ou urbani- A partir desse momento começou outra situação difícil: o proces-
zar uma dada favela: tem a ver com a margem de manobra para que
samento do feito junto ao Judiciário. Os autores da referida ação foram
as transformações almejadas sejam conduzidas nos marcos de uma
contemplados pelos benefícios da lejustiça e da assistência judiciária
efetiva participação da população local.
[...] gratuita, de acordo com o §2º do art. 12 da Lei nº 10.257/01. Sendo
Mas pergunte-se: que participação seria possível em uma favela cuja que no caso de procedência da demanda, essa gratuidade se estende,
associação de moradores se acha enfraquecida ou desmoralizada (ou inclusive perante o cartório de registro de imóveis.
transformada em fantoche) por traficantes de drogas e cuja popula- Conforme o art. 14 da Lei nº 10.257/01 o procedimento a ser uti-
ção se acha amedrontada? Qualquer “participação”, tendo isso por lizado é o sumário. Embora a sumarização do processo de usucapião
pano de fundo, tende a ser uma piada de mau gosto, uma caricatura especial urbana tivesse o objetivo de contemplar maior celeridade pro-
das mais grosseiras. Para uma prefeitura cujo estilo de planejamento cessual, não é o que de fato tem ocorrido na prática.
e gestão seja conservador e antiparticipativo, isso pouco importa; o
O processo de usucapião coletiva da Vila Operária estava inserido
único problema, de seu ponto de vista, são os embaraços acarretados
para a execução do cronograma de levantamentos e obras. É certo, na META 02, do CNJ, o qual teria o prazo até 31.12.09 para ser julgado,
entretanto, que, permeável à participação popular ou não, qualquer porém após quase oito anos de seu ajuizamento, ainda não foi senten-
prefeitura estaria diante de um quadro como o do Rio de Janeiro ciado, estando na fase de instrução19.
(apenas para ficar com o exemplo mais notório e grave) com um gran- Pelo histórico que se viu da ação de usucapião coletiva da vila Ope-
de problema nas mãos: com quem dialogar, se muitas associações rária percebe-se que o Judiciário ainda não está preparado para recep-
de moradores são, no fundo, controladas pelos traficantes? Quem cionar demandas coletivas como a ação de usucapião coletiva.
são os interlocutores “legítimos” e quais são os “ilegítimos” – e como Inúmeros problemas surgiram e continuam a surgir no decorrer do
saber, na prática, quem é quem? Como esperar que a população se
processo.
“auto-organize” e “participe livremente” se ela se acha manietada
e temerosa? “Planejamento Participativo” é algo que se torna, sob
Reunir cento e quarenta pessoas e obter a documentação hábil para
essas circunstâncias, mero wishful thinking, ou não muito mais que qualificá-las, conforme preceitua o art. 282, do Código de Processo Civil
isso. O que, na prática, pode acabar acontecendo é que os trafican- não é tarefa fácil de ser cumprida, principalmente no que diz respeito
tes, eles sim, “participem” (vetando, sugerindo ou impondo, via de “as provas com que o autor pretende demonstrar a verdade dos fatos
regra por meio de terceiros, e quase nunca diretamente) – e não “a alegados”.
população”.18 Muitos autores, com nomes extensos, tiveram seus sobrenomes abre-
viados na inicial, tendo que os procuradores sanarem tal aspecto, a fim
Entre tantos empecilhos encontrados, a Procuradoria Geral do Muni- que fossem corretamente qualificados cada autor e evitar homonímia.
cípio de Porto Alegre, desde o advento do Estatuto da Cidade, somente Os réus não foram localizados, sendo citados inclusive por edital e
obteve êxito em ingressar com apenas uma ação de usucapião coletiva. nomeado curador especial para representá-los em juízo.
Trata-se da ação para regularizar a Vila Operária, localizada no Bairro O §1º do artigo 12 da Lei nº 10.257/01 estabelece que é obriga-
Alto Petrópolis, na zona norte da capital. Em relação às outras vilas ir- tória a intervenção do Ministério Público em todos os atos. Esse dispo-
regulares espalhadas pelo Município, a discussão não chegou ao papel. sitivo legal tem conteúdo semelhante ao do preceito inserto no art. 944
Foi realizada visita in loco junto ao foro Alto Petrópolis para analisar do Código de Processo Civil.
os autos do processo da ação de usucapião coletiva da Vila Operária.
A ação foi ajuizada em 29.08.2003, sob o nº 001/1.05.00132023, 19 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Ordinária nº 001/1.05.00132023. Parte
autora: Alceu Costa Moreira. Parte ré: Nortran Transportes Coletivos Ltda. Juiz: Ana Beatriz Iser.
18 ALFONSIN, Betânia, e FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Nota de expediente nº 642/2009, 03.08.2009. Disponível em <http://www.tjrs.jus.br/site_php/
Estatuto da Cidade. Diretrizes Instrumentos e Processo de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, consulta/consulta_partes.php?entrancia=1&comarca=porto_alegre&num_processo=10500132
2004. p.252-257. 023&code=1243>. Acesso em 01 junho de 2010.

418 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 419
Assim, cumprindo o dispositivo legal, o MP têm tido ciência e in- e outros serviços públicos essas áreas terão de ser futuramente desa-
tervindo em todos os atos processuais da ação de usucapião da Vila propriadas. O §4º do art. 10 do Estatuto da Cidade prevê a extinção do
Operária. Em uma dessas intervenções o Ministério Público, após aná- condomínio por meio de “deliberação favorável tomada por, no mínimo,
lise minuciosa e dispendiosa dos autos, verificou que muitos dos cento dois terços dos condôminos, no caso de execução de urbanização pos-
e quarenta autores não haviam juntado certidão do registro de imóveis terior à constituição do condomínio”.
que comprovassem que os mesmos não são proprietários de imóveis e Esse dispositivo novamente se depara com enclaves sociais, pois
assim requereu que a juíza a quo diligenciasse essa informação junto aos terá de se formar assembléia posterior à declaração de formação do
Cartórios de imóveis. condomínio para deliberarem sobre a possibilidade de extinção do con-
A comprovação de que os possuidores não são proprietários de ou- domínio e a sua urbanização, porém isso pode ser barrado pela ação da-
tros imóveis urbanos ou rurais, é previsão contida no caput, do art. 10, queles que não desejam ver essas vilas/favelas acessíveis à mão estatal,
do Estatuto da Cidade, e é condição obrigatória para adquirir a proprie- como já dito anteriormente.
dade por meio dessa modalidade de usucapião. O Município de Porto Alegre tem se direcionado a outras alternati-
Depois de mais de dois anos, diversas diligências e três volumes de vas para a regularização de áreas ocupadas irregularmente, do que pela
certidões de registro de imóveis foi verificado que mais de vinte autores usucapião coletiva. Como através da regularização dentro do Programa
são proprietários de imóveis. Minha Casa Minha Vida – Lei nº 11.977/2009 -, e pelo More Legal.
A demanda está paralisada nesse ponto. A última movimentação Simone Santos Moretto e Simone Somensi, no Congresso de Direito
processual, datada de 02.03.11, requereu a manifestação pessoal dos Municipal, realizado em junho de 2007, relatam as ações que a Prefeitu-
autores proprietários de imóveis, para que pronunciem a respeito20. ra de Porto Alegre tem realizado para enfrentar a situação das áreas irre-
Nelson Rosenvald analisou esta questão tendo se manifestado da gulares e clandestinas, conforme se verifica no excerto abaixo transcrito:
seguinte forma:
Colocada como premissa básica a necessidade dos programas de regu-
Contudo, se a destinação for mista – para fins de residência e traba- larização objetivar a integração os assentamentos informais ao conjun-
lho simultaneamente -, não há óbice à usucapião. Realmente, esta to da cidade, e não apenas o reconhecimento da segurança individual
situação híbrida é muito corriqueira em nossa cultura e a efetivação da posse e da propriedade para os ocupantes, o Município de Porto
da atividade econômica não deprecia o sentido concomitante da mo- Alegre montou uma equipe multidisciplinar, formada por procuradores,
radia que é exercida pelo possuidor. Destaca IBRAIM ROCHA que “no arquitetos, agentes comunitários, engenheiros, topógrafos, biólogos, ge-
caso de no imóvel haver este tipo de atividade, não se descaracteriza ólogos, criando a chamada Gerência de Regularização de Loteamentos.
a finalidade de morar, pois na realidade esta deve preponderar, a fim [...]
de atender ao objetivo do legislador de possibilitar o acesso ao direito Entre as competências da Gerência de Regularização de loteamentos,
de morar com dignidade. 21 podemos listar:
a) análise de expedientes administrativos cujo objeto sejam loteamen-
Outra problemática reside quanto à urbanização das áreas após a tos clandestinos e irregulares, abrangendo os procedimentos necessá-
rios à etapa da regularização através da instituição de área especial
constituição do condomínio indivisível. O problema é que cada possui-
de interesse social – AEIS, bem como a aplicação da Lei complemen-
dor deterá uma fração ideal desse condomínio indivisível e para que seja tar nº 140 de 22/07/1986;
possível a construção de vias públicas, praças, postos de saúde, escolas, b) ajuizamento de ações competentes para responsabilização civil e
20 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Ordinária nº 001/1.05.00132023. Parte penal dos loteamentos irregulares e clandestinos;
autora: Alceu Costa Moreira. Parte ré: Nortran Transportes Coletivos Ltda. Juiz: Ana Beatriz Iser. c) execução de levantamentos topográficos e projetos urbanísticos em
Movimentação processual datada de 02.03.11 Disponível em <http://www.tjrs.jus.br/site_php/con- situações submetidas à análise e consideração da Gerência de Regu-
sulta/consulta_partes.php?entrancia=1&comarca=porto_alegre&num_processo=10500132023
larização de Loteamentos;
&code=1243>. Acesso em 01 junho de 2010.
d) ajuizamento de ações de registro com base no Provimento n.
21 ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves de. Direitos Reais. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2008.p. 288. 28/2004 da corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça do

420 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 421
Estado do Rio Grande do Sul, denominado Projeto More Legal22. o Judiciário para que seja garantido o seu direito à saúde ou à educação,
(grifo nosso) também se quiser poderá o fazer em relação ao direito de moradia. Só
que o cumprimento do direito à moradia é algo bem mais complexo de
O Projeto More Legal foi instituído pelo Poder Judiciário do Rio ser efetivado. Embora o Judiciário sentencie o Município a providenciar
Grande do Sul, através da Corregedoria-Geral da Justiça, com o obje- moradia para tais e tais comunidades, há uma série de questões a serem
tivo de implementar a regularização fundiária de inúmeras áreas que enfrentadas, como orçamento disponível, previsão no plano diretor, im-
se encontram na clandestinidade jurídica. O projeto foi idealizado pelo pacto ambiental, dentre outras peculiaridades.
Desembargador Décio Antônio Erpen, quando Corregedor-Geral da Jus- A construção de moradias financiadas pelo Município e agentes fi-
tiça, e consolidado através dos Provimentos nº 39/95 – CGJ e nº 1/98- nanceiros estatais também poderia ser uma solução possível para imple-
CGJ. Sofreu alterações posteriores decorrentes da publicação dos Provi- mentar a efetividade do direito à propriedade e garantir moradia digna
mentos nº 17/99- CGJ e nº 28/04-CGJ, que instituíram o “More Legal 2 às pessoas de baixa renda. Mas nem sempre as decisões tomadas pela
e 3” através do Corregedor Geral, Desembargador Aristides Pedroso de governança vão ao encontro daquilo que é desejado pela população.
Albuquerque Neto.23 Em Porto Alegre, assim como nas grandes metrópoles, muitas pessoas
A Dra. Vanêsca, em sua obra “Direito Urbanístico” fala a respeito do carentes acabam fazendo moradia perto da área central, seja porque
More Legal, nos seguintes termos: daí lhe advém mais renda, através do recolhimento de materiais para
reciclagem, seja para atividades de venda ambulante, prostituição, etc.
A utilização desse Provimento é uma forma de concretizar o princípio O que ocorre é que quando a municipalidade constrói residências para
da função social da propriedade e do direito à moradia nos lote-
essas pessoas, por muitas vezes as deslocam para periferias longe dos
amentos clandestinos e irregulares. Afastar o Provimento sem exami-
centros urbanos, que fazem com que essas pessoas tenham que contar
nar o caso concreto, deixaria à margem da regularidade (e da cidade
formal) um enorme passivo ambiental das cidades brasileiras. Impor- com o pagamento de transporte, não terão mais acessíveis suas formas
tante para a Cidade é a garantia de que as regularizações jurídicas, de obter renda. O resultado é que essas pessoas acabam vendendo por
cujo Programa More Legal é instrumento e procedimento que atinge ninharia as novas residências, pois não possuem condições de sobrevi-
tal objetivo, sejam precedidas de obras de infra-estrutura mínima que ver sem renda, e retornam aos centros urbanos.
atendam as melhorias urbano-ambientais exigidas.24(grifo nosso) Uma moradia, com fonte de renda, serviços e assistência do Estado
é o mínimo para garantir uma vida digna ao ser humano.
O direito à moradia citado pela Dra. Vanêsca, é direito social estabe- A teoria chamada de patrimônio mínimo, é estudada por Luiz Edson
lecido no art. 6º da Constituição Federal. Em palestra, realizada no dia Fachin, que trata do mínimo existencial para a proteção à dignidade da
19 de maio de 2011, na Escola Superior de Direito Municipal, o também pessoa humana, na direção de uma nova ordem acerca da organização
Procurador do Município de Porto alegre, André Santos Chaves, pales- da propriedade, colocando-a em uma linha de interpretação também
trava sobre “A efetivação do direito de moradia pelo Judiciário”, nesta pública constitucional.25
oportunidade ele argumentava que sendo a moradia um direito social Ao chegar neste ponto, vislumbra-se que algumas das considerações
garantido na Carta Magna de 1988, o Judiciário deverá intervir no caso pessimistas dos críticos da usucapião coletiva possuem certo fundamen-
de seu descumprimento. Assim, como no caso de um cidadão procurar to. Pelo menos em Porto Alegre a experiência não tem sido frutífera. Este
fato leva à reflexão de que nem todas as previsões legais ditas “revolucio-
22 CONGRESSO DE DIREITO MUNICIPAL- A Federação e as Políticas Públicas em Debate. nárias” encontram abrigo à teia social, burocrática e processual existente.
Porto Alegre: ESDM, 2007. p. 190.
Esperávamos chegar ao fim deste trabalho apontado resultados
23 PAIVA, João Pedro Lamana. Projeto “More Legal” Disponível em <http://www.lamanapai-
positivos em relação à efetividade da usucapião coletiva, e que esta
va.com.br/mostra_novidades.php?id_novidades=82&id_noticias_area=1>. Acesso em 20 maio
2011.
24 PRESTES, Vanêsca e VIZZOTTO, Andrea Teichmann. Direito Urbanístico. Porto Alegre: Verbo 25 FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar,
Jurídico, 2009. p. 93. 2006. p. 49.

422 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 423
realmente estivesse já disseminada na prática. Ma o que se percebe O judiciário se vê amarrado às burocracias dentro do próprio siste-
é que os mecanismos processuais existentes ainda não estão aptos ma, e também de requisitos legais que chegam a ser demasiadamente
a recepcionar inovações de tamanha monta no âmbito de demandas difíceis de serem cumpridos, como por exemplo, comprovar que cente-
coletivas. nas ou milhares de pessoas em uma ação coletiva não são possuidoras
Para concluir citamos o pensamento do jurista Pablo Stolze Gaglia- de outro imóvel.
no, em seu artigo “Controvérsias constitucionais acerca do usucapião A experiência prática de usucapião coletiva no Município de Por-
coletivo”, que dispões nos seguintes termos: to Alegre, estudada neste trabalho, é uma pequena demonstração que
nem sempre a finalidade de uma lei chega ao fim pretendido.
E constatamos isso não sem certa preocupação, pois, afinal de contas, A intenção do legislador que editou o art. 10 do Estatuto da Cidade
a adoção de normas aparentemente válidas, embora materialmente é nobre, porém de difícil aplicação prática. Enquanto ainda existem en-
ineficazes – cercadas muitas vezes por todo um discurso meramen- traves sociais, processuais e burocráticos para a efetivação da usucapião
te simbólico e acentuadamente demagógico - resulta por prejudicar
coletiva, a alternativa é buscar outras opções menos burocráticas, mais
ainda mais imagem do próprio Poder Judiciário, incrementando ainda
mais a insatisfação do jurisdicionado. maleáveis de serem realizadas.
Esperamos, portanto, diante de tudo que se expôs, que o legis- O foco mais importante a ser alcançado é propiciar à população
lador faça a parte dele, para que nós, juízes, possamos fazer a mais carente o direito a uma moradia digna. Enquanto caminha-se para
nossa. 26 (grifos nossos) esse objetivo, ainda que com tropeços de leis com pouca efetividade, o
mais importante é que não se está inerte, indiferente com essa realida-
Não se pode negar que o objetivo do legislador foi nobre, porém, de social. A cada passo em frente, seja com quedas e obstáculos, pelos
não calçado em instrumentos hábeis para sua concretização. menos é sinal que se está seguindo adiante.

CONCLUSÃO REFERÊNCIAS

O estudo sobre o instituto da usucapião coletiva demonstra grande ALFONSIN, Betânia, e FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança
importância prática na atualidade, visto que se relaciona diretamente da posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes Instrumentos e Processo de Ges-
com a questão habitacional do nosso país. tão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004
A aquisição da propriedade imóvel pela população de baixa renda ALFOSIN, Betânia de Moraes apud OSÓRIO, Letícia Marques. Estatuto da
ainda é algo muito distante da realidade dessas pessoas. Em que pese Cidade e Reforma Urbana: novas perspectivas para as cidades brasileiras.
o objetivo do artigo 10 do Estatuto da Cidade, tenha de propiciar às Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 2002
pessoas de baixa renda a garantia de uma vida digna, por meio da CONGRESSO DE DIREITO MUNICIPAL- A Federação e as Políticas Públicas
aquisição da propriedade imóvel, não tem sido esse o resultado en- em Debate. Porto Alegre: ESDM, 2007.
DADALT, Marcelo e RIGO, Vivian. A usucapião. Disponível em <http://www.
contrado.
tex.pro.br/wwwroot/00/060405ausucapiao.php>. Acesso em 28 maio 2011.
A experiência tem demonstrado que não resolve a publicação de
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 4: direito das coisas.
uma lei “revolucionária” ou a criação de um novo mecanismo, sem que
21. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
haja ferramentas hábeis para pô-la em prática, especialmente quanto ao
FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio Mínimo. 2 ed. Rio de
processamento da ação de usucapião coletiva no Judiciário.
Janeiro: Renovar, 2006.
GAGLIANO, Pablo Stolze. Controvérsias constitucionais acerca do usucapião
26 GAGLIANO, Pablo Stolze. Controvérsias constitucionais acerca do usucapião coletivo. coletivo. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8318/controversias-
Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/8318/controversias-constitucionais-acerca-do-
-constitucionais-acerca-do-usucapiao-coletivo> Acesso em 31 maio 2011
-usucapiao-coletivo> Acesso em 31 maio 2011

424 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 425
GRANTHAM, Silvia Resmini . Os limites subjetivos da coisa julgada nas deman-
das coletivas. Disponível em <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4186/os-limi-
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MALUF, Carlos Alberto apud ALBUQUERQUE, Marina Cândida. A usucapião
coletiva no novo Código Civil. Disponível em <http://jus2.uol.com.br/doutri-
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Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
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RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Ação Ordinária nº
Política Urbana, Mudanças Climáticas e
001/1.05.00132023. Parte autora: Alceu Costa Moreira. Parte ré: Nortran Código Florestal
Transportes Coletivos Ltda. Juiz: Ana Beatriz Iser. Nota de expediente nº
642/2009, 03.08.2009. Disponível em <http://www.tjrs.jus.br/site_php/con-
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SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 7ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2007.
SÉGUIN, Elida. Estatuto da Cidade. Rio de Janeiro: Forense, 2005.

426 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Evolução legislativa do tratamento do
direito à moradia em áreas de
preservação permanente no Brasil1
Amanda Silvano2

Resumo: O presente trabalho investiga a evolução do tra-


tamento legislativo dado ao direito à moradia em áreas de
preservação permanente no Brasil. Para tal investigação,
inicialmente foi abordado brevemente o tema da urbaniza-
ção brasileira desde o século XX, tendo esta revelado um su-
posto conflito entre o direito ao meio ambiente e o direito à
moradia. Após, foi traçada uma evolução cronológica das le-
gislações brasileiras que trataram e ainda tratam do direito
à moradia em áreas de preservação permanente, partindo-
-se da análise do Código Florestal Brasileiro de 1965, per-
correndo a Constituição Federal Brasileira de 1988, a Medi-
da Provisória nº 2.166-67 de 2001, a Resolução CONAMA
nº 369 de 2006, e por fim, chegando ao regramento dado
pela Lei nº 11.977 de 2009. A conclusão a que se chega
é que a legislação brasileira evoluiu e tem evoluído a fim
de promover a realização do direito à moradia e do direito
ao meio ambiente de forma concomitante, sendo exemplo
inegável disso a possibilidade de regularização fundiária de
interesse social em áreas de preservação permanentes.
Palavras-chave: Urbanização Brasileira. Conflito entre Di-
reito à Moradia e Direito ao Meio Ambiente. Áreas de Pre-
servação Permanente. Código Florestal Brasileiro de 1965.
Constituição Federal Brasileira de 1988. Medida Provisória
nº 2.166-67 de 2001. Resolução CONAMA nº 369 de
2006. Lei nº 11.977 de 2009. Regularização fundiária de
interesse social em áreas de preservação permanentes.
INTRODUÇÃO

1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para
obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado, com grau máximo, pela banca examinadora,
composta pelos professores Betânia de Moraes Alfonsin (orientadora), Cláudio Lopes Preza Júnior
e Magda Azario K. Polanczyk, em 07 de junho de 2011.
2 Acadêmica de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: amanda.silvano@acad.pucrs.br.

428 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 429
A urbanização no Brasil, ao longo das últimas décadas, vem sendo 1.1. Breves Considerações Históricas sobre a
marcada fortemente pela ocupação irregular em áreas com grande valor Urbanização Brasileira desde o Século XX
ambiental, não sendo raro presenciarmos em nosso dia-a-dia assenta-
mentos informais localizados em locais de grande fragilidade ambiental. No Brasil, a urbanização, na sua forma mais intensificada, começou
Diante dessa realidade fática, o presente trabalho expõe qual o tra- a ocorrer na metade do século XX, entre as décadas de 40 e 90, sendo
tamento que a legislação brasileira tem dado ao direito à moradia nes- ocasionada especialmente pelo êxodo rural provocado pela forte crise
sas áreas, mais especificamente, nas áreas de preservação permanente. nas lavouras de café.
Inicialmente, temos um panorama de completa ausência de regu- As pessoas migraram para os centros urbanos com a ilusão de me-
lação desse direito, estabelecido pela Lei nº 4.771 de 1965. Após, a lhorias de trabalho, de ganhos financeiros e de oportunidades em geral,
Constituição Federal Brasileira de 1988 ofereceu às áreas ambientais atraídos também pela crescente industrialização das cidades.
especialmente protegidas, como é o caso das áreas de preservação A urbanização, que se deu de forma rápida e desordenada, não ofe-
permanente, tratamento legislativo específico no que tange ao proce- receu o tempo que as cidades necessitavam para se prepararem para
dimento de modificação desses espaços. Já a Medida Provisória nº a recepção dos migrantes, não conseguindo atender às necessidades
2166-67 de 2001 previu a possibilidade de haver supressão de vege- básicas da população que chegava, fazendo com que a população pro-
tação nos espaços protegidos ambientalmente de modo permanente. curasse locais informais de moradia.
Por sua vez, a Resolução CONAMA nº 369 de 2006 estabeleceu um Dessa maneira, depreendemos que a informalidade urbana resul-
cenário mais detalhado sobre o direito em questão, ampliando os ca- tou, inevitavelmente, na formação de assentamentos irregulares instala-
sos em que pode haver a intervenção ou a supressão de vegetação em dos em áreas protegidas ambientalmente.
áreas de preservação permanente, e dispondo sobre a possibilidade de De acordo com Edésio Fernandes:
regularização fundiária nessas áreas. Por fim, a Lei nº 11.977 de 2009
estabeleceu, dentre outras inovações, a possibilidade de compatibilizar Uma das principais características da urbanização intensa no Brasil ao
o direito à moradia e o direito ao meio ambiente, ao ditar regras para longo das últimas décadas tem sido a ocupação crescente de áreas de
a regularização fundiária de interesse social em áreas de preservação preservação permanente, áreas de mananciais, áreas ‘non-aedifican-
di’ e outras áreas que contêm valores ambientais3.
permanente.
Cumpre esclarecer que as áreas de preservação permanente são
Assim, o cenário urbano-brasileiro atual é marcado pela ocupação
espaços dotados de imodificabilidade, visto que a alteração das carac-
informal de áreas com grande valor ambiental, protegidas de maneira
terísticas ecológicas dessas áreas implicaria em desequilíbrio ambiental
permanente.
irreparável e prejudicial a todos.
Assim, diante da importância dessas áreas e da realidade atual de
1.2 Conflito entre o Direito ao Meio Ambiente e o Direito à
ocupação delas, o ordenamento jurídico brasileiro não pode mais negar
Moradia como consequência da Urbanização Brasileira
a existência do direito à moradia nesses espaços, mas deve reconhecê-lo
e tentar regularizá-lo, de modo a garantir o direito à moradia, sem es-
A urbanização rápida e desordenada das cidades brasileiras não oca-
quecer que o direito ao meio ambiente deve ser garantido às presentes
sionou apenas o problema da instalação informal em áreas de grande valor
e futuras gerações.
ambiental, mas revelou um suposto conflito entre dois direitos constitucio-
Mister se faz, assim, demonstrar a evolução legislativa ocorrida no
nalmente protegidos: o direito ao meio ambiente e o direito à moradia.
Brasil em relação ao tratamento do direito à moradia em áreas de pre-
O direito ao meio ambiente vem previsto no artigo 225, caput, da
servação permanente.
1. A URBANIZAÇÃO NO BRASIL 3FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Coords.). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e
Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 356.

430 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 431
Constituição Federal de 1988, sendo um direito subjetivo, pois o indi- PRESERVAÇÃO PERMANENTE
víduo e todos têm direito a ele; prospectivo, visto que garantido às pre-
sentes e futuras gerações; e de titularidade coletiva, pois é um direito de 2.1 Conceito de Áreas de Preservação Permanente
cada um de nós como seres humanos.
Assim, podemos dizer que o direito ao meio ambiente está intima- Existem algumas áreas ambientais que são essenciais às funções
mente ligado à dignidade da pessoa humana, na medida em que a ga- ecológicas, visto que a destruição delas implicaria em grave ameaça à
rantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado transcende a vida humana em virtude do desequilíbrio ambiental irreparável causado,
atualidade e se preocupa com as gerações seguintes. áreas essas denominadas como sendo de preservação permanente.
Já quanto ao direito à moradia, este está elencado no artigo 6º, ca- As áreas de preservação permanente são dotadas da característica
put, da Constituição Federal Brasileira de 1988 como sendo um direito da imodificabilidade, e esse atributo é justificado pela obrigatoriedade
social. Entretanto, antes mesmo de ser um direito posto na Magna Carta constitucional de garantia de um meio ambiente ecologicamente equili-
Brasileira, a necessidade de se ter um local como referência e abrigo já brado para as presentes e futuras gerações.
existia, sendo inerente à condição humana e determinando a qualidade Porém, mesmo tendo as áreas de preservação permanente proteção
de vida da pessoa. legal, diversas vezes nos deparamos com o desrespeito a ela, manifestado
Conforme o exposto, inegável o reconhecimento da importância tan- através da moradia informal nesses espaços especialmente protegidos.
to do direito ao meio ambiente, como do direito à moradia.
Diante disso, como negar o direito à moradia a uma pessoa que 2.2 Áreas de Preservação Permanente e a Lei Nº 4.771 de 1965
ocupa uma área protegida ambientalmente de forma permanente, mas
somente tem condições de ocupar esse determinado local? Como negar A Lei nº 4.771 de 1965, o chamado Código Florestal Brasileiro, se
ao meio ambiente a possibilidade de se perpetuar para as presentes limitou em definir, em seus artigos 2º e 3º, dois tipos de conceitos de
e futuras gerações porque uma pessoa precisa morar em determinado áreas de preservação permanente; o primeiro quanto à localização/situ-
local? ação, e o segundo quanto à destinação/finalidade.
Neste sentido, dispõe Maria do Carmo Bezerra e Tatiana Chaer: Apesar de o Código Florestal ter disposto sobre dois conceitos de
áreas de preservação permanente, nada contemplou em relação à auto-
As ocupações informais de baixa renda em áreas de fragilidade am- rização de intervenção ou supressão da vegetação nessas áreas.
biental fazem contrapor dois valores e direitos constitucionalmente Desse modo, o panorama inicial que temos com o Código Florestal Bra-
garantidos: o direito de permanecer na área ocupada para moradia;
sileiro, no que tange ao direito à moradia em áreas ambientais protegidas
e o direito de todos ao meio ambiente saudável. Uma contraposição
permanentemente, é de completa ausência de regulação desse direito.
que requer o equilíbrio das decisões da ordem jurídica, no sentido
de garantir a compensação de um dos valores quando sobreposto ao
outro4.
3 AS EVOLUÇÕES DO TRATAMENTO LEGISLATIVO
Parecemos estar diante de um conflito sem solução, mas a evolução BRASILEIRO DADO AO DIREITO À MORADIA EM
da legislação brasileira tem nos mostrado que é possível proporcionar a ÁREAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE
realização desses dois direitos de importância imensurável e protegidos
pela nossa Constituição Federal Brasileira. 3.1 A Constituição Federal Brasileira de 1988
2 DIREITO À MORADIA EM ÁREAS DE
O artigo 225, § 1º, inciso III, da Constituição Federal Brasileira ofe-
4 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de pro- receu às áreas ambientais especialmente protegidas, como é o caso das
teção ambiental: a visão urbana e ambiental. 2010. p. 4. Disponível em: <http://www.joaobn. áreas de preservação permanente, tratamento legislativo específico no
com/chis/Artigos%20CHIS%202010/106-C.pdf>. Acesso em: 12 mar. 2011.
432 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 433
que tange ao procedimento de modificação desses espaços, não impe- interesse social ou baixo impacto ambiental, em que há possibilidade de
dindo de forma absoluta a alteração ou a supressão dessas áreas, mas autorização de intervenção ou de supressão de vegetação em áreas de
exigindo que estas fossem feitas através de lei específica, e não tão-so­ preservação permanente, ampliando os casos já previstos pela Medida
mente por decretos, portarias ou resoluções administrativas. Provisória nº 2.166-67 de 2001.
Como bem afirma Paulo Affonso Leme Machado: “Os constituintes Ainda, a Resolução do CONAMA em questão trouxe, em seu artigo
manifestaram a vontade do povo brasileiro de que haja maior tempo e 9º, uma hipótese específica de interesse social em que pode haver a
maior discussão quando se pretenda suprimir ou alterar os espaços prote- regularização fundiária, estabelecendo diversos requisitos e condições
gidos e seus componentes5”. para que ocorra a regularização fundiária sustentável de área urbana.
Aí está a grande contribuição da nossa Magna Carta em relação O que podemos salientar da redação deste artigo é que a Resolução
ao tema das áreas de preservação permanente, visto que um processo do CONAMA tentou estreitar ao máximo os casos em que pode haver
legislativo específico para a alteração dessas áreas proporciona maior regularização fundiária sustentável de área urbana, visto que estabele-
interação social para que a decisão de manter ou não a vegetação seja ceu critérios específicos para que essa regularização efetivamente ocor-
tomada com muita cautela. resse.
Segundo Ximena Cardozo Ferreira: “[...] a Resolução fixou parâme-
3.2 A Medida Provisória Nº 2.166-67 de 2001 tros a partir dos quais tornar-se-á possível a autorização, pelo órgão
ambiental competente, da regularização fundiária de ocupações de área
A Medida Provisória nº 2.166-67 de 2001 alterou, dentre outros de preservação permanente”6.
dispositivos, o artigo 4º, caput, no Código Florestal, trazendo a possibili- Após os parâmetros traçados pela Resolução CONAMA nº 369 de
dade de supressão de vegetação nas áreas de preservação permanente. 2006, foi aberto o caminho para que a regularização fundiária em áreas
Através da introdução do artigo supracitado, foram estabelecidas de preservação permanente ocorresse, especialmente a regularização fun-
diretrizes gerais da ocupação dessas áreas, estabelecendo que a supres- diária por interesse social, que foi regulada em 2009 pela Lei nº 11.977.
são de vegetação em área de preservação permanente poderia ser au-
torizada, desde que devidamente caracterizados os casos de utilidade 3.4 A Lei Nº 11.977 DE 2009
pública ou de interesse social, e ainda, que estes casos deveriam ser
motivados através de procedimento administrativo próprio, quando ine- A entrada em vigor da Lei nº 11.977 de 2009 trouxe grande inova-
xistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto, nos ção para o tema em questão, pois este diploma legal reforçou o rumo
termos do artigo abaixo colacionado: das novas alternativas de enfrentamento da cidade ilegal, e tratou dire-
Dessa forma, a Medida Provisória nº 2.166-67 de 2001 definiu tamente das ocupações constituídas sobre áreas de preservação am-
conceitos essenciais para que o direito à moradia em áreas de especial
biental no caso de interesse social.
proteção ambiental evoluísse, e traçou importantes diretrizes para que
Inicialmente, essa Lei conceituou pluridimensionalmente, em seu ar-
a supressão e a intervenção em áreas ambientalmente protegidas se
tigo 46, regularização fundiária como sendo:
concretizassem em casos específicos.
[...] o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais
3.3 A Resolução do CONAMA Nº 369 de 2006 que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação
de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o
A principal contribuição da Resolução CONAMA nº 369 de 2006, pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e
além da conceituação de áreas de preservação permanente, foi a defi-
nição, em seu artigo 2º, dos casos excepcionais, de utilidade pública, 6 FERREIRA, Ximena Cardozo. Regularização Fundiária em Área de Proteção Permanente: A
Resolução CONAMA 369/2006. In: SULZBACH, César Emílio; NERY, Cristiane da Costa; BOHRER,
5 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 13. ed. rev., atual. e ampl. Clarissa Cortes Fernandes (Orgs.). Congresso de Direito Urbano-Ambiental: Cinco Anos do Esta-
São Paulo: Malheiros, 2005. p. 721. tuto da Cidade - Desafios e Perspectivas. Porto Alegre: CORAG, 2006. p. 47.

434 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 435
o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado7. de interesse específico em áreas de preservação permanente.
Os casos de regularização fundiária por interesse social são carac-
Cabe ressaltar que no passado, regularização fundiária era entendida terizados especialmente pela ocupação predominante da área a ser re-
como um instrumento estritamente de cunho jurídico, mas atualmente é gularizada por população de baixa renda e pelo atendimento a, pelo
entendida como um processo multidisciplinar, devendo ultrapassar os menos, um dos requisitos do artigo 47, inciso VII, da Lei nº 11.977 de
condicionantes da legalização da ocupação e abranger de forma plena 2009, que dispõe:
os condicionantes sociais, físicos e econômicos, e ambientais.
Mas o conceito de regularização fundiária vai mais além. Segundo Art. 47.  Para efeitos da regularização fundiária de assentamentos
entendimento de Simone Somensi e Vanêsca Buzelatto Prestes: urbanos, consideram-se: 
[...]
A regularização fundiária é a concretização de princípios constitu- VII – regularização fundiária de interesse social: regularização fundiá-
cionais, que tem na dignidade da pessoa humana seu fio condutor, ria de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por
a segurança da posse, a função socioambiental da propriedade e o população de baixa renda, nos casos: 
equilíbrio urbano e ambiental seu substrato8. a) em que a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo
menos, cinco anos;
b) de imóveis situados em ZEIS; ou 
Por isso, podemos dizer que o diferencial introduzido pela Lei em
c) de áreas da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municí-
questão é o reconhecimento da perspectiva ambiental e social da regu-
pios declaradas de interesse para implantação de projetos de regula-
larização fundiária, de modo que a regularização fundiária deve resultar rização fundiária de interesse social11.
em melhoria das condições ambientais da ocupação, dando mais quali-
dade de vida à população.
Cumpre esclarecer que “ZEIS” são zonas especiais de interesse so-
A Lei nº 11.977 de 2009 diferenciou ainda regularização fundiária
cial, tendo a Cartilha “Regularização Fundiária Urbana: Como aplicar a
de interesse social de regularização fundiária de interesse específico,
Lei Federal nº 11.977/2009” definido como:
sendo fundamental tal diferenciação, pois a Lei nº 11.977 de 2009 es-
tabeleceu regras para a regularização fundiária em áreas de preserva-
[...] parcelas de área urbana destinadas predominantemente à mo-
ção permanente apenas para os casos de interesse social, não estando
radia de população de baixa renda e sujeitas a regras específicas de
abrangida a regularização de interesse específico nessas áreas. parcelamento, uso e ocupação do solo, que devem ser definidas no
A regularização fundiária de interesse social consiste em “regularização Plano Diretor ou em lei municipal específica12.
fundiária de assentamentos irregulares ocupados, predominantemente, por
população de baixa renda [...]9”, observadas ainda algumas condições. Sendo assim, além dos assentamentos irregulares serem ocupados
Já a segunda foi definida como “regularização fundiária quando não predominantemente por população de baixa renda, nas situações em
caracterizada o interesse social...10”.
que exista o reconhecimento legal ou administrativo do direito à mora-
Por se tratarem de regularizações distintas, os instrumentos e mecanis-
dia, devem ainda obedecer pelo menos um dos requisitos do artigo 47,
mos definidos especificamente para os casos de regularização fundiária de
inciso VII, alíneas “a”, “b” ou “c”, da Lei nº 11.977 de 2009.
interesse social não podem ser utilizados para a regularização fundiária de
Ressalta-se que esses requisitos devem ser cumpridos no caso de
interesse específico, não sendo possível realizar a regularização fundiária
qualquer regularização fundiária nos casos de interesse social, e não es-
7 Art. 46 (BRASIL. Presidência da República. Lei nº 11.977 de 2009. Brasília, DF, 2009. Disponível em: pecificamente quando essa regularização ocorre em áreas consideradas
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11977.htm>. Acesso em: 3 abr. 2011).
8 SOMENSI, Simone; PRESTES, Vanêsca Buzelatto. Regularização fundiária como política pública 11 Art. 47, inciso VII (BRASIL, 2009).
permanente: teoria e prática. Interesse Público, São Paulo, v. 12, n. 59, jan./fev. 2010. p. 230-231.
12 BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação e Secretaria Nacional de Pro-
9 Art. 47, inciso VII (BRASIL, 2009). gramas Urbanos. Regularização Fundiária Urbana: Como aplicar a Lei Federal nº 11.977/2009.
10 Art. 47, inciso VIII (BRASIL, 2009). Brasília, DF, 2010. p. 16.

436 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 437
de preservação permanente. ocupada para definir parâmetros urbanísticos e ambientais específicos,
A regularização fundiária de interesse social está condicionada à além de identificar os lotes, as vias de circulação e as áreas destinadas a
aprovação de um projeto de regularização fundiária. O artigo 51, da Lei uso público.
nº 11.977 de 2009 traz os elementos mínimos que devem estar presen- Assim, estabelecidos os requisitos gerais que devem ser obedecidos
tes no projeto de regularização: para a regularização fundiária nos casos de interesse social, passemos
a analisar os requisitos específicos para essa mesma regularização, em
Art. 51.  O projeto de regularização fundiária deverá definir, no míni- áreas de preservação permanente.
mo, os seguintes elementos:  Aduz o § 1º, do artigo 54:
I – as áreas ou lotes a serem regularizados e, se houver necessidade,
as edificações que serão relocadas; 
O Município poderá, por decisão motivada, admitir a regularização
II – as vias de circulação existentes ou projetadas e, se possível, as
fundiária de interesse social em Áreas de Preservação Permanente,
outras áreas destinadas a uso público; 
ocupadas até 31 de dezembro de 2007 e inseridas em área urbana
III – as medidas necessárias para a promoção da sustentabilidade ur-
banística, social e ambiental da área ocupada, incluindo as compen- consolidada, desde que estudo técnico comprove que esta interven-
sações urbanísticas e ambientais previstas em lei;  ção implica a melhoria das condições ambientais em relação à situa-
IV – as condições para promover a segurança da população em situ- ção de ocupação irregular anterior15.
ações de risco; e 
V – as medidas previstas para adequação da infra-estrutura básica.  Desse modo, através de decisão fundamentada, é possível a promo-
§ 1o  O projeto de que trata o caput não será exigido para o regis- ção pelo Município da regularização fundiária em áreas de preservação
tro da sentença de usucapião, da sentença declaratória ou da planta, permanente, sendo essas áreas definidas conforme disposição do Códi-
elaborada para outorga administrativa, de concessão de uso especial
para fins de moradia. 
go Florestal Brasileiro.
§ 2o  O Município definirá os requisitos para elaboração do projeto de Entretanto, essa possibilidade é restrita à regularização fundiária de
que trata o caput, no que se refere aos desenhos, ao memorial des- interesse social e é permitida apenas se a ocupação dessa área for ante-
critivo e ao cronograma físico de obras e serviços a serem realizados. rior a 31 de dezembro de 2007.
§ 3o  A regularização fundiária pode ser implementada por etapas13. Ainda, o assentamento deve estar inserido em uma área urbana
consolidada, que é definida pela Cartilha “Regularização Fundiária Urba-
O artigo 53, da Lei em questão trata, ainda, da previsão específica na: Como aplicar a Lei Federal nº 11.977/2009” como:
para o projeto de regularização fundiária no caso de interesse social,
remetendo ao artigo 51, da mesma Lei. Vejamos: Área urbana consolidada é parcela da área urbana com densidade
demográfica superior a 50 (cinqüenta) habitantes por hectare, ma-
Art. 53.  A regularização fundiária de interesse social depende da aná- lha viária implantada e que tenha, no mínimo, 2 (dois) dos seguin-
lise e da aprovação pelo Município do projeto de que trata o art. 51.  tes equipamentos de infra-estrutura urbana implantados: drenagem
Parágrafo único.  A aprovação municipal prevista no caput correspon- de águas pluviais urbanas; esgotamento sanitário; abastecimento de
de ao licenciamento ambiental e urbanístico do projeto de regulariza- água potável; distribuição de energia elétrica; limpeza urbana, coleta
ção fundiária de interesse social, desde que o Município tenha conse- e manejo de resíduos sólidos16.
lho de meio ambiente e órgão ambiental capacitado14. 
Além disso, deve haver um estudo técnico que comprove que a in-
Determina, na mesma senda, o artigo 54, caput, da Lei nº 11.977 tervenção programada implicará em melhoria das condições ambientais
de 2009, que a regularização fundiária de interesse social deve ter um relativamente à situação de ocupação irregular anterior.
projeto, que deverá considerar as características da ocupação e da área Para que a decisão do órgão ambiental competente seja fundamen-
13 Art. 51 (BRASIL, 2009). 15 Art. 54, § 1º (BRASIL, 2009).
14 Art. 53 (BRASIL, 2009). 16 BRASIL, 2010, p. 21.

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tada, o estudo técnico que é necessário para que ocorra a regularização lação desse direito, e chegando ao reconhecimento da possibilidade de
fundiária de interesse social em áreas de preservação permanente deve regularização da moradia nessas áreas.
ser feito por um profissional habilitado por lei.
O estudo técnico deve estar vinculado ao projeto de regularização
fundiária, tendo ainda que conter alguns elementos mínimos, conforme CONCLUSÃO
o que expõe o § 2º, do artigo 54, da Lei nº 11.977 de 2009:
A urbanização brasileira foi resultado do processo de industrializa-
§ 2º O estudo técnico referido no § 1º deverá ser elaborado por ção das cidades, tendo sido intensificada principalmente entre as déca-
profissional legalmente habilitado, compatibilizar-se com o projeto de das de 40 e 90.
regularização fundiária e conter, no mínimo, os seguintes elementos: Entretanto, o crescimento urbano não foi acompanhado pelo cres-
I – caracterização da situação ambiental da área a ser regularizada; cimento da infra-estrutura básica das cidades, fazendo com que não
II – especificação dos sistemas de saneamento básico;
fossem oferecidas condições mínimas de desenvolvimento de que a po-
III – proposição de intervenções para o controle de riscos geotécnicos
pulação necessitava para ter uma vida digna, especialmente no que se
e de inundações;
IV – recuperação de áreas degradadas e daquelas não passíveis de refere às condições de habitação.
regularização; Com a falta de acesso regular à terra, as pessoas foram, inevita-
V – comprovação da melhoria das condições de sustentabilidade ur- velmente, ocupando áreas com grande valor ambiental, o que prova-
bano-ambiental, considerados o uso adequado dos recursos hídricos velmente não teria ocorrido caso a urbanização se desse de maneira
e a proteção das unidades de conservação, quando for o caso; progressiva e moderada no tempo, e se as cidades pudessem ter sido
VI – comprovação da melhoria da habitabilidade dos moradores pro- preparadas de forma adequada para receber a população que cada vez
piciada pela regularização proposta; e mais chegava.
VII – garantia de acesso público às praias e aos corpos d´água, quan- Assim, a primeira conclusão que se pode ter é que a urbanização
do for o caso17.
brasileira, do modo como ocorreu, foi determinante para a ocupação ir-
regular de áreas ambientais que deveriam ser preservadas e protegidas.
Deste modo, para que a regularização fundiária de interesse social Entretanto, a urbanização brasileira não gerou apenas o proble-
ocorra nas áreas de preservação permanente, e mais, para que o direi- ma da ocupação irregular de áreas ambientais protegidas, mas revelou
to à moradia seja assegurado nessas áreas, é necessário o implemento eventual conflito entre o direito ao meio ambiente e o direito à moradia,
de requisitos gerais da regularização fundiária de interesse social, bem ambos protegidos constitucionalmente.
como a satisfação de requisitos específicos da regularização fundiária de A Constituição Federal Brasileira de 1988 ofereceu ao direito ao
interesse social nas áreas de preservação permanente, como foi acima meio ambiente tutela específica e global, tendo em vista que o direito
exposto. ao meio ambiente possui caráter individual e coletivo ao mesmo tempo,
Nota-se que esses requisitos estabelecidos pela Lei nº 11.977 de sendo garantido a um e a todos, caracterizado pela natureza da transin-
2009 consistiram em verdadeiro “freio” para que a regularização fundiá- dividualidade e como um bem de uso comum do povo.
ria nessas áreas não ocorresse de modo descabido e desmedido, já que
O direito à moradia, por sua vez, também está elencado na Cons-
o implemento dessas condições não é tarefa tão simples como eventual-
tituição Federal Brasileira, mas ao contrário do que muitos pensam, o
mente pode se pensar.
direito à moradia vai muito além de ter um teto para se abrigar, envol-
Frente ao que foi exposto, podemos observar, derradeiramente, que
vendo um espaço que além de abrigar as pessoas, possa promover o
a legislação brasileira avançou de maneira consideravelmente positiva
pleno desenvolvimento delas como seres humanos.
no que tange ao tratamento do direito à moradia em áreas de preserva-
Posto isso, observamos que tanto o direito ao meio ambiente como
ção permanente, partindo inicialmente da completa ausência de regu-
o direito à moradia estão intimamente ligados com a dignidade da pes-
17 Art. 54, § 2º (BRASIL, 2009). soa humana, visto que tanto a qualidade ambiental como a moradia
440 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 441
digna contribuem para o desenvolvimento das pessoas como seres hu- bientais especialmente protegidas, como é o caso das áreas de preserva-
manos. ção permanente, um procedimento específico no que tange a alterações
Dessa forma, a segunda conclusão a que podemos chegar é que desses espaços, exigindo que elas fossem feitas através de lei específica,
ambos os direitos são essenciais para o desenvolvimento das pessoas, e não apenas por decretos, portarias ou resoluções administrativas, fa-
sendo ambos garantidos pela Constituição Federal Brasileira. zendo com que a modificação dessas áreas fosse objeto de maior dis-
Assim, a legislação brasileira vem evoluindo incessantemente em cussão, já que são espaços tão importantes para a manutenção da vida.
busca do aperfeiçoamento da satisfação desses dois direitos, e é essa a Dessa forma, a quinta conclusão que podemos ter é que a Constitui-
evolução que foi vista ao longo deste trabalho. ção Federal Brasileira de 1988 não excluiu por completo a possibilida-
As leis brasileiras nos mostraram que é possível a compatibilização de de intervenção ou supressão da vegetação em áreas de preservação
dos direitos em tela, proporcionando a realização do direito à moradia permanente, mas exigiu que isso fosse feito de maneira prudente ao
em áreas de preservação permanente, sempre que observados alguns estabelecer um procedimento específico.
requisitos. A Medida Provisória nº 2.166-67 de 2001, que alterou dentre
Existem algumas áreas ambientais que são protegidas por lei, dota- outros dispositivos o artigo 4º do Código Florestal Brasileiro, previu a
das da característica da imodificabilidade, tendo a finalidade de preser- possibilidade de supressão de vegetação nos espaços ambientais pro-
var o meio ambiente e garantir o bem-estar da população, denominadas tegidos de modo permanente, mas apenas nos casos de utilidade públi-
como áreas de preservação permanente. ca ou interesse social, desde que devidamente caracterizados, e ainda,
Entretanto, não raro é ver essas áreas de grande fragilidade am- através de decisão motivada em procedimento administrativo e quando
biental ocupadas de maneira irregular, na maioria das vezes por não ter não houver outra alternativa técnica e locacional.
condições de ter outra moradia. Assim, a sexta conclusão a que podemos chegar é que, embora apa-
A ordem jurídica, diante da suposta contraposição entre os direitos rentemente a Medida Provisória nº 2.166-67 de 2001 não tenha trazi-
em questão, não pode silenciar, mas deve responder de forma equili- do muitas novidades em relação ao regramento do direito à moradia em
brada, de modo a garantir a compensação de um dos direitos quando áreas de especial proteção ambiental, ela estabeleceu diretrizes gerais
sobreposto ao outro. para que em casos específicos pudesse ocorrer a modificação dessas
Assim sendo, a terceira conclusão que podemos tirar é que existem áreas, especialmente nos casos de interesse social.
áreas ambientais que são especialmente protegidas, e em não raras ve- A entrada em vigor da Resolução CONAMA nº 369 de 2006 ampliou
zes são ocupadas por populações de baixa renda, mas o ordenamento de maneira significativa os casos em que pode haver a alteração das áreas
jurídico deve oferecer regulação a esses casos, sob pena de irreparável e de preservação permanente, introduzindo o caso de baixo impacto ambien-
irreversível degradação ambiental, e também, sob pena de não garantir tal, e complementando os casos de utilidade pública e interesse social.
uma habitação para as pessoas que não possuem condições de morar Todavia, o que de mais inovador trouxe essa Resolução foi a possibi-
em outro lugar. lidade de regularização fundiária sustentável de área urbana, caso este
As áreas de preservação permanente foram inicialmente previstas que se enquadra em intervenção ou supressão de vegetação em área de
pelo Código Florestal Brasileiro, tendo este previsto um conceito para as preservação permanente mediante interesse social, desde que atendi-
áreas de preservação permanente, mas nada dispondo sobre a possibi- dos alguns requisitos.
lidade de supressão ou intervenção nessas áreas. Sem entrar no mérito de cada requisito exigido, a sétima conclu-
Por isso, a quarta conclusão a que chegamos é que, apesar do gran- são que se pode ter é que o extenso rol de exigências feitas para que
de marco que o Código Florestal Brasileiro foi, especialmente no que a regularização fundiária de interesse social em áreas de preservação
tange à conceituação das áreas de preservação permanente, em nada permanente ocorresse foi justamente elencado para que a modificação
evoluiu no sentido de permitir a supressão ou intervenção nesses locais. dessas áreas não ocorresse em qualquer caso, mas apenas nos casos
Em 1988, a Constituição Federal Brasileira ofereceu às áreas am- específicos e se atendidos os requisitos, a fim de que essa previsão não

442 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 443
fosse banalizada e utilizada de modo desenfreado. 11.977 de 2009 trouxe a possibilidade real de compatibilização entre
Em 2009, a Lei nº 11.977 tratou diretamente da regularização fun- o direito ao meio ambiente e o direito à moradia, ditando regras espe-
diária de ocupações constituídas sobre áreas de preservação ambiental cíficas para o processo de regularização fundiária de interesse social em
no caso de interesse social. áreas de preservação permanente.
Inicialmente, essa Lei definiu a regularização fundiária de maneira plu- A grande inteligência dessa Lei foi o estabelecimento de requisitos rígi-
ridimensional, como sendo a reunião de medidas jurídicas, urbanísticas, dos, gerais e específicos, para que esse tipo de regularização ocorresse ape-
ambientais e sociais que tem por finalidade a regularização de ocupações nas em áreas já ocupadas anteriormente, não incentivando novas ocupações
informais e a titulação de seus ocupantes, garantindo o direito à moradia, nas áreas de grande fragilidade ambiental protegidas de modo permanente.
a função social da propriedade e o direito ao meio ambiente equilibrado. Destarte, a conclusão global e derradeira sobre o tema é que a legis-
Após, a referida Lei diferenciou regularização fundiária de interesse lação brasileira evoluiu e tem evoluído constantemente a fim de promover
social e de interesse específico, sendo esta diferenciação de essencial a realização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o
relevância, pois a regularização fundiária em áreas de preservação per- do direito à moradia, e exemplo inegável disso é a regularização fundiária
manente apenas pode ocorrer no caso de interesse social, não abran- das ocupações informais localizadas em áreas ambientalmente protegidas
gendo o caso de interesse específico. Assim, a regularização fundiária de de forma permanente, especialmente nos casos de interesse social.
Notamos que essa possibilidade de regularização não permitiu em
interesse social é aquela que ocorre nas áreas ocupadas principalmente
nenhum momento o desrespeito à Constituição Federal Brasileira e aos
por população de baixa renda, tendo que ser ainda atendidos pelo me-
direitos nela previstos, tanto que estabeleceu exigências para que a re-
nos um dos requisitos que seguem: a área deve estar sendo ocupada a
gularização fundiária em questão ocorresse.
pelo menos cinco anos de forma mansa e pacífica; a área deve constituir
Por fim, temos que o tratamento legislativo rigoroso que o ordena-
uma zona especial de interesse social; ou a área ocupada, de proprieda-
mento jurídico brasileiro tem dado ao direito à moradia em áreas de pre-
de da União, dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, deve
servação permanente caminha rumo à satisfação concomitante de dois
ter sido declarada de interesse para a implantação de projetos de regu- direitos constitucionalmente protegidos: o direito à moradia e o direito
larização fundiária de interesse social. ao meio ambiente.
Para que a regularização fundiária de interesse social seja imple- Assim sendo, concluímos que o direito ao meio ambiente e o direito
mentada, ela ainda exige a aprovação de um projeto de regularização à moradia não devem ser vistos como incompatíveis entre si, pois po-
fundiária, devendo estar presentes nesse projeto alguns elementos míni- dem ser realizados de modo concomitante, já que a realização de ambos
mos, como: as características da ocupação e da área ocupada para de- visa um direito muito maior que é a vida humana e sua dignidade, pois
finir parâmetros urbanísticos e ambientais específicos e a identificação sem a vida, os demais direitos amparados pelo ordenamento jurídico
dos lotes, das vias de circulação e das áreas destinadas a uso público. brasileiro não possuem razão de existir.
Como já vimos nessa exposição, a regularização fundiária de interesse
social exige alguns requisitos gerais, mas para que ela seja aplicada nas
áreas de preservação permanente ainda há alguns requisitos específicos: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
o Município poderá promover a regularização fundiária de interesse so-
cial em áreas de preservação permanente mediante decisão motivada, BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária
quando a ocupação dessa área for anterior a 31 de dezembro de 2007, e em áreas de proteção ambiental: a visão urbana e ambiental. 2010. Disponí-
estando o assentamento inserido em uma área urbana consolidada. vel em: <http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20CHIS%202010/106-C.pdf>.
Acesso em: 12 mar. 2011.
Ademais, deve haver um estudo técnico, elaborado por profissional ha-
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa Brasi-
bilitado, que comprove que a intervenção nessa área trará a melhoria das leira de 1988. Brasília, DF, 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
condições ambientais em relação à situação de ocupação irregular anterior. ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso em: 26 mar. 2011.
Assim sendo, a oitava conclusão a que se pode chegar é que a Lei nº ______. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação e Secreta-

444 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 445
ria Nacional de Programas Urbanos. Regularização Fundiária Urbana: Como
aplicar a Lei Federal nº 11.977/2009. Brasília, DF, 2010. Bacia hidrográfica como unidade
______. Presidência da República. Lei nº 11.977 de 2009. Brasília, DF, 2009.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/
de planejamento:
lei/l11977.htm>. Acesso em: 3 abr. 2011.  uma questão conceitual ou legal
______. Presidência da República. Lei nº 4.771 de 1965. Brasília, DF, 1965.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4771compilado.
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Cristina Lengler1
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12, n. 59, p. 229-248, jan./fev. 2010. em Desenvolvimento Regional e Agronegócio pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná –
UNIOESTE/Campus de Toledo. e-mail: stamm_br@yahoo.com.br

446 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 447
atendimento de sua adequação. Então, surge a necessidade de definir a reação são simultâneas, atingindo diretamente o cidadão local? Neste
correta escala espacial de trabalho a ser abordada. contexto, a bacia hidrográfica se sobrepõe à dimensão política e requer
As bacias hidrográficas têm sido defendidas como unidades de pla- uma reflexão maior.
nejamento territorial, ao longo dos anos, por pesquisadores da área de Além dessa parte introdutória, o presente artigo possui mais cinco
Recursos Hídricos e por urbanistas. Neste artigo propõe-se a discussão seções: na segunda parte são feitos alguns apontamentos sobre concei-
da correção do uso deste conceito geográfico. Não obstante, reali­zar- tos de espaço, região e território; na terceira parte aborda-se a questão
se-á uma análise teórica da geografia econômica abordando vários con- das escalas de planejamento e da gestão conjunta das cidades e do pla-
ceitos, e, por vários motivos, se irá além do mero conceito de bacia hi- nejamento regional. A bacia hidrográfica contempla a quarta parte do
drográfica. trabalho, onde se analisa a ideia de tê-la como unidade de planejamento
De acordo com o trabalho de P. Buache de 1752, segundo Gomes e se trazem ilustrações para exemplificar seus limites versus as frontei-
(1995, p. 55), no século XVIII os geógrafos viam as bacias hidrográficas ras políticas. Na sexta parte são tratadas algumas dimensões dos pla-
como demarcadoras naturais das regiões. Preconizava que “o conceito nos: interdisciplinaridade, influência política, participação democrática,
de região natural nasce, pois, desta ideia de que o ambiente tem certo competência do organismo de planejamento e qualificação técnica do
domínio sobre a orientação do desenvolvimento da sociedade”. quadro de profissionais. As considerações finais sumariam este artigo.
A ineficiência do mercado em solucionar os problemas advindos do
colapso da natureza ante a pressão urbanizadora do solo impõe a inter-
venção do Estado, ao qual é imposta a tarefa de planejar e implementar 2. ESPAÇO, REGIÃO E TERRITÓRIO
meios para corrigir ou mitigar os problemas criados. De acordo com
Hilhorst (1981, p. 23), é necessária a demarcação do sistema regional, Os conceitos de espaço, região e território são, muitas vezes, mal
pois este permite ao planejador o conhecimento dos fluxos que refli- empregados e interpretados. Para clarificar e adequar o enquadramento
tam os limites de cada região quanto a sua dependência ou interdepen- conceitual de bacias hidrográficas como unidades territoriais de plane-
dência em certas atividades. Outro objetivo da delimitação do sistema jamento urbano, é preciso inicialmente discorrer sobre alguns pontos
regional é basicamente servir como descentralizador da Administração importantes, como a definição do espaço, de região e de território, para
Pública. Assim, em um espaço homogêneo esta tarefa fica facilitada. posteriormente entender suas diferenças. A análise da categoria espaço
Sob essa ótica, pensar a bacia hidrográfica como unidade de plane- em relação ao processo natural é necessária, pois estabelece o caminho
jamento do território requer aceitá-la como autônoma, com identidade pelo qual esta categoria participa do processo social através da relação
própria e domínio. Mas, por detrás da proposta de unidade de planeja- entre natureza e sociedade. Desse modo, admite-se que a questão espa-
mento regionalizado há uma proposição política, e esta remete, necessa- cial antecede a questão regional e que ambas estão em níveis de abstra-
riamente, à discussão de território onde exista controle e gestão. Serão ção distintos e são necessárias para o entendimento do movimento do
estas visões compatíveis? capital em formações sociais específicas.
Os planos complexos, que envolvem diferentes entes federados, ne- De acordo com Hartshorne3 (1939 apud CORRÊA, 1995, p. 18),
cessitam de redesenho. Há necessidade de compor uma base confiável o espaço pode ser interpretado como um receptáculo que apenas con-
para a tomada de decisões. Quebrar resistências internas e externas tém as coisas, e para Harvey4 (1973) “as diferentes práticas humanas
torna-se o desafio a ser enfrentado. estabelecem diferentes conceitos de espaço, conceitos que sob certas
Além disso, mobilizar pessoas com objetivos diversos exige treina- circunstâncias são por nós empregados”. O autor enfatiza também que,
mento profissional, troca de informações entre os governos, transparên- a partir da teoria marxista, Henri Lefébvre avança para propor que “o
cia na gestão e visibilidade para os contribuintes. A gestão local cede
à de maior esfera quando disputa competências que extrapolam seu 3 HARTSHORNE, R. The Nature of Geography. Lancaster: Association of American Geographers
território. Mas o que acontece em um espaço homogêneo, onde ação e 1939.
4 HARVEY, D. Social Justice and the City. Londres: Edward Arnold, 1973.

448 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 449
espaço é o lócus da reprodução das relações sociais de produção”. Já é também a forma localizada das diferentes maneiras pelas quais esta
com base nos estudos de Santos5 (1977), Corrêa afirma que o modo de inter-relação se realiza.”
produção, a formação socioeconômica e o espaço são categorias inter- Segundo Grigg9 (1967 apud GOMES, 1995, p. 63):
dependentes. Santos6 (1985) analisa o espaço a partir das categorias
estrutura, processo, função e forma, e conclui que o espaço geográfico é Regionalizar passa a ser a tarefa de dividir o espaço segundo diferen-
multidimensional; logo, diferentes grupos, com práticas sociais distintas, tes critérios que são devidamente explicitados e que variam segundo
permitem construir diferentes conceitos de espaço; ou seja, o espaço é as intenções explicativas de cada trabalho. Assim, a região deixa de
ser um produto e passa a ser o meio que contribui para o entendi-
algo muito amplo.
mento do problema. Surge então a análise regional, com suas regiões
De espaço a região, Gomes (1995, p. 53-55) aponta que, na linguagem homogêneas e regiões funcionais ou polarizadas.
do senso comum, a região está relacionada às noções de localização e de
extensão, traçando limites mais ou menos habituais à diversidade espacial. Gomes (1995) finaliza seu artigo resgatando o significado do domí-
Também afirma o sentido de unidade administrativa dado à região sendo o nio, de relação de um poder central e um espaço diversificado. Assim,
meio pelo qual se exerce frequentemente a hierarquia e o controle na admi- afirma que na regionalidade há sempre uma proposição política, vista
nistração dos Estados. O tecido regional é, muitas vezes, a malha adminis- sob um ângulo territorial. A região então é um meio de se evidenciar
trativa fundamental que define competências e limites das autonomias dos a inserção específica na matriz produtiva nacional, com as respectivas
poderes locais na gestão do território dos Estados modernos. Para o autor, diferenças: nível de organização da produção e das relações de trabalho.
a geologia do século XIX tinha como um dos conceitos-chave o de região. É neste sentido que Figueiredo (2005, p. 475) não se limita a cha-
Citando Claval7 (1974), Gomes afirma que foi em parte sob esta inspiração mar de “região” aos territórios dotados de modelo de governança poli-
da geografia, pela consideração da região como um elemento da geografia ticamente legitimados. O autor entende a “região” como um território
física, um elemento da natureza, que surgiu a ideia de região natural. Ha- com escala e massa crítica de recursos suscetível de ser considerado
via também antecedentes desta concepção na própria geografia do século objeto de políticas públicas de desenvolvimento.
XVIII, pois as bacias hidrográficas foram vistas como demarcadores naturais Embora o termo território tenha sido mais usualmente caracterizado
das regiões durante um bom tempo, como ilustra a importância e aceitação com as relações de poder e, desta forma, atribui-se ao Estado-Nação,
do trabalho de P. Buache, de 1752, sobre este tema. alguns pesquisadores, como os abaixo exemplificados, têm apresentado
Assim, conforme Gomes (1995, p. 55), “o conceito de região natural a definição deste a partir de outras variáveis importantes na produção
nasce, pois, desta ideia de que o ambiente tem certo domínio sobre a do território.
orientação do desenvolvimento da sociedade. Febvre8 (1922) contra- Haesbaert da Costa (2004, p. 40) sintetiza essas variáveis e sinaliza
-argumenta a ideia de que a natureza pode influenciar e moldar certos em apenas três vertentes de conceitos para território, sendo: i) política
gêneros de vida, mas é sempre a sociedade, seu nível cultural, de educa- ou jurídico-política: definido por delimitações de controle e poder, es-
ção, de civilização que tem a responsabilidade da escolha, segundo uma pecialmente o de caráter estatal; ii) cultural ou simbólico-cultural: visto
fórmula bastante conhecida – “o meio ambiente propõe, o homem dis- como produto da apropriação resultante do imaginário; iii) econômica:
põe”. Para o autor (1922, p. 62), na geografia clássica, “no conceito de a qual enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, ou seja, o
região ou sua manifestação, há o pleno encontro do homem, da cultura território é a fonte dos recursos, o que gera um confronto entre classes
com o ambiente, a natureza; a região é a materialidade desta interação, sociais e também da relação capital-trabalho.
5 SANTOS, Milton. Society and Space: social formation as theory and method. Antípode: Worces-
Vale ressaltar que a noção de território da tradição jurídico-política
ter, 1977. p. 3-13. tem como referência autores clássicos como Friedrich Raztel, Claude Ra-
6 Id. Espaço e Método. São Paulo: Nobel, 1985.
7 CLAVAL, Paul. Essai sur l’evolution de La géographie humaine. Paris: Les Belles Lettres, 1974.
8 FEBVRE, Lucien. La Terre et l’évolution humaine: Introduction géographique à l’Histoire. Paris: 9 GRIGG, David. Regions, Models and Classes, Models in Geography. Londres: Chorley and
La Renaissance du Livre, 1922. Haggett, 1967, p. 461-510.

450 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 451
ffestin e Robert Sack. Na ótica ratzeliana, segundo Moraes10 (2000, p. A crítica de Souza a Raffestin está em que “não discerniu que o
19 apud Haesbaert da Costa, 2004, p. 62), “o território é um espaço território não é o substrato, o espaço social em si, mas sim um campo
qualificado pelo domínio de um grupo de humano, sendo definido pelo de forças, as relações de poder espacialmente delimitadas e operando,
controle político de um dado âmbito espacial”. De acordo com Claude destarte, sobre um substrato referencial” (1995, p. 97). Assim, conclui
Raffestin11 e Robert Sack12 (apud Haesbaert da Costa, 2004, p. 68), pa- que todo espaço definido e delimitado por e a partir das relações de
rece haver um consenso de que a dimensão política, para além de sua poder é um território, do quarteirão aterrorizado por uma gangue de
perspectiva jurídica e estatal, é a que melhor responde pela conceitua- jovens até o bloco constituído pelos países-membros da OTAN (p. 111).
ção de território. Souza (2009, p. 68) complementa que o território (a territorialidade)
Para Souza (1995, p. 78), o território é fundamentalmente um espa- é uma das facetas do espaço social, que é multifacetado. Antes (1995,
ço definido e delimitado por e a partir de relações de poder. As questões p. 66) já dizia que o poder é uma relação social (ou uma dimensão das
centrais deixam de ser as características geoecológicas e os recursos na- relações sociais), e o território é a expressão espacial disso.
turais, produção, ligações e identidade do grupo social e seu espaço. O Historiando os conceitos de território, poder e usos deste, Rückert
autor (p. 84) afirma que o território surgiu como espaço concreto em si (2005, p. 83) ensina que “interpretar o poder relacionado ao território
(com seus atributos naturais e socialmente construídos) ocupado por um significa relacioná-lo à capacidade dos atores de gerir, de implantar polí-
grupo social, na Geografia Política tradicional. Esta visão rígida muitas ticas econômicas e tecnológicas, com incidência estratégica no território
vezes usou os termos território e espaço indistintamente, obscurecen- por parte tanto do Estado como dos múltiplos atores do/no poder”. E,
do o caráter especificamente político do primeiro. Afirma, ainda, que já para ilustrar, cita Becker14 (1983, p. 7-8):
Ratzel13 (1974) discernia território (Territorium) de solo (Boden), como
se território fosse sempre sinônimo de território de um Estado e Boden [...] o território volta a ser importante, não mais apenas como espaço
carregasse os dados de sítio e posição, com seus atributos materiais e próprio do Estado-Nação, mas dos diferentes atores sociais, mani-
naturais. festação do poder de cada um sobre uma área precisa. O território
é um produto “produzido” pela prática social, e também um produto
Souza (1995, p. 96) concorda com Raffestin (1993, p. 143-144) e
“consumido”, vivido e utilizado como meio, sustentando portanto a
cita que: prática social.

‘Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo,


Dessa forma, seja ele qual for, o território será entendido como es-
pela representação), o autor ‘territorializa’ o espaço. [Henri Lefébre mos-
tra muito bem como é o mecanismo para passar do espaço ao território: paço em que as relações sociais são conferidas historicamente.
‘A produção de um espaço, o território nacional, espaço físico, balizado,
modificado, transformado pelas redes, circuitos e fluxos que aí se insta-
lam: rodovias, canais, estradas de ferro, circuitos comerciais e bancários, 3. ESCALAS DE PLANEJAMENTO NO BRASIL
auto-estradas e rotas aéreas etc.]’. O território, nessa perspectiva, é um
espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, O planejamento setorial do território, nascido com a Revolução In-
por conseqüência, revela relações marcadas pelo poder. dustrial, acaba por dividir ainda mais o espaço entre setor público (esco-
las, hospitais, ferrovias, ferrovias, habitações populares) e setor privado
(residências, turismo, comércio, indústria). A herança trazida pelo zo-
10 MORAES, A. Bases da Formação Territorial do Brasil: o território colonial brasileiro ao longo do
século XVI. São Paulo: Hucitec, 2000. 432p.
ning, segundo Venuti (1971, p. 55), está na hierarquização dos tecidos
11 RAFFESTIN, C. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993. 270p. urbanos, na fragmentação da continuidade, na tipificação do tecido ur-
12 SACKS, R. Human Territoriality: its theory and history. Cambridge: Cambridge University
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13 RATZEL, Friedrich. Politische Geographie. Reimpressão da 3. ed. de 1923. Osnabrück: Otto mundo. In: ______; COSTA, Rogério H. da; SILVEIRA, Carmen B. (Orgs.). Abordagens políticas da
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452 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 453
bano com base na conveniência econômica, e na segregação dos grupos lização e controle do território, propugnados pelo regime autoritário
sociais. que as criou (SOUZA, 2004). Assim, a Constituição Federal de 1988 e
A partir da II Guerra Mundial o planejamento urbano transcende os a Constituição Estadual de 1989 “optaram por manter o estatuto das
limites do município e alcança escalas mais amplas. Desde então se admi- RMs como instâncias administrativas constrangidas por um modelo fe-
te, segundo o autor (1971, p. 48), que entre a cidade e o território circun- derativo”.
dante existe uma continuidade lógica espacial, à qual há de corresponder O planejamento regional, indubitavelmente, diminui a autonomia
uma continuidade de planejamento. Quando não se aceita que cidade e relativa dos municípios, criando um nível intermediário de planejamen-
território pertencem a uma expressão espacial diferente, refuta-se o pla- to. A nova gestão das regiões metropolitanas deve voltar-se mais para
nejamento unitário, volta-se aos problemas exclusivamente edificatórios e o conhecimento das comunidades, que escolhem seus representantes
ignora-se a existência do espaço extraurbano. Como exemplo deste últi- políticos. A autora (2004, p. 93) observa que há uma tendência de mi-
mo pode-se citar uma região de fronteira entre países, onde cada nação nimização do conhecimento técnico e da representação política formal
possui políticas de planejamento diversas e específicas. neste processo.
O transbordamento das cidades, acirrado com a rápida migração Especificando um pouco mais a questão do planejamento, obser­va-
campo-cidade, principalmente entre as décadas de 1960 e 1970, no se que, de acordo com Azevedo e Mares Guia (2004, p. 97), com base
Brasil, levou a atenção das instituições para o fenômeno das conurba- em experiências internacionais foram identificadas três grandes modali-
ções15. Os problemas em torno das principais capitais do país eram simi- dades institucionais de enfrentamento da gestão metropolitana:
lares, como se fossem provenientes de uma única cidade, com território 1. fundamentação na criação de entidades metropolitanas de corte
submetido a diversas administrações municipais. Em resposta, em 1973 mais abrangente, a partir de acordo voluntário entre governos locais;
foi editada, por lei federal, a criação de nove regiões metropolitanas nas 2. criação de um número reduzido de agências metropolitanas es-
principais capitais brasileiras com o objetivo de “promover o planeja- pecializadas – através de acordos voluntários ou da participação com-
mento integrado e a prestação de serviços comuns de interesse metro- pulsória – objetivando o equacionamento de questões específicas, tais
politano”. Souza (2004, p. 61) registrou que tanto as regiões metropolita- como: o transporte público, a coleta e a destinação do lixo, o abasteci-
nas quanto as entidades criadas para geri-las passaram por experiências mento de água, a preservação do meio ambiente etc.;
variadas, mas todas experimentaram o conflito de competência entre 3. criação de formas compulsórias de gestão metropolitana abran-
as esferas de governo, ou seja, conflitos e tensões nas relações inter e gente com, por exemplo, a criação de uma “subprefeitura”, por meio da
intragovernamentais. Com o advento da Constituição Federal de 1988, fusão ou amalgamação de governos municipais, assumindo duas esferas
o planejamento regional passou a objetivo fundamental de redução das de gestão concomitantes.
desigualdades (art. 3, III) e os municípios passaram a ser entes consti- Já a Lei Complementar no 14, de 1973, define entre os “serviços
tutivos da Federação. Para a autora (2004, p. 64) a dimensão territo- comuns de interesse metropolitano” o saneamento básico (água, esgoto
rial do federalismo lida com a distribuição do poder. O poder político e e limpeza pública), o aproveitamento dos recursos hídricos e o controle
financeiro-tributário deslocou-se do centro para as esferas subnacionais da poluição ambiental. O poder é exercido pela União, que compulsoria-
e este redesenho aprofundou as disparidades inter e intrarregionais. A mente define as linhas de investimento de recursos públicos nas regiões
partir de 1994, o arranjo federativo vem sofrendo nova centralização via metropolitanas. (AZEVEDO; MARES GUIA, 2004, p. 100).
vinculação de recursos das receitas (Educação e Saúde) e fortalecimento A reação à política de esvaziamento dos municípios eclodiu, no pro-
da autoridade monetária via Banco Central. cesso de redemocratização, com o novo pacto federativo, que fortale-
A gestão do território metropolitano, embora sob a jurisdição do ceu a autonomia municipal. A descentralização das políticas públicas
Estado Membro, sempre esteve relacionada aos objetivos de centra- mostrou-se ineficiente. Em meados de 1990 surgiram novos arranjos
institucionais, reguladas pelos três âmbitos de governo, com diversas
15 Segundo Geddes (1994), a origem da palavra “conurbação” é para indicar os diversos gran-
des grupos urbanísticos que apareceram na Inglaterra, no final do século XIX e início do século XX, modalidades de cooperação metropolitana. Também, passou-se a valo-
mudando a natureza da autonomia local.

454 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 455
rizar os convênios com entidades da sociedade civil e as parcerias com
a iniciativa privada (AZEVEDO; MARES GUIA, 2004, p. 105).

4. BACIA HIDROGRÁFICA

De acordo com a Rede das Águas (2005), foi a partir da década


de 1970 que este conceito passou a ser difundido e consolidado pelo
mundo, basicamente pela simples necessidade de promover e recupe-
ração ambiental e a manutenção dos recursos naturais escassos, princi-
palmente a água.
Depois da Lei no 9.433/97, as bacias hidrográficas tornaram-se uni-
dades territoriais para implementações de programas de Recursos Hídri- Figura 1 – Divisão Hidrográfica Nacional - Fonte: REDE DAS ÁGUAS, 2005
cos e também como atuação do Sistema de Gerenciamento de Recursos
Hídricos do país. Assim, o que se observou nos últimos anos foi uma A bacia hidrográfica de uma determinada região engloba diferentes
grande discussão política, respeitando as diversidades sociais, econô- vertentes a serem analisadas, dentre elas a fronteira física que envolve
micas e ambientais, com o intuito de instituir uma divisão hidrográfica distintas escalas espaciais; ecossistemas diversos; parcerias e resoluções
nacional, a qual foi aprovada pelo Conselho Nacional de Recursos Hídri- de conflitos; cultura e questões socioeconômicas. Assim, pode-se obser-
cos – CNRH em outubro de 2003 através da Resolução no 32, conforme var na figura 1 acima e nos conceitos expostos que as bacias hidrográfi-
Mapa 1. cas estão divididas hidrograficamente, não respeitando as divisões polí-
Para melhor compreensão e elucidação do que se entende por bacia ticas territoriais do país, fato que se compreende a partir dos conceitos
hidrográfica, remete-se à definição de Castro et al. (2008, p. 9), para apresentados. Sabe-se também que a utilização de bacias hidrográficas
quem se trata de uma superfície topográfica drenada por esse curso como unidades de estudo é comum em trabalhos que envolvem pesqui-
d’água e seus afluentes a montante dessa seção. É delimitada por uma sas ambientais e de planejamento urbano. A demarcação do espaço ge-
linha que passa pelo cume das elevações periféricas (divisor de águas) e ográfico da bacia hidrográfica como unidade de gestão e planejamento
que corta a corrente uma vez na seção de saída (foz), que é a garganta dos recursos hídricos é hoje consagrada através do Plano de Recursos
mais baixa da linha de cumeada. Hídricos de Bacia (gerenciamento externo) e Plano Integrado de Drena-
Já Rodrigues e Adami (2005, p. 147-148) conceituam a bacia hi- gem Urbana, Esgotamento Sanitário e Resíduos Sólidos (gerenciamento
drográfica como um sistema que compreende um volume de materiais, municipal).
predominantemente sólidos e líquidos, próximo à superfície terrestre, Tucci e Meller (2007, p. 76) trazem que “a gestão dos recursos hí-
delimitado interna e externamente por todos os processos que, a partir dricos é realizada através da bacia hidrográfica, no entanto, a gestão
do fornecimento de água pela atmosfera, interferem no fluxo de ma- do uso do solo é realizada pelo município ou grupo de municípios numa
téria e de energia de um rio ou de uma rede de canais fluviais. Inclui, Região Metropolitana”. Logo, fica claro que, em relação às questões de
portanto, todos os espaços de circulação, armazenamento, e de saídas água, e unicamente desta, têm sido desenvolvidos Planos para grandes
da água e do material por ela transportado, que mantêm relações com bacias (>1.000 km²), uma vez que estes envolvem, normalmente, mais
esses canais. do que um território político.
Tendo em vista tornar mais didático o entendimento de divisão de Para exemplificar a explanação, pode-se visualizar na figura 2 o mu-
bacias hidrográficas, a figura 1 apresenta uma situação de divisão hidro- nicípio de Porto Alegre com sua rede de drenagem superficial, suas 27
gráfica do Brasil para o ano de 2005. bacias hidrográficas e seus 122 bairros.

456 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 457
As relações ambientais no espaço territorial foram sendo alteradas
pela forma de vida, que passou a ser mais urbana que rural. Os ele-
mentos mais fortes das ações antrópicas referem-se à construção de
moradias, que envolve: Território da Bacia Hidrográfica [...] [e] Terri-
tório do Perímetro Urbano [...]. (FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA,
2006, p. 22)

Mas, conforme relatam Mendes et al. (2007), é imperiosa a tomada


de decisão no sentido de, contemplando o meio físico (geologia, geo-
morfologia, solo, hidrologia, uso do solo), o meio biótico e o meio an-
trópico, considerar a bacia hidrográfica como unidade de planejamento
territorial nos processos decisórios que envolvem o gerenciamento de
áreas urbanas ou de expansão urbana.
Assim, observa-se que a bacia hidrográfica de uma determinada
região engloba diferentes vertentes a serem analisadas, dentre elas a
fronteira física que envolve distintas escalas espaciais; ecossistemas di-
versos; parcerias e resoluções de conflitos; cultura e questões socioe-
conômicas. Entende-se no mínimo estranho utilizar esse conceito como
unidade de planejamento, uma vez que apresenta uma complexidade
Figura 2 – Bacias hidrográficas, Bairros e Rede de Drenagem do Município de muito grande de variáveis envolvidas num mesmo processo. Este fato se
Porto Alegre - Fonte: autoria própria, com arquivos da torna, na maioria das vezes, um processo moroso, desgastante e dúbio
Prefeitura Municipal de Porto alegre, 2010. quanto a sua objetividade, haja vista a interferência política nele.

Para Lopes (2007, p. 5), historicamente o Poder Público nacional


optou por uma ação voltada ao gerenciamento dos recursos hídricos, 5. AS DIMENSÕES DOS PLANOS
através de mecanismos de alocação de água baseados em parâmetros
técnicos, em conceitos econômicos ou em dinâmicas sociais, sempre le- Os planos não se realizam sozinhos, eles devem ser colocados em
vando em consideração as questões regionais. Essa atuação pode ser prática, e esta é a parte mais difícil. Um planejamento, seja específico
caracterizada pela abrangência regional ou setorial, pela desarticulação (aeroporto, estrada, conduto de água) ou global (em relação a um es-
com outras políticas públicas e pela reduzida participação social nas paço como um todo), sempre obedecerá a proibições e ordenamentos
decisões. Somente a partir dos anos 90, com a implementação de novas de várias ordens. Mas, de forma geral, os planos possuem dimensões
políticas de recursos hídricos, adotou-se modelos alternativos de gestão comuns, por vezes esquecidas, que exercem sobre ele pressões que le-
e de alocação de água, de caráter participativo. vam o projeto a ter melhor ou pior resultado na execução. Entre muitas
O pensamento que incitou este artigo, transcrito na introdução, pro- variáveis, destacam-se as seguintes:
põe a elevação da bacia hidrográfica à categoria de unidade de planeja-
mento territorial. A necessidade de voz dos pesquisadores sugere uma a) Interdisciplinaridade
nova divisão interna do território do município; assim, almejam alcançar
maior êxito em seus propósitos técnicos, articulando os limites naturais É senso comum que, nos processos de tomada de decisão, a abor-
com os administrativos. Neste sentido, pode-se observar uma tendência dagem dos territórios é parcial e complementar a outros fatores. O
à territorialização da bacia hidrográfica: Urbanismo, como ciência, congrega diversas áreas de conhecimento,

458 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 459
sendo, portanto, multidisciplinar. Carece de conceitos de Engenharia Hi- c) Participação democrática
drológica, entre outras, para uma visão mais ampla dos contextos de
conhecimento do ambiente sobre os quais os planos intervirão. A participação institucional na gestão das regiões metropolitanas,
É evidente que a execução de alguns planos se estenderá a vários pós-Constituição Federal de 1988, enfatiza os mecanismos de participa-
setores, onde vários projetos serão combinados num plano global, po- ção de grupos e setores organizados da sociedade nas políticas regulató-
dendo esses projetos ser de regiões distintas. Assim, por exemplo, para rias em algumas Constituições estaduais. Segundo Santos18 (1996 apud
a execução efetiva de um plano agrícola de uma determinada região, AZEREDO; MARES GUIA, 2004, p. 103), para garantir a governança, que
pode ser necessário combiná-lo com um plano industrial da região vi- supera o “marco operacional para incorporar questões relativas a padrões
zinha e um plano educacional da outra, sempre com a finalidade da [...], de articulação e cooperação entre atores sociais e políticos e arranjos
otimização dos recursos (WALINSKY, 1974, p. 78). institucionais que coordenam e regulam transações dentro e através das
fronteiras do sistema econômico”. Ainda para os autores (2004, p. 105),
b) Influência política nos novos desenhos institucionais surgem novos atores e atores clássicos
assumem novos papéis, entre os quais se destacam os provenientes de
O planejamento governamental das três esferas de governo deve associações civis de vários matizes e organizações não-gover­namentais
obedecer ao art. 16516 da Constituição Federal. Este conjunto de pro- (ONGs) e da iniciativa privada. Também, a participação em Conselhos de
gramas, que têm público-alvo, indicadores e metas bem definidos, é de Políticas Públicas supramunicipais seria uma forma de envolvimento da
relativa “facilidade” de acompanhamento pelo governo que o estabelece. comunidade organizada na implementação e fiscalização das políticas.
Mas, quando se foge à geografia política estabelecida e se necessita Como exemplo, os mesmos autores trazem à luz (2004, p. 105)
de ações conjuntas e coordenadas entre os diversos entes federados, as a Política Nacional de Recursos Hídricos, regulamentada pela Lei no
ações e projetos são de difícil concatenamento. Os objetivos podem di- 9.433/97, que estabelece que a gestão deve ser compartilhada entre as
vergir entre os entes, de diferentes ou iguais esferas, e condenar o plano três esferas de governo e estar integrada à política ambiental e aos sis-
ao fracasso17. temas municipais, estaduais e federal de planejamento. No caso, através
Para Azevedo e Mares Guia (2004, p. 106), a questão metropoli- dos Comitês de Gestão das bacias hidrográficas.
tana não é considerada prioritária nas agendas do Poder Público e das Ainda, há de se formar parcerias com grupos organizados da socie-
ONGs, pois as transformações institucionais não significam usufruto de dade civil, relacionados ou atingidos pela execução dos projetos.
benefícios imediatos, mas apenas possibilidades de vantagens futuras,
paulatinas, fragmentadas e pouco perceptíveis. Também, porque o forta- d) Competência do Organismo de Planejamento
lecimento de uma governança metropolitana implica redução de poder
para o Estado e/ou Município. Dessa forma, para a execução de planos Talvez este seja um dos mais importantes itens para uma execu-
regionalizados vê-se a necessidade de as administrações públicas serem ção bem-sucedida de um plano, pois aqui todas as variáveis devem ser
transformadas em instrumento eficiente dos objetivos públicos, fazendo agregadas de forma responsável. Deve haver boas razões para acreditar
convergir suas necessidades a uma boa execução dos planos. que os organismos de planejamento existentes serão capazes de realizar
com eficiência o trabalho, ou que pelo menos haja tempo suficiente para
se adequarem às atividades previstas no plano.
16 “Art. 165. Leis de iniciativa do Poder Executivo estabelecerão:
I – o plano plurianual;
Para tanto, as competências no planejamento estão definidas no art.
II – as diretrizes orçamentárias; e 30 da Constituição Federal vigente19. Na área de abrangência do municí-
III – os orçamentos anuais.”
17 Em caso de, em uma divisa de Município, por exemplo, um Plano Diretor prever em uma 18 SANTOS, Maria Helena de Castro. Governabilidade e governança: criação de capacidade
margem de um córrego uma reserva florestal, e na margem oposta, outro Plano Diretor prever um governativa e o processo decisório no Brasil pós-constituinte. Trabalho apresentado no XX Encontro
distrito industrial. Provavelmente os trabalhadores procurarão residir próximo ao local de trabalho, Anual da Anpocs, Caxambu, 1996.
condenando a floresta. 19 “Art. 30 – Compete aos Municípios:

460 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 461
pio, ele dispõe de autonomia para promover o ordenamento territorial. ças e as práticas de escalas de planejamento, principalmente unidades
Logo, a intervenção em territórios de outros municípios necessita de territoriais. Como discussão teórica, vários conceitos foram abordados,
convênios e acordos, seja entre municípios ou entre estado e/ou união dentre eles o de espaço, o de região e o de território, tendo em vista
e municípios. As despesas e investimentos devem ser compartilhados elucidar suas diferenças dentro do espaço regional.
entre os entes federados, mas este rateio nem sempre é fácil, dadas as O planejamento requer uma ação conjunta, coordenada, pública e
variáveis envolvidas. privada. Neste sentido, a questão das águas não se esgota no abasteci-
mento e saneamento. A ideia de planejamento restrito à bacia hidrográ-
e) Qualificação técnica fica advém de que qualquer alteração em sua superfície tem impactos
significativos sobre o escoamento das águas. Logo, quaisquer mudanças
O fortalecimento dos quadros de profissionais que atuam na área na superfície (des/reflorestamento, impermeabilização), alteração no uso
de Planejamento é basilar. Alguns itens aqui devem se destacar, como: (urbanização, exploração ou extração de florestas, culturas sazonais ou
promoção baseada no conhecimento e no mérito, condições de traba- permanentes), através de diferentes métodos (manuais ou mecanizados)
lho, instrumentos e recursos razoavelmente adequados, liberdade da in- produzem impactos em sua área de abrangência.
terferência política indevida, altos padrões de atuação e, acima de tudo, Em nosso exemplo, a produção do espaço urbano, que se iguala ao
salários satisfatórios. território municipal em Porto Alegre, o Poder Executivo detém todo o po-
No cenário atual de constantes mudanças, no qual o paradigma tec- der para agir e regrar o uso do solo. Mas, modernamente, o território pas-
nológico permite que o mundo se conecte em rede, que como resultado sou a ser mais do que somente o Território do ente Federado de Estado.
acelerou a inovação, as mudanças não ocorrem mais de modo isolado Viu-se que todo o espaço definido e delimitado por e a partir das re-
e em grandes intervalos de tempo, segundo Castells (1999, p. 78-79). lações de poder é um território. Será a bacia hidrográfica um território,
Nestes novos tempos, necessita-se estimular os servidores, dando-lhes sob este novo enfoque?
segurança em relação ao trabalho realizado para que vençam o temor e Atualmente admite-se que o território é a expressão espacial das
o desconforto que as mudanças trazem, a fim de não serem um empeci- relações sociais. Existem lideranças que exercem poder e se identificam
lho a melhores práticas no aperfeiçoamento dos processos de trabalho. com as questões ambientais que se evidenciam na bacia hidrográfica?
Por outro lado, ainda se defronta com outro quadro, no qual o in- Uma causa para a reduzida participação popular nas decisões e no ge-
vestimento em capital humano, a formação e a qualificação do quadro renciamento dos recursos hídricos é o caráter técnico assumido pelos Planos
permanente dos órgãos públicos se confronta com a política de Estado (seja o Plano de Recursos Hídricos da Bacia ou o Plano Integrado de Drena-
Mínimo que, por vezes, opta pelo apadrinho. gem Urbana, Esgotamento Sanitário e Resíduos Sólidos). Outra é a restrita
representação civil nos Comitês de Bacia e Conselhos de Recursos Hídricos.
Observa-se que o espaço natural vem se transformado dia a dia
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ao longo dos anos. Como a água não respeita limites, o homem passou
a “dominá-la”, construindo condutos, taludes, canais, reservatórios de
Este artigo teve como objetivo propor uma discussão teórica, sob o contenção etc. a fim de minimizar as consequências da impermeabiliza-
ponto de vista de diferentes áreas do conhecimento, em que se abordou ção crescente do solo. Percebe-se ainda a coesão social, principalmente
a conceituação de bacia hidrográfica e sua utilização como uma unidade em momentos de catástrofes e emergências.
de planejamento territorial. Vale ressaltar que o propósito aqui não foi Os atores sociais, partindo do espaço inicial encontrado (seja ele
discorrer sobre a forma correta ou errônea de como se deve definir cada natural ou já urbanizado), transformam-no. Neste “processo” manifes-
modelo de análise de planejamento, mas, sim, apresentar as diferen- tam-se todas as relações de poder. Esta apropriação do espaço se dá
pelo empresário que loteia a gleba, pelo Poder Público que autoriza o
VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e con- empreendimento, pelo cidadão que adquire o lote, pela pressão pública
trole do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano;”

462 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 463
que exige a pavimentação das vias de transporte que interligam a região tação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo; Rio
a pontos nodais da urbe, e assim por diante. de Janeiro: FASE, 2004.
Vale aqui ressaltar uma síntese de pensadores apresentada por BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível
Rückert (2005, p. 64) que ensina a territorialização como: em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituiçao.htm>.
Acesso em: 5 set. 2011.
A apropriação de um espaço, a territorialização como resultado da CASTELLS, Manuel. A Sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 617p.
ação conduzida por um ator coletivo, resulta no fato de que o Esta- CASTRO, Andréa Souza; ALLASIA PICCILLI, Daniel Gustavo; SANCHEZ OR-
do, a empresa ou outras organizações organizam o território através DOÑEZ, Julio Emiro; GONÇALVES, Lidiane Souza. Águas pluviais urbanas: Ma-
da implantação de novos recortes e ligações (RAFFESTIN20, 1993, p.
res Guia da Oficina de Capacitação. Porto Alegre: Rede de Capacitação e Ex-
143-144 e 152). O território torna-se manifestação do poder de cada
tensão Tecnológica em Saneamento Ambiental / Núcleo Sul de Capacitação e
um sobre uma área precisa (BECKER21, 1983, p. 8).
Extensão Tecnológica em Saneamento Ambiental, 2008. 87p. : il.; gráfs.; tabs.
[material didático do curso Monitoramento e Modelagem Hidrológica em Áreas
Então, cabe a questão: se transformar a paisagem natural é viável
Urbanas oferecido pelo NUCASUL, integrante do projeto ReCESA].
e relativamente fácil sob a ótica da Engenharia, por que haveríamos de
CORRÊA, Roberto Lobato. Espaço, um conceito-chave da Geografia. In: CAS-
nos submeter aos limites naturais das bacias? Concordamos com Gomes
TRO, Iná Elias; et al. (Orgs.): Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Ber-
(1995, p. 56), que estabelece que “as regiões existem como unidades bá-
trand Brasil, 1995. p. 15-47.
sicas de saber geográfico, não como unidades morfológica e fisicamente
FIGUEIREDO, A. M. As políticas e o planejamento do desenvolvimento regio-
pré-constituídas”. E, após afirmar que os possíveis recortes regionais atu-
nal. In: COSTA, J. S. (Org.). Compêndio de Economia Regional. 2. ed. Coimbra:
ais são múltiplos e complexos, que certamente há recobrimento entre eles
APDR, 2005. Cap. 12.
e que certamente eles são mutáveis, o autor (1995, p. 73) questiona: “Ao
FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA / CEPAM - Centro de Estudos e Pesquisas
aceitarmos todos estes recortes como regiões não estaríamos voltando
de Administração Municipal. Microdrenagem Urbana. Coordenado por Maria-
ao sentido do senso comum, de noção que tão simplesmente pretende
na Moreira. Co-autores: Célia Ballário, Reynaldo Silveira Franco Júnior, Ualfrido
localizar e delimitar fenômenos de natureza e tamanho muito diversos e
Del Carlo. 2. ed. São Paulo, 2006. 68p.
que, portanto, perde todo o conteúdo explicativo, como conceito?”.
GEDDES, Patrick. Cidades em evolução. Campinas: Papirus, 1994. 274p. (Co-
De todo, apenas uma assertiva é absolutamente correta e indubitá-
leção Ofício de Arte e Formas)
vel, e por si só deveria mobilizar o Poder dominante a considerá-la no
GOMES, Paulo César da Costa. O conceito de Região e sua discussão. In: CAS-
planejamento do território sob seu domínio: A bacia hidrográfica deve
TRO, Iná Elias; et al. (Orgs.): Geografia: conceitos e temas. Rio de Janeiro: Ber-
ser o espaço de avaliação dos impactos resultantes de novos empreen-
trand Brasil, 1995. p. 49-76.
dimentos, visto que a água não respeita divisões artificialmente criadas
HAESBAERT DA COSTA, R. O mito da desterritorialização: do “fim dos territó-
para fins políticos.
rios” à multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. 400p.
HILHORST, J. Planejamento Regional: enfoque sobre sistemas. Rio de Janei-
ro: Zahar, 1981. 190p.
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21 BECKER, Bertha K. O Uso Político do Território: questões a partir de uma visão do terceiro
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RÜCKERT, Aldomar A. Reforma do Estado, Reestruturações Territoriais, Desen-
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SOUZA, C. Regiões metropolitanas: trajetória e influência das escolhas institu-
cionais. In: RIBEIRO, L. C. (Org.). Metrópoles entre a coesão e a fragmentação, Resumo: O presente artigo é o resultado de um estágio su-
a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo; Rio de pervisionado realizado na Secretaria da Agricultura e Meio
Janeiro: FASE, 2004. 431p. Ambiente do município de Capivari do Sul, escolhido como
pesquisa um estudo de caso dos processos erosivos existen-
SOUZA, Marcelo Lopes de. O território: sobre espaço e poder, autonomia e
tes nas margens do Rio Capivari, contíguo à RS 040 e adja-
desenvolvimento. In: CASTRO, Iná Elias; et al. (Orgs.): Geografia: conceitos e cente a uma lavoura de arroz irrigado com sistema de cultivo
temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 77-116. Pré-Germinado. A problemática surge com a seguinte inda-
______. “Território” da divergência (e da confusão): em torno das imprecisas gação: “Em que medida a avaliação dos processos erosivos
fronteiras de um conceito fundamental: In: SAQUET, Marcos Aurélio; et al. existentes no leito do Rio Capivari, ocasionados pelo plantio
(Orgs.): Territórios e Territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: de arroz irrigado no sistema de cultivo Pré-Germinado, pode
contribuir para gerar ações norteadoras para a elaboração
Expressão Popular: UNESP. Programa de Pós-Graduação em Geografia, 2009.
de um planejamento estratégico de política ambiental para
368p. o município de Capivari do Sul?” A finalidade deste traba-
TUCCI, Carlos E. M.; MELLER, Adalberto. Regulação das Águas Pluviais. REGA lho, por sua vez, é apresentar os resultados da análise do
– Revista de Gestão da Água da América Latina, Porto Alegre, v. 4, n. 1, p. 75- levantamento de dados obtidos no referido estágio e propor
89, jan./jun. 2007. soluções para o problema apresentado. Para isso, foi utili-
VENUTI, G. La administración del urbanismo. Barcelona: Gustavo Gili, 1971. zado no estudo o método de pesquisa qualitativo. Concluiu-
-se que os processos erosivos existentes são decorrentes da
250p.
proximidade da lavoura com o manancial hídrico e da água
WALINSKY, Louis J. Planejamento e execução do desenvolvimento econômico. de drenagem da lavoura que transporta partículas de solo
2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. 244p. para o leito do rio, tendo como conseqüências graves preju-
ízos ambientais que interferem na diminuição da quantida-
de e qualidade da água disponível. É, pois, indispensável a
implantação de uma política ambiental no município voltada
para a conservação dos mananciais hídricos, tendo como
escopo a educação ambiental e o acompanhamento técnico
do cultivo de arroz irrigado pela Secretaria da Agricultura e
Meio Ambiente em parceria com o IRGA e a FARSUL.
Palavras-Chave: arroz irrigado - água – sistema Pré-Germi-
nado, meio ambiente – conservação.

1 Advogada. Especialização em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela Universidade Fe-


deral do Rio Grande do Sul - UFRGS. Especialista em Gestão Estratégica Municipal pela Universida-
de de Santa Cruz do Sul – UNISC

466 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 467
1. INTRODUÇÃO tos Normativos Municipais Relativos ao Meio Ambiente. Inclui, ainda, no
sub-item 2.4.1 A Lei Orgânica de 1998; 2.4.2 O Código de Posturas, Lei
A escassez da água vem afetando diversos segmentos da sociedade, nº 417 de 17 de junho de 2005 e no 2.4.3 Lei Complementar nº 001
gerando múltiplos conflitos, entre eles os causados no âmbito agrícola. de 04 de Maio de 2006 (Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal e
A água, principalmente no cultivo de cereais irrigados, é utilizada como o Sistema de Planejamento e Gestão Urbana do Município de Capivari
um dos principais insumos para sua produção, porém necessita-se de do Sul). O item 3 prevê O Sistema de Plantio de Arroz Irrigado Pré-
grande volume para a formação da lâmina de água. (MACEDO, 2006). -germinado, incluindo neste o sub-item 3.1 O Manejo do Solo; no 3.2 O
Este fato, conseqüentemente, será, no futuro, a principal limitação para Manejo da Água; 3.2 As Vantagens e Desvantagens e no 3.2.4 Proble-
a produção de vegetais irrigados. mas Ambientais Decorrentes do Manejo da Água no Sistema Pré-Germi-
Destarte, o problema em si gerado pelo cultivo de arroz irrigado no nado. O item 4 versa sobre os Processos Erosivos Existentes no Leito do
município de Capivari do Sul está relacionado à formação de processos Rio Capivari Gerados pelo Arroz Irrigado, que utilizou como Sistema de
erosivos nas margens e conseqüentemente o assoreamento do referido Cultivo o Pré-Germinado: o Olhar Técnico da Secretaria da Agricultura
manancial, o que proporciona uma interferência expressiva na diminui- e Meio Ambiente do Município. O item 5 aborda as Recomendações
ção da quantidade e qualidade de água disponível no manancial. Técnicas Fornecidas pelo IRGA e pela FARSUL sobre a Prática de Plantio
Deste modo, o presente estudo é justificável porque é imensurável e Drenagem da Água do Arroz Irrigado no Sistema de Cultivo Pré-Germi-
a importância da conservação dos mananciais hídricos para o municí- nado. Por fim, no item 6, apresentam-se as Considerações Finais sobre
pio, tendo em vista que a problemática apresentada irá gerar, em um o tema em análise.
momento adjacente, uma grave desestruturação ambiental, social e eco-
nômica no município, intervindo no equilíbrio do seu ecossistema e na
situação socioeconômica dos produtores rurais existentes e, conseqüen- 2, CARACTERISTICAS GERAIS DO
temente, em toda a sociedade de Capivari do Sul. MUNICÍPIO DE CAPIVARI DO SUL
Portanto, é de extrema relevância averiguar em que medida a avalia-
ção dos processos erosivos existentes no leito do Rio Capivari, ocasiona- 2.1 Meio Ambiente - Fatores Abióticos: Geográfico,
dos pelo plantio de arroz irrigado no sistema de cultivo Pré-Germinado, Clima, Geológico, Hidrológico, Geomorfológico e Solos
pode contribuir para gerar ações norteadoras para a elaboração de um
planejamento estratégico de política ambiental para o município de Ca- O Município de Capivari do Sul localiza-se no entroncamento das
pivari do Sul. Rodovias RS-040 (Porto Alegre/Cidreira) e RST 101 (Osório/Mostardas),
Assim, por todo o exposto, percebendo a importância do tema para distante 70 quilômetros de Porto Alegre, parte do Litoral Norte do Es-
a comunidade científica, apresenta-se neste artigo o resultado de um tado do Rio Grande do Sul, com uma extensão territorial de 418 Km2.
estágio supervisionado realizado na Secretaria da Agricultura e Meio O clima é subtropical. Pertence à região da planície costeira externa à
Ambiente do município de Capivari do Sul, escolhido como pesquisa um Laguna dos Patos, é banhado pelo Rio Capivari, que deságua na Lagoa
estudo de caso. do Casamento, que é extensão da Laguna dos Patos. (MAGGI, 2002).
Em sua estrutura, o presente artigo está organizado da seguinte for- No que se refere à hidrografia, o município está localizado na Região
ma: o item 2 trata das Características Gerais do Município de Capivari Hidrográfica do Litoral do Rio Grande do Sul, pertencendo à Sub-bacia
do Sul/RS, incluindo no sub-item 2.1 O Meio Ambiente e Seus Fatores Hidrográfica do Litoral Médio (L20), com Comitê de Gerenciamento da
Abióticos, sendo estes o geográfico, o clima, o geológico, o hidrológico, Bacia Hidrográfica em fase de formação (SEMA, 2006).
o geomorfológico e os solos; no sub-item 2.2 Características Socioeco- O território municipal, ainda, possui em sua maioria o relevo de
nômicas do Município; 2.3 Localização da Área Escolhida no Município, Planície Costeira caracterizada principalmente pela existência de solos
como Objeto de Estudo do Presente Trabalho; e no sub-item 2.4 Aspec- do tipo Planossolos Hidromórficos, os quais são próprios para o cultivo

468 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 469
do arroz irrigado, caracterizando-se pela topografia plana, o que não -cultural o Marco Histórico Garibaldino, a passagem de Joseph Garibaldi
é a única característica favorável. Eles apresentam horizontes argilosos por Capivari na época da Revolução Farroupilha, e pontos turísticos: o
e, por proporcionarem uma condutividade hidráulica muito baixa, di- Rio Capivari, a Laguna dos Patos e o Parque Municipal de Eventos. (MA-
ficultam a percolação de água no perfil, permanecendo saturados em GGI, 2002)
períodos de maior precipitação. Estas características, normalmente des- A base econômica do município constitui-se basicamente na agro-
favoráveis para outras culturas, tornam-se adequadas para o cultivo do pecuária e tem sua produção econômica alicerçada na lavoura de ar-
arroz irrigado, facilitando a manutenção de uma lâmina d’água sobre a roz irrigado e, mais recentemente, na extração de madeira, oriunda das
superfície do solo e dificultando a lixiviação de nutrientes. (IRGA, 2001). grandes florestas de eucaliptos. Atualmente, no município o destaque
O município apresenta uma grande zona com a classe de solo su- está na agricultura, principalmente no arroz irrigado com uma produ-
pramencionado, o que propicia o cultivo de arroz irrigado em grande tividade média de 122,8 sacos por hectare ou 215 sacos por quadra,
escala. totalizando uma produção de cerca de 600.000 sacas de arroz de boa
Assim, em função da quantidade de campos arrozais, constata-se qualidade e grande parte deste produto é destinado para os grandes
que o cultivo de arroz irrigado é a grande vocação econômica do Mu- centros consumidores do país. Essa produção resulta do trabalho de
nicípio de Capivari do Sul. No entanto, além do solo favorável, o muni- pequenos e médios produtores rurais. A área cultivada com arroz irriga-
cípio sofre a influência do clima subtropical, com existência de ventos do é de 6.120 hectares e compreende o trabalho de 240 produtores. A
e da posição geográfica que interferem diretamente na produção do pecuária é composta de bovinos, ovinos e eqüinos, num total de 17.170
arroz irrigado de maior qualidade no país. No que se refere aos ventos, cabeças. (MAGGI, 2002).
diferente de outras regiões, ele ajuda a manter a palha do arroz seca, Portanto, de acordo com o que foi apresentado até o presente mo-
diminuindo a proliferação de fungos. Quanto à localização geográfica, mento, verifica-se que o plantio de arroz irrigado é a grande vocação
caracteriza-se pela proximidade com a Laguna dos Patos, influenciando econômica do Município, sendo esta a principal economia para a sua
na quantidade de água disponível para a irrigação e, por outro lado, tem sobrevivência. Assim, não se pode de forma alguma deixar de verificar
uma proximidade com o Oceano Atlântico, interferindo na qualidade do a importância do tema, objeto do presente estudo, para a comunidade
produto. Este cereal, por ter a maior quantidade de grãos inteiros, dife- científica, sendo necessário em primeiro lugar localizar a área objeto de
rencia-se do arroz irrigado de outras regiões. Outro diferencial está no estudo.
sabor e consistência do produto, que após o cozimento, teste da panela
realizado pelos compradores de arroz de outros Estados, estabelecidos 2.3 Localização da Área Escolhida no Município
no município e que fazem a distribuição do produto por todo o Brasil, como Objeto de Estudo do Presente Trabalho
verificou-se que o arroz produzido no município é de qualidade superior
à de outras regiões, pois possui características peculiares encontradas A área, objeto do presente tra-
somente na região em que está inserido o município. (SILVEIRA, 2006). balho, pode ser vista através da foto
via satélite abaixo:
2.2 Caracterização Socioeconômica do Município
FIGURA 1: Foto via satélite do município
O Município de Capivari do Sul desmembrou-se de Palmares do Sul de Capivari do Sul, localizando as rodovias
em 1996, tendo sido instalado seu primeiro governo municipal de 1° existentes, a Lagoa Capivari, o Rio Capivari
de janeiro de 1997. Atualmente a sua população é de 3.482 habitantes, e a área em estudo.
76% urbana e 24% na zona rural, com uma renda per capita aproxi- Fonte: Site www.climatempo.com.br,
madamente de 16.000,00 (dezesseis mil reais), dividindo-se com dois acessado Marco/2006.
distritos: Santa Rosa e Rancho Velho. Tem como patrimônio histórico-

470 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 471
A partir da análise da foto acima, visualiza-se a localização da 2.3.2 Código de Posturas do Município,
área em estudo, bem como verifica-se que ela está localizada próxi- Lei nº 417 de 17 de junho de 2005
ma às margens do Rio Capivari e parte dela está dentro do corredor
de preservação ambiental (área de preservação permanente), onde No Código de Posturas, Titulo III – Da Ordem e Segurança Pública,
não pode de forma alguma ser utilizada, pois, segundo a legislação Capítulo III, Da Invasão e Depredação de Logradouros e Áreas Públicas,
ambiental vigente, é intocável. Caso ocorra o seu uso pode, conse- há no artigo 90, § 2º e § 3º, a previsão sobre a ocupação de faixa
qüentemente, ocasionar o desmatamento da mata ciliar, causando de preservação permanente, cursos d’água e canais e a necessidade de
a formação de processos erosivos e assoreamento do leito do rio e constatação de ter havido redução indevida de parte da respectiva área.
provocando, com isso, graves prejuízos ambientais, os quais são proi- Terá o infrator como obrigação, conforme o parágrafo terceiro da mes-
bidos por lei. ma lei, de ressarcir à municipalidade os gastos provenientes dos serviços
Por outro lado, observa-se ainda, na foto exposta que há uma vasta realizados para recuperar o bem público. O referido artigo versa o se-
área cultivada com arroz irrigado no município, pois é possível visualizar guinte:
através das cores em lilás as terras utilizadas para o plantio de arroz
irrigado. Art. 90 As invasões de logradouros e de outras áreas públicas serão
Portanto, é imprescindível examinar a legislação municipal, para punidas conforme as determinações estabelecidas nesta lei, sem pre-
se certificar da existência de norma a ser aplicada na presente pes- juízo das demais sanções legais cabíveis.
[...]
quisa.
§ 2º Idêntica providência à referida no § 1º deste artigo deverá ser
tomada pelo órgão municipal competente, no caso de invasão e ocu-
2.3 Aspectos Normativos Relativos ao pação de faixa de preservação permanente, cursos d’água e canais e
Meio Ambiente no Município se houver redução indevida de parte da respectiva área ou logradouro
público.
2.3.1 Lei Orgânica de 30 de junho de 1998 § 3º - Em qualquer dos casos previstos neste artigo, o infrator será
obrigado a ressarcir à municipalidade os gastos provenientes dos ser-
A lei orgânica do Município de 30 de junho de 1998, no art. 181, viços realizados para recuperar o bem público.
estabeleceu diretrizes para a preservação do meio ambiente, ficando
o ente público no compromisso de contribuir na conservação do meio Ao analisar o Código de Postura, observa-se que o legislador preo-
ambiente, sendo importante transcrevê-lo abaixo: cupou-se em estabelecer no art. 90, § 2º e 3º que todo cidadão deste
município deve contribuir para a preservação das áreas públicas, caso
Art. 181 prevendo “Todos têm direito ao ambiente ecologicamente contrário será punido através da referida legislação, que obriga o infrator
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualida- a restituir ao município os gastos decorrentes dos serviços perpetrados
de de vida, impondo-se ao Poder Publico Municipal e à coletividade para recuperar o bem público. Concluindo, no caso em tela seria a re-
o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gera-
cuperação da mata ciliar e o afastamento da lavoura para que fique nos
ções.”
limites determinados pela legislação ambiental, bem como a inutilização
do canal de drenagem que desemboca no leito do rio e leva toneladas
Com relação à análise da mencionada lei, verificou-se que há, no
seu artigo 181, uma sensibilização por parte do legislador quanto ao de partículas de solo para dentro do manancial hídrico, aplicando-se
compromisso do município em conservar o meio ambiente, mantendo-o esta lei no que couber.
ecologicamente equilibrado. A partir desta constatação, é importante É de extremada relevância ainda a averiguação de possível aplica-
fazer uma análise da aplicabilidade do Código de Posturas no presente ção no caso o Plano Diretor de Desenvolvimento e o Sistema de Plane-
estudo. jamento e Gestão Urbana do Município.

472 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 473
2.3.3 Lei Complementar nº 001 de 04 de Maio de 2006 I – Manter mata nativa.
(Plano Diretor de Desenvolvimento Municipal e o Sistema de II – Manter mata nativa, os ecossistemas e corredores biológicos, es-
Planejamento e Gestão Urbana do Município de Capivari do Sul). pecialmente os de espécies endêmicas.
III – Só será permitido o cultivo de arroz irrigado no sistema Pré-Ger-
minado, desde que os produtores sigam as seguintes orientações:
O Plano Diretor, no Titulo IV – Planos e Ações Estratégicos Urbanos,
a) Não drenar a água antes do processo de decantação, que dura no
Capítulo II – da Estratégia de Qualificação Ambiental e Seção I – dos
mínimo dois dias;
Planos e Ações para os Recursos Hídricos, prevê planos e estratégias
b) Reforçar taipas para evitar arrombamentos;
de qualificação ambiental e o planejamento da utilização dos recursos c) Iniciar o preparo do solo nos quadros mais altos para reaproveitar a
hídricos, fornecendo orientações que conciliam a atividade orizícola com água nos quadros mais baixos.
a conservação ambiental, como se vê do art. 40 ao 42:
Ao analisar o Plano Diretor, constatou-se que existe uma contra-
Art. 40 - Constituem diretrizes da Estratégia de Qualificação Ambien- dição entre o que propõe o art. 40, inciso I, III, IV, VI, VII e XIII, art. 41,
tal do Município: inciso I, II e III, art. 42, inciso I e II, e a proposta do inciso III, alínea “a”
I - implementar as diretrizes contidas na Política Nacional do Meio
do mesmo artigo, pois essas alíneas apresentam orientações com rela-
Ambiente, Política Nacional de Recursos Hídricos, Política Nacional de
ção ao plantio de arroz irrigado, no sistema de cultivo Pré-Germinado,
Saneamento, Programa Nacional de Controle da Qualidade do Ar, Lei
as quais, se forem assim utilizadas, não deixarão de causar prejuízos
Orgânica do Município e demais normas correlatas e regulamentares
ambientais, e ainda estarão sendo contrariadas as disposições previstas
da legislação federal e da legislação estadual, no que couber;
anteriormente na mesma legislação. Assim, verifica-se que o artigo 42,
[...]
inciso III, alíneas “a” e “b”, conflitua com as previsões já referidas na mes-
III - controlar e reduzir os níveis de poluição e de degradação em
quaisquer de suas formas;
ma lei. Pode-se concluir, portanto, que sua aplicabilidade no presente
IV - pesquisar, desenvolver e fomentar a aplicação de tecnologias estudo se torna temerária.
orientadas ao uso racional e à proteção dos recursos naturais; Entretanto, antes de adentrar mais especificamente na questão do
[...] problema existente, objeto do presente estudo, é imprescindível verifi-
VI - incentivar a adoção de hábitos, costumes, posturas, práticas so- car quais os sistemas de cultivo utilizados no município.
ciais e econômicas que visem à proteção e restauração do meio am-
biente;
VII - preservar os ecossistemas naturais e as paisagens notáveis; 3. O SISTEMA DE CULTIVO DE ARROZ IRRIGADO
[...] PRÉ-GERMINADO UTILIZADO NO
XIII – controlar a atividade de mineração e dos movimentos de terra MUNICÍPIO DE CAPIVARI DO SUL
no Município e a exigência da aplicação de medidas mitigadoras de
seus empreendedores; O Município apresenta basicamente dois tipos de sistemas de plantio
SEÇÃO I – DOS PLANOS E AÇÕES PARA OS RECURSOS HÍDRICOS de arroz irrigado: o sistema de cultivo mínimo e o Pré-Germinado. Em gran-
Art. 41 – São diretrizes relativas aos Recursos Hídricos: de escala, é utilizado o sistema de cultivo mínimo. No entanto o objeto do
I – despoluir cursos d’água, recuperar matas ciliares; presente estudo é o cultivo de arroz irrigado no sistema pré-ger­minado.
II – desenvolver alternativas de reutilização de água e novas alterna-
tivas de captação para usos que não requeiram padrões de potabili- 3.2. Sistema de Cultivo Pré-Germinado
dade;
III – difundir políticas de conservação do uso da água; Esse sistema caracteriza-se pelo uso de sementes pré-germinadas
Art. 42 – São ações estratégicas para os recursos hídricos: em solo previamente inundado. O preparo do solo pode ser feito no

474 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 475
seco ou sob lâmina de água. No preparo do solo com água, normalmen- arrozeira no meio ambiente, caso não sejam adotadas as recomendações
te, há a necessidade da formação de lama, nivelamento e alisamento do para o seu adequado manejo. (MACEDO; CHAVES, 2006)
solo. (IRGA, 2001). Ademais, o processo de inundação e retirada da água de irrigação,
Segundo Marcolin e Macedo (2003), o sistema Pré-Germinado ocu- além de prejuízos financeiros ao agricultor, pode provocar perdas de
pa entorno de 11% da área com arroz irrigado no RS. Este sistema de solo e nutrientes na água, importantes para a planta. Ainda, a drenagem
cultivo necessita que a área seja sistematizada e o nivelamento da su- desta água para mananciais hídricos próximos da lavoura (córregos, la-
perfície do solo pode ser feito no seco ou em água, irrigação e drena- goas, arroios, riachos e rios) causa graves prejuízos ambientais, dentre
gem independentes, taipas fixas, preparo do solo a seco ou em água, eles a erosão, causando o assoreamento. (MACEDO, 2006)
semeadura na água com semente pré-germinada e o consumo médio de De acordo com Machado (2003), o sistema de cultivo de arroz ir-
água para uma cultivar de ciclo médio (130 dias) é de aproximadamente rigado Pré-Germinado tem como característica a retirada da água dos
8.000 m³/ha. quadros para o melhor estabelecimento das plântulas; por conseguinte,
há que se pensar em desenvolver alternativas de manejo da água sem
3.2.1 Vantagens e Desvantagens prejudicar o desenvolvimento inicial e as características das plantas, mas
também sem causar danos ambientais.
As vantagens apresentadas na sistematização em quadros em nível O IRGA realizou um estudo com o objetivo de quantificar as perdas
são: a distribuição mais adequada da água, permitindo irrigação unifor- de partículas sólidas e nutrientes em solos do RS, na retirada da água
me da cultura desde o seu estabelecimento e maior facilidade no con- para a semeadura de sementes pré-germinadas, sendo coletadas amos-
trole de plantas daninhas, redução da perda de nutrientes do solo, da tras de água após o preparo do solo em diversos locais de diferentes
incidência de pragas e doenças e da oscilação de temperatura da água e classes de solos que são similares às existentes no Município de Capi-
do solo. Com isto, a uniformidade da lavoura possibilita maior eficiência vari do Sul, tendo como resultado, além das referidas perdas de solo e
nos tratos culturais e na colheita, melhor aproveitamento do solo com a nutrientes, o assoreamento e contaminação dos mananciais de água.
redução da área ocupada com taipas e economia de insumos. (MACEDO; MARCOLIN; BOHNEN, 2003)
As desvantagens estão relacionadas à alternância de cultivo com Assim, de acordo com as informações fornecidas pelos técnicos do
outras culturas, o que dificulta em função da deficiência de drenagem IRGA, a drenagem da água de uma lavoura de arroz irrigado, que utiliza
superficial, originada pelo nivelamento do terreno. O custo inicial da sis- o sistema de cultivo Pré-Germinado, uma hora após o preparo da terra,
tematização de quadros em nível é normalmente mais elevado do que a no caso do tipo de solo franco arenoso, poderá carregar até 16 tonela-
sistematização em desnível. das de solo por hectare para o leito dos mananciais hídricos.
No entanto, dependendo do tipo de solo, conforme pesquisa feita
3.2.2. Problemas Ambientais Decorrentes do Plantio pelos referidos técnicos, que apresentou quatro tipos: argiloso, franco
e Manejo da Água no Sistema Pré-Germinado argilo arenoso e franco arenoso, verifica-se que quanto mais argiloso o
solo, menor a quantidade de partículas de solo a serem perdidas com
No sistema de cultivo de arroz Pré-Germinado, um dos aspectos mais a drenagem da água, que é o caso do solo do Estado de Santa Catarina
importantes a ser considerado é a distância correta que deve ter o plantio, (MACEDO, 2006).
de acordo com a legislação ambiental, dos mananciais hídricos e o ma- O município de Capivari do Sul, porém, possui um solo mais próxi-
nejo da água durante o processo de semeadura e posterior condução da mo do franco arenoso, sendo possível constatar, nesse caso, que a quan-
cultura, o que requer um necessário domínio no manejo, pois, se realizado tidade de solo perdido na drenagem da água para o leito do rio Capivari,
de maneira inadequada, pode contribuir para uma modificação na quali- se aproxima de 16 toneladas de solo perdidas por hectare. Conclui-se
dade da água. Isto tudo, juntamente com a elevada quantidade de água que, no evento em estudo, com uma área plantada de 22 hectares, hou-
utilizada pela cultura, pode provocar conseqüências negativas da lavoura ve uma perda de solo de aproximadamente 352 toneladas, que foram

476 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 477
para o leito do rio, causando assoreamento e modificando a quantidade sendo utilizada a área de preservação permanente e o incorreto manejo
e a qualidade da água disponível no manancial. da água, provocando o aumento de erosão e o assoreamento do Rio.
Verificada a comprovação acima exposta, é importante examinar Ocorre que, diferentemente de Santa Catarina, Capivari do Sul/RS tem
qual é a posição do técnico da Secretaria da Agricultura e Meio Ambien- um solo de característica arenosa, com alto teor de matéria orgânica desa-
te do Município, em relação aos processos erosivos que vêm ocorrendo gregando-se com facilidade, permanecendo suas partículas em suspensão
no leito do rio Capivari, em função do plantio de arroz irrigado, que uti- dentro dos talhões alagados e isso reduz a passagem de luz, o que, no
lizou o sistema de cultivo Pré-Germinado. entendimento dos orizicultores, dificulta o bom desenvolvimento das plân-
tulas de arroz. Isso os faz imaginar que a planta não irá se desenvolver.
Ainda, segundo o entrevistado, para solucionar o problema gera-
4 OS PROCESSOS EROSIVOS EXISTENTES NO LEITO do, os orizicultores realizam, antes da semeadura, uma drenagem dessa
DO RIO CAPIVARI GERADOS PELO ARROZ IRRIGADO, água turva sobre o solo desnudo para o leito do Rio, o que leva consigo
QUE UTILIZOU COMO SISTEMA DE CULTIVO O toneladas de solo, nutrientes e matéria orgânica, causando desequilíbrio
PRÉ-GERMINADO: O OLHAR TÉCNICO DA SECRETARIA na água do rio e prejudicando a formação do plâncton (microorganismos
DA AGRICULTURA E MEIO AMBIENTE DO MUNICÍPIO aquáticos), que é fonte primária essencial de alimento e principalmente
de oxigênio para a água e os organismos aquáticos.
Neste item serão apresentados alguns resultados da pesquisa reali- No entanto, o problema em si é que o manejo da água está sendo rea-
zada junto ao atual técnico da Secretaria da Agricultura e Meio Ambien- lizado indevidamente no solo sem cobertura vegetal. Isso, além de causar
te do Município de Capivari do Sul, Geovane da Rocha Silveira, a partir a formação de processos erosivos, conseqüentemente provoca o assorea-
da realização de um roteiro de entrevista não estruturado. Nesse proce- mento do rio com a diminuição da profundidade do leito, acarreta ainda o
dimento, foram feitas as seguintes perguntas: Qual a quantidade de área aumento da quantidade de nutrientes na água, ocasionando desequilíbrio
plantada no sistema de cultivo Pré-Germinado? Onde se localiza a área de diversos fatores responsáveis pela sua qualidade natural.
em que é realizado este tipo de sistema de cultivo? Como deve ocorrer Concluindo, segundo o Técnico da referida Secretaria, a recomen-
o manejo da água da lavoura de arroz irrigado, quando se utiliza o refe- dação é de não drenar a água, porque há um grande equívoco dos ori-
rido sistema? De que forma ocorre, no município, o manejo da água no zicultores, pois com a manutenção da lâmina de água, as plantas não
sistema de plantio Pré-Germinado? Quais os documentos disponíveis na deixarão de se desenvolver.
Secretaria para a realização da pesquisa? Qual a sua posição com rela-
Para verificar se a opinião do técnico da Secretaria é plausível, foi re-
ção aos processos erosivos que vêm ocorrendo no leito do rio Capivari?
alizado um levantamento fotográfico da área em estudo, conforme mostra
Onde podem ser encontradas mais informações sobre o mencionado
esta figura a seguir:
sistema de cultivo de arroz irrigado?
De acordo com as informações obtidas na entrevista, hoje a área
plantada que utiliza o sistema de cultivo Pré-Germinado é de 22 hectares FIGURA 2: Canal de drenagem
e está localizada em um ponto contíguo às margens do rio Capivari, pró- da água, na lavoura de arroz
Pré-Germinado, na margem
xima da ponte que passa por cima do rio e da estrada estadual RS 040. do Rio Capivari, no trecho es-
Conforme relato do entrevistado, o Rio Capivari vem sofrendo di- colhido como objeto de estu-
versos tipos de problemas ambientais, dentre os mais graves, o causa- do, carregando partículas de
do pela derrubada da mata ciliar para o plantio do arroz irrigado, que solo e nutrientes na água para
o leito do manancial hídrico e
provoca a erosão das margens e o assoreamento do Rio, o transbor- causando formação de proces-
damento e o alagamento das áreas próximas às margens. Esse tipo de sos erosivos e assoreamento.
problema se agrava ainda mais se juntarmos o plantio inadequado de Fonte: Secretaria Municipal da
Agricultura e Meio Ambiente,
arroz irrigado no sistema Pré-Germinado, próximo às margens do rio, Março/2006

478 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 479
Assim, através da foto acima, é possível observar como estão as mar- Ambiental, Evite Perdas de Solo e Nutrientes na Água de Drenagem do
gens do Rio Capivari, na área em estudo, onde foi utilizado o plantio de Sistema Cultivo de Arroz Pré-Germinado; LAVOURA DE ARROZ IRRIGA-
arroz irrigado no sistema de cultivo Pré-Germinado, safra 2005/2006. DO (FARSUL, 2003); MACHADO (FARSUL, 2003), Consumo e Qualidade
Pôde-se constatar que houve o desmatamento da mata ciliar, em função da Água na Lavoura de Arroz Irrigado e Efeitos no Jundiá.
da desobediência à legislação vigente e da existência de um canal de – Entrevista não estruturada realizada com uma técnica do IRGA,
drenagem que deságua no rio, o qual despejou, pelo cálculo feito an- Vera Regina Mussoi Macedo, e um técnico da FARSUL, Ivo Lessa. Per-
teriormente, durante a drenagem, aproximadamente 352 toneladas de guntou-se: Como ocorre a prática de drenagem realizada no cultivo de
solo para o leito do manancial, causando a formação de processos ero- arroz irrigado no sistema Pré-Germinado? Quais as recomendações téc-
sivos, por conseguinte o assoreamento, dentre outros danos ambientais, nicas para o manejo da água no cultivo de arroz irrigado, no sistema
sendo confirmada a posição do técnico da Secretaria da Agricultura e de cultivo Pré-Germinado? Que conseqüências ambientais pode trazer
Meio Ambiente do Município. quando o manejo da água neste tipo de sistema de plantio é realizado
Ademais, é importante ainda averiguar quais são as recomendações de forma incorreta?
fornecidas pelo IRGA e a FARSUL, com relação ao plantio e ao manejo De acordo com os entrevistados, as recomendações técnicas, con-
da água, quando se opta pelo sistema de cultivo Pré-Germinado, com- forme pesquisa realizada pela equipe de técnicos do IRGA e recomen-
parando com o que já foi estudado. dações do referido técnico da FARSUL, para o manejo da água no sis-
tema de cultivo Pré-Germinado são as seguintes: a) preferencialmente
preparar o solo no seco; b) não drenar a água antes de dois dias após o
5. RECOMENDAÇÕES TÉCNICAS FORNECIDAS PELO preparo do solo; c) reforçar taipas para evitar arrombamentos e iniciar
IRGA E PELA FARSUL SOBRE A PRÁTICA o preparo do solo nos quadros mais altos para reaproveitar a água nos
DE DRENAGEM DA ÁGUA DO ARROZ IRRIGADO quadros mais baixos; e destaca que d) de modo geral, evitar a drenagem
NO SISTEMA DE CULTIVO PRÉ-GERMINADO. da água da lavoura após a semeadura.
Segundo os entrevistados, o posicionamento exposto na letra “d”
Com o propósito de obter as sugestões e recomendações para o do parágrafo anterior justifica-se porque já há algum tempo vem sendo
manejo e prática de drenagem da água na produção do arroz irrigado abolida por eles a drenagem da água neste tipo de sistema de cultivo,
no sistema de cultivo Pré-Germinado, foram utilizadas duas fontes: tendo em vista que as plantas de arroz se estabelecem, indiferentemen-
– Dados documentais pesquisados na FARSUL e biblioteca do IRGA, te de estar sob a lâmina de água. Assim, não há necessidade de se fazer
sobretudo o artigo realizado por MACEDO E CHAVES (IRGA, 2006), so- a drenagem da água que é responsável pelo transporte de sólidos e
bre Qualidade da Água e Racionalização do Uso na Lavoura de Arroz nutrientes das áreas cultivadas com arroz para os mananciais hídricos,
Irrigado; o livro de GOMES E JUNIOR (2004), sobre Arroz Irrigado no Sul causando prejuízos ambientais, como a formação de processos erosivos
do Brasil; artigo de MARCOLIN e MACEDO (IRGA, 2001), Consumo de e assoreamento do rio.
Água em Três Sistemas de Cultivo de Arroz Irrigado; artigo de MARCO- Ao analisar as recomendações e orientações apresentadas acima,
LIN; MACEDO; BOHNEN (2001), sobre as Perdas de Nutrientes na Água no que se refere ao manejo da água no cultivo de arroz Pré-Germinado,
de Drenagem Durante o Preparo para o Sistema de Cultivo de Arroz Pré- observa-se que elas são perfeitamente válidas, pois se os orizicultores
-Germinado; artigo de MACEDO e MARCOLIN (2005) sobre Rendimento seguirem as referidas recomendações e orientações, estarão evitando
de Grãos, Perdas de Solo e de Nutrientes em Função de Manejos do Solo, que, em um futuro próximo, ocorra o soterramento dos mananciais hí-
da Adubação e da Água no Sistema Pré-Germinado; artigo de MACEDO dricos existentes no município, o que limitaria a produção de arroz irri-
e MARCOLIN (2005), sobre o Monitorameto da Água de Irrigação e de gado, gerando diversos conflitos em relação ao uso da água.
Drenagem na Estação Experimental do Arroz em Cachoeirinha (RS); fol- Portanto, de um modo geral foi possível observar que o posiciona-
der de MACEDO; MARCOLIN; BHONEM; JAEGER (IRGA, 2006), Gestão mento do Plano Diretor do Município que expõe no artigo 42, inciso III,

480 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 481
alínea “a” e “b”, não drenar a água antes do processo de decantação que criação de um planejamento estratégico, tendo como propósito elaborar
dura no mínimo dois dias, difere das disposições previstas na mesma e implementar uma política ambiental voltada para a conservação dos
Lei, das recomendações do técnico da Secretaria da Agricultura e Meio mananciais hídricos, levando em conta as recomendações do técnico da
Ambiente do Município, dos técnicos do IRGA e da FARSUL e da litera- Secretaria da Agricultura e Meio Ambiente e dos técnicos do IRGA e da
tura apresentada, pois há a recomendação do afastamento da lavoura FARSUL.
de acordo com a determinação da legislação ambiental e não drenar a
água da lavoura que utiliza o sistema de cultivo Pré-Germinado.
REFERÊNCIAS

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS CAPIVARI DO SUL. Código de Posturas do Município de Capivari do Sul: Lei
n. 417 de 17 de Junho de 2005.
A partir da análise dos dados coletados durante o estagio super- ______. Lei Orgânica do Município de Capivari do Sul, de 30 de Junho de 1998.
visionado realizado na Secretaria da Agricultura e Meio Ambiente do ______. Plano Diretor de Capivari do Sul/RS
Município, por intermédio de dados secundários, obtidos na própria Se- ______. Secretaria do Meio Ambiente e Agricultura de Capivari do Sul/RS.
cretaria, no IRGA, na FARSUL e na Secretaria da Administração do Mu- FAISTAUER, Maria Cardoso, Gonçalves Pedro. A Saga de Garibaldi no Capivari,.
nicípio, bem como por meio de roteiros de entrevistas não estruturados, Porto Alegre: Companhia Rio Grandense de Artes Gráficas, 2005.
observação e levantamento fotográfico do local, objeto de estudo, foi GOMES, Algenor da Silva Gomes; JÚNIOR, Ariano Martins de Magalhães. Arroz
possível estruturar o presente trabalho, chegando-se a algumas conclu- irrigado no sul do Brasil. Brasília, DF: Embrapa Informação Tecnológica, 2004.
sões, as quais estão embasadas no referencial teórico. Conclui-se, por- INSTITUTO RIO GRANDENSE DO ARROZ. Arroz irrigado: recomendações téc-
tanto, que a escolha da metodologia utilizada foi adequada para atingir nicas da pesquisa para o sul do Brasil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE AR-
os objetivos propostos. ROZ IRRIGADO, 2., REUNIÃO DA CULTURA DO ARROZ IRRIGADO, 24., 2001.
O estudo realizado permite concluir em um primeiro momento que Anais... Porto Alegre: IRGA, 2001.
o Município de Capivari do Sul possui o local escolhido para avaliação ______. Arroz irrigado: recomendações técnicas da pesquisa para o sul do Bra-
dos processos erosivos. Nele, foi utilizado para o plantio de arroz irri- sil. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ARROZ IRRIGADO, 4., REUNIÃO DA CUL-
gado o sistema de cultivo Pré-Germinado, o que permite concluir, de TURA DO ARROZ IRRIGADO, 26., Santa Maria. Anais... Santa Maria: UFSM,
acordo com o embasamento teórico referenciado, com os roteiros de 2005.
entrevistas realizados com os técnicos mencionados no texto e o le- LAVOURA de arroz irrigado: palestras. Porto Alegre: FARSUL, 2003. 1 CD-
vantamento fotográfico, que a proximidade da lavoura com as margens -ROM.
do rio Capivari (área de preservação permanente) e a forma como foi MAGGI, Eraclides Lumertz; DUARTE, Walter Barros, a integração na busca do
feito o manejo da água provocaram prejuízos ambientais, como o des- desenvolvimento sustentável do litoral. Torres: Corede Litoral, 2002.
matamento da mata ciliar, erosão e conseqüentemente assoreamento MARCOLIN, Elio; MACEDO, Vera Regina Mussoi, Consumo de água em três sis-
do manancial. temas de cultivo de arroz irrigado. In: 11º CONGRESSO NACIONAL DE IRRIGA-
Sob esse prisma, seria possível recorrer a duas alternativas. A pri- ÇÃO E DRENAGEM, 11., 2001, Fortaleza. Anais... Fortaleza: CONIRG, 2001.
meira seria a aplicação das legislações mencionadas, vigentes no mu- p. 59-63.
nicípio, no que atine ao meio ambiente, com uma ressalva de que os MARCOLIN, Elio; MACEDO, Vera Regina Mussoi; BOHNEN, H. Perdas de nu-
legisladores alterem o artigo 42, inciso III, alínea “a” do Plano Diretor trientes na água de drenagem durante o preparo para o sistema de cultivo
de Desenvolvimento Municipal e o Sistema de Planejamento e Gestão de arroz pré-germinado. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ARROZ IRRIGADO,
Urbana, tendo em vista a existência de conflito com a própria lei, com 2: REUNIÃO DA CULTURA DO ARROZ IRRIGADO, 24., Porto Alegre, 2001.
a Lei Orgânica e o Código de Posturas. A segunda alternativa seria a Anais... Porto Alegre: IRGA, 2001. p. 247-249.

482 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 483
MACEDO, Vera Regina Mussoi; CHAVES, André Preissler Loureiro. Qualidade
da água e racionalização do uso na lavoura de arroz irrigado no RS. Lavoura
Delimitação das APP de topo de morro:
Arrozeira, Porto Alegre, v.54, n. 439, maio 2006. lacunas na legislação brasileira e
MACEDO, Vera Regina Mussoi, MARCOLIN, Elio Genro Junior, S. Volume de
água usado na lavoura de arroz em função das épocas de início de irrigação por
proposição de uma metodologia
inundação. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE ARROZ IRRIGADO, 4., REUNIÃO
Mariana Lisboa Pessoa1
DA CULTURA DO ARROZ IRRIGADO, 26., Santa Maria. Anais... Santa Maria:
UFSM, 2005. v. 1, p. 365-367.
______. Rendimento de grãos, perdas de solo e de nutrientes em função de
Resumo: As Áreas de Preservação Permanente (APP) são um
manejos do solo, da adubação e da água no sistema pré-germinado. In: CON- importante instrumento legal para a gestão territorial visando
GRESSO BRASILEIRO DE ARROZ IRRIGADO, 4., REUNIÃO DA CULTURA DO à preservação ambiental, pois objetivam a proteção de áreas
ARROZ IRRIGADO, 26., Santa Maria. Anais... Santa Maria: UFSM, 2005.v. 1, consideradas relevantes para a manutenção dos ecossistemas
p. 350-353. naturais. No caso das APP de topo de morro, foco deste tra-
______. Monitoramento da água de irrigação e de drenagem na estação expe- balho, sua relevância vai além dos aspectos ambientais, pois a
manutenção da vegetação nessas áreas auxilia na prevenção
rimental do arroz em Cachoeirinha (RS). In: CONGRESSO BRASILEIRO DE AR-
de processos erosivos acelerados que podem desencadear
ROZ IRRIGADO, 4., REUNIÃO DA CULTURA DO ARROZ IRRIGADO, 26., Santa inúmeros problemas para as populações residentes próximas
Maria. Anais... Santa Maria: UFSM, 2005. v. 2 p. 535-537. a esses locais, como deslizamentos, soterramentos, assorea-
MACEDO, Vera Regina Mussoi et. al. Características da água do reservatório mento dos cursos d’água, entre outros. Apesar de bastante
da barragem do arrio duro usada para irrigação da lavoura de arroz. In: CON- abrangente, a legislação ambiental que trata dessa temática
GRESSO BRASILEIRO DE ARROZ IRRIGADO, 4., REUNIÃO DA CULTURA DO apresenta algumas lacunas que acabam por dificultar a aplica-
bilidade da norma, entre elas a subjetividade na interpretação
ARROZ IRRIGADO, 26., Santa Maria. Anais... Santa Maria: UFSM, 2005. v. 2
de alguns critérios e a falta da indicação de uma metodologia
p. 484-486 para a delimitação dessas áreas. Neste contexto, o objetivo
MACHADO, Sérgio Luiz de Oliveira. Consumo e qualidade da água na lavoura do presente trabalho é identificar as dificuldades existentes no
de arroz irrigado e efeitos no Jundiá. In: SEMINÁRIO DA QUALIDADE DA ÁGUA cumprimento da legislação ambiental referente à implementa-
NA LAVOURA DE ARROZ IRRIGADO, 2003, Porto Alegre. Porto Alegre: FAR- ção das Áreas de Preservação Permanente de topo de morro,
SUL, 2003. 1 CD-ROM. e propor medidas tanto para o aperfeiçoamento do texto legal
quanto para a padronização de uma metodologia de delimi-
RIO GRANDE DO SUL. Secretaria do Meio Ambiente. Departamento de Recur-
tação destas áreas, utilizando como ferramenta técnicas de
sos Hídricos. [Site] disponível em: <http://www.sema.gov.br>. geoprocessamento e Sistemas de Informação Geográfica (SIG).
Como exemplo prático foi feita a aplicação da legislação em
seis dos principais morros do município de Porto Alegre, Morro
Teresópolis, Morro da Glória, Morro da Pedra Redonda, Mor-
ro Pelado, Morro da Polícia e Morro da Companhia, seguindo
uma metodologia que se entende ser a melhor aplicável em
SIG. Através desse exercício pode-se comprovar que o estabe-
lecimento de procedimentos padronizados na delimitação des-
sas APP pode assegurar a aplicabilidade das exigências legais
de maneira mais eficiente e menos subjetiva, e assim facilitar a
fiscalização e a gestão dessas áreas.
Palavras-chave: Delimitação de APP, topo de morro, Siste-
mas de Informação Geográfica.
1 Geógrafa, Especialista em Direito Urbano e Ambiental

484 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 485
1. Introdução executor a escolha dos procedimentos que melhor atendam aos seus
interesses.
As Áreas de Preservação Permanente - aqui denominadas APP - são Na legislação ambiental referente à delimitação das APP de topo de
aquelas reconhecidas por abrigarem ecossistemas de grande relevância morro, existem lacunas que estão relacionadas à falta de uma especi-
para o ambiente natural, seja por suas características geológicas, biológi- ficação mais detalhada das diferentes formas de relevo sobre as quais
cas, hidrológicas ou climáticas, e que tenham potencial de resguardar as a norma recai e dos procedimentos metodológicos para sua aplicação.
características naturais das comunidades biológicas (STIFELMAN, 2007). A definição de uma metodologia referente à delimitação dessas áreas,
O intuito de definir essas áreas é o de assegurar a permanência da exis- determinada a partir de uma abordagem com embasamento técnico que
tência das espécies, tanto de fauna como de flora, e seus habitats, e em possibilite a clara identificação desta classe de APP, aplicável em diferen-
especial proteger os cursos d’água, evitando processos erosivos que con- tes escalas e dotada de uma reprodutibilidade nas diferentes configurações
tribuem para a contaminação e o assoreamento dos mesmos. morfológicas do território brasileiro, pode contribuir para a materialização
Nesse contexto, as APP surgem como um importante instrumen- de uma norma jurídica mais efetiva na proteção dos recursos naturais.
to de preservação ambiental, e possuem no Código Florestal (Lei nº As técnicas de geoprocessamento podem auxiliar na tarefa de deli-
4.471/65) o principal marco legal para a delimitação dessas áreas. A mitar as APP e vêm sendo cada vez mais utilizadas para esse fim. O ge-
norma define APP como: oprocessamento representa qualquer tipo de processamento de dados
área protegida [...] coberta ou não por vegetação nativa, com a fun- georreferenciados realizado através do uso de sistemas auxiliados por
ção ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabili- computador para aquisição, armazenamento, análise e visualização de
dade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, prote- dados geográficos, os Sistemas de Informação Geográfica (SIG).
ger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (Artigo 1º, Esses sistemas são compostos por uma variedade de elementos, como
parágrafo 2º, inciso II). banco de dados espacial, sistema de visualização cartográfica, sistema de
Ao regrar a ocupação territorial, o Código Florestal encontra o desa- análise geográfica, análise estatística, entre outros. No caso da delimitação
fio de apresentar um texto com uma aplicabilidade, no caso brasileiro, de Áreas de Preservação Permanente, essas ferramentas são de grande
em um território com dimensões quase continentais. Por outro lado, a ajuda, pois facilitam e agilizam a execução de cálculos e análises.
necessidade de dotar tal legislação de conceitos claros e inequívocos Dentro deste contexto, o presente trabalho visa identificar as difi-
reflete-se na própria eficácia e materialidade da normativa. culdades existentes no cumprimento da legislação ambiental referente à
As Áreas de Preservação Permanente, além da sua evidente impor- delimitação das Áreas de Preservação Permanente de topo de morro, e
tância ambiental, articulam-se com outros espaços territoriais especial- propor medidas tanto para o aperfeiçoamento do texto legal quanto para
mente protegidos (ETEP) e representam uma parcela considerável do a padronização de uma metodologia de delimitação destas áreas prote-
dever que a Constituição Federal impõe à coletividade na missão de pro- gidas, utilizando para esse fim técnicas de geoprocessamento e Sistemas
teger e assegurar o meio ambiente ecologicamente equilibrado para as de Informação Geográfica. O intuito de se estabelecer procedimentos pa-
presentes e futuras gerações, através do artigo 225, que defende que: dronizados na delimitação dessas APP é o de assegurar a aplicabilidade
das exigências legais de maneira mais eficiente e menos subjetiva, e assim
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, facilitar a fiscalização e a gestão dessas áreas pelos órgãos competentes.
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
2. As Áreas de Preservação Permanente
preservá-lo para as presentes e futuras gerações (caput).
na legislação brasileira
A delimitação das APP na legislação brasileira e, em específico o
delineamento das APP de topo de morro, é complexa, uma vez que não
A preocupação com a proteção e a preservação do meio ambiente
existe no texto legal ou na sua regulamentação a definição de uma me-
na legislação brasileira iniciou timidamente ainda no século XVI, mui-
todologia padrão a ser adotada para esse fim, ficando a critério de cada

486 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 487
to embora apenas no final do século XX é que tenha se tornado mais riando a extensão da faixa de acordo com a largura e área dos mesmos;
expressiva. Nesse período inicial, o foco principal dessas leis era mais ao redor de nascentes; topo de morros, montanhas, montes e serras;
voltado à ordenação das terras e à manutenção dos recursos naturais, declividades superiores a 45º (100%); restingas; bordas de tabuleiros
como por exemplo, as florestas de onde era tirada matéria-prima, em ou chapadas; e altitudes superiores a 1.800 metros;
especial a madeira. Para esse trabalho a principal norma utilizada é a que determina os
Com o passar dos anos inúmeras leis começaram a ser criadas critérios de delimitação de APP de topo de morro, que aparece no artigo
visando esta temática, dentre elas o Código das Águas (Decreto nº 2º, incisos IV, V e VI, da Resolução CONAMA 303/2002. No artigo 3º
24.643/34), a Lei de Proteção à Fauna (Lei nº 5.197/67), o Código Flo- dessa Resolução, são apresentadas as definições das áreas passíveis de
restal (Lei nº 4.471/65), o Código de Pesca (Decreto nº 221/67) e a delimitação de APP.
Lei nº 6.225/75, que dispõe sobre planos de proteção do solo e de Além das áreas especificadas pela Legislação, existem aquelas de-
combate à erosão. Em 1981 foi instituída a Política Nacional do Meio finidas por Ato Declaratório, ou seja, quando o Poder Público enten-
Ambiente (Lei nº 6.938/81) e em 1988 a Constituição Federal trouxe a de que áreas não pré-estabelecidas em lei possuem algum interesse de
temática ambiental em inúmeros artigos, sendo um específico, o 225, preservação ambiental, como aquelas que tenham a função de atenuar
que garante o direito ao meio ambiente equilibrado para as presentes erosão, fixar dunas, auxiliar na defesa do território nacional, assegurar o
e futuras gerações. Na década de 1990 surgiu o Código de Defesa do bem-estar público, entre outras.
Consumidor (Lei nº 8.078/90), a Política Nacional de Recursos Hídricos As Áreas de Preservação Permanente não permitem, a princípio,
(Lei nº 9.433/97) e a Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº qualquer uso dos recursos ali disponíveis, bem como a supressão da
9.795/97). Em 2000 foi criado o Sistema Nacional de Unidades de Con- vegetação, exceto em casos considerados como de utilidade pública ou
servação – SNUC (Lei nº 9.985/00) e em 2003 entrou em vigor o novo interesse social, que devem ser caracterizados e justificados mediante
Código Civil (Lei nº 10.406/02), que também aborda questões ambien- procedimento administrativo, e a autorização ficará a cargo do órgão
tais. Além da legislação citada, existem inúmeras outras leis, decretos e fiscalizador responsável. Esses casos são especificados no artigo 4º do
normas que tratam da temática, a nível Nacional, Estadual e Municipal, Código Florestal e na Resolução do CONAMA nº 369/2006, que dis-
sendo que a aplicabilidade e a fiscalização desses diplomas legais é que ciplina os casos excepcionais que possibilitam a intervenção em APP,
se tornam o grande desafio nas ações de proteção, preservação e con- como por exemplo, para garantir acesso da população e de animais à
servação do meio ambiente. água, obras de infra-estrutura consideradas essenciais ao bem-estar da
O conceito de Áreas de Preservação Permanente surgiu na legisla- população, entre outras.
ção brasileira em 1965 com o Código Florestal, e foram regulamentadas As APP podem ser tanto de domínio público como privado e são
pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) através das Reso- consideradas limitantes constitucionais do direito de propriedade, fun-
luções nº 004/1985 e posteriormente, 302 e 303/2002 que dispõem damentada no princípio da função social da propriedade, assegurada
sobre parâmetros, critérios, definições e limites das APP. pela Constituição Federal (Artigo 170), que define as funções sociais de
As APP podem ser classificadas em duas categorias de acordo com propriedades urbanas e rurais (Artigos 182 e 186, respectivamente).
sua definição, as estabelecidas por força ou efeito de lei e aquelas de- Por se tratar de um direito difuso, ou seja, de interesse da coletivida-
finidas por Ato Declaratório do Poder Público (TRINDADE e LAVRATTI, de, o direito ao meio ambiente equilibrado acaba por submeter os direi-
2010). tos subjetivos, e em especial os de natureza privada, a uma obediência
As definidas por força ou efeito legal são aquelas especificadas pelo legal (FIGUEIREDO, 2009). Assim sendo, o direito de propriedade está
Código Florestal, em seu artigo 2º, e regulamentadas pelas resoluções condicionado ao dever do proprietário de exercer a função social de sua
do CONAMA citadas anteriormente. O Código Florestal considera Áreas propriedade, ou seja, já não é mais admitido que o exercício do direito
de Preservação Permanente as florestas e demais formas de vegetação: de propriedade se dê de maneira indiscriminada, como era há tempos
em faixas marginais situadas ao longo dos cursos e corpos d’água, va- atrás, onde o proprietário poderia dispor, usar e gozar do seu bem da

488 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 489
forma que quisesse, independente dos danos que isso pudesse causar evitar os processos erosivos oriundos da supressão da vegetação dessas
ao meio ambiente e à coletividade. áreas, e por consequência trazer danos ao solo e aos cursos d’água.
Os processos erosivos podem ser eventos naturais de modificação
2.1 As Áreas de Preservação Permanente da paisagem, causados por agentes endógenos, que estão relacionados
no Projeto de Lei nº 1.876/99 à dinâmica interna do planeta como a tectônica de placas e os vulcões,
por exemplo, e fatores exógenos, associados principalmente à ação das
O Projeto de Lei nº 1.876/99, aprovado pela Câmara dos Deputa- chuvas, ventos, rios e à ocupação humana. Porém, quando esses proces-
dos com algumas alterações no seu texto original, dispõe sobre ques- sos são desencadeados pela ação antrópica, a erosão acelerada, como
tões como Áreas de Preservação Permanente e Reserva Legal (RL), e é chamada, provoca desequilíbrio no sistema, fazendo com que os pro-
visa revogar o Código Florestal (Lei nº 4.471/65) em vigor atualmente. cessos erosivos naturais se acelerem, causando inúmeros problemas,
Esse novo texto legal propõe inúmeras mudanças no que diz respeito como a formação de sulcos, ravinas e voçorocas, além da lixiviação, que
à delimitação de APP e Reserva Legal, bem como os usos permitidos empobrece o solo.
nessas áreas. Além disso, a vegetação de topo de morro auxilia no processo de
No Código Florestal atual, as APP não permitem qualquer tipo de retenção e absorção da água da chuva nos solos, possibilitando a recarga
intervenção antrópica, exceto nos casos considerados de utilidade dos aquíferos e diminuindo a intensidade do escoamento superficial, evi-
pública ou interesse social, e desde que regulamentados por Resolu- tando os processos erosivos acelerados que carreiam grande quantidade
ção do CONAMA. Já no PL, as atividades – agrossilvopastoris, eco- de sedimentos dos topos de morro até às baixadas e aos cursos d’água,
turismo e turismo rural – instaladas em APP até julho de 2008, são onde se depositam, causando assoreamento e até a eutrofização.
consideradas consolidadas e poderão ser mantidas sem necessidade Os sedimentos carreados pelas águas em morros onde a vegetação
de recomposição da vegetação original. Além disso, a própria concei- foi suprimida são compostos principalmente de matéria orgânica e par-
tuação de APP pressupõe o uso dessas áreas, uma vez que substitui o tículas de solo, porém podem conter elementos que venham a causar
termo preservar (que implica proteção integral dos recursos naturais) contaminação dos cursos d’água, como por exemplo, fertilizantes e pes-
por conservar (que subentende o uso dos recursos naturais de ma- ticidas utilizados na agricultura.
neira sustentável), ao determinar o objetivo dessas áreas (TRINDADE, As consequências da intensificação dos processos erosivos vão além
2010). do impacto ambiental no solo, fauna, flora e nos mananciais. A ocupação
Originalmente, o projeto de lei excluía inúmeras áreas considera- desordenada dos morros, especialmente nos centros urbanos, ocasiona
das atualmente como APP, dentre elas os topos de morro e as linhas problemas de ordem social e econômica, pois além de ocorrerem em
de cumeada, objetos desse trabalho. Porém, para ser aprovado pela áreas inadequadas para este fim, não possuem a mínima infraestrutura.
Câmara, o texto voltou a considerar essas áreas como de preserva- Isso faz com que o topo e as encostas dos morros se tornem instáveis
ção permanente, no entanto, são permitidas atividades de cultivo devido à retirada da cobertura vegetal, ocasionando problemas de es-
de espécies lenhosas e silvicultura. O projeto está em discussão no corregamentos e deslizamentos, que resultam em soterramentos, com
Congresso, e ainda passará por duas comissões, a de Agricultura e inúmeros prejuízos econômicos e sociais.
Ciência e Tecnologia. Não há uma data prevista para a votação da Além de evitar os processos erosivos e suas consequências, as APP
proposta. de topo de morro possuem a função de formar corredores ou trampolins
ecológicos, interconectando diferentes bacias hidrográficas e atuando
3. Relevância ambiental das APP de topo de morro como um agente integrador da paisagem. Esses corredores ou tram-
polins ecológicos permitem a circulação de animais e a dispersão de
A principal justificativa para a existência das Áreas de Preservação sementes entre diferentes ambientes, auxiliando no processo de manu-
Permanente em topo de morro, associadas às APP de encosta, é a de tenção dos ecossistemas.

490 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 491
4. Dificuldades na delimitação das Além disso, dentre as dificuldades de se delimitar o topo de morro
APP de topo de morro que, segundo o CONAMA 004/1985 e 303/2002 trata-se do terço su-
perior do morro, está a divergência de como pode ser determinada de
O Código Florestal considera Área de Preservação Permanente as flo- maneira precisa a sua linha de base.
restas e demais formas de vegetação natural situadas no topo de morros, As Resoluções do CONAMA acima citadas definem como linha de
montes, montanhas e serras (Artigo 2º, alínea d). A Resolução CONAMA base do morro, monte ou montanha como “plano horizontal definido por
planície ou superfície de lençol d’água adjacente ou nos relevos ondula-
303/2002, que regulamenta e estipula os parâmetros das APP, define
dos, pela cota da depressão mais baixa ao seu redor”.
que morro é a “elevação do terreno com cota do topo em relação à base
Analisando o que a lei determina como a linha de base, come-
entre cinquenta e trezentos metros e encostas com declividade superior çam a aparecer algumas divergências na interpretação do texto legal.
a trinta por cento (aproximadamente dezessete graus) na linha de maior Quando a linha de base é definida por uma planície a interpretação é
declividade”, e montanha como sendo “elevação do terreno com cota em bastante clara, porém, quando se fala em superfície do lençol d’água
relação à base superior a trezentos metros” (artigo 2º, incisos IV e V). adjacente, a definição do plano horizontal se torna problemática, a co-
A legislação apresenta a conceituação de duas das quatro formas de meçar pela definição do que seria o lençol d’água. Considerando o len-
relevo contempladas na delimitação das APP, e tais definições não são çol d’água como sendo o lençol freático, teremos um volume de água
totalmente coerentes com a conceituação dos geomorfólogos. subterrânea localizada nos interstícios das rochas ou do solo, e que
O conceito utilizado para morro na legislação diverge daquele ado- apresenta um nível superior próximo à sua zona de saturação. COR-
tado por alguns autores. Para GUERRA (1975) morro é um “monte pou- TIZO (2007) defende que não se pode considerar como nível de base
co elevado, cuja altitude é aproximadamente de 100 a 200 metros”, o lençol freático, pois esse permeia as margens dos cursos d’água, e
diferente da amplitude de 50 a 300 metros sugerida pela legislação, e por isso não forma um plano horizontal e sim inclinado, caso contrário
a água não se moveria por ação da gravidade. Assim, a única possibi-
independe da declividade de suas encostas.
lidade de um lençol d’água formar um plano horizontal seria quando
O conceito de montanha também deixa dúvidas quanto à sua inter-
a zona de saturação desse formasse um espelho d’água, ou seja, uma
pretação, pois não se trata apenas de uma elevação acima de 300 me- superfície de água, que pode ser um lago, uma lagoa ou uma laguna.
tros como sugere a Resolução do CONAMA (303/2002). Para STRAH- A condição que determina que a linha de base corresponde à cota da
LER (1977), as montanhas são zonas de vertentes muito pronunciadas depressão mais baixa ao seu redor, remete à primeira condição, uma
com um relevo local superior aos 600 metros. Já para WINGE (2001), vez que se a cota da depressão mais baixa formar um plano horizontal
montanha é definida como “região de grande elevação topográfica que essa poderá ser caracterizada por uma planície.
sobressai com relação às cercanias bem mais baixas”. Devido a essas dificuldades apontadas para a determinação da linha
Além de existirem divergências quanto à conceituação de cada forma de de base de uma forma de relevo, a delimitação das Áreas de Preserva-
relevo trazida pela legislação, não existe nela a definição de monte e serra. ção Permanente de topo de morro acaba por ter um caráter subjetivo,
No caso dos montes, a definição é bastante ampla, já que este é um termo uma vez que depende da interpretação dos critérios de quem a delimita.
genérico que se aplica a todas as elevações que surgem na paisagem como Para diminuir essa subjetividade e melhorar a eficácia da delimitação
formas isoladas (GUERRA, 1975). Assim, qualquer forma de relevo que se das APP, e por consequência do cumprimento da legislação é necessário
que se estabeleçam procedimentos metodológicos padronizados para a
destaque no contexto da paisagem estaria sujeita a delimitação de APP.
determinação dessas áreas.
No caso das serras também existe um problema conceitual, uma
O uso das ferramentas de geoprocessamento para delimitação das
vez que se trata de um conceito bastante abrangente, que serve para Áreas de Preservação Permanente depende da utilização de uma base
descrever paisagens com relevo acidentado com fortes desníveis. Por cartográfica estruturada e disponível, em escala compatível à área a ser
ser um termo genérico, geralmente não é utilizado pelos geomorfólogos, trabalhada, além de pessoal capacitado para a execução dessas tarefas.
já que existem denominações mais específicas paras as formações de É sabido que a escala ideal de trabalho é a escala 1:1, ou seja, a
acordo com sua gênese e evolução (GUERRA, 1975). delimitação in loco das APP. Porém, é praticamente impossível tal situ-

492 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 493
ação, fazendo-se necessária a utilização de bases cartográficas em es- A área de estudo contempla seis dos principais morros de Porto
cala compatível com a área analisada. Uma das lacunas na Legislação Alegre (Morro Teresópolis, Morro da Glória, Morro da Pedra Redonda,
Ambiental no que tange à delimitação de Áreas de Preservação Per- Morro Pelado, Morro da Polícia e Morro da Companhia), integrantes do
manente é a inexistência de uma metodologia que indique a escala da maciço que compõe Crista de Porto Alegre. A escolha dessa área se
base cartográfica a ser utilizada. O mais adequado é utilizar uma escala deu pelo fato de que, além de serem formas de relevo importantes na
grande, ou seja, a de maior detalhamento disponível. Entretanto, como paisagem do município, são áreas que apresentam na prática problemas
para a maior parte do território, em especial em áreas não urbanas, esse referentes à delimitação de APP de topo de morro, especialmente por
detalhamento é inexistente, sugere-se trabalhar com uma base cartográ- se tratar de áreas ocupadas pela urbanização.
fica que esteja disponível de forma homogênea e contínua, visando aos Os Sistemas de Informação Geográfica utilizados foram o IDRISI Tai-
estudos comparativos. Nesse contexto, a utilização das cartas topográ- ga (ClarkLabsâ), para a geração do Modelo Numérico do Terreno (MNT)
ficas elaboradas Diretoria de Serviço Geográfico do Exército (DSG) e do e cálculo das cotas de Área de Preservação Permanente e ArcGIS 9.2
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) são uma alternativa (ESRIâ), para a elaboração dos layouts.
para a resolução do problema, uma vez que o mapeamento sistemático Os dados espaciais utilizados para a delimitação das APP de topo
brasileiro cobre quase que a totalidade do território, embora essa co- de morro foram as isolinhas de 20 metros e os pontos cotados da Base
bertura se dê em diferentes escalas. No caso do Rio Grande do Sul, a Cartográfica Vetorial Contínua, na escala 1:50.000 (HASENACK e WE-
melhor escala existente do mapeamento sistemático é a 1:50.000, que BER, 2010). Embora não seja a de maior escala disponível para o mu-
já se encontra disponível em meio digital para a utilização em SIG. nicípio de Porto Alegre, a escolha da escala 1:50.000 se deu pelo fato
de esta base estar disponível para todo o estado do Rio Grande do Sul
de maneira contínua, o que permite padronizar a escala de delimitação
5. Materiais e métodos de APP para todos os municípios. Esse material serviu de base para a
geração do MNT para o município de Porto Alegre, sobre o qual todos
Os procedimentos metodológicos do presente trabalho foram dividi- os cálculos foram realizados.
dos em duas etapas, sendo a primeira de fundamentação teórica e revisão A metodologia adotada para a delimitação das Áreas de Preserva-
bibliográfica, onde se procurou fazer o levantamento e a discussão da le- ção Permanente de topo de morro foi proposta por CORTIZO (2007) e
escolhida por ter sido considerada bastante clara e objetiva na definição
gislação ambiental brasileira, especialmente no que diz respeito às Áreas
dos seus critérios e possuir uma boa aplicabilidade em Sistemas de In-
de Preservação Permanente de topo de morro; e uma segunda etapa de
formação Geográfica.
elaboração e análise dos dados espaciais utilizados para o embasamento
Após uma leitura crítica da Resolução nº 303/2002 do CONAMA,
da discussão relativa à delimitação das APP de topo de morro.
CORTIZO (2007) buscou interpretar os critérios estabelecidos de manei-
A etapa de fundamentação teórica foi estruturada principalmente a ra estritamente técnica, visando a aplicabilidade da normativa de forma
partir da análise do texto legal referente ao Código Florestal Brasileiro matematicamente consistente. A proposta é de que a linha de base do
(Lei nº 4.471/65) e à Resolução CONAMA nº 303/2002, que são a morro ou montanha, para fins de cálculo, seja determinada pelo plano
base da normativa referente à delimitação das Áreas de Preservação horizontal definido pela cota do ponto de sela mais próximo.
Permanente de topo de morro. Além disso, buscou-se discutir de ma- O ponto de sela é considerado como sendo a parte deprimida de
neira técnica as definições e os critérios existentes na legislação com um relevo de uma crista montanhosa, utilizada como passagem de uma
relação às formações geomorfológicas onde as APP são aplicáveis. vertente para outra (Figura 2: Identificação da cota referente à linha de
A etapa da elaboração e análise dos dados espaciais utilizados para base.1). Simplificando, o ponto de sela é o ponto exato onde uma curva
a delimitação das APP consistiu primeiramente na delimitação da área de nível “corta” ela mesma. No caso das cartas planialtimétricas que
de estudo, escolha e preparação do material cartográfico, execução da são utilizadas como base para delimitar as APP em SIG, dificilmente o
metodologia escolhida e análise dos resultados. ponto de sela é identificado, portanto para esse trabalho utilizaremos

494 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 495
como critério identificar o ponto de sela mais próximo e atribuir a cota A partir da cota determinada como ponto de sela pode-se calcular
imediatamente anterior como sendo a linha de base da forma de relevo a amplitude altimétrica entre o cume e a linha de base da formação e,
(A partir da cota determinada como ponto de sela pode-se calcular a consequentemente, a cota que determinará a Área de Preservação Per-
amplitude altimétrica entre o cume e a linha de base da formação e, manente de topo de morro, que corresponde ao seu terço superior.
consequentemente, a cota que determinará a Área de Preservação Per- Inicialmente, deve-se identificar a forma de relevo, definir o ponto de
manente de topo de morro, que corresponde ao seu terço superior.2). sela mais próximo e a cota imediatamente abaixo do ponto. Com os va-
lores da cota de ponto de sela e do cume é possível calcular a amplitude
altimétrica e verificar se a forma de relevo é passível de se delimitar APP.
Para isso, a amplitude entre a cota do cume e aquela correspondente ao
ponto de sela (base) deve ser superior a 50m (Resolução do CONAMA
nº 303/2002, Artigo 2º, incisos IV e V).
A = Ct – Cb (onde, A = amplitude altimétrica, Ct = cota do topo,
Cb = cota da base definida a partir do ponto de sela).
Se a amplitude altimétrica da feição for superior a 50m, calcula-se a
cota correspondente ao terço superior, que será a cota a partir da qual
a Área de Preservação Permanente será delimitada.
APP = (2/3*A) + Cb (onde, APP = cota correspondente a APP
(terço superior)
A = amplitude altimétrica, Cb = cota da base definida a partir do
ponto de sela).
Figura 1: Identificação do ponto de sela. Com o valor da cota correspondente ao terço superior da feição, é
possível definir o polígono da Área de Preservação Permanente e calcu-
lar sua área. Para isso é necessário reclassificar o MNT, atribuindo um
valor nulo (zero) para as altitudes inferiores à cota de APP e valor 1 para
as altitudes superiores, obtendo-se, assim, um arquivo binário, identi-
ficando as APP. A partir desse arquivo é possível calcular a superfície
ocupada pelas APP.

6. Caracterização da área de estudo

A Crista de Porto Alegre situa-se na região central do município,


tendo sua orientação alinhada a nordeste, e estendendo-se por cerca
de 22km (As formações da Crista de Porto Alegre possuem uma com-
posição vegetal caracterizada por um misto de campo e mata (cerca de
1.930ha, o que corresponde a aproximadamente 70% da área da cris-
ta) a qual, de acordo com HASENACK (2008) se encontra relativamente
Figura 2: Identificação da cota referente à linha de base. bem preservada. O tipo de ocupação predominante nas formações da

496 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 497
Crista de Porto Alegre é a ocupação espontânea, de baixa renda, que 7. Resultados e discussão
ocorreu, de maneira geral, de forma irregular e sem planejamento.3).
Essa formação é resultado da maior resistência à erosão do Granito San- De acordo com o parágrafo único do artigo 3º da Resolução nº
tana e compartimenta o relevo em três regiões: (i) terras baixas, a norte, 303/2002 do CONAMA, quando os topos de dois ou mais morros ou
(ii) terras altas da região central e (iii) terras baixas com morros isolados montanhas estiverem a uma distância inferior a 500 metros entre si,
(MENEGAT, 2006). Os morros que compõem essa formação e que foram a APP de topo de morro será calculada para todo o conjunto, e será
analisados neste trabalho correspondem ao maciço da crista, são eles: considerada a linha de base do morro de menor altura. Para isso, é ne-
Morro Teresópolis, Morro da Glória, Morro da Pedra Redonda, Morro cessário, inicialmente, identificar quais as formas de relevo são passíveis
Pelado, Morro da Polícia e Morro da Companhia. da delimitação de APP, com base nos critérios definidos pela Resolução
acima citada, que define que a forma de relevo deve apresentar uma
amplitude altimétrica superior a 50 metros. Após determinar quais as
feições serão analisadas, deve-se medir a distância entre os topos, que
deve ser inferior a 500m para ser considerado um conjunto de morros.
Porém, é necessário analisar o contexto das formas de relevo es-
tudadas para se considerar um conjunto de morros, e não apenas os
critérios definidos pela legislação. No caso da Crista de Porto Alegre,
por exemplo, existe um maciço que engloba, entre outros, o Morro Te-
resópolis, Morro da Pedra Redonda, Morro da Glória, Morro da Polícia,
Morro Pelado e Morro da Companhia. Esse maciço consiste em uma
única formação do ponto de vista geomorfológico e, portanto, a APP
deveria ser delimitada para o conjunto. No entanto, se aplicarmos os
critérios do CONAMA, apenas três das seis feições que compõem o ma-
ciço seriam consideradas morro ou montanha e teriam APP delimitada,
como mostra a tabela (SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito
público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 145-179.), na qual o topo re-
presenta a cota correspondente ao ponto culminante da formação, a
base foi definida a partir do ponto de sela, a amplitude corresponde à
diferença altimétrica entre o topo e a base da formação e a APP, a cota
a partir da qual se delimita a APP de topo de morro.
Figura 3: Localização da Crista de Porto Alegre.
Tabela 1: Cotas, em metros, que caracterizam as feições
As formações da Crista de Porto Alegre possuem uma composi- do maciço da Crista de Porto Alegre.
ção vegetal caracterizada por um misto de campo e mata (cerca de Forma de Relevo Topo Base Amplitude APP
1.930ha, o que corresponde a aproximadamente 70% da área da Morro da Companhia 224 180 44 não possui
crista) a qual, de acordo com HASENACK (2008) se encontra rela- Morro da Glória 279 220 59 259
tivamente bem preservada. O tipo de ocupação predominante nas Morro da Pedra Redonda 282 220 62 261
formações da Crista de Porto Alegre é a ocupação espontânea, de
Morro da Polícia 286 260 26 não possui
baixa renda, que ocorreu, de maneira geral, de forma irregular e sem
Morro Pelado 298 200 98 265
planejamento.
Morro Teresópolis 248 220 28 não possui

498 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 499
Analisando os cálculos realizados com base nas definições do CO- 8. Considerações finais
NAMA, verificamos que o Morro da Companhia, o Morro da Polícia e o
Morro Teresópolis não são passíveis de delimitação de APP, por apresen- Existem inúmeras dificuldades relacionadas à interpretação da Le-
tarem amplitude altimétrica inferior a 50 metros. As demais formações gislação Ambiental referente à delimitação das Áreas de Preservação
são consideradas morros isolados, pois a distância entre seus topos é Permanente de topo de morro. A principal delas está associada à subje-
superior a 500 metros, e, nesse caso, a Área de Preservação Permanen- tividade da determinação da linha de base da forma de relevo e defini-
te deve ser calculada isoladamente para cada um desses morros. ção das formas passíveis de implementação de APP. Além disso, existe
Se considerarmos o maciço como uma única formação, a cota de também a dificuldade de aplicar, na prática, os critérios definidos em lei
linha de base inferida a partir do ponto de sela é a de 120m, e o ponto devido às diferentes interpretações do texto legal.
mais alto é o topo do Morro Pelado, com 298m de altitude. Assim, a Para solucionar esses problemas, sugere-se uma modificação no tex-
amplitude altimétrica do conjunto é de 178m, e a cota correspondente to legal, acrescentando-se a descrição dos procedimentos metodológi-
ao terço superior é a de 239m. cos a serem utilizados na delimitação das APP de topo de morro, para
Somando as APP das três formações que compõem o maciço e que evitar discrepância nas interpretações. Assim, sugere-se que o texto
são consideradas como morro pela Legislação, teremos uma área pro- mais adequado para o inciso VI do artigo 2º da Resolução CONAMA nº
tegida de 45,4ha. Porém, se considerarmos o maciço como um único 303/2002 seja: “base de morro ou montanha: plano horizontal definido
conjunto de morros, como seria o correto em termos geomorfológicos, pela cota correspondente ao ponto de sela mais próximo.”
a Área de Preservação Permanente de topo de morro teria 237,41ha, No caso da identificação das formas de relevo passíveis de delimita-
cerca de cinco vezes maior do que se as feições forem consideradas de ção de APP de topo de morro, em especial às linhas de cumeada, enten-
forma isolada (Figura 4). de-se que a aplicação dos critérios definidos pela Resolução CONAMA
Em casos como este do maciço da Crista de Porto Alegre, é necessário nº 303/2002 deve estar condicionada a uma análise do contexto da
analisar o contexto em que a formação se insere, e não apenas aplicar os paisagem em que estas se inserem.
critérios da legislação, pois, como vimos, a escolha equivocada da meto- Sugere-se ainda que conste na legislação a proposição da utilização
dologia aplicada pode implicar em diferença de área bastante grande. de bases cartográficas contínuas, estruturadas, na melhor escala dispo-
nível, para facilitar os estudos comparativos.
Tendo em vista a importância da implantação das Áreas de Preser-
vação Permanente de topo de morro, tanto para o equilíbrio ambiental
como para a garantia da segurança e bem-estar das populações residen-
tes próximas a essas áreas, entende-se que tais modificações se fazem
necessárias para garantir o cumprimento da legislação ambiental de
maneira mais rápida e eficiente, diminuindo, assim, o risco de interpre-
tações equivocadas que acabam por dificultar a aplicação da norma.

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502 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 503
Análise das principais causas de
tendências desfavoráveis a
sustentabilidade ecológica:
Jardim Social Presidente Collor
na cidade de São Carlos/SP
Regina Célia Foschini1

Resumo: A ação do ser humano sobre o meio ambiente tem


provocado a degradação dos recursos, comprometendo a
qualidade de vida presente e futura na cidade. A pressão do
crescimento populacional urbano e a dificuldade da cidade
em suprir a demanda de infra-estrutura têm gerado a des-
qualificação de certos espaços urbanos e comprometendo o
meio ambiente natural. Por outro lado, nas últimas décadas
tem-se afirmado o conceito de sustentabilidade, que traz
a perspectiva de uma ação humana mais responsável em
relação ao ambiente natural e às futuras gerações. É sob
esses pontos que se buscou analisar a tendência à susten-
tabilidade ecológica do loteamento denominado Jardim
Social Presidente Collor na cidade de São Carlos/SP. Para
tanto, foram identificados atributos urbanos que qualificam
e desqualificam a tendência à sustentabilidade ecológica e
listadas as principais causas das tendências desfavoráveis.
Com os resultados obtidos foram sugeridas algumas corre-
ções possíveis a fim minimizar as situações desfavoráveis
identificadas.
Palavras-chave: sustentabilidade ecológica, loteamento
social, avaliação de projetos urbanos.

1. INTRODUÇÃO

As primeiras cidades apareceram no período pré-histórico conheci-


do como período neolítico ou Idade da Pedra Polida. Foi neste período
que iniciou a prática da agricultura e, conseqüentemente, os assenta-
mentos sedentários.
1 Advogada, mestre em Engenharia Urbana pela Universidade Federal de São Carlos (PPGEU/
UFSCar) - e-mail: reginafos@yahoo.com.br

504 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 505
O ser humano deixou sua vida nômade para se estabelecer em lo- E o município, para dar moradia às pessoas que atrai, necessita do
cais fixos com o desenvolvimento da técnica de cultivo e domesticação parcelamento do solo, que é uma forma de expansão urbana mais co-
dos animais, pois com a agricultura, tornou-se possível alimentar popu- mum e significativa no Brasil.
lações cada vez maiores, propiciando condições para que alguns indiví- Para disciplinar o parcelamento do solo, este deve ter seu projeto
duos se desvinculassem do sistema produtivo para outras funções. As aprovado pelo Poder Público. Neste sentido, Orlandi Neto (2000) expli-
cidades foram, então, se constituindo com a possibilidade de produzir ca que “o particular propõe o parcelamento do solo e o Poder Público
mais alimentos do que seria necessário para os produtores. aprova, ou não. É claro que nessa aprovação o Poder Público há de par-
No entanto, com o surgimento das cidades ocorreram mudanças tir de critérios, de um planejamento da utilização do solo urbano, e esse
culturais e políticas aprofundadas, desenvolvendo-se simultaneamente planejamento deve ser transformado em lei, em normas que balizem os
em muitos locais um aparelho de Estado. critérios de aprovação ou desaprovação do parcelamento do solo”.
No final do século XVIII, com a Revolução Industrial na Europa e com Mas, embora o planejamento seja previsto, os espaços urbanos
os processos de industrialização pelo mundo afora, começaram os im- crescem de forma desordenada, sobretudo desrespeitando as condi-
pactos resultantes do tamanho e da complexidade das cidades, uma vez
ções do meio ambiente natural. Este comportamento tem resultado na
que estas, ao longo das décadas, vêm atraindo um grande contingente
degradação das cidades, bem como dos diversos ecossistemas relacio-
de pessoas à procura de uma vida melhor.
nados. Não é possível manter a natureza intacta, mas pode-se ter uma
As cidades continuaram a transformar-se durante os milênios se-
cidade mais harmônica, por meio da manutenção de um ambiente ur-
guintes ao seu aparecimento, e continuam a transformar-se sem cessar.
bano baseado no equilíbrio, na qualidade de vida da população e nos
Freitas (2004) diz que “o fenômeno da urbanização desenfreada por
que passam as cidades brasileiras nos últimos quarenta anos, em boa pressupostos da sustentabilidade (PIPPI, AFONSO E SANTIAGO, 2004).
parte resultante do êxodo rural, desenhou o perfil de nossa população, Um dos desafios nos dias atuais é que as cidades, especialmente as de
que é predominantemente urbana”. Segundo dados do IBGE, divulgados pequeno e médio porte (nas quais os impactos geralmente são menores),
em 2000, 80% (oitenta por cento) da população brasileira está vivendo criem as condições para assegurar uma qualidade de vida que possa ser con-
nas cidades, sendo, portanto, o Brasil um país essencialmente urbano. siderada aceitável, não interferindo muito negativamente no seu entorno e
A Constituição Federal de 1988, no entanto, estabeleceu que “o agindo preventivamente para evitar a continuidade do nível de degradação.
pleno direito à cidade inclui o direito à vida com dignidade, à moradia, Considerando-se que a cidade interage com o meio ambiente natural,
à alimentação, à saúde, à segurança, ao meio ambiente ecologicamen- ela também necessita de proteção por registrar um aumento nas demandas
te equilibrado. A efetivação da função social da cidade estabelece-se necessárias para sua manutenção e desenvolvimento. Assim, o seu planeja-
quando o direito à cidade pode ser exercido em sua plenitude, ou seja, mento deve ocorrer na busca de sua sustentabilidade, ou seja, deve definir
a cidade cumpre sua função social quando os cidadãos possuem seus uma limitação nas possibilidades de crescimento e um conjunto de iniciati-
direitos urbanos” (ROCHA, 1999) vas a fim de reduzir os impactos negativos no seu cotidiano.
Conclui-se, assim, que “dentro da função social da cidade existe o
escopo de defender e proteger o meio ambiente e a qualidade de vida
de seus habitantes: sua função ambiental” (ROCHA, 1999). 2. OBJETIVOS
No entanto, em decorrência do aumento populacional nos centros
urbanos houve uma necessidade do aumento das demandas por infra- O principal objetivo do trabalho foi avaliar a tendência à sustentabi-
es­trutura, moradia, transporte, etc. lidade ecológica, quanto ao aspecto de urbanismo e ao fluxo de água no
As cidades que passaram a abrigar os “refugiados do campo” e mi- empreendimento denominado Jardim Social Presidente Collor. Para tan-
grantes provenientes de outras cidades menores começaram a ter sua to, foram identificados atributos urbanos que qualificam e desqualificam
malha urbana ampliada e marcas de degradação ambiental e cultural a tendência à sustentabilidade ecológica e listadas as principais causas
em decorrência da concentração desses novos contingentes urbanos em
das tendências desfavoráveis.
áreas periféricas.
506 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 507
Com os resultados obtidos foram sugeridas algumas correções pos- bacia(s); localização, quantificação e tipologia da cobertura vegetal;
síveis a fim minimizar as situações desfavoráveis identificadas. caracterização ecológica, com identificação de fatores de interesse (fí-
sicos e biológicos) e de condições de degradação; dados de qualidade
das águas e do ar; localização e dimensões do sistema viário; cadas-
tramento de edificações existentes; demarcações das restrições legais
3. MÉTODO DA PESQUISA
à utilização de partes do terreno, tais como, áreas no aedificandi, áre-
as de preservação permanente e reservas legais; caracterização do(s)
O empreendimento urbano selecionado foi caracterizado por meio sistema(s) de saneamento existente(s); levantamento da(s) fonte(s)
de levantamentos de dados físicos, ambientais e sociais. Foram, tam- energética(s) disponível(is), com identificação da respectiva matriz.
bém, identificadas as infra-estruturas existentes, bem como a existência b) Características técnicas do projeto:
(ou potencialidade) de ocorrência de riscos ambientais, por exemplo: b.1.) Urbanismo: sistema viário; morfologia dos lotes; uso e ocupação
ocupação de áreas geotecnicamente desaconselháveis, de proximidade previstos; taxa de ocupação proposta; coeficiente de aproveitamento
com manancial, etc. proposto; tipologia das edificações previstas (restrições, gabaritos de
altura e recuos obrigatórios); espaços livres de uso público; áreas a
Para tanto, foram utilizados materiais iconográficos (mapas e fotos),
serem vegetadas e áreas vegetadas a serem mantidas; materiais a
visitas in loco e análise de processos e entrevistas com agentes relaciona- serem empregados (edificações, pavimentos etc.)
dos a diversos órgãos, tais como: Prefeitura Municipal, DEPRN, etc. Tam- b.2.) Saneamento: partes constituintes do sistema; capacidades e di-
bém foram feitas abordagens históricas, espaciais e culturais, a fim de mensões; tipologia das instalações; interfaces com o sistema existente.
melhor compreender a origem dos empreendimentos urbanos estudados.
Para o desenvolvimento da pesquisa, foi necessário listar as informa- O método citado prevê a abordagem dos seguintes componentes do
ções da área afetada pelo empreendimento, anteriores à implantação, urbanismo e do fluxo da água no meio urbano (intervenções urbanas):
incluindo a área envoltória, bem como as características técnicas do pro-
jeto urbanístico, e para a análise da sustentabilidade do empreendimento • Componentes relacionados ao Urbanismo:
selecionado, tomou-se por base o método PESMU - Planejamento Estra- a) Características geométricas do parcelamento: referem-se à morfo-
tégico e Sustentável do Meio Urbano, desenvolvido na UFSCar - Universi- logia do traçado urbano. Dividem-se em arruamento e lote.
dade Federal de São Carlos, com a finalidade de constituir um sistema de b) Características de uso do solo: referem-se aos procedimentos rela-
análise e avaliação da sustentabilidade ecológica de projetos ligados ao tivos à operacionalização da ocupação em si e aos tipos de atividades
urbanismo e ao sistema de saneamento (SILVA E TEIXEIRA, 1999). que poderão ser implantadas. Dividem-se em implantação e uso.
c) Tipologias construtivas: dizem respeito à conformação volumétrica
Ressalte-se que, apesar de o Método PESMU ter sido originalmente
das edificações a serem implantadas e ao material a ser utilizado (nas
concebido para análise e avaliação de empreendimentos urbanísticos
edificações, na pavimentação das vias e das áreas públicas). Divi­dem-
e de saneamento urbano ainda na fase de projeto, seus instrumentos
se em geometria da edificação e material.
podem ser aplicados para a sustentabilidade em implantações já ocorri- • Componentes relacionados ao fluxo da água no meio urbano:
das, conforme feito por Vianna (2002). a) Sistema de abastecimento de água: componente que disponibiliza
Entre os instrumentos utilizados estão as variáveis de informações água em quantidade e qualidade adequadas aos diversos usos urba-
relacionadas com as características do local antes da implantação e com nos. Divide-se em captação, transporte, tratamento e distribuição.
as características técnicas do projeto, conforme apresentado por Silva e b) Sistema de esgotamento sanitário: componente que objetiva a re-
Teixeira (1999): tirada e disposição, em condições sanitária e ambientalmente ade-
quadas, das águas utilizadas no meio urbano. Divide-se em coleta e
a) Dados sobre características anteriores à implantação, no local e na transporte; tratamento e disposição.
área envoltória, tais como: levantamento planialtimétrico; caracteri- c) Sistema de drenagem urbana: componente que objetiva a coleta e a
zação geológica e pedológica; caracterização climatológica e hidroló- disposição adequada das águas pluviais incidentes no meio urbano. Divi-
gica; levantamento da rede hidrográfica, com a caracterização da(s) de-se em microdrenagem e macrodrenagem. (SILVA E TEIXEIRA, 1999).

508 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 509
Assim, para o empreendimento selecionado, foi feita uma caracte- O Quadro 1 resume de forma sucinta os dados sobre as caracte-
rização dos aspectos físicos, bióticos e antrópicos anteriores à sua im- rísticas anteriores à implantação, características técnicas da ocupação,
plantação, tanto na área em si, como na sua envoltória. Também foram características morfológicas urbanas, e tipo de uso e ocupação do solo.
descritas as características dos respectivos projetos técnicos (urbanísti-
co e dos sistemas hídricos), quando existentes. QUADRO 1. Checagem das informações para a caracterização do
Deve-se observar apesar de basear-se no método PESMU, as ava- loteamento Jardim Social Presidente Collor.
liações das tendências à sustentabilidade feitas no presente trabalho
não seguiram rigidamente os passos preconizados por ele, não sendo Listagem Condição
utilizada, por exemplo, a matriz de correlação ali proposta. Adotou-se Dados sobre características anteriores à implanta- Com- Incom- Dados não
ção pleto pleto obtidos
uma análise mais subjetiva, que se mostrou mais viável de ser aplicada,
a) Levantamento planimétrico X
obtendo-se como resultados as tendências à sustentabilidade ecológica
e, quando pertinente, as principais causas desfavoráveis a elas. Lem- b) Caracterização geológica e pedológica X
brando que “a análise e a avaliação não se propõem a obter uma conclu- c) Caracterização climatológica e hidrográfica X
são única em relação à sustentabilidade do empreendimento como um d) Caracterização das redes hidrográficas, com a caracte-
X
todo, mas indicam a tendência, ou não, à sustentabilidade de cada uma rização da(s) bacia(s)
das inter-relações existentes” (SILVA E TEIXEIRA, 1999). e) Localização, quantificação e tipologia da cobertura vegetal X
Para proporcionar uma leitura abrangente do resultado e facilitar a f) Caracterização ecológica com identificação de fatores
identificação dos subcomponentes das intervenções urbanas que mais de interesse (físicos e biológicos) e de condições de de- X
gradação
apresentaram deficiências quanto à sustentabilidade, utilizou-se o Qua-
dro-Resumo do Método PESMU, com algumas modificações, conforme g) Dados de qualidade das águas e do ar X

apresentado no quadro 3. h) Identificação de áreas de interesse social e paisagístico X


Este quadro, além dos subcomponentes das intervenções urbanas, i) Contextualização da área em relação à cidade X
também identifica as principais tendências desfavoráveis à sustentabili- Com- Incom- Dados não
Características técnica da ocupação urbana
dade que eventualmente tenham sido apontadas e as correções possí- pleto pleto obtidos
a) Cadastramento de edificações existentes X
veis para resolver tais situações desfavoráveis identificadas.
Assim, com o Quadro-Resumo, tornou-se possível analisar o projeto b) Demarcações de restrições legais para a utilização de
X
parte do terreno ou da área
de uma forma qualitativa, e, a partir dos resultados obtidos, analisar
c) Caracterização do(s) sistemas(s) de saneamento existente X
as tendências desfavoráveis à sustentabilidade ecológica observada no
d) Quantidade de áreas públicas, verdes e não edificadas X
empreendimento analisado.
Com- Incom- Dados não
Características morfológicas urbanas
pleto pleto obtidos
a) Projeto urbanístico X
4. IDENTIFICAÇÃO DO PROJETO b) Taxa de ocupação X

c) Densidade populacional X
4.1. Listagem de Informações para
Caracterização do Empreendimento. d) Localização e dimensões do sistema viário X

e) Localização e dimensões dos lotes X


Antes de serem identificados, analisados e listados os atributos ur- f) Tipologia construtiva X
banos que qualificam e desqualificam a tendência à sustentabilidade Com- Incom- Dados não
Tipo de uso e ocupação do solo
ambiental, foi feita uma verificação das informações para a caracteriza- pleto pleto obtidos
X
ção do loteamento.
510 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 511
4.2. Descrição do Empreendimento. No entanto, a região onde está localizado o empreendimento está
isolada do restante da área urbana por uma barreira física conhecida
O Jardim Social Presidente Collor está situado no setor oeste do como Serrinha, e é a avenida Integração que liga os loteamentos Ante-
município de São Carlos, Estado de São Paulo, dentro do perímetro ur- nor Garcia, Presidente Collor e Cidade Aracy ao centro urbano.
bano. Uma década depois da implementação do empreendimento, a ave-
O loteamento surgiu em 1990, de forma clandestina, e sua regula- nida Integração, ainda possuía péssima conservação, colocando em ris-
rização ocorreu em 12 de março de 1998. Seu registro no Cartório de co a população, pois além de perigosa, ela também apresentava acúmu-
Registro de Imóveis competente teve respaldo na sentença prolatada lo de resíduos sólidos (lixo urbano, entulho, etc) e falta de iluminação
em 29/11/2000, que transitou em julgado em 26/02/2001 (processo n. pública.
1196/00 – 4ª Vara Cível da Comarca de São Carlos/SP). Sem ciclovia ou via de passeio (calçada), as pessoas que por ali passa-
A gleba possui forma geométrica praticamente regular, está loca- vam a pé ou de bicicleta disputavam espaço com os veículos automotores.
lizada a 3,5 km do centro da cidade, e foi destacada da fazenda San- No início do ano de 2006, a Prefeitura Municipal (PMSC) iniciou as
ta Amália. Seu acesso principal é pela estrada de rodagem estadual obras de recuperação asfáltica da avenida Integração, além de sinaliza-
(DERSP-215), que liga São Carlos a Ribeirão Bonito. ção (placas de controle de velocidade e sinalização de curvas). Também
O loteamento possui uma área total de 481.909,44 m², com popula- foi implantado 1,20 km de ciclo-faixa, a fim de proteger os moradores
ção estimada em 4 habitantes por lote e densidade líquida de 337,6587 do bairro que se locomovem ao trabalho por meio de bicicletas.
hab/ha, distribuídos conforme apresentado no quadro 2. Nota-se, no en- Atualmente, alguns trechos da ciclovia estão apresentando processo
tanto, que a área non aedificandi próxima à rodovia DERSP-215 não foi erosivo, pondo em risco a segurança das pessoas que ali passam.
computada no cálculo de áreas. O projeto também prevê que o loteamento seria servido por sistema
de abastecimento de água potável, rede de esgoto sanitário, rede de
QUADRO 2. Resumo da área pertencente ao loteamento distribuição de energia elétrica, redes de águas pluviais, guias e sarjetas,
Jardim Social Presidente Collor e pelo sistema de coleta de lixo, que, no caso, foi executado pela PMSC.
Lotes 286.045,18 m² 59,36% No memorial descritivo inicial constou que a infra-estrutura seria im-
plantada pelo loteador no prazo de dois anos, quais sejam: arruamento;
Sistema viário 109.067,20 m² 22,63%
demarcação das quadras, rede coletora de esgoto sanitário, rede de dis-
Sistema de lazer – espaços livres de uso
48.227,13 m² 10,01% tribuição de água para abastecimento, rede de distribuição de energia
público (área verde)
elétrica, galeria de águas pluviais e guias, sarjetas e pavimentação asfál-
Área pública (uso institucional) 38.569,93 m² 8,00% tica.
Total da área 481.909,44 m² 100% No entanto, o empreendimento foi aprovado e apenas a abertura
do sistema de arruamento, demarcação das quadras e lotes, redes de
A natureza do empreendimento é de uso misto, predominantemen- distribuição de água para abastecimento e esgotamento sanitário, e dis-
te residencial, com comércio varejista local e prestação de serviços. tribuição de energia elétrica foram às expensas do empreendedor.
Com um total de 1.685 unidades, os lotes são distribuídos de forma Também não foi juntada cópia do contrato-padrão no processo de
homogênea, com área mínima de 128,18 m², com frente mínima de aprovação do loteamento, como exigido pela Lei n° 6766/79.
5,00 m², declividade máxima de 5% e taxa máxima de ocupação de
70%, num total de 33 quadras. 4.3. Caracterização da Pré-Ocupação
O sistema viário foi implantado interligando com a malha do bairro Cida-
de Aracy, sendo o leito carroçável projetado com largura de 7,00 a 14,00 m, Segundo a PMSC (SÃO CARLOS, 1998b), a gleba não foi utilizada
com revestimento asfáltico, e as vias de circulação de pedestre de 2,50 m. para depósito de lixo ou de produtos que possam trazer riscos à saúde

512 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 513
dos moradores; se enquadra na zona 3º, conforme legislação municipal Apenas aponta sua largura, que é de 2,50 m. No entanto, algumas cal-
(lei n° 6910/72), cujo uso é misto; e não está situada em área potencial- çadas foram executadas de modo a garantir a entrada de veículos na ga-
mente susceptível a problemas geotécnicos, tais como erosão, instabili- ragem, outras possuíam escadas, materiais de construção e vegetação,
dade de encostas, etc. impossibilitando, assim, a passagem de transeuntes.
No entanto, destaque-se que vários estudos já foram efetuados na No empreendimento não foi previsto rebaixamento de guias para
região, os quais mostraram que o solo da área onde está situado o empre- facilitar a acessibilidade dos portadores de deficiência física que utilizam
endimento é constituído principalmente por areias quartzosas e latossolo. cadeiras de rodas para sua locomoção.
Assim, é uma região altamente susceptível aos processos erosivos.
5.1.3. Área institucional
5. AVALIAÇÃO DA OCUPAÇÃO
Foram reservadas duas áreas destinadas a uso institucional, totali-
5.1. Características Geométricas do Empreendimento. zando 38.569,93 m² (8,00%). Este valor atende à legislação, os tama-
nhos são favoráveis, mas as condições do terreno e sua localização são
5.1.1. Dos lotes passíveis de questionamento.
Na aprovação do loteamento, foi solicitado pelo empreendedor que
Os lotes foram distribuídos de forma homogênea, com área mínima as áreas destinadas a uso institucional fossem consideradas non aedifi-
de 128,18 m² e frente mínima de 5.00 m. candi, em decorrência do estagio médio de regeneração da vegetação
Observa-se uma alta densidade populacional por lote, embora este- nativa existente, e seu pedido deferido.
jam previstos no projeto apenas 4 hab/lote. Depois de citar vários trechos de obras do Direito Urbanístico o ór-
gão competente para a aprovação concluiu que: “desta feita, o conceito
5.1.2. Do arruamento de espaço livre é muito mais amplo e, por isso mesmo, nada impede
dentro deles que haja área non aedificandi”.
No empreendimento estudado, o arruamento foi implantado de for- Assim, o pedido do empreendedor foi deferido, e emitido uma cer-
ma estrutural ortogonal. As vias possuem largura de 7,00 m e 14,00 tidão aduzindo que “as áreas institucionais do empreendimento foram
m. No entanto, a falta de pavimentação (embora o projeto preveja a consideradas como áreas de reserva legal, sendo, portanto, non aedifi-
pavimentação asfáltica) no início do empreendimento contribuiu para candi” (SÃO CARLOS, 1998).
a ocorrência de processo erosivo, principalmente nos casos em que a Ressalte-se que, quando a lei n° 6766/79 estabelece que são re-
condução das águas pluviais é longitudinal às vias. quisitos urbanísticos para o loteamento a implantação de equipamentos
Por meio do Orçamento Participativo (OP) de 2001 a 2004 foi exe- urbano e comunitário, bem como espaço livre de uso público, está se
cutada a pavimentação asfáltica de várias ruas do loteamento Jardim referindo a duas áreas distintas. Uma de uso institucional, para implan-
Social Presidente Collor. tação de equipamentos urbanos e comunitários, e outra de espaço livre,
Ressalte-se que, apesar de no memorial descritivo inicial constar para a implantação de área verde e sistema de lazer. Portanto, ao deferir
que a pavimentação asfáltica deveria ser implementada pelo loteador, o pedido do empreendedor, o órgão competente confundiu área livre de
este não foi executado as suas expensas. uso público com área institucional.
Ademais, a geometria das vias favorece o transporte motorizado, No mais, antes da implantação do empreendimento dever-se-ia ter
uma vez que não foi prevista a implantação de ciclovias e de elementos exigido uma caracterização da vegetação nativa da gleba para melhor
que proporcionam conforto e segurança aos pedestres. alocar as áreas. Mas, como o loteamento surgiu de modo clandestino, o
No que tange a vias de circulação de pedestres, o projeto não prevê órgão público competente deveria ter ao menos exigido uma compen-
como elas devem ser executadas pelos futuros adquirentes dos lotes. sação de áreas.

514 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 515
5.1.4. Área de lazer A gleba foi dividida em lotes retangulares de 5,00 x 25,00 m, e os
lotes doados eram intercalados com outros vazios, de modo que cada
Foram reservadas quatro áreas destinadas ao sistema de lazer, to- ocupante ficou responsável a zelar pelo lote contíguo ao seu, para que
talizando 48.227,13 m² (10,01 %), e três delas estão implantadas em posteriormente o empreendedor pudesse comercializá-lo.
canteiros centrais do sistema de circulação viária. Conseqüentemente, o loteamento ficou dividido da seguinte forma:
A área maior, no entanto, possui vegetação de cerrado. No entanto, “600 lotes foram doados aos ocupantes e 600 lotes permaneceram de-
nesta área não foi previsto ou implantado mobiliário urbano, a fim de socupados para futura venda por parte do loteador” (SÃO PAULO, 1993).
estimular os usuários à utilização e preservação deste espaço público. Segundo Carvalho (2001)

5.1.5. Área non aedificandi – APP Um dos problemas mais graves estudados no direito urbanístico e
no direito municipal, muitas vezes com reflexo no direito ambiental,
é o dos loteamentos irregulares, que proliferam nos grandes centros
Não há, nos limites do empreendimento, nenhuma área que seja
urbanos, à conta da especulação e da carência de oferta imobiliária
caracterizada como APP, de acordo com o Código Florestal. e, lamentavelmente, também por força da grilagem de terras públicas.

5.1.6. Área non aedificandi ao longo das faixas de dominio públi- No caso do loteamento Presidente Collor, o laudo pericial juntado
co das rodovias, ferrovias e dutos. (SÃO PAULO, 1993) dá uma real noção sobre a importância de um lote-
amento regular:
Embora implantada área non aedificandi ao longo da faixa de domí-
nio público da estrada de rodagem estadual (DERSP-215), que liga São O desmatamento irregular não só contraria o que determina a legis-
Carlos a Ribeirão Bonito, tal área não foi prevista no projeto. lação pertinente, como ignora a necessidade de um estudo prévio e
Ressalte-se, no entanto, que esta área está sendo utilizada para di- planejamento da substituição das áreas naturais por áreas de agri-
versos fins, tais como: lançamento de entulho e depósito de máquinas, cultura e pecuária, ou como no caso, a transformação em área ur-
área de lazer, estacionamento, etc. bana ocupada. Há de se fazer um planejamento ambiental para que
se possa adotar medidas mitigadoras ao impacto que será causado
com a alteração de tais áreas. E é exatamente neste contexto que
5.2. Características do Uso e Ocupação do Solo a legislação assegura através de seu poder de lei, a preservação de
um mínimo de área necessária à manutenção da flora e fauna local,
5.2.1. Implantação assegurando seu habitat natural num mínimo para sua sobrevivência
e reprodução. Em caso contrário, estará se perdendo um ambiente
Analisando-se o processo n° 549/93, que tramitou na 3o vara cível rico pelo seu patrimônio genérico, pela sua elevada diversidade de
da Comarca de São Carlos, extrai-se que a ocupação da área ocorreu em espécies e finalmente pela sua própria importância como ecossistema
maio de 1990, quando várias pessoas humildes, a mando e ordem do natural propriamente dito, que seria de grande perda para a socie-
dade como um todo. Entretanto, o agravante está na finalidade para
empreendedor, promoveram um incêndio na propriedade deste, com a
qual está se abrindo uma área natural, que é para ocupação urbana,
promessa de que receberiam lotes se ajudassem no desmatamento e des-
sem nenhum critério. A legislação novamente assegura e impõe uma
de que, claro, construíssem rapidamente os alicerces de suas construções. série de diretrizes a serem seguidas no caso de loteamento urbano,
Assim, “promovido o desmate da área, centenas de pessoas insta- através da Lei Federal n. 6766/79. Entre outros aspectos, deve haver
laram-se no local, construindo rapidamente residências simples e sem uma proporcionalidade entre a densidade de ocupação prevista para
qualquer estrutura”. A doação de lotes para cada um dos ocupantes a área e as áreas destinadas a sistema de circulação, implantação de
foi formalizada por contrato particular de doação com encargos (SÃO equipamentos urbanos e comunitário, e espaços livres de uso públi-
PAULO, 1993). co, incluindo-se aí a seguridade de implantação de sistema de sanea-
mento básico. A lei ainda é categórica quando afirma constituir crime

516 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 517
contra a administração pública dar início, de qualquer modo, a um incluindo não só dispositivos para seu encaminhamento correto, como
loteamento para fins urbanos sem a autorização do órgão competente também um trabalho de educação e conscientização da população.
(Autos n. 549/93, p. 40/41). Na área também não foi prevista a possibilidade de se implantar
fontes alternativas de energia, sendo o sistema elétrico ligado à rede
Ressalte-se que o empreendimento teve seu projeto protocolado convencional.
junto a PMSC, para aprovação, em 12 de março de 1998, ou seja, oito
anos após sua implantação. Seu registro no Cartório de Registro de Imó- 5.3. Tipologia Construtiva
veis competente teve respaldado na sentença prolatada em 29 de no-
vembro de 2000, o qual transitou em julgado no dia 26 de fevereiro de 5.3.1. Geometria das edificações
2001 (processo n. 1.196/00 – 4ª Vara Cível da comarca de São Carlos),
com base no artigo 40 da Lei n° 6.766/79. Grande parte das edificações existentes no empreendimento são
Apurou-se na época da regularização do empreendimento que cerca auto-construídas, e executadas sem projeto e acompanhamento profis-
de 5.550,00 m lineares de rua não estavam asfaltadas e que: sional. Muitas não possuem condições de salubridade, não têm altura
mínima, e as janelas e portas estão alocadas de forma a não proporcio-
Embora a maior parte dos 109.500 metros quadrados de vias pú-
nar iluminação e ventilação adequada; e os lotes são demarcados com
blicas do referido loteamento já ter sido asfaltada, o mesmo não foi
feito pelo loteador, mas sim pela Prefeitura Municipal, e não há cons- cercas construídas com pedaços de madeira e ripas.
tatação de que a Prefeitura Municipal tenha recebido pela obra de Percebe-se, assim, que não foi previsto o uso de ecotécnicas, tais
asfaltamento, tanto dos moradores quanto do loteador. Ainda neste como princípios bioclimáticos para favorecer a iluminação e o conforto
sentido salienta-se que o Poder Público para a execução da obra, e térmico das edificações e, conseqüentemente, reduzir o consumo de
para que se pudesse cobrar dos moradores não editou lei como de- energia.
termina o artigo 82, do Código Tributário Nacional. E assim a até por
isso, apurou-se que até o presente não foi lançado para a devida co- 5.3.2. Material
brança (SÃO PAULO, 1997).

No empreendimento foram utilizados materiais de construção tradi-


5.2.2. Uso
cionais, não sendo previstos os de menor impacto ambiental, tais como
pavimentos permeáveis, materiais de construção alternativos, etc.
O uso do solo previsto no empreendimento é misto, ou seja, residen-
cial e comercial. O projeto não prevê lotes para fins industriais, portanto
não haverá no local fonte fixa de poluição desta tipologia.
6. CARACTERÍSTICAS DOS COMPONENTES
O distanciamento do centro da cidade fez surgirem no empreendi-
RELACIONADOS AO FLUXO DE ÁGUA
mento pontos de comércio e de prestação de serviços bastante diversifi-
cados, permitindo aos moradores realizarem suas compras de primeira
6.1. Sistema de abastecimento de água
necessidade no próprio bairro.
O traçado urbano foi elaborado apenas para servir o tráfego local,
O projeto de abastecimento de água do empreendimento previu sua
não causando assim concentração de fontes móveis de poluição.
interligação com o sistema vizinho, existente no bairro Cidade Aracy,
No entanto, percebe-se no empreendimento a ausência de programa
onde já havia um reservatório. Portanto, no empreendimento foi im-
de redução de resíduos, já que no local não foi prevista a coleta seletiva
plantada apenas a rede de distribuição, com características e materiais
de resíduos sólidos, apesar de existirem vários pontos de coleta. O fator
convencionais. Não foram previstas medidas visando à conservação da
mais importante tem sido a geração e a disposição de resíduos domés-
água (redução de consumo, reúso, etc.).
ticos e de construção civil, que não têm sido objeto de atenção especial,
518 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 519
6.2. Sistema de esgotamento sanitário Em manifestação, o Departamento de Negócios Jurídico (DNJ) opina:

Os efluentes gerados pelo empreendimento são drenados para o ... é necessário que a Loteadora execute as obras de galeria de águas
emissário sul, que atualmente lança seus efluentes no córrego Monjoli- pluviais, assumindo as obrigações de correntes da execução das mes-
nho, na parte que não pertence à bacia de drenagem do manancial de mas. Se tal obra for executada pela Prefeitura Municipal, com poste-
rior cobrança a quem de direito.
captação de água no município. Tal emissário, no entanto, futuramente
lançará seus afluentes em uma Estação de Tratamento de Esgoto (ETE)
localizada na estrada vicinal Cônego Washington José Pêra, entre os No entanto, não existe no processo termo que o loteador tenha to-
córregos Água Quente e Água Fria. mado ciência desta manifestação.
O sistema de esgotamento sanitário projetado utilizou rede coleto- Posteriormente, o loteador solicita a substituição das melhorias re-
ra, poços de visita e ligações domiciliares. ferentes a guias e sarjetas pela rede de energia elétrica, e o DNJ não se
No entanto, após juntada de novos memoriais descritivos e pro- opõe a tal substituição, expedindo certidão em 30/05/2000. Ao final, o
jetos do empreendimento, não constou a obrigação do empreende- empreendedor requer a aprovação definitiva do loteamento.
dor pelas redes coletoras de esgoto sanitário. O SAAE não se opôs Em 27/06/2000, o departamento de habitação e urbanosmo se ma-
a tal detalhe pelo fato de o sistema estar implantado e em funcio- nifesta pela dispensa de caução “por estar as obras de infra-estrutura a
namento. cargo da interessada executadas e recebidas”, são elas: “rede de distri-
Ressalte-se que, com base na OP de 2001 a 2004, as redes coleto- buição de água; coleta de esgoto; rede de energia elétrica; ruas abertas;
ras tiveram que ser totalmente reconstruída, uma vez que as executadas lotes e quadras demarcadas”.
pelo empreendedor foram mal projetadas e construídas. No entanto, entre as obras realizadas pela PMSC no período com-
preendido entre 2001 a 2004, está a reconstrução das galerias de águas
6.3. Sistema de drenagem pluviais do empreendimento.
No empreendimento estudado, também foram encontradas algu-
A área a ser drenada tem aproximadamente 19,9136 alqueires, e mas bocas-de-lobo mal conservadas, deterioradas e com presença de
uma parcela significativa do volume total das águas escoa superficial- resíduos sólidos (lixo), outras com a entrada totalmente obstruída.
mente. Para esse escoamento superficial foi previsto um sistema com Outro problema detectado foi a obstrução das guias e sarjetas por
sarjetas, bocas-de-lobo, galerias e poços de visita. rampas para entrada de veículos e vegetação.
Ao final do memorial descritivo foi apresentada uma planilha de cál-
culo que dimensiona as diversas partes do sistema de drenagem, mas
nos novos memoriais descritivos e justificativos do empreendimento, 7. AVALIAÇÃO GERAL DO EMPREENDIEMNTO
juntados posteriormente, o empreendedor exclui a sua obrigatoriedade
pelas execuções das obras de galeria de águas pluviais e de pavimenta-
Com os dados obtidos provenientes de visitas e levantamentos fo-
ção asfáltica.
tográficos realizados in loco, de memoriais descritivos arquivados no
O prefeito da época determinou o encaminhamento do pedido à
processo de aprovação do empreendimento, foram listadas no quadro
Graprohab a fins de apreciação, e aduz:
3, a fim de resumir e dar destaque, as principais causas da tendência
Possíveis pontos polêmicos ou discordantes devem ser postergados desfavorável e as correções possíveis de serem implantadas.
para uma etapa seguinte, lembrando, mais uma vez o respeito à legis- QUADRO 3. Quadro-Resumo das principais causas de tendência desfa-
lação e que sempre será o momento oportuno de cobrança a quem vorável à sustentabilidade e suas possíveis correções.
de direito pelas obrigações junto ao Poder Público.

520 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 521
COMPONENTES RELACIONADOS AO URBANISMO • Ausência de programa de redução • Implantação de coleta seletiva
de resíduos sólidos. e trabalho de educação e cons-
Sub-compo- Principais causas da Ocupação (uso • Utilização de energia da rede con- cientização com a população
Correções possíveis
nente tendência desfavorável do solo) vencional. local.
• Implantação de fontes alternati-
• A geometria das vias privilegia o • Implantação de ciclovias e ele- vas de energia.
transporte motorizado. mentos que proporcionem con- • Edificações auto-construídas sem
• Vias para pedestres não possibili- forto e segurança aos pedestres. • Introdução de princípios biocli-
iluminação e conforto térmico
tam a acessibilidade ao deficiente. • Implantação de rebaixamento máticos nas edificações, utili-
Arruamento adequados.
• Calçadas com degraus e outros das guias para deficientes físicos zando-se ventilação e ilumina-
• Não foi previsto o uso de ecotécni-
obstáculos impossibilitando a portadores de cadeira de rodas. Geometria das ção natural, além de instalação
cas, tais como princípios bioclimá-
passagem de transeunte. • Fiscalização a fim de coibir obs- edificações de dispositivos de captação de
táculos nas calçadas. ticos para favorecer a iluminação
energia solar.
e o conforto térmico e reduzir o
• Trabalhos de conscientização
consumo de energia.
• Lotes de pequenas dimensões com a população.
Lotes -
com adensamento da ocupação.
• Não foram previstos nem estão • Incorporação com materiais de
sendo utilizados materiais com menor impacto ambiental tais
Área Institucio- • Área institucional declarada non Materiais menor impacto ambiental (pavi- como pavimentos permeáveis,
• Compensação de área.
nal aedificandi mentos permeáveis, materiais de materiais de construção alterna-
construção alternativos). tivos, etc.
• Não foi prevista a colocação de
• Implantação de mobiliário ur- COMPONENTES RELACIONADOS AO FLUXO
mobiliário urbano no sistema de
bano no sistema de lazer, tais DE ÁGUA NO MEIO URBANO
lazer a fim de estimular o usuário
Sistema de la- como bancos, postes de ilumi-
na utilização e preservação deste
zer nação, lixeiras, etc.
espaço público. Sub-compo- Principais causas da
• Sistema de lazer localizado em
Correções possíveis
nente tendência desfavorável
• Compensação de área.
canteiros centrais.
SAA - Captação • Subcomponente não existente -
APP • Subcomponente não existente. -
SAA - Transpor-
• Subcomponente não existente -
te
• Lançamento de materiais indevi- • Limpeza da área e fiscalização
Área non aedifi-
dos. a fim de coibir o lançamento de SAA - Trata-
candi ao longo • Subcomponente não existente -
• Área utilizada para sistema de la- materiais indevidos na área. mento
de rodovias,
zer. • Educação ambiental.
ferrovias e du-
• Área utilizada para estacionamen- • Implantação de um sistema de SAA - Distribui- • Falta de medidas de conservação • Programas de incentivo à con-
tos
to. lazer eficiente. ção da água. servação da água.

• Surgimento de forma clandestina • Ligações cruzadas com águas plu- • Identificação e eliminação das
em área com alta susceptibilidade viais, causando refluxos. ligações cruzadas.
SES - Coleta e
• Lançamentos de resíduos indevi- • Educação ambiental da popula-
erosiva. transporte
dos na rede de esgoto, causando ção local.
Implantação • Implantação das vias de circulação - obstruções. • Fiscalização.
longitudinais ao escoamento das
águas pluviais e sem pavimenta- • Lançamento do esgoto sem trata-
SES - Tratamen- • Tratamento do esgoto gerado.
ção, causando processos erosivos. mento.
to e disposição

522 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 523
QUADRO 3 (continuação). Quadro-Resumo das principais causas de ba e a demarcação de restrições legais à utilização de parte do terreno
tendência desfavorável à sustentabilidade e suas possíveis correções. ou da área.
Das características morfológicas urbanas, foi apresentado o projeto
urbanístico com localização e dimensão do sistema viário e dos lotes,
COMPONENTES RELACIONADOS AO FLUXO DE ÁGUA NO MEIO
taxa de ocupação e densidade populacional. Também não foi caracteri-
URBANO
zada a tipologia construtiva.
Sub-compo- Principais causas da No entanto, ressalte-se que alguns projetos foram modificados e ou-
Correções possíveis
nente tendência desfavorável tros excluídos da responsabilidade do empreendedor, como, por exem-
plo, o de drenagem de águas pluviais e pavimentação asfáltica.
• Ligações cruzadas com rede de
esgoto, contaminando o manan-
• Identificação e eliminação das Conclui-se, portanto, que os poucos estudos e projetos apresenta-
ligações cruzadas. dos para a aprovação foram elaborados de forma muito sucinta para
cial.
• Limpeza das guias e sarjetas,
SDU - Micro-dre- • Lançamentos de resíduos e mate- uma área susceptível a erosão. Ademais, a forma clandestina como sur-
com a remoção da vegetação
riais indevidos na rede de drena-
nagem e entulho. giu o empreendimento condenou seus ocupantes iniciais a morarem em
gem, causando obstruções.
• Educação ambiental da popu-
• Guias e sarjetas obstruídas por
lação local. péssimas condições sob a ilusão de que, ganhando lotes, realizariam o
vegetação, entulho e rampas para
veículos.
• Fiscalização. sonho da casa própria.

SDU - Macro- • Falta de dispositivos de retenção • Implantação de dispositivos de


dre­nagem do escoamento superficial. retenção/detenção.
REFERÊNCIAS

ACSELRAD, Henri. Discurso da sustentabilidade urbana. Disponível na Inter-


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS net. http://www.brasilsustentavel.org.br/dowloads.htm. Data de acesso: 19 de
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Na avaliação da sustentabilidade ecológica deste empreendimento, BREMER, Ulisses Franz. Rumo às cidades sustentáveis. Disponível na Internet:
observa-se que há várias causas de tendências desfavoráveis nos aspec- http://www.agirazul.com.br/nat/cidades.htm. Data de acesso: 03 de dez. 2004.
CARVALHO, A. C. A. Anotações sobre os loteamentos irregulares. Jus Navigan-
tos relativos ao urbanismo e fluxo de água. Algumas são passíveis de
di, Teresina, ano 4, n. 37, dez. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/
correção, enquanto outras apresentam maior dificuldade de reversão.
doutrina/texto.asp?id=583>. Acesso em: 27 abr. 2002.
No entanto, um problema detectado que apresentou risco ambien-
CARVALHO, Carlos Gomes de. Direito Ambiental: perspectivas no mundo con-
tal relevante refere-se à própria implantação do empreendimento, pois
temporâneo. Revista de Direito Ambiental, São Paulo, n. 19, p. 201-208,
se trata de um loteamento que surgiu de forma clandestina em uma área
jul./set. 1997.
susceptível a erosão.
FIGUEIREDO, Glauco Antônio Bologna Garcia de. Sistemas urbanos de água:
Ressalte-se que o projeto de regularização do empreendimento não avaliação de método para análise de sustentabilidade ambiental de pro-
apresentou diversos dados das características geológicas, pedológicas, jetos. 194 f. Dissertação (Mestrado em Engenharia Urbana) – Departamento
climatológicas e hidrográficas; das redes hidrográficas com caracteri- de Engenharia Urbana, Universidade Federal de São Carlos, 2002.
zação da bacia; da localização, quantificação e tipologia da cobertura FREITAS, José Carlos de. O Estatuto da Cidade e o equilíbrio do espaço
vegetal; da qualidade das águas e do ar; e tampouco levantamento das urbano. Disponível na Internet. http://www.mp.sp.gov.br. Data de acesso: 12
áreas de interesse social e paisagístico, e contextualização da área com de nov. 2004
a cidade. GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Aproveitamento de recursos naturais no
No que tange às características técnicas da ocupação urbana, não processo de desenvolvimento urbano sustentável. In: MOREIRA, Mariana (co-
foi elaborado estudo a fim de cadastrar as edificações existentes na gle- ord.). Estatuto da Cidade. São Paulo: CEPAM, 2001, p. 100-113.

524 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 525
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ORLANDI NETO, Narciso. Regularização do parcelamento do solo. In: FREITAS, ------. Procedimento Administrativo n. 69/02. São Carlos, 2002b.
José Carlos de (coord.). Temas de Direito Urbanístico 2. São Paulo: CAO- ------. Procedimento Administrativo n. 174/03. São Carlos, 2003.
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526 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 527
Construção civil sustentável e o princípio
do poluidor-pagador
Tatiana Monteiro Costa e Silva1
Denize Maria Maymone Mamede de Arruda
Fernanda Cristina Brandão Silva Camargo
Giovana Mari Vieira da Silva Ternovoi de Moraes
João Tito Schenini Cademartori Neto
Marcela Aragonez de Vasconcellos Monteiro da Silva2.

Resumo: Este paper centraliza-se na necessidade de garan-


tir a preservação do meio ambiente artificial, com base no
Princípio do Poluidor-Pagador e em formas de se aplicá-lo
no âmbito da construção civil, a fim de propiciar o desen-
volvimento sustentável no Estado Democrático de Direito
Brasileiro. A pesquisa busca demonstrar a viabilidade da
adoção de medidas preventivas dos impactos negativos
da construção civil sob o meio ambiente natural e artificial,
através da internalização dos custos dessas medidas pelos
empresários da área, a fim de proporcionar-se às gerações
futuras um meio ambiente equilibrado, não obstante os fa-
tores técnicos e econômicos que dificultam a implantação
desses projetos.
Palavras-chave: Princípio do Poluidor–Pagador, Desenvol-
vimento Sustentável e Construção Civil.

INTRODUÇÃO

A necessidade de garantir a preservação do meio ambiente nas ci-


dades tornou-se incontestável e imediata, portanto, a adoção de medi-
das que eliminem ou minimizem os impactos negativos do crescimento
urbano sobre nosso planeta é imprescindível ao futuro da humanidade.
Há algumas décadas, o termo desenvolvimento sustentável vem se
destacando no cenário mundial, buscando o equilíbrio entre o desenvol-
vimento econômico e a proteção ambiental.

1 Docente do Curso de Direito da Unirondon – Centro Universitário Candido Rondon e mestra


em direito ambiental pela Universidade Estadual do Amazonas – UEA.
2 Discentes do Curso de Direito da Unirondon - Centro Universitário Candido Rondon, 10˚
semestre, matutino.

528 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 529
Penna3 expõe que o desenvolvimento sustentável exige da socie- 1. A IMPORTÂNCIA DO MEIO AMBIENTE
dade que suas necessidades sejam satisfeitas pelo aumento da pro-
dutividade e pela criação de oportunidades políticas, econômicas e No ano de 1981, a Lei de Política Nacional do Meio Ambiente foi
sociais iguais para todos. Ele não pode por em risco a atmosfera, a editada, com escopo de proteção e de trazer grandes diretrizes de ges-
água, o solo e os ecossistemas, fundamentais à vida na Terra. O desen- tão política ambiental, transformando e materializando o crescimento
volvimento sustentável é um processo de mudança no qual os recur- do País de forma sustentável.
sos, as políticas econômicas, a dinâmica populacional e as estruturas A expressão meio ambiente5 na Constituição Federal de 1988 está
inserida em um contexto de meio ambiente equilibrado e saudável, sen-
institucionais estão em harmonia e reforçam o potencial atual e futuro
do o princípio norteador o da Dignidade da Pessoa Humana e a obriga-
para o progresso humano. Apesar de reconhecer que as atividades
toriedade de defender a coletividade e preservar as futuras gerações
econômicas devem caber à iniciativa privada, a busca do desenvolvi-
ficou a cargo do Poder Público.
mento sustentável exigirá, sempre que necessário, a intervenção dos A nossa Constituição Republicana visa preservar e instituir o Estado
governos nos campos social, ambiental, econômico, de justiça e de Democrático de Direito. Com a participação da sociedade, em todas as
ordem pública, de modo a garantir democraticamente o mínimo de esferas políticas e sociais, ocorre a materialização do desenvolvimento
qualidade de vida para a todos. sustentável no meio ambiente, por ser um bem individual, coletivo e difu-
É notório que a construção civil é uma das principais atividades para so, como disciplinado no artigo 81 do Código de Defesa do Consumidor.
o desenvolvimento econômico de uma nação e no Brasil se encontra A vida humana é o fator fundamental já que necessita de recursos am-
em plena ascensão, e gera importantes impactos ambientais, tanto pela bientais para a sua sobrevivência e reprodução. As regras urbanísticas e am-
utilização dos recursos naturais quanto pela modificação da paisagem e bienais visam a disciplinar as atividades humanas, dando condições de um
pela geração dos grandes volumes de resíduos4. bem estar tutelado como forma de equilíbrio entre o homem e natureza.
Assim, um projeto de construção civil sustentável deve ser contex- Dentro desse contexto de proteção dos recursos ambientais, des-
tualizado sob as regras urbanísticas e ambientais e em determinadas di- taca-se o princípio do Desenvolvimento Sustentável que está explícito
em seu art. 225, da CF, possuindo o papel principal de nortear o meio
retrizes e princípios, de forma que este trabalho traduza-se no trinômio
ambiente, garantindo um meio ambiente ecologicamante equilibrado,
vida/ambiente/sustentabilidade.
incluindo o respeito ao meio ambiente.
Considerando que o processo de globalização intensificou o surgi- Este princípio possui o homem, como eixo principal e a saúde hu-
mento da conscientização nessa teia de complexidade que é a socieda- mana constitui o centro das preocupações relacionadas a um ambiente
de de risco moderna, cabe a cada um de nós, como parte desse proces- sádio e sustentável, dando obrigatoriamente direito a uma vida sadia e
so evolutivo, conhecer, debater e refletir o assunto para compreender produtiva, pois trata-se de um bem de uso comum do povo que deve ser
melhor nosso real papel na construção desse futuro. preservado e mantido para as presentes e futuras gerações, buscando
A proposta do trabalho é apresentar formas de prevenir o impacto um equilíbrio entre a economia e o meio ambiente, para que os recursos
negativo da construção civil sobre o meio ambiente natural e artificial, hoje existentes não se esgotem ou tor­nem-se inóxio.
à luz do princípio do poluidor pagador, a fim de possibilitar o desenvol- O desenvolvimento sustentável, para a doutrinadora Cristiane Dera-
vimento socioeconômico sustentável do Estado Democrático de Direito ni6, visa obter um desenvolvimento harmônico da economia e da ecolo-
Brasileiro. gia, numa correlação máxima de valores, na qual o máximo econômico

5 Cf. art. 3º, I, da Lei n. 6.938/81: Meio ambiente é “o conjunto de condições, leis, influências,
3 Citado por MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. A Gestão ambiental em foco. São Paulo. alterações e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em
Revista dos Tribunais, 2009. P. 66 todas as suas formas”. SIRVINSKAS, Luis Paulo. Manual do Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva,
4 Desenvolvimento sustentável: os resíduos da construção civil. Disponível em: <http://essetal- 2009. p. 39.
meioambiente.com/desenvolvimento-sustentavel-os-residuos-da-construcao-civil/> Acesso em 05 6 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2. ed. rev. São Paulo: MaxLimonad,
jun.2011. 2001. p. 132.

530 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 531
reflita igualmente um máximo ecológico, impondo um limite de poluição Nesse mesmo contexto o legislador brasileiro prevê a Lei da Ação
ambiental, dentro do qual a economia deve se desenvolver, proporcio- Civil Pública (Lei nº. 7.347/85), que dispõe sobre a ação civil pública de
nando, conseqüentemente, um aumento no bem-estar social. responsabilidade por danos causados ao meio ambiente. E ainda a Lei
Atualmente o meio ambiente é o que mais tem sofrido modificações dos Crimes Ambientais (Lei nº. 9.605/98), na qual houve uma alteração
tanto no âmbito nacional quanto no internacional, marcado pelo nascer profunda na tipificação penal das condutas, transformando as inúmeras
da globalização, percorrendo trajetos de adequações para a nova ordem condutas anteriormente capituladas como contravenções penais em cri-
mundial, que é a necessidade de uma cooperação entre Es­tados-Nações. mes contra o meio ambiente.
O Constituinte inseriu no conceito de meio ambiente como meta Em uma análise conjunta dos efeitos decorrentes da exploração
principal na interação do conjunto de elementos naturais, artificiais, cul- desmedida e desordenada dos recursos mantenedores da produção no
turais e patrimoniais em que propiciem o desenvolvimento equilibrado ramo da construção civil, no intuito de adotar uma política a fim de
da vida em todas as suas formas. equilibrar os impactos ambientais gerados surge a necessidade da apli-
Portanto, como explica José Afonso da Silva, “a integração busca as- cabilidade do princípio do poluidor-pagador.
sumir uma concepção unitária do ambiente, compreensiva dos recursos
naturais e culturais”.
Os princípios tutelados em todas as esferas jurídicas são pressupos- 2. PRINCÍPIO DO POLUIDOR PAGADOR E CONSTRUÇÃO CIVIL
tos que estabelecem como fundamento e ponto de partida da defesa do
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Antes de tudo, convêm definir o que é construção civil. “É a cons-
O meio ambiente pertence a todos, porém nosso ponto de parti- trução, a demolição, a reforma, a ampliação de edificação ou qualquer
da é a consciência da sociedade sobre esse fenômeno, que vislumbra outra benfeitoria agregada ao solo ou ao subsolo”8. Em qualquer des-
relevantes ângulos da vida moderna em um interesse geral, coletivo e sas etapas o responsável deverá incorporar o Princípio do Poluidor Pa-
econômico de tutela de bens e valores. gador.
Sendo na esfera econômica, onde estão inseridas as mais diversas Devemos ressaltar que:
formas, de degradação ambiental, ocasionadas pelos processos de in-
dustrialização e construção, na qual o homem passou a utilizar-se dos o princípio poluidor-pagador não é um princípio de compensação dos
recursos naturais, de forma muito mais acelerada e irracional, desper- danos causados pela poluição, ele é mais amplo do que parece, seu
tando nas autoridades, a intensificação do poder de polícia, a fiscaliza- alcance é mais extenso, incluindo todos os custos da proteção am-
biental, quaisquer que eles sejam, os custos de prevenção, de repara-
ção, a proteção e a preservação do meio ambiente, instituindo as mais
ção e de repressão do dano ambiental... (BENJAMIN, 1993, p. 227)9.
diversas penalidades para aqueles infratores como determina a Lei nº.
6.938, de 31 de agosto de 1981, em seu art. 147.
A ordem econômica, voltada à justiça social, tem como base o prin-
7 Art. 14. Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e munici- cípio disposto no inc. VI do art. 170 da CF/88:
pal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenien-
tes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
I - à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional - ORTNs, agravada em casos de reincidên- humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
cia específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes
aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios.
II - à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público; princípios:
III - à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento dife-
de crédito;
IV - à suspensão de sua atividade.
8 Conceito definido no site da Receita Federal. Disponível em http://www.receita.fazenda.gov.br/
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, indepen-
dentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a previdencia/constrcivil.htm. Acesso em 07.08.11 às 20:19.
terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade 9 BENJAMIN, Antônio Herman V. Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São
para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.

532 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 533
renciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de 182 e 18312 fixa diretrizes gerais, com o objetivo de ordenar o pleno
seus processos de elaboração e prestação. desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar
de seus habitantes.
Nessa mesma direção o Tribunal Pleno do STF entende que: Desse modo, o ente municipal definirá as diretrizes preventivas para
que o ramo de atividade econômica “construção civil” internalize esses
[...] A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL (CF, ART. 3º, custos sociais e assuma o risco de sua atividade. Não se concebe, por
II, E A NECESSIDADE DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE DO MEIO
exemplo, nas cidades, o ônus de se lançar esgoto num curso d’água sem
AMBIENTE (CF, ART. 225): O PRINCÍPIO DO DESENVOLVIMENTO SUS-
o devido tratamento.
TENTÁVEL COMO FATOR DE OBTENÇÃO DO JUSTO EQUILÍBRIO EN-
TRE AS EXIGÊNCIAS DA ECONOMIA E AS DA ECOLOGIA. – O princí- E nesse contexto o princípio treze da Conferência do Rio/9213, traz
pio do desenvolvimento sustentável, além de impregnado de caráter a obrigatoriedade dos Estados desenvolverem normas voltadas para as-
eminentemente constitucional, encontra suporte legitimador em com- sumir sua posição como poluidor-pagador:
promissos internacionais assumidos pelo Estado brasileiro e representa
fator de obtenção do justo equilíbrio entre as exigências da economia Os Estados devem desenvolver legislação nacional relativa à res-
e as da ecologia, subordinada, no entanto, a invocação desse postula- ponsabilidade e indenização das vítimas de poluição e outros danos
do, quando ocorrente situação de conflito entre valores constitucionais ambientais. Os Estados devem ainda cooperar de forma expedita e
relevantes, a uma condição inafastável, cuja observância não compro- determinada para o desenvolvimento de normas de direito internacio-
meta nem esvazie o conteúdo essencial de um dos mais significativos nal ambiental relativas à responsabilidade e indenização por efeitos
direitos fundamentais: o direito à preservação do meio ambiente, que adversos de danos ambientais causados, em áreas fora de sua jurisdi-
traduz bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguar- ção, por atividades dentro de sua jurisdição ou sob seu controle.
dado em favor das presentes e futuras gerações. (STF, Tribunal Pleno,
ADI-MC 3540/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 03.02.2006, p. 14). E, continua, no princípio dezesseis:

A construção civil compõe o meio ambiente artificial, que vem a Tendo em vista que o poluidor deve, em princípio, arcar como o cus-
ser o conjunto de edificações particulares e públicas, principalmente ur- to decorrente da poluição, as autoridades nacionais devem procurar
banas, que compreendem a denominada propriedade, assim prevista promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de ins-
na Constituição Federal em seus artigos: 5º, XXIII; 30, I,II e 182, sob o trumento econômicos, levando na devida conta o interesse público,
sem distorcer o comércio e os investimentos internacionais.
prisma da fundamentação dos princípios do desenvolvimento sócio-am-
É lógico que a utilização do Principio do Poluidor Pagador deve ser
biental, o da função social da propriedade10 e como não poderia deixar
com parcimônia, sem distorcer o equilíbrio econômico, de modo a não
de ser apreciado e referendado o princípio do poluidor-pagador11 (pollu-
inviabilizar a atividade no segmento da construção civil.
ter pays principle), que se inspira na teoria econômica de que os custos
sociais externos que acompanham o processo produtivo irão mitigar os 12 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal,
efeitos, internalizando e assim assumindo os danos, que o necessário conforme diretrizes gerais fixadas, em lei tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
desenvolvimento possa vir a gerar às presentes e futuras gerações. funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de
A política urbana contemplada na Lei maior de 88 em seus artigos vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais
de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em
10 A propriedade atenderá a sua função social, especialmente como um princípio informador da dinheiro.
constituição econômica brasileira com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os § 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano
ditames da justiça social (art. 170, II e III). SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado
Positivo. Malheiros. São Paulo: 2009.p. 282. ou não
11 MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. A Gestão ambiental em foco. São Paulo. Revista dos 13 Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992). SIRVINSKAS,
Tribunais, 2009. p. 827. Luis Paulo. Manual do Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 62.

534 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 535
Basicamente como expõe Milaré�, o princípio do poluidor pagador var-se a proteção de direitos difusos e coletivos, assim vinculado o di-
deve imputar ao poluidor o custo social da poluição por ele gerada, no reito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a implementação
que concerne não somente responsabilizar por dano ecológico, abran- de uma política municipal16 de proteção ao meio ambiente urbano, visto
gente dos efeitos da poluição sobre bens e pessoas, mas sobre toda a que está mais próximo dos cidadãos. Sendo assim, é o Município o mais
natureza. O que em termos econômicos é a internalização dos custos apto a compreender as necessidades e fiscalizar os danos ambientais
externos, que é aplicado procurando corrigir este custo adicionado à causados pela construção civil.
sociedade, por meio da imposição e respaldo em lei. Como bem demonstrado, na mencionada determinação do art. 10,
Observa-se que o poluidor deverá assumir e internalizar quaisquer § 1º, da Resolução CONAMA 237/97, referente à obrigatoriedade de
prejuízos que por ventura venha causar ao meio ambiente. constar no procedimento de licenciamento ambiental a certidão da pre-
A Constituição define o meio ambiente ecologicamente equilibrado feitura municipal, declarando que o local e o tipo de empreendimento
como direito de todos e lhe dá a natureza de bem de uso comum do ou atividade estão em conformidade com a legislação aplicável ao uso e
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Públi- ocupação do solo.
co e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presen- Em consonância com o que prevê a Lei Maior de 88 que atribui aos
tes e futuras gerações14. municípios competência para, além de legislar sobre assuntos de inte-
E no sentido de defender, percebe-se que não se pode apenas repa- resse local (art. 30, I), promover o adequado ordenamento territorial,
rar o dano ambiental, ou mesmo tolerar a poluição mediante um preço, mediante planejamento e controle de uso, do parcelamento e da ocupa-
nem se limita a compensar os danos causados, mas sim, evitar o dano ção do solo urbano (art. 30 VIII).
ao meio ambiente, em que fique claro que o objetivo é pagar os danos Vê-se que de modo geral, compete ao município a determinação de
causados pelo poluidor e não pagar para poder poluir. que o uso pretendido é tolerado no local, informando ao órgão ambien-
O objetivo maior do princípio do poluidor-pagador é fazer com que tal, por meio de certidão, sua adequação ou, ao menos sua tolerância.
as externalidades ambientais, sejam suportadas pelos agentes que as Portanto, o papel do Estado através do poder local, no caso o Muni-
originaram, mas também que haja a correção e/ou eliminação das fontes cípio tem respaldo no Estatuto da Cidade, como citado no caso de em-
potencialmente poluidoras. Conclui-se então que o Princípio do Polui- preendimento sujeitos ao Estudo de Impacto de Vizinhança e respectivo
dor-Pagador tem funções primordiais: a de prevenção, reparação e a de relatório:
internalização e redistribuição dos custos ambientais15.
Em se tratando das atividades produtivas ligadas ao setor da Cons- Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades pri-
trução Civil, não poderia ser diferente, já que suas funções são essen- vados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de
ciais não só pelos efeitos positivos para a sociedade, como a criação estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV), para obter as licenças
ou autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo
de empregos, renda e tributos, mas como um comprometimento, por
do Poder Público municipal.
parte do poluidor, quanto à utilização de recursos naturais, que consti-
tuem patrimônio da coletividade, visto que de natureza global, a água,
Esses critérios podem variar conforme as características urbanas
o ar e o solo, não podem ser “apropriados” sem o devido uso susten-
e de infra-estrutura urbana17 do município, e poderão basear-se, por
tável.
exemplo, no número de vagas de estacionamento para visitantes, no
No contraponto temos a primordial intervenção do poder público,
impacto de tráfego que gera, no adensamento populacional, no som-
e com importância crescente do poder local. Assim sendo, a autonomia
breamento que causará sobre imóveis vizinhos, na poluição sonora que
local deve ser reconhecida como um princípio fundamental para efeti-
gerará, sendo estes eventos potencialmente causadores de significativa
14 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros. São Paulo: degradação da ordem urbanística, bem como o uso dos recursos natu-
2009.p. 847.
15 COLOMBO, Silvana Raquel Brendler. O Princípio do poluidor-pagador. Disponível em: http:// 16 ROCCO, Rogério. O direito Ambiental das Cidades. Lumen Juris. Rio de Janeiro: 2009. p. 81.
www.ambito-juridico.com.br . Acesso em: 02 jun.2011. 17 Idem 13 p. 159.

536 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 537
rais utilizados para a construção em si dos empreendimentos tais como Ressaltamos que existe uma grande demanda do setor da Constru-
cimento, madeira, água e energia. ção Civil no entorno imediato de tais áreas, ocasionando uma verticali-
Eis o exemplo da cidade de Cuiabá que instituiu a Lei Complementar zação indesejada e valorização exorbitante dos imóveis nessas regiões
n.º 231 de 2011, disciplinando o uso, a ocupação e a urbanização do de Cuiabá.
solo urbano, que impôs a obrigatoriedade para atividades impactantes Muito se tem feito, mas há muito por se fazer, a começar pela cons-
a destinação de certo quantitativo de vagas de estacionamento para cientização, e respeito às leis, a desenvolver processos mais eficientes
visitantes externas ao empreendimento, contudo, fora da área pública, de reciclagem e reutilização de resíduos da construção civil, existe uma
como forma de internalizar os custos sociais. nova tendência nesse setor, que faz uso de materiais ecologicamente
Transcrevemos o artigo 17 do referido diploma, verbis: corretos e eficientes e de soluções tecnológicas inteligentes para promo-
ver o bom uso e a economia de recursos, como água e energia elétrica;
Art. 17 As atividades e empreendimentos definidas como polo gera- a redução da emissão de gases de efeito estufa, tanto na produção de
dor de tráfego18 deverão destinar bolsões de estacionamento para matéria-prima quanto na operação normal das edificações; a melhoria
visitantes.
da qualidade do ar no ambiente interno e o conforto de seus moradores
§ 1º A área destinada ao bolsão de que tata o caput deste artigo
deverá situar-se dentro do terreno do empreendimento e fora do pe- e usuários19.
rímetro privativo do mesmo. A questão que se apresenta como de suma importância quan-
§ 2º Em casos específicos (definidos pelo poder público) as vagas do se analisa o Princípio do Poluidor-Pagador, é justamente a pos-
para visitantes poderão localizar-se parcialmente no interior do em- sibilidade de escassez dos bens ambientais. Conclui-se então, que
preendimento, não excedente o máximo de 50% das vagas exigidas. o instrumento constitucionalmente apto a dar corpo ao Princípio do
Poluidor-pagador nas cidades, é o Estudo de Impacto Ambiental20 e
Tal medida visa diminuir o impacto sobre a via pública, que geral- o Estudo de Impacto de Vizinhança, juntamente com os seus respec-
mente não tem a capacidade de suportar a demanda de carros em de- tivos relatórios.
terminado prédio residencial ou comercial. O Estatuto da Cidade preconiza que a elaboração do EIV não subs-
Outro exemplo interesse na referida norma municipal foi o estabe- titui a elaboração e a aprovação de estudo prévio de impacto ambiental
lecimento de gabarito no entorno dos parques urbanos, intitulado de (EIA), requeridas nos termos da legislação ambiental21.
“zona de amortecimento”, não alterando o clima e a paisagem urbana Portanto, nada impede que o segmento da construção civil, depen-
no entorno de área protegidas na cidade de Cuiabá, conforme dispõem dendo o impacto ou o porte do empreendimento elaborem ao mesmo
os artigos 54 e 55: tempo o Estudo de Impacto Ambiental e o Estudo de Impacto de Vizi-
nhança.
Art. 54. As Zonas de amortecimento são faixas destinadas a proteger
e garantir, dentre outras conjecturas, o conforto visual, ventilação, ru-
ído, radiação solar, no entorno das unidades de conservação ambien-
tal dentro do Munícipio de Cuiabá. CONCLUSÕES ARTICULADAS
Art. 55. As zonas de amortecimento são definidas pelas faixas de áreas de
entorno das unidades de conservação ambiental existentes no Município 1. O Desenvolvimento sustentável pode ser definido como uma for-
correspondendo a faixa de 50m (cinquenta metros) até 100m (cem me- ma de desenvolvimento econômico que “emprega os recursos naturais
tros) destas unidades, as quais terão limitados os seus gabaritos de altura.
19 Sustentabilidade: a vez da Construção civil. Disponível em http://terramagazine.terra.com.br/
interna Acesso em : 02/06/2011.
18 O art. 168 da Lei Complementar n.º 231/2011 definiu conceito de polo gerador de Tráfego
como “ os empreendimentos constituídos por edificação, ou edificações, cujo porte e oferta de 20 SILVA, Rogério Santana. DIREITO AMBIENTAL. Disponível em: http://xa.yimg.com/kq/
bens ou serviços geram interferências no tráfego do entorno e grande demanda por vagas em esta- groups/20620421/302199548/name/Apostila+Ambiental.PDF. Acesso em 02/06/2011.
cionamentos ou garagens ocasionando impactos na circulação viária e seu entorno imediato ou da 21 JOHN, Vanderley M. Desenvolvimento sustentável, construção civil, reciclagem e trabalho
região, com prejuízos a acessibilidade de pedestres e veículos. multidisciplinar.

538 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 539
e o meio ambiente não apenas em benefício do presente, mas também BRASIL, Constituição Federal – Vade Mecum- Acadêmico de Direito-Organi-
das gerações futuras”22. zação-Joyce Angher. 8º Edição São Paulo: Editora Rideel, 2010.
2. Sendo a construção civil uma das principais atividades para o de- BRASIL, Lei 6938/81, Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente,
senvolvimento econômico de uma nação, e no Brasil encontrando-se em seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências.
plena ascensão, e gerando importantes impactos ambientais, tanto pela Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil/Leis/L6938.htm>. Acesso
utilização dos recursos naturais quanto pela modificação da paisagem em: 31mar. 2011.
e pela geração dos grandes volumes de resíduos, levanta a bandeira do BRASIL, Ministério do Meio Ambiente. Declaração do Rio sobre Meio Am-
desenvolvimento sustentável que constituiu uma preocupação real para biente e Desenvolvimento. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/port/sdi/
a indústria a nível internacional. ea/documentos/convs/decl_rio92.pdf>. Acesso em: 31mar. 2011.
3. A construção civil sustentável busca a integração com as leis e com BENJAMIN, Antônio Herman V. Dano ambiental: prevenção, reparação e
repressão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993.
o princípio do poluidor pagador, que pode ser entendido como sendo um
COLOMBO, Silvana Raquel Brendler. O Princípio do poluidor-pagador. Dispo-
instrumento econômico e ambiental, que exige do poluidor, uma vez iden-
nível em: < http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_
tificado, suportar os custos das medidas preventivas e/ou das medidas
artigos_leitura&artigo_id=932>. Acesso em: 02 jun.2011.
cabíveis para, senão a eliminação pelo menos a neutralização dos danos
DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. 2. ed. rev. São Paulo: Ma-
ambientais, bem como com o desenvolvimento sustentável das cidades
xLimonad, 2001.
permitindo que o país desenvolva economicamente respeitando o meio
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8.
ambiente, a qualidade de vida com dignidade da pessoa humana. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.
4. Neste contexto, a legislação brasileira (CF/88, art. 182; Lei JOHN, Vanderley M. Desenvolvimento sustentável, construção civil, reci-
10257/01; Resolução CONAMA 237/97; Lei Municipal Cuiabá/ MT nº clagem e trabalho multidisciplinar. Disponível em: <http://www.reciclagem.
4949/07; Decreto Municipal Cuiabá/MT nº 4761/09; Lei Municipal pcc.usp.br/des_sustentavel.htm> . Acesso em 05 jun.2011.
n.º 231/2011; Resolução Federal do CONAMA nº 307/02) instituiu MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente. A Gestão ambiental em foco. São Pau-
medidas para mitigação dos danos ambientais causados pela constru- lo. Revista dos Tribunais, 2009.
ção civil, tais como a destinação dos entulhos, utilização de aquecedor _______ Direito do ambiente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
solar em novos empreendimentos, captação e reaproveitamento das REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Editora Saraiva. 15º, Edição
águas das chuvas, lixo reciclável, planejamento de vagas de estacio- 1993.
namento interno para visitantes evitando congestionamento das vias ROCCO, Rogério. O Direito Ambiental das Cidades. Rio de Janeiro: Lumen
públicas. Juris, 2009.
5. Não se concebe mais o desenvolvimento insustentável das cida- SILVA, José Afonso Da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo:
des, sendo a internalização uma medida econômica ambiental de funda- Malheiros, 2009.
mental importância para a concretização das funções sociais da cidade SILVA, Rogério Santana. Direito Ambiental. Disponível em: <http://xa.yimg.
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Disponível em: <http://essetalmeioambiente.com/desenvolvimento-sustenta-
vel-os-residuos-da-construcao-civil/> Acesso em 05 jun.2011.
22 Art. 38 da lei Federal n.º 10.257/2001. JDisponível em: <http://www.reciclagem.pcc.usp.br/
des_sustentavel.htm> . Acesso em 05 jun.2011.

540 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 541
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
CAPÍTULO VI

Plano Diretor e Instrumentos


de Política Urbana

542 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Plano estratégico da Zona Sul: uma
abordagem para além do Plano Diretor
Andrea Oberrather1
Synthia Ervis Kras Borges2

Resumo: O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e


Ambiental de Porto Alegre incorporou uma mudança do
conceito de planejamento de normativo para estratégico,
fortalecendo o papel de agente articulador e propositivo do
poder público. A partir de suas Estratégias e seu Modelo
Espacial, foi desenvolvido no Município um Programa para a
região sul da cidade, que tem por objetivo o desenvolvimen-
to sustentável que garanta a conservação do patrimônio
natural, a compatibilização das ocupações urbanas existen-
tes e ações que promovam o seu desenvolvimento, como a
produção primária e o turismo. O resultado deste trabalho
é um Plano Estratégico que contém uma série de diretrizes,
planos, projetos e ações muitisetoriais articulados entre si,
resultando numa estratégia de abordagem territorial.
Palavras Chave: Plano Diretor – Desenvolvimento Susten-
tável – Participação - Planejamento

1. INTRODUÇÃO

Considerando a necessidade de promover o desenvolvimento susten-


tável e planejado no Município, em especial para a Zona Sul, foi instalado
na Prefeitura Municipal de Porto Alegre - PMPA, a partir do ano de 2008,
um Grupo de Trabalho (GT) que se propôs a um processo de gestão par-
ticipativa, onde o poder público fosse o principal articulador dos agentes
da sociedade organizada, identificando os conflitos e potencialidades e
definindo as prioridades e detalhamentos necessários a partir das diretri-
zes estabelecidas, chegando-se a um Plano Estratégico para a Zona Sul.
A finalidade de elaborar uma análise das diversas questões rela-
cionadas a esta porção do território, de entender a problemática de

1 Arquiteta graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul, técnica da Secretaria de Planejamento Municipal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
2 Arquiteta graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul, técnica da Secretaria de Planejamento Municipal da Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

544 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 545
outras disciplinas e promover a compreensão holística da região, é 2. BASE LEGAL
garantir a inclusão de conhecimentos, de expectativas e de propos-
tas compatíveis com a realidade, permitindo assim, sua governabili- A Lei Complementar 434/99 – Plano Diretor de Desenvolvimento Ur-
dade. bano e Ambiental deu o embasamento legal do trabalho. Este aponta
Quando se instalou o GT intersecretarias foi definido um propósito primeiramente para a  mudança do conceito de planejamento, de norma-
inicial de instituir o eixo norteador para atuação do grupo técnico, bus- tivo - baseado essencialmente em normas para a atividade privada - para
cando delimitar e conhecer o território com características mais rare- estratégico, no qual o poder público fortalece seu papel de agente articu-
feitas de Porto Alegre. Após amplo debate no grupo interno da PMPA, lador e propositivo, dando ênfase à atuação integrada dos diversos atores
estabeleceu-se como objetivo principal do trabalho: da construção da cidade. Neste sentido, a gestão toma uma importância
muito grande, pois o planejamento entendido como processo permanen-
Definir diretrizes, com o envolvimento da sociedade, para subsidiar te exige a constante proposição de diretrizes e o acompanhamento de
o detalhamento e a implementação do Programa de Desenvolvimen- seu desempenho. O Modelo Espacial passa a funcionar como elemento
to Sustentável para a Macrozona 8, definido no inc III art 20 da LC orientador para as propostas que serão desenvolvidas. As linhas gerais
434/99 (PDDUA), através da análise que identifique oportunidades para os projetos são indicadas pelas Estratégias, correspondentes aos
de desenvolvimento que potencializem as características de ocupação principais temas que envolvem o desenvolvimento urbano, assim como
rarefeitas do território, especialmente no que se refere aos seguintes pelo Modelo Espacial. Desta forma, o Plano Diretor foi concebido para
aspectos: uma atuação projetual sobre a cidade, que deve desenvolver as opor-
 Conservação do ambiente natural tunidades de investimentos e associações através de seus programas e
 Mitigação dos impactos da ocupação habitacional irregular; projetos complementares, reorientando suas diretrizes o longo do tempo,
 Indicação de ações estratégicas que promovam o desenvolvimento através de um sistema que garante a discussão com a população.
sustentável. As Estratégias de Desenvolvimento Sustentável são o eixo central
do Plano, resultado da discussão democrática sobre o futuro de Porto
Para tanto, se optou pela elaboração de uma avaliação das diversas Alegre. Foram concebidas sobre eixos que abarcam os principais temas
questões do território, considerando suas dificuldades, oportunidades, do planejamento e gestão do território, incorporando a proposição de
seu desempenho e resultados, com intenção de diagnosticar os proble- programas e projetos necessários para viabilizar seus objetivos. Três
mas tendo em vista propor soluções compatibilizadas intersetorialmen- delas definem o modelo de cidade sobre o seu território: Estruturação
te e de acordo com as políticas relativas a esta região, no sentido de Urbana, que configura o novo modelo espacial baseado na integração
potencializar o seu desenvolvimento. dos sistemas que compõem a fisiologia urbana; Mobilidade Urbana, que
O produto desta etapa do trabalho é um Plano Estratégico, aqui apóia a estruturação urbana desejada, através de uma visão interseto-
definido como um conjunto de diretrizes, ações, projetos, políticas, para rial; e Uso do Solo Privado, que vincula este aspecto regulador ao mo-
o enfrentamento das questões identificadas na análise, baseado na pro- delo proposto, oferecendo novos instrumentos para sua aplicação.
jeção futura, visando o desenvolvimento do território a partir da manu- A estas três Estratégias se acrescenta outras quatro, indispensáveis
tenção de suas características principais. à gestão do modelo de cidade que elas definem e que dão o fundamen-
Esta composição de propostas está norteada pelo atendimento do to e a base para o desenvolvimento do Plano Estratégico da Zona Sul,
objetivo construído pelo Grupo de Trabalho e resulta na elaboração de pois fica evidente sua aplicabilidade no território, quando analisamos
uma estratégia de abordagem territorial, uma vez que a implementação seus objetivos:
de qualquer uma das propostas tem efeito direto no desenvolvimento A Estratégia da Qualificação Ambiental3 tem como objetivo geral
qualificar o território municipal, através da valorização do Patrimônio
do território em questão.
3 LC 434/99 Art° 13

546 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 547
Ambiental, promovendo suas potencialidades e garantindo sua perpe- comunidade e com os setores produtivos, assim como a articulação com
tuação, e da superação dos conflitos referentes à poluição e degradação outras esferas do poder. Esta Estratégia se estrutura de forma a comple-
do meio ambiente, saneamento e desperdício energético. Esta se dará mentar os aspectos espaciais e ambientais com a sustentabilidade so-
através da caracterização do Patrimônio Ambiental como elemento sig- cial, pela geração de postos de trabalho e de riquezas que se reverterão
nificativo da valorização da paisagem e da estruturação dos espaços na qualidade de vida
públicos e, como tal, integrante do Programa de Espaços Abertos. Os Dentro da Estratégia da Promoção Econômica, destacamos um dos
espaços diversificados na ocupação do território que contêm patrimô- Programas listados para promover o crescimento e a descentralização
nio ambiental, constituem elementos de fortalecimento das identidades econômica da cidade, descrito no art. 20 inc III:
cultural e natural, demandando a promoção de ações de saneamento,
de monitoramento da poluição e de otimização do consumo energéti- “Programa de Desenvolvimento Sustentável para a Macrozona 8, que
co4. Estes conceitos colocam a busca da sustentabilidade natural como contemple, entre outras, ações e políticas de fomento à produção pri-
mária, de proteção ao patrimônio natural e de saneamento ambiental,
uma das grandes metas da cidade do futuro, e propõem critérios ade-
com vistas à fixação das populações rurais, ao desenvolvimento de
quados às características de cada ambiente, mesmo os que já tenham atividades de lazer e turismo e à qualificação das áreas habitacionais;”
sofrido profunda transformação antrópica.
A Estratégia de Produção da Cidade5 tem como objetivo a capaci- A partir desta demanda legal estabelecida no PDDUA, começou a
tação do Município para a promoção do seu desenvolvimento através desenvolver-se na Prefeitura Municipal de Porto Alegre um estudo direcio-
de um conjunto de ações políticas e instrumentos de gerenciamento nado para esta região da cidade, buscando alternativas para garantir seu
do solo urbano que envolve a diversidade dos agentes produtores da desenvolvimento sem comprometer a sustentabilidade deste território.
cidade e incorporam as oportunidades empresariais aos interesses do No PDDUA, o Modelo Espacial é o conjunto das diretrizes de desen-
desenvolvimento urbano como um todo. Essa Estratégia promove o pa- volvimento urbano expresso através de representações espaciais das estra-
pel municipal como agente social ativo na tarefa de alcançar as metas tégias. Estimula a ocupação do solo de acordo com a diversidade de suas
propostas, indo além do tradicional papel de agente regulador que ca- partes, considerando as relações de complementaridade entre a cidade
racteriza a atuação da maioria dos Municípios. consolidada de forma mais intensiva e a cidade de ocupação rarefeita.
Estratégia do Sistema de Planejamento6: objetiva um processo de No Modelo Espacial8 o território de Porto Alegre está dividido em
planejamento dinâmico e contínuo, que articule as políticas da adminis- duas grandes zonas: Área de Ocupação Intensiva (AOI) e Área de Ocu-
tração municipal com os diversos interesses da sociedade promovendo pação Rarefeita (AOR). A primeira abrange toda a área urbana contínua
instrumentos para o monitoramento do desenvolvimento urbano. Refor- e as áreas dos Núcleos Intensivos isolados da malha urbana compacta.
mula a organização e a gestão pública do Plano, ampliando seus níveis Já a AOR é a área com características de baixa densificação, onde será
de articulação com a sociedade, e desta forma criando condições para dada ênfase à proteção da flora, da fauna e demais elementos, através
que a aplicação das Estratégias seja mais eficaz e integrada à dinâmica de usos compatíveis que estimulem a sustentabilidade, como usos cien-
da cidade. tíficos, habitacionais, turísticos, de lazer e atividades relacionadas com
Por fim vamos destacar a Estratégia da Promoção Econômica7, que o desenvolvimento da produção primária.
tem como principal objetivo o estabelecimento de políticas que bus- As zonas de uso existentes na Área de Ocupação Rarefeita refletem
quem a dinamização da economia da cidade, a melhoria da qualidade em seus conceitos a intenção da manutenção das características que lhe
de vida e a qualificação da cidadania, através de ações diretas com a conferem baixa densidade. São elas: Área de Proteção ao Ambiente Na-
tural caracterizada por zonas previstas para atividades que, conciliando
4 LC 434/99 Art° 17 a proteção da flora e dos demais elementos naturais, objetivam a perpe-
5 LC 434/99 Art° 21
tuação e a sustentabilidade do patrimônio natural. A Área de Desenvol-
6 LC 434/99 Art° 24
7 LC 434/99 Art° 19 8 LC 434/99 Art° 27

548 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 549
vimento Diversificado se constitui de zonas que, por suas características 3. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
naturais e seu grau de transformação, permitem atividades mais diversi-
ficadas, sempre compatibilizadas com a proteção ambiental. Já a Área O trabalho se desenvolveu a partir da formação de um Grupo de
de Produção Primária é composta por zonas para o desenvolvimento Trabalho constituído por representantes das Secretarias e Departamen-
compatibilizado de atividades primárias, extrativas, comércio e serviço tos municipais que tinham relação direta com as principais questões
de apoio, bem como para a localização de pequenas indústrias vincu- pré-identificadas neste território. Além da Secretaria de Planejamento
ladas à produção por propriedade rural. O Corredor Agro-Industrial foi Municipal, participaram a Secretaria de Meio Ambiente, de Indústria e
concebido como área com potencial para a localização de indústrias Comércio, Governaça Solidária Local, Turismo, Departamento Municipal
vinculadas à produção primária e matérias primas locais, incentivando o de Habitação, Empresa Pública de Transporte e Circulação, Procurado-
aumento da produção agrícola e pecuária no sul do Município. ria Geral do Município através da Gerência Regularização de Loteamen-
Associada à divisão nas áreas de Ocupação Intensiva e Área de tos e por fim, o Escritório Municipal da EMATER, empresa estadual de
Ocupação Rarefeita, o PDDUA também é constituído de um sistema de que presta assistência aos produtores rurais de Porto Alegre.
Macrozonas9, a partir do reconhecimento de porções do território da Logo no início do trabalho, este GT consolidou um objetivo comum
cidade com características próprias, dividindo a cidade em oito gran- a todos integrantes envolvidos para a região, que norteou todas as pro-
des áreas. Cada uma delas engloba vários bairros em função de suas posições do Plano Estratégico. Este envolve definir diretrizes para sub-
afinidades, respeitando suas peculiaridades e características específi- sidiar o detalhamento e a implementação de um Programa de Desen-
cas quanto a aspectos socioeconômicos, urbanísticos e ambientais. O volvimento Sustentável para a região, potencializando as características
território objeto de estudo pelo GT Zona Sul está definido, no PDDUA, de ocupação rarefeitas deste território, especialmente no que se refere
como Macrozona 8 - Cidade Rurubana10, quase que totalmente inserido a conservação do ambiente natural, a mitigação dos impactos da ocu-
na Área de Ocupação Rarefeita. pação habitacional irregular; e a indicação de ações estratégicas que
promovam o desenvolvimento sustentável.
O reconhecimento do território se deu pelo levantamento, mapea-
mento e análise de informações, utilizando-se ferramentas como a lei-
tura da paisagem, visitas técnicas, levantamentos de dados secundá-
rios e dos projetos que já se encontram em andamento para a região.
Com essa base foi possível identificar os principais conflitos e potencia-
lidades através de oficinas realizadas com a sociedade local e também
com outros técnicos da Prefeitura, sendo os resultados sistematizados
num único produto. A partir desta identificação e da construção de um
cenário futuro para a região, foi possível definir diretrizes expressas
numa série de programas, projetos e ações propostos em três eixos
básicos: Estrutura e Paisagem Urbana, Bens Ambientais e Matriz Só-
cioeconômica.
O Plano Estratégico é a síntese validada com os atores envolvidos
das conclusões organizadas pelo Grupo de Trabalho, descritas num rela-
Figura 1 – Macrozonas do PDDUA
tório que aponta para os projetos e ações que precisam ser desenvolvi-
dos pelo poder público, para se alcançar o objetivo desejado. Estes, ao
terem suas ações implementadas, configuram uma estratégia territorial
9 LC 434/99 Art° 29 de desenvolvimento planejado e sustentável.
10 LC 434/99 Art° 29 INC VIII

550 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 551
4. O TERRITÓRIO -se um grande número de elementos para posterior análise e sistema-
tização, com objetivo de agregar em temas as considerações, tornando
A Macrozona 8 – Cidade Rurubana está localizada predominante- mais clara sua compreensão.
mente na região sul do Município, correspondendo à cerca de 48% de Também foram realizadas reuniões institucionais com as Secretarias en-
sua área total, totalizando 225,47 km². Com uma importante produção volvidas – oficinas focadas por eixos temáticos: Estrutura e Paisagem
rural de hortifrutigranjeiros, desenvolvida em áreas que se intercalam Urbana, Bens Ambientais e Estrutura Sócio-Econômica.
com vários núcleos de ocupação urbana, essa Macrozona também tem Por fim, foi promovida uma grande oficina de construção coletiva,
importância pelo seu significativo patrimônio natural, cuja preservação com a integração das informações coletadas e ampla participação da
implica na manutenção da qualidade da cidade como um todo. A sua sociedade. O resultado é uma resposta única de todo o conjunto de
paisagem é constituída por morros isolados e terras baixas planas que participantes das atividades, que representa a concertação das idéias
se estendem até o Lago Guaíba, com suas margens recortadas por pon- dos diferentes atores sociais envolvidos.
tas e enseadas. Diversos núcleos habitacionais e loteamentos clandes- Este trabalho subsidiou a identificação de conflitos e potencialida-
tinos ou irregulares vêm sendo construídos de forma multipontual ao des, vindo a consubstanciar a proposição das diretrizes, num trabalho
longo das principais estradas. de articulação institucional entre todos os agentes de interesses inter-
O trabalho priorizou a área localizada mais ao sul do Município, de nos e externos a região.
maior extensão e mais agrária, que se desenvolve a partir dos terraços O resultado da sistematização deste trabalho foi à consolidação dos
fluviais do Arroio do Salso em direção ao sul, na margem do Guaíba e, a principais conflitos e potencialidades da região, distribuídos nos respec-
leste, até o Morro da Extrema, no limite com Viamão. São núcleos urba- tivos eixos temáticos:
nos estruturados na margem do Guaíba os de Belém Novo e Lami.
Quadro 1 – Principais Conflitos e Potencialidades da região

5. O PROCESSO PARTICIPATIVO CONFLITOS POTENCIALIDADES

Estrutura e Paisagem Urbana


Um dos pressupostos básicos no desenvolvimento do trabalho foi
a transdisciplinariedade e a participação da sociedade civil. A própria Descontrole da Ocu- Carência de Estrutu-
Dispositivos de Planejamento
concepção do grupo de trabalho envolvendo diferentes secretarias e pação Urbana ração Urbana
entidades externas vêm ao encontro desta idéia, consolidando a análise Políticas Públicas ina-
Desqualificação da
do todo a partir de diferentes olhares. dequadas para a re-  
orla
gião
A participação da sociedade civil vem reforçar o trabalho transdis-
Instrumentos legais e
ciplinar, trazendo à pauta a visão de quem vivencia o território no di­a-a- institucionais inade-    
di­a. quados
O ponto de partida da comunicação entre o governo e a sociedade Bens Ambientais
local se deu a partir do Fórum Regional de Gestão de Planejamento da
Degradação ambiental   Patrimônio Natural
Região 08 – Extremo Sul e Restinga (FRP 08), se ampliando posterior-
mente para incorporar a participação de outros atores sociais de grande Estrutura socioeconômica
relevância na região. Insuficiência de incen- Ausência de estraté-
A metodologia adotada foi a participação por consulta, em reuniões Turismo
tivo gias para turismo
promovidas com os envolvidos. Através das respostas dadas a deter- Produção primária para gera-
minadas perguntas orientadoras utilizando o método ZOOP, levantou-    
ção de renda

552 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 553
6. ESTRATÉGIAS E DIRETRIZES Estas linhas de atuação agrupam uma série de diretrizes para o de-
senvolvimento de estudos, programas, projetos e ações necessários para
O Plano Estratégico, definido como um conjunto de diretrizes, ações, viabilizar sua implementação. Essas indicações não esgotam as possibi-
projetos, políticas, para o enfrentamento das questões identificadas na lidades e necessidades de intervenção no território, mas compõem um
análise, baseado na projeção futura, visando o desenvolvimento do ter- conjunto expressivo de propostas, a serem incorporadas nas políticas
ritório a partir da manutenção de suas características principais, é o setoriais, na medida do tempo e dos recursos disponíveis.
instrumento escolhido para abarcar o conjunto de propostas elaboradas Representam também um olhar recortado no tempo, pois a cidade
ao longo do trabalho. é um ente dinâmico e, dependendo do prazo necessário para a imple-
Trata-se de proposições com diversos graus de complexidade em mentação das propostas, estas deverão ser reavaliadas de acordo com
várias linhas de atuação. Incluem desde estudos abrangendo aspectos as alterações sofridas no território e no conceito de desenvolvimento
conceituais, com resultados indiretos e perceptíveis ao longo prazo, até estabelecido para a região.
ações pontuais e mais específicas, com resultado quase que imediato.
A construção deste território, nesta forma de abordagem e com esta
projeção do cenário futuro, se dará ao longo do tempo, dependendo 7. CONCLUSÕES
da implementação articulada do conjunto das propostas gradativamen-
te. Além disto, o Planejamento Estratégico implica necessariamente na Este Programa, elaborado a partir de uma determinação legal esta-
constante análise e reavaliação dos objetivos e resultados, de forma belecida no Plano Diretor, foi construído em sintonia com as Estratégias
a retroalimentar o processo sis- do PDDUA através de um processo de gestão integrada. Busca o de-
têmico de planejamento. A partir senvolvimento e aplicação de vários instrumentos introduzidos na le-
desta dinâmica, é possível ajustar gislação urbanística na promoção do desenvolvimento sustentável para
as ações de maneira a alcançar um território extremamente sensível e de importância estratégica na
resultados mais efetivos na busca concepção da cidade como um todo.
do objetivo. Esta forma de atua- Alinha-se com uma série de diretrizes estabelecidas pelo Estatuto
ção busca incorporar as práticas das Cidades, como na questão da gestão democrática por meio da par-
da gestão sistêmica de projeto ao ticipação popular. Esta é reconhecida como uma condição para o de-
planejamento territorial. senvolvimento sustentável, pois desta maneira a comunidade e o Estado
As diretrizes identificadas atuam conjuntamente na gestão e fiscalização do meio urbano. Também
neste processo de análise do terri- busca evitar e corrigir distorções do crescimento urbano e seus efeitos
tório estão organizadas por linhas negativos sobre o meio ambiente. O planejamento urbano deve contem-
de atuação, dentro de três eixos plar os conflitos e possuir a função de corrigir os desequilíbrios causados
temáticos predefinidos, quais se- pela urbanização, sem desconsiderar o desenvolvimento econômico.
jam Estrutura e Paisagem Urbana, Outra diretriz do Estatuto das Cidades preconiza a integração e
Bens Ambientais e Estrutura Só- complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, reconhecendo
cio Econômica: a relação de dependência existente entre os esses meios. Isso condicio-
na a expansão urbana aos limites da sustentabilidade, aqui entendida
além do equilíbrio ambiental e incorporando as dimensões econômicas
e sociais. Neste território percebe-se claramente a pressão da expan-
Figura 2 – Eixos Temáticos e Linhas de são urbana sobre áreas que ainda resistem nas atividades de produção
Atuação do Plano Estratégico primária. Se não houver uma política municipal mais efetiva de manu-

554 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 555
tenção destas características, como a preconizada nas diretrizes do Es-
tatuto, estas cederão lugar à crescente urbanização.
Zoneamento de usos: uma análise
Associado a isto se encontra a necessidade de proteção, preserva- sob a luz de princípios de
ção e recuperação do meio ambiente natural e construído. A proteção
do patrimônio, aqui entendido em suas várias dimensões - cultural, his-
sustentabilidade urbana, aplicada
tórica, paisagística, arqueológica – é entendida como parte do direito ao município de Esteio - RS1
às cidades sustentáveis, que deverá ser garantido pelos instrumentos
urbanísticos. Débora Dall’ Agnol2
Por fim, não se pode deixar de lado a necessidade de promoção
da regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas pela po-
pulação de baixa renda. Essa diretriz visa efetivar a segurança jurídica
de proteção ao direito à moradia nas cidades, sendo incorporada ao Resumo: Este artigo tem o objetivo de discutir a susten-
Plano Estratégico, já que o território em questão se constituiu ao longo tabilidade das cidades na prática, analisando aspectos do
zoneamento proposto na Lei Municipal Nº 4.247 de 06
do tempo numa alternativa para loteamentos clandestinos e irregulares,
de dezembro de 2.006 que institui o Plano Diretor de De-
que precisam ser incluídos no contexto urbano, através da provisão de senvolvimento Urbano de Esteio - RS, sob a luz de princí-
infra-estrutura e regularização fundiária. pios de sustentabilidade. A intenção é a de averiguar se o
Portanto, o trabalho desenvolvido pelo GT abrangeu uma etapa im- zoneamento proposto no Plano Diretor vigente auxilia na
portante do planejamento territorial desta região, que é a elaboração do promoção de uma cidade mais sustentável. Para tanto, são
Plano Estratégico. Este define uma série de programas, projetos e ações utilizados alguns princípios de sustentabilidade, defendidos
por autores que são referência neste tema da sustentabili-
orientados por um objetivo comum para o território, que precisam ser
dade urbana.
desenvolvidos e incorporados nas práticas setoriais de gestão pública, Palavras chave: Sustentabilidade. Planejamento. Zonea-
de maneira alinhada, para se alcançar os resultados desejados. Foi con- mento.
cebido a partir dos conceitos e instrumentos urbanísticos estabelecidos
nas legislações urbanísticas existentes, como o PDDUA e o Estatuto das
Cidades. Sua efetividade depende da continuidade no desenvolvimento Introdução
de suas propostas e principalmente na coragem do gestor público em
implantar as diretrizes identificadas para promover de fato o desenvolvi- Um dos assuntos mais abordados atualmente é a urbanização, em
mento sustentável deste território. detrimento da frequência com que ocorrem desastres ambientais, os
quais vêm assolando a humanidade, decorrentes de um processo de
urbanização desenfreado, excludente e predatório. O crescimento urba-
no desregrado, nesta escala, é acompanhado de desequilíbrios sociais
gravíssimos, além de culminar em sérios problemas ambientais. Por con-
sequência, dado o padrão e dinâmica do processo de urbanização a
sustentabilidade – em sua complexidade - está ameaçada.

1 Este artigo é parte da monografia apresentada à Fundação da Escola Superior do Ministério


Público do Rio Grande do Sul como exigência parcial para obtenção do Título de Especialista em
Direito Urbano e Ambiental, no ano de 2011, sob a orientação de Andrea Teichmann Vizzotto
2 Arquiteta e Urbanista. Pós-graduanda em Direito Urbano Ambiental, FMP/RS; arqdallagnol@
gmail.com

556 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 557
De acordo com a Sinopse Preliminar do Censo Demográfico 20103, ao fato de que algumas modificações propostas no zoneamento no ano
divulgada recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatís- de 2006, de algum modo - tanto positivamente quanto o contrário -,
tica (IBGE), a população brasileira está mais urbanizada que há dez anos causaram e ainda causam impacto na organização territorial da cidade.
atrás: no ano de 2000, 81,25% dos brasileiros viviam em áreas urbanas
– e agora são 84,36%. No estado do Rio Grande do Sul a população ur-
bana soma 85,10%, enquanto a rural totaliza 14,90%. Num panorama 1. Desvendando a sustentabilidade
mundial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em 2050,
70% da população total estará vivendo em cidades. O tema da sustentabilidade que hoje permeia todas as discussões
Com todo este movimento, há que se voltar o olhar urgentemente no que tange o desenvolvimento como um todo, foi amplamente divul-
ao planejamento das cidades. Tal planejamento deve ser pensado den- gado a partir do ano de 1987, com o relatório Brundtland (“Nosso Fu-
tro da lógica da sustentabilidade, para que o meio físico e natural consi- turo Comum”) assinado pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente
ga absorver com o mínimo de impacto as intervenções que estão ainda e Desenvolvimento, da Organização das Nações Unidas (ONU). Foi de-
por vir. finido neste relatório que o desenvolvimento sustentável é “aquele que
Este artigo tem como objetivo discutir questões de sustentabilidade responde as necessidades do presente de forma igualitária, mas sem
a partir de uma análise aprofundada de algumas questões relevantes na comprometer as possibilidades de sobrevivência e prosperidade das ge-
proposta de zoneamento na cidade de Esteio – RS. rações futuras”. 8
Inicialmente expor-se-á uma reflexão sobre a sustentabilidade como Durante a conferência mundial ocorrida em 1992 no Rio de Janeiro
um todo e após direciona-se o foco ao planejamento das cidades, sob a - a ECO 92 - o conceito foi consolidado com a publicação da chamada
ótica de autores como Lyle4, Paulsule5, Kenworthy e Newman6 e Ja- Agenda 21, um programa de desenvolvimento global com o objetivo de
cobs7, destacando-se alguns princípios de sustentabilidade defendidos buscar conjugar proteção ambiental, justiça social e eficiência econô-
por estes autores, a serem abordados no estudo de caso. Contíguo ao mica em todo o planeta. Kenworth e Newman7 também defendem esta
assunto planejamento é abordado o tema do zoneamento de usos nas tríade como sendo o tripé mínimo para a busca da sustentabilidade.
cidades, discutindo-se a importância deste para as cidades. Lyle9 complementa ainda que a ideia de desenvolvimento, susten-
É proposto estudo de caso fundamentado na cidade de Esteio – RS; tável ou de outro tipo, envolveria também profundas intervenções no
onde a questão principal é a de averiguar se efetivamente o zoneamento ambiente físico - mudanças na paisagem guiada pelo desejo humano –
proposto no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano da referida cida- usualmente nas áreas da agricultura, urbanização ou recreação.
de auxilia na promoção de uma cidade mais sustentável. No caso da legislação brasileira, após a inserção de um capítulo
Para tal investigação, são sugeridos alguns aspectos do zoneamento próprio sobre a política urbana na Constituição Federal de 1988, surge
proposto pela Lei Municipal Nº 4.247 de 06 de dezembro de 2.006 o Estatuto da Cidade, Lei n. 10.257/01, que regulamenta o disposto
que institui o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Esteio para no texto constitucional. Esta Lei relaciona uma série de instrumentos;
fins de análise sob a ótica da sustentabilidade urbana. A escolha se deve estes, quando aliados e aplicados na prática, têm um grande potencial
para tornar a cidade um lugar mais equilibrado ambiental e socialmente.
3 IBGE. Sinopse preliminar dos resultados do Censo Demográfico 2010. Disponível em:
<http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/>. Acesso em: 15 mai. 2011.
É explícita, a partir deste marco, a idéia da cidade sustentável.
4 LYLE, J. Regenerative Design for Sustainable Development. New York: John Wyley & Sons,
1994. 338 p. Nesse norte, é com fundamento nos direitos constitucionais e nos ins-
5 PALSULE, S. O desenvolvimento sustentável e a cidade. In: MENEGAT, Rualdo; ALMEIDA, trumentos que proporcionam a melhoria das cidades que se formam
Gerson (Org.). Desenvolvimento sustentável e gestão ambiental nas cidades: estratégias a
partir de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. Pp 33-55. 8 BRUNDTLAND, Gro Harlem. Our common future (”The brundtland report”). United Nations,
6 NEWMAN, P; KENWORTHY, J. Sustainability and cities: overcoming automobile depen- World Commission on Environment and Development, Abril de 1987.
dence. Washington D.C: Island Press, 1999. 442p. 9 LYLE, John Tillman. Regenerative Design for Sustainable Development. New York: John
7 JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 510p. Wyley & Sons, 1994. 338 p.

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os elementos para a constituição e consolidação de um novo direito, ideal de cidade sustentável é uma cidade planejada para que as pessoas
o direito à cidade sustentável. Ademais, tornar a cidade melhor aos possam viver na comunidade respeitando sua dinâmica, sendo possível
seus habitantes, em seus mais diversos aspectos (ambiental, adminis- ter uma vida integrada com todas as suas necessidades.
trativo e social), garante um futuro melhor para as gerações vindouras
Não obstante o movimento acentuado voltado ao desenvolvimento
e, principalmente, qualidade de vida para as gerações presentes. Nes-
sustentável, estamos ainda vivenciando a era industrial e capitalista; o
se contexto, verifica-se a possibilidade de o Poder Público, mediante
uma política urbana fundamentada, tornar efetivos os instrumentos mundo, as pessoas são movidas pela máquina chamada dinheiro. Como
previstos no Estatuto da Cidade como forma de alcance da cidade já citado, ainda há um longo caminho a se percorrer na busca de cidades
sustentável10. sustentáveis. Enquanto o consumismo fizer parte do cotidiano das pes-
soas, a evolução será muito lenta. Segundo Palsule 11, a revolução para
Hoje, a expressão “sustentabilidade” está amplamente difundida, as cidades sustentáveis somente se dará através da transformação do
sendo utilizada nas mais diversas situações. O olhar da sociedade está nosso paradigma, da mudança na forma coletiva de sentir, pensar intuir
se voltando cada vez mais a este tema; no urbanismo, por exemplo, con- e valorar. Somente através deste caminho a humanidade poderá trans-
centra-se na busca de formas de enfrentar os graves efeitos provocados por o desafio de colocar a sustentabilidade em prática, e assim alcançar
pelo crescimento excessivo e desordenado verificado nas cidades. En- o equilíbrio.
tretanto, o caminho ainda é lento; a sustentabilidade ainda é utilizada, Para Kenworthy e Newman12, a promoção de mudanças urbanas
por muitas vezes, unicamente como estratégia de marketing, existindo para a sustentabilidade depende de três atores fundamentais que, ao
certo risco de que o discurso da sustentabilidade não venha a produzir atuarem juntos, ampliam as chances reais de realizar a quebra do pa-
alterações de fato. É necessário que se busque e utilize modelos de radigma, ocorrendo as mudanças: governo, mercado e sociedade civil.
desenvolvimento onde possam ser agregados valores para a sustenta- Em todos os momentos, deve estar presente a consciência de que, em
bilidade, tais como os valores ecológicos, a solidariedade, autonomia e qualquer direção em que avance a sustentabilidade, é essencial o pleno
responsabilidade. envolvimento destes atores no planejamento das cidades; sendo o prin-
As cidades precisam e devem começar a definir suas metas e cipal ator a sociedade civil, uma vez que são as pessoas que transfor-
objetivos para se tornarem sustentáveis, além de dispor de uma mam as cidades e fazem delas organismos complexos e intensos.
forma de planejamento que promova o cumprimento das agendas Com relação ao planejamento das nossas cidades, percebemos que
locais e globais de sustentabilidade de maneira mais abrangente e atualmente muda o seu foco, antes voltado tão somente ao urbano, para
sistêmica. a nova relação urbano ambiental. Noção que, ao longo do tempo, passa
a expressar um só objeto: urbano ambiental – e ainda percebem-se
mais avanços quanto ao envolvimento no âmbito social. Nesse sentido,
2. Zoneamento como instrumento para nota-se que o novo planejamento urbano busca englobar as questões
o planejamento urbano sustentável de sustentabilidade como um todo. Planejamento das cidades remete
ao zoneamento urbano. O zoneamento, desde sua origem, caracteriza-
O desenvolvimento sustentável é o ponto essencial na estruturação -se como um instrumento de solução de conflitos de uso do solo, na
das cidades e nas relações humanas. Surge, então, um novo conceito de disputa por espaço entre interesses públicos e privados e, ainda entre
cidade conhecida como cidade sustentável, que busca por intermédio privados contra privados. Pode ser entendido como a divisão do espaço
de políticas públicas o desenvolvimento contínuo da melhoria nas con- da cidade em áreas que devem obedecer ora a usos, ora a parâmetros
dições de saúde, social e bem estar de seus habitantes. Além disto, o
11 PALSULE, Sudanshu. O desenvolvimento sustentável e a cidade. In: MENEGAT, Rualdo;
ALMEIDA, Gerson (Org.). Desenvolvimento sustentável e gestão ambiental nas cidades: estra-
10 Dias, Maurício Leal. Notas sobre o direito urbanístico: a “cidade sustentável”. Disponível em: tégias a partir de Porto Alegre. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2004. pp. 37.
<http://jus.uol.com.br/revista/texto/1692/notas-sobre-o-direito-urbanistico>. Acesso em: 10 dez. 12 NEWMAN, Peter; KENWORTHY, Jeffrey. Sustainability and cities: overcoming automo-
2010. bile dependence. Washington D.C: Island Press, 1999. pp 286.

560 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 561
de construção diferentes ou mesmo, e mais freqüentemente, à combi- de baixa densidade, com alta segregação de usos. Além disto, este tipo
nação de usos e parâmetros diferentes, segundo uma lei municipal de de espalhamento detém várias características de desenho urbano que in-
ocupação do solo. centivam a dependência do automóvel. Como resultado, muitos urbanis-
Atualmente a questão do zoneamento urbano configura o ponto tas, representantes de governos e cientistas sociais afirmam que este tipo
central da discussão no que diz respeito às questões de ordenação do de alargamento tem uma série de desvantagens. Kenworthy e Newman
território: a disputa entre os interesses privados - produtores e consumi- afirmam que coibir a expansão urbana trata-se de etapa necessária na
dores - e os interesses públicos - efeitos agregados, sociais e ambientais. criação de uma cidade mais justa e, por consequencia, sustentável.
O zoneamento torna-se, assim, um instrumento ambíguo, ora defenden- c) Gravame de áreas de urbanização prioritária. Kenworthy e New-
do o interesse da coletividade, ora defendendo interesses destes ou man defendem a densificação de áreas providas de infra-estrutura para
daqueles grupos de consumidores ou produtores. Nesse sentido, esta a promoção de cidades mais sustentáveis. Tomando o cuidado de não
dinâmica tem produzido o que é normalmente denominado pelos ur- promover a construção de edifícios altos, e sim mais baixos e com maior
banistas de “destruição da coerência e aderência dos zoneamentos aos aproveitamento de área.
planos diretores”13 dada a vulnerabilidade dos planos reguladores, so- d) Fomento à descentralização dos serviços, promovendo assim a re-
frendo pressões de interesses pontuais e específicos. Planos diretores, dução das distâncias. Para Kenworthy e Newman15, a cidade sustentável do
leis de regulação e ordenamento do uso do solo acabam, por vezes, por futuro precisa recuperar o uso da terra em uma forma não dependente do
atender a estas pressões externas quando enviados às Câmaras Munici- carro, descentralizada e preocupada com os sistemas de infraestrutura.
pais, atendendo ao ciclo vicioso intrínseco aos próprios procedimentos
de decisão e de controle da implementação da regulação.
Para que as normas de zoneamento possam ser instrumentos para 3. Análise do zoneamento aplicado na cidade de
auxílio à construção de cidades mais sustentáveis, estas devem estar in- Esteio - RS a partir de princípios de sustentabilidade
seridas numa política de planejamento urbano fortalecida para a busca
de equilíbrio entre as formas de desenvolvimento econômico e o desen- 3.1 Caracterização sócio espacial do território
volvimento social e humano da cidade.
Neste sentido, é proposto que sejam utilizados nesta análise princí- O município de Esteio dispõe de área territorial de 27,68km². Está
pios de sustentabilidade urbana que influenciam diretamente no cresci- inserido no centro da Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA), no
mento urbano e disposição das funções no território da cidade. São estes: estado do Rio Grande do Sul, estando distante apenas 20Km da capital,
a) Diversificação de usos - Jacobs14 defende a diversificação de Porto Alegre.
usos para a sustentabilidade urbana. Segundo a autora, a diversidade
é antídoto para grande parte dos males urbanos que ocorrem com o
uso monofuncional. Diversidade de usos, de nível sócio econômico da
população, de tipologia das edificações, de raças, entre outros. Mais
importante do que a polícia, para garantir a segurança de determinada
rua, bairro ou distrito, por exemplo, é o trânsito ininterrupto de usuários,
além da existência do que Jacobs chama de “proprietários naturais da
rua”. Donos de padarias, mercearias, lojas, pequenos serviços, são os
muitos olhares vigilantes, mais eficazes do que a iluminação pública.
b) Espalhamento urbano – se trata da propagação da cidade para
além dos limites onde está estabelecida; aí surgem os subúrbios, periferia
Ilustração 01 – À esquerda, mapa demonstrando a Região Metropolitana do RS com
13 Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos – 2 ed – Brasília, 2002
14 JACOBS, J. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 510p. 15 Ibidem, 1999. p.187.

562 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 563
relação ao Brasil e à direita, a cidade de Esteio no centro da RMPA. Fonte: Metroplan/RS os ideais das cidades sustentáveis, por vezes. A forma mais tradicional é
Esteio conta com uma população de 80.669 habitantes16;a cidade é o zoneamento de uso e ocupação do solo, que prevê uma segregação de
detentora de uma das maiores densidades demográficas do Estado do usos – basicamente industrial, comercial e residencial - com maior ou me-
Rio Grande do Sul. nor grau de flexibilidade.
A cidade é cortada por importante via nacional, a BR-116 e também O zoneamento da cidade de Esteio é composto de seis zonas deno-
pelas vias férreas da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S.A minadas Zonas de Planejamento, conforme o art. 76 da Lei 4247/2006:
(TRENSURB) e América Latina Logística (ALL); além de ser margeada a) ZMC – Zona Mista Preferencialmente Comercial - Constituída pelas
por importante via do Estado, a RS-118. O território confronta com os áreas urbanas centrais e caracterizada por ser a porção do território me-
municípios de Canoas, Sapucaia do Sul, Gravataí, Cachoeirinha e Nova lhor atendida pela infra-estrutura, pelas atividades econômicas, serviços
Santa Rita, sendo o Rio dos Sinos o divisor físico com esta cidade. públicos e oportunidades geradas a partir da urbanização do município.
Com relação à caracterização econômica, a cidade apresenta perfil Apresenta densidade populacional superior as demais regiões da cidade.
econômico industrial, dado que se confirma ao se estudar a arrecadação b) ZMR1 – Zona Mista Preferencialmente Residencial 1 e ZMR2 -
de ICMS do município – a maior parte da arrecadação provém destas Zona Mista Preferencialmente Residencial 2 - Caracterizadas pelo uso
indústrias, sejam elas médias ou de grande porte, além das de pequeno residencial qualificado e o desenvolvimento de atividades econômicas
porte também. Isso se deve ao fato de apresentar uma Zona Industrial complementares ao uso que garantam a qualidade de vida e o bem-es­
de grande potencial ao longo da BR-116. Esse fator favorece o esco- tar da população residente.
amento dos produtos das indústrias denotando, também, um caráter c) ZM1 – Zona Mista 1 - Caracterizada pela miscigenação de usos,
logístico do município. com porções bem definidas de território para o uso residencial e para
A presença da BR-116, dividindo a cidade em duas partes pode se o uso industrial. O uso residencial possui características semelhantes as
tornar, sob o ponto de vista econômico, favorável ao desenvolvimen- da Zona Mista Preferencialmente Residencial 2, mas com menor densi-
to da cidade; porém, surge também a questão da segregação espacial, dade populacional. O uso industrial é caracterizado por atividades de
uma vez que separa a cidade em duas partes. Por essa razão a presença baixo impacto poluidor e intervenção urbanística. Diferencia-se das de-
da via apresenta-se como elemento estruturador e segregador, ao mes- mais zonas por apresentar desestruturação territorial. É regulamentada
mo tempo. com o objetivo de promover o equilíbrio entre os usos de produção e
Todos estes fatores são gerados a partir da inexistência de um pla- residencial, possibilitando a solução de conflitos existentes, a qualifica-
nejamento urbano adequado, antevendo as situações que o crescimen- ção ambiental e o melhor aproveitamento da infraestrutura. Os usos de-
to descontrolado poderia acarretar no futuro. verão ser fisicamente separados com a implantação de barreiras verdes.
d) ZM2 – Zona Mista 2 - Caracterizada pela miscigenação de usos,
com porções bem definidas de território para o uso residencial de baixa
3.2 Análise do zoneamento proposto pelo Plano Diretor densidade, para o uso industrial com potencial poluidor baixo e médio
de Desenvolvimento Urbano de Esteio – Lei 4247/2006, e baixa interferência paisagista, para atividades de lazer, turismo e pre-
a luz de princípios de sustentabilidade servação. Diferencia-se da Zona Mista 1 por ser uma zona totalmente
desestruturada, uma vez que ainda não foi urbanizada, podendo rece-
O zoneamento territorial é um dos instrumentos de planejamento ber urbanização total ou parcial.
mais usuais quando tratamos do assunto planejamento urbano. É, certa- e) ZIE – Zona Industrial Exclusiva - Caracterizada por apresentar in-
mente, o mais difundido instrumento urbanístico e, também, o mais cri- tensa atividade de produção e desenvolvimento econômico, organizado
ticado, tanto por sua eventual ineficácia, quanto por seus efeitos perver- principalmente ao longo da BR-116. Somente serão permitidos usos de
sos - especulação imobiliária e segregação socioespacial - indo contra apoio à atividade industrial.
A seguir, o zoneamento será analisado sob o ponto de vista do de-
16 Conforme Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – Censo Demográfico 2010.

564 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 565
senvolvimento sustentável para a cidade, em alguns de seus aspectos,
já explicitados anteriormente. Para tal, estes aspectos foram determi-
nados como sendo negativos ou positivos para a sustentabilidade da
cidade. Dentre os aspectos negativos, elencaram-se o engessamento de
algumas áreas, que proporciona a falta de diversificação de usos nestas
e o espalhamento urbano (ou urban sprawl), que acaba por elevar os
custos de urbanização e de vida em regiões mais afastadas da cidade.
Os aspectos positivos visualizados no zoneamento da cidade de Esteio,
que promovem uma cidade mais sustentável tratam do gravame de áre- Ilustração 02 – Mapa das Unidades Territoriais.
as de urbanização prioritária e do fomento a descentralização do comér- Fonte: Adaptado da Lei 4247/2006.
cio e serviços.
Pode-se perceber que a maior concentração destas zonas de uso in-
3.3 Diversidade de usos para a sustentabilidade dustrial está presente nas Unidades Territoriais 02 e 03; explica-se uma
vez que estas áreas confrontam com a BR-116. A maior parte da Zona
A problemática do engessamento causado pelo Plano Diretor a Industrial de Esteio apresenta-se concentrada ao longo da BR – 116,
áreas que necessitam maior diversidade de usos – as Zonas Industriais beneficiando-se desta localização.
Exclusivas – se trata de assunto de extrema importância quando o as-
sunto é a defesa da importância da diversidade de usos como um dos
caminhos para a sustentabilidade das cidades. Para compreendermos
as cidades, conforme Jacobs, “precisamos admitir de imediato, como
fenômeno fundamental, as combinações ou as misturas de usos, não os
usos separados”.17
Atualmente, o zoneamento proposto pelo Plano Diretor define áreas
exclusivamente industriais na cidade. Contabilizam, no total, dez núcleos
com este gravame.
As zonas de uso estritamente industrial se destinam à localização de
estabelecimentos industriais cujos resíduos sólidos, líquidos e gasosos,
ruídos, vibrações e radiações possam causar danos à saúde, ao bem-
-estar e à segurança da população, mesmo com a utilização de métodos
adequados de controle e tratamento dos resíduos gerados, segundo as
determinações legais do Brasil.
Praticamente todas as zonas industriais em Esteio apresentam mis-
Ilustração 03 - Mapa de zoneamento da cidade de Esteio. No entorno da BR-116
cigenação com outros usos, com exceção da UT01 (vide mapa das Uni-
encontra-se a concentração das Zonas Industriais. Fonte: Lei Municipal 4247/2006.
dades Territoriais na ilustração 02), que ainda é inabitada – é somente
gravada - e da UT04, que realmente apresenta tão somente uso indus-
É neste momento que se agrava a segregação sócio espacial do ter-
trial nos dias de hoje, estando localizada numa porção de área separada
ritório, já existente pela presença da rodovia e via férrea. Sendo assim, o
da área urbanizada na cidade.
benefício é tão somente das indústrias e empresas de logística. Aos mo-
radores da área, só cabe o ônus de morar próximo às grandes indústrias
17 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes,
2000, p. 158.
da cidade, causando malefícios à saúde dos habitantes, além da falta de

566 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 567
diversidade de usos na região. direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-
O Plano Diretor em vigência não promove que haja diversidade de estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e
usos nestas áreas, proibindo a construção de residências multifamiliares ao lazer, para as presentes e futuras gerações”.20
e restringindo ao máximo as residências unifamiliares, que são taxadas
como uso tolerado e possuem índices construtivos muito restritos. 3.4 Espalhamento urbano
Ainda há o fato de constar no Plano Diretor, que esta zona não pode
contemplar serviços e comércio básicos para a população, visto que são O direito à cidade sustentável também pode estar comprometido
determinados como usos proibidos. Portanto, os moradores, além de quando tratamos do assunto do espalhamento urbano. O espalha-
contarem com a escassez do comércio, também se deparam com a es- mento urbano trata-se de um modelo de desenvolvimento que, segundo
cassez de bens de utilidade básica pública. Toda esta cadeia culmina alguns autores, não auxilia na questão do desenvolvimento das cidades
na insustentabilidade do sistema, agravada ainda pela necessidade do de maneira sustentável. Muitos criticam este modo de desenvolvimento,
uso de meios de locomoção para acesso aos serviços básicos. Confor- defendendo que produz áreas de baixa densidade populacional, geral-
me Orfila, “na ausência da diversidade urbana, as pessoas que vivem mente de baixa renda – entretanto média e alta renda também ocorre.
em grandes comunidades provavelmente se saem melhor com um carro Este modelo contraria a sustentabilidade urbana uma vez que exige
que a pé”.18 grandes espaços para ocupação; geram graves danos ambientais, au-
A questão do engessamento destas áreas vai contra os princípios da mento de poluição do ar, da terra, das águas, sonora, e outros; além
sustentabilidade urbana uma vez que não promove a diversidade urba- dos engarrafamentos de trânsito cada vez maiores, aumento do estres-
na. Jacobs defende a diversificação como meio também para a garantia se urbano, e conseqüente perda de qualidade de vida. Além disto, causa
da segurança nestas áreas. ônus aos cofres públicos (e por conseqüência ao cidadão), pois ocasiona
enormes despesas municipais com infra-estrutura e sistema de trans-
O distrito e, sem dúvida o maior número possível de segmentos que portes mais dispersos.
o compõem, deve atender a mais de uma função principal; de prefe- A população de Esteio vem crescendo, no ritmo das cidades que se
rência, a mais de duas. Estas devem garantir a presença de pessoas situam em grandes centros urbanos. O auge do crescimento ocorreu du-
que saiam de casa em horários diferentes e estejam nos lugares por rante o período de 1970 a 1991, onde a população aumenta mais que
motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infra-
o dobro. Entretanto, a área territorial continua a mesma. A escassez de
es­trutura19.
terras já traz a tona o problema da especulação imobiliária, evidente na ci-
dade. Os vazios urbanos que hoje representam grande quantidade de terra
Há que se ressaltar também a desigualdade de oportunidades que
na cidade, principalmente Na área central e entorno, são o reflexo desse
enfrentam os habitantes destas áreas, com relação aos demais. Esta se
desenfreado processo de especulação imobiliária, pelo qual a cidade vem
daria uma vez que há desigualdade de distribuição dos bens sociais à
passando. Kenworthy e Newman21 fazem críticas pertinentes ao modelo de
população, pois todo o restante da população conta com equipamentos
cidade atual, referindo que estas possuem muito espaço desperdiçado em
públicos diversos e somente esta parcela carece dos mesmos.
estacionamentos ou arruamentos e também, espaços privados com áreas
Cabe ainda salientar que a imposição do governo local para com
excessivas e muitas vezes subutilizada. Em Esteio não é diferente.
estas áreas contraria a primeira diretriz do Estatuto das Cidades, que
No entanto, apesar de todas estas características presentes no ter-
garante aos cidadãos o direito às cidades sustentáveis:
ritório, o Plano Diretor propõe ocupação de uma área que atualmente
“deve-se garantir o direito às cidades sustentáveis, entendido como o possui características rurais. Trata-se de uma área situada entre a BR-
116 e o Rio dos Sinos, utilizada para cultivo de arroz. A justificativa
18 Orfila, Patricia. Palmas: entre muros, vazios urbanos e ausência de vitalidade. Disponível em: 20 Estatuto da Cidade: guia para implementação pelos municípios e cidadãos – 2 ed – Brasília, 2002
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.117/3379. Acesso em: 05 dez. 2010 21 NEWMAN, Peter; KENWORTHY, Jeffrey. Sustainability and cities: overcoming automo-
19 JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000. pp. 161. bile dependence. Washington D.C: Island Press, 1999. p.187.

568 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 569
para ocupação desta área é a de que não há mais espaço para ex- (em laranja). Adaptado da Lei Municipal 4247/2006.
pansão na porção já urbanizada. Todavia, o poder público local tem a Portanto não é compreensível o gravame nesta área desprovida de
intenção de promover - através da implementação do instrumento de infraestrutura. Este novo zoneamento pode originar o surgimento de
IPTU progressivo no tempo - a ocupação das áreas subutilizadas, prin- um tipo de crescimento urbano sprawl, oneroso aos gastos públicos e
cipalmente no centro da cidade e arredores, zona demarcada como monótono para os habitantes. Nestes locais, possivelmente haverá a
Área de Especial Ocupação Prioritária. Então há que tornar este ins- necessidade do uso intenso do automóvel para locomoção ao centro da
trumento eficiente ao ponto de promover, então, a ocupação ideal e cidade e acesso aos serviços básicos.
efetiva. Além deste instrumento, o regime urbanístico nestas áreas de Sem contar que a área, segundo estudos realizados anteriormente,
ocupação prioritária foi alterado para que haja um maior adensamento é gravada como sendo uma área com risco de inundação (no atual Plano
populacional. Kenworthy e Newman defendem o adensamento popu- Diretor), visto que se trata de área próxima ao Rio dos Sinos. Portanto,
lacional para a sustentabilidade, uma vez que tem o uso de energia maior custo será gerado para a prevenção das cheias.
diminuído pois decorre menor dependência do automóvel e maior re- Além disto, a utilização desta reserva de terras - a única restante
ciclagem de resíduos devido à maior facilidade de coleta com relação na cidade - esgotaria a possibilidade da área servir para produção de
às zonas mais separadas. alimentos. Muitos autores defendem a reserva de áreas para este fim,
Paralelo a isto, conforme o Estatuto da Cidade, em seu artigo 2°, há pois num futuro próximo, com a escassez do petróleo, o transporte de
que se voltar a atenção na adoção de padrões de produção e consumo alimentos e conseqüente abastecimento nas cidades seria prejudicado.
de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da Conforme indica um estudo britânico, a produção global de alimentos
sustentabilidade ambiental, social e econômica do município e de todo precisa crescer cerca de 40% nas próximas duas décadas para evitar o
o território sob a sua área de influência.22 aumento da fome global:

“Sabemos que nas próximas duas décadas a população chegará a


cerca de 8,3 bilhões de pessoas (...). Temos 20 anos para produzir
cerca de 40% a mais de comida, 30% a mais de água potável e 50%
a mais de energia”.23

E de imediato, a produção local de alimentos reduziria os custos


com transporte requerido para os alimentos e resíduos. Estudos apon-
tam que o tomate, por exemplo, percorre em média 500 km antes de
chegar à mesa dos cidadãos porto-alegrenses24. Acostumamos-nos com
a disponibilidade durante todo o ano da maioria dos nossos alimentos
- independentemente de onde ele é produzido, como ele é produzido,
como ele é processado e armazenado e como ele é transportado. Cada
uma dessas fases é, em larga medida, dependente de recursos não-re­
nováveis fósseis.
E além da produção de alimentos, a área vegetada oferece maior

23 Beddington, J. Produção de alimentos precisa crescer 40% em 20 anos. Disponível em:


Ilustração 04 - Mapa demonstrando a área proposta para expansão urbana <http://economia.ig.com.br/empresas/agronegocio/producao+de+alimentos+precisa+crescer+
40+em+20+anos+diz+estudo/n1237967445788.html>. Acesso em: 12 jan. 2011.
22 BRASIL. Lei Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 24 SATTLER, M. A. Notas de aula da disciplina de Engenharia Urbana. Porto Alegre: Univer-
da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências. sidade Federal do Rio Grande do Sul. Pós Graduação em Engenharia Civil, 21/09/2010.

570 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 571
qualidade de vida à população. pação, utilização ou urbanização prioritária, visando seu adequado
Áreas subutilizadas, vazios urbanos – situados nas áreas prioritárias aproveitamento, o cumprimento da função social da propriedade e a
ou não – além de serem alternativas para um maior adensamento nas otimização da urbanização da cidade.
áreas providas de infraestrutura, igualmente poderiam ser fomentados
a receber área vegetada, com possibilidade de produção de alimentos. A ocupação pode ser dar tanto por vegetação como já citado, utili-
zando a produção de alimentos, numa visão um tanto utópica para al-
3.5 Gravame de áreas de urbanização prioritária guns, quanto por edificações – cuidando sempre para que haja o devi-
do equilíbrio entre o ambiente construído e o meio ambiente. Claro, a
O gravame das áreas de urbanização prioritária é de grande valia na utilização para a produção de alimentos proposta precisaria passar por
busca da sustentabilidade da cidade, sendo um aspecto muito positivo avaliação do poder público e estar contemplada no Plano Diretor, uma
se avaliado sob esta ótica. A cidade de Esteio, em seu zoneamento, pos- vez que poderia ser entendida como subutilização da área. Sempre ten-
sui área de urbanização prioritária demarcada, nos arredores do centro do em vista que os vazios urbanos contribuem para a falta de vitalidade
urbano, conforme ilustração 05. urbana, tornando os caminhos morosos e repetitivos, devido à ausência
de construções ou repetição de paisagem descampada, o oposto do
que acontece nas cidades mais densas e com diversidade de usos.

3.6 Fomento a descentralização dos serviços

E além de uma área de ocupação prioritária propriamente demar-


cada, o PDDUE traz mais um aspecto positivo com relação à sustenta-
bilidade urbana: o fomento a descentralização dos serviços, através
da demarcação de Corredores de Promoção Econômica, inseridos nas
Áreas de Especial Interesse Econômico:

Art. 140 - São áreas de ocupação intensiva identificados como cor-


redores de promoção econômica com importante função na articu-
lação viária dentro das unidades territoriais e entre estas, buscando
dar continuidade, unidade e estruturação ao território do município,
descentralizando o seu desenvolvimento econômico e de serviços
(...).
Ilustração 05 – Anexo IX, das Áreas Especiais, demonstrando a área de Ocupação
Prioritária, nos arredores do centro urbano. Fonte: Lei Municipal 4247/ 2006, PDDUE. Estes corredores estão espalhados pelo território da cidade; fo-
ram propostos após estudos das áreas que poderiam ser adequadas
Entretanto, como já citado, há que se induzir a ocupação de áreas a este fim: com infraestrutura adequada, geralmente com gabarito
que não atendem à função social (vazios urbanos e áreas subutilizadas privilegiado, e que já dispunham de características comerciais e de
– demarcando-as, primeiramente), voltando-se principalmente às áreas serviços. Conforme Kenworthy e Newman25 a nova urbanização está
de urbanização prioritária. Conforme o PDDUE, as Áreas de Especial focada em sub-cen­tros dispersos pela cidade e não no desenvolvi-
Ocupação Prioritária (AEOP) compreendem: mento nas bordas do território; proporcionando, assim, uma cida-

Art. 144 - As AEOP, compreendem as glebas, terrenos e imóveis não 25 NEWMAN, Peter; KENWORTHY, Jeffrey. Sustainability and cities: overcoming automo-
edificados, subutilizados ou não utilizados, identificados para ocu- bile dependence. Washington D.C: Island Press, 1999. pp 185.

572 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 573
de mais compacta, com otimização das distâncias e menor gasto de abordagem mais séria para a importância da agricultura urbana e ao
energia. Uma cidade com múltiplos centros é uma cidade que cami- processo de reurbanização, através de um processo simultâneo de re-
nha rumo à sustentabilidade, ou como denomina-se também, uma novação ecológica envolvendo uma abordagem integrada da água, resí-
cidade verde, uma vez que cada centro conta com atividades diver- duos e agricultura urbana.
sas e baseados em deslocamentos internos a pé, além de haver a − A revisão do zoneamento proposto na Unidade Territorial 1, que
possibilidade de estarem conectados entre si por um trânsito rápido poderá acarretar o urban sprawl deve ser revisto para que não resulte
(situação ideal). em áreas de subúrbio, acarretando em gastos onerosos ao poder públi-
Então, voltando-se à questão inicial: o zoneamento proposto no Pla- co e, consequentemente ao cidadão.
no Diretor de Desenvolvimento Urbano de Esteio auxilia na promoção − O gravame das áreas de urbanização prioritária é de grande va-
de uma cidade mais sustentável? Podemos dizer que em diversos as- lia na busca da sustentabilidade da cidade, porém há sempre que se
pectos, sim, o zoneamento proposto auxilia no fomento a uma cidade ter em mente que a idéia de urbanização prioritária, no caso de Esteio,
mais sustentável. Por outro lado, outros aspectos convergem para um apesar de estar ligada à densificação do território, não remete à idéia de
retrocesso no que diz respeito a este tema. construção em altura como muitos pensam. A densificação destas áreas
É importante que estes e outros aspectos sejam revistos na revisão pode ser dar através de prédios mais robustos e mais baixos, proporcio-
do PDDUE que ocorrerá em breve. nando maior interação do cidadão para com a paisagem urbana.
− O gravame de Corredores de Promoção Econômica é uma pro-
posta muito inovadora no que tange o desenvolvimento sustentável e
4. CONCLUSÕES deve ser fomentada através de ações que promovam a ocupação destes
espaços por serviços e comércio voltados à população local, nas áreas
− Em resposta a questão inicial da pesquisa, pode-se afirmar, que ainda não estabelecidas.
perante os princípios de cidade sustentável, o zoneamento proposto em − Em todo o momento deve estar presente a idéia de que o desen-
parte concorre para a promoção da sustentabilidade. volvimento da cidade sempre deve estar atrelado a vontade do cidadão;
− Na questão da promoção da diversidade para a sustentabilidade e o poder público deve promover processos de gestão participativos
local, poderiam ser previstas ações de planejamento para a melhoria para que o cidadão abandone o status de mero espectador para elevar-
das condições de vida das pessoas que residem e/ ou trabalham nas Zo- -se à condição de efetivo ator na construção de cidades mais sustentá-
nas Industriais. O ideal seria a revisão do gravame da área Zona Indus- veis.
trial Exclusiva; a sugestão é de que sejam instituídas nestas áreas, Zonas
Mistas, onde os usos possam se entre - mesclar sem danos à população; Referências Bibliográficas
muito pelo contrário, trazendo benefícios à comunidade, que irá dispor
de equipamentos públicos e maior diversificação da área, com comér- AGENDA 21. Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e De-
cio diversificado, criando atrativos para a população. Sempre tendo em senvolvimento. 2. ed. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Téc-
mente que a cidade é moldada pelos cidadãos, sendo assim, a vontade nicas, 1997.
destes deve estar sempre em primeiro lugar. Beddington, J. Produção de alimentos precisa crescer 40% em 20
− Além desta ação, é proposto que, efetivamente se instituam/ im- anos. Disponível em: <http://economia.ig.com.br/empresas/agronegocio/pro
plementem áreas verdes (cinturões) no perímetro das indústrias, para ducao+de+alimentos+precisa+crescer+40+em+20+anos+diz+estudo/
amenizar a poluição emitida pelas fábricas. Há previsão destes cinturões n1237967445788.html>. Acesso em: 12 jan. 2011.
no PDDUE, porém estes devem ser colocados em prática; devem ser BRASIL. Lei Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arti-
exigidos pelo poder público. gos 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política
− A gestão da cidade e das cidades em geral deve integrar uma urbana e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/
ccivil/leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 15 dez. de 2010.
574 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 575
BRUNDTLAND, Gro Harlem. Our common future (”The brundtland report”).
United Nations, World Commission on Environment and Development, Abril de
Estatuto da Cidade e o conceito de
1987. função social da propriedade urbana
Câmara dos Deputados et al. Estatuto da Cidade – Guia para Imple-
mentação pelos Municípios e Cidadãos. 2ed. Brasília, 2001. Edson Ricardo Saleme1
Dias, Maurício Leal. Notas sobre o direito urbanístico: a “cidade sustentável”. Silvia Elena Barreto Saborita2
Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/1692/notas-sobre-o-direi-
to-urbanistico>. Acesso em: 10 dez. 2010.
ESTEIO. LEI MUNICIPAL Nº 4.247 de 06 de dezembro de 2.006. Institui o Resumo: A função social da propriedade é conceito em
constante evolução. Sua primeira ocorrência surgiu no Esta-
Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de Esteio.
tuto da Terra. Posteriormente a Constituição Federal consa-
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, grou o princípio. Atualmente é conhecido como princípio da
2000. 510p. função sócio-ambiental da cidade, pois a atual Carta Magna
LYLE, John Tillman. Regenerative Design for Sustainable Development. também introduziu o conceito de sustentabilidade que per-
New York: John Wyley & Sons, 1994. 338 p. meou o instituto. As conquistas municipais e seu rol de com-
NEWMAN, Peter; KENWORTHY, Jeffrey. Sustainability and cities: overco- petências, bem como a atuação dos administradores são
colocadas em cheque neste momento que se busca fazer
ming automobile dependence. Washington D.C: Island Press, 1999. 442p.
um balanço dos dez anos de publicação da importante Lei
ONU. World Urbanization Prospects: The 2009 Revision. Disponível em nº 10.257/2001.
http://esa.un.org/unpd/wup/index.htm. Acesso em: 20 nov. 2010. Palavras-chave: FUNÇÃO SÓCIO AMBIENTAL DA PRO-
Orfila, Patricia. Palmas: entre muros, vazios urbanos e ausência de vita- PRIEDADE – GESTORES MUNICIPAIS – ESTATUTO DA CI-
lidade. Disponível em: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitex- DADE – RESPONSABILIZAÇÃO DE ADMINISTRADORES.
tos/10.117/3379. Acesso em: 05 dez. 2010
PALSULE, Sudanshu. O desenvolvimento sustentável e a cidade. In: MENE-
GAT, Rualdo; ALMEIDA, Gerson (Org.). Desenvolvimento sustentável e ges- 1 - INTRODUÇÃO
tão ambiental nas cidades: estratégias a partir de Porto Alegre. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS, 2004. pp. 33-55. A propriedade estabelecida constitucionalmente revela-se no inciso
Pereira, Elson Manoel. Zoneamento Urbano e Habitação de Interesse Social. XX do art. 5º da Constituição com um condicionante no inciso seguinte,
Disponível em: <www.cce.ufsc.br/~elson/artigo%20campinas.rtf>. Acesso XXIII, dispondo ser necessário observar sua função social. Passa, por-
em: 05 dez. 2010. tanto, a condicionar-se ao bem-estar social e a determinar que seu uso
Saboya, Renato. As armadilhas da definição do zoneamento e das densidades obedeça a determinações de ordem social e ambiental.
populacionais urbanas. Disponível em: http://urbanidades.arq.br/2010/02/as- Os artigos 182 e 184 cuidaram para tratar da propriedade urbana e
-armadilhas-da-definicao-do-zoneamento-e-densidades-urbanas/. 2010. Aces- rural, respectivamente, indicando, em linhas gerais o que seria conside-
so em: 05 jan. de 2011. rado função social. Essa função destaca-se como um princípio atrelado à
______,______. Zoneamento e Planos Diretores. 2007. Disponível em: observância do interesse coletivo, do uso socialmente justo e adequado
<http://urbanidades.arq.br/2007/11/zoneamento-e-planos-diretores/>. Aces- da propriedade a fim de que os indivíduos respeitem o meio onde vivem
so em: 20 jan. 2011. fazendo seu uso sustentável e dentro de parâmetros seguros para a sa-
SOUZA, Marcelo Lopes de. Mudar a Cidade: Uma Introdução Crítica ao Plane- dia qualidade de vida.
jamento e à Gestão Urbanos. 3ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. p.46.
1 Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor do Curso de Mestrado da UNI-
SANTOS e da UEA. Professor de cursos de Especialização em Direito Urbanístico e Ambiental.
2 Mestranda em Direito Ambiental da UNISANTOS. Professora do Curso de Especialização da
FAAP em Direito Imobiliário. Integrante da Associação Viva o Centro de São Paulo.

576 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 577
A propriedade urbana é objeto de variada gama de estudos a fim priedade não constitui uma instituição única, mas várias instituições di-
de se evidenciar funções sociais que, de fato, possam contribuir para a ferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares,
democratização de espaços, sempre dentro de parâmetros de justiça de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades.4
social. Além de ser um direito fundamental, a propriedade e a verifi- Nesse diapasão observa-se que a propriedade deixou de ser tema
cação de sua função social e ambiental estão nos princípios da ordem atinente unicamente ao Direito Civil. Presentemente os ramos perten-
econômica, consignados no art. 170 da CF. centes ao Direito Público com ela se importam diretamente, sobretudo
O principio sob análise impõe ao proprietário ou quem detenha a para imposição de tributos e a conformação delas em face do cumpri-
propriedade determinados deveres, além de comportamentos positivos mento insculpidos constitucionalmente. O instituto da propriedade ga-
ou mesmo negativos. Assim, reafirma-se a tese das Encíclicas Papais de nhou formas diferenciadas de tratamento positivando-se as exigências
que sobre toda propriedade pesa uma hipoteca social. que os legisladores consideram essenciais e criando normas lacunosas,
Nas palavras de Lucia Valle Figueiredo, “o direito de propriedade no caso da propriedade urbana, a fim de se estabelecer os desígnios
continua sendo assegurado. Entretanto também o esta o direito coletivo adequados por meio do plano diretor e da competência legiferante mu-
e/ou difuso, que é atendido pela função social da propriedade (art. 5º, nicipal. Assim, sem se desatar da teoria civilista a respeito dela, bus­cou-
incisos XXII e XXIII). Não contém mais, a democrática Constituição de se gerar uma intenção socializante, no sentido de que se deve empregar
1988, breve referência a função social da propriedade como se fora um a propriedade de acordo com uma função social.
‘cala-boca’ as tensões político-sociais.”3 O relevo dado ao cumprimento da função social foi tamanho que a
Este trabalho tem o intuito analisar a questão da função social da pro- sanção por sua inobservância seria a expropriação do bem, conforme
priedade, as restrições impostas pelo poder público e as diversas valora- deflui do parágrafo 4º do art. 182 e do art. 184 da CF, este último re-
ções dadas diante das necessidades atuais. Também se verificará a ques- ferente a propriedade urbana. A importância ainda foi sublinhada pela
tão da efetividade das normas urbanísticas considerando os dez anos de repetição do principio no inciso II e III do art. 170 da Constituição. Não
promulgação e publicação do Estatuto da Cidade. Estariam os administra- obstante entendimentos no sentido de que a função social não diminui
dores públicos logrando efetivar ou mesmo construir um conceito sólido de a propriedade, ela condiciona seu uso a observância de fatores, sem os
função social ou simplesmente buscam cumprir a lei sem se deixar macular quais, podem gerar ônus ao proprietário a ponto de ate mesmo perder
por decisões que possam comprometer ou mesmo afetar sua figura pesso- o bem que possui.
al, não obstante necessárias aos imperativos de necessidade coletiva? O entendimento de Jose Afonso da Silva encontra respaldo nessa
teoria. Sua opinião e a de que a propriedade faz parte da estrutura do
direito e não é em si uma limitação ao direito de propriedade.5 Orlan-
2 – INTERFÊRENCIA NA PROPRIEDADE POR do Gomes parece seguir a mesma concepção ao afirmar ser o principio
MEIO DO PODER DE POLÍCIA da função social algo conectado a substancia do direito de propriedade,
gerando assim uma nova concepção do instituto.
A presente Constituição, seguindo os modelos constitucionais ante- Em que pesem opiniões de juristas que se debruçaram sobre o
riores, consagrou a proteção a propriedade em geral. Pode-se perceber tema, a verdade é que a função social limita de fato o uso da proprieda-
pelos dispositivos constitucionais a consagração modelos de proprieda- de. Normas e atos normativos de origens diversas condicionam a utiliza-
de: entre elas destacam-se a urbana e a rural. Cada qual possui trata- ção da propriedade à observância de determinados parâmetros, sem os
mento diferenciado quais se configura uma oposição ao que se poderia considerar seu uso
José Afonso da Silva afirma consagrar a Constituição a tese que se social. Constata-se, destarte, uma redução considerável ao anterior con-
desenvolveu especialmente na doutrina italiana, segundo a qual a pro-
4 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2009,
3 FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Malheiros, 2005, 281-282.
página 25. 5 Op. Cit.

578 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 579
ceito que simplesmente deixava o proprietário longe de gravames ou também uma interpretação conjunta com o art. 225 da CF que deter-
imposições. A propriedade hoje está sujeita a uma ampla gama de nor- mina a manutenção de um ambiente ecologicamente equilibrado nesses
mas urbanísticas. Além delas, outras de ordem estética e de segurança mesmos centros urbanos. Isso conforma o princípio da função sócio-am­
publica, isso sem contar com aquelas oriundas de legislação ambiental, biental da propriedade que passa a ser o novo tratamento dado ao que
conferindo-lhe características que por vezes impede sua utilização efeti- se preconizava ser simplesmente função social.
va. Desta forma não se pode desvincular esse princípio da função sócio-
Certamente a propriedade não perdeu suas características civilistas. am­biental da propriedade fortemente influenciado pelo princípio do de-
Existem garantias constitucionais e legais em prol de sua conservação senvolvimento sustentável. Este sem dúvida é o ponto de congruência
e manutenção. Contudo, diante do quadro social existente no planeta, entre economia, normas jurídicas e proteção ambiental. A partir dessa
não há mais lugar para a concepção privatistica pura, a qual concebia concepção reconheceu-se nos recursos ambientais a base de produção
a propriedade como absoluta. A função social traduz-se em limitações e, ao mesmo tempo, a sua condição de recurso esgotável. Consequen-
que, a primeira vista, podem parecer óbices a serem transpostos ou temente se passou a buscar equilíbrio entre as atividades econômicas
mesmo impossíveis de serem superados. Por outro lado, reconhece-se e as intervenções ambientais decorrentes da produção humana. Esse
a necessidade de se ordenar a propriedade como um bem inserido em processo não poderia deixar afastado o poder público e seu poder de
uma coletividade que possui necessidades e valores próprios a ser por polícia, capaz de condicionar a atividade humana a padrões determina-
todos reconhecidos. dos e sustentáveis.
O atual conceito de poder de polícia, nas palavras de Diogo de Fi-
gueiredo Moreira Neto é aquele pelo qual o Estado “aplica restrições e
3 – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA condicionamentos legalmente impostos aos exercício das liberdades e
direitos fundamentais, tendo em vista assegurar uma convivência social
Como observado, a função social passou a ser referencia não ape- harmônica e produtiva.”6
nas para a propriedade rural, mas também a urbana. Ainda que se dis- No sentido econômico, confirmando a tese de necessidade de inter-
cutisse por tanto tempo a criação de normas urbanísticas capazes de venção para manutenção de padrões adequados, NUSDEO afirma que
sanear a crise habitacional e institucional relacionada ao meio ambiente “não tem restado a qualquer sociedade, do passado ou do presente, o
urbano, somente a partir da presente Constituição é que se abriu capi- mesmo se dando com as do futuro, outra alternativa senão a de, por
tulo especifico para a ordem urbana e outro relativo à proteção do meio alguma forma, organizar-se para o fim de estabelecer critérios aptos a
ambiente. escalonar prioridades no atendimento dos desejos de seus integrantes,
Com a Carta de Atenas influenciando fortemente a Constituição bra- ensejando um processo harmônico, coerente e consistente de tomada
sileira, impôs-se à propriedade urbana o cumprimento da função social de decisões, com o fito de, em suma, determinar quais e em que exten-
respectiva mediante o atendimento das exigências fundamentais de or- são algumas necessidades serão atendidas e quais quedar-se-ão sem
denação da cidade expressas no plano diretor, sob pena de parcela- atendimento.”7
mento ou edificação compulsórios, IPTU progressivo no tempo, desa- Essa é a faceta que se apresenta em termos de função social. Isto
propriação com pagamento por meio de TDP de emissão previamente quer dizer que houve avanço significativo pois se incorporaram outros
aprovada pelo Senado, com prazo de resgate até dez anos. itens que, a princípio, não eram considerados. O conceito, começou a
A Lei 10.257/2001 indica que a propriedade urbana deve cumprir ser lavrado há muito tempo. Somente com a criação do Estatuto da
as exigências de ordenação das cidades que consignar o plano diretor. Terra (Lei nº 4.504/64), mas propriamente no art. 2º daquela norma, é
Basicamente esse plano deve assegurar o atendimento das necessida-
6 MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Direito administrativo. Rio de Janeiro: Forense, 2005,
des básicas dos munícipes quanto à qualidade de vida, justiça social e p. 395.
ao desenvolvimento das atividades econômicas. Não se pode olvidar 7 NUSDEO, Fábio. Economia e meio ambiente. In Curso interdisciplinar de direito ambiental.
CAFFE ALVES, Alaor e PHILLIPI JR, Arlindo (coord) pág. 197.

580 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 581
que uma norma positiva passou a considerar o conceito em si, que antes trada para que a propriedade mantenha-se atrelada às necessidades
era apenas abordado por doutrinadores de direito agrário. cotidianas. Não há como considerar a propriedade afastada de uma
O poder de polícia é ferramenta eficaz para impor o pleno ordena- finalidade que não corresponda ao interesse comum e às boas práticas
mento das cidades. Ele se manifesta em normas do Poder Legislativo, relacionadas ao crescimento da cidade com o necessário respeito am-
atos normativos e materiais do Executivo. Se os municípios têm a tarefa biental, a partir da obediência às prescrições dos órgãos ambientais.
de, por meio do plano diretor, estabelecer normas que possam, de fato, Nesse sentido, diante dos sérios problemas urbanos gerados pela
indicar prioridades no âmbito sócio-ambiental das cidades, deve nele ausência de marcos de regulamentação, a Constituição outorgou com
esboçar prioridades de âmbito econômico e social, tendo em vista suas exclusividade aos municípios a competência de gerir a política urbana
necessidades mais prementes. O certo é que esse poder esteja inclinado municipal a fim de proporcionar aos munícipes condições propícias ao
a se articular, inclusive com a iniciativa privada, com o fito de impor a seu crescimento econômico e social. Essa atribuição é conseqüência do
vontade da coletividade em face de interesses privados sem vinculação tratamento que já estava sendo conferido às municipalidades por legis-
com o interesse local. lações infraconstitucionais e decisões judiciais. Nada mais houve do que
um reconhecimento no âmbito constitucional. A Constituição Federal
de 1988 produziu alterações e inovações elogiosas, a exemplo da con-
4 – O MUNICÍPIO E SUA MISSÃO INSTITUCIONAL sagração em larga escala de direitos e garantias fundamentais, direitos
sociais e políticos. Nada comparável, entretanto, ao tratamento dife-
Atualmente as mudanças globais acabam por gerar no município re- renciado prestado aos municípios, colocando estes na posição de entes
flexos que redundam em uma reavaliação das Cidades como entidades federativos e conferindo a eles missões de grandiosa importância tal
que devem buscar satisfazer as necessidades locais sem se descurar dos como a geração de normas capazes de garantir a efetiva função sócio-
habitantes como um todo, desafiando-as quanto á sua governabilidade am­biental das propriedades que se situam em sua circunscrição.
democrática, seus níveis de igualdade e suas condições de competitivi- Contudo, aspecto que não se pode olvidar, é que nem todos os mu-
dade. nicípios logram separar o que se quer defender por meio das orienta-
Os Municípios gozam de ampla autonomia política, financeira, le- ções preconizadas pelas normas ambientais e seus interesses econômi-
gislativa e administrativa e possuem atributos e condições suficientes cos. Existem disparidades e polaridade de interesses. Esse conflito não
para gerenciar e impulsionar o desenvolvimento sustentável da vida lo- é resolvido facilmente. Diante da crise institucional em que o Legislativo
cal buscando obter êxito em sua atuação por intermédio de ferramentas parece não mais oferecer oposição aos anseios do Executivo, deve-se
que garantam com eficácia e eficiência o cumprimento de sua gestão. fortalecer as entidades da sociedade civil capazes de comprovar o efeito
A melhora nos níveis de igualdade social é mais um desafio posto daninho de certos empreendimentos ou mesmo da alteração das nor-
nas mãos do administrador público local, que deverá ser analisado me- mas de zoneamento.
diante o binômio custo/benefício e os seus efeitos para a sociedade local
como um todo, considerando-se sempre o bem comum, pois resta de-
monstrado na prática, que o mal estar provocado pelas desigualdades 5 – FORTALECIMENTO DAS POSIÇÕES FAVORÁVEIS À
sociais se reflete no cotidiano da cidade. MANUTENÇÃO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL LOCAL
Se houver uma efetiva interação entre iniciativa privada e poder pú-
blico local o nível de vida dos habitantes da cidade certamente será ele- Diante dos elementos apresentados há uma verdadeira equação,
vado e se buscará traçar uma estratégia comum, supondo uma identifi- repleta de variáveis, que não se vislumbra uma solução a curto prazo.
cação em termos de objetivos, evitando a perda de esforços e ajudando É certo que o conceito da função social da propriedade evoluiu. Antes
numa maior eficiência no uso de recursos escassos. Isso sem perder a era tomado apenas pelo ponto de vista da ociosidade das propriedades
noção que a função sócio-ambiental municipal é a alternativa encon- e a possível especulação imobiliária que se poderia gerar tal situação,

582 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 583
bem como as perdas sociais decorrentes desse processo individualista o cumpra perderá a proteção jurídica. O principio civilístico não foi per-
de manutenção da propriedade. Os prejuízos conseqüentes seriam a ne- dido, apenas evoluiu de maneira a adequar-se às necessidades ambien-
cessidade de se expandir a cidade para fronteiras perifericas, obrigando tais e sociais.
a criação de infra-estrutura urbana nova, gerando novas despesas. 2 – O poder de polícia é o instrumento colocado à disposição do ad-
Não há antinomia entre as normas que tratam do tema. Todas são ministrador municipal para fazer valer as determinações da lei do plano
uníssonas ao afirmar que a função sócio-ambiental deve obedecer pa- diretor, meticulosamente criada a partir de necessidades locais e regio-
drões mínimos de sustentabilidade a fim de se garantir um aproveita- nais. As autoridades locais não podem negligenciar os instrumentos do
mento adequado sem se descurar do meio em que se insere aquela Estatuto da Cidade e sobretudo aquelas previstas em seu plano diretor
realidade. para fazer com que o interesse público, de fato, predomine sobre o pri-
Contudo, diante de um balanço dos dez anos de Estatuto da Cidade, vado.
pode-se concluir que a função sócio-ambiental da propriedade poderia 3 – As entidades federativas municipais receberam da Constituição
ter evoluído muito mais, talvez, se os administradores municipais não esse título e um rol de atribuições que não poderia negligenciar. Seu
temessem represálias de determinados grupos diante de determinados papel é o de defender o interesse coletivo por meio de medidas que,
atos que pudessem, enfim, acudir os mais necessitados sem macular o nem sempre, podem ser benéfica a todos. Contudo, a consagração do
meio ambiente. Não se trata de falta de verbas, unicamente, observa-se município em seu papel de ente federativo e como criador e administra-
que existe uma série de institutos que sequer foram empregados ou, dor dos elementos dispostos no plano diretor obrigam o administrador
se foram, não foram levados às últimas conseqüências. Seria de grande a atuar sempre em prol do interesse coletivo.
valia a execução de determinados atos em face do descumprimento da 4 – Os institutos do Estatuto da Cidade, arduamente construídos e
função social. O certo é que a propriedade ociosa, de fato, não é social- conquistados, devem ser empregados quando a situação exigir. Admi-
mente adequada. Isso talvez pudesse ser modificado a partir de deci- nistradores omissos que não tomam as medidas adequadas diante da
sões governamentais que levassem a cabo a tarefa de bem administrar. situação fática que enseja essa aplicação devem ser responsabilizados
A responsabilização de prefeitos e gestores negligentes ou mesmo por tal omissão.
que despendessem recursos quando, na verdade, bastaria a realização
de atos em prol da utilização de imóveis com infra-estrutura já pronta
(IPTU progressivo no tempo e desapropriação com TDP), pode ser uma REFERÊNCIAS
eventual solução. Isso leva o interprete a concluir que as normas da
Lei 10.257/2001 são boas. A função sócio-ambiental da propriedade FIGUEIREDO, Lucia Valle. Disciplina urbanística da propriedade. São Paulo: Ma-
está chegando a um termo quase ideal; contudo, a omissão executiva lheiros, 2005, página 25.
negligencia institutos tão arduamente conquistados e construídos com MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Direito administrativo. Rio de Janeiro:
a especial missão de se propiciar o adequado ordenamento urbano e Forense, 2005
o tratamento da propriedade de forma compatível com os ditames de NUSDEO, Fábio. Economia e meio ambiente. In Curso interdisciplinar de direito
sustentabilidade e economicidade. ambiental. CAFFE ALVES, Alaor e PHILLIPI JR, Arlindo (coord) pág. 197.
SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malhei-
ros, 2009
Conclusões articuladas:

1 – O conceito de propriedade cambiou-se durante a evolução so-


cial. O modelo atualmente adotado é o de que a propriedade só se
legitima desde que observado o cumprimento de sua função. Caso não

584 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 585
A função social da cidade e da
propriedade urbana enquanto
princípio orientador da
regulamentação do solo criado no
planejamento urbanístico
porto-alegrense
Fabio Caprio Leite de Castro1

Resumo: O presente estudo oferece uma reflexão sobre


o instituto do solo criado no plano diretor porto-alegrense
a partir do princípio da função social da cidade e da pro-
priedade urbana. Remonta-se inicialmente ao conceito de
urbanismo adotado no Brasil, dentro da perspectiva cons-
titucional e do Estatuto da Cidade, colocando-se em relevo
o princípio da função social da cidade e da propriedade ur-
bana. A partir desse fundamento, é realizada uma análise
do solo criado no plano diretor porto-alegrense enquanto
meio de controle da densidade urbana, responsável pelo
estímulo ou contenção do crescimento urbano. Busca-se, ao
final, analisar a classificação do solo criado em Porto Alegre
conforme o tipo de adensamento, bem como a possibilida-
de de o Poder Executivo suspender a venda de estoques
construtivos. A constitucionalidade desta medida pode ser
objeto de exame em cada caso, considerando-se a função
social da cidade e da propriedade urbana em conjunto com
outros princípios constitucionais.
Palavras-chave: Solo criado; função social da cidade e da pro-
priedade urbanada, planejamento urbano porto-alegrense.

1. Introdução

O presente artigo visa colocar em relevo o instituto da outorga one-


rosa do direito de construir ou solo criado, previsto no plano diretor
porto-alegrense, sob o ângulo da função social da cidade e da proprie-

1 Formado em Direito e Filosofia; doutor em Filosofia pela Université de Liège (Bélgica); advo-


gado; professor da PUCRS, da Uniritter e da AJURIS

586 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 587
dade urbana. Busca-se inicialmente remontar ao novo conceito de urba- como um processo de elaboração e atualização das diretrizes técnico-
nismo que vem sendo debatido no Brasil desde a Constituição Federal -políticas, acompanhadas de fiscalização e participação dos cidadãos.
de 1988, onde ganha destaque o princípio da função social da pro- Com base nesse novo modelo, busca-se explicitar os conflitos e formular
priedade. Em conjunto com outras esferas de garantias constitucionais, soluções discricionariamente negociáveis em torno do destino da cida-
como a do desenvolvimento econômico e social e a do meio ambiente de2. No entanto, muitos dos conceitos trazidos pela visão tradicional
equilibrado, a função social da cidade e da propriedade urbana orienta do planejamento resistem até os nossos dias, de modo que uma verda-
a política urbana e a aplicação dos seus institutos. deira concretização da mudança de perspectiva sobre o planejamento
O Estatuto da Cidade funciona como um instrumento legal mediador urbano depende de uma gestão democrática, da participação ativa dos
entre a Constituição Federal e os planos diretores dos Municípios, esta- cidadãos no processo de urbanização e da criação de instrumentos que
belecendo as diretrizes gerais da política urbana a partir do princípio da acelerem a dinâmica integradora dos diferentes setores da sociedade.
função social da cidade e da propriedade urbana, a ser observado na Tal reflexão não foi ausente no Brasil. Não foi com outro objetivo que
utilização dos instrumentos da política urbana. Fazem parte destes ins- o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), organizou em ou-
trumentos os denominados institutos jurídico-políticos, dentre os quais tubro de 1988 o primeiro Fórum Nacional para debater a política urba-
se encontra a outorga onerosa do direito de construir ou solo criado. na e a participação social na gestão municipal. Graças à articulação dos
Trata-se de um instrumento de controle da densidade urbana a ser movimentos sociais na constituinte federal, logrou-se incluir na Consti-
definido no plano diretor, podendo ser considerado como um dos veto- tuição cidadã o tratamento da gestão na cidade pela ótica do cumpri-
res de estímulo ou de contenção do crescimento urbano. Previsto no art. mento da função social. A Carta Magna de 1988 tornou-se um marco
53 do plano diretor porto-alegrense, o instituto caracteriza uma com- da abordagem democrática e social da propriedade no Brasil. A função
pensação financeira largamente utilizada nos grandes empreendimen- social da propriedade urbana e rural é, ao mesmo tempo, um mecanis-
tos da cidade. mo controlador dos reflexos econômicos e ambientais da propriedade,
bem como um critério orientador do desenvolvimento da sociedade e
do bem-estar social. Em outros termos, a função social impõe uma fi-
2. O novo conceito de urbanismo no Brasil e nalidade urbano-ambiental da qual a propriedade não pode descuidar,
a função social da propriedade orientando, assim, o desenvolvimento sustentável.
Esses dois aspectos da função social (enquanto definição das atribui-
No século XX, houve uma profunda transformação do conceito de ções da propriedade e enquanto vetor de desenvolvimento) ilustram pre-
urbanismo. Um momento substancial nesta transformação foi a elabo- cisamente o ponto de cruzamento de princípios e de valores administrati-
ração, em 1933, da Carta de Atenas, com base nos debates de várias vos, econômicos e ambientais. O novo conceito de urbanismo integrador
edições do Congresso Internacional de Arquitetura (CIAM). Oito anos tem na função social da propriedade (e da cidade) o seu pilar mais sólido,
depois, a Carta foi publicada por obra de Le Corbusier. Divulgou-se as- pois é através dela que se busca garantir os direitos fundamentais coleti-
sim uma perspectiva dogmática e polêmica acerca dos critérios para vos em consonância com o desenvolvimento equilibrado da cidade.
organização e gestão das cidades. O modelo corbusiano é considerado
atualmente como modelo de tradicional de planejamento urbano, carac-
terizado pela busca da racionalidade e da ordem e por uma separação 3. O Estatuto da Cidade e o planejamento urbano
rígida de funções como essência mesma do zoneamento urbanístico.
A esse modelo de planejamento, longamente criticado na con- Através da Constituição Federal, consagrou-se o direito urbanístico
temporaneidade, opõem-se outros modelos que buscam a justiça so- como ramo próprio do direito cuja sistemática é semelhante a outros
cial como prioridade máxima, através de uma melhor distribuição dos
2 Sobre uma clara oposição entre o modelo corbusiano e o modelo alternativo, ver: MA-
serviços públicos em infraestrutura, caracterizando-se o planejamento TIELLO, Alexandre. “Da Carta de Atenas ao Estatuto da Cidade: questões sobre o planejamento
urbano no Brasil”. Impulso, volume 17, n° 44, 2006, p. 43-54.

588 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 589
ramos, como da tributação, do trânsito, das licitações, da desapropria- de funções especializadas.5 Não é o objetivo estabelecer aqui uma crí-
ção, do meio ambiente e das finanças públicas. Em todos esses casos, tica à completude destas classificações, mas tão somente mostrar que
conforme afirma Victor Carvalho Pinto, o Município possui competência as cidades possuem funções preponderantes diversas. Estando a função
legislativa própria: social da propriedade urbana associada à função social da cidade, é
fundamental que um estudo geográfico, econômico, social e ambiental
“(...) os institutos e princípios são regulamentados em lei federal ou seja realizado para a elaboração do plano diretor do Município. É neste
estadual, cabendo ao Município apenas a sua aplicação concreta. (...) ponto que o Estatuto da Cidade possui uma importância fulcral.
Os Municípios dispõem de competência genérica para suplementar No seu art. 2°, o Estatuto da Cidade fornece as diretrizes gerais
a legislação federal e estadual, o que inclui o direito urbanístico. Esta
para ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
competência pode ser exercida para detalhar leis já existentes ou
para suprir omissões das demais esferas da federação.”3 da propriedade urbana, trazendo em seu bojo uma perspectiva que visa
fundamentalmente garantir o direito à cidade sustentável por meio de
Nesse sentido, o Estatuto da Cidade, Lei n° 10.257/01, sancionada uma gestão democrática, assegurando a cooperação entre os governos
em 10 de julho de 2001, cumpre um papel essencial no sistema jurídico e a integração das atividades urbanas e rurais. O próprio conceito de
brasileiro ao regulamentar os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, meio ambiente é tratado de forma ampla, “natural e construído”, cons-
estabelecendo as diretrizes gerais da política de desenvolvimento urba- tituído igualmente pela natureza e pelo patrimônio cultural, histórico,
no, no plano da cidade. artístico, paisagístico e arqueológico. O Estatuto da Cidade porta ain-
A função social da propriedade possui um sentido especial quando da uma importante diretriz no tocante à simplificação da legislação do
se trata de política de desenvolvimento urbano, pois ela deve ser obser- parcelamento, uso e ocupação do solo e das normas edilícias, visando
vada através da cidade, ou seja, das funções sociais da cidade, como facilitar o aumento da oferta dos lotes e das unidades habitacionais.
determina o art. 182, “caput”, da Constituição Federal. Ademais, a im- Além das diretrizes gerais, o Estatuto da Cidade estabelece os instru-
posição do plano diretor aos Municípios com mais de 20 mil habitantes, mentos da política urbana para atender à função social da cidade com
no parágrafo primeiro, e a vinculação da função social da propriedade vistas ao seu desenvolvimento urbano-ambiental sustentável e equili-
urbana às exigências do plano diretor, no parágrafo segundo do mesmo brado. O plano diretor assume aqui um papel central. No seu bojo são
artigo, indicam, precisamente, o modo mesmo como o princípio deve traçados os princípios e as estratégias de desenvolvimento, o sistema de
ser concretizado. A compreensão da função social da propriedade urba- planejamento e o plano regulador do regime urbanístico. Além disso, a
na remete a um horizonte de sentido mais complexo que é a cidade. lei prevê de forma não exaustiva alguns instrumentos, como os planos
Na perspectiva da geografia urbana, a cidade possui funções urba- nacionais, regionais e estaduais; planejamento regional e municipal (no
nas e não-urbanas, classificadas segundo critérios de base econômica. qual se enquadra o plano diretor); os institutos tributários e financeiros;
Normalmente, as funções urbanas dizem respeito à produção, ao co- os institutos jurídicos e políticos e o Estudo prévio de impacto ambiental
mércio e ao fornecimento de bens em uma relação de integração com as (EIA) e Estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).
povoações externas, onde a cidade serve como polo.4 Na tradicional Dentre esses instrumentos, destacam-se os institutos jurídicos que
classificação de Harris e Ullman, as cidades são divididas economica- desempenham um papel fomentador do desenvolvimento enquanto ins-
mente em três categorias, dependendo do tipo predominante de fun- trumentos do planejamento imobiliário, previstos no art. 4°, V,6 pois
ção: 1) cidades-núcleos, 2) cidades centros de transporte e 3) cidades alavancam novas possibilidades de investimento urbanístico com refle-
xos imediatos para a cidade.
Como foi afirmado anteriormente, o princípio da função social da
3 PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Propriedade. São propriedade é essencial para a compreensão do novo conceito de urba-
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 135-136.
4 MAYER, Harold M. “Perspectiva da Geografia Urbana”. HAUSER, Philip M; SCHNORE, Leo F.
(Org.). Estudos de urbanização. Trad. de Eunicie R. Ribeiro Costa. São Paulo: Pioneira, 1976, p. 76. 5 HARRIS, Chauncy D.; ULLMAN, Edward L. apud MAYER, Harold M. (op. cit., p. 80).
(75-104) 6 Normalmente regulados pelo plano diretor.

590 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 591
nismo no Brasil e possui dois sentidos diferentes e que se entrecruzam, TRIBUTO. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE CRIAR SOLO. DIS-
o primeiro de cunho regulador-restritivo e o segundo voltado para o de- TINÇÃO ENTRE ÔNUS, DEVER E OBRIGAÇÃO. FUNÇÃO SOCIAL DA
senvolvimento urbano-ambiental da propriedade em uma relação equili- PROPRIEDADE. ARTIGOS 182 E 170, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRA-
SIL. 1. SOLO CRIADO Solo criado é o solo artificialmente criado pelo
brada com o todo que é a cidade. Fazendo-se uma análise da finalidade
homem [sobre ou sob o solo natural], resultado da construção prati-
do plano diretor, pode-se perceber que ele se sedimenta no cruzamento
cada em volume superior ao permitido nos limites de um coeficiente
dos dois sentidos mencionados, ora impondo limites à cidade, ora esta- único de aproveitamento. 2. OUTORGA ONEROSA DO DIREITO DE
belecendo critérios para o seu desenvolvimento sustentável. CRIAR SOLO. PRESTAÇÃO DE DAR CUJA SATISFAÇÃO AFASTA OBS-
A questão que se pretende aqui enfocar corresponde ao modo como TÁCULO AO EXERCÍCIO, POR QUEM A PRESTA, DE DETERMINADA
a função social da propriedade pode alicerçar os instrumentos do planeja- FACULDADE. ATO NECESSÁRIO. ÔNUS. Não há, na hipótese, obri-
mento imobiliário, em especial a outorga onerosa do direito de construir. gação. Não se trata de tributo. Não se trata de imposto. Faculdade
atribuível ao proprietário de imóvel, mercê da qual se lhe permite o
exercício do direito de construir acima do coeficiente único de apro-
veitamento adotado em determinada área, desde que satisfeita pres-
4. O solo criado no plano diretor porto-alegrense
tação de dar que consubstancia ônus. Onde não há obrigação não
pode haver tributo. Distinção entre ônus, dever e obrigação e entre
A outorga onerosa do direito de construir está prevista no art. 28 e ato devido e ato necessário. 3. ÔNUS DO PROPRIETÁRIO DE IMÓVEL
seguintes do Estatuto da Cidade e corresponde ao conceito de solo cria- URBANO. Instrumento próprio à política de desenvolvimento urbano,
do, ou seja, à criação de áreas adicionais de piso utilizável não apoiadas cuja execução incumbe ao Poder Público municipal, nos termos do
diretamente sobre o solo.7 Tecnicamente, trata-se da área edificável disposto no artigo 182 da Constituição do Brasil. Instrumento volta-
na qual o direito de construir é exercido acima do coeficiente de apro- do à correção de distorções que o crescimento urbano desordenado
veitamento básico adotado, e que o proprietário pode adquirir do Mu- acarreta, à promoção do pleno desenvolvimento das funções da ci-
dade e a dar concreção ao princípio da função social da propriedade
nicípio, nas condições fixadas pelo plano diretor para a respectiva zona.
[art. 170, III da CB]. 4. Recurso extraordinário conhecido, mas não
É o plano diretor que baliza a disponibilidade e os limites dos índices provido.”
construtivos que se tornam objeto de comercialização. (RE 387047 / SC, Tribunal Pleno, Relator: Min. EROS GRAU, DJ 02-
A outorga onerosa do direito de construir é um dos instrumentos 05-2008).
de controle da densidade urbana, podendo ser considerado como um
dos vetores de estímulo ou de contenção do crescimento urbano. Em “Tributário. Parcela do solo criado: Lei municipal nº 3.338/89. Natu-
outros termos, trata-se de um instrumento jurídico-político à disposição reza jurídica. 1. Não é tributo a chamada parcela do solo criado que
do proprietário, nos limites enquadrados pelo plano diretor. representa remuneração ao Município pela utilização de área além do
limite da área de edificação. Trata-se de forma de compensação finan-
Cabe afastar a errônea interpretação segundo a qual a outorga one-
ceira pelo ônus causado em decorrência da sobrecarga da aglome-
rosa seria um tributo. No próprio Estatuto da Cidade, o instituto en-
ração urbana. 2. Recurso extraordinário a que se nega provimento.”
contra-se apartado dos institutos tributários e financeiros. Em decisão (RE 226942 / SC, Primeira Turma, Relator(a): Min. MENEZES DIREITO,
proferida em 2008, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se acerca 15-05-2009)
do tema, alicerçando entendimento de que o solo criado não é tributo
porque não constitui obrigação. O solo criado possui, portanto, a natureza de compensação financei-
ra pelo ônus causado em decorrência de aumento da aglomeração urba-
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI N. 3.338/89 DO MUNICÍPIO DE na. No plano diretor porto-alegrense, instituído pela Lei Complementar
FLORIANÓPOLIS/SC. SOLO CRIADO. NÃO CONFIGURAÇÃO COMO
n° 434/99, o solo criado é assim definido:
7 DORNELAS, Henrique Lopes. Aspectos jurídicos da outorga onerosa do direito de construir.
Solo criado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003. Disponível em: <http://jus.uol. Art. 53. O Solo Criado é a permissão onerosa do Poder Público ao
com.br/revista/texto/4483>. Acesso em: 31 ago. 2011.

592 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 593
empreendedor para fins de edificação em Área de Ocupação Inten- negativo na infraestrutura”. Essa disposição é de extrema importância
siva, utilizando-se de estoques construtivos públicos, e rege-se pelo para uma compreensão global do problema em questão, pois ainda que
disposto na Lei Complementar n° 315, de 6 de janeiro de 1994. o plano diretor contenha o permissivo para a negociação dos índices
construtivos, o Poder Executivo pode discricionariamente suspendê-la
O plano diretor foi alterado pela Lei Complementar n° 646/2010, por decreto municipal, criando uma situação de insegurança jurídica.
que passou a distinguir, com a criação do art. 53-A, o solo criado de pe- Abre-se, assim, uma janela para decisões políticas que podem acabar
queno adensamento, de médio adensamento, de grande adensamento atentando contra o Estado democrático de direito, colocando-se a sua
e não adensável. A medida do adensamento é feita conforme a identifi- constitucionalidade em suspeita.
cação da Unidade de Estruturação Urbana (UEU) ou quarteirão, segun- A aquisição do solo criado é uma realidade diária dos grandes negó-
do os índices de aproveitamento previstos no Anexo 6 do próprio plano cios imobiliários, pois é nesse campo que se busca viabilizar a aprovação
diretor. de grandes empreendimentos. A função social da propriedade é aqui o
O solo criado de pequeno adensamento corresponde a áreas que princípio fundante da necessidade de uma orientação acerca dos índi-
não causam impacto significativo nos equipamentos e na paisagem ur- ces de construção negociáveis, conforme o modelo urbanístico-ambien-
bana, são disponíveis em todas as UEUs, podem ser adquiridos sem a tal que se busca conferir ao desenvolvimento da cidade. Não se pode
necessidade de licitação. Já o solo criado de médio adensamento cor- deixar de observar que a negociação do solo criado pode impulsionar o
responde a áreas adensáveis que causam baixo impacto nos equipa- desenvolvimento e transformar a paisagem urbano-ambiental da cida-
mentos e na paisagem urbana, sendo disponíveis conforme a tabela do de, tal como ocorreu em bairros da denominada Cidade Radiocêntrica,
Anexo 6 e nos quarteirões liberados. O solo criado de grande adensa- como o Menino Deus8.
mento diz respeito às áreas adensáveis que podem causar impacto nos Há inúmeros casos, porém, em que a aquisição do solo criado é
equipamentos e na paisagem urbana, cuja disponibilidade está prevista impossibilitada, o que representa um obstáculo inviabilizador do projeto
no Anexo 6, podendo ser adquirido mediante licitação e aprovação de da construção.
EVU. Por fim, o solo criado não adensável corresponde a áreas incenti- Cabe, então, uma última reflexão. O princípio da função social da
vadas e complementares à atividade principal, que não causam impac- propriedade sustenta a necessidade de um plano diretor, da organiza-
to, estando disponíveis em todas as UEUs com aquisição direta. ção da cidade com vistas ao seu desenvolvimento urbano-ambiental. É
Merece destaque que a nova Lei Complementar não modificou a o princípio que está na base do plano diretor. Todavia, pode-se cometer
atribuição do Poder Público conferida pelo art. 53, §1°, do plano di- o equívoco hermenêutico de considerar que o fato de o princípio se
retor. Por meio decreto, o Poder Executivo pode suspender as vendas concretizar através da política urbana municipal justificaria por si só a
de estoques construtivos, em caso de se constatar impacto negativo na constitucionalidade e aplicação do plano diretor, qualquer que seja o
infraestrutura decorrente da aplicação do Solo Criado ou mesmo diante seu conteúdo. Contudo, o Anexo 6 do plano diretor não atribui, por si
da inviabilidade da sua aplicação: só, constitucionalidade ao uso político do instituto, ainda mais consi-
derando a previsão do art. 53, §1°, do plano diretor porto-alegrense.
Art. 53, §1°. As vendas de estoques construtivos serão imediatamen-
Todo mecanismo regulador e limitador deve passar pelo exame de cons-
te suspensas mediante decreto do Poder Executivo, em caso de se
constatar impacto negativo na infra-estrutura decorrente da aplicação 8 Na Dissertação de Mestrado “O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do ins-
do Solo Criado, ou mesmo quando se verifique a inviabilidade de sua trumento jurídico-urbanístico”, Andrea Teichmann Vizzotto faz uma análise concreta de casos onde
a aplicação do solo criado permitiu verdadeira renovação da paisagem urbana de Porto Alegre,
aplicação em face dos limites estabelecidos para as Unidades de Es-
dentre eles o do Bairro Menino Deus, que evoluiu ao longo dos últimos anos para uma das regiões
truturação Urbana ou quarteirão, nos termos do art. 67. mais adensadas da cidade. (p. 149). A autora desenvolveu o seu trabalho a partir de resultados
obtidos com o exame da UEE n° 66 e 68, especificamente com o estudo dos imóveis situados na
Rua Gonçalves Dias, n° 170, n° 319, n° 342 e n° 450, bem como da Avenida Ganzo, n° 695, e
Trata-se de uma discricionariedade criada pelo plano diretor sem da Av. Getúlio Varfas, n° 901 (p. 160 e seguintes). (VIZZOTTO, Andrea Teichmann. O solo criado
apresentar nenhum critério objetivo na definição da expressão “impacto em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do instrumento jurídico-urbanístico. Orientação de Décio
Rigatti. Porto Alegre: UFRGS, Faculdade de Arquitetura, 2008, 230 p.)

594 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 595
titucionalidade. Até mesmo porque a função social da propriedade deve controle da densidade urbana a ser definido no plano diretor, orientado
ser equacionada com outros princípios vinculados ao desenvolvimento pela função social da cidade e da propriedade urbana, podendo ser
econômico e social, sem descuidar do equilíbrio do meio ambiente. O considerado como um dos vetores de estímulo ou de contenção do cres-
Poder Público não poderá, deste modo, atentar desarrazoadamente e cimento urbano;
desproporcionalmente contra o desenvolvimento urbano ou contra a 5) Em Porto Alegre, o solo criado é constituído pelo solo criado de
proteção ao meio ambiente, sob pena de inconstitucionalidade da me- pequeno adensamento, de médio adensamento, de grande adensamen-
dida legislativa. to e pelo solo criado não adensável. A previsão dos índices de aproveita-
A suspensão da venda de estoques construtivos pelo Poder Execu- mento pelo Anexo 6 do plano diretor não atribui por si só constituciona-
tivo, nos termos do art. 53, §1°, do plano diretor, poderá, dessa forma, lidade à utilização do instituto nas negociações imobiliárias, sobretudo
caracterizar inconstitucionalidade, dependendo, em cada caso, de um considerando a hipótese discricionária do art. 53, §1°, do plano diretor,
exame dos critérios adotados pelo Município ao aprovar o decreto sus- que permite ao Poder Executivo a suspensão da venda de estoque cons-
pensivo. A constitucionalidade das regras atinentes ao solo criado pode trutivo mediante decreto. A constitucionalidade da venda de estoques
ser avaliada em cada empreendimento, em conjunto com os demais construtivos pode ser objeto de análise em cada empreendimento.
princípios vigentes na Constituição Federal.

ReferênciaS
5. Conclusões
DORNELAS, Henrique Lopes. Aspectos jurídicos da outorga onerosa do direito
O estudo do instituto do solo criado no plano diretor porto-alegren- de construir. Solo criado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 128, 11 nov. 2003.
se a partir do princípio da função social da cidade e da propriedade Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4483>. Acesso em: 31 ago.
urbana permite apresentar as seguintes conclusões: 2011.
1) O novo conceito de urbanismo adotado no Brasil obedece a um MATIELLO, Alexandre. “Da Carta de Atenas ao Estatuto da Cidade: questões
modelo urbanístico que coloca em primeiro plano a justiça social e bus- sobre o planejamento urbano no Brasil”. Impulso, volume 17, n° 44, 2006, p.
ca uma compreensão sistêmica da cidade, adotando a perspectiva da 43-54.
gestão democrática e da criação de instrumentos que integram os seus MAYER, Harold M. “Perspectiva da Geografia Urbana”. HAUSER, Philip M; SCH-
mais variados setores; NORE, Leo F. (Org.). Estudos de urbanização. Trad. de Eunicie R. Ribeiro Costa.
2) A Carta Magna de 1988 constitucionaliza o direito urbanístico, São Paulo: Pioneira, 1976, p. 75-104.
trazendo em seu bojo um princípio regulador e orientador a ser observa- PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico – Plano Diretor e Direito de Proprie-
do no âmbito do planejamento urbano, qual seja, o princípio da função dade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
social da cidade e da propriedade urbana, concretizando o modelo an- PORTO ALEGRE, Lei Complementar n° 434 de 1° de dezembro de 1999, atu-
teriormente mencionado; alizada e compilada até a Lei Complementar n° 667, de 3 de janeiro de 2011.
3) Com as diretrizes do Estatuto da Cidade, fundadas no princípio da VIZZOTTO, Andrea Teichmann. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a apli-
função social da cidade e da propriedade urbana, estabeleceu-se uma cação do instrumento jurídico-urbanístico. Orientação de Décio Rigatti. Porto
mediação legislativa entre a Constituição Federal e os planos diretores Alegre: UFRGS, Faculdade de Arquitetura, 2008, 230 p.
dos Municípios, onde são determinadas as diretrizes gerais e os instru-
mentos a serem adotados na política urbana dos Municípios;
4) O solo criado, que é uma compensação financeira pelo exercício
do direito de construir acima do coeficiente de aproveitamento bási-
co adotado pelo Município, funciona como um dos principais meios de

596 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 597
Projetos especiais – entre as
intenções e os resultados
Gladis Weissheimer1
Maria Tereza Fortini Albano2

Resumo: O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Am-


biental de Porto Alegre, assumiu o desafio de pensar na
produção da cidade para além da normas, introduzindo o
Capítulo V - Projetos Especiais na LC 434/99. A vigência do
Estatuto da Cidade a partir de 2001 e a determinação de
realizar uma Conferência de Avaliação do Plano Diretor a
cada quatro anos, definiram a necessidade de revisão deste
capitulo. Este trabalho pretende avaliar este processo, ini-
ciado em 2003 e finalizado recentemente, considerando o
conteúdo proposto pelo Grupo Técnico específico sobre o
tema e os resultados obtidos pelas alterações efetivamente
realizadas na lei.
Palavras chaves – Plano Diretor - Projeto Especial – Avalia-
ção de Impacto Urbanístico.

Considerações Retrospectivas

No ano de 1999 a cidade de Porto Alegre passa a contar com o


seu PDDUA - Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental, que
representou o “acordo possível” daquele momento sobre um projeto de
cidade pretendido para as próximas décadas.

1 Gladis Weissheimer -  Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1989. Técnica da


Secretaria do Planejamento Municipal (SPM) da Prefeitura Municipal de Porto Alegre desde 1996.
Coordenadora do Grupo de Trabalho da elaboração da Lei do Estudo de Impacto de Vizinhança em
Porto Alegre. Coordenou em 2004 o GT1 da Revisão do PDDUA - Projetos Especiais de Impacto
Urbano e Estudo de Impacto de Vizinhança. Coordena o Grupo de Trabalho para a Implementação
do Monitoramento do Desenvolvimento Urbano  e integra a equipe encarregada da  constituir base
de dados para o Sistema de Informações Georrefenciadas do município de Porto Alegre.
2 Maria Tereza Fortini Albano -  Arquiteta e Urbanista graduada pela UFRGS em 1976. Mestre
em Planejamento Urbano e Regional pelo PROPUR – UFRGS em 2000. Pós- graduação  em Forma-
ção Ambiental pela FLACAM em 1992,  Fórum Latino Americana de Ciências Ambientais - La Plata
– Argentina; Especialização em Desenho Urbano pelo PROPUR – UFRGS em 1985; Especialização
em Planejamento Urbano pelo  PROPUR – UFRGS em 1977. Técnica SPM desde 1979. Coordenou
em 2003 o GT1- Revisão do PDDUA - Projetos Especiais de Impacto Urbano e Estudo de Impacto
de Vizinhança, integra Grupo de Trabalho da elaboração da Lei do Estudo de Impacto de Vizinhança
em Porto Alegre. 

598 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 599
É o resultado das atividades que se desenvolveram desde 19933, e a necessidade de pautar o planejamento pelo reconhecimento da di-
quando a sociedade foi chamada para pensar a Porto Alegre do futuro versidade sócio-econômica e espacial urbana, carecendo, portanto, de
dentro de uma perspectiva de participação social ampliada em relação novos instrumentos para a sua efetivação.
àquela conquistada pelo Orçamento Participativo, iniciado em 1989. O processo de discussão do plano avançou também para o reconhe-
Desde o final da década de 90 do último século, mudanças consti- cimento cada vez maior do planejamento como processo político, que
tucionais significativas trouxeram uma nova Constituição Federal para o trata com interesses muito distintos capazes de interferir no comando
Brasil e novas constituições estaduais e leis orgânicas municipais para da tomada de decisão sobre a cidade.
muitos dos estados e municípios brasileiros, referenciando uma nova Visões diferenciadas sobre o que é qualidade de vida, acesso à cida-
postura para o planejamento e gestão das cidades. de e justiça social são apenas algumas das variáveis envolvidas, na pro-
Muito antes da década de 90, a preocupação com a questão am- posição de um plano articulado às diversas necessidades de diferentes
biental se consolidava aos poucos em marcos legais intimamente rela- grupos na cidade.
cionados com a problemática do desenvolvimento urbano. Um plano estratégico, regulador e instrumental foi a proposta para
Entre tantas preocupações do plano diretor de Porto Alegre, a inclu- avançar do planejamento que tradicionalmente se baseava no binômio
são de um conteúdo bastante inovador associado às análises de empre- “comando-controle” para um planejamento capaz de incorporar a lógica do
endimentos e atividades causadores de impacto substitui conteúdos de “previne-corrige”, aperfeiçoando a experiência iniciada com as avaliações
legislações anteriores que se referiam a análises de empreendimentos de Estudos de Viabilidade Urbanística – EVUs 7, propostos desde 1979.
“caso a caso” 4 em função das repercussões das atividades a serem Embora a cidade já tivesse uma prática bastante acentuada com
implantadas na cidade ou a ”análises de propostas diferenciadas” que muitos dos instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade – Lei Fede-
já na legislação de 19875 foram introduzidas por apenas um artigo na ral 10257, a aprovação deste marco legal em 2001, como fruto de uma
lei do plano diretor possibilitando aos interessados, propor o que mais conquista histórica de movimentos sociais, trouxe à tona na primeira
adiante se chamariam de Projetos Especiais, merecedores de um capí- Conferência de Avaliação do PDDUA, em 20038, uma temática especí-
tulo próprio no texto da lei a partir de 1999. fica envolvendo o instrumento Projeto Especial associada ao Estudo de
Para Porto Alegre, a discussão do plano diretor aprovado em 1999, Impacto de Vizinhança - EIV do Estatuto da Cidade.
representou a incorporação de um novo enfoque de planejamento que, Como decorrência também se tratou da Operação Urbana Consor-
embora ainda mantenha traços de um planejamento normativo, fortale- ciada - OUC que tinha, por similaridade de conceito, um instrumento
ce, entre outros aspectos, a ênfase na gestão democrática da cidade6 correspondente no plano de Porto Alegre denominado de Projeto Espe-
cial de Impacto de 2º Nível.
3 Entre 1993 e 1999, atividades envolvendo audiências públicas, eventos de capacitação, O trabalho desenvolvido com vistas à 1ª Conferência de Avaliação
formação de Grupos de Trabalho em regiões da cidade, realização de reuniões e formação de fóruns
de discussão dentro e fora da Prefeitura Municipal, contratação de consultorias especializadas em do PDDUA considerou os seguintes pressupostos:
temáticas selecionadas com os pontos de conflito do plano da cidade, Congressos da Cidade e de-
bates públicos, entre tantas outras representaram o espaço de discussão entre os diversos atores • compatibilizar conteúdos do Capítulo sobre Projeto Especial do
sociais. PDDUA com as disposições do Estatuto da Cidade sobre EIV e OUC
4 Expressão associada ao plano de 1979.
5 Trata-se do artigo 84 da Lei Complementar 43/79, introduzido pela Lei Complementar 7 Os EVUs se constituíram na primeira forma de avaliação de impacto urbanístico em Porto
158/87. Alegre. Através de expedientes administrativos estes estudos ingressam na prefeitura e são avalia-
6 O PDDUA de 1999 introduz uma estratégia específica, denominada de Sistema de Planeja- dos pelo Poder Público em função de impactos que demandam ou não estudos específicos de ava-
mento para aperfeiçoar a questão da gestão democrática da cidade. Divide a cidade em Regiões liação de impacto. O EIV com respaldo em lei federal é proposto como um estudo mais abrangente
de Gestão do Planejamento, cria mecanismos de participação social a nível global, regional e local, que engloba sob a forma de conteúdo legal um conjunto de variáveis a examinar no contexto do
propõe programas e projetos que enfatizam a necessidade de estruturar sistemas de suporte à conceito de função social expresso pelo Estatuto da Cidade. É um estudo subsidiário à avaliação da
decisão como o Sistema de Informações e o Sistema de Avaliação do Desempenho Urbano. Além proposta urbanística, não se confundindo com ela.
disto, o PDDUA propõe um Sistema Municipal de Gestão do Planejamento - SMGP onde o Conselho 8 A Conferência de Avaliação realizada de quatro e quatro anos é uma das exigências da
Municipal do Desenvolvimento Urbano Ambiental - CMDUA e os Fóruns Regionais de Planejamento proposta do SMGP. Até a presente data, foi realizada apenas uma conferência com discussão pro-
representam uma estrutura fundamental para a discussão das diversas questões da cidade. longada até 2010 quando foi aprovada a lei 646/2010 que altera a lei 434/99.

600 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 601
partindo da experiência acumulada com a implementação de instru- des associadas tanto ao processo de gestão da discussão e aprovação
mentos similares pré-existentes na legislação de Porto Alegre; dos empreendimentos, quanto aos objetivos a serem alcançados, ou seja,
• agregar maior clareza conceitual e metodológica à temática dos pro- o instrumento foi muito mais usado para promover a flexibilização pura e
jetos especiais, aprimorando conceitos e objetivos, corrigindo distor-
simples da lei, do que para qualificar o projeto de setores urbanos.
ções de interpretação e valorizando a sua potencialidade como instru-
A movimentação da comunidade para introduzir como temática da
mento de projetação ambiental da cidade;
• revisar a classificação de empreendimentos e atividades passíveis de 1ª Conferência de Avaliação do PDDUA a revisão do modelo voumétrico
projeto especial conforme o grau de impacto, analisando os parâme- previsto pelo plano diretor é, por si só, um aspecto bastante relevante
tros a partir dos quais as proposições passam a necessitar de análises da discussão sobre o Projeto Especial.
com níveis diferentes de exigências em função dos seus impactos; Embora a construção do PDDUA tenha se dado em clima de bastan-
• enquadrar situações que definem obrigatoriedade de análise de im- te participação social - mais de entidades do que da população residen-
pacto ou possibilidade de flexibilização de dispositivos legais. te em diversos locais, a compreensão do que estava proposto só se deu
no momento em que a materialização daquilo que passou a se chamar
O GT1 - Grupo de Trabalho designado para coordenar a discussão so- “modelo paliteiro”, com prédios de bastante altura despontando na pai-
bre esta temática assumiu a estratégia de aproximar as avaliações de Pro- sagem de forma aleatória em qualquer parte da cidade, revelou que a
jeto Especial às disposições do Estatuto da Cidade sobre o EIV e a OUC. lógica do novo plano não tinha considerado as expectativas de todos e
Com os conteúdos do EIV e da OUC, expressos em legislação federal, um não tinha dado relevância no seu modelo de estímulo à renovação às ca-
conjunto mais abrangente de variáveis a considerar, trazia a possibilidade racterísticas ambientais da paisagem construída da cidade pré-existente
de avançar para avaliações mais completas de questões como a da pai- com todos os seus valores de patrimônio cultural. Uma verdadeira ava-
sagem urbana, a do patrimônio ambiental, no seu sentido mais amplo9, a lanche de críticas à transformação da paisagem da cidade fortaleceu, a
do adensamento da cidade10 e a da valorização imobiliária11. partir da 1ª Conferencia de Avaliação do PDDUA, um movimento em
Alguns destes aspectos já possuíam um grau satisfatório de deta- defesa das Áreas de Interesse Cultural, apresentadas como proposta
lhamento e metodologias de análise adequadas, embora com enfoques apenas neste evento de 2003.
ainda bastante setoriais. Constitui exemplo, o caso da mobilidade ur- De fato, entre 1993 e 1999, período de discussão e aprovação do
bana, que, com avaliações bastante pertinentes sobre esta política se- PDDUA, entre os grupos de pressão mais representados nos diversos
torial, demonstrava necessidade de ampliar o grau de transversalidade fóruns que se sucederam no processo de formulação do plano, estavam
entre as análises sobre as diversas áreas do conhecimento envolvidas na a construção civil e o movimento da reforma urbana. Ambos, com seus
geração de impactos positivos e negativos sobre a futura configuração objetivos bem distintos, deixaram suas marcas no PDDUA.
sócio-espacial dos diferentes territórios urbanos. Hoje, com doze anos de PDDUA em vigor há de se avançar para al-
Na sua essência o Projeto Especial de 1999 foi concebido como uma guns questionamentos importantes sobre os processos de planejamento
alternativa para reforçar a idéia de projetar a cidade para além das nor- e gestão na cidade de Porto Alegre.
mas, considerando peculiaridades que a natureza generalista da lei não é Neste sentido, se aproveita a oportunidade de um congresso que
capaz de reconhecer. No entanto, a análise das situações que tramitaram tem como objetivo ressaltar as conquistas de dez anos de implementa-
no executivo desde a sua implementação acabou identificando fragilida- ção da Lei 10257/01 para refletir de maneira ampla sobre os desafios
que estão postos para a implementação de instrumentos na lógica das
9 O patrimônio ambiental foi considerado em seu sentido amplo, considerando não só as
questões do ambiente natural, mas também do ambiente cultural envolvendo o patrimônio edifica- diretrizes gerais de política urbana explicitadas no artigo segundo do
do, as ambiências urbanas, os espaços referenciais da cidade com suas práticas sociais. Estatuto da Cidade.
10 Uma preocupação com o adensamento urbano, não só em termos de densidade popula- Assim, o trabalho que ora se apresenta pretende mostrar um pouco
cional, mas também com relação à densidade de edificação, passa a ser um fator de avaliação dos
impactos ambientais na paisagem construída de uma cidade. da trajetória da discussão do Projeto Especial do PDDUA incluindo sua
11 A variável valorização imobiliária foi sempre uma das mais polêmicas na discussão envolven- relação com a inserção e regulamentação do EIV em Porto Alegre.
do, por exemplo, o adensamento da cidade.

602 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 603
Nos tópicos seguintes serão explicitados os principais aspectos IV - solução dos impactos urbano-ambientais decorrentes da propos-
desta trajetória que culminou em alterações significativas no capítulo ta;
sobre Projeto Especial e, recentemente, na aprovação da proposta de V - qualificação da paisagem urbana, reconhecendo suas diversidades
e suas configurações sócio-espaciais; e
EIV pelo Conselho Municipal do Desenvolvimento Urbano Ambiental –
VI - compatibilização das diversas políticas setoriais e do plano regula-
CMDUA.12
dor com as diferentes escalas espaciais – terreno, quarteirão ou setor
urbano.
§ 1º. A avaliação dos impactos gerados pela proposta de empreendi-
Avaliando a espiral do processo mento ou atividade deve resultar em soluções que visem à superação
dos conflitos, devendo estabelecer as condições e compromissos es-
A legislação referente ao instrumento Projeto Especial gerou um de- pecíficos, e quando necessário, firmados em Termo de Compromisso.
bate intenso e relevante, tanto no âmbito interno do executivo, como § 2º Dar-se-á sempre publicidade dos requerimentos e aprovações
nas manifestações apresentadas pelos diversos segmentos da socieda- dos Projetos Especiais de Impacto Urbano. 14
de que participaram do processo da avaliação iniciado em 2003 e con-
cluído em 2011. O resultado deste jogo de forças está explicitado pelas A inclusão desde conteúdo representa um significativo avanço, na
alterações aprovadas e pode ser considerado um resultado razoável medida em que explicita várias questões essenciais que não estavam
para esta temática, apesar de não contemplar importantes reivindica- claramente expressas na lei, como a necessidade de vínculo da proposi-
ções manifestadas pela população e parte das expressas pela proposi- ção com os princípios e estratégias do PDDUA. Esta preocupação visou
ção originária dos grupos técnicos do executivo que estudaram a revi- garantir, acima de tudo, o projeto de cidade legitimado democratica-
são. Este reconhecimento deve ser atribuído não ao resultado absoluto mente pelo plano diretor, de forma que a alteração da parte não altere
obtido, mas aos avanços possíveis, considerado parte de um processo a concepção do todo, prevalecendo os interesses coletivos, ou sociais,
de amadurecimento do tema no imaginário dos envolvidos. sobre os individuais, questão referida no inciso II e reforçada pelo inciso
Uma análise comparativa entre a redação vigente até 2011, a pro- IV, que determina claramente a necessidade de prever solução para os
posta técnica encaminhada e as alterações ora aprovadas13, permite impactos gerados.
identificar alguns avanços. O conteúdo do parágrafo 2º não foi incluído pelo GT1, pois já es-
Primeiramente, a introdução de conteúdo que associa objetivos ao tava contemplado no artigo 44 do CAPÍTULO III - Dos Mecanismos de
instrumento, tendo em vista que a lei restringia-se a definir o Projeto Participação na Gestão, de Informação e de Avaliação, que também re-
Especial como “aquele que exige uma análise diferenciada”. cebeu redação compatível com o EC:

Art. 55. O Projeto Especial de Impacto Urbano é a proposta de em- Art. 44. Além da participação global da comunidade na gestão do pla-
preendimento ou atividade listado no Anexo 11 desta Lei Comple- nejamento urbano, a qual se dará através do CMDUA, fica assegurada
mentar, devendo observar, no que couber, os seguintes objetivos: a participação comunitária em nível regional e local.
I - viabilização das diretrizes e estratégias do PDDUA; § 1º Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão ser utili-
II - promoção do desenvolvimento urbano a partir do interesse públi- zados, entre outros, os seguintes instrumentos:
co, de forma concertada com o interesse privado; I - representações em órgãos colegiados de política urbana;
III - detalhamento deste PDDUA com base em estudos específicos; II - divulgação de informações sobre empreendimentos e atividades;
III - debates, consultas e audiências públicas;
IV - conferências Municipais sobre assuntos de interesse urbano e am-
12 A proposta de Lei específica para o EIV foi encaminhada ao CMDUA para apreciação em
29 de janeiro de 2008, passou por adequação baseada em proposições advindas do Seminário
biental; e
“Implementação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) em Porto Alegre” realizado em agosto V - iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e proje-
de 2008 e foi aprovado nesta instância do executivo somente em 23 de agosto de 2011, devendo tos de desenvolvimento urbano.
ainda passar pela Câmara Municipal de Porto Alegre.
13 LC 434/99 e alterações posteriores. 14 O texto sublinhado não tem origem na proposição do GT1, foi incluído posteriormente.

604 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 605
§ 2º Para os Projetos Especiais de Impacto Urbano de 1º e 2º Graus b) equipamentos públicos comunitários, no que se refere à demanda
fica assegurada a divulgação, referida no inciso II do § 1º deste artigo. gerada pelo incremento populacional;
§ 3º Os instrumentos previstos no inciso III serão utilizados de acordo com c) uso e ocupação do solo considerando a relação com o entorno pré-
a natureza do Projeto Especial de Impacto Urbano de 2º e 3º Graus.15 -existente, ou a renovar, níveis de polarização e soluções de caráter
urbanístico; e
Em segundo lugar constituiu preocupação evitar a banalização do d) patrimônio ambiental, no que se refere à manutenção e à valoriza-
Projeto Especial, tendo em vista iniciativas recorrentes de flexibilização ção;
II - infra-estrutura urbana, no que se refere a equipamentos e redes de
pontual da lei, dissociadas de qualificação urbanística, cujo tema mais
água, esgoto, drenagem, energia, entre outras;
emblemático durante os anos de implementação do instrumento foi o III - bens ambientais, no que se refere à qualidade do ar, do solo e
da flexibilização de volumetria. subsolo, das águas, da flora, da fauna, e poluições visual e sonora
Outra alteração assumida na redação final foi a de considerar como decorrentes da atividade;
de impacto todos os casos enquadrados como Projeto Especial, incluin- IV - estrutura sócio-econômica, no que se refere a produção, consu-
do a categoria até então denominada de “Projeto Pontual”, e não de im- mo, emprego e renda da população;
pacto. Esta opção foi alicerçada na convicção de que todos os Projetos V - valorização imobiliária, a ser regulamentada.
Especiais devem ser avaliados considerando os mesmos aspectos, tanto Parágrafo único. As obras de implantação de equipamentos públicos
urbanos e comunitários, da malha viária, e outras que se tornarem
na análise quanto na previsão de solução de impactos. A diferenciação
necessárias em função dos impactos, bem como as medidas mitiga-
é dada pela intensidade, abrangência ou complexidade dos mesmos, doras e compensatórias, serão, no que couber, de responsabilidade
considerando a natureza do empreendimento ou atividade, seu porte, e do empreendedor.16
a especificidade de seu sítio. Dessa forma, o Projeto Especial passa a se
denominar Projeto Especial de Impacto Urbano, podendo ser de 1°, 2° Da mesma forma, tendo em vista que o instrumento Projeto Espe-
ou 3° Grau, de forma a estabelecer a hierarquia pretendida. cial identifica e classifica projetos considerados de impacto, é desta lista
Criaram-se, portanto, condições para que um conjunto único de ques- prévia que serão identificados casos mais complexos, passíveis destes
tões mínimas a serem avaliadas fosse definido, agregando às questões con- instrumentos técnicos de suporte para sua avaliação. Esta opção, não só
sideradas até então, distribuídas de forma fragmentada entre os artigos do reconheceu a qualidade das análises realizadas até então, apenas atra-
Capítulo do Projeto Especial, as questões recentemente explicitadas pelo vés de EVU, mas ofereceu condições para que a proposta de legislação
instrumento EIV do Estatuto da Cidade. Este exercício de aproximação foi específica do EIV pudesse ser amadurecida pelo executivo municipal.
proposto visando antecipar análises que, se necessário, podem ser intensi- Como já relatado anteriormente, a legislação do EIV recebeu bastante
ficadas e demonstradas mais detalhadamente através de estudos técnicos resistência e necessitou de tempo significativo para ser legitimada nesta
específicos, como um EIV ou um EIA. Transcrevemos a seguir a redação esfera17, embora tenha sido concebida pelo mesmo grupo técnico de
final do artigo 56, que manteve a redação proposta pelo GT1. trabalho, simultaneamente à revisão do PDDUA e a partir dos mesmos
pressupostos estabelecidos pelo instrumento Projeto Especial.
Art. 56. O Projeto Especial de Impacto Urbano será objeto de análise
Em terceiro lugar, com o intuito de facilitar a diferenciação concei-
com vistas a identificação e avaliação dos impactos decorrentes da
proposta, considerando os seguintes conteúdos:
tual, foram associadas expressões chave às categorias de 1º e 2º Grau.
I - estrutura urbana e paisagem urbana observando os aspectos rela- Assim, o Projeto Especial de Impacto Urbano de 1º Grau foi associado
tivos a:
a) estruturação e mobilidade urbana, no que se refere à configuração 16 L.C. n° 646/ 2010
dos quarteirões, às condições de acessibilidade e segurança, à gera- 17 A proposta de Lei específica para o EIV foi encaminhada ao CMDUA para apreciação em
ção de tráfego e demanda por transportes; 29 de janeiro de 2008, passou por adequação baseada em proposições advindas do Seminário
“Implementação do Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) em Porto Alegre” realizado em agosto
de 2008 e foi aprovado nesta instância do executivo somente em 23 de agosto de 2011, devendo
15 L.C. n° 646, de 22 de julho de 2010. ainda passar pela Câmara Municipal de Porto Alegre.

606 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 607
à expressão “adequação”, considerando que o impacto de sua instala- tigo 6121 da LC434/99. Desde a sua concepção esteve relacionado à
ção na cidade será de menor intensidade quando observada a condição idéia de que o sistema viário é um atenuante essencial para os possíveis
de compatibilização com o entorno pré-existente. Já o de 2º Grau foi impactos gerados pela proposição de normas próprias, ou seja, a área
associado à expressão “normas próprias”, por se tratar de proposições de um quarteirão seria mais indicada para evitar conflitos com a pré-
que não estão contempladas na norma geral, em especial os planos -existência instalada. Em 1987 o quarteirão, em boa parte da cidade,
conjuntos para setores específicos da cidade, pressupondo uma ava- era de 10.000m² (100m x 100m), tendo sido esta a dimensão encami-
liação mais criteriosa e soluções mais complexas para as repercussões nhada ao legislativo na ocasião. A pressão do setor imobiliário acabou
de sua inserção no tecido preexistente da cidade. Enquanto a primeira reduzindo o valor para 5.000m², que foi reproduzido na redação da
expressão foi mantida no texto final, representando avanço, pois con- legislação de 1999. Entretanto, inúmeros projetos viabilizados através
tribui para a compreensão do principal objetivo daquela modalidade, a deste critério apresentaram resultados insatisfatórios, tendo em vista
segunda situação deixou a desejar, tendo em vista que, ainda dentro do que, em muitas situações, esta redução acabou potencializando impac-
executivo, foi substituída pela expressão “Regime Urbanístico Específi- tos negativos. Com base nessas informações o GT1 assumiu a dimen-
co”, desconsiderando o histórico do instrumento18 e substituindo-o por são de 22.500m² (150m x 150m), quarteirão previsto pela LC 434/99,
um termo absolutamente técnico, que não traduz satisfatoriamente seu mas, como podemos constatar que a redação final novamente manteve
objetivo principal. a área de 5.000m². O atenuante é que agora este valor se refere ape-
O grupo técnico substituiu a expressão “operação concertada”19 nas a Macrozona 1, área mais consolidada da cidade, e, para as demais
pela expressão “Concertação”, a fim de evitar equívocos de interpreta- macrozonas da Área de Ocupação Intensiva deverá ser considerada a
ção associados à categoria “Operação Consorciada”. A redação estabe- dimensão mínima de 10.000m². Este resultado, não contempla total-
lecia, desde o primeiro artigo, a condição de definição de compromis- mente as intenções iniciais do grupo técnico nem os anseios do setor
sos entre o setor público e o privado para a utilização do instrumento imobiliário, devendo ser reconhecido como o avanço possível. Esta si-
e conseqüente solução de seus impactos. Sua redação foi suprimida, tuação está explicitada na redação do novo artigo 61, transcrita abai-
ainda dentro do executivo, revelando a necessidade de amadurecer a xo, que, para efeitos de compreensão do jogo de forças a que esteve
compreensão de seu significado. submetido, apresenta trechos tachados, revelando texto subtraído da
Outra idéia importante, reforçada pelo grupo técnico, é a que se re- proposta encaminhada pelo GT1, e os trechos sublinhados, constituindo
fere ao requisito de área mínima para a proposição de planos conjuntos, texto incluídos durante o processo de sua aprovação.
visando reduzir os impactos inerentes que proposições diferenciadas
impõe a cidade pré-existente. Este requisito sempre foi condição sine
§1º- O plano conjunto, a que se refere este artigo, será apreciado pelo Sistema Municipal de Plane-
qua non do instrumento, estando presente tanto na redação do artigo jamento e |Coordenação do Desenvolvimento urbano, observadas as seguintes diretrizes:
8420 inserido em 1987 na L.C.43/79, quanto na versão original do ar- I- a observância do índice de aproveitamento, previsto no regime urbanístico vigorante na respecti-
va Unidade Territorial de Planejamento;
II-ausência de prejuízo ao entorno urbano;
18 A expressão normas próprias acompanha o instrumento desde a formulação do artigo 94 da III- ausência de necessidade de redimensionamento da infra-estrutura urbana, de rede viária, os
LC 43/99, em 1987. transportes ou dos equipamentos públicos existentes ou projetados.
19 Parágrafo 2º do artigo 55 na versão original, que abria o capítulo referente a Projeto Espe- ...
cial: “Operação Concertada é o processo pelo qual se estabelecem as condições e compromissos 21 redação da LC 434/99 anterior a alteração: Art. 61. Caracteriza Empreendimento de Impac-
necessários, firmados em Termo de Ajustamento, para a implementação de empreendimentos com- to Urbano de Primeiro Nível o Projeto Especial de abrangência local, com adequação de normas
preendendo edificações e parcelamentos do solo com características especiais, ou para o desenvol- quanto ao regime volumétrico, ao uso do solo e ao entorno urbano imediato.
vimento de áreas da cidade que necessitem acordos programáticos, adequados às diretrizes gerais ...
e estratégias definidas na Parte I”. § 2º São também Empreendimentos de Impacto Urbano de Primeiro Nível, por solicitação dos
20 Art.84- Em área iguais ou superiores a 5.000 m² (cinco mil metros quadrados), situadas na interessados:
Área Urbana de Ocupação Intensiva, fica facultado aos proprietários dos imóveis abrangidos, a I- os projetos que apresentem normas próprias relativas ao uso e regime volumétrico, em terrenos
apresentação de um planejamento para fins de edificação, mediante adoção de normas próprias, ou em somatório de terrenos contíguos, constituindo testada de quarteirão ou com área de terreno
relativas ao uso de ocupação do solo e aos dispositivos de controle, diversas das vigorantes no lo- igual ou superior a 5.000m² (cinco mil metros quadrados), situados na Área de Ocupação Intensiva;
cal, com vista a melhoria da qualidade da paisagem urbana e do aproveitamento daqueles imóveis. ...

608 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 609
Art. 61. Projeto Especial de Impacto Urbano de 2º Grau é a proposta Como conclusão
de empreendimento, atividade ou plano conjunto de parcelamento
e edificação que pela característica do impacto gerado, classifica-se Tanto a experiência de formulação do PDDUA de 1993 a 1999,
em:
como a de realização da sua 1ª Conferência de Avaliação de 2003 a
I - por obrigatoriedade – deve atender a condicionantes e solucionar
2010 foram muito significativas em termos de aprendizado sobre os ru-
impactos inerentes à atividade ou ao empreendimento proposto, nos
casos previstos no Anexo 11.2 – folhas 1 e 2 desta lei Complementar; mos de um planejamento que se pretende cada vez mais participativo.
ou Na retrospectiva do processo vivido, sobre o instrumento Projeto Espe-
II - por solicitação, com base neste artigo e art. 58 e Anexo 11.2 – fo- cial é possível afirmar que num primeiro período de tempo foi compreen-
lha 3 desta lei Complementar: dido apenas por parte de todos os que participaram das discussões, o que
a) de regime urbanístico específico com acréscimo na altura, até o gerou grandes expectativas sobre a discussão que se deu na 1ª Conferên-
máximo de 52m (cinqüenta e dois metros), visando a qualificação da cia, quando a comunidade da cidade, mais consciente sobre os resultados
paisagem urbana, para terreno que configure na totalidade 1 (um) espaciais do plano de 1999, se mobilizou para uma participação maior.
quarteirão ou com área mínima de 22.500 (vinte e dois mil e qui- A correção de rumo que vem com os resultados da 1ª Conferência,
nhentos metros quadrados) 5.000 m² ( cinco mil metros quadrados),
consubstanciados no capítulo revisado da lei ora em vigor, pretendeu
situado na Área de Ocupação Intensiva; na MZ 01 e de 10.000m²
(dez mil metros quadrados) no restante das Macrozonas, situado na
referenciar um novo patamar para as discussões que se sucedem na
Área de Ocupação Intensiva; cidade sobre empreendimentos de impacto, reforçando a relevância do
b) de regime urbanístico específico sem acréscimo na altura, visando instrumento e fornecendo subsídios para uma discussão mais qualifica-
a qualificação da paisagem urbana, para terreno que configure no mí- da dos destes na cidade.
nimo 1 (uma) testada contígua e integral de quarteirão e ou com área É claro que não basta apenas introduzir conceitos e categorizações
mínima de 10.000 5.000m² (dez cinco mil metros quadrados) na MZ na lei. Se considerarmos como verdade que a clareza conceitual facilita
01 e de 10.000m² (dez mil metros quadrados) no restante das Macro- bastante a discussão, o caminho a percorrer, deste momento em diante,
zonas, situado na Área de Ocupação Intensiva; passa pela necessidade de aprimoramento de mecanismos e metodo-
c) de regime urbanístico específico visando a qualificação da paisa-
logias de avaliação de impacto, pela possibilidade de dar respostas em
gem urbana, para terreno situado em Área de Interesse Cultural e
tempo adequado para as situações que se apresentam e por enfrentar a
Área de Ambiência Cultural; ou
d) de alteração do percentual de doação de áreas públicas, para par- difícil tarefa de garantir a representatividade de camadas da sociedade
celamento do solo, com significativo comprometimento do terreno com níveis desiguais de organização.
com a preservação de Patrimônio Ambiental, podendo ser solicitado Recentemente a cidade precisou tomar decisões importantes com
pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente instrumento de avalia- vistas à realização da COPA do Mundo de 2014. Projetos como Are-
ção de impacto ambiental. na do Grêmio, Reforma das instalações do Esporte Clube Internacional,
§ 1º Para fins de aplicação do Anexo 11.2 desta Lei, considera-se Cais do Porto, são todos casos de projetos especiais, que foram discu-
de grande porte o empreendimento ou atividade com área adensável tidos à margem da discussão do capítulo sobre este assunto na revisão
superior a 20.000 30.000 m² (vinte trinta mil metros quadrados) ou que estava em andamento.
com guarda de veículos superior a 400 (quatrocentas) vagas.
No marco das disposições do Estatuto da Cidade, estes exemplos
§ 2º A análise e as exigências por parte do SMGP no EVU ficarão
restritas aos quesitos objeto da solicitação, considerada a totalidade
constituiriam por sua natureza, Operações Urbanas Consorciadas capa-
dos impactos gerados. (NR) zes de alavancar desenvolvimento de setores urbanos, como espaços
§ 2º Qualquer das hipóteses previstas nos incisos I e II do caput deste de referência de Porto Alegre que tem área de influência para além das
artigo deverá resguardar a transição adequada com o entorno urbano. fronteiras da cidade.
§ 3º O Projeto Especial de Impacto Urbano de 2º Grau previsto na Cabe salientar que há uma necessidade premente de estruturar a
letra “a” do inciso II poderá ter altura superior a 52m (cinqüenta e dois atividade do planejamento urbano a partir de uma reflexão profunda
metros), desde que aprovado por lei ordinária. sobre o seu papel num novo contexto constitucional.

610 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 611
Entre tantos aspectos a considerar, registra-se que não se pode su-
bestimar o jogo de forças que se estabelece nos processos de tomada
Planejamento Urbano e Acessibilidade
de decisão.
Juliana Barancelli Thomé Francisco1
Neste sentido há de se valorizar o plano diretor como o que apre-
senta uma estratégia global para a cidade que se quer num futuro mais
ou menos distante e a partir, daí utilizar a caixa de ferramentas disponí- Resumo: Neste trabalho investigaremos a efetividade dos
vel para eventuais adequações. mecanismos legais na concretização da acessibilidade no
Neste contexto, o projeto especial enquanto instrumento, e a postu- Brasil, passando pelo exame da construção das cidades no
ra do Sistema Municipal de Gestão do Planejamento22, enquanto gestor país, em especial a do município de Porto Alegre, até os
da tomada de decisão têm importância fundamental na garantia de uma tempos atuais. Iniciaremos com a análise da participação
dos Poderes na concretização da acessibilidade no Brasil.
cidade onde o interesse coletivo deve prevalecer sobre o interesse indi-
Num segundo momento entraremos na questão da produ-
vidual ou de grupos. ção do espaço urbanístico nacional. A seguir, investigare-
mos a realidade dos portadores de necessidades especiais
Bibliografia nas cidades, passando por conceitos-chave da temática e
pelos instrumentos de gestão do espaço-urbano. Por fim,
Porto Alegre. Lei Complementar 434/99 e alterações posteriores. Porto examinaremos a efetividade da acessibilidade no Rio Gran-
de do Sul, em especial, na cidade de Porto Alegre, como
Alegre. Site www.portoalegre.rs.gov.br consultado em 11 de setembro de
cidade construtora do paradigma de planejamento e aces-
2011. sibilidade.
Palavras-chave: Acessibilidade. Portadores de necessida-
des especiais. Planejamento. Cidade. Lei.

Planejamento urbano e acessibilidade

O último censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e


Estatística constatou que havia nas regiões urbanas do Brasil, cerca de
19.800.000 de pessoas com algum tipo de deficiência (seja física, vi-
sual, mental, auditiva ou motora), o que corresponde a 11,55% da po-
pulação total do País (que à época foi estimada em de 171 milhões de
pessoas). No Rio Grande do Sul, foi apurado um número de 1.200.000
pessoas nas cidades com algum tipo de deficiência, sendo que em Porto
Alegre, foram contabilizadas cerca de 188.000 pessoas.
Passados 11 anos desde o último levantamento oficial sobre porta-
dores de necessidades especiais e 10 anos da publicação do Estatuto
da Cidade2 questiona-se o que o Poder Público, em especial no mu-
nicípio de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, tem feito para a promo-

1 FRANCISCO, Juliana Barancelli Thomé. Graduanda em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifí-
cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: julianabarancelli@hotmail.com
22 Ver nota 6. 2 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.

612 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 613
ção da acessibilidade do espaço urbano a essa expressiva parcela da Na seara administrativa, uma série de órgãos foram criados com se-
sociedade, em termos de planejamento e gestão desse espaço, bem tores ou finalidades específicas de garantir e promover os valores consti-
como, quais instrumentos urbanísticos de gestão são aplicáveis. Neste tucionalmente previstos. A exemplo, no âmbito federal, há no Ministério
trabalho investigaremos a efetividade dos mecanismos concretizadores das Cidades que apóia programas e ações promotores da acessibilidade
da acessibilidade no Brasil. de pessoas com restrição de mobilidade ou deficiência física ou senso-
rial, através da implantação de infra-estrutura que garanta sua circu-
lação pela cidade através da integracão entre os sistemas coletivos e
1. Da população com necessidades não-motorizados com conforto e segurança9; também ligada ao gover-
especiais: a participação dos poderes no federal, temos a Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos
da Pessoa com Deficiência, responsável pela articulação e coordenação
   A preocupação com a questão da dignidade do portador de ne- das políticas públicas voltadas para as pessoas com deficiência10.
cessidades especiais é um fenômeno observável nos últimos vinte anos O Poder Judiciário também vem buscando efetivar a aplicação da
no Brasil. Os Poderes têm contribuído nas suas diferentes esferas e de legislação, visando assegurar a concretização dos direitos e da digni-
acordo com a função que exercem para mitigar essa realidade. dade dos portadores de necessidades especiais. Há uma série de di-
Nesse contexto, na esfera legislativa, podemos citar como marco le- reitos assegurados aos portadores de necessidades especiais e efetiva-
gal inspirador da legislação voltada a assegurar a efetividade dos direitos dos nas decisões judiciais. Conforme, há decisões garantindo a efetiva
e a dignidade dos portadores de necessidades especiais, primeiramen- acessibilidade em agências bancárias (Resp. 1107981/MG, julgado em
te, a Constituição Federal Brasileira, que introduziu garantias específicas 03/05/2011), outros resguardando a acessibilidade nos meios de comu-
aos deficientes e outras de caráter geral3, voltadas à pessoa humana, nicação (MS 14.449/DF, julgado em 23/06/2010), ou mesmo, assegu-
como o direito à igualdade, à dignidade e a promoção dos direitos hu- rando a reserva legal de vagas a candidato portador de deficiência visual
manos, inclusive, previsões às pessoas com mobilidade reduzida4. No (RMS 18.401/PR, julgado em 04/04/2006).11
nível infraconstitucional, a Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 19895,
dentre as garantias legais, trouxe o dever da inclusão nos censos de-
mográficos nacionais, questões concernentes às pessoas com alguma 2. Da produção do espaço urbanístico no Brasil
deficiência, e em 2008 houve a ratificação pelo Brasil da Convenção da
ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência (Decreto Legislativo Segundo José Afonso da Silva, o fenômeno urbano no Brasil nasceu
nº 186 de 09 de julho de 2008)6. Também, a Lei nº 10.098, de 19 de vinculado a uma política de ocupação e povoamento da colônia e sua
dezembro de 2000 e a Lei nº 10.048, de 08 de novembro de 20007 evolução está ligada estreitamente aos ciclos econômicos brasileiros12.
asseguraram a prioridade no atendimento à pessoas com necessidades Somado a isso, ao longo do tempo, a urbanização deu-se de forma pre-
especiais. Por fim, a Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 20038 trouxe matura, uma vez que decorrente de fatores nem sempre desenvolvi-
normas protetivas aos idosos. mentistas, como o êxodo rural- pelas más condições de vida no campo
e pela mecanização da lavoura ou uso das terras para a pecuária. Por
3 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 7, inciso XXXI. Artigo 23, inciso II. Artigo 24,
inciso XIV. Artigo 37, inciso VIII. Artigo 40, parágrafo 4º, inciso I. Artigo 201, parágrafo 1º. Artigo
203, incisos IV e V. Artigo 208, inciso III. Artigo 227, parágrafo 1º, inciso II.
9 BRASIL. Governo Federal. Ministério das Cidades. Disponível em: http://www.cidades.gov.br/.
4 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 229. Artigo 203, inciso I. Artigo 226, parágrafo Acesso em: 30.08.2011.
4º. As referidas normas são protetivas aos idosos e à velhice. Artigo 6º. Artigo 201, inciso II e
10 BRASIL. Governo Federal. Subsecretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com
artigo 203, inciso I. As referidas normas dizem respeito à maternidade e às gestantes.
Deficiência. Disponível em: http://portal.mj.gov.br/corde/. Acesso em: 30.08.2011.
5 BRASIL. Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989.
11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: http://www.stj.jus.br/portal_stj/publicacao/
6 BRASIL. Decreto Legislativo nº 186 de 09 de julho de 2008. engine.wsp. Acesso em: 30.08.2011.
7 BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. 12 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ª ed. rev. atual. São Paulo : Malheiros,
8 BRASIL. Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 2003. 2006. páginas 5 e 10.

614 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 615
fim, dentro das cidades, a distribuição das terras foi feita adotando-se soas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida. A mesma
um modelo de desenvolvimento desigual e excludente, vinculado aos definiu acessibilidade e restringiu o conceito de portadores de deficiên-
interesses do mercado imobiliário e seus beneficiados ou aos interesses cia ou com mobilidade reduzida.18
eleitoreiros13. As pessoas com necessidades especiais protegidas pela lei são
Paralelo ao seu processo de expansão urbana, o Brasil veio ao lon- aquelas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, tendo
go de sua história, negligenciando ou desconhecendo a realidade dos temporária ou permanentemente limitada sua capacidade de relacio-
portadores de necessidades especiais. A exemplo, o primeiro censo do nar-se com o meio e de utilizá-lo.19O Decreto federal nº 5.296 de 02
IBGE que incluiu as diversas modalidades de deficiência14 foi o relativo de dezembro de 2004, que regulamentou a referida lei,20 especifica
à última década do século passado (IBGE: Censo Demográfico 2000)15, quais são os tipos de deficiência, agrupando-as em física, auditiva, vi-
e isso, em virtude de normativo legal16. Nesse contexto de descaso his- sual e mental e define portadores de mobilidade reduzida, que seriam
tórico, nasceram cidades despreparadas, sem infra-estrutura mínima aqueles que, não se enquadrando no conceito de portadores de defici-
para a população em geral, tanto menos para aqueles que tem necessi- ência, tenham, por qualquer motivo, dificuldade de movimentar-se, per-
dades especiais. Esse paradigma de exclusão e negligência vem sendo, manente ou temporariamente, gerando redução efetiva da mobilidade,
aos poucos, quebrado, através de iniciativas de poderes públicos locais flexibilidade, coordenação motora e percepção.21Nesse segundo grupo
e da sociedade, com a finalidade de reorganizar o caos urbano. podemos incluir pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos22,
gestantes, lactantes e pessoas com criança de colo23e obesos.
Dados os conceitos-chave, cabe investigarmos como deve e como
3. Dos portadores de necessidades especiais está sendo efetivado o acesso desse substancial grupo de pessoas
e da acessibilidade à cidade. Iniciaremos, pois, pela análise dos instrumentos de gestão do
espaço urbano.
A Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 200017 estabeleceu nor-
mas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade às pes- 3.1. Dos instrumentos de gestão do espaço urbano
13 ROMEIRO, Paulo et al. Regularização fundiária. Le Mode Diplomatique Brasil. 04.12.2008.
Disponível em: http://diplomatique.uol.com.br/. Acesso em: 30.08.2011. O Brasil possui vasto acervo legislativo acerca da acessibilidade e tal
14 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia traz em seu bojo, instrumentos de gestão do espaço urbano, quando não
e Estatística. Conteúdo histórico: estatísticas do século XX. O tema “pessoas com deficiência”, de
constitui, por si só, o próprio instrumento. No âmbito federal, temos a Lei
acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da República, somente foi pesquisado nos censos
de 1872, 1890, 1900, 1920 e 1940. Entretanto, ressalte-se que os dados levantados considera- nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (o Estatuto da Cidade), que estabelece
vam somente as pessoas com deficiência auditiva ou visual, referidos nos censos, respectivamente, as diretrizes gerais da política urbana24; a Lei nº 7.853, de 24 de outubro
como “surdo-mudos” e “cegos”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/seculoxx/ e http://www.direi-
toshumanos.gov.br/pessoas-com-deficiencia-1. Acesso em 31.08.2011. de 198925, dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência e
15 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia e sua integração social, entre outros temas; a Lei nº 10.098 de 19 de de-
Estatística. Censo Demográfico 2000. Disponível em: http://www.sidra.ibge.gov.br/cd/cd2000cgp. zembro de 200026, trata da promoção de acessibilidade- e há o Decreto nº
asp?o=11&i=P. Acesso em: 26.08.2011.
16 BRASIL. Lei nº 7.853 de 24 de outubro de 1989. A Lei Federal nº 7.853 de 24 de outubro 18 BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Artigo 2º, inciso V.
de 1989, dentre as garantias legais, trouxe o dever da inclusão nos censos nacionais das questões 19 BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Artigo 2º, inciso III.
concernentes às pessoas com alguma deficiência. Artigo 17: “Serão incluídas no censo demográfico
20 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004.
de 1990, e nos subseqüentes, questões concernentes à problemática da pessoa portadora de de-
ficiência, objetivando o conhecimento atualizado do número de pessoas portadoras de deficiência 21 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004.
no País.” 22 BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003.
17 BRASIL. Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Art. 1º. “Esta Lei estabelece normas 23 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Artigo 5, parágrafo 2º.
gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência
24 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001.
ou com mobilidade reduzida, mediante a supressão de barreiras e de obstáculos nas vias e espaços
públicos, no mobiliário urbano, na construção e reforma de edifícios e nos meios de transporte e de 25 BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989.
comunicação.” 26 BRASIL. Lei nº 10.098 de 19 de dezembro de 2000.

616 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 617
5.296 de 2 de dezembro de 200427 que a regulamentou. Temos ainda a 3.1.1. Do transporte, logradouros e da acessibilidade38
ratificação pelo Brasil da Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas
com deficiência, através do Decreto Legislativo nº 186 de 09 de julho de O acesso à cidade é o meio mais concreto de realizar a sua função so-
200828, bem como há o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos cial e esse pode ser viabilizado através dos meios que a cidade disponibi-
assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos29. liza aos seus cidadãos permitindo-lhes deslocar-se com maior autonomia
Na esfera estadual, no Rio Grande do Sul, a Emenda Constitucional nos seus espaços. Por isso, o sistema público de transportes e o acesso
n.º 56, de 03 de abril de 2008 incluiu entre as competências munici- aos logradouros39, são fundamentais na concretização dessa função.
pais de Porto Alegre, a promoção da acessibilidade nas edificações e Quanto à acessibilidade dos serviços de transporte coletivos, o Decre-
logradouros de uso público e seus entornos, bem como a adaptação dos to nº 3.691, de 19 de dezembro de 200040 dispôs sobre o transporte de
transportes coletivos, para permitir o acesso das pessoas portadoras pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo inte-
de deficiências ou com mobilidade reduzida.30A lei nº 13.017 de 24 restadual, sendo destinado às mesmas, no mínimo, dois assentos. No Rio
de julho de 200831, dispôs sobre o Sistema Estadual de Habitação de Grande do Sul, a Lei nº 8.899, de 29 de junho de 199441, concede passe
Interesse Social e seu Fundo Estadual, determinando o acesso à terra livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coleti-
urbanizada e à habitação urbana digna e sustentável à população de vo interestadual,42 e a Lei nº 12.227, de 05 de janeiro de 200543 prevê a
baixa renda32, tendo entre as suas diretrizes a acessibilidade33.Por fim, adaptação dos veículos do sistema estadual de transporte metropolitano
o ponto culminante da legislação estadual consubstancia-se na Lei nº de Porto Alegre com dispositivos de acesso às pessoas portadoras de de-
13.320 de 21 de dezembro de 200934 que consolidou a legislação re- ficiência física, obesos, gestantes e idosos. Por fim, na seara municipal, em
lativa à pessoa com deficiência no Estado. Essa lei trouxe algumas es- Porto Alegre, há desde resoluções até leis sobre assentos preferenciais no
pecificações ao tema acessibilidade, merecendo estudo mais detalhado, transporte coletivo público para portadores de deficiência física ou senso-
conforme veremos a seguir. A questão da acessibilidade também está rial44, idosos, gestantes e portadores de deficiência física45, até legislação
prevista no Plano Plurianual do Estado35. assegurando às pessoas portadoras de deficiência, usuárias de cadeiras
Na seara municipal, a Constituição Federal, ao conferir ao Poder de rodas e cegos, o direito de embarque e desembarque fora dos pontos
Público municipal a execução da política de desenvolvimento urbano, de parada dos ônibus46.
determinou que tal fosse pautada no pleno desenvolvimento das fun- Sobre os logradouros, ressalte-se que a Constituição Federal garan-
ções sociais da cidade e na garantia do bem-estar de seus habitantes36. te a todos, em tempos de paz, a liberdade de locomoção47e o trânsito
Gize-se que o instrumento básico da política de desenvolvimento e ex-
38 BRASIL. Lei no 10.257, de 10 de julho de 2001. Artigo 2, incisos I e V.
pansão urbana é seu Plano Diretor. Por fim, a recente Lei Complemen-
39 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 12 de 01 de março de 1975. Código de Posturas
tar nº 678 de 22 de agosto de 201137 implementou o pioneiro Plano Municipal. Artigo 2. “São logradouros públicos, para efeitos desta lei, os bens públicos de uso co-
Diretor de Acessibilidade de Porto Alegre. mum, tais como os define a legislação federal, que pertençam ao município de Porto Alegre.
40 BRASIL. Decreto nº 3.691, de 19 de dezembro de 2000. Artigo 1º, caput.
27 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. 41 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 8.899, de 29 de junho de 1994.
28 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. 42 BRASIL. Ainda, sobre leis autorizadoras de passe livre nos meios de transporte estadual e
29 BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Artigo 1º. interestadual temos: a instrução normativa da Secretaria de Transportes Terrestres, do Ministério
dos Transportes nº 1, de 10 de abril de 2001, a Portaria Interministerial Nº 3, de 10 de abril de
30 RIO GRANDE DO SUL. Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (1989). Artigo 13, inciso IX.
2001, a Recomendação CONADE nº 003, de 14 de maio de 2002 ao Ministério dos Transportes.
31 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008 Lei nº 11.664, de 28 de agosto de 2001.
32 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008. Artigo 2, inciso I. 43 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.227, de 05 de janeiro de 2005.
33 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008. Artigo 4, inciso II, alínea “f”. 44 PORTO ALEGRE. Resolução nº 001 da Secretaria Municipal dos Transportes, de 28 de maio
34 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.320 de 21 de dezembro de 2009. de 1997.
35 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.749, de 20 de julho de 2007. Anexo 28. 45 PORTO ALEGRE. Lei nº 6.862, de 19 de julho de 1979.
36 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 182, caput e parágrafo 1º. 46 PORTO ALEGRE. Lei nº 8.890, de 09 de abril de 2002.
37 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678 de 22 de agosto de 2011. 47 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 5, inciso XV.

618 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 619
das pessoas em geral e, especialmente o das pessoas portadoras de execução de serviços especiais, arrolados no artigo 3º55. Ainda, trata
deficiência ou com mobilidade reduzida pelas vias e logradouros deve do dever da observância do critério da acessibilidade nos projetos de
ser livre e seguro48. Ressalte-se que os logradouros e edificações de uso edificações com destinação pública ou privada56e da adoção da aces-
público devem observar normas de construção, para efeito de licencia- sibilidade no transporte metropolitano de Porto Alegre57, encerrando
mento da respectiva edificação a fim de a facilitar o acesso e uso desses uma carta de direitos aos portadores de necessidades especiais58.
locais pelas pessoas portadoras de deficiência49. No Brasil usa-se como
critério as normas de acessibilidade da Associação Brasileira de Normas
Técnicas de Acessibilidade- ABNT50, que devem compor tanto o Código 5. Porto Alegre e a construção de um paradigma de
de Obras, quanto o Plano Diretor municipal. planejamento urbano e acessibilidade: Instrumen-
tos da política municipal de Porto Alegre promoto-
res da acessibilidade
4. Rio Grande do Sul e a acessibilidade
A cidade de Porto Alegre, conforme dito, e a exemplo das demais ci-
A Emenda Constitucional n.º 56, de 03 de abril de 2008 incluiu dades do País, adotou ao longo de sua história, critérios sócio-econômi-
entre as competências municipais de Porto Alegre o dever da promoção cos excludentes na construção do seu espaço urbano. Segundo Betânia
da acessibilidade nas edificações e logradouros de uso público e seus Alfonsín, o município teve a sua ocupação iniciada de forma bastante
entornos, bem como a adaptação dos transportes coletivos, para permi- singular e marcadamente “irregular”, seguindo o padrão predominante
tir o acesso das pessoas portadoras de deficiências ou com mobilidade no Brasil.59 Esse tipo de construção está reflexo na sua infra-estrutura
reduzida.51 Nesse sentido, há previsão, por exemplo, de concessão de atual, sendo determinante na questão da acessibilidade.
passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de trans- O município foi construído em quatro etapas distintas, marcadas pelo
porte coletivo interestadual,52 de gratuidade nas linhas de transporte notório fator da exclusão social, seja pela invisibilização, seja pela ex-
intermunicipal para os deficientes físicos, mentais e sensoriais, compro- pulsão, seja pelas iniciativas precárias do Poder Público em relação às
vadamente carentes 53. Mas, foi Lei nº 13.320 de 21 de dezembro de camadas desfavorecidas da sociedade.60 Destaque, nesse contexto, para
200954 que consolidou a legislação relativa à pessoa com deficiência no os deficientes, esquecidos e não contabilizados na história do país61. Nas
Estado, como agora veremos.
Além de conceitos, a lei estadual traz princípios tais como, a acessi- 55 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.320 de 21 de dezembro de 2009. Artigo 3.
56 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008. Capítulo II, Seções I e II.
bilidade e conscientização da sociedade sobre os direitos, necessidades
57 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008. Capítulo II, Seção III
e capacidades da pessoa com deficiência, a promoção de políticas e
58 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.017 de 24 de julho de 2008. Capítulo II, Seção VI. Seções VII e VIII.
programas de assistência social que eliminem a discriminação e garan-
59 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade à regularização fundiária : a trajetória legal
tam o direito à proteção especial e à plena participação nas ativida- da moradia de baixa renda em Porto Alegre-século XX, 2000. 233 f. Dissertação (Mestrado em
des políticas, econômicas, sociais, culturais e esportivas do Estado, a Planejamento Urbano e Regional) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, Porto Alegre, 2000.p.23.
redução do índice de deficiência por meio de medidas preventivas e a
60 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade à regularização fundiária : a trajetória legal
da moradia de baixa renda em Porto Alegre-século XX, 2000. 233 f. Dissertação (Mestrado em
48 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 2 de dezembro de 2004. Artigo 12, caput.
Planejamento Urbano e Regional) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande
49 BRASIL. Lei nº 10.048, de 8 de novembro de 2000. Artigo 4. do Sul, Porto Alegre, 2000.
50 BRASIL. Ministério Público do Distrito Federal. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Dis- 61 BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro de Geografia
ponível em: http://www.mpdft.gov.br/sicorde/abnt.htm. Acesso em: 30.08.2011. e Estatística. Conteúdo histórico: estatísticas do século XX. O tema “pessoas com deficiência”, de
51 RIO GRANDE DO SUL. Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (1989). Artigo 13, inciso IX. acordo com a Secretaria de Direitos Humanos da República, somente foi pesquisado nos censos
de 1872, 1890, 1900, 1920 e 1940. Entretanto, ressalte-se que os dados levantados considera-
52 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 8.899, de 29 de junho de 1994.
vam somente as pessoas com deficiência auditiva ou visual, referidos nos censos, respectivamente,
53 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 11.664, de 28 de agosto de 2001. como “surdo-mudos” e “cegos”. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/seculoxx/ e http://www.direi-
54 RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.320 de 21 de dezembro de 2009. toshumanos.gov.br/pessoas-com-deficiencia-1. Acesso em 31.08.2011.

620 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 621
duas últimas décadas, entretanto, a instauração do Estado Democrático especiais às edificações públicas municipais.68 A exemplo, temos a
de Direito trouxe consigo uma série de princípios como a igualdade, a determinação do uso de piso antiderrapante e de corrimãos nas es-
dignidade e a promoção dos direitos humanos62, gerando a necessidade cadas69, o uso de rampas (inclusive há disposições acerca de sua
de revisão dos modelos excludentes até então praticados no Brasil cul- declividade)70,critérios para as edificações destinadas ao lazer, tais
minando em acervos legais nas três esferas, conforme investigado. Para como, teatros, cinemas e auditórios- que devem contar com o per-
garantir a concretização desses princípios, a legislação urbanística deve centual mínimo de acessibilidade das acomodações para os portado-
abarcar os critérios de acesso arquitetônico e urbanístico, dos serviços de res de deficiência física71.
transporte coletivos, das informações e comunicações63. Dentro dessa temática, é fundamental a urbanização planejada das
vias, praças, logradouros, parques e demais espaços de uso público, já
5.1. Da acessibilidade arquitetônica e urbanística que garantidora do direito constitucional de “ir e vir”72de toda a popu-
lação. Gize-se que, tanto no planejamento quanto na execução de obras
O Decreto federal nº 5.296 de 2004 trouxe critérios básicos para devem ser observadas as normas técnicas de acessibilidade da ABNT73.
a promoção da acessibilidade às pessoas portadoras de deficiência ou Incluem-se nessas exigências a construção e/ou a adaptação de calça-
com mobilidade reduzida, sendo que na concepção dos projetos arqui- das, as marquises, os toldos, os elementos de sinalização, luminosos74
tetônicos e urbanísticos há o dever de atendimento aos princípios do e outros sobre a faixa de pedestres75, as cabines telefônicas e terminais
desenho universal64, tendo por referências básicas as normas técnicas de auto-atendimento, as botoeiras de acionamento do mobiliário urba-
de acessibilidade da ABNT65, a legislação específica e as regras do de- no, entre outras76.
creto. Assim, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental Em Porto Alegre, um o órgão que atua nas áreas de coordenação,
de Porto Alegre66 e seu Código de Obras são pautados nas normas de elaboração e execução de projetos de obras viárias, a manutenção
acesso universal previstas pela ABNT. de vias urbanas, a aprovação de projetos prediais, a fiscalização da
O planejamento das edificações, bairros e a regularização fundi- sua execução e a aplicação de sanções a infratores é a Secretaria
ária são questões fundamentais e devem ser pautadas, no que cou- Municipal de Obras e Viação (SMOV)77. É também de competência
ber, pelas regras do desenho universal. À respeito disso, o Código de da SMOV a implantação e a manutenção do sistema de iluminação
Obras de Porto Alegre prevê esse dever de observância às normas pública da cidade78. Um exemplo de serviço prestado pela secreta-
técnicas na elaboração de projetos de edificação67. Dessa maneira,
68 PORTO ALEGRE. Lei 9.782 06 de julho de 2005. Lei Orgânica Municipal. Artigo 220, pará-
pretende o Poder público municipal corrigir as distorções históricas
grafo único.
no espaço urbano e evitar novas. Por isso, o Código de Obras traz 69 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 72, incisos II, IV e V.
uma série de questões de ordem prática e, no entanto, fundamentais 70 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigos 82 e 84.
ao livre, autônomo e seguro acesso do portadores de necessidades 71 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 146, inciso VIII.
72 BRASIL. Constituição Federal (1988). Artigo 5, inciso XV.
62 BRASIL. Constituição Federal (1988). Preâmbulo. Artigo 4, inciso II. Artigo 5º, caput e pará- 73 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 15, caput.
grafo 3º. Artigo I, inciso III. Artigo 109, parágrafo 5º. Ato das Disposições Constitucionais Transitó- 74 PORTO ALEGRE. Lei nº 8.287, de 05 de abril de 1999. Faculta a colocação de sinalizadores
rias. Artigo 7º. físicos móveis (placas ou cones plásticos) nas proximidades das escolas de 1º e 2º graus localiza-
63 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Os critérios referentes à acessibi- das no Município de Porto Alegre e dá outras providências.
lidade arquitetônica e urbanística referidos nesse trabalho são os expressos nesse Decreto. 75 PORTO ALEGRE. Lei nº 7.972, de 18 de março de 1997. Essa lei torna obrigatória a implan-
64 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 10, caput. tação de dispositivos sonoros nos semáforos de pedestres no município de Porto Alegre.
65 BRASIL. ABNT NBR 9050:2004. Disponível em: http://www.mpdft.gov.br/sicorde/NBR9050- 76 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigos 14, parágrafo 1º e 16,
31052004.pdf. Acesso em: 26.08.2011. parágrafo 1º.
66 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 434 de 01 de dezembro de 1999. Artigo 6, inciso 77 PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Secretaria municipal de Obras e Viação. Lei 1.156, de
VI, parágrafo único. PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 284 de 27 de outubro de 1992. Artigo 02 de dezembro de 1955. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smov.
8, inciso I. Artigo 183. Artigo 184. 78 PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Obras e Viação. A Secretaria Municipal de Obras e Viação
67 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 8, inciso I. (SMOV) foi criada pela Lei 1.156, de 02 de dezembro de 1955. http://www2.portoalegre.rs.gov.br/smov.

622 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 623
ria é o “Tapa Buracos”,79que visa a manutenção e a recuperação da se apóia, com vistas à qualificação da vida da população, entre os quais,
malha viária municipal. O trabalho é realizado por uma equipe da os aspectos ligados ao transporte de passageiros.85
secretaria que se desloca aos locais onde há falhas na pavimentação, O Plano Diretor determina como dever do poder público municipal
os cobrindo de asfalto, o que garante segurança e acessibilidade às propiciar condições facilitadoras da locomoção das pessoas portadoras
vias públicas. de deficiência física no espaço urbano86. A fim de viabilizar esse dever, a
Por fim, nos estacionamentos interno e externo das edificações de Lei complementar nº 403 de 199787 determinou a adaptação do trans-
uso público ou naqueles localizados em vias públicas, há reserva legal porte coletivo municipal às pessoas portadoras de deficiência física ou
de vagas para veículos que transportem portadores de deficiência física motora. Desde então, a legislação municipal vem buscando atender da
ou visual, sendo, no mínimo de 01 vaga para o caso de locais próximos maneira mais abrangente essa parcela da população. Assim, pessoas
à entrada principal ou elevador, de fácil acesso á circulação de pedes- portadoras de deficiência física ou sensorial, bem como, excepcionais,
tres80. No entanto, há grande desrespeito pelos cidadãos não portado- gestantes, idosos e seus acompanhantes possuem acesso diferenciado
res de necessidades especiais, que fazem uso dessas vagas destinadas no sistema de transportes coletivos por ônibus em Porto Alegre, ga-
e, como a legislação é branda na punição dos infratores, cominando- rantida legalmente a gratuidade do transporte88, assentos preferenciais,
-lhes multa e remoção do veículo81, enseja assim, reiterado descumpri- ao uso de cadeira de rodas dentro do coletivo (com possibilidade de
mento. Ainda, embora haja legislação municipal garantindo as vagas es- embarque e desembarque fora dos pontos de parada dos ônibus) 89.
peciais82, em razão do constante desrespeito à acessibilidade por parte Há, inclusive, lei garantidora de transporte turístico-cultural gratuito a
dos cidadãos, a Secretaria municipal de acessibilidade de Porto Alegre maiores de 65 anos e adaptados a portadores de deficiência90.
lançou, recentemente, a campanha “Respeitar é Legal”, cuja penalização
é a “multa moral”- um panfleto colocado no pára-brisa do carro, infor- 5.3. Plano Diretor de Acessibilidade de Porto Alegre91
mando o infrator e expondo a sua atitude à sociedade, incentivando
assim, o respeito à norma.83 Ato legislativo recente, a Lei Complementar nº 678 de 22 de agosto
de 2011 instituiu o pioneiro Plano Diretor de Acessibilidade do muni-
5.2. Da acessibilidade nos serviços cípio de Porto Alegre, vindo a agregar o acervo normativo de cunho
de transporte públicos de Porto Alegre
85 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678 de 22 de agosto de 2011. Artigo 8.
Porto Alegre bom aparato acervo legislativo sobre o tema da aces- 86 PORTO ALEGRE. Lei 9.782 de 06 de julho 2005. Lei Orgânica Municipal. Artigo 220, caput.
87 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 403 de 30 de setembro de 1997. Regulamenta o artigo
sibilidade nos serviços de transporte público coletivo, notadamente, no 18 do ato das disposições orgânicas gerais e transitórias da Lei Orgânica do Município de Porto
rodoviário. Aliás, a estratégia de mobilidade urbana do município prio- Alegre (ônibus adaptado para deficientes). “O Poder Executivo exigirá que as empresas permissio-
nárias do transporte coletivo possuam ônibus adaptados ao fácil acesso e circulação de pessoas
riza o uso de transporte coletivo84. O Plano Diretor de Porto Alegre portadoras de deficiência física ou motora(...).”
define a Estratégia de Mobilidade Urbana e os programas nos quais ela 88 PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Quanto ao passe livre, o município o garante a pessoa
com deficiência mental, física, visual ou auditiva mediante a comprovação de renda mensal própria
igual ou inferior a seis salários mínimos nacionais. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/
79 PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Obras e Viação. Disponível em: http://www2.portoa-
seacis. Acesso em: 30.08.2011.
legre.rs.gov.br/smov/default.php?p_secao=125. Acesso em: 30.08.2011.
89 PORTO ALEGRE. Instrução nº 10 da EPTC, de 28 de fevereiro de 2000. Resolução nº 001 da
80 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 25, caput. Secretaria Municipal dos Transportes, de 28 de maio de 1997. Lei nº 6.862, de 19 de julho de
81 BRASIL. Decreto nº 5.296 de 02 de dezembro de 2004. Artigo 25, parágrafo 2º. Lei 9.503 1979. Lei nº 6.442, de 11 de setembro de 1989. Lei nº 7.146, de 20 de novembro de 1992. Lei
de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro). Artigo 181, inciso XVII. CONTRAN. nº 7.158, de 06 de outubro de 1992. Lei nº 7.631, de 04 de julho de 1995. Lei nº 8.890, de 09
Resolução 304 de 18 de dezembro de 2008. de abril de 2002. Decreto nº 8.425, de 27 de abril de 1984. Decreto nº 9.742, de 20 de junho
de 1990. Decreto nº 11.314, de 29 de agosto de 1995. Decreto nº 11.677, de 24 de janeiro de
82 PORTO ALEGRE. Decreto nº 13.646, de 25 de fevereiro de 2002. 1997. Decreto nº 12.057, de 10 de agosto de 1998.
83 PORTO ALEGRE. Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Acessibilidade. Campanha Res- 90 PORTO ALEGRE. Lei nº 8.972, de 30 de julho de 2002. Dispõe sobre a promoção de passeios
peitar é Legal. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/seacis/default.php?p_noticia=144 turístico-culturais gratuitos à maiores de 65 (sessenta e cinco) anos. Os veículos utilizados, para os
486&PREFEITURA+LANCA+CAMPANHA+RESPEITAR+E+LEGAL. Acesso em: 30.08.2011. fins de que trata, deverão ser adaptados para uso de idosos portadores de deficiência física.
84 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678 de 22 de agosto de 2011. Artigo 6, inciso I. 91 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011.

624 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 625
urbanístico da cidade. A lei inspirou seu conteúdo de outras bases legais 5.4. Secretaria Especial de Acessibilidade e órgãos vinculados
federais, estaduais e até municipais, e instituiu normas básicas de aces-
sibilidade para pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida- abran- Em Porto Alegre, o órgão central do planejamento, da coordenação
gendo nesse segundo grupo, idosos, gestantes, lactantes, pessoas com e controle das políticas públicas voltadas para a inclusão social dos por-
crianças de colo e obesos92. tadores de necessidades especiais é a Secretaria Especial de Acessibili-
O Plano trata de questões importantes do cotidiano dos portadores dade e Inclusão Social98 – SEACIS, integrante do poder público munici-
de necessidades especiais: a exemplo, o artigo 17 dispõe sobre os semá- pal, vinculada diretamente ao prefeito. No rol de funções da Secretaria
foros, que devem estar equipados com mecanismo que sirva de guia ou há a formulação da política de inclusão social aos portadores de neces-
orientação para a travessia de pessoa com deficiência, física ou visual, ou sidades especiais; o acompanhamento, avaliação e fomento de planos,
com mobilidade reduzida em todos os locais onde a intensidade do fluxo projetos e programas voltados ao desenvolvimento social, educacional
de veículos, de pessoas ou a periculosidade na via assim determinarem93. e ao lazer dos portadores de necessidades especiais; a garantia da par-
Podemos citar também, o dever das novas edificações ou as já constru- ticipação dos portadores de necessidades especiais na elaboração das
ídas, quando em reforma, adaptarem-se, tornando-se acessíveis, bem políticas públicas; a adoção de providência garantidoras do cumprimen-
como, a orientação da implantação de pisos táteis (com material antider- to da legislação pertinente aos direitos e deveres dos portadores de
rapante) de alerta e direcional nas calçadas; os cruzamentos e as esquinas necessidades especiais99.
deverão permitir boa visibilidade e fácil identificação da sinalização para A Secretaria está subordinada à Comissão Permanente de Acessi-
livre passagem de pessoas, nas faixas de travessia. A respeito das rotas bilidade- CPA, que tem sua atuação relacionada ao Conselho Municipal
acessíveis94 (calçadas, largos, praças, parques, verdes complementares, dos Direitos da Pessoa com Deficiência – COMDEPA. Esse Conselho é o
orlas e outros atrativos turísticos, junto a ciclo vias e vias), os projetos ne- responsável pelo acompanhamento e implementação política municipal
las implementados, sofrerão rigorosa análise da Secretaria municipal de de atendimento dos direitos das pessoas com deficiência, realizando
Acessibilidade- SEACIS95, devendo atender às regras do acesso universal. desde o cadastro e fiscalização das entidades executoras do atendimen-
Essas rotas deverão conter elementos, tais como, faixa-acessível, que é to às pessoas com deficiência, até o recebimento de denúncias sobre
área destinada à livre circulação de pessoas, desprovida de obstáculos; violações aos direitos das pessoas com deficiência, dando-lhes o enca-
rampas sinalizadas com piso tátil; semáforos luminosos e sonoros. minhamento devido junto aos órgãos responsáveis, sugerindo medidas
O Plano traz previsões sobre o sistema de transporte municipal.96 para a apuração, a cessação e a reparação dessas violações.100
Por exemplo, determina que os terminais, as estações e os pontos de
parada sejam adequados ou adaptados, garantindo os meios de acesso 5.5. Da participação popular
e de utilização devidamente sinalizados.
Ressalte-se que a inobservância das normas do Plano pode ensejar mul- A gestão democrática por meio da participação da população e de
ta e suspensão de permissão, concessão ou licença de funcionamento, a par- associações representativas dos vários segmentos da comunidade na for-
tir da terceira infração, inclusive e sem prejuízo de sanções administrativas e mulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos
cíveis. Por fim, essa norma será orientadora da legislação municipal97. de desenvolvimento urbano é uma das diretrizes gerais da política urba-
92 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011. Artigo 3.
na101. Assim, a construção da acessibilidade nas cidades depende da ado-
93 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011. ção de um Plano Diretor participativo, orientado no diálogo com a socie-
94 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011. Artigo 3. Artigo 12.
Artigos 26 e 27. Artigo 30.
98 PORTO ALEGRE. Lei nº 9.782, de 06 de julho de 2005.
95 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678 de 22 de agosto de 2011. Art. 38. “A SEACIS fica
responsável pela fiscalização do cumprimento ao que dispõe esta Lei Complementar, reportando-se 99 PORTO ALEGRE. Lei nº 9.782, de 06 de julho de 2005. Artigo 3º.
aos demais órgãos municipais para as providências cabíveis.” 100 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 580, de 12 de novembro de 2007. Artigo 1. Artigo
96 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011. Seção VI. 3. Artigo 6, incisos V e X.
97 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 678, de 22 de agosto de 2011. Seção IX. 101 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Artigo 2, inciso II.

626 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 627
dade e seus diferentes segmentos102, ouvindo-se dos próprios cidadãos o mos que há um verdadeiro interesse do poder público na mudança e na im-
que eles precisam, quais são as suas carências e experiências dentro da plementação da acessibilidade em Porto Alegre e nos demais municípios?
cidade103. Gize-se que a participação dos cidadãos não se restringe em Independentemente da resposta a essa questão, o acesso à cidade não
compartilhar experiências ou influenciar decisões: é preciso a sua conti- envolve somente a letra da lei escrita no papel: é preciso o poder público
nuidade no processo de fiscalização da execução das políticas públicas, dar vida à legislação, aplicando-a devidamente ao caso concreto. Ainda,
cobrando dos gestores da cidade, a efetividade e o compromisso. deve estar atento às reais necessidades dos cidadãos e a maneira mais
Um exemplo de participação popular na questão da acessibilidade adequada para entender as demandas socais é através da participação po-
é o da participação popular nas audiências públicas de debate do Pla- pular. Isso, pois é na gestão participativa das cidades, que o cidadão e seus
no Diretor de Acessibilidade de Porto Alegre104. Agora que a lei é uma segmentos representativos irão dividir com a cidade as suas experiências e
realidade é o momento dos cidadãos fazerem valer seus direitos nela lhe dizer das suas necessidades reais que, podem não estar previstas em
assegurados, cobrando do poder público local a efetividade e o compro- qualquer lei ou, mesmo estando, não estar sendo efetivadas-, cobrando
metimento com a questão. das autoridades competentes a concretização dos seus direitos.
Por fim, a construção do espaço urbanístico acessível deve observar
5.6. Da realidade vivenciada na cidade os aspectos legais, integrando a soma dos esforços dos três Poderes
e do olhar através do cidadão para atender ao ideal da democracia participativa. Observando esse
caminho no planejamento e gestão do espaço urbano, tanto em Porto
Conforme exposto, ao longo desse trabalho, o Brasil e, especificamen- Alegre quanto nas demais cidades do Brasil poderão tornar-se cidades
te, o Rio Grande do Sul e Porto Alegre, possui vasta, diversificada e técnica acessíveis a todos os cidadãos.
legislação à respeito do tema “acessibilidade”. Há o Estatuto da Cidade na
esfera nacional, nas cidades, como em Porto Alegre, há os Planos Diretores,
o Código de Obras e, na temática específica da acessibilidade, podemos Conclusão
contar com um plano específico- o Plano Diretor de Acessibilidade. Nesse
sentido, qual será a razão para o grande descompasso entre o idealizado Inobstante o aparato legal e demais instrumentos promotores da
na norma e o que se vê nas ruas dessa cidade? Calçadas esburacadas, ram- acessibilidade, observa-se que há muito ainda a ser feito no País e, em
pas de acessibilidade às calçadas inexistentes ou igualmente esburacadas especial, em Porto Alegre, a fim de concretizar o ideal de acessibilidade.
(quando não mal projetadas), falta de sinalização adequada nas sinaleiras O ponto de partida deve ser o planejamento e a gestão participativa,
somadas à obstrução das esquinas e das faixas de segurança, localização cabendo a todos, poder público e sociedade, a responsabilidade pela
inadequada do mobiliário urbano, o que impede a mobilidade, a acessibili- construção de cidades onde o acesso seja livre, autônomo e para todos.
dade e, mesmo, desorienta os transeuntes.
Nesse contexto, cabe recordarmos que a cidade nasceu de forma ir-
regular e sofreu no seu processo de urbanização os reflexos do não plane- Referências
jamento, do clientelismo e da especulação do mercado imobiliário entre
outros105. Entretanto, inobstante à realidade das ruas, é razoável imaginar- ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade à regularização fundiária : a
trajetória legal da moradia de baixa renda em Porto Alegre-século XX, 2000.
102 BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Capítulo V. 233 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Faculda-
103 PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 434 de 1999. Artigo 1, inciso I. de de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
104 PORTO ALEGRE. Disponível em: http://www2.portoalegre.rs.gov.br/seacis/default.php?p_se- 2000.p.23.
cao=39. Acesso em: 08.09.2011. ROMEIRO, Paulo et al. Regularização fundiária. Le Mode Diplomatique Brasil.
105 ALFONSIN, Betânia de Moraes. Da invisibilidade à regularização fundiária : a trajetória legal 04.12.2008. Disponível em: http://diplomatique.uol.com.br/.
da moradia de baixa renda em Porto Alegre-século XX, 2000. 233 f. Dissertação (Mestrado em
Planejamento Urbano e Regional) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 4ª ed. rev. atual. São Paulo
do Sul, Porto Alegre, 2000. : Malheiros, 2006. páginas 5 e 10.
628 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 629
BRASIL. ABNT NBR 9050:2004. Disponível em: http://www.mpdft.gov.br/sicor-
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BRASIL. Lei nº 10.741 de 01 de outubro de 2003. verificar se o instrumento é utilizado com a finalidade pela
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BRASIL. Decreto Legislativo nº 186 de 09 de julho de 2008. Palavras-chave: Política Urbana, Estatuto da Cidade, Outor-
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RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 8.899, de 29 de junho de 1994. Sumário. Introdução. I. Outorga Onerosa do Direito de
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RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.227, de 05 de janeiro de 2005. rosa do Direito de Construir. III. Gramado e a evolução da
RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 12.749, de 20 de julho de 2007. construção civil. IV. A Outorga Onerosa do Direito de Cons-
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RIO GRANDE DO SUL. Lei nº 13.320 de 21 de dezembro de 2009. na cidade de Gramado (RS) e os resultados. V – Considera-
PORTO ALEGRE. Lei complementar nº 12 de 01 de março de 1975. ções Finais. VI – Referências Bibliográficas.
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A Outorga Onerosa do Direito de Construir é um instrumento de
PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº 284 de 27 de outubro de 1992: Código
de Obras de Porto Alegre política urbana regulamentado pelo Estatuto da Cidade (Lei Federal
PORTO ALEGRE. Lei nº 7.146, de 20 de novembro de 1992.
PORTO ALEGRE. Decreto nº 11.677, de 24 de janeiro de 1997. 1 Advogada, graduada em ciências jurídicas e sociais pela Universidade do Vale do Rio dos
PORTO ALEGRE. Lei nº 7.972, de 18 de março de 1997. Sinos –UNISINOS, especialista em processo civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNI-
SINOS, especialista em processo do trabalho pela Universidade de Caxias do Sul –UCS e mestranda
PORTO ALEGRE. Resolução nº 001 da Secretaria Municipal dos Transportes, em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul –UCS. Membro da Equipe Editorial da
de 28 de maio de 1997. Revista Direito Ambiental e Sociedade da Universidade de Caxias do Sul-UCS. Bolsista FUCS.
PORTO ALEGRE. Lei nº 7.631, de 04 de julho de 1995. 2 Advogada, graduada em ciências jurídicas e sociais pela Universidade de Caxias do Sul
PORTO ALEGRE. Decreto nº 11.314, de 29 de agosto de 1995. - UCS, especialista em processo civil pela Universidade de Caxias do Sul - UCS, especialista em
PORTO ALEGRE. Lei nº 8.287 de 05 de abril de 1999 processo do trabalho pela Universidade de Caxias do Sul - UCS e mestre em Direito Ambiental pela
PORTO ALEGRE. Decreto nº 12.057, de 10 de agosto de 1998. Universidade de Caxias do Sul –UCS. Membro da Equipe Editorial da Revista Direito Ambiental e
Sociedade da Universidade de Caxias do Sul-UCS. Integrante do Grupo de Estudos de Pagamento
PORTO ALEGRE. Lei complementar nº 434 de 01 de dezembro de 1999. por Serviços Ambientais da Universidade de Caxias do Sul-UCS.

630 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 631
10.257/2001). Além de um mecanismo de planejamento e gestão tra­ dos recursos justifica-se como medida de compensação pelo adensa-
ta-se de um instrumento jurídico regulatório do exercício do direito de mento do solo e da infra-estrutura da cidade.
propriedade, autorizando a compra de solo do poder público acima do
limite básico previsto em lei.
O instituto surgiu no Brasil em dezembro de 1976 por ocasião da I. Outorga Onerosa do Direito de
edição da Carta do Embu que introduziu o solo criado, adotando a tese Construir: breve histórico.
de estar o direito de construir inserto no direito de propriedade e no
limite do coeficiente único de aproveitamento. A partir daí, o solo exce- O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Cria-
dente deveria ser adquirido do Poder Público, titular do direito de edi- do) já possuía seus contornos e delimitações muito bem definidos pela
ficar. Assim, a exploração e a valorização da propriedade dependeriam doutrina há longa data, pois sua origem deu-se a partir de discussões
da infra-estrutura pública oriunda dos recursos advindos de toda a co- realizadas em 1971, em Roma, quando um grupo de especialistas da
letividade sem a qual a atividade aplicada à propriedade individual não Comissão Econômica para a Europa, ligada à Organização das Nações
poderia se perfectibilizar. A rentabilidade do solo urbano não decorreria Unidas (ONU), concluiu pela necessidade em dissociar o direito de edifi-
de ação exclusiva do proprietário, mas de um conjunto de ações do se- car do direito de propriedade dada a suposição de que este último deve
tor público e privado. pertencer à coletividade, não podendo ser admitido, senão por conces-
Além dos investimentos públicos e privados incrementarem o uso são ou autorização do Poder Público4. Quem quisesse construir acima
individual da propriedade, há o valor econômico inerente à propriedade do limite fixado deveria efetuar uma contraprestação ao ente público
em si, partindo-se da premissa de haver um padrão correspondente a visando compensar os efeitos no adensamento decorrentes da constru-
esse valor econômico, impedindo que alguns proprietários se privilegias- ção acima do coeficiente único de aproveitamento previsto nos Planos
sem em detrimento de outros3. Diretores. A ideia era que essa contrapartida fosse efetuada na forma
A tradução desse padrão em termos urbanísticos seria o coeficien- de concessão de área próxima a adensada em decorrência da operação,
te único de aproveitamento, que de uma forma justa, faz com que o no espírito estrito da compensação urbanística. Apenas como hipótese
proprietário interessado em criar solo acima do permitido compense o excepcional admitia-se a contrapartida pecuniária, a qual obrigatoria-
Poder Público pelo acréscimo de demanda de infra-estrutura e serviços mente estaria vinculada à compensação gerada pelo adensamento da
urbanos. Assim, o Poder Público asseguraria a proporção entre solos área onde foi aplicado o índice de aproveitamento5.
públicos e privados, com uma equação equilibrada entre atividades pri- O conteúdo do conceito deverá conjugar quatro mecanismos bási-
vadas e as áreas de circulação e de equipamentos públicos e comunitá- cos, os quais são: (a) coeficiente de aproveitamento único; (b) vinculação
rios. a um sistema de zoneamento rigoroso; (c) transferência do direito de
Portanto, a outorga onerosa de criação de solo regula o exercício do construir; (d) proporcionalidade entre solos públicos e solos privados6.
direito de propriedade, garantindo o coeficiente único de aproveitamen- No Brasil, inicialmente foi chamado de Solo Criado7 e originou-se
to a todos os proprietários de terrenos, autorizando a compra de solo da discussão cujo ponto de partida era a urbanização crescente do país
do poder público mediante compensação, visando o equilíbrio das áreas e a célere concentração populacional nas cidades.
da cidade e a igualdade entre proprietários de imóveis. O debate teórico e conceitual teve seu ponto culminante na chama-
Os recursos arrecadados com a outorga do direito de criar solo de- da Carta de Embu8, documento no qual se encontram todas as pre-
vem estar diretamente vinculados à execução de obras e serviços que
4 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 60.
redundem em melhoria das condições de vida urbana, na questão da
5 idem, ibidem, p. 42.
infra-estrutura e na da habitação popular. Essa necessária vinculação 6 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 233.
7 LIRA, Ricardo Pereira. Elementos de Direito Urbanístico. Rio de Janeiro: Editora Renovar,
3 GRAU, Eros Roberto. Aspectos Jurídicos da Noção de Solo Criado. São Paulo: Cepam, 1997. p. 181.
1976. p. 25. 8 CARTA DO EMBU. In: O solo criado/Carta do Embu. São Paulo: Fundação Prefeito Faria

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missas e fundamentos do instituto sendo estabelecido que o criador de ciso V, alínea ‘n’). Portanto, o instituto em comento é um instrumento
solo deveria oferecer a coletividade às compensações necessárias ao jurídico que a municipalidade pode implementar para a concretização
reequilíbrio urbano reclamado pela criação de solo adicional, determi- da política de desenvolvimento urbano, concatenado com o preceito
nado que através de lei municipal o Poder Público estabeleceria um co- estabelecido no artigo 182 da Constituição Federal, onde está prescrito
eficiente único de edificação e o excedente a esse coeficiente seria con- que a propriedade deverá cumprir uma função social.
siderado solo criado. Quanto aos condicionamentos para a edificação Especificadamente, a previsão do instrumento em estudo está no art.
dependente do solo criado preconizava que o Poder Público mediante 28 do Estatuto da Cidade que autoriza o Poder Público municipal, me-
lei municipal, condicionaria a criação de solo a entrega, pelo proprietá- diante previsão no Plano Diretor, a fixar coeficiente de aproveitamento
rio, de quantidade proporcional de áreas ao mesmo Poder, sendo que básico, único, em determinadas áreas ou zoneamentos, facultando à ini-
quando esta dação não fosse materialmente possível, poderia ser subs- ciativa privada construir acima do coeficiente básico até os coeficientes
tituída pelo seu equivalente econômico. Previa-se também a possibilida- de aproveitamento máximo previstos em lei, mediante contrapartida a ser
de de o proprietário, impedido de explorar em seu imóvel a utilização, paga pelo beneficiário. Esse coeficiente de aproveitamento básico permi-
mesmo no coeficiente mínimo, v.g. no caso de imóvel tombado, alienar tido constitui um ativo patrimonial destacado da propriedade do imóvel
a parcela entre o potencial e este coeficiente9. correspondente. Lógico que a comercialização dos índices construtivos
tem de ser analisada de forma criteriosa, pois o Poder Público Municipal
A outorga onerosa nada mais é do que a venda de índices construtivos não poderá vender potencial construtivo como uma fonte de capacitação
(índices de aproveitamento e taxa de ocupação) pelo Poder Público, de recursos, pois a utilização do instituto deve ser uma exceção, pois os
com a finalidade de aumentar a ocupação de uma determinada região
desencontros entre as licenças e permissões urbanísticas e ambientais
subaproveitada, cuja estrutura urbana existente comporta maior ocu-
pação, ou está em vias de construir infraestrutura urbana adequada, trazem prejuíizo a toda a coletividade, pois as cidades sustentáveis fazem
buscando de forma justa a participação da iniciativa privada, na pro- parte de um conjunto de direitos dos quais todos somos destinatários11.
porção do aproveitamento ou dos benefícios utilizados na urbaniza- Recorda-se aqui que desde a Carta de Embu restou estabelecido
ção. Também é denominado de solo criado. Não tem natureza fiscal, que a contra-prestação pela utilização do instrumento em estudo seria
mas fundamentalmente é um instrumento de planejamento urbanís- através de dação em áreas equivalentes àquelas comercializadas além
tico10. dos índices construtivos regulamentados, adotando de forma excepcio-
nal sua substituição pelo equivalente em pecúnia, pois é grande o im-
pacto ambiental provocado pelo aumento da concentração populacio-
II. A Positivação da Outorga Onerosa nal, pois implica em questões ambientais que vão desde a destinação
do Direito de Construir. adequada dos resíduos sólidos até o saneamento básico, tornando-se
um problema ambiental de grande envergadura12.
A inserção do instituto no nosso ordenamento jurídico adveio com Portanto, a sustentabilidade urbana pressupõe esse encontro ne-
a Lei Federal nº. 10.257/2001 que instituiu o Estatuto da Cidade, mais cessário entre a legislação e atuação urbanística e a ambiental13, tor-
especificamente na Seção IX, do Capítulo II, nos artigos 28 a 31. Fri­se- nando-se “necessário, portanto, desenvolver estratégias ambientais
se também que a lei em comento classifica o instituto em análise como especialmente voltadas para as cidades, que favoreçam sua gestão, e
um dos instrumentos jurídicos e políticos da Política Urbana (art. 4, in-
Lima, 1977. 11 PEREIRA, Marlene de Paula, SANTOS, Angela Moulin S. Penalva. Desafios da Política Ur-
9 NETO, Floriano de Azevedo Marques. Outorga Onerosa do Direito de Construir (Solo Criado). bana: Análise de Mecanismos de Gestão de Território que Unificam a Legislação Ambiental Urba-
In: Estatuto da Cidade (Comentários a Lei Federal 10.257/2001). São Paulo: Malheiros, 2002. p. nística. In: Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico Nº. 31. Caderno Direito do
226-227. Patrimônio Cultural. Porto Alegre: Magister Editora, ago/set 2010. p. 40.
10 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: fundamentos para constru- 12 PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. O Desafio Ambiental. Rio de Janeiro: Record, 2004.
ção de um plano diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul, RS: Educs, 2010. p.82
p.188. 13 Nesse sentido vide PORTO-GONÇALVES, op. cit. p. 44-45.

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apóiem a rede urbana, em linha com as premissas do desenvolvimento vo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
sustentável”.14 propriedade urbana (art. 2º. IV, V e IX do Estatuto da Cidade).
O teto máximo para a criação de solo em cada área da cidade de- De acordo com o inciso III do artigo 30 do Estatuto da Cidade, a lei
verá ser fixado tendo em vista a relação de proporcionalidade entre a municipal específica estabelecerá a contrapartida do beneficiário, sendo
infraestrutura urbana existente e o adensamento prospectado na res- que esta formulação abre o leque de possibilidades do pagamento do
pectiva área15. Nesse aspecto, RECH16 menciona que o instrumento ônus não restringindo apenas a possibilidade de pagamento em dinhei-
propicia uma melhor justiça na participação da iniciativa privada e na ro. O Estatuto da Cidade prescreve ainda, em seu artigo 31, que os
construção do projeto de cidade previsto no Plano Diretor, pois faz com recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de cons-
que os particulares invistam na proporção do benefício que tiram da truir e de alteração de uso serão aplicados com as finalidades previstas
urbanização. nos incisos I a IX do artigo 26 do Estatuto20.
Portanto, a comercialização dos índices construtivos deve ser feita de Salienta-se entretanto que a destinação dos recursos não está di-
forma criteriosa e ponderada pelo Poder Público, a fim de não compro- recionada exclusivamente às áreas onde se permite a outorga onerosa,
meter o planejamento urbano municipal delineado no Plano Diretor17 e o que, por outro lado, pode ser estabelecido na lei específica, a fim de
na lei municipal diversa do Plano Diretor e na qual estarão previstas as garantir a capacidade da infra-estrutura instalada21.
regras de cálculo, os critérios e os parâmetros da contrapartida18.
É sem dúvida um instrumento de intervenção do Poder Público, que O importante é que o instrumento seja regulamentado com o objetivo
assegura o cumprimento das funções sociais da propriedade, mas fun- de melhorar a infraestrutura urbana, buscando, com o aumento da
damentalmente busca planejar a política urbana19, que tem por objeti- densificação demográfica, ocasionada por grandes empreendimen-
tos, que sejam geradas segurança, sustentabilidade e bem-estar, pa-
gos por quem se beneficiou22.
14 MAGLIO, Ivan. Cidades Sustentáveis: Prevenção, Controle e Mitigação de Impactos Ambien-
tais em Áreas Urbanas. In: PHILIPPI JR., Alindo et al (Ed.). Municípios e Meio Ambiente: perspec-
tivas para a municipalização da gestão ambiental no Brasil. São Paulo: Associação Nacional de O Solo Criado pode ser um instrumento de indução da implemen-
Municípios e Meio Ambiente, 1999. p. 80. tação dos objetivos da política urbana no sentido da redistribuição de
15 GRAU, Eros Roberto. op. cit. p. 56. oportunidades imobiliárias na cidade e os possíveis efeitos negativos
16 RECH, Adir, RECH, Adivandro. op. cit. 189. que pode ter quando usado de forma a focalizar prioritariamente a ge-
17 Lei Nº. 10.257/2001:
ração de recursos adicionais para a receita municipal. A geração de re-
Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de construir poderá ser exercido
acima do coeficiente de aproveitamento básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada cursos para investimentos municipais pode ser um subproduto para a
pelo beneficiário. outorga onerosa, porém, este não deveria ser encarado como objetivo
§1º Para os efeitos desta Lei, coeficiente de aproveitamento é a relação entre a área edificável e
a área do terreno.
§2º O plano diretor poderá fixar coeficiente de aproveitamento básico único para toda a zona 20 Art. 26. O direito de preempção será exercido sempre que o Poder Público necessitar de
urbana ou diferenciado para áreas específicas dentro da zona urbana. áreas para:
§3º O plano diretor definirá os limites máximos a serem atingidos pelos coeficientes de apro- I – regularização fundiária;
veitamento, considerando a proporcionalidade entre a infra-estrutura existente e o aumento de II – execução de programas e projetos habitacionais de interesse social;
densidade esperado em cada área. III – constituição de reserva fundiária;
Art. 29. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais poderá ser permitida alteração de uso do IV – ordenamento e direcionamento da expansão urbana;
solo, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário. V – implantação de equipamentos urbanos e comunitários;
18 Art. 30. Lei municipal específica estabelecerá as condições a serem observadas para a VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes;
outorga onerosa do direito de construir e de alteração de uso, determinando: VII – criação de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental;
I – a fórmula de cálculo para a cobrança; VIII – proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico;
II – os casos passíveis de isenção do pagamento da outorga; IX – VETADO.
III – a contrapartida do beneficiário. 21 PINHO, Evangelina; FILHO, Fernando Guilherme Bruno. Da Outorga Onerosa do Direito de
Art. 31. Os recursos auferidos com a adoção da outorga onerosa do direito de construir e de al- Construir. In: Estatuto da Cidade Comentado. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2002. Pág.
teração de uso serão aplicados com as finalidades previstas nos incisos I a IX do art. 26 desta Lei. 217.
19 RECH, Adir, RECH, Adivandro. op. cit. p.189. 22 RECH, Adir, RECH, Adivandro. op. cit. p. 192.

636 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 637
principal, uma vez que isto acarretará a destruição do controle do uso habitantes, Gramado é objeto de desejo de dez entre dez gaúchos que
e ocupação do solo, com o encarecimento tal dos produtos imobiliários buscam lazer durante o ano inteiro, sendo que a população flutuante
que inviabilizaria ainda mais seu acesso por fatias amplas da população. (famílias que têm casa local para ocupação de lazer e turismo) já saltou
A aplicação do solo criado tem sido defendida como forma de aden- para 20 mil, refletindo no trânsito da cidade, que começou a ficar pe-
sar, ou seja, aumentar a densidade de ocupação de uma área visando a sado27. Estes fatores proporcionaram uma demanda, principalmente
otimização do uso da infra-estrutura urbana. Portanto, o alicerce funda- nas últimas três décadas, na instalação de uma infra-estrutura turística
mental da instituição da outorga onerosa do direito de construir “acima e urbanística que comporte adequadamente a maciça visitação da ci-
da metragem correspondente ao solo natural é, sem dúvida, o princípio dade, que equivale a uma população flutuante anual correspondente
constitucional da função social da propriedade”.23 a oito vezes a população fixa. Contudo, esta estruturação tem como
desafio a preservação de uma identidade cultural muito peculiar, além
é claro da preservação da paisagem natural e cultural que a cidade
III. Gramado e a evolução da construção civil. dispõe.
Em razão das características singulares atinentes à cidade em tela,
O Município de Gramado está localizado na encosta inferior do nordeste o mercado imobiliário é sempre aquecido, surgindo diariamente novas
do planalto sul-rio-grandense, a 825 (oitocentos e vinte e cinco) metros do ní- construções de prédios residenciais. Consequentemente houve uma
vel do mar. Com área de 237,019 km2 (duzentos e trinta e sete quilômetros e super valorização dos imóveis em toda a cidade ocasionando grande
dezenove metros quadrados) possui uma população de 33.709 (trinta e três especulação imobiliária. Dos imóveis vendidos por ano na cidade, 80%
mil, setecentos e nove) habitantes e é considerado um Município de médio são para compradores de outras localidades, ou seja, serão destinados
porte. Localizado na Região das Hortênsias, Gramado está a 115 km (cento à moradia de lazer. Em razão disso, os preços dos imóveis subiram em
e quinze quilômetros) da capital Porto Alegre, sendo que seus acessos princi- média, 6,8%28.
pais se dão através de duas rodovias estaduais, bem sinalizadas e asfaltadas: Inobstante, no centro da cidade os negócios imobiliários giram em
a RS 115 via Taquara e a RS 235 via Nova Petrópolis24. cifras altíssimas, sendo um negócio altamente rentável construir e ven-
Pólo da imigração alemã e italiana, a cidade possui uma identidade der imóveis na cidade, em especial a área central. Os apartamentos e
cultural muito marcante. Atualmente, o diferencial paisagístico e as bai- lojas localizados na área central valorizaram de 20 a 30% (vinte a trinta
xas temperaturas continuam sendo motivo de procura de visitação, alia- por cento) em um ano, sendo que um apartamento de dois dormitórios,
do com incrementos significativos no setor hoteleiro, pólo gastronômico que era vendido entre R$ 320.000,00 (trezentos e vinte mil reais) e
e turismo de eventos, o que projetou Gramado como terceiro destino R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) em setembro de 2009,
turístico mais desejado do Brasil25. tiveram seu valor majorado para R$ 486.000,00 (quatrocentos e oiten-
Com uma economia voltada ao turismo (70% de sua receita é pro- ta e seis mil reais) em setembro de 2010, sendo que no ano de 2010
veniente da atividade turística), a cidade recebe anualmente cerca de houve um crescimento de vendas de imóveis acima de 15% (quinze por
2,5 milhões de turistas26. Com uma população fixa de 33.709 antes cento)29.

23 DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito urbanístico e am-
27 Disponível em: <http://polibiobraga.blogspot.com/2008/08/80-das vendas-de-imveis-de-gra-
biental. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 43
mado.html>. Acesso em 02.01.2011.
24 FAMURS – Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul. Disponível em:
28 Entrevista concedida pelo engenheiro civil Luiz Américo Bertolucci Guimarães, presiden-
<http://www2.famurs.com.br/informacoesMunicipais/salaEntidade.php?exibeDadosGerais=1>.
te da AGACEI – Associação Gramadense de Arquitetos, Construtores, Engenheiros e Incorpora-
Acesso em 20.08.2010.
dores, ao jornalista Políbio Braga em 01.08.2008. Disponível em <http://polibiobraga.blogspot.
25 Site oficial do Município: <http://www.gramado.rs.gov.br>. Acesso em 26.08.2010. com/2008/08/80-das-vendas-de-imveis-de-gramado.html>. Acesso em 02.01.2011.
26 Ministério do Turismo do Brasil. Disponível em: <http://www.turismobrasil.gov.br/promocional/ 29 Entrevista concedida ao jornalista Miron Neto, em 14.09.2010, pelo presidente da AGACEI
destino/G/Gramado_Canela.html>. Acesso em 26.08.2010. E Secretaria de Turismo do Estado do – Associação Gramadense dos Arquitetos, Construtores, Engenheiros e Incorporadores, engenhei-
Rio Grande do Sul – SETUR. Disponível em: <http://www.turismo.rs.gov.br/portal/index.php?q=est ro civil Luiz Américo Guimarães. Disponível em <http://miron-neto.blogspot.com/search.php?q=
abelecimento&mun=497&cod=37&opt=1&id=&te=s&ts=&fg=4>. Acesso em 26.08.2010. crescimento+mercado+imobili%C3%A1rio&r=0&submit=Buscar#SlideFrame_2>. O referido

638 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 639
IV. A Outorga Onerosa do Direito de Construir índice de aproveitamento (IA) adicional ao permitido e o valor por metro
prevista na legislação de Gramado (RS) quadrado da ATAR que poderá ser comercializado pelo Município, é a
e os resultados. Lei Ordinária nº. 2.377/05 de 18 de outubro de 2005, que além de
criar o Fundo Municipal para Preservação Ambiental – FUNDO VERDE,
A legislação gramadense sobre solo criado está no Plano Diretor de dispôs sobre a outorga onerosa do direito de construir, estabelecendo
Desenvolvimento Integrado – PPDI30 (lei municipal nº. 2497/06) e na lei que constituem recursos do referido FUNDO aqueles provenientes da
municipal nº. 2377/2005. No PPDI está prevista na Seção VII, artigos contrapartida financeira oferecida pela outorga onerosa do direito de
114 a 119, regulamentando que em toda área inclusa no perímetro urba- construir. Segundo a referida lei, os recursos serão depositados em con-
no, nos núcleos urbanos e na zona rural, poderá ser exercido o direito de ta bancária específica e destinados, na proporção de 80% (oitenta por
construir acima dos limites estabelecidos pelo índice de aproveitamento cento) para aquisição, pelo município, de áreas com a finalidade de pre-
(IA) para a respectiva zona de uso, mediante contrapartida financeira a servação da cobertura florestal, ou de interesse paisagístico, bem como
ser prestada pelo beneficiário, a qual poderá ser realizada monetariamen- aquelas já previstas no PDDI, dentro do perímetro urbano e/ou rural,
te, ou seja, em dinheiro, ou em imóvel que reverta ao patrimônio público, com o objetivo de proteção ao meio ambiente; e 20% (vinte por cento)
o qual deve estar livre, desembaraçado e sem edificação. dos recursos serão destinados para identificação e cercamento de áreas
Havendo a contrapartida monetária, os valores arrecadados de- verdes e parques existentes, manutenção, conservação e ampliação de
verão financiar obras de regularização fundiária ou de qualquer bem; áreas públicas destinadas a praças e parques, bem como melhoramento
execução de projetos habitacionais de interesse social; constituição de de passeios públicos e melhorias do mobiliário e equipamentos públicos
reserva fundiária; ordenamento e direcionamento da expansão urbana; urbano e comunitários a eles vinculados, e ainda para manutenção e
implantação de equipamentos urbanos e comunitários; criação de espa- ampliação do cadastro de geo-processamento, fiscalização, palestras,
ços públicos, parques, áreas de lazer e áreas verdes; criação de unida- melhoramento e aperfeiçoamento da legislação municipal, compra de
des de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; veículos para fiscalização e equipamentos, bem como tudo que se rela-
proteção de áreas ou edificações de interesse, histórico, cultural ou pai- cione com o controle e preservação do espaço urbano e rural no Muni-
sagístico; ou preservação de áreas ou edificações de interesse turístico. cípio de Gramado.
O PDDI criou a Área de Terreno Adicional Referencial (ATAR), que se A administração dos recursos do FUNDO VERDE é exercida pela
constitui em uma área fictícia que, anexada à área do lote original, per- Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo e pela Secretaria
mite edificar sobre a mesma acima dos limites previstos na respectiva Municipal do Meio Ambiente (SEMA), mediante emissão de parecer
zona de uso, sendo que o valor por metro quadrado da ATAR é encon- do Conselho do PDDI e SEMA ou do Conselho Municipal de Defesa do
trado na planta de valores do Município, vigente para a respectiva zona Meio Ambiente (COMDEMA) quando envolver o recebimento de imó-
urbana. veis como pagamento ou, aquisição por parte do Município, de áreas
A Lei específica cuja criação foi determinada no PDDI de Gramado verdes destinadas à preservação ambiental ou paisagística.
e que deveria estabelecer os critérios, as zonas de uso, o percentual de As obras executadas em desacordo com os limites dos requisitos
urbanísticos estabelecidos no PDDI do Município de Gramado terão sua
engenheiro, também representando a AGACEI, informou em entrevista à assessoria de imprensa regularização efetivada mediante a aquisição de ATAR através da ou-
da Imobiliária Auxiliadora Predial que até o ano de 2006 houve uma forte especulação no setor torga, pelo Município e aquisição pelo proprietário ou responsável de
imobiliário de Gramado em decorrência de uma demanda maior do que a oferta, resultando em
um crescimento desordenado na construção civil local, o que fora regularizado com o advento do
ATAR, pelos valores constantes na Planta de Valores de acordo com a
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de Gramado, sendo que no primeiro semestre de zona em que o imóvel a ser regularizado se situa.
2008 a Imobiliária Casa da Serra dobrou o seu número de vendas em relação a 2007. Disponível Outra forma de pagamento é através da dação de imóveis de inte-
em: <http://www.auxiliadorapredial.com.br/alugueis/conteudo/releases.asp?InCdNoticia=177>.
Ambos acessos em 02.01.2011. resse do Município, desde que respeitada a equivalência da Planta de
30 Disponível em: <http://www.gramado.rs.gov.br/index.php/Gramado/Planejamento-e-Urbanis- Valores, eis que a tanto a avaliação da ATAR quanto o valor do imóvel
mo/>, acesso em 10.12.2010.

640 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 641
oferecido em pagamento devem ter o mesmo valor independente de encaminhamento do projeto de regularização para aquisição da ATAR
suas áreas em metro quadrado (m²). A aquisição da ATAR e sua conse- e o mesmo tenha parecer favorável do Conselho do PDDI do Município
quente incorporação a área adicional do lote original de forma fictícia, de Gramado e seja recolhido junto a Tesouraria do Município o valor
será objeto de cobrança de IPTU e a regularização poderá ser voluntária correspondente a mesma, ou a outorga da escritura pública do imóvel,
ou compulsória. ficando a parte a regularizar para vistoria e liberação do HABITE-SE,
No primeiro caso, dá-se mediante requerimento do proprietário ou posteriormente.
responsável pela obra, acompanhado do respectivo projeto, identifican- Segundo dados da Secretaria do Planejamento do município de
do de forma clara, em diferentes cores, o que se pretende regularizar. Gramado-RS, no período de 2005 a 2010, 95% (noventa e cinco por
A regularização será concedida somente através de parecer prévio fa- cento) dos empreendimentos imobiliários da cidade (edifícios residen-
vorável do Conselho do PDDI e do CONDEMA, observado o disposto na ciais) optaram pelo instituto do solo criado, sendo que em nenhum caso
Lei do FUNDO VERDE quanto ao valor a ser recolhido à Tesouraria do o pagamento ocorreu com dação de imóveis31.
Município. Quando a regularização ocorrer mediante a entrega de um Nos chama atenção o artigo oitavo (8º) da Lei do FUNDO VERDE
imóvel com a finalidade de preservação ambiental, esta será concedida no que tange aos recuos obrigatórios, quando estipula que se a obra
após emissão de parecer do COMDEMA, após a outorga ao Município foi executada em desacordo com os recuos obrigatórios previstos para
da escritura pública do imóvel a ser dado em pagamento, devendo ficar o zoneamento de referência, incluindo box e estacionamentos obriga-
gravado na matrícula do mesmo a origem da aquisição. tórios, pergolado, piscinas, quadras externas, deck e assemelhados,
Sendo compulsória, o proprietário ou responsável será notificado o proprietário ou responsável deverá adquirir a ATAR necessária para
da irregularidade existente sendo-lhe concedido um prazo de trinta (30) atender as dimensões mínimas dos recuos estabelecidos no Plano Dire-
dias para regularização voluntária, e esta não não ocorrendo, o expe- tor para respectiva zona de uso, ressalvado se a obra ocupar mais do
diente administrativo devidamente instruído será encaminhado ao Con- que vinte por cento (20%) do recuo frontal, oportunidade na qual po-
selho do PDDI para deliberação. Havendo parecer favorável por parte derá ser regularizado este percentual restante, devendo ser demolida à
do Conselho do PDDI para a regularização da obra, o valor acrescido de custa do infrator antes da regularização. Da mesma forma, não poderão
eventuais multas ou penalidades devidas conforme determina a lei, será ser regularizados recuos, onde está previsto recuo viário ou outro moti-
lançado em divida ativa em favor do Município, sendo ainda acrescido vo de interesse público.
um percentual de vinte e cinco por cento (25%) sob a dívida a título de Ainda no artigo em comento, ressalta-se a estipulação sobre a altu-
multa pela inobservância dos limites dos requisitos urbanísticos previs- ra e número de pavimentos das edificações, eis que se a obra foi execu-
tos no Plano Diretor e pelo desinteresse do infrator em adequar-se a tada com altura e ou o número de pavimentos superior aquela prevista
legislação vigente na época da construção. Sendo desfavorável o pare- no Plano Diretor, o proprietário ou responsável deverá adquirir ATAR
cer do Conselho do PDDI do Município de Gramado, a regularização da necessária para atender o exigido pelo Plano Diretor na respectiva zona
obra que não tenha atendido as limitações impostas pelos requisitos de uso e, para o cálculo da mesma deverá ser considerada a área total
urbanísticos do Plano Diretor será objeto de ação judicial demolitória, do pavimento a regularizar. A área do sub-telhado não é considerada
sem indenização, sendo que todas as despesas decorrentes para o cum- na altura da edificação, portanto é passível de regularização a qualquer
primento da decisão judicial deverão ser suportadas pelo infrator. momento, mediante a compra da ATAR, sendo que esta área do sub-
Nos casos de regularização de obra, seja concluída ou em constru- telha­do, nos termos previstos no Plano Diretor, poderá ser adquirida
ção, o HABITE-SE será expedido pelo órgão responsável da Prefeitu- por ocasião da aprovação do projeto de construção mediante a compra
ra após a apresentação do termo de quitação do pagamento referente da ATAR, desde que o adicional do Índice de Aproveitamento (IA) da
à compra da ATAR efetuada para regularização, nos termos previstos respectiva zona seja acrescido no máximo em 15% (quinze por cento)
no Código Tributário do Município. O proprietário poderá requerer o ao permitido.
HABITE-SE da obra referente ao projeto aprovado desde que faça o
31 Informações prestadas ao telefone pela Secretaria de Planejamento em 26 jan. 2011.

642 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 643
Segundo dados da Secretaria do Planejamento de Gramado, no pe- V. Considerações Finais
ríodo de 2005 a 2010, 100% (cem por cento) dos empreendimentos
imobiliários da cidade possuem sub-telhado os quais são comercializa- O instituto da Outorga Onerosa do Direito de Construir é concei-
dos como apartamentos ou escritórios de cobertura32. tuado como toda área edificável além do coeficiente único de apro-
Criticamos esta disposição legal porque nos parece tratar de veitamento do lote, legalmente fixado para o local. Será sempre um
uma autorização legal para burlar a própria lei. Seja porque autori- acréscimo ao direito de construir além do coeficiente básico de apro-
za o proprietário ou responsável pela obra a construir um pavimen- veitamento estabelecido pela lei; acima desse coeficiente, até o limite
to a mais, denominado sub-telhado, burlando de imediato as limi- que as normas edilícias admitirem, o proprietário não terá o direito
tações urbanísticas relativas a altura das edificações, limites estes originário de construir, mas poderá adquiri-lo do Município, nas condi-
que foram estipulados com fundamento em estudos sobre a infraes- ções gerais que o Plano Diretor dispuser para a respectiva zona.
trutura, a capacidade viária e de saneamento básico daquela zona. O instituto teve sua origem no Brasil através da Carta de Embu sendo
Seja porque a reposição em pecúnia não resolverá a necessidade de
inserta em nosso ordenamento jurídico em 2001, através da Lei Fede-
absorção e adequação dos requisitos urbanísticos em relação à so-
ral 10.257/2001, denominada Estatuto da Cidade, sendo um excelente
brecarga que incidirá sobre os serviços públicos então existentes e
instrumento jurídico que possibilita a redistribuição das mais-valias do
cuja disponibilidade está atrelada a um determinado adensamento
processo de urbanização das cidades.
demográfico.
A cidade de Gramado, localizada na Serra Gaúcha, prevê o instituto
Especificamente na cidade em estudo, resta claro que essa permissi-
da Outorga Onerosa do Direito de Construir em seu Plano Diretor e re-
vidade, que deveria ser utilizada como exceção, virou regra e a altura das
edificações é sempre utilizada acima dos limites urbanísticos estipulados gulamenta sua efetivação em lei ordinária, havendo um desvirtuamento
no Plano Diretor. Ou seja, sob nossa ótica, só há benefícios ao empre- do instituto pois na normatização jurídico-urbanística de Gramado ocor-
endedor, que lucrará mais, pois terá mais unidades à disposição para reu a priorização dos interesses da construção civil em detrimento do
venda, em detrimento da coletividade eis que não se vislumbra, na lei, a uso dos instrumentos urbanísticos, entre eles o objeto deste estudo.
obrigatoriedade do empreendedor na efetiva construção ou readequação O solo criado, na forma como foi previsto pela legislação municipal,
da infraestrutura urbanística visando a sustentabilidade da cidade33. não se prestou ao fim primeiro de incentivo ou contenção do desenvolvi-
Perceber essa realidade e consequências advindas, significa mento de áreas da cidade, prejudicado que foi pela banalização da uti-
preocupar-se em adotar políticas públicas setoriais de planejamento lização do instituto. O que era uma expectativa acabou tendo um papel
urbano integradas a preservação cultural, paisagística e ambiental secundário, servindo apenas como moeda de troca em caso de ajuste
da cidade, que atendam aos interesses da comunidade local e não ou adensamento disfarçado.
exclusivamente dos empreendedores imobiliários, a fim de que pre-
valeça o interesse coletivo e o bem-estar social sob o interesse de
particulares, articulando políticas efetivas de planejamento e organi- Referências
zação urbana.
ALLOCHIO, Luiz Henrique. Do Solo Criado. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005.
32 Informações prestadas ao telefone pela Secretaria de Planejamento em 26 jan. 2011. BARROSO, Vera Lúcia Maciel; DAROS, Marília (Org.). Raízes de Gramado. Por-
33 O uso indiscriminado do instituto é tamanho que em 12.04.2011 o Prefeito Municipal assinou to Alegre: EST, 2000.
documento regulamentando moratória de 120 dias para a compra de índice em projetos de novas
construções em Gramado. A decisão havia sido tomada um dia antes pelo Conselho do Plano Di- BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Bra-
retor e pela Condema e visava atingir grandes obras e possíveis Shoppings em Gramado. Com esta sil. Brasília, DF: Senado, 1988.
moratória, a Secretaria do Planejamento ficou impedida de protocolar qualquer projeto que envolva
BRASIL. Lei n.º 10.257, de 10 de julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 e
compra de índices no período da moratória. Disponível em: <http://www.falagramado.blog.br/index.
php?option=com_content&view=article&id=1232:prefeito-atende-conselhos-e-declara-moratoria- 183 da Constituição federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá
-em-grandes-obras-em-gramado&catid=57:geral&Itemid=62>. Acesso em 02.05.2011.

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biental e Urbanístico. Ano IV, Nº. 22, Porto Alegre: Magister, Bimestral (fev/ contingência, em meados da década de 1990, começou a
mar/abr09). p. 24-35. se delinear uma nova forma de gestão metropolitana pauta-
_____. A Outorga Onerosa do Direito de Criar Solo: da carta de Embu ao Estatu- da pelo fortalecimento do campo de ação dos governos mu-
nicipais e intensificação do papel regulatórios dos governos
to da Cidade. In: Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Ano
estaduais e federal, sendo este responsável pelo incremento
III, Nº. 18, Porto Alegre: Magister, Bimestral (jun/jul08). p. 78-100. dos recursos para setores estratégicos da gestão metropo-
litana. Não obstante o avanço no tratamento da questão
metropolitana no Brasil, as experiências de gestão compar-
tilhada em aglomerações metropolitanas ainda encontram
inúmeras dificuldades. Neste contexto, o presente artigo
pretende discutir o planejamento e a gestão metropolita-
nos em aglomerações urbanas formadas por municípios de
médio e pequeno porte com pouca expressão econômica a
partir de um breve estudo do caso da Região Metropolitana
de Maceió (RMM).
Palavras-chave: planejamento, gestão, região metropolita-
na, Maceió.

Introdução

O tratamento da questão urbana, no Brasil, foi permeado por di-


ferentes princípios e fundamentos que foram se suplantando uns aos
outros ao longo da história, em grande maioria, importados dos paí-
ses considerados centrais. Segundo Queiroz Ribeiro e Cardoso (1996),
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional (PROPUR/
UFRGS).

648 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 649
no período de transição entre os séculos XIX e XX, o caráter rural do conferir um tratamento demasiadamente genérico da questão metro-
país era exaltado através de concepções antiurbanas de constituição politana, delegada aos estados pela Constituição Federal de 1988. Foi
da sociedade. O campo seria, neste sentido, o ambiente ideal para o em meados da década de 1990 que começou a se delinear uma nova
desenvolvimento da nação, que se daria por força da ação do Estado forma de gestão metropolitana pautada pelo fortalecimento do campo
em seu papel de provedor maior. Com o avançar do século XX, ganhou de ação dos governos municipais e intensificação do papel regulatórios
força a vida nas cidades, que passaram a ser tratadas como símbolo dos governos estaduais e federal, sendo este responsável pelo incre-
do novo status quo da elite burguesa, que queria viver em ambientes mento dos recursos para setores estratégicos da gestão metropolitana
moldados segundo os princípios da estética européia. O processo de (AZEVEDO & MARES GUIA, 2004).
urbanização foi decisivamente impulsionado com a importação do ide- Não obstante o avanço no tratamento da questão metropolitana
ário desenvolvimentista na década de 1950, quando a questão urbana no Brasil, as experiências de gestão compartilhada em aglomerações
foi enfaticamente deslocada para o eixo econômico. Foi neste momen- metropolitanas ainda encontram inúmeras dificuldades, sobretudo im-
to que a “a constituição da nacionalidade deixa, definitivamente, de passes para conciliação dos instrumentos institucionais das diferentes
ser buscada numa ‘essência rural’ para ser valorizada uma perspectiva esferas de governo. Tendo em vista que a gestão metropolitana está
industrializante e modernizadora, vista como a ‘redenção’ do país, fór- condicionada à regulação estadual, são muito variadas as formas de
mula para a superação do atraso” (QUEIROZ RIBEIRO & CARDOSO, abordagem da questão nas unidades da Federação.
1996, p. 67). Neste contexto, o presente artigo pretende discutir o planejamento
Neste cenário de desenvolvimento industrial, intensificam-se os e a gestão metropolitanos em aglomerações urbanas formadas por mu-
movimentos de êxodo rural e o consequente crescimento das cidades, nicípios de médio e pequeno porte com pouca expressão econômica a
consolidando-se, “em torno das principais capitais do país, regiões ur- partir de um breve estudo do caso da Região Metropolitana de Maceió
banas que se comportavam como uma única cidade, m cujo território, (RMM).
submetido a diversas administrações municipais, as relações cotidia-
nas haviam se tornado cada vez mais intensas” (AZEVEDO & MARES
GUIA, 2004, p. 99). Estava se instaurando, neste contexto, o debate 1. Alagoas e a Região Metropolitana de Maceió: uma
metropolitano, reconhecido pelo Poder Público através da criação de breve caracterização sócio-econômica
nove regiões metropolitanas no país envolvendo as principais capitais.
Segundo texto da Lei Complementar Federal 14, de 1973, foram cria- O estado de Alagoas é formado por 102 municípios distribuídos so-
das as regiões metropolitanas “com o objetivo de ‘promover o pla- bre uma área territorial de 27.767,661 km². Segundo dados do Censo
nejamento integrado e a prestação de serviços comuns de interesse 2010 (IBGE), a população residente do estado é de 3.120.494 habitan-
metropolitano’, sob o comando do estado membro” (SOUZA, 2004, p. tes. Considerando a distribuição dos municípios por classe de porte po-
61). pulacional, tem-se que a quase totalidade dos municípios possui menos
Reconheceu-se que, para além da contiguidade espacial dos terri- de 100 mil habitantes, sendo, do total de municípios, mais da metade
tórios, os municípios componentes de regiões metropolitanas possuíam (54,90%) pertencente à faixa de 5.000 a 20.000 habitantes.
interesses e necessidades comuns que precisavam ser geridos de forma A divisão político-administrativa do estado é feita em 7 regiões, que
compartilhada. Entretanto, com a instauração do regime militar, foram podem ser vistas no mapa abaixo. A faixa litorânea, que compreende as
impostos, pelo governo federal, modelos de gestão metropolitana pa- regiões Norte, Sul e Metropolitana de Maceió, compreende os núcleos
dronizados, que acabaram sufocando as particularidades locais. Gerou- iniciais de povoamento do estado, que se desenvolveu em função da
-se, assim, um movimento de municipalização em busca da autonomia atividade canavieira. As demais regiões apresentam atividades produti-
local suprimida pelo regime. Neste sentido, instaurou-se o modelo do vas diferenciadas, predominando, todavia, uma forte dependência em
“neolocalismo”, que, em nome da autonomia municipal, acabou por relação ao setor primário.

650 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 651
Dentre todos os estados da Federação, Alagoas ocupava, em 2008,
a 21ª posição em relação aos índices de PIB. Segundo dados do IBGE,
o cultivo de cana-de-açúcar e de outros produtos da lavoura temporária,
representaram, naquele ano, 87,3% do valor agregado da agricultura
em 2008, setor de maior peso na economia do estado.
Com relação ao desenvolvimento humano no estado, os índices
(análise combinada dos índices de PIB, longevidade e educação) dos
municípios de Alagoas figuram também entre os piores do país. No ano
de 2000, o estado apresentava o segundo menor IDH do Brasil (0,649),
perdendo apenas para o estado do Maranhão (0,636)2.
Não obstante os baixos níveis de desenvolvimento econômico que
marcam o estado de Alagoas, o processo de expansão do tecido urba-
no também pôde ser verificado em seu território, sobretudo na capi-
tal - Maceió - e municípios adjacentes, culminando com a constituição
da aglomeração urbana a que se denominou Região Metropolitana de
Mapa 1. Divisão político-administrativa de Alagoas. Fonte: http://www.cultura.al.gov. Maceió (RMM). A RMM foi instituída em 1998 por força da Lei Comple-
brpoliticas-e-acoesmapeamento-cultural-1mapasMAPA%20REGIOES%20AD-
mentar nº 18, agregando os seguintes municípios: Maceió, Paripueira,
MINISTRATIVAS2.jpgview
Barra de Santo Antônio, Messias, Rio Largo, Pilar, Santa Luzia do Norte,
Satuba, Barra de São Miguel, Marechal Deodoro, Coqueiro Seco. Com
No cenário econômico nacional, o estado de Alagoas tem participa- se pode observar no quadro a seguir, todos os municípios da RMM re-
ção pouco expressiva, figurando entre as faixas de mais baixo PIB do gistraram aumento da população residente entre 1991 e 2010, com
país, como se pode ver no mapa a seguir. exceção de uma pequena redução verificada no município de Barra de
Santo Antônio entre os anos de 1991 e 1996.

Tabela 1. Evolução da população residente nos municípios


da RMM entre 1991 e 2010. Fonte: IPEAdata.

Município 1991 1996 2000 2007 2010
Maceió 583343 667827 795804 896067 932129
Rio Largo 38525 39382 49919 53542 55947
Marechal Deodoro 14658 17451 29837 37578 43392
LEGENDA Pilar 22248 25733 28166 30077 31801
Messias 6308 7584 9552 13612 14263
PIB dos estados brasileiros em bilhões
Barra de Santo Antônio 5643 5469 9574 12362 13242
de reais Satuba 5790 5826 9975 11029 12792
Paripueira   6742 7085 8438 10049
+ 500 + 10 Barra de São Miguel 3501 4732 5241 6122 6521
+ 120 +5 Santa Luzia do Norte 5083 5139 5446 6396 6172
+ 60 até 5 Coqueiro Seco 4203 4547 4574 4747 4973

Mapa 2. PIB dos estados brasileiros - em destaque Alagoas. Fonte: wikimedia, 2011.
2 Dados extraídos do Atlas de Desenvolvimento Humano (PNUD, 2000).

652 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 653
Pela análise dos dados populacionais, pode-se perceber que a RMM Art. 41. O Estado poderá, mediante lei complementar, instituir re-
é uma aglomeração urbana formada por municípios de pequeno por- giões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, cons-
te em sua maioria, devendo ser entendida a partir de uma dinâmica tituídas de Municípios limítrofes, para integrarem a organização, o
planejamento e a execução de funções públicas de interesse co-
urbano-regional específica. Apesar de polarizar os municípios contíguos,
mum.
Maceió é considerada uma mesorregião marcada por isolamento indus-
trial e administrativo, subordinada à macrorregião de Recife (LEMOS,
Atendendo ao disposto na Constituição do Estado, a Lei Com-
2000).
plementar nº 18, de 1998, criou a Região Metropolitana de Maceió
Segundo classificação da Política Nacional de Desenvolvimento Re-
(RMM), constituindo uma unidade organizacional, geoeconômica, social
gional, elaborada pelo Ministério da Integração, os municípios da RMM
e cultural cujas funções públicas de interesse comum devem ser organi-
são do tipo Alta Renda, com exceção de Messias que é do tipo Baixa
zadas, planejadas e executadas de forma compartilhada. Como funções
Renda. Já a tipologia proposta pela Política de Dinamização Regional,
públicas de interesse comum, a LC 18 estabelece as seguintes:
do BNDES, classifica os municípios da RMM como estagnados, distribu-
a) Ordenação territorial de atividades: estruturação urbana, movi-
ídos nas seguintes classes:
mento de terras, parcelamento e uso do solo;
b) Desenvolvimento econômico e social com ênfase na geração e
Tabela 2. Tipos regionais para os municípios da
distribuição de renda; infraestrutura econômica: insumos energéticos,
RMM segundo tipologia da PDR (BNDES).
comunicação, terminais, entrepostos, rodovias, ferrovias, dutovias;
c) Sistema viário e trânsito: fluxos de bens e pessoas;
Município PIB (per capita) Classe
d) Captação, adução, tratamento e distribuição de água potável;
Maceió 9894.02 Alta Renda e) Coleta, transporte, tratamento e destinação de esgotos sanitá-
Santa Luzia do Norte 9303.64 rios e resíduos urbanos;
Barra de São Miguel 5700.44 f) Macrodrenagem de águas superficiais e controle de enchentes;
Rio Largo 4956.44 g) Políticas de habitação de interesse social; qualidade ambiental;
Média Renda Inferior
Satuba 3746.87 h) Educação e capacitação de recursos humanos;
Marechal Deodoro 3421.67 i) Saúde, nutrição e abastecimento alimentar).
Coqueiro Seco 3258.28
O mesmo diploma legal define a estrutura institucional que deve ser
Pilar 6488.86
constituída para viabilizar as ações de planejamento e gestão metropo-
Paripueira 3812.61
Baixa Renda litanos. Ligado à Secretaria de Estado do Planejamento e do Desenvol-
Barra de Santo Antônio 3585.49 vimento Econômico, deve ser instituído o Sistema Gestor Metropolitano
Messias 3342.29 formado pelos seguintes órgãos/institutos:
a) Conselho de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Ma-
ceió: composto, para fins deliberativos, pelos prefeitos dos municípios
2. Planejamento e Gestão Compartilhados membros da RMM e por representantes do Poder Executivo Estadual
na Região Metropolitana de Maceió em igual número, estes nomeados pelo chefe do executivo estadual;
para fins consultivos, participam 3 parlamentares estaduais, indicados
A possibilidade de instituição de regiões metropolitanas é prevista pela Assembléia Legislativa e 1 parlamentar representante da cada Câ-
pela Constituição do Estado de Alagoas, promulgada em 1989. A men- mara Municipal dos Municípios da Região Metropolitana de Maceió;
ção ao tema, todavia, é muito superficial, dedicando apenas um artigo b) Secretaria Executiva da Região Metropolitana de Maceió: forma-
que estabelece o seguinte: da por câmaras técnicas setoriais, compostas, cada uma delas, por 12

654 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 655
membros, sendo 6 do setor público, 2 do segmento empresarial, 2 do produção do próprio estado) para financiamento de políticas públicas,
meio acadêmico - profissional e 2 da comunidade; em todo o estado, é pequeno. Na RMM, além dos recursos limitados,
c) Fundo de Desenvolvimento da Região Metropolitana de Maceió: verifica-se uma grande disparidade na geração de riqueza entre os mu-
instituto financeiro. nicípios membros. Como se pode ver no quadro abaixo, Maceió, em
Ao Sistema Gestor Metropolitano cabe a responsabilidade de de- 2008, foi responsável, sozinha, por 85% de todo o PIB da RMM, sendo
finir critérios para ação compartilhada entre estado e municípios, que, quase insignificante a participação dos demais municípios neste índice.
conforme estabelece a citada lei, pode se dar por meio de sub-regiões Naquele ano, a riqueza gerada por Maceió foi mais de 12 vezes maior
a serem definidas de acordo com a necessidade imposta, desde que do que a riqueza produzida pelo segundo município com maior partici-
sejam firmados consórcios intermunicipais. Quanto aos instrumentos de pação no PIB da RMM, Marechal Deodoro.
planejamento e gestão, são definidos, pela Lei Complementar 18, os
seguintes: Tabela 3. PIB dos municípios da RMM e participação percentual.
a) Plano Diretor da RMM; Dados IPEAdata, elaborada pela autora.
b) Planos e programas setoriais;
c) Plano Diretor de Informações para o Desenvolvimento; Participação Participação
d) Legislação urbanística e ambiental; Município PIB (ano 2008) PIB RMM PIB Estadual
e) Planos plurianuais; (%) (%)
f) Diretrizes orçamentárias;
Maceió R$ 4.732.975,17 85,01945228 46,94538805
g) Orçamentos anuais;
Marechal Deodoro R$ 383.309,04 6,88546287 3,801961994
h) Política fiscal e tributária;
Rio Largo R$ 172.817,58 3,10435939 1,714141321
i) Convênios, acordos, consórcios, contratos multilaterais e outros
Pilar R$ 109.317,15 1,963687461 1,084293857
instrumentos de cooperação intermunicipal e intergovernamental.
Santa Luzia do Norte R$ 35.964,97 0,646046462 0,356728972
Satuba R$ 28.285,72 0,508102456 0,280560111
A previsão legal de instrumentos de planejamento e gestão com-
Messias R$ 26.897,55 0,483166409 0,266791116
partilhados para a Região Metropolitana de Maceió, todavia, não foi
Barra de Santo Antônio R$ 26.278,67 0,472049493 0,260652663
suficiente, até o momento, para tornar efetivas ações neste âmbito. O
Barra de São Miguel R$ 22.033,16 0,395786455 0,218542324
Sistema Gestor Metropolitano, após treze anos de criada a RMM, ainda
Paripueira R$ 19.788,62 0,355467161 0,196279126
não foi constituído, o que inviabiliza a aplicação de qualquer instrumen-
Coqueiro Seco R$ 9.264,46 0,166419567 0,091892278
to de planejamento e gestão compartilhados uma vez que cabe ao Sis-
PIB TOTAL RMM R$ 5.566.932,09
tema definir os critérios para ação conjunta entre os municípios.
Discutindo a questão dos impasses que obstam as ações conjun-
tas de planejamento e gestão metropolitanos, Azevedo e Mares Guia O cenário que se configura na RMM, desta forma, é uma aglome-
(2004) chamam a atenção para a grande dificuldade de se estabelecer ração formada predominantemente por municípios de pequeno por-
critérios para definição das fontes de financiamento das funções públi- te populacional e pouquíssima expressão econômica. Neste sentido,
cas de interesse comum, de modo que as despesas tendam a recair com para concretizar as funções públicas de interesse comum dos muni-
maior peso sobre a cidade-pólo da região metropolitana. cípios da região, a responsabilidade financeira acabará por recair,
No caso da Região Metropolitana de Maceió, o problema parece em grande proporção, sobre a cidade-pólo. Talvez, por esta razão,
se agravar. Trata-se de uma região de pouca expressão econômica, in- dentre outras possíveis de caráter político, até hoje não foram regu-
serida em um estado com um dos menores PIB do país, como aponta- lamentadas as ações de planejamento e gestão metropolitanos. So-
do anteriormente. De modo geral, o aporte de recursos (oriundos da bre a questão, convém evocar as palavras de Azevedo e Mares Guia
(2004, p. 104):
656 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 657
Na ausência de regras claras, os municípios maiores de cada re- Referências
gião metropolitana, bem como os governos estaduais, quase sem-
pre resistem à regulamentação de instrumentos e mecanismos ALAGOAS. Constituição do Estado de Alagoas. Publicada no DOE de 5 de
concretos de repasse de recursos para as agências metropolita-
outubro de 1989.
nas, uma vez que temem aportar maior volume dos recursos sem
AZEVEDO, S., MARES GUIA, V. Os dilemas institucionais da gestão metropolita-
necessariamente uma contrapartida proporcional no que respeita
ao processo de tomada de decisão quanto à alocação desses re- na no Brasil. in RIBEIRO, L. C. (org.). Metrópoles entre a coesão e a fragmen-
cursos. tação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo;
Rio de Janeiro: FASE, 2004.
A resistência, no caso da RMM, não se verifica apenas na defini- BNDES. Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. Política de
ção de critérios para alocação de recursos para a concretização das Dinamização Regional: critério de classificação de microrregiões. Disponível
funções públicas de interesse comum. Nem mesmo o Sistema Gestor em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/bndes/bndes_pt/Institucional/Apoio_
Metropolitano foi constituído, sendo esta a condição primeira para Financeiro/Politicas_Transversais/pdr.html. Acesso em: agosto, 2011.
a viabilização de ações compartilhadas de planejamento e gestão na BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Política Nacional de Desenvolvi-
mento Regional. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.integracao.gov.br/
RMM.
desenvolvimentoregional/pndr/tipologia.asp. Acesso em: julho, 2011.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística. Sinopse do Censo Demográfico 2010. Disponível
Considerações Finais
em: www.ibge.gov.br. Acesso em: junho, 2011.
_______. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instituto Brasileiro
O processo de expansão urbana nos municípios brasileiros não foi
de Geografia e Estatística. Contas Regionais do Brasil 2004-2008. Rio de
acompanhado, em muitos casos, da necessária infraestrutura de plane-
Janeiro: IBGE, 2010.
jamento e gestão do território. A formação de regiões metropolitanas, LEMOS, M. B. et al. A Nova Geografia Econômica do Brasil: uma proposta
como decorrência deste processo, nem sempre foi pautada pelos arran- de regionalização com base nos pólos econômicos e suas áreas de influência.
jos institucionais imperativos para a viabilização de ações conjuntas de Belo Horizonte: UFMG/Cedeplar, 2000. (Texto apresentado no IX Seminário
planejamento e gestão. sobre a Economia Mineira, Diamantina, 29 de agosto a 1° de setembro de
A Região Metropolitana de Maceió, brevemente discutida no 2000).
presente trabalho, parece ter surgido como mera contingência da QUEIROZ RIBEIRO, L. C. & CARDOSO, A. L. Da cidade à nação: gênese e evo-
expansão dos tecidos urbanos de municípios circunvizinhos, não ten- lução do urbanismo no Brasil, In: QUEIROZ RIBEIRO, L. C. & PECHMAN, R.
do sido institucionalizado, até hoje, qualquer mecanismo de gestão (org.). Cidade, povo e nação: gênese do ur banismo moderno. Rio de Janeiro:
compartilhada do território que se originou desse processo de conur- Civilização Brasileira, 1996, pp. 53-78.
bação. SANTOS JUNIOR, O. A. (coord.). Arranjos institucionais para a gestão me-
A previsão legal de todo um sistema de gestão metropolitana, do- tropolitana. Relatório de pesquisa CNPQ. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2009.
tado de instrumentos diversos, é um elemento inicial para a construção Disponível em: http://www.observatoriodasmetropoles.ufrj.br/relatorio_arran-
de políticas públicas de desenvolvimento regional. Todavia, é preciso jos_gestao_metropolitana.pdf. Acesso em: 10 de agosto de 2011.
avançar e tornar efetivo o que dispõe a lei, superando os entraves eco- SOUZA, C. Regiões metropolitanas: trajetória e influência das escolhas institu-
nômicos e políticos que se colocam em prol, em última instância, do cionais. in RIBEIRO, L. C. (org.). Metrópoles entre a coesão e a fragmenta-
interesse coletivo, sempre visando à melhoria da qualidade de vida das ção, a cooperação e o conflito. São Paulo: Ed. Fundação Perseu Abramo; Rio
pessoas envolvidas, aquelas que devem, sempre, ser o alvo de toda e de Janeiro: FASE, 2004.
qualquer política pública.

658 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 659
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
CAPÍTULO VII

Tutela do Direito à Paisagem Urbana,


Patrimônio Histórico, Arquitetônico
e Cultural

660 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Dossiê Serra do Navio
Adriely Salvador Ferreira1
Ana Cynthia Sampaio da Costa2
Luana Rocha de Souza3
José Alberto Tostes4

Resumo: A cidade de Serra do Navio é uma cidade pla-


nejada que foi contruída em meio à selva amazônica, no
interior do Estado do Amapá na década de 1950. Teve
como objetivo atender às atividades de habitação dos fun-
cionários da mineradora ICOMI (Indústria de Comércio de
Minérios S.A.) que se instalou na região a fim de realizar a
exploração das jazidas de manganês, de maneira que seu
planejamento visava prover qualidade de vida para todos
os seus empregados. Primeiramente o artigo aborda sobre
as características naturais da região onde Serra do Navio
está localizada, o motivo de sua implantação, a descrição
de suas características urbanas e arquitetônicas originais e
da sua atual descaracterização. O objetivo deste trabalho
é refletir sobre a importância do tombamento da Vila Serra
do Navio e as possibilidades de melhoria em sua estrutura
a partir desse processo. Tendo como principal referencial
o “Dossiê de Tombamento Serra do Navio”, este artigo se
desenvolveu através de um método histórico-descritivo,
pois houve a necessidade de explicar a história da cidade e
suas características físicas originais, tornando-as base para
análise morfológica e significativa da cidade. Deste modo,
ressaltamos o seu valor patrimonial e como este processo
de preservação da cidade é o principal instrumento para
retorná-la às suas características originais.
Palavras chaves: Company Town, Amazônia, Bratke.

1 Acadêmica do 4º semestre do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do


Amapá e participante do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Urbanismo na Amazônia da Universidade
Federal do Amapá.
2 Acadêmica do 4º semestre do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Amapá e participante do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Urbanismo na Amazônia da Universidade
Federal do Amapá.
3 Acadêmica do 4º semestre do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Amapá e participante do Grupo de Pesquisa Arquitetura e Urbanismo na Amazônia da Universidade
Federal do Amapá.
4 José Alberto Tostes – Professor doutor adjunto III da UNIFAP do Curso de Arquitetura e Urba-
nismo.

662 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 663
1. CARACTERÍSTICAS NATURAIS DA REGIÃO 2. O MANGANÊS - DA PACATA REALIDADE À TRANSFORMAÇÃO

A cidade de Serra do Navio está localizada no estado do Amapá, Antes da implantação do projeto que daria origem à cidade de Ser-
situado na região Norte do país. Está inserida na mesorregião do estado, ra do Navio, em 1955, assim como no resto da Amazônia, a região era
próxima ao Rio Amapari. pouco habitada, de maneira que os raros caboclos habitavam o local
O município tem em seu Território as localidades de Sucuriju, Capi- isoladamente, sem formar comunidades. Levavam vida primitiva, ali-
vara, São José, Perpétuo Socorro, Água Branca, Porto do Limão, APA mentando-se da pesca, da caça e pequenas roças de feijão e mandio-
Silvestre, Pedra Preta, Cachaço e a sede Municipal de Serra do Navio, ca. Sua única via de circulação era o rio; seu meio de transporte era a
que é o núcleo urbano construído pela ICOMI. O acesso ao município montaria – a canoa movida a remo. As residências eram comumente
se dá pela BR 210, pela ferrovia que liga Santana a Serra do Navio e de madeira, erguidas à beira do rio, apoiadas sobre palafitas. Também
por meios fluviais, por intermédio dos rios presentes na região como o ocorria que garimpeiros, transeuntes e aventureiros, que costumavam ir
Amapari (PELAES, 2008, p.72). e vir de várias regiões, ali acampavam. Já não se via mais índios, tendo
O clima da região é o Equatorial desaparecido os poucos que existiam.
quente úmido. Sua temperatura é Até então, podia-se acreditar que em uma região pacata como essa
média ao longo do ano é de 95%. a prosperidade jamais chegaria, mas uma pedra, no mínimo curiosa,
As chuvas costumam ser abundan- encontrada na região viria mudar esse pensamento.
tes e, às vezes, torrenciais. Quanto A história começa por volta de 1941, quando o mundo estava vol-
ao índice pluviométrico, anualmente tado para o terror da Segunda Guerra Mundial, enquanto que na futura
é de 2.000mm. Os ventos dominan- cidade de Serra do Navio, um garimpeiro e comerciante chamado Mário
tes são fracos, sopram do Leste e Cruz disse ter encontrado uma pedra que julgava se tratar de um miné-
Nordeste, com velocidade máxima rio possivelmente valioso, pois tinha uma cor diferente, o qual, porém,
de 22 km/h. O terreno é acidentado, não sabia de qual se tratava. Ele conseguiu extrair uma amostra dessa
mas a altitude é modesta: da ordem pedra e guardou, sem revelar a ninguém no momento.
de 120m. (BENJAMIM, 1992, p.24). Em 1945, quando havia sido recém-criado o Território Federal do
Na sua vegetação, predomina o Amapá, Mário Cruz revelou ao governador Janary Gentil Nunes a des-
tipo selva, onde as espécies carac- Figura 1 - Localização Geográfica da Ci- coberta do tal minério, o qual pensava ser uma nova mina de ferro,
terizam mata densa quase impene- dade de Serra do Navio. Fonte: PELAES, mas ainda não foi nesse momento no qual os estudos sobre o minério
2009. Adaptação das autoras.
trável e permitem pouca iluminação, foram aprofundados, logo sua descoberta já não era mais segredo e
ainda que durante o dia. era conversa entre outros garimpeiros. Os estudos sobre esta pedra
A hidrografia da região é abundante, pois possui um número con- começaram de fato só em 1945, quando Mário Cruz se comprometeu
siderável de rios, igarapés, afluentes que alimentam grandes lagoas e a apresentar sua amostra a Janary Nunes, para que fosse analisada no
igapós durante a estação chuvosa. Rio de Janeiro.
Em relação ao solo da região, se trata de um solo pobre, deficien- Inicialmente a amostra foi enviada a um geólogo que trabalhava
te em minerais e, segundo geólogos, sua camada fértil é de espessura para o governo do Território e esse constatou que se tratava de manga-
reduzida, razão pela qual muitas espécies locais possuírem suas raízes nês. Posteriormente, a amostra foi enviada ao geólogo Glycon de Paiva,
expostas e superficiais. no Rio de Janeiro, que confirmou alto teor do minério na amostra.
Quanto à presença de espécies animais, a região apresenta reduzido Essa, porém, é uma das várias versões existentes sobre a desco-
número de espécies mamíferas, mas a presença de répteis e anfíbios é berta do Manganês e esta foi e continua sendo a mais contada pelos
mais constante. amapaenses, sendo ela do próprio Mário Cruz. Obviamente que sua ver-

664 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 665
são foi muito questionada. Houve outros garimpeiros que se diziam os na redução da exportação para os Estados Unidos, prejudicando os ob-
verdadeiros descobridores do manganês. jetivos da nação.
Nos anos que se seguiram até meados de 1947 o processo chegou O manganês era fundamental para a produção dos armamentos,
às mãos do geólogo Fritz Louis Ackerman, que também trabalhava para pois era o principal redutor de fundição do aço, fazendo com que esse
o governo do Território e também se envolveria na “batalha” pelo título minério necessitasse de muito menos calor para se fundir, além de que
de descobridor do manganês, pois, ao ser informado por Mário Cruz so- era um ótimo componente na produção de ligas metálicas, baterias
bre a descoberta, ele afirmou que se tratava de manganês, pois já havia e pilhas, o governador Janary Nunes viu a oportunidade de tomar as
tido contato com o minério quando encontrou um fragmento na Loja iniciativas necessárias para que as jazidas de manganês do Território
Leão do Norte, cuja propriedade era de Isaac Zagury, empresário de fossem declaradas reserva nacional e assim favorecer política e econo-
renome e família influente da época. Ele também afirma que em 1934 micamente a região, tendo o manganês como estratégia, além de que
o engenheiro de minas Josalfredo Borges fez estudos geológicos no Rio a localização do Território era bastante favorável, pois era próximo aos
Amapari e constatou a existência do manganês, logo ele não reconhe- Estados Unidos, possibilitando facilidade no transporte do minério.
ceu a nenhum dos garimpeiros que reclamavam o título de descobridor O governador do Território Janary Nunes obteve êxito nas suas arti-
do manganês, se apoiando na justificativa de que nenhum deles sabia se culações para transformar as jazidas de manganês em reserva nacional,
tratar realmente de algum minério e de qual exatamente seria as amos- pois o presidente Eurico Gaspar Dutra acatou seus argumentos e, atra-
tras achadas. vés do decreto-lei nº 9.858, de 13 de setembro de 1946, constituiu
Diante de todas as informações, verifica-se que a primeira pessoa em reserva nacional as jazidas existentes no Território, encarregando o
que realmente constatou a presença do minério de manganês no Territó- governo do Território de executar os estudos relativos ao caso.
rio foi o engenheiro de minas Josalfredo Borges, em 1934, mencionado Dada essa incumbência, iniciou-se o processo de seleção de em-
por Fritz Louis Ackerman. Em 1941, Mário Cruz comunicou ao governa- presas mineradoras candidatas a explorar as jazidas de manganês do
dor Janary Nunes o seu achado, que julgava, inicialmente, ser ferro. Em Território. Houve três empresas que se candidataram, onde duas eram
1945, Fritz Ackerman confirmou a Mário Cruz e ao governador Janary internacionais – Hanna Exploration Company e United States Steel – e
Nunes que não se tratava de ferro, e sim de manganês, e em 1946 o uma era brasileira, a Indústria de Comércio de Minérios Ltda., a ICOMI,
geólogo Glycon de Paiva confirmou se tratar de manganês a amostra de Belo Horizonte.
recolhida por Mário Cruz. Em novembro de 1947 a concorrência foi julgada pelo Conselho
Em suma, Mário Cruz ficou reconhecido pelo povo amapaense como Nacional de Minas e Metalurgia e a ICOMI foi a empresa vencedora. No
o descobridor do manganês no Território Federal do Amapá e não mais dia 6 de dezembro desse mesmo ano a ICOMI e o governo do Território
se questionava sobre isso. Ele passou a acompanhar as expedições que assinaram o contrato para a exploração do manganês.
se seguiram a Serra do Navio e teve consideráveis privilégios por ser De acordo com esse contrato, a ICOMI se responsabilizava em reali-
conhecido como o descobridor do manganês. zar todos os estudos geológicos, entre outros necessários para a sua im-
A descoberta oficial do minério de manganês aconteceu no mesmo plantação de acordo com as necessidades e potencialidades da região.
período em que a Segunda Guerra Mundial estava encerrando e no auge Depois que todas as pesquisas foram realizadas, revelando existên-
da Guerra Fria, que foi travada entre as duas maiores potências mundial cia de jazidas de manganês de excelente qualidade e em grande quan-
na época, Estados Unidos e União Soviética, que disputavam por terri- tidade, foi concluído que, para a exploração desse minério seria neces-
tórios para exercerem suas influências e se caracterizava pela chamada sário um grande projeto, devendo incluir estrada de ferro adequada,
“corrida armamentista”, onde as potências em questão competiam na instalação de mina e obras portuárias.
produção bélica. A partir de então, começou-se a expectativa pelas mudanças positivas
Esse fato, associado ao outro de que a siderurgia americana estava que ocorreriam na região, pois a instalação da empresa no Território com-
fortemente dependente do manganês explorado na Rússia, acarretaria preendia, além da estrada de ferro, instalações de mina e obras portuárias, a

666 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 667
construção de toda uma infraestrutura do local, que iria incluir vilas residen- Como um exemplo de cidade planejada, A Vila de Serra do Navio se
ciais providas de investimentos em educação, saúde, comunicação, comércio constituiu como um modelo de Company Town. Este tipo de cidade que
etc. Com esse fim, foi decidido que seriam construídas duas vilas residenciais surgiu na Inglaterra do século XVIII, a “Cidade Companhia”, eram centros
destinadas aos empregados da empresa: uma em Santana, chamada Vila urbanos controladas por empresas industriais e implantadas próximos
Amazonas e a outra que seria o núcleo urbano de Serra do Navio. aos sítios de exploração, geralmente distantes de outros núcleos urba-
nos, dispunham de uma estrutura que lhe permitiam ser praticamente
independentes e proporcionavam ótimas condições de trabalho, opor-
3. A VILA DE SERRA DO NAVIO NO TEMPO DA ICOMI tunidades de estudos, fornecimento de habitação de qualidade e de es-
paços de lazer. Assim se constituiu a Vila Serra do Navio, auto-suficiente
Em se tratando de uma cidade planejada desde a sua implantação e capaz de abrigar mais de 2.500 pessoas as quais seriam contratadas
a ser construída em meio à selva amazônica, a Vila Serra do Navio deve pelas empresas ou que trabalhariam em supermercados, lojas, na esco-
a sua localização ao arquiteto-urbanista Oswaldo A. Bratke que teve a la, no cinema, nas padarias, etc. para o funcionamento da cidade.
oportunidade de projetar a vila desde a fase de escolha do terreno. Ele A época modernista que compreendia o início do projeto da vila for-
tinha em mãos várias informações sobre o espaço do entorno das minas neceu a Bratke inspirações para as idéias desenvolvidas em seu projeto.
de manganês, tais como levantamento aerofotogramétrico da região O arquiteto se inspirou nos princípios urbanísticos modernos a serem
com hidrografia, relevo e cobertura vegetal, além de várias anotações adotados na projeção de novas cidades internacionalizados através da
feitas durante suas viagens para a região. Através destes instrumentos publicação da Carta de Atenas e nos ideais de racionalidade e funciona-
e informações Bratke observou que o sítio constituía-se de várias eleva- lidades da arquitetura moderna.
ções e depressões cobertas por uma densa floresta amazônica. Logo, o Enquanto que o racionalismo foi representado pela clareza estrutu-
acesso a este sítio era muito difícil tanto pelo rio quanto pela floresta. ral, rigor geométrico e construtivo, o funcionalismo podia ser observado
Foi neste cenário que Bratke responsabilizou-se por procurar uma no atendimento ao programa de necessidades e na praticidade dos flu-
área para implantar o sítio urbano da Vila Serra do Navio, o qual abran- xos dentro e fora dos estabelecimentos, na criação de um zoneamento
geria aproximadamente 100 ha e não deveria ficar muito distante da urbano, na orientação das casas, na dimensão das vias, até mesmo nos
estrada de ferro. Logo, o arquiteto optou por um terreno constituído de partidos arquitetônicos das habitações que seguiam os ideais da arqui-
duas pequenas elevações com uma leve depressão entre elas, distante tetura bioclimática. Tal arquitetura podia ser observada também nos
cerca de 200m das minas. Por conter estas elevações, o local proporcio- demais edifícios da cidade, como na escola, nos estabelecimentos de
nava uma boa ventilação e uma ampla visão da paisagem do entorno. comércio, lazer, administração, entre outros.
Após a fase de escolha do terreno, Bratke iniciou os estudos preli- No projeto urbanístico, Bratke levou em consideração a importância
minares – tais como os programas de necessidades – necessários para de seus moradores. Dessa forma, um conselho de representantes acom-
iniciar o planejamento urbano de uma vila que proporcione qualidade panhava a direção da cidade e opinava sobre os problemas a serem
de vida, como afirma o arquiteto na obra de Benjamin Ribeiro: resolvidos (Revista AU,1997). O formato da cidade também foi muito
valorizado, se fundamentando no traçado moderno.
“Era desejo da ICOMI que se deveria envidar todos os esforços para Seu sistema viário foi constituído por vias de distribuição e por vias
que esse conjuntos principais, mantidos por ela atingissem a qualida- locais, ambas asfaltadas. As vias de distribuição recebiam um maior flu-
de exigida de uma cidade exemplar: uma sociedades de indivíduos,
xo de veículos, delimitavam os variados setores da vila e envolviam as
com o fim de proporcionar o bem-estar a todos, representado pela
segurança pessoal, saúde, lazer, liberdade, facilidade de aquisição de superquadras. As vias locais, com reduzidos fluxos e maior segurança
alimentos e dos bens desejados etc.[…] Não deviria ser em hipótese aos pedestres, eram de uso exclusivo das habitações e foram projetadas
alguma uma aglomerado humano, a ser relegado ao abandono ao ser de larguras variadas, evitando a monotonia do conjunto e possibilitan-
exaurida aquela mina.” (RIBEIRO, 1992, p.35). do, para os veículos, acostamento e estacionamento.

668 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 669
Com inteira liberdade de planejamento, Bratke optou por separar O setor dos especializados estava separado do núcleo urbano – for-
as habitações em dois setores de acordo com a hierarquia funcional da mado pelo centro cívico, pelos equipamentos urbanos e pelas vilas AA
empresa, um para os operários e outro para os dirigentes, na qual se e BC – e próximo do hotel e do clube. O setor destinado aos operários
estabeleceu uma estratificação espacial e social característica do mode- forma uma verdadeira unidade de vizinhança, numa disposição que se
lo das Company Towns. Bratke aponta suas razões para esta decisão. concentra perto do centro do núcleo. As residências para solteiros tam-
Ele explica que nos trabalhos de mineração existem três categorias de bém estavam localizadas próximo ao centro cívico, mas permaneciam
empregados, “os braçais, os habilitados e os técnicos, e os dirigentes” isoladas das habitações unifamiliares, com a finalidade de manter o ca-
(Revista AU, 1987, p.42). A preocupação com a moradia dos operários ráter moral em um local de rotina monótona (Revista AU, 1987).
era menor, pois proviam de moradias precárias, com casas desprovidas O Centro Cívico foi projetado para servir como ponto de encontro
de instalações sanitárias ou mal protegias das intempéries. As moradias dos habitantes e patrocinar o convívio social. Neste centro, se localiza-
oferecidas pela ICOMI atenderiam a todos os requisitos necessários ao vam os serviços administrativos, a delegacia de polícia, a praça, a pani-
bem estar de seu morador. Os habilitados e os técnicos vinham de ou- ficadora, o supermercado, o clube operário e o centro comercial.
tras regiões dotadas de mais conforto e eram contratados por um tem- Para evitar a monotonia da paisagem, as casas foram dispostas sem
po transitório, pois sua promoção seria se deslocar para trabalhar em alinhamento retilíneo. Nelas não haveria divisões formais, como a utili-
centros maiores pela empresa ou então retornar ao seu lugar de origem. zação de cercas ou grades entre as casas próximas, permitindo a exis-
Esses funcionários só aceitariam trabalhar em lugares afastados, se ti- tência de espaços livres. Esta decisão permitiu considerável economia
vessem boa remuneração e conforto para a família. na implantação da estrutura urbana. As redes de energia elétrica, de es-
Dentro de cada setor, as habitações foram planejadas para dispor goto e de água foram passadas nos fundos das residências, permitindo
tipologias diferenciadas distribuídas em quatro áreas: Vila AA (Vila In- uma fácil conexão destas redes no sistema secundário de distribuição e
termediária), no setor Especializado; Vila BC (Vila Primária), no Setor diminuindo os custos de execução e, futuramente, de operação.
Operário; e vila CC e DD (Vilas Staff), no Setor Administrativo (observar Sobre a perspectiva de crescimento populacional, Bratke havia pre-
mapa 01). visto áreas de expansão urbana, adjacentes às vilas AA, BC e DD (ob-
servar mapa 01). Nelas haveria a implantação de novas moradias. A
expansão da vila CC, de baixa densidade, deveria ocorrer com novas
habitações dentro do próprio setor.
Oswaldo Bratke adotou o princípio das casas operárias germinadas
no projeto das habitações. Com uma distância de menos que 500 m dos
edifícios de uso coletivo, a disposição das habitações na Vila facilitavam
a vida dos habitantes e promoviam maior contato entre eles, além das
áreas gramadas que circundavam cada uma das casas que eram am-
bientes de formação de uma unidade de vizinhança. Entretanto, o hos-
pital se dispõe isolado da Vila, aproveita a boa ventilação e possui uma
grande área de proteção ao seu redor.
Para tentar amenizar o calor dentro das edificações e protegê-las
das intensas chuvas da região, Bratke estudou desde a disposição das
edificações no terreno até as estruturas estratégicas para se obter con-
forto ambiental e economia de manutenção. Sendo assim, o arquite-
Mapa 01: Setorização e ocupação do solo urbano. Fonte: Adaptação Revista AU, to orientou as maiores fachadas das construções a norte e sul, para
1987, 10ª Ed; Grupo de Pesquisa Arquitetura e Urbanismo na Amazônia, 2011. onde, geralmente, estavam dispostos os pátios, halls ou corredores de

670 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 671
circulação protegidos por beirais longos e verticalmente por cobogós Os vastos espaços livres promoviam a ventilação tanto entre as edi-
ou brises. A utilização desses elementos vazados foi muito vasta e pode ficações, quanto para dentro das mesmas. Além disso, o uso estratégico
ser percebida em praticamente todas as edificações da Vila, pois elas abrangente de árvores nativas proporcionava manchas de sombra nos
favorecem a ventilação para os ambientes internos dos edifícios e con- períodos de insolação mais intensa.
trolam a entrada de iluminação natural, tornando-a adequada para as Para os seus habitantes de origem cabocla não sentirem um contras-
atividades no interior de cada edificação. te muito grande com relação aos seus costumes, o arquiteto procurou
A ventilação natural dentro das construções também percorria entre os estudar o modo de vida deles, e implantar medidas como o acesso por
comodos devido as divisórias internas serem – sempre que possíveis – mais fora da casa, já que não existia banheiro no interior das casas onde eles,
baixas que o pé direito das fachadas, como mostra o esquema abaixo: até então moravam. Já nas moradias dos graduados, que vinham de re-
giões civilizadas, havia também o acesso por dentro da casa.

Figura 2 - esquematização da ventilação natural no interior das edificações utilizada Figura 3 - Casa de funcionário graduado. Fonte: RIBEIRO, 1992.
por Bratke. Fonte: Revista AU, 1987, 10ª ed.

A localização geográfica não facilitava o transporte de materiais


de construção para a Vila. Foi preciso utilizar-se de materiais da região
como a madeira, para as estruturas e esquadrias. Os blocos de concre-
to para a vedação das paredes substituíram os tijolos, pois não havia
olarias por perto. Também, por este motivo, foram utilizadas telhas de
fibrocimento para as coberturas. Logicamente, o arquiteto sabia que as
propriedades desses materiais eram desfavoráveis ao conforto térmico,
visto que eles são mal condutores térmicos. O uso destes materiais res-
saltou a necessidade das estratégias de conforto térmico criadas pelo
arquiteto. Logo, no caso do telhado,
Figura 4 - Casas dos operários da empresa. Fonte: RIBEIRO, 1992.
“[…] Bratke utilizou telhado de duas águas e levantou as paredes das facha-
das até a altura do forro, deixando inteiramente aberto o trecho da parte Foram basicamente estas as estratégias empregadas por Bratke no
inferior do telhado. Processos que permitem a formação de um colchão de projeto das casas, da escola, do hospital, do cinema, da igreja e das
ar renovado entre o telhado e forro de madeira, evitando a propagação do edificações do centro cívico da cidade, visando sempre o conforto e o
calor para o interior da casa.” (Revista AU, 1987, nº 10, p. 45). bem-estar de seus habitantes.

672 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 673
A vida organizada e o aspecto geral da cidade atingiam níveis de países seria em 2003. Mas o propósito para este momento era de que a cida-
desenvolvidos. As ruas limpas, os vários espaços verdes representados tan- de crescesse com desenvolvimento e continuasse a se manter através
tos pelos lugares públicos de lazer como pelos espaços livres no entorno de outras atividades econômicas, o que não ocorreu.
das residências, eram imagens da época em que a vila era preservada. Em 1993, depois que a administração da Vila foi entregue ao
governo, transformando-a em Município, os seus antigos moradores
ficaram cada vez mais insatisfeitos com a administração da cidade.
Através de depoimentos dos habitantes da cidade, o IPHAN afirma
que:

“Assim, nos depoimentos dos moradores, o fim das operações da ICO-


MI aparece como um marco divisor. Em outras palavras, explicar a
vida em Serra do Navio significa falar em antes e depois”. (IPHAN,
2011, p.127).

A cidade já não está mais sendo administrada como antes e isso se


notava principalmente no aspecto visual da cidade. Já não existe mais
a beleza dos gramados e jardins, o movimento na praça e no Centro
Cívico, além da precariedade da limpeza e da manutenção da cidade,
diferentemente da época da ICOMI.
A escola antes se destacava por sua boa qualidade de ensino pro-
Figura 5 - Foto aérea da antiga Vila Serra do Navio. porcionada por professores qualificados, formava alunos que se desta-
Vista orientada a sul. Fonte: RIBEIRO, 1992. cavam ao continuar os seus estudos em outros lugares do país. Hoje, o
seu ensino está prejudicado pela falta de recursos.
Em meio a adversidades das cidades amapaenses – como restri- Por estar mais distante de outros centros urbanos, a cidade de Ser-
ção de infraestrutura física e saneamento, dificuldades de controle ur- ra do Navio teve suas edificações descaracterizadas mais lentamente
banístico, escolas e hospitais precários, entre outras – podemos dizer do que Vila Amazonas, entretanto, com a instalação de mineradoras
que Serra do Navio foi um marco para o estado, se destacando por na região, houve uma pressão sobre as habitações. Visando o lucro
ser uma cidade planejada em meio a selva amazônica, auto-suficiente com oferecimento de hospedagens, os novos habitantes começaram a
e com ares de uma grande cidade, onde os serviços públicos de boa expandir as casas, modificando totalmente o estilo arquitetônico mo-
qualidade atendiam a todos os moradores, a infraestrutura física en- derno e atingindo as áreas por onde passam o esgoto ou a água potá-
globava todo o centro urbano. Ou seja, era símbolo de riqueza e qua- vel.
lidade de vida. Sobre o saneamento básico, ele atendia à todos os moradores, en-
tretanto, está obsoleto e com um elevado custo de manutenção e de
acordo com Pelaes (2010), não atende mais a demanda atual. A infra-
4. SITUAÇÃO ATUAL DA VILA estrutura física atende, de forma caótica, a área central da cidade; nas
áreas periféricas a infraestrutura física está restringida.
Atualmente a realidade é completamente diferente na Vila Serra do Com as novas mineradoras o fluxo migratório na cidade cresceu mui-
Navio. A partir do momento em que o manganês foi se desvalorizando to que, segundo Pelaes (2010), “ocasionou formação de assentamentos
no mercado internacional e, posteriormente, da exaustão das minas, a subnormais, que trazem grandes problemas para o município em rela-
empresa iniciou sua retirada da Vila seis anos antes do previsto – que ções aos impactos sociais, econômicos e ambientais”. Estas ocupações
674 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 675
informais situam-se em diversas áreas, principalmente próximas ao hos- Enquanto este impasse não fica decido, mesmo após treze anos, os
pital, aos alojamentos, à igreja, atrás da escola, na área central e podem moradores acompanham as discussões com muita atenção e tensão. O
ser observadas no mapa 02. patrimônio arquitetônico deixado pela ICOMI se degrada e o conjunto
urbanístico sofre os impactos da crescente população urbana.
Tostes (2009) pensa que são muitos os atores responsáveis por essa
situação, mas se compreende um conflito institucional sobre o que fazer.
Percebe-se dificuldades de implantação de políticas de desenvolvimen-
to urbano e de controle urbanístico pela prefeitura de Serra do Navio.
É grande o descontentamento e a indignação dos habitantes com
as autoridades responsáveis pela administração da cidade. Os seus
moradores não tem mais a sensação de segurança como na época da
autuação da ICOMI, quando podiam dormir de portas abertas sem se
preocupar, segundo os relatos dos moradores ao IPHAN.
De forma geral, a memória que os moradores tem da Vila na época
da ICOMI é positiva, pois se tinha segurança, boa educação, bom aten-
dimento médico, saneamento básico e limpeza nas ruas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mapa 02: Ocupações informais no núcleo urbano de Serra do Navio. Fonte: Pelaes, Serra do Navio se destaca por seu caráter peculiar, marcada desde
2010. Adaptação das autoras. o início de sua criação por ser uma Company Town, por ter ostentado ri-
queza, auto-suficiência, qualidade de vida e ainda ter em sua concepção
Com as ocupações informais, ocorrem mudanças na paisagem da preceitos da arquitetura moderna adaptada aos condicionantes físicos
cidade, tanto em sua arquitetura quanto em seus setores, na qual se e climáticos locais. E conforme foi abordado sobre o processo de des-
percebe o indício de zoneamento espontâneo, típico de outras cidades caracterização e degradação da vila, a idéia de preservação da mesma
do estado do Amapá. Nota-se construções atuais com características surgiu imprescindivelmente. Logo, em 1988, iniciou-se o processo de
arquitetônicas diferenciadas do modernismo que também modificam a tombamento da Vila Serra do Navio pelo IPHAN.
paisagem local como: os hotéis, as pousadas, o restaurante e a sede de Para a delimitação do perímetro a ser protegido se fez necessário
uma rádio local. a idéia de preservar a área verde em torno do ambiente urbano com o
Outro fator adverso decorrente da saída da ICOMI é a destinação intuito de formar um “cinturão verde” circunscrevendo e preservando o
das terras que antes pertenciam à empresa. No contrato assinado en- formato inicial da cidade.
tre a ICOMI e, na época, o governo do Território Federal do Amapá, A partir do tombamento também fica protegido todo o perímetro
foi estabelecido que após o término das atividades mineradoras, o urbano, tal como o seu traçado de vias e todos os elementos que carac-
repasse do patrimônio iria para o domínio publico. Quando a ICOMI terizam a arquitetura e urbanismo originais da cidade. Com este proces-
foi embora, o Amapá já era estado – desde 1988 – então restaria so fica previsto a expansão urbana da cidade, de maneira planejada e
saber qual “domínio público” deveria receber o patrimônio estipulado sem a sua descaracterização. O tombamento, assim como promove o
no contrato: a União, o Estado do Amapá, ou o município de Serra do retorno da cidade às suas características iniciais, serve de instrumento
Navio. para melhorar seu desenvolvimento urbano.

676 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 677
Com a finalização do processo de tombamento da Vila em 2011,
há maiores perspectivas de investimentos de médio e longo prazo no
Os instrumentos processuais de tutela
cenário urbano, possibilitando melhoras em sua infraestrutura e o au- do patrimônio cultural
mento da qualidade de vida dos moradores. Isso possibilitará, também,
o desenvolvimento do potencial turístico e institucional promovendo,
histórico-paisagístico:
consequentemente, o aquecimento da economia da cidade. análise do caso da igreja
A cultura dos habitantes é fundamental para definir a paisagem
de um lugar, pois ele muito se relaciona com o seu cotidiano. No caso São Pedro em Gramado-RS-Brasil
da Vila Serra do Navio, podemos inferir os hábitos de seus moradores
através da deterioração de sua paisagem, caracterizada, por exemplo, Ana Karina Zago
pela falta de higiene, indiferença e ignorância com relação à estética e Ângelo Bonalume
ao valor arquitetônico da Vila e pelo vandalismo, cujos resultados são Deise Salton Brancher
constantemente encontrados. Não bastando isso, ocorre também a fa- Queli Melwius Boch
miliarização da população com esse cenário, que se conforma com a si-
tuação atual sem iniciativas de melhora ou preservação do que ainda se Resumo: O presente trabalho discute a proteção do meio
tem original. Esse fato deve ser levado em consideração para refletir a ambiente, mediante a preservação do patrimônio histórico,
importância do tombamento da cidade, pois mostra que os moradores cultural e paisagístico, considerando principalmente sua re-
não dão a devida importância ao seu valor histórico. Portanto, a partir levância nos destinos turísticos. A ação de preservação am-
do seu tombamento, há maiores chances de Serra do Navio ser final- biental, inclusive do meio ambiente cultural, inevitavelmente
aponta interesses distintos e muitas vezes conflitantes. Faz-
mente consagrada e reconhecida como a cidade modernista, planejada
-se necessária a análise das instâncias legais que funda-
e adaptada à selva amazônica. mentam o direito à tutela do patrimônio histórico, cultural
e paisagístico, enquanto bens ambientais, assim como a
identificação dos instrumentos processuais que tornam essa
REFERÊNCIAS proteção efetiva. O caso da Igreja São Pedro, em Gramado,
importante destino turístico da região serrana gaúcha, bem
IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Vila Serra do demonstra a importância do tema. O estudo aborda ainda
Navio: Dossiê de Tombamento. Cedido pela Superintendência de Macapá. os dispositivos referentes à proteção do meio ambiente cul-
2011. tural, respaldados pela Constituição de 1988, bem como
PELAES, Fátima Maria Andrade. Uma análise dos conjuntos urbanísticos as normas aplicadas ao caso concreto trazido para análise,
arquitetônicos das Vilas Serra do Navio e Amazonas 1998-2008. 2010, assim como aquelas que poderiam ter sido utilizadas para
124 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Regional). Programa de alcançar uma tutela mais efetiva.
Mestrado Integrado de Desenvolvimento Regional. UNIFAP, Macapá. Palavras-chave: Patrimônio cultural, histórico e paisagísti-
REVISTA ARQUITETURA E URBANISMO. São Paulo: Pini Editora, fev./mar. co. Instrumentos legais de preservação.
1987. n. 10.
RIBEIRO, Benjamim Adiron. Vila Serra do Navio: comunidade urbana na
selva amazônica: um projeto do arquiteto Oswald Arthur Bratke. São Paulo:
PINI, 1992.
1. Introdução
TOSTES, José Alberto. Serra do Navio: o mito - Artigo publicado no dia 24 e
25 de maio de 2009 no Jornal do Dia. É indiscutível que uma cidade tem como principais bens imateriais o
seu patrimônio cultural, histórico e paisagístico, e que nestes três alicer-
ces se funda a identidade da comunidade, por sua cognição ambiental
adquirida no tempo. As pessoas também acabam por se relacionar e
678 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 679
interferir nesses espaços, às vezes de forma benéfica, promovendo a senvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”1. Podemos
conservação e a preservação, assim como, muitas vezes podem contri- perceber substancialidade nesse conceito, pois nele há uma ampliação
buir para descaracterizarão, deterioração e destruição destes bens. do meio ambiente.
O ordenamento internacional, assim como as normas brasileiras, O conceito de meio ambiente é amplo e abrangente tendo em vista
tem demonstrado cuidado ao resguardar esses patrimônios como bens sua iteratividade, não apenas com a natureza, mas com tudo mais que
jurídicos autônomos, mas igualmente parte do conceito de meio am- circunda o ser humano, cuja abrangência é assim explicada por Derani:
biente. Dessa forma, busca fornecer instrumentos jurídicos capazes de
evitar a destruição desses espaços, que, quando bem-manuseados, po- Não somente a natureza “bruta” em sua forma primitiva é meio am-
dem ser acionados até mesmo preventivamente. biente, porém todo o momento de transformação do recurso natural,
O patrimônio cultural, histórico e paisagístico são considerados ou seja, todo o movimento deste objeto que circunda o homem, que
sobre ele age com seu poder, querer e saber, construindo o meio am-
bens patrimoniais coletivos, cujo direito de proteção integra a aqueles
biente. 2
direitos a terceira dimensao de direitos fundamentais, tendo em vista
sua evidente qualidade de difusão, e sua titularidade eminentemente
O conceito aberto de meio ambiente sugere que, especialmente
coletiva, não mais individual.
para fins didáticos, seja dividido em meio ambiente natural, meio am-
Entretanto, apesar desses bens patrimoniais serem tutelados pelo
biente artificial, meio ambiente cultural e meio ambiente do trabalho,
arcabouço jurídico internacional e nacional, percebe-se um conflito di-
conforme explica Sirvinkas (2002, p.25)
reto entre a necessidade de preservação e conservação desses espaços,
com os diversos interesses econômicos. Existe um “duelo” velado entre a Divide-se o meio ambiente em: a) meio ambiente natural— integra a
permanência e substituição desses espaços, cuja discusão é influenciada atmosfera, as águas interiores, superfícies e subterrâneas, os estuá-
pela tecnologia e pela sedução da modernidade, embora as comuni- rios, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a
dades nem sempre consigam estabelecer um diálogo ou um “posto na fauna, a flora, o patrimônio genético e a zona costeira ( art 225 da
linha” na tomada de decisões. CF): b) meio ambiente cultural— integra os bens de natureza material
O presente estudo faz uma análise preliminar sobre os patrimônios e imaterial, os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagísti-
em questão, sem intenção de esgotar o tema, senão somar esforços na co, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico ( art
215 e 216 da CF): c)meio ambiente artificial— integra os equipamen-
sensibilização para a proteção destes bens imateriais. Será utilizado o
tos urbanos, os edifícios comunitários ( arquivo, registro, biblioteca,
estudo de caso da Igreja São Pedro, no Município de Gramado - RS – pinacoteca, museu e instalação científica ou similar) ( art 21XX, 182
Brasil, cuja obra, edificada em 1930, vivenciou mudanças significativas e s. e 225 da CF); d)Meio ambiente do trabalho— integra a proteção
e pressão paisagística na sua área de entorno, como consequência da do homem em seu local de trabalho, com observância às normas de
evolução do crescimento urbano da cidade, que ela própria contribuiu segurança ( art. 200, VII e VIII, e 7º,XXII, ambos da CF). Trata-se de
para construir e da qual é um dos símbolos principais. uma classificação para efeitos didáticos.3
Por fim, aborda os instrumentos legais utilizados para a preservação
desse patrimônio cultural e histórico, assim como outros que poderiam Ao analisar os sentidos extraídos da expressão meio ambiente, Gian-
ter sido utilizados, durante impasse entre construtora interessada na re- nini refere o ambiente por ser compreendido como zonas circunscritas
vitalização da área de entorno da igreja e a comunidade gramadense. do território, consideradas por sua específica beleza e modo de ser, dig-
nas de conservação em função da sua estética, da sua importância para
1.1. Considerações sobre o bem ambiental cultural e paisagístico a investigação científica, ou ainda por sua relevância histórica, “isto é,

Segundo análise de Silva, o “meio ambiente é a interação do con- 1 SILVA, José Afonso da. Direito Ambiental Constitucional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 2.
junto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o de- 2 DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 75.
3 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 25.

680 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 681
o ambiente como soma de bens culturais, como ponto de referência e referir que “os conflitos sobre a transformação estrutural são sinônimos
objeto dos interesses e do direito à cultura.” 4 da luta pela redefinição histórica das duas expressões fundamentais e
A importância do meio ambiente cultural se identifica no fato de que materiais da sociedade: o tempo e o espaço. [...]”9
o ser humano realmente necessita de um espaço que contribua com o seu O direito tem se respaldado para proteger os espaços que possuem
bem-estar psíquico e físico, intimamente ligado à herança paisagística e his- um elo com a cultura, tanto material como imaterial, tentando prevenir
tórica que se traduza na sua identificação cultural, sendo por isso conside- e minimizar as alterações crescentes no meio, impostas pelas atividades
rado um dos direitos fundamentais que concretizam a dignidade humana. antrópicas.
Na mesma linha, Cunha discorre sobre patrimônio cultural conside-
rando que “a interação do homem com o meio natural se dá a partir de 1.2 A tutela do patrimônio cultural, histórico e paisagístico
sua bagagem cultural” e, dessa forma, ele se relaciona e se identifica.
Nesse sentido, o autor refere que a degradação da paisagem “passa a Os cuidados dispensados a bens culturais na atualidade são origi-
ser uma ameaça constate e, por conseguinte, a própria destruição da nários das reivindicações que culminaram com a Carta de Veneza, cujo
identidade cultural” 5. documento foi recentemente criado durante o II Congresso Internacio-
Uma das melhores definições sobre paisagem pertence ao renoma- nal de Arquitetos e Técnicos dos Monumentos Históricos – Conselho
do geógrafo brasileiro Santos, que a define como “um conjunto de for- Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), em 1964. Esse marco
ma que, num dado momento, exprime as heranças que representam as é referência para a Unesco, o Iphan e Iphae, e influencia diretamente o
sucessivas relações localizadas entre homem e natureza” 6. A paisagem, ordenamento brasileiro.
além de nos identificar com o meio em que vivemos, conforta-nos e é Logo no primeiro artigo, o documento esclarece:
o nosso elo com gerações passadas e futuras, nossa herança e nosso
patrimônio. A noção de monumento histórico compreende a criação arquitetô-
De fato, “a ética da conservação tem por objetivo transmitir às futuras nica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho
gerações a maior parte do mundo não-humano”7. Yazigi complementa: de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um
acontecimento histórico. Estende-se não só às grandes criações, mas
também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo,
Ao se pensar na estrutura da personalidade do lugar, a paisagem as-
uma significação cultural.
sume especial destaque, pois é precisamente dela que nos chega mui-
to da percepção. Como externalidade, resulta sempre do casamento
que uma sociedade herda e se apropria, com aquilo que suas neces- A Lei Federal Brasileira n.º 4.717/65, criada um ano após a Carta
sidades praticam.8 de Veneza, que regula a Ação Popular, considera patrimônio público “os
bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico” (art.1º,
Os impactos resultantes dessa demanda de necessidades represen- parág. 1º). Resta evidente a influência direta do diploma internacional
tam os diferentes interesses de uma sociedade em um determinado lo- no ordenamento jurídico brasileiro, quando este eleva os bens estéticos
cal geográfico, cujo raciocínio vai ao encontro do que revela Castells ao e históricos como patrimônio público.
A Convenção da ONU, segundo ensina Marchesan, sem dúvida re-
4 GIANNINI, Máximo Severo. Ambiente, saggio sui diversi suoi aspetti giuridici. Direito Publi- presenta outro marco fundamental para a salvaguarda do patrimônio
citário, 1993, p.15.
mundial, cultural e natural,10 e, em 1972, redundou na edição do do-
5 CUNHA, Danilo Fontenele Sampaio. Patrimônio cultural: proteção legal e constitucional.
Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.
cumento conhecido como Carta de Paris. Esta constitui um marco na
6 SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo; razão e emoção. São Paulo:
Edusp, 2002. 9 CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. 3. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
7 WILSON, O futuro da vida, Rio de Janeiro: Campus, 2002. 10 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela Jurídica da Paisagem no Espaço Urba-
8 YAZIGI, Eduardo. A Alma do lugar: turismo, planejamento e cotidiano em litorais e mon- no. Revista Internacional de Direito e Cidadania. 2001. Disponível em: <http://www.reid.org.
tanhas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2001, p. 34 br/?CONT=00000049> Acesso em: 22 jun. 2011.

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normativa internacional, por aderir a uma visão sistêmica de meio am- um tipo penal dirigido a quem fizer ou promover publicidade, que sabe
biente, na qual são tramados os aspectos naturais, culturais e artificiais ou deveria saber enganosa ou abusiva (art. 67).
como partes de um todo, a partir das definições constantes dos arts. 1º A autora ainda salienta como um marco importante a Lei Federal
e 2º de patrimônio cultural e natural, respectivamente. 9.008/95, que institui o Conselho Gestor do Fundo de Defesa de Di-
No Brasil, a Lei Federal n.º 6.938/81, que “dispõe sobre a Política reitos Difusos (CFDD) e outorga-lhe competência para a promoção de
Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e atividades e eventos que contribuam, dentre outros objetivos, para a
aplicação”, amplia e define o conceito de meio ambiente, como “o con- proteção do meio ambiente, do patrimônio histórico, artístico, estético,
junto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química turístico e paisagístico (art. 3º, inc. VI).12
e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” A Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98) também preocupou-se com
(art. 3°, I) e de poluição como “a degradação da qualidade ambiental re- a paisagem urbana, especialmente ao definir os crimes contra o meio am-
sultante de atividades que direta ou indiretamente afetem as condições biente artificial e cultural, assim como o Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01),
estéticas ou sanitárias do meio ambiente” (art. 3°, inc. III, “d”). conhecido como a Lei da Reforma Urbana, prevê a proteção, preservação
O referido diploma legal, embora não mencione expressamente e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cul-
o patrimônio cultural, histórico e paisagístico, ao oferecer um concei- tural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (art. 2º, inc. XII), como
to aberto de meio ambiente, vinculou a proteção jurídica ali prevista a lembra Marchesan 13 ao detalhar os elementos mínimos a serem aferidos
esses bens ambientais, assim como, quando da definição legal de po- pelo Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), o mesmo Estatuto contempla a
luição, associou a qualidade ambiental com as condições estéticas do questão relativa à paisagem urbana (inc. VII do art. 36).
meio ambiente. A partir do farto ordenamento jurídico de tutela do meio ambiente
Mais recentemente, a Lei da Ação Civil Pública, n.º7.347/85, em ambiental, confrontado com a prática cotidiana, Oliveira desafia:
seu art. 1º, inc. III, faz referência a “bens e direitos de valor estético”, e
atribui ao Ministério Público uma função de destaque na defesa desses Leis de proteção ao meio ambiente existem em todos os países, po-
direitos. Como meio processual, a Lei Orgânica do Ministério Público rém a distância entre a prática cotidiana e o discurso oficial é flagran-
confere legitimação à Instituição para promover ação civil pública para a te no Brasil. O poder de certos grupos de interesse, a pressão econô-
mica e as relações privilegiadas com as administrações locais lançam
proteção, prevenção e reparação dos danos causados a, dentre outros,
descrédito sobre uma regulamentação boa e adequada. Porém é uma
bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico (art. necessidade imperativa a garantia desse equilíbrio de proteção am-
25, IV, a, da Lei. 8.625/93). biental e preservação-histórico cultural. O estabelecimento de parâ-
A própria Constituição Federal de 1988, recepcionando as normas metros é importante para que a comunidade acompanhe e controle
ambientais protetivas anteriormente referidas, veio coroar a tutela do tensões de desenvolvimento /preservação”.14
meio ambiente nos arts. 182, caput, 216 e 225, reconhecendo a ne-
cessidade de proteção desse bem jurídico, além de atribuir competên- Nesse sentido, a existência das normas jurídicas anteriormente
cia material concorrente à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos apontadas não constitui garantia de efetiva preservação, tendo em vista
municípios, para proteger o meio ambiente e combater a poluição “em o constante desrespeito meio ambiente cultural, muitas vezes motivado
qualquer de suas formas” (art. 23, inc. VI). por interesses puramente econômicos e que contam com o desinteresse
Como ensina Marchesan11, o Código de Defesa do Consumidor, da do poder público.
mesma banda, quando conceitua a publicidade abusiva, coíbe aquela
que desrespeita valores ambientais, em preceito bastante direcionado 12 Lei Federal 9.008/95
à poluição visual (art. 37, § 2º, da Lei 8.078/90), ostentando, inclusive, 13 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela Jurídica da Paisagem no Espaço Urba-
no. Revista Internacional de Direito e Cidadania. 2001. Disponível em: <http://www.reid.org.
11 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. Tutela Jurídica da Paisagem no Espaço Urba- br/?CONT=00000049> Acesso em: 22 jun. 2011.
no. Revista Internacional de Direito e Cidadania. 2001. Disponível em: <http://www.reid.org. 14 OLIVEIRA, Fernando Vicente de Capacidade de carga das Cidades Históricas. Campinas: Papi-
br/?CONT=00000049> Acesso em: 22 jun. 2011. rus, 2003.

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1.3. Igreja São Pedro, um caso entre tantos sagístico do município, por meio de uma denúncia realizada por uma
munícipe, Marília Daros, historiadora renomada. O cerne da denúncia é
O município de Gramado está localizado na Serra gaúcha, a 125 km a destruição e posteriormente descaracterização com a construção de
ao norte da capital do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Tanto outros prédios, na área do entorno da Igreja São Pedro, construída de
a paisagem natural como a artificial, fruto da herança da colonização 1935 a 1940, no centro da cidade.
alemã e italiana, bem como o conjunto de patrimônio histórico, são os Mais especificadamente, trata-se da tentativa de suspender as obras
motivos que atraem uma média de dois milhões e meio de visitantes que visam a “ocupar o Paço religioso, juntamente com o do Palácio dos
durante todo o ano para a região. festivais e ainda a área excedente da família Pasqual, [...] criar o Museu
Sob o aspecto da legislação ambiental, em que pese a evolução nos do Cinema, centro comercial e gastronômico, a casa canônica e o princi-
marcos jurídicos apresentados anteriormente, o Município de Gramado pal um boulevad”18 que integraria ruas principais do município. Segundo
encontra os mesmos problemas de efetividade na preservação e conser- a historiadora, estas obras de revitalização do Paço da Igreja da Matriz
vação de bens culturais verificados no restante do País, havendo flagran- poderão causar danos irreversíveis ao patrimônio cultural e paisagístico
tes situações de desconsideração das normas vigentes. da cidade.
Dispensa esclarecer, que os bens naturais, artificiais e culturais com- Marilia Daros alegava que a obra afronta os princípios defendidos
põem a matéria-prima do turismo para muitas regiões, e Gramado não pelos arts. 216 da Constituição Federal de 1988, art.221 da Constitui-
foge a esta regra. Entretanto, Swarbrooke analisa que estes espaços têm ção Estadual de 1089 e art. 1º da Lei 1880/2001, do Município de
a responsabilidade de propiciar “formas de turismo que satisfaçam hoje Gramado, que defende a memória e a identidade dos cidadãos do mu-
as necessidades dos turistas, da indústria do turismo e das comunidades nicípio, sob uma perspectiva histórica e social.
locais, sem comprometer a capacidade das futuras gerações de satisfa- Em documento que deu início ao inquérito civil 1233/2010, a historia-
zerem suas próprias necessidades” 15. E complementa referindo que “sig- dora destacou a parceria pública e privada quando da construção da igreja:
nifica que turismo que é economicamente viável, não destrói os recursos
dos quais o turismo no futuro dependerá, principalmente no meio físico, [...] para dar lugar ao novo empreendimento comercial, em espaço
e o tecido social da comunidade local”. 16 que é hoje o ADRO DA IGREJA, área total esta doada por PEDRO
Segundo Michaud17, BENETTI em 1917 para a comunidade católica que e formava e para
fins religiosos e comunitários. Tudo o que existe sobre esta área foi
adquirido com o trabalho comunitário da população de Gramado que
“O relacionamento entre o turismo e o meio ambiente dá mais espa-
estará agora sendo lesada em sua fé e dedicação às causas comuni-
ço para polêmica do que para análise dos efeitos do primeiro sobre
tárias que a igreja realizava e que passará para cunho empresarial.19
o segundo. Não existe turismo “bom”ou “mau”ou um que respeita o
meio ambiente e outro que destrói. O turismo ao mesmo tempo que é
um gerador de riquezas, construir-se-á também um agressor ao meio Portanto, a área em questão, onde estão sendo realizadas as obras,
ambiente, de culturas e território, se não for praticado com as devidas foi doada para uso comunitário, segundo tradição oral do município,
cautelas.”(Apud RUSCHMANN, 1990, p.66) todos os equipamentos ali existentes foram fruto do esforço e trabalho
dos cidadãos de Gramado; a Igreja de São Pedro é um ponto de referen-
No entanto, em 2010, o Ministério Público de Gramado foi impul- cia comunitária e social da população gramadense.
sionado a investigar a ameaça de dano ao patrimônio cultural e pai- Em análise da escritura pública do imóvel20, uma técnica do depar-
tamento de assuntos técnicos do Ministério Público afirma que, embora
15 SWARBOOKE, J. Turismo sustentável: conceitos e impacto ambiental. ALEPH. São Paulo:
ALEPH, 2000. p. 140 18 Conforme ata de 48º reunião do C – PDDI, reunião extraordinária, realizada no dia 10 de no-
16 SWARBOOKE, J. Turismo sustentável: conceitos e impacto ambiental. ALEPH. São Paulo: vembro de 2009.
ALEPH, 2000. p. 140 19 Inquérito civil 1233/2010, Gramado, RS.
17 RUSCHMANN, Doris van de Meene, Turismo e planejamento sustentável: a proteção do meio 20 Acervo do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul – Notas – Taquara – 5 Distrito – FT
ambiente. Campinas: Papirus, 1990. 1905 – 30/21/1914 a 24/07/1915 – Filme n. 001/93 –Talão 07. Transcrita em agosto de 2010.

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tenha se tratado de uma escritura de compra e venda, houve de fato A formação da cidade é repleta de histórias de pessoas que, com o
uma doação, na medida em que o valor recebido pelo outorgante ven- trabalho comunitário, construíram a paisagem do Município de Grama-
dedor iguala-se às taxas e impostos a serem pagos em função da trans- do. O trabalho árduo de gerações gerou um espaço geográfico, humano
missão de propriedade. e histórico que torna único esse município.
E complementa, citando Bastiel: A técnica responsável pelo parecer técnico no inquérito civil, faz
uma referência precisa do professor Ulpiano de Meneses, respeitado
[...] a construção de um templo, de um local de culto de e devoção reli- especialista em patrimônio cultural brasileiro, que se remetendo ao his-
giosa, foi sempre objetivo primordial das levas de imigrantes italianos e toriador francês Fernand Braudel, afirma que “a paisagem é como nossa
seus descendentes no Rio Grande do Sul e a construção desses locais
pele, condenada a conservar cicatrizes de antigas feridas”.
de culto e reverência – fossem eles uma capela, um capitel ou a igreja
matriz – foram sempre fruto de intensa a maciça participação popular. 21 Dessa forma, e a partir da análise do projeto urbanístico já em anda-
mento, concluiu-se que a obra contraria os preceitos da Carta de Veneza,
A comunidade gramadense, embora não composta somente de des- e poderá causar degradação ambiental ao patrimônio histórico e paisa-
cendentes de italianos, não fugiu a essa regra, segundo a técnica do DAT, gístico do Município de Gramado.
o principal templo católico de Gramado, a Igreja São Pedro, foi concebi- O Termo de Ajustamento de Conduta, na forma do art. 5º, § 6º, da
da, construída e sustentada pelos seus habitantes locais, pelo trabalho e Lei 7.347/1985, acrescido pela Lei 8.078/1990, com eficácia de título
pelo fruto do trabalho desde então. executivo, realizado entre as partes, veio a contemplar o parecer técnico
Existem várias referências sobre a construção da paróquia de Gra- seguindo às orientações dos artigos precedentes da Carta de Veneza,
mado, das quais se destaca uma referência do Irmão Jacob José Par- impondo que qualquer intervenção, mesmo que na área do entorno,
megnani, no livro Raízes de Gramado, que foi organizada pela historia- deve adequar-se as normas de conservação e preservação do patrimô-
dora que instigou a denúncia: nio cultural e paisagístico, preservando na integralidade a Igreja São Pe-
dro.
Em 1934 chegou a Gramado o novo páraco, Padre Guilerme Maschio, Os projetos arquitetônicos deverão ser apresentados e deverão in-
resolvido a erguer uma igreja bem grande para melhor atender a Gra- tegrar harmoniosamente o conjunto, distinguindo-se, todavia, das par-
mado que muito havia crescido. E devia ser de pedra. Aprovada a plan- tes originais a fim de que a restauração não falsifique o documento de
ta, a 30 de junho foi lançada a pedra fundamental. As pedras de basal- arte e de história. A aplicação do art. 12 Carta de Veneza resultou no
to foram extraídas de pedreira próxima da cidade e arrastadas em zor- impedimento da construção da capela que estava prevista na lateral es-
ras puxadas por bois. Foram 78.000, trabalhadas na pedreira e quase querda da igreja, e preservação de todas as áreas verdes remanescentes
prontas para serem assentadas. O bom povo gramadense colaborou.
com o destino único de ocupação com a praça.
Em 29 de junho de 1942, festa de S. Pedro e 25º aniversário da cria-
ção da paróquia, a igreja, quase pronta, foi inaugurada com grande
Da mesma forma, houve impedimento na utilização de materiais
regozijo e foguetório. semelhantes àqueles utilizados na igreja matriz, especialmente o que
O artista alemão Pedro Dobmeier desenhou os vitrais com cenas da vida se refere a pedras, em atenção ao art. 13 do diploma internacional,
do Apóstolo Pedro, executadas pela Casa Genta de Porto Alegre e colo- que determina que os acréscimos só poderão ser tolerados à medida
cados vitrais foram apadrinhados por devotos do grande Apóstolo Pedro. que respeitem todas as partes interessantes do edifício, seu esquema
A torre da Igreja, também toda de pedra mede 46 m de altura. tradicional, o equilíbrio de sua composição e suas relações com o meio
Hoje, a Igreja de Pedra, além de ser lugar de oração, é ponto turístico ambiente.
obrigatório dos turistas de Gramado.” 22
Em que pese o projeto ter sido aprovado pela municipalidade, pela
Câmara de Vereadores da Cidade de Gramado e pelo Conselho do Pla-
21 BASTIEL, Arlindo e COSTA, Rovílo. Assim vivem os italianos: a vida italiana em fotografia. Vol. 3.
EST/ EDUCS. no Diretor, segundo o que precede o art. 6º da Carta de Veneza, toda
22 DAROS, Marilia; BARROSO, Vera Lucia Maciel (org). Raízes de Gramado: 40 Anos. Porto Ale- a construção nova, toda modificação não pode alterar as relações de
gre: EST, 2000.

688 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 689
volumes e de cores, restou impedida a construção do segundo piso do A fase da instauração será feita por meio de portaria do órgão do
projeto original, mantendo somente o piso térreo já construído. Ministério Público ou por um despacho que será lançado em requeri-
O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) determina a apresentação mento com representação por qualquer pessoa, autoridade ou associa-
de um estudo de impacto de vizinhança, conforme determinado pelo Es- ção. Nesse caso em tela, ele foi impulsionado por uma reclamante, a
tatuto da Cidade, antes de iniciarem a construção da parte de alvenaria. historiadora do município Marilia Daros. De acordo com o art. 26 da Lei
Nessa etapa foram promovidas duas audiências públicas no município. Orgânica Nacional do Ministério Público poderá ele:
Além das obrigações acima expostas, foi obrigada a ratificar a doa-
ção sem ônus à comunidade, da fração do terreno não edificada, manter [...] instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos ad-
uma distância mínima de 14 m do prédio ao lado ( Palácio dos Festivais); ministrativos pertinentes, e para instruí-los expedirá notificações para
a executar projeto paisagístico em toda a área não edificada. Ainda, colher depoimentos ou esclarecimentos e, em caso de não compa-
restou definido um valor e um prazo para doação á Igreja, destinado recimento injustificado, requisitar condução coercitiva, inclusive pela
exclusivamente para a substituição do telhado, assim como para ser Polícia Civil ou Militar, requisitar exames periciais e documentos de
empregado na valorização, manutenção ou preservação de outros mo- autoridades federais, estaduais e municipais. Bem como dos órgãos e
entidades da Administração direta, indireta ou fundacional, de qual-
numentos históricos do município, a serem indicados pelos Conselhos
quer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municipais e ratificado pelo Ministério Público.
Municípios e promover inspeções, diligências investigatórias junto às
autoridades, órgãos e entidades referidas neste artigo. 24
1.4. Instrumentos processuais de tutela
dos bens ambientais coletivos
A partir do que lhe autoriza a legislação, o Ministério Público não
poupou esforços para levantar provas, por meio de documentos, escri-
Assim, a primeira suposição é que o Judiciário prioriza os interesses
turas, pareceres do departamento de assessoria técnica do Ministério
da coletividade, mediante processo de proteção com o intuito de pre-
Público, realizado por um arquiteto e uma historiadora. Partindo desta
venir os danos causados ao meio ambiente através dos meios proces-
provas levantadas seguiu-se o desfecho do inquérito civil, que poderia
suais e dos direitos e das garantias fundamentais. Aqui se destacam os
resultar e na propositura da ação civil pública, como resume Fiorillo:
direitos difusos. No caso, ressaltados no presente trabalho, podem ser
destacados alguns instrumentos processuais, que foram imprescindíveis
O inquérito civil tem por escopo a colheita de material de suporte
para o resultado alcançado: Inquérito Civil, Termo de Ajustamento de
para o ajuizamento da ação civil pública, averiguando-se a existência
Conduta, Audiência Pública e Estudo de Impacto de Vizinhança. de circunstância que enseje a aplicação da Lei 8.938/81, de modo a
A maior parte das ações civis públicas ambientais tem passado pela formar a convicção do promotor de justiça e evitar a propositura de
fase do inquérito civil, que é um instrumento público em defesa do meio ação temerária.25
ambiente que colabora para a preparação dessa ação perante o Judici-
ário. Compete ao Ministério Público Federal e Estadual, administrativa- Entretanto, de acordo com art. 5º, § 6º da Lei 7.347/85, poderá
mente proceder à coleta de provas. Sirvinskas, em seus ensinamentos ser feito Termo de Ajustamento de Conduta: “Os órgãos públicos legiti-
nos dá o seguinte conceito de inquérito civil: mados poderão tomar dos interessados compromissos de ajustamento
de sua conduta às exigências legais, mediante comissões, que terá eficá-
Inquérito civil é o procedimento administrativo á semelhança do inqué-
cia de título executivo extrajudicial.”
rito penal, com a finalidade investigativa e extraprocessual, sob a pre-
sidência do órgão do Ministério Público, destinada a colher o conjunto Esse Termo de Ajustamento de Conduta é um acordo feito entre o
probatório para a instrução da ação civil pública, podendo requisitar, Ministério Público e o órgão causador do dano ambiental, com o intuito
de qualquer organismo público ou particular, certidões, informações,
exames ou perícias, no prazo que assinalar (art.8º da LACP). 23 24 Código Penal, Processo Penal e Constituição Federal 1ª Ed. Saraiva, São Paulo. 2009. p. 827
25 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 7. ed. São Paulo:
23 SIRVINSKAS, Luiz Paulo. Manual de Direito Ambiental. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 450. Saraiva, 2006. p. 375.

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de evitar a tutela jurídica. O Ministério Público se utilizou desse ins- tal. Nesse processo, faz-se indispensável a audiência pública. A Declara-
trumento, acordando com os compromissários responsáveis pelo dano, ção do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento26, em
tanto entidades privadas como publicas, responsabilizando com obriga- seu princípio 10 declara:
ções de fazer, não fazer, além de pena pecuniária, como verificado no
item anterior. A melhor maneira de tratar questões ambientais é assegurar a partici-
No que diz respeito ao Termo de Ajustamento de Conduta, o Minis- pação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No ní-
tério Público não pode fazer concessões diante de interesses sociais indi- vel nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado as informações
viduais indisponíveis, tampouco dispor ou renunciar às obrigações legais relativas ao meio ambiente de que dispunham as autoridades públi-
inadmissíveis por parte do Ministério Público, sendo vedada a dispensa, cas, inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em
total ou parcial, das obrigações reclamadas para a efetiva satisfação do suas comunidades, bem como a oportunidade de participar em pro-
interesse lesado e deverá fazer cumprir as obrigações acordadas; caso cessos de tomada de decisão. Os Estados devem facilitar e estimular
não ocorra, serão estipuladas cominações legais para o inadimplemento. a conscientização e a participação pública, colocando as informações
No próprio corpo do TAC o Ministério Público se utiliza de outro a disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanis-
mos judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à com-
instrumento processual atrelando os compromitentes a realizarem o
pensação e reparação de danos. (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2009)27
Estudo de Impacto de Vizinhança EIV. foi introduzido por meio da Lei
10.257/2001, no chamado Estatuto das Cidades, disciplinando a maté-
A audiência pública é um instrumento ainda recente, que leva a uma
ria em seus arts. 36 e 37, transcritos a seguir.
decisão política a ser tomada ou não, a partir de critérios de transpa-
Art. 36. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades pri- rência, legalidade e participação da comunidade local. Nesse momento,
vados ou públicos em área urbana que dependerão de elaboração de abre-se um espaço interlocutório entre os interessados, direta ou indire-
estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou tamente, sobre a relevância do assunto. Assim antes que seja tomada a
autorizações de construção, ampliação ou funcionamento a cargo do decisão final, é possível a manifestação individual ou coletiva, por meio
Poder Público municipal. de entidades em condições de igualdade de informações.
Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positi- Para que a proposta da igreja fosse executada, era necessário haver
vos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade
alteração do zoneamento na praça que hoje é Zona de Proteção Am-
de vida da população residente na área e suas proximidades, incluin-
biental, com área de interesse público. A proposição é passar para Zona
do a análise, no mínimo, das seguintes questões:
VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural Comercial 3 (igual a todo o comércio do centro), com área de interesse
turístico (o que permitiria investimentos privados, ao contrário de área
Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) pode ser definido como o de interesse público). Como trata-se de alteração de lei de zoneamen-
documento técnico a ser exigido, com base em lei municipal, para a to urbano, obrigatoriamente faz-se necessária uma audiência pública.
concessão de licenças e autorizações de construção, ampliação ou fun- Consta, no art. 40, §4º, I, da Lei 10.257/2001, que para o processo
cionamento de empreendimentos ou atividades que possam afetar a de elaboração do plano diretor e a fiscalização de sua implementação,
qualidade de vida da população residente na área ou nas proximidades. devem os Municípios promover “audiências públicas e debates com a
É mais um dos instrumentos trazidos pelo Estatuto da Cidade, que per- participação da população e de associações representativas dos vários
mite a tomada de medidas preventivas pelo ente estatal, a fim de evitar segmentos da comunidade”.
o desequilíbrio no crescimento urbano e garantir condições mínimas de Além de servir ao exercício da função administrativa, a audiência
ocupação dos espaços habitáveis. pública também se presta para subsidiar a função legislativa, confor-
Conforme Resolução do Conama, o Ministério Público pode expedir 26 SOARES, apud Dalari; FERRAZ, Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 1ª ed. São Paulo:
recomendações, para elaboração de estudo Prévio de Impacto Ambien- Malheiros, 2002.
27 Ministério da Justiça, 2009.

692 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 693
me art. 58, §2º, II, da Constituição da República de 1988, da função que diz respeito ao destino das indenizações, bem como as multa decor-
judiciária (art. 9º, §1º, da Lei 9.868/1999) e da missão institucional rentes do processo transcorrido.
do Ministério Público (art. 27, parágrafo único, IV, da Lei 8.625/1993). Essas condenações são destinadas ao Fundo de Defesa dos Direitos
Após várias audiências públicas, nas quais foram propostos, no de- Difusos, que dará o melhor destino para o dinheiro arrecadado e está
correr de dois anos, diversos estudos de projetos, e pelo que consta previsto no art. 1º, § 1º da referida Lei, que diz: “[...] o fundo tem por
nas atas, este projeto ora apresentado foi o que mais teve respaldo da finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao con-
comunidade. 28 sumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico,
Cabe salientar, que o caráter da audiência pública versou sobre al- paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses di-
teração do plano diretor urbano, portanto, para cumprimento da sua fusos e coletivos”. Quanto à participação ao destino das condenações,
função legislativa. O que se questiona é se a relevância do tema, no que Sirvinskas diz;
se refere o interesse na manutenção do patrimônio cultural, histórico e
Criou-se um fundo para a reconstituição dos bens lesados para onde
paisagístico que simboliza o caso da Igreja São Pedro, suscitara uma au-
todo o dinheiro recolhido das indenizações deverá ser destinado. Será
diência por demanda do Ministério Público, com caráter de preservação
administrado por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de
de bens ambientais e não mera alteração de zoneamento. que participarão necessariamente o Ministério Público e representan-
Ademais, como ressalta a própria historiadora Marilia Daros, autora tes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição
da denúncia, poderia ter sido utilizado outro instrumento legal dispo- dos bens lesados (art. 13 da LACP). 31
nível “que a comunidade tivesse oportunidade, não de uma audiência
pública, mas a um plebiscito onde pudesse opinar e se responsabilizar Constata-se que as condenações pecuniárias aplicadas pelo Ministé-
também, pelos destinos deste espaço de interesse público.” 29 O plebis- rio Público, na maior dos municípios, são remetidas aos Fundos de Meio
cito, está previsto no art. 14, I, da Constituição Federal, cujo objetivo é
Ambiente ou entidades similares, com o objetivo específico de serem apli-
decidir previamente sobre determinada questão, antes de ser subme-
cadas em projetos de proteção, preservação, monitoramento, educação
tida ao Legislativo, em assuntos de interesse da população, como o de
ambiental ou até mesmo para compra de equipamentos para melhor apa-
preservação do patrimônio histórico.
relhar órgãos de fiscalização, como as Patrulhas Ambientais.
Sem dúvida, o plebiscito trata-se de um perspicaz apontamento da
No caso específico, o próprio TAC destinou parte da multa para a
historiadora, de recurso legal disponível e pouco utilizado nas decisões
públicas. Poderia ter sido realizado alternativamente com a audiência recuperação das telhas da Igreja São Pedro (R$ 45.000,00), e outro
pública ou mesmo cumulativamente. Tal procedimento, serviria inclusive montante para ser empregado na valorização, manutenção ou preserva-
para respaldar a decisão política, tendo em vista o incipiente acesso a ção de outros monumentos históricos do município (R$ 45.000,00), a
práticas democráticas da população, principalmente no interior do es- serem indicados pelos Conselhos Municipais e ratificados pelo Ministé-
tado, o que se traduz em audiências públicas com baixa participação, rio Público.
pouco dinâmicas e com metodologias duvidosas. Entretanto, destaca-se, que esse segundo valor a ser empregado
Quanto ao valor estabelecido pelos danos causados ao meio am- aleatoriamente definido no TAC, sem qualquer critério técnico, poderia
biente, com a Lei 7.347/8530 tivemos uma significativa modificação no ter sido utilizado para a realização de um inventário do patrimônio histó-
rico do município, que ainda é omisso a esse respeito. Trata-se de uma
28 JORNAL DE GRAMADO. Política, 27 de Novembro de 2009 - Novo visual da praça
da igreja teve boa aceitação na audiência pública. Comunidade fez restrições a outras mu- cidade turística, com vínculo nas raízes da imigração italiana e alemã,
danças propostas no Plano Diretor do município. Disponível em: http://www.jornaldegramado.com. refletida em todos os setores culturais, inclusive na arquitetura, mas que
br/politica/230570/novo-visual-da-praca-da-igreja-teve-boa-aceitacao-na-audiencia-publica.html
Acesso em: 22/06/2011
não tem sequer um prédio histórico registrado no Instituto do Patrimô-
29 Disponível em: http://arquivohugodaros.org.br/patrimonio-historico/considerando-o-sitio-histo-
nio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).
rico-religioso-da-igreja-matriz-sao-pedro-de-gramado/) Acesso em 20 de junho 2011
30 Constituição Federal de 1988, Vademecum Referenciado De Direito. Ed. Jurídica Brasileira, São 31 SIRVINSKAS, Luiz Paulo. Manual de Direito Ambiental. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.p.
Paulo. 2007 p.889. 449.

694 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 695
A Constituição Federal de 1988, finalmente traz o inventário como ao meio ambiente equilibrado, inclusive o meio ambiente cultural, à con-
instrumento jurídico de preservação do patrimônio cultural, ao lado do dição de direito fundamental.
tombamento, da desapropriação, do registro, da vigilância e de outras A legislação brasileira infraconstitucional, além de regulamentar
formas de acautelamento e preservação (art. 216, § 1º). Apesar de tra- questões de direito material, igualmente oferece instrumentos processu-
tar-se de outro mecanismo incipiente, nos casos dos destinos turísticos ais de investigação, reparação e tutela do meio ambiente cultural, cujas
como Gramado, torna-se imprescindível, pois consiste na identificação normas, inclusive, acentuaram a participação da população na tutela
e registro por meio de pesquisa técnica, e levantamento a campo das ambiental.
características e particularidades de cada prédio, com resultados téc- Dentre os intrumentos processuais analisados, cumpre reiterar a
nicos e objetivos, fundamentos de natureza multidisciplinar (histórica, Ação Civil Pública, da Ação Popular, das Audiências Públicas, Termo
artística, arquitetônica, sociológica, paisagística e antropológica, entre de Ajustamento de Conduta, entre outros. A maioria dos mecanismos
outros). Pode se tornar o instrumento eficaz e capaz de embasar a des- processuais de tutela ambiental conta com a particição do Ministério
tinação de multas e indenizações com caráter ambiental. Público, que tem na proteção do meio ambiente uma de suas mais im-
Assim, o inventário tem natureza de ato administrativo declaratório portantes atribuições institucionais.
restritivo, porquanto importa no reconhecimento, por parte do Poder Cumpre destacar que, embora a sociedade ainda enfrente o desafio
Público, da importância cultural de determinado bem. Podem daí deri- de perceber a importância do meio ambiente cultural, os intrumentos
var outros efeitos jurídicos objetivando sua preservação. processuais de tutela ambiental reconhecem a importância da partici-
Nesse aspecto, destaca-se o instrumento de Pagamentos por Ser- pação da comunidade na preservação do meio ambiente, e atribui aos
viços Ambientais à disposição da preservação do meio ambiente arti- cidadãos a responsabilidade moral de fiscalizar e denunciar atitudes ile-
ficial. O patrimônio histórico deve ser percebido pelo trade turístico, gais, muitas até criminosas, que acarretam danos ao ambiente.
pelos munícipes, assim como pelo poder público, como um bem dotado Ainda assim, é impostergável que se difunda e se estabeleçam novas
de valor econômico, uma vez que movimenta o imaginário do turista, formas participativas para assegurar este patrimônio, tornando essas
e principalmente a identidade cultural da comunidade. Dessa forma, o práticas a principal alavanca do planejamento e desenvolvimento urba-
patrimônio histórico cultural deixaria de ser uma externalidade positiva nístico das cidades, a fim de que, a exemplo do ocorrido no caso da Igre-
e passaria a servir de base para a valorização desse serviço ambiental ja de São Pedro de Gramado, a população tenha acesso a instrumentos
provido pelos interessados em preservá-lo. capazes de concretizar seus direitos.
Com a valoração do patrimônio histórico, cultural e paisagístico atra- No que tange às cidades turísticas, essa necessidade é mais do que
vés de inventário, os proprietários desses imóveis únicos continuariam uma questão de preservação ou conservação do patrimônio artificial,
com a plena propriedade e o uso do bem, mas passariam a receber um pois a manutenção desses espaços é a raiz da identidade cultural do lu-
pagamento para auxílio na manutenção, recuperação e conservação do gar, o que torna o cenário turístico único. Nos destinos turísticos, reve­la-
meio ambiente artificial, daqueles que se beneficiam com a permanên- se uma obrigação que perpassa o meio ambiente ecologicamente equi-
cia desses imóveis, que compõem a infraestrutura urbanística da cidade librado e a preservação do patrimônio cultural histórico e paisagístico:
turística. também compromete a manutenção da própria atividade econômica,
que se sustenta desses elementos.
Os instrumentos legais disponíveis de participação popular, na to-
2. Considerações finais mada de decisões, foi um passo importante nas últimas décadas no Bra-
sil. Entretanto, essa prática deve ser aperfeiçoada e difundida, para que
O patrimônio cultural histórico e paisagístico é um bem ambiental a participação seja de fato representativa dos interesses de uma comu-
que conta com ampla proteção jurídica. Influenciado por importantes nidade, e não para respaldar decisões já tomadas.
normas internacionais, a Constituição Federal brasileira elevou o direito

696 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 697
Referências
Os lugares como patrimônio cultural da
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CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Ed. Jurídica Brasileira, São Paulo. 2007 Resumo: O trabalho procura discutir a necessidade de o pla-
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DERANI, Cristiane. Direito Ambiental Econômico. 3 ed. São Paulo: Saraiva, cais, com significado e referência de determinada comunida-
2008. p. 75 de, devem ser protegidos como patrimônio. Ao menos devem
JORNAL DE GRAMADO. Política, 27 de Novembro de 2009 - Novo visu- ser considerados como elemento de planejamento e gestão
al da praça da igreja teve boa aceitação na audiência pública. Disponível em: do território urbano. Por meio da análise da transformação
http://www.jornaldegramado.com.br/politica/230570/novo-visual-da-praca-da- do bairro Menino Deus em Porto Alegre, procurou-se trazer à
-igreja-teve-boa-aceitacao-na-audiencia-publica.html Acesso em: 22/06/2011 lume o que está em jogo quando se perdem essas jóias cultu-
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 7. rais escondidas nos cantos das cidades.
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Malheiros, 1998,p. 2 das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos pára-raios,
SIRVINKAS, Luís Paulo. Manual de Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões,
2002. serradelas,entalhes, esfoladuras.2
SIRVINSKAS, Luiz Paulo. Manual de Direito Ambiental. 5. ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2007.
Este trabalho analisa aspectos da transformação do bairro Menino
SOARES, apud Dalari; FERRAZ, Comentários à Lei Federal 10.257/2001, 1ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2002 Deus no final do século XX. Por meio de dados históricos e sociais procu-
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proteção do meio ambiente. Campinas: Papirus, 1990. nio Histórico em Centros Urbanos pelo Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura da
SIRVINSKAS, Luiz Paulo. Manual de Direito Ambiental. 5. ed. São Paulo: Sa- Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Planejamento Urbano e Regional Faculdade de
raiva, 2007. p. 450. Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora da disciplina de Direito Municipal-
WILSON, O futuro da vida, Rio de Janeiro: Campus, 2002. WILSON, Edward. -Urbanístico do curso de Direito da Faculdade Cenecista de Osório, Rio Grande do Sul.
2 CALVINO, Ítalo. As Cidades Invisíveis. Porto Alegre: Companhia das Letras, 2003, página 16.

698 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 699
dos lugares desse bairro. Lugares constituem ambiências que devem respeito às sociabilidades locais e nos lugares de referência do bairro.
ser protegidas como referências culturais. Por isso, é preciso incluir no Todavia, salutar a discussão de modo a inserir no debate aspectos re-
planejamento e gestão das cidades a proteção do patrimônio cultural, lativos à sociologia dos territórios, que devem ser considerados no pla-
em que lugares e ambiências possam ser preservados como fonte de nejamento e gestão do espaço urbano a fim de evitar que os lugares de
referência de determinada comunidade. Foi-se o tempo em que apenas referência do bairro se transformem em locais sem qualquer significado
o patrimônio cultural imobiliário era protegido. ou identidade.
A escolha do bairro Menino Deus não se deu de modo aleatório, mas
decorreu das peculiaridades dessa área da cidade. Esse bairro serviu, e
ainda serve, de elo de ligação entre a zona sul e o centro da cidade de 2. Notas históricas: o bairro Menino Deus:
Porto Alegre. Além disso, o bairro, desde o final da década de 80, passa
por transformações. O mercado imobiliário voltou-se ao bairro acarretan- O bairro Menino Deus é um dos mais antigos de Porto Alegre. Até
do transfigurações que serão analisadas ao longo desse trabalho. o ano de 1840 a região, exceto por algumas poucas chácaras, não pas-
Deve ser considerado que a cidade concretiza o tempo e a memória, sava de um cerrado e escabroso mato4. Próximo ao centro da cidade
plasmando a identidade de cada um. Conocer y descubrir la ciudad en recebeu a aristocracia porto-alegrense que ali construiu suas casas de
sus dimensiones múltiples es conocerse a uno mismo y a los demás, es descanso e veraneio. Várias famílias abastadas da cidade desfrutavam
asumirse como individuo y como miembro de comunidades diversas3. as férias no Arraial do Menino Deus. A denominação do bairro originou-
Cada cidade possui a sua especificidade, a marca registrada e a razão -se da devoção ao Menino Deus, crença introduzida em Porto Alegre
pela qual é conhecida. Diminuindo o espectro, cada bairro, zona, rua ou pelos colonos açorianos. Em 1853 foi inaugurada, no Arraial do Menino
ambiência são marcados por traços específicos e diferenciados, reco- Deus, a Capela do Menino Deus, custeada pelas famílias abastadas que
nhecidos e identificadores daqueles que ali habitam. São códigos exis- possuíam casas no entorno. A abertura de novas ruas impulsionou o
tentes ao longo da paisagem urbana, imediatamente decifráveis pelos desenvolvimento da região. Passado o tempo o local foi urbanizado. O
moradores da cidade e que, aos de fora, pode seduzir. Esses signos re- bairro era habitado, no final do século XVIII, pela fina flor da sociedade
presentam a identidade do local e que mereceria ser preservada como porto-alegrense5. Nessa época as melhores roupas e móveis vinham de
fonte das relações sociais ali praticadas. Paris para as senhoras do bairro Menino Deus, os melhores casamentos
No bairro Menino Deus a classe burguesa sempre ocupou a maioria se realizavam no bairro Menino Deus6. O bairro sempre representou
dos espaços, tendo sido fundado pela aristocracia porto-alegrense. Mais para a cidade o local das elites e das festas:
recentemente passou a ser ocupado pela pequena burguesia também
denominada, service class. Na metade do século esta tendência foi alte- um bairro chique e, ao longo, da bem tratada avenida, iniciaram-se os
rada com o incremento dos serviços públicos e do comércio local. Tais vistosos sobrados, revestidos dos mais artísticos mosaicos da cerâ-
mica de Maiorca, ressaltados por figuras representativas da mitologia
fatos aliados à proximidade do centro da cidade contribuíram para o
grega, em fina louça italiana e portuguesa, importadas como o último
maior investimento imobiliário na região. Com isso, pouco a pouco os grito em enfeites da arquitetura barroca que começava a ser difundi-
sobrados e chácaras foram substituídos por lotes menores que, sucessi- da entre nós. Era o gosto: uma casa cheia de arabescos e molduras!7
vamente, deram espaço a unidades menores que acabaram verticaliza-
das. A burguesia da época manteve-se ali mas, paulatinamente, foi subs-
Evidente que esse processo acarretou transformações que merecem
análise. Obviamente que muitos fatores sao responsáveis pela transfor-
4 SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre. Crônicas de minha cidade. Porto Alegre: Instituto Estadual
mação morfológica do bairro Menino Deus, especialmente no que diz do Livro, 1979, p.213.
5 Jornal Folha da Tarde, 11-5-78.
3 BORJA. Jordi. La ciudad y la nueva ciudadania, 2004, Barcelona, 2004. Disponível em <www. 6 Idem. P.216.
forumbarcelona2004.org/eventos/dialogos>. Acesso em 18-4-2005. 7 Idem, p. 217.

700 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 701
tituída pela classe média, mas precisamente, pela service class.8 Ainda 3. O espaço, os lugares e as relações sociais:
há no bairro alguns exemplares arquitetônicos desse tempo. Entretanto,
com o passar dos anos essas chácaras e sobrados foram substituídos As chácaras e sobrados foram lentamente substituídos por loteamen-
por loteamentos. Na metade do século XX já se podia notar a transfor- tos menores que por sua vez também foram subdivididos e transforma-
mação lenta do bairro: dos em lotes verticalizados, impulsionados pela legislação urbanística.
De referir que tanto o Plano Diretor de 1979 como o atual favoreceram
Moradora antiga do Menino Deus, a bióloga Alzira Dornelles Ban mu- a construção e a verticalização do bairro Menino Deus, tanto no que diz
dou-se para a Rua Múcio Teixeira em 1955. respeito ao regime urbanístico dos imóveis, como na possibilidade de
(...).
compra de índices construtivos para aplicação neste bairro11.
-Quando cheguei aqui, havia apenas duas casas antigas na Avenida
Getúlio Vargas.A Avenida Ganzo (hoje, uma das principais vias do bair- Não fosse esse processo rápido sob o comando do capital imobi-
ro) não existia.9 liário, impulsionado pela legislação, os aspectos sociais peculiares do
bairro parecem nao ter estado na pauta da transformação. A ideia, para
Além disso, a partir desse período o bairro residencial passou a con- evitar tais ocorrências, seria agregar ao planejamento e à gestão a visão
tar com casas comerciais, especialmente situadas ao longo da Avenida do território como um todo e não apenas no seu aspecto espacial, mas
Getúlio Vargas.O fortalecimento do comércio e dos serviços foi deter- incluindo o território usado. Neste sentido Milton Santos auxilia no de-
minante para o crescimento e, obviamente, para a transformação do senvolvimento do que se analisa:
bairro. Pois já no ano de 1970 o cronista Alberto André alertava para o
Essa idéia de território usado, a meu ver, pode ser mais adequada à
risco de perda da história do bairro pelo desaparecimento dos elemen-
noção de um território de mudança, de um território de processo. Se o
tos referenciais daquela região: tomarmos a partir de seu conteúdo, uma forma-conteúdo, o território
tem de ser visto como algo que está em processo. E ele é muito impor-
Pois quase tudo foi embora. Ainda se vêem solares nas duas artérias tante, e é o quadro da vida de todos nós, na sua dimensão global, na
citadas, além da paineira da esquina da Getulio com o parque Ganzo. sua dimensão nacional, nas duas dimensões intermediárias e na sua
Dos verdes restou um, que a tenacidade dos técnicos da Divisão de Ur- dimensão local. Por conseguinte, é o território que constitui o traço de
banismo e da Divisão de Praças e Jardins conseguiu arrancar à fúria dos união entre o passado e o futuro imediatos. Ele tem de ser visto- e a
loteamentos indiscriminados e dos abusivos e angustiosos conjuntos expressão de novo é de François Perroux- como um campo de forças,
ditos residenciais, agora, patrocinados pelo BNH. É a Praça República como o lugar do exercício,de dialéticas e contradições entre o vertical
de Israel. O resto... Bem, a esperança é o parque de exposições.10 e o horizontal, entre o uso econômico e o uso social dos recursos. 12

Daquele cenário para a atualidade, é notória a transformação do No planejamento e, especialmente na gestão do território, urge a
bairro. O planejamento e a gestão urbana, ao invés de buscar a preser- valorização do viver e do saber local. O lugar, aqui referido como o lo-
vação dessa fonte de história e de identidade local, foram fonte de atra- cal com identidade, representaria uma evolução no modo de ver e de
ção e de incentivo ao mercado imobiliário. O bairro, então caracterizado preservar o patrimônio cultural. Com idéias muito semelhantes às de
por pequenos sobrados, ocupados, foi transformado. Marc Àuge, sobre as abundâncias da supermodernidade, Milton Santos
afirma que:
8 Conceitos extraídos dos textos de Catherine Bidou-Zachariasen. In La prise em compte de
l’ “effet de territoire” dans l’analyse des quartiers urbains. Revue Française de Sociologie, 1997,
XXXVIII-1, p 97-118, tradução e apontamentos de aula realizados por Luiz Fernando da Silva Mello e
Les classes moyennes: définitions et controverses depuis les années 1970 dans la littérature socio- 11 VIZZOTTO, Andrea. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do instrumento
logique de langue française et anglaise. In: Education et sociétés, janvier, 2005, também traduzido jurídico-urbanístico. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Arquitetura. Progra-
pelo colega Luiz Fernando da Silva Mello, junho, 2006. ma de Pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Porto Alegre, RS, 2008. Dissertação
9 Menino Deus. Jornal Zero Hora , Porto Alegre, Caderno de Imóveis, 2003, p.2. (mestrado).
10 Jornal Correio do Povo, 24-5-70, p. 16. 12 Idibem, p. 19.

702 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 703
Cada lugar é, à sua maneira, o mundo. Ou, como afirma M.A. de Sou- Os lugares normalmente não são dotados de limites reconhecíveis no
za (1995, p.65), “todos os lugares são virtualmente mundiais”. Mas mundo concreto. Isto ocorre porque sendo uma construção subjetiva
também cada lugar, irrecusavelmente imerso numa comunhão com e ao mesmo tempo tão incorporada às práticas do cotidiano que as
o mundo, torna-se exponencialmente diferente dos demais. A cada próprias pessoas envolvidas com o lugar não o percebem como tal.
maior globalidade, corresponde uma maior individualidade.É a esse Este senso de valor só manifesta-se na consciência quando há uma
ameaça ao lugar, como a demolição de um monumento considerado
fenômeno que G. Benko (1990,p.65) denomina de “glocalidade”, cha-
importante, ou quando há uma reivindicação comum como a visita
mando a atenção para as dificuldades do seu tratamento teórico. Para
periódica de um carro do “fumacê”.
apreender essa nova realidade do lugar, não basta adotar um trata-
Assim, ao contrário das regiões delimitadas para fins de planejamento,
mento localista, já que o mundo se encontra em toda a parte. plenamente reconhecíveis em mapas e cartas topográficas, através de
(...). símbolos e toponímias, a maioria dos lugares não são nomeados. Dar
A história concreta de nosso tempo repõe a questão do lugar numa nome a um lugar é dar seu explícito reconhecimento, isto é, reconhecê-
posição central, conforme, aliás, assinalado por diversos geógrafos. -lo conscientemente ao nível da verbalização (Tuan, 1975), fato este que
A. Fischer (1994, p.73), por exemplo, refere-se à “redescoberta da não ocorre na realidade. Dentro desta perspectiva, Bachelard (1978)
dimensão local”. afirma que “é a semente que faz a maçã, e ainda assim a miniatura da
Impõe-se, ao mesmo tempo, a necessidade de, revisando o lugar no semente é maior do que a grandeza da maçã”. Ou seja, apesar da inten-
mundo atual, encontrar os seus novos significados. Uma possibilidade sidade das experiências vividas a nível do país, da cidade, do bairro, ou
nos é dada através da consideração do cotidiano (A. Buttimer, 1976; da rua, se fossem representados cartograficamente, tais lugares seriam
A. Garcia, 1992: A. Damiani, 1994).Esta categoria da existência pres- menores que sementes, mas ainda assim germinariam afeição.
No entanto, tais relações de identidade não mapeáveis, nem sempre
ta-se a um tratamento geográfico do mundo vivido que leve em conta
são respeitadas ao nível dos interesses governamentais. .15
as variáveis de que nos estamos ocupando neste livro: os objetos, as
ações, a técnica, o tempo.13
Poder-se-ia afirmar, que o espaço também deveria ser gerido enquan-
to concepção simbólica16 ou de lugar antropológico17 considerados, inclu-
Portanto, a discussão vai muito além da questão patrimonialista, de
sive, na sua evolução temporal, mas mantendo a referência de essência:
proteção dos bens culturais. Trata-se de aprimorar o procedimento de
planejamento e gestão urbana para inclusão de outros matizes, justa- Se os lugares podem, esquematicamente, permanecer os mesmos, as
mente a fim de manter os espaços enquanto sociabilidades locais, nas situações mudam. A história atribui funções diferentes ao mesmo lu-
suas caracteristicas principais de referência e identidade. Sem essa visão gar. O lugar é um conjunto de objetos que têm autonomia de existên-
mais ampla, reduzindo-se o planejamento e a gestão a uma operação cia pelas coisas que o formam- ruas, edifícios, canalizações, indústrias,
meramente matemática restarão perdidos os encontros, as sociabilida- empresas, restaurantes, eletrificação, calçamentos, mas que não têm
des14 e os lugares de referência. Como conseqüência, o que seria uma autonomia de significação, pois todos os dias novas funções substi-
ação de gestão e de planejamento transformar-se-ia em fator decisivo tuem as antigas, novas funções se impõem e se exercem18.
para a degradação do bairro, ou melhor, para a concretização de não-
-lugares, espaços não vividos. Primordial nesse raciocínio é a compreen- Tudo isso serve para inserir na atividade de planejamento as rela-
são do conceito de lugar: ções sociais. Ademais, o espaço vivido e simbólico é, por excelência, o

15 LEITE. Adriana Filgueira. O lugar: Duas Acepções Geográficas. In www.anuario.igeo.ufrj.br/anu-


ario_1998/vol21_09_20.pdf . Acesso em 17-7-2006.
13 A Natureza do Espaço. Universidade de São Paulo: São Paulo, 2002, p. 313.
16 HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização. Do “fim dos territórios” à multiterritoriali-
14 De acordo com Cecília McCallum, a sociabilidade é um estado momentâneo na vida social de
dade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, p. 31.
um grupo, definido pelo sentimento de bem-estar e pelo auto-reconhecimento como um grupo de
parentes em plena forma. In Alteridade e Sociabilidade Kaxinauá: Perspectivas de uma antropologia 17 AUGE. Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:
da vida diária. Revista Brasileira de Ciências Sociais, outubro 1998, n.38. In http://www.scielo.br/ Papirus, 2005, p. 22 e seguintes.
scielo.php?script=sci_arttex&pid. Acesso em 30-7-2006. 18 SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo:Hucitec, 1988, p.52

704 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 705
cenário das relações sociais. Milton Santos estabelece a relação entre a O novo não chega em todos os lugares e quando chega não pe ao
análise do espaço e das relações sociais: mesmo momento; por isso, o novo nem sempre chega quando é ab-
solutamente novo. Portanto, podemos datar a chegada das variáveis
Todos os espaços são geográficos porque são determinados pelo mo- em relação ao momento em que começam a existirem o seu momento
vimento da sociedade, da produção. Mas tanto a paisagem quanto o zero.
espaço resultam de movimentos superficiais e de fundo da sociedade, (...).
de uma realidade de funcionamento unitário, um mosaico de rela- A chegada do novo causa um choque. Quando uma variável se in-
ções, de formas, funções e sentidos.19 troduz num lugar, ela muda as relações preexistentes e estabelece
(...). outras. Todo o lugar muda. Por exemplo, quando se constrói um hotel
12. A espacialização não é o espaço. com quatrocentos lugares, muda todo o lugar e não apenas o setor
O espaço é o resultado da soma e da síntese, sempre refeita, da pai- hoteleiro.21
sagem com a sociedade através da espacialidade. A paisagem tem
permanência e a espacialidade é um momento. A paisagem é coisa, a Não se defende aqui que o processo de planejamento e gestão
espacialização é funcional e o espaço é estrutural. A paisagem é rela- se torne algo incompreensível e infindável, realizado por comissões
tivamente permanente enquanto a espacialização é mutável, circuns-
multidisciplinares, em execução de trabalhos subjetivos e alijados do
tancial, produto de uma mudança estrutural ou funcional. A paisagem
precede a história que será escrita sobre ela ou se modifica para aco-
contexto sistêmico e integrado. O que se pretende é bastante simples:
lher uma nova atualidade, uma inovação. A espacialização é sempre que o social possa fazer parte do planejamento e da gestão da cidade,
o presente, um presente fugindo, enquanto a paisagem é sempre o na sua consideração material e imaterial, considerados os elementos
passado, ainda que recente. de referência e, especialmente os lugares da cidade.
O espaço é igual à paisagem mais a vida nela existente; é a sociedade Esse elemento social dá uma dimensão humanizadora ao plane-
encaixada na paisagem, a vida que palpita conjuntamente com a ma- jamento e a gestão das cidades. Cada pedaço urbano será considera-
terialidade. A espacialidade seria um momento das relações sociais
do na sua individualidade espacial, histórica e social, muito além das
geografizadas, o momento da incidência da sociedade sobre um de-
terminado arranjo espacial.20 práticas da atualidade. A preservação dos lugares deverá ter papel de
(...). destaque.
Cada lugar combina variáveis de tempos diferentes. Não existe um
lugar onde tudo seja novo ou onde tudo seja velho. A situação é uma
combinação de elementos com idades diferentes. O arranjo de um 4. Os lugares do bairro Menino Deus:
lugar, através da aceitação ou rejeição do novo, vai depender da ação
dos fatores de organização existentes nesse lugar, quais sejam, o es-
Na evolução do tempo, o bairro Menino Deus conservou seus luga-
paço, a política, a economia, o social, o cultural...
Tanto o novo quanto o velho são dados permanentes na história; aco- res referenciais à identidade local. Exemplo é a antiga Capela do Menino
tovelam-se em todas as situações. Mas se os elementos de uma dada Deus que foi construída pela abastadas famílias que primeiramente ali ins-
situação trabalham em conjunto, é o novo que aparece como dotado talaram suas casas de veraneio. Incendiada, foi reconstruída e novamente
de maior eficácia. remodelada e, atualmente, abriga a Igreja do Menino Deus. O lugar, que
O novo nem sempre é desejado pela estrutura hegemônica da socie- representou o início do bairro, se constitui não apenas em referencial geo-
dade. Para esta, há o novo que convém e o que não convém. O novo gráfico, mas representação da constituição do bairro. É ali que as famílias
pode ser recusado se trás uma ruptura que pode retirar a hegemonia se ainda se encontram e onde acontecem as festas de bairro.
das mãos de quem a detém.
(...).
Nessa igreja, que ainda até há pouco tempo, podia-se contemplar
uma das mais autênticas relíquias da cidade. Era aquele relógio gran-
19 Ibidem, p. 61.
20 Ibidem, p. 74. 21 SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo:Hucitec, 1988, p. 98.

706 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 707
de, de quadrante esmaltado em branco, com números romanos. Es- A Prefeitura, com exposição de sua Divisão de Urbanismo, entendeu-
tivera ele muitos anos na torre direita da velha catedral lá no Alto da -se reservar a parte da frente, a do casarão, para verde popular. Au-
Matriz e, quando esta foi demolida, assentaram-no no alto da torre toridade federal quer, no entanto, o conjunto para o Ministério da
do Menino Deus. Por muitos e muitos anos esse velho relógio deu as Agricultura. Repete-se, aqui, o tumultuado e natural processo aconte-
horas à cidade, e era ele que, às nove horas impreterivelmente, assi- cido com o sinistro cadeião da volta do Gasômetro. Quando os presos
nalava, com o grande sino, que também já desapareceu, o silêncio da foram removidos para a penitenciária do Partenon, muitos pleitearam
capital. Velharia, dirão! O passado é um tempo que se pode esquecer, o edifício para repartição pública, asilo, almoxarifado e outros usos.
mas será sempre um marco na vida do bairro e este no progresso da Loureiro é que conseguiu destruí-lo para empreendimentos do Plano
cidade que cada vez mais, se transforma.22 Diretor.
Parece que o mesmo ocorre agora, com a área da Avenida Getúlio
O Parque de Exposições, que substituiu o antigo prado do Menino Vargas. Tenho posição definitiva a respeito: quem a merece e têm o
Deus, também foi, e é, um lugar referencial do bairro. Desde o início da direito de a pleitear, mais do que ninguém é o povo de Porto Alegre,
no aspecto próprio, o do Menino Deus. 25
povoação o local era utilizado para o lazer dos veranistas onde grandes
caçadas ali eram realizadas. Após a inauguração do prado, em 187723,
A Avenida Bastian e a Ganzo, que surgiu mais tarde, sempre foram
as corridas de cavalos passaram a ocupar as tardes ensolaradas dos
vias importantes e referenciais do bairro. A Avenida Ganzo foi assim de-
finais de semana. Para um outsider, parafraseando a expressão de Nor-
nominada para homenagear o espanhol que habitou no bairro e que
bert Elias24, o lugar poderia parecer, na atualidade, apenas ocupado
criou um zoológico que poucos sabem, existia no local. Essas vias, tal-
por órgãos públicos estaduais. Todavia, é ali que a comunidade pra-
vez sejam das mais transformadas durante toda a sua existência. Hoje,
tica esportes e desfruta momentos de lazer. Além disso, preservando
poucas residências sobrevivem ao lado os gigantescos edifícios. Mas ali
as relações de vizinhança, naquele lugar as donas de casa do bairro se
ainda sobrevive a sede do Clube do Comércio, antigo clube do Menino
encontram na feira de alimentos orgânicos, realizada, há anos, todas as
Deus, sempre bastante freqüentado pela comunidade local:
quartas-feiras e sábados. O espaço, embora público, é cobiçado pelo
capital imobiliário, já que se constitui em um dos poucos vazios no bair-
Aí estava o Prado, inaugurado em 1877 e que por muitos anos iria
ro. A importância do lugar para o bairro pode ser traduzida na preocu- oferecer sensações ao bairro e à cidade coquete. O Ganzo, com o seu
pação da imprensa, já nos anos 70: curioso Jardim Zoológico. E o próprio Clube do Menino Deus açam-
barcador de todos os festejos do bairro, numa época em que, afora a
O governo do Estado envolveu-se em caso aparentemente simples, zona urbana da capital, todo o resto praticamente era verde paisagem
mas de atendimento complicado pela qualidade dos requerentes. O com um que outro núcleo populacional.26
que fazer com a área e as instalações do finado parque de exposições
do Menino Deus? Peracchi e Luciano Machado bateram pé, fecharam A característica arborização do bairro também é elemento de refe-
a cara e, enfrentando amigos e inimigos, conseguiram instalar no Es-
rência das ruas do miolo do Menino Deus, espaço compreendido entre
teio o novo local das mostras rurais e outras do Rio Grande. No Meni-
no Deus, ainda ocupado pela Secretaria da Agricultura, restou o velho os limites da Jose de Alencar e Avenida Bastian, entre Getulio Vargas e
parque inaugurado em 1912. Avenida Praia de Belas.
Nesta cidade, esfomeada de verdes e espaços livres. Formalizaram- Todos esses espaços configuram-se como lugares, fazem a referên-
-se logo três ordens de solicitações ao Piratini. O Departamento de cia identitária do bairro. Sobreviveram ao desenvolvimento do bairro.
Esportes do estado foi pedindo o pavilhão dos fundos, precisamente o Todavia, essa aceleração brusca ao final do século XX demanda uma
local dos desfiles, para as práticas físicas e competições amadoristas. melhor observação às transformações ocorridas. Com exceção do Par-
22 SANHUDO, p. 218.
23 SANHUDO, p. 217. 25 ANDRÉ, Alberto. Menino Deus pode ficar sem história e parque. In Jornal Correio do Povo, 24-
24 Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de poder a partir de uma pequena 5-70, p. 16.
comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2000. 26 SANHUDO, Id., p. 217.

708 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 709
que de exposições do Menino Deus, devido à sua natureza jurídica de A administração local deve prestar atenção à transformação morfo-
espaço pertencente à administração pública estadual, os demais luga- lógica e paisagística do bairro. O grande adensamento gerado modificou
res do bairro, não possuem proteção legislativa específica e podem de- as relações sociais, especialmente as de vizinhança. As senhoras já não
saparecer ante a rápida verticalização imobiliária. se debruçam às janelas para conversar com quem passa, porque já não
há mais casas e já não há ninguém nas ruas. Os encontros tornaram-se
mais escassos.
5. A transformação do bairro Menino Deus: Com o tempo essas pequenas mudanças poderão acarretar a al-
teração não apenas das relações sociais, mas também nas relações da
Os dados não são recentes, mas servem para ilustrar a modificação comunidade com os seus espaços de referência local. O território usado,
do bairro. Segundo pesquisa realizada em Porto Alegre27, no ano de na expressão de Milton Santos passará ao desuso, ferindo de morte os
2004, o bairro Menino Deus encontrava-se entre os dez bairros mais espaços de referência do bairro. Se isso acontecer, perde-se um pouco
verticalizados da cidade. Ainda segundo a mesma fonte, para os próxi- da cidade, um pedaço de cada um se vai.
mos anos está previsto um elevado número de investimentos imobiliá-
rios. O valor médio por unidade é de R$ 250.000.00, o que indica que
tais empreendimentos se destinam a um público bastante específico. Conclusões articuladas:
Ao que tudo indica, pelos dados apresentados, haverá uma significativa
alteração morfológica no bairro. a) O planejamento e a gestão da cidade não pode se estagnar
A transformação do tecido urbano, impulsionada por vários fatores, como mero processo automático de aplicação da lei. Tampouco pode
tais como o incremento da oferta de serviços públicos e comércio, assim estar restrito à gestão territorial. A noção de lugar, de território usado,
como a proximidade do centro da cidade28 pode transfigurar, ainda mais, no dizer de Milton Santos, precisar estar efetivamente enfocada na ges-
o bairro. A legislação urbano-ambiental da cidade teve papel essencial tão urbana;
nessa transformação, mas poderá acarretar mais mudanças com a perda b) É preciso evitar os não-lugares, locais sem qualquer identidade
de referência de identidade local. Isso porque a normatização da ordena- ou referência. Um local vazio e sem significado, tende à estagnação, jus-
ção do bairro não foi suficiente para atender essas demandas sociais e tamente pela falta de ligação dos indivíduos àquele território;
culturais, com crescimento sustentável e com qualidade de vida. O plane- c) Necessário que na proteção do patrimônio cultural esteja inse-
jamento e a gestão do bairro Menino Deus deu-se no mais estrito âmbito rida essa relação de território-lugar-indivíduo, como modo de retro-ali-
geográfico e territorial. Houve uma visão limitada aos aspectos estruturais mentação desse espaço da cidade, configurando-se o efetivo planeja-
do local, sem qualquer consideração da eventual alteração social ou even- mento e gestão do território urbano.
tual perda de valores de referência. Não se pretende, aqui, defender o
congelamento daquele espaço importante para a cidade de Porto Alegre
ou das relações sociais tais como praticadas no começo da constituição Referências
do bairro e mantidas até metade do século XX. Todavia, seria preciso sim,
que fossem analisados esses aspectos sociais e culturais, trazendo um ANDRE, Alberto. Menino Deus pode ficar sem história e parque. Jornal Correio
aporte mais amplo que não apenas o enfoque da transformação territorial do Povo, Porto Alegre, p. 16,24-5-70.
ou da proteção do patrimônio cultural material. AUGE, Marc. Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernida-
de. Campinas: Papirus, 2005.
27 In www.urbansystems.com.br. Acesso em 15-7-2006. BORJA. Jordi. La ciudad y la nueva ciudadania, 2004, Barcelona, 2004. Dispo-
28 Naquela época, metade do século XX, o centro da cidade estava localizado na região do Mer- nível em <www.forumbarcelona2004.org/eventos/dialogos>. Acesso em 18-
cado Público Municipal Paço Municipal, Praça da Alfândega e Praça XV de Novembro. Apenas na
metade da década de 70 é que se deslocou para a região norte da cidade em razão da construção 4-2005.
de grandes centros comerciais ao longo da Avenida Independência e bairro Moinhos de Vento.

710 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 711
BIDOU-ZACHARIASEN. Catharine. Les classes moyennes: définitions et contro-
verses depuis les années 1970 dans la littérature sociologique de langue fran-
Terreno da Fase em Porto Alegre:
çaise et anglaise. 2005. Tradução: Luiz Fernando da Silva Mello, junho, 2006. O morro é nosso?
ELIAS. Norbert. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das relações de
poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, Charles Pizzato1
2000.
HAESBAERT, Rogério. O Mito da Desterritorialização. Do “fim dos territórios” à
multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. Resumo: O direito ao uso do solo, frente ao direito de aspec-
tos importantes para a constituição da cidadania como a pai-
LEITE, Adriana Filgueira. O lugar: Duas Acepções Geográficas. Rio de Ja-
sagem urbana, o patrimônio histórico e a moradia por vezes
neiro, 1998. Disponível <http://www.anuario.igeo.ufrj.br/anuario_1998/ levam a conflitos entre os agentes sociais. A construção de
vol21_09_20.pdf>. Acesso em 17-7-2011. diretrizes e planejamentos sobre o uso de grandes espaços
MCCALLUM, Cecília. A sociabilidade é um estado momentâneo na vida social urbanos passa pelo reconhecimento destes enquanto lugares
de um grupo, definido pelo sentimento de bem-estar e pelo auto-reconheci- da pluralidade de aspectos. Se estes espaços são de domí-
nio público, maior importância detém sobre o lugar. A intera-
mento como um grupo de parentes em plena forma. Revista Brasileira de Ciên-
ção através do diálogo se faz necessária para transformar o
cias Sociais, outubro 1998, n.38. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo. espaço em um lugar reconhecido e aceito pela comunidade
php?script=sci_arttex&pid>. Acesso em 30-7-2011. em que está inserido. Neste contexto, parte do Morro Santa
MENINO DEUS. Jornal Folha da Tarde, 11-5-78. Teresa abriga as instalações da Fundação de Atendimento
_______;Vitória da Convivência. Jornal Zero Hora, Caderno de Imóveis, p. 2, Socioeducativo do Rio Grande do Sul (FASE). Esta entidade,
2-11-2003. proprietária de área foi alvo de disputas sobre sua destina-
ção, mas não reconhecido seu papel social, enquanto equipa-
SANHUDO, Ary Veiga. Porto Alegre. Crônicas de minha cidade. Porto Alegre: mento urbano fundamental à reconstrução da vida de adoles-
Instituto Estadual do Livro, 1979. centes que cometeram atos infracionais e sua re-inserção na
SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. São Paulo: Hucitec, sociedade. O terreno no entanto necessita de um tratamento
1988. integrado entre os diversos agentes que ali operam, garantin-
SANTOS, Milton. O Território e o Saber Local: algumas categorias de análise. do seus direitos através de seus deveres.
Palavras-chave: FASE; Morro Santa Teresa; lugar da plurali-
Cadernos IPPUR, Rio de Janeiro, Ano XIII, n.2, 1999.
dade.
VIZZOTTO, Andrea. O solo criado em Porto Alegre: a adoção e a aplicação do
instrumento jurídico-urbanístico. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Faculdade de Arquitetura. Programa de Pós-graduação em Planejamento Ur- 1. Introdução
bano e Regional. Porto Alegre, RS, 2008.¾ Porto Alegre: UFRGS, Faculdade de
Arquitetura, 2008. Dissertação (mestrado). Ao seguir do centro de Porto Alegre em direção à Zona Sul, logo
após o Asilo da Sociedade Humanitária Padre Cacique, temos na mesma
quadra uma vasta área verde que segue por cerca de 650 metros. Por
trás das árvores vemos uma construção de paredes de tijolos e cor azul.
Trata-se da Sede Administrativa da Fundação de Atendimento Socio-
educativo do Estado do Rio Grande do Sul, a FASE. E este é apenas o
primeiro prédio que ali se encontra. Todo o complexo de edifícios desta
Fundação está encoberto pela vegetação.
Olhando no mapa, o terreno da FASE pode ser entendido por um
formato triangular. Um dos lados estende-se pela Avenida Padre Caci-
1 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, ULBRA Canoas, Brasil, cpizzato@fase.rs.gov.br

712 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 713
que, iniciando-se junto a um posto de combustíveis e seguindo até o participantes do evento, sensibilizados pelo potencial urbano do terreno
cruzamento com a Avenida Pinheiro Borda e a Avenida Taquary. Daí da FASE, incorporaram-no nas propostas apresentadas, em uma época
forma divisa com uma série de lotes que começam neste ponto e de em que ainda não se falava em venda ou permuta da área.
tantos outros de fundos da Avenida Jacuí. Sobe e desce o Morro Santa Em 2010, frente à ampla divulgação de transferência de proprieda-
Teresa e cruza a terminação da Rua Jaguari, já no Bairro Vila Cruzeiro do de do terreno que se estabeleceu nos meios de comunicação, diversos
Sul, formando assim o segundo lado. Esta ponta forma um vértice que setores da sociedade civil movimentaram-se com o intuito de preservar
se unirá ao outro vértice da Avenida Padre Cacique, seguindo um cami- o status quo do mesmo. Este movimento fomentado por comunidades
nho que desvia da Rádio-TV Record, subindo e descendo novamente o locais, ONG’s e entidades representativas reuniram-se sob a denomi-
mesmo morro. nação “O Morro é Nosso”, que segue ativamente, vide o Seminário O
Esta área possui 72,50 hectares, regidos por uma única matrícula Morro é Nosso, realizado em 5 e 6 de agosto deste ano.
de Nº 5935 do Registro de Imóveis (R.I.) da 2ª Zona de Porto Alegre-
-RS. Nesta matrícula consta que o terreno pertence à Fundação Estadu-
al do Bem Estar do Menor - FEBEM. 2. Histórico de ocupação
No ano de 2010 este terreno esteve presente nos meios de comu-
nicação devido a discussões e debates da sociedade civil sob a temática O terreno da FASE localiza-se em parte do que era originalmente a
de sua avaliação patrimonial, em decorrência de proposta apresentada Sesmaria de São José, concedida anteriormente a Sebastião Francisco
à Assembléia Legislativa, o Projeto de Lei nº388, que visava a permuta Chaves pela Coroa Portuguesa. Esta sesmaria tinha como limites o Ar-
de sua área por área construída, com objetivo de implementar a cons- roio Jacareí (hoje Arroio Dilúvio) e o Arroio Cavalhada.
trução de novos prédios para a FASE. As sesmarias eram áreas destinadas à criação de gado para as “mi-
Na visão de muitas entidades, o que estava sendo proposto era a nas gerais”. Existem relatos que citam que as áreas circunvizinhas à cida-
venda de um terreno do Estado. de eram destinadas à agricultura, pecuária e algumas charqueadas.
O PL 388 não foi aprovado e em decorrência da proximidade das O mapa abaixo mostra a divisão das principais sesmarias do que
eleições. Retirado de pauta, seguiu sendo tema de campanha entre os hoje é o município de Porto Alegre.
principais concorrentes ao Executivo Estadual daquele ano.
Pouco tempo depois ocorreu na PUCRS a 54º IFHP World Congress,
promovido e organizado pela FAUPUCRS e pela International Federation
for Housing and Planning – IFHP. O tema do evento tinha como título
“Construindo Comunidades para as Cidades do Futuro”. O evento focava
nas formas de constituição de comunidades, visto seu papel no funcio-
namento e qualificação dos territórios urbanos. Expressava ainda que
as comunidades são base para políticas urbanas, enquanto referências
para gestores públicos e técnicos da área urbanística.
Apresentou-se também neste congresso os resultados do Concurso
Internacional de Estudantes, tendo como tema o uso da área da FASE e
seu trecho equivalente de terra à frente da Av. Padre Cacique até atingir
a beira do Rio Guaíba.
Anos antes, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UniRitter,
promoveu o Project Mercosur 2008 – Workshop Porto Alegre – A ci-
dade reencontra o rio. Com o intuito de levantar idéias para a orla, os
Figura 1 - Mapa de 1732 das estâncias de Porto Alegre. Fonte: PESAVENTO (1991)

714 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 715
A ocupação posterior remonta ao período do início das atividades orientação da “Doutrina da Situação Irregular” à criança e ao adolescen-
de assistencialismo social da cidade de Porto Alegre e neste sentido foi te, para a “Doutrina da Proteção Integral”.
a construção do Colégio de Santa Teresa, promovido pelo Imperador Este foi o pontapé inicial para a divisão da FEBEM em Fundação de
Dom Pedro II, em 1845, através do Decreto Imperial Nº 439. Neste Proteção Especial (FPE) e FASE, através da Lei Estadual nº 11.800 de
decreto, que ocorre após o término da Revolução Farroupilha, Dom Pe- 2002.
dro II acompanhado por sua esposa Teresa Cristina, em visita à Cidade A função da FASE/RS passou a ser a socioeducação, conforme pre-
de Porto Alegre, resolve fundar um colégio para educação de meninas coniza o ECA. Sendo função do Estado manter e educar, para o convívio
órfãs. Antes disso, todas as crianças abandonadas eram deixadas na em sociedade, os adolescentes que cometeram atos infracionais.
Roda dos Expostos e cuidadas pela Santa Casa de Misericórdia. Alguns prédios que foram criados no período da FEBEM para seu uso
Somente em 1864, com a autorização do mesmo Imperador, a obra de internação, localizados naquele terreno, ficaram sob uso da FASE, se-
foi encampada pelo Padre Joaquim Cacique de Barros e parcialmente guindo com a mesma função, porém com uma alteração significativa de
concluída, o suficiente para ser posta em uso. O trabalho assistencialista perfil de usuário e programa de atendimento. Em termos arquitetônicos,
do Padre Cacique seguiu com a construção do Asilo de Mendicidade e este descompasso entre o ambiente construído e o trabalho realizado
após sua morte, conduzido pela Sociedade Humanitária Padre Cacique, é causa de uma série de problemas que diariamente são enfrentados
criada em 12 de maio de 1892, que administrou as obras e a constru- tanto pelas equipes de socioeducadores quanto pelos adolescentes.
ção do Asilo São Joaquim. A intenção exposta pela Sociedade Huma-
nitária Padre Cacique à época era atender “todos os desvalidos” sendo
distribuídos as meninas órfãs no Colégio de Santa Teresa, os meninos 3. A área da FASE e o patrimônio histórico
órfãos no Asilo São Joaquim e os adultos e idosos no Asilo de Mendici-
dade. Em decorrência de solicitação do
Em 1945, através de intervenção estadual, a política sobre os me- Ministério Público ao Instituto do Patri-
nores de idade altera-se radicalmente, colocando seu atendimento e mônio Histórico e Artístico do Estado do
cuidados sob a responsabilidade do Estado. Dois instrumentos legais Rio Grande do Sul (IPHAE), e utilizando-
tiveram efeito direto sobre este evento: Decreto nº1.673, de 29 de -se dos dados da Comissão do Memorial
agosto de 1945, nomeando um Interventor e retirando o atendimento Histórico da FASE, formada pela Por-
ao menor da responsabilidade da Sociedade Humanitária Padre Caci- taria nº323/2007, foram identificados
que e o Decreto nº890, que criou o Serviço Social de Menores – SESME duas grandes edificações que estão em
– ligado à Secretaria do Interior e Justiça. estudo para tombamento.
Com esta ação, o terreno e suas benfeitorias passaram a ser respon-
sabilidade do estado e a SESME. O terreno, que já havia perdido muito Figura 2 - Fotografia da fachada original do
de sua configuração da sesmaria original, foi fracionado, mantendo o Colégio de Santa Teresa. Fonte: Relatório apre-
prédio do Asilo de Mendicidade e uma “fatia” para a Sociedade Huma- sentado ao Conselho da Sociedade Humanitária
nitária Padre Cacique. Padre Cacique (1945)2.
Em 1969 foi criada a Lei Estadual nº 5.747, de 17 de janeiro de
1969, que autorizava o Poder Executivo Estadual a criar a Fundação Esta-
dual do Bem-Estar do Menor, a FEBEM-RS, de acordo com a Política Na- Uma delas é o atual Centro de Atendimento Socioeducativo Padre
cional do Bem-Estar do Menor estabelecida pela Lei nº 4.513 de 1964. Cacique – CASE PC – que foi fundado como Colégio de Santa Teresa. Ori-
Com a promulgação da Lei nº 8.069 de 13 de julho de 1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), houve uma alteração da 2 A imagem da revista foi fotografada por José Carlos Longhi. Não há registro do fotógrafo original
ou data.

716 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 717
ginalmente era em estilo neoclássico, projetado pelo arquiteto Grandje- Santa Ana e São Joaquim. A pintura foi provavelmente executada entre
an de Montigny, único de sua autoria fora do Rio de Janeiro, onde atu- a inauguração do prédio e sua primeira fase de ocupação.
ava como arquiteto do Império. Grandjean de Montigny veio ao Brasil
na Missão Francesa e é um dos fundadores da Escola de Belas Artes do
Rio de Janeiro. Atualmente as fachadas estão descaracterizadas e sua
volumetria foi em muito acrescida, mas as estruturas principais ainda
são as originais e a história reconta a atuação dos serviços assistenciais
do Estado e do Município.
O outro prédio é a Sede Administrativa da FASE. Foi financiado e
construído pela Sociedade Humanitária Padre Cacique. Projeto de auto-
ria do Engenheiro Álvaro Nunes Pereira e inaugurado em 16 de junho de
1932, como Asilo São Joaquim.

Figura 3 - Foto de 2010 da Pintura Mural. Encontra-se no Hall de Entrada da Sede


Administrativa. Autoria da fotografia: Marcio Teixeira.
Figura 2 - Fotografia da fachada original de fundos do Asilo São Joaquim. Fonte: Rela-
tório apresentado ao Conselho da Sociedade Humanitária Padre Cacique (1945)3. Somando o prédio do Asilo de Mendicidade, que está tombado pelo
órgão municipal do patrimônio histórico – EPHAC – temos um conjunto
De características ecléticas, hoje tem a fachada frontal parcialmente que remonta a história da assistência social e educação de crianças,
desfigurada e sofreu diversas ampliações nos fundos do prédio, em cres- adolescentes e adultos na cidade. Os três prédios, originalmente com
cimento similar ao promovido no prédio do Asilo de Mendicidade Padre funções similares, construíam um espaço urbano de características úni-
Cacique. cas no Estado naquele período.
No hall de entrada deste foi descoberta uma pintura mural, identi- A condição de manutenção da área verde no entorno imediato na
ficada pelo MARGS como de relevância histórico-artística e necessária área da FASE, nos remete a uma fácil rememoração e apropriação da
sua restauração. Esta pintura é temática da religião cristã e representa história através deste cenário. Sendo a FASE ter sua missão a socioedu-
o cotidiano da família da Virgem Maria – ainda criança – com seus pais, cação e a mesma ser afeta da assistência social, por valores intrínsecos
da Doutrina de Proteção Integral, não é estranho que seus agentes se
3 Idem nota anterior.

718 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 719
sintam tocados pelo valor histórico agregado. Neste sentido, a manu- Além deste trecho, descreve a existência de outras formações da
tenção do patrimônio histórico da Fundação deve ser entendida como flora, como capão de mata, campo rupestre, entremeadas de pequenas
ponto fundamental de conexão da FASE com suas raízes e da constru- ilhas de vegetação arbóreo-arbustiva, pequenos vassourais e ampla va-
ção de uma sociedade mais justa e integrada socialmente. riedade de microflora liquênica.
De uma riqueza descritiva, o Laudo vai apresentando a presença de
espécimes nativas que remontam à formação original da vegetação da
4. O meio-ambiente natural região, o que por si só garante uma necessidade de preservação am-
biental destes locais. Mesmo não tendo apresentado a fauna da região,
A primeira visão que o porto-alegrense tem quando trava contato pelo levantamento da flora, pode-se perceber que estamos falando de
com o terreno é de sua área verde. Os 650,00 metros que formam seu um potencial de reserva natural que só encontraria similaridade em
percurso na Avenida Padre Cacique são dominados por vegetação de bairros mais afastados das áreas urbanas, junto à orla do Rio Guaíba.
grande porte (acima de 10,00 metros de altura) e seguem praticamente No que tange a questão ambiental, ainda cabe ressaltar a presen-
ininterruptas até uma curva de nível 20,00 metros acima do nível do ça de duas antigas “saibreiras” dentro do terreno. Uma desocupada,
alinhamento. na face frontal do morro (considerando a Avenida Padre Cacique como
Se o observador posicionar-se na Avenida Edvaldo Pereira Paiva (co- frente), iniciando atrás dos prédios da FASE e terminando próximo de
nhecida como Beira-Rio), consegue-se daí ter a visão do Morro Santa assentamento irregular, denominada Vila Gaúcha. O outro trecho esca-
Teresa e muito pouco de suas edificações. vado fica na confrontação da Avenida Jacuí e foi posteriormente ocupa-
A primeira linha de massa vegetal é unida com os principais talve- do por habitações irregulares, denominada Vila Ecológica.
gues – pequenos cursos d’água em declives acentuados e cercados por No Laudo da Fundação Zoobotânica, existem ressalvas quanto às
mata nativa – onde alguns sobem até próximo das cotas mais altas do ocupações irregulares, como na seguinte citação: “As áreas com maior
terreno. Este trecho frontal contém três talvegues. grau de degradação da vegetação são as áreas invadidas pelas vilas, o
Entre os talvegues inicia-se uma área de características de campo, entorno do prédio em ruínas (antigo ICM) e a saibreira.”6
que segue até o topo do morro e desce à zona interior da cidade.
Em 22 de Julho de 2009, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente
(SEMA), através da Fundação Zoobotânica, apresentou o Laudo de Co- 5. A Evolução Urbana do Terreno
bertura Vegetal. O Laudo afirma que aquele trecho de terra mantém sig-
nificativas massas vegetais e espécimes importantes à flora do estado, O processo foi iniciado pelo levantamento de mapas da cidade. Foi
identificadas como “(...) espécies raras sem status de conservação (...)”4 e um processo de verificação junto ao Gabinete de Estudos e Documen-
acrescenta sobre esta zona de características de vegetação rasteira: tação Urbana (GEDURB) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e à Secretaria Mu-
“O mais impressionante é que neste pequeno trecho de campo, tão nicipal de Obras Viárias (SMOV) da Prefeitura de Porto Alegre. Todos os
próximo às áreas invadidas (Vila Prisma e Vila Ecológica), abriga a rara mapas foram fotografados e foi estudada a evolução urbana do terreno.
tanchagem que tem como elementos acompanhantes cinco espécies
Publicações sobre a história da cidade (PESAVENTO, 1991; SOUZA
ameaçadas de extinção: Mandevilla coccinea (Apocynaceae), Gochna-
tia cordata (Asteraceae), Dyckia choristaminea (Bromeliaceae), Parodia & MÜLLER, 2007 et alii) também foram pesquisadas, bem como utiliza-
ottonis (Cactaceae) e Schelechtendahlia luzulifolia (Asteraceaea).”5 do o recurso da fotografia de satélite7.
Após esta coleta de dados, os dados foram transferidos, juntamente
com o Levantamento Topográfico disponível para um programa CAD e
4 FUNDAÇÃO ZOOBOTÂNICA (SEMA). Laudo de cobertura vegetal e mapeamento das principais
manchas de vegetação do Centro de Atendimento Sócio Educativo Padre Cacique – Fundação de
Atendimento Sócio Educativo – FASE. Porto Alegre, 2009. p. 12. 6 Ibid. 2009, p. 12.
5 Ibid. 2009. p. 12. 7 Através do software GoogleEarth.

720 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 721
foram realizados estudos comparativos entre os mapas, sobrepondo as diversos pontos do terreno. Em 2008 foi realizado um levantamento
fotografias dos mapas ao Levantamento Topográfico – planimetria da superficial das áreas invadidas na área escriturada e seu resultado ex-
área. posto no processo 2965-21.58/08-9.

5.1 A Evolução Urbana da Cidade

Figura 5 - Mapa do Terreno da primeira década do século XXI, em


hachura estão as áreas invadidas. Fonte: desenhos do autor.
Figura 4 - Mapa do município em 1906 (esquerda), com o terreno ainda em área rural
e Mapa do município em 1935, com suas áreas urbanizadas (direita). Fonte: desenhos Em um período de 20 anos, o terreno foi ocupado irregularmente
do autor. em 15%. Atualmente são cerca de 17% de áreas invadidas, o que equi-
vale a 12,50 hectares, de um total de72,50 hectares (área de escritu-
Mapas específicos foram montados e ordenados cronologicamente. ra). Seguindo uma progressão geométrica, significa que nos próximos 4
Em 1906, o terreno era de características rurais, afastado da cidade. anos, serão invadidos mais 3% da área, o que equivale a 2,20 hectares,
Em 1935, o terreno foi englobado pela cidade, mas manteve suas carac- avançando sobre áreas de risco e matas nativas. Nos próximos 20 anos
terísticas rurais, com trechos de matas nativas. Em 30 anos o município estima-se que a área invadida totalizará 25% do terreno, o que equivale
expandiu sua área urbanizada consideravelmente. a 23,89 hectares.
O terreno da FASE, que pode ser lido como um vazio urbano, com Pelo levantamento planialtimétrico realizado em 2009, a área livre
o passar dos anos foi cedendo parte de sua área para outras entidades, de invasões é de 60,56 hectares.
como a Sociedade Humanitária Padre Cacique e a Rádio e TV Guaíba Além de habitações isoladas, o padrão são as comunidades e as-
(atual TV Record). sociações de moradores, como a Vila Gaúcha, a Vila Ecológica, a Vila
Prisma, a Vila União, o Condomínio Natureza e a Associação dos Mora-
5.2 O crescimento irregular no interior do terreno dores da Padre Cacique, este último de casas de funcionários, do tempo
da FEBEM, que tiveram permissão para serem instaladas. Atualmente
Na década de 1980, sobre o terreno da FASE começa a atuar outra parte destas casas já não pertencem a funcionários ou os mesmos estão
força, de ordem interna, com ocupações irregulares (invasões). Pesso- aposentados.
as sem ter onde morar, instalaram casas de construção autóctone em
722 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 723
5.3 A pressão urbana pela ocupação Ainda há o prédio do Centro da Infância e da Juventude (CIJ) Zona
Sul, edificação atualmente de uso do município (centro de saúde e esco-
O que se percebe, em observando a sequência de mapas, é que la).
ocorre uma pressão urbana pela ocupação da área. O avanço da cida-
de no seu entorno, através de mecanismos legais está atingindo seu
máximo. Poucas faixas perimetrais aos limites do terreno precisam ser
urbanizadas para a totalidade. Enquanto isso, as ocupações irregulares Figura 6 – Foto de Satélite
que não ocorrem por mecanismos legais, expandem-se no interior do com o terreno em destaque
terreno, em franco crescimento. e os prédios do DMAE (1),
do Abrigo Cônego de Nadal
5.4 O entorno urbano imediato (2), do Almoxarifado da FPE
(3) e do CIJ Zona Sul (4). Fon-
Um dos fatores que colabora para a pressão pela ocupação da área te: Núcleo de Engenharia da
e seu entorno é o atrativo de equipamentos urbanos e outros pólos co- FASE.
merciais e culturais importantes, como o Estádio de Futebol José Pinheiro
Borda, pertencente ao Sport Club Internacional, um dos estádios da Copa
do Mundo de 2014, o Asilo de Mendicidade, pertencente à Sociedade Hu-
manitária Padre Cacique, o Museu de Artes da Fundação Iberê Camargo,
o Hiper-Mercado Big Cristal, o Shopping Center Barra Sul, com a iminência
da ativação do edifício comercial a ele conectado e a Rádio TV Record. 6. Os prédios da FASE
Além destes equipamentos, ocorre a facilidade do transporte público
através das grandes vias da cidade que ligam o centro da cidade à sua O terreno da FASE pode ter suas edificações divididas em dois con-
zona sul, como a Avenida Padre Cacique, principal frente de arruamento juntos. O primeiro conjunto é comumente chamado de Complexo da
asfaltado do terreno e a Avenida Tronco, no vértice oposto à esta do ter- Sede Administrativa e consta da relação de prédios abaixo:
reno, que tem planejamento de ser alargada para a Copa de 2014. • Prédio da Sede Administrativa: 2 pavimentos distribuídos em
3.013,00m².
5.5 A existência de outras instituições públicas • Prédio do Centro de Esportes e Recreação: edificação térrea de
156,00m².
Apenas para citar a presença de outras instalações e equipamentos • Prédio do antigo Núcleo de Transportes (originalmente Casa do
urbanos no local, o que corrobora o caráter diversificado do terreno. Um Diretor da SHPC, possivelmente será tombado pelo IPHAE): edificação
destes prédios é a Casa de Bombas do DMAE (cerca de 130,00 m²) cer- térrea de 170,00 m², também conhecido como “Casa Rosa”.
cado por uma área de aproximadamente 350,00 m², dando frente para • Prédio do Almoxarifado: edificação térrea de 1.920,00 m². Parte
a Av. Padre Cacique, com acesso individualizado. Faz parte do sistema desta edificação é ocupada pela FPE (na fotografia é o prédio em segun-
de drenagem pluvial do município. do plano, à direita).
Instalações de propriedade da Fundação de Proteção Especial (FPE), • Prédio da Lavanderia e Depósito do Núcleo de Patrimônio: Edifi-
quais sejam os prédios do Instituto Cônego Paulo de Nadal – duas edifi- cação térrea de 285,83 m².
cações térreas perfazendo 1.229,00 m² – e parcial do prédio do Almo- • Prédio do Instituto Padre Cacique (CASE PC): 4 pavimentos distri-
xarifado da FASE ocupado pelo Almoxarifado da FPE8. buídos em 5.282,00 m². Possui 80 vagas para adolescentes em regime
de privação de liberdade e semi-liberdade.
8 A FPE foi criada no mesmo período da FASE – divisão da antiga FEBEM.

724 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 725
• Prédio do Centro de Internação Provisória Carlos Santos (CIPCS): 7. Sobre o Plano Diretor de Porto Alegre
2 pavimentos distribuídos em 2.000,00 m². Possui atualmente 60 vagas
para adolescentes em regime de internação provisória. Pelo PDDUA de Porto Alegre, o terreno está localizado na MZ 04,
• Prédio do antigo CJA: atualmente o prédio encontra-se em ruí- UEU 030, conforme DM emitida em 26/02/08. Por ser definida por regi-
nas, não havendo nada além da estrutura de concreto armado e as fun- me específico, foi solicitada uma análise pela CAUGE para definição de
dações, comprometidas por incêndio, que o destruiu e retirada do mate- diretrizes de construção no local, no ano de 2007.
rial de construção pelos moradores das vilas invasoras, comprometendo Além dos parâmetros do sistema viário a ser implementado, algu-
a estrutura do mesmo. mas diretrizes orientam para novas construções no local. Ao longo da Av.
O segundo conjunto é denominado Complexo da Vila Cruzeiro e pos- Padre Cacique, na profundidade de 60,00 metros, o regime urbanístico
sui dois acessos, nas finalizações das ruas Capivari e Jaguari. Consta das teria atividade permitida na Zona Mista 2 (GA 05), exceção de comércio
seguintes edificações: atacadista e indústrias e índice de aproveitamento9 de 1,9. Após esta
• Prédio do CASE POA I: 2 pavimentos distribuídos em 2.760,20 faixa, o restante do terreno cairia para um índice de aproveitamento
m². Possui 55 vagas para adolescentes em regime de privação de liber- de 0,1 e a atividade permitida seria considerando Área de Proteção
dade e semi-liberdade. ao Ambiente Natural (GA 19.1). Estes dados implicam em estimular a
• Prédio do CASE POA II: 2 pavimentos distribuídos em 2.565,00 densidade populacional na avenida principal e torná-la mais rarefeita no
m². Possui 76 vagas para adolescentes em regime de privação de liber- seu interior. Quanto à diretrizes de Quota Ideal e Volumetria, seriam de-
dade e semi-liberdade. finidos mediante projeto especial, atendendo as demais condições das
• Prédio da Comunidade Sócio-Educativa (CSE): 2 pavimentos dis- demais Secretarias Municipais. Observa-se que estes dados foram de-
tribuídos em 3.245,00 m². Possui 116 vagas para adolescentes em regi- finidos antes do Laudo de Cobertura Vegetal da Fundação Zoobotânica
me de privação de liberdade e semi-liberdade. e da solicitação do Ministério Público ao IPHAE, visando o tombamento
• Prédio do Centro de Atendimento Sócio-Educativo Feminino (CA- dos prédios históricos e seu entorno, o que implicaria em alterações
SEF): 2 pavimentos distribuídos em 1.230,00m². Possui 33 vagas para significativas ao já determinado.
adolescentes em regime de privação de liberdade e semi-liberdade. Em todo o caso, os instrumentos em geral que regulam esta gleba
• Prédio da Escola Estadual Tom Jobim: edificação térrea de podem ser ampliados, como mesmo preconiza o Estatuto da Cidade, no
114,00 m². Sedia a escola que atende os adolescentes em regime de seu art. 4º, inciso III, sendo o plano diretor apenas um destes.
possibilidade de atividade externa.
• Prédio da Internação Com Possibilidade de Atividade Externa
(ICPAE): edificação tér-
8. Conclusões
rea de 146,00m². Aten-
de adolescentes em re-
Frente a qualquer terreno de uma cidade pertencente a um pro-
gime de semi-liberdade.
prietário particular, o mesmo tem seu direito de uso, desde que não
interfira com os direitos dos demais cidadãos. Isto é explicitado no art.
1º, parágrafo único da Lei nº 10.257/01. Por conta deste artigo e ainda
Figura 7 – Foto de Satélite
que o terreno pertence à FASE, para dele operar seu melhor uso, faz-
com o terreno em destaque
-se necessário considerar o bem coletivo, a segurança, o bem-estar dos
e os prédios da FASE em
cidadãos e o equilíbrio ambiental.
seus dois Complexos. Fonte:
A FASE entende que muitos dos seus prédios, construídos antes do
Núcleo de Engenharia da
advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069 – ain-
FASE.

9 Em Porto Alegre equivale ao “coeficiente de aproveitamento” do Estatuto da Cidade.

726 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 727
da mantém uma estrutura física que não atende a “Doutrina da Proteção midade a outros equipamentos urbanos de qualidade artístico-cultural,
Integral”. Para tanto, suas estruturas físicas necessitam ser recicladas, o de comércio e serviços e sua interconexão entre zona sul e centro da
que pode significar reformas profundas nas edificações e demais condi- cidade, bem como de suas visuais amplas (nas cotas de nível mais altas
ções do terreno ou buscar novos lugares para novas instalações. do morro).
No primeiro caso, os custos das reformas, em atuações radicais se- O que ainda não foi apropriado pela população é a existência mes-
riam tão grandes que a melhor estratégia seria agir como uma sequência mo da FASE, que ocupa e gerencia o terreno e sua função e papel na
de reformas de médio porte, alterando aos poucos suas características. sociedade. Neste sentido, o lugar, ainda que um espaço público, abriga
Em todo o caso, sempre haverá um limite, no caso a concepção do sis- um caráter de privatopia, termo que conforme CASTELLO (2007, p. 24),
tema estrutural da edificação. trata-se de um lugar de pluralidade mas “(...) compostos por mundos
No segundo caso, a Fundação não dispõe de recursos ou mesmo de unidimensionais, freqüentados por um grupo homogêneo de pessoas
terrenos em número suficiente para o conjunto de ações que se conven- (...)”. E acrescenta:
cionou chamar de descentralização das Unidades de Internação – onde
permanecem os adolescentes que cometeram atos infracionais – por di- “Com freqüência, os lugares dessas comunidades individualizadas ex-
versas áreas da cidade. Os principais benefícios desta descentralização cluem e constroem barreiras defensivas, desenvolvem meios de re-
pressão, criam equipamentos de vigilância, enfim, são espaços que se
seriam a proximidade do local da Unidade da família do adolescente
definem ‘contra’ os ‘outros’.”
(por bairro), o maior afastamento entre unidades, impossibilitando seu
contato direto – trazendo maior segurança para as mesmas e ao entor-
A FASE, por seu caráter de proteção integral, considera seus meca-
no imediato – e evitando o surgimento de um estigma em dada região
nismos à serviço dos adolescentes, os quais são sua responsabilidade.
da cidade. Neste sentido é necessário o diálogo constante entre a Fun-
Mas as associações de moradores irregulares, também constituem-se
dação e as comunidades locais.
nesta formatação. De fato ambos atuam como pólos opostos, conside-
Até o momento, os movimentos da mídia e de ONG’s como “O Mor-
rando-se “uns” como “outros”.
ro é Nosso”, bem como a estratégia de construção e discussão do PL
NYGAARD (2010, p. 16) também reitera esta condição explicando
388 adotada pelo governo estadual da gestão anterior à atual, garanti-
que não há diferença de atuação em diferentes agentes, sejam favelas
ram um avanço significativo sobre o local, qual seja, sua transformação
ou condomínios de classe alta11, e assinala:
em um lugar. Conforme explica CASTELLO (2007) lugares são espaços
percebidos como detentores de qualidade. E CASTELO (2007, p. 12) “(...) constituem espaços segmentados, isolados e desarticulados do
ainda argumenta sobre estes espaços: “Suas qualificações habilitam-nos espaço maior da cidade, tornando a construção da cidadania e da
a serem percebidos como um lugar, delimitado dentro do espaço maior urbanidade cada dia mais difícil. Ambos concorrem para que o espaço
que constitui o todo da cidade. Isto é: permitem distinguir um lugar de público, única base física sobre a qual é possível promover o contato
um espaço.”10 e a integração social e afirmar a urbanidade e a cidadania, se torne
O terreno ganhou visibilidade pelo encadeamento de eventos po- cada dia mais abandonado, mais rejeitado e menos importante.”
líticos nos últimos quatro anos. Neste período ocorreu a gênese do lu-
gar, termo utilizado por CASTELLO (2007, p. 14) que explana o lugar São inegáveis os valores agregados ao terreno em questão. Assim
como “(...) um espaço que se torna percebido pela população por moti- como é inegável o direito à moradia digna e urbanizada das pessoas que
var experiências humanas a partir da apreensão de estímulos ambien- estão irregularmente sobre a área. Assim como é inegável que a FASE
tais.” Neste sentido, as qualidades pré-existentes do terreno vieram à tenha condições de desenvolver sua missão socioeducativa frente à so-
tona, como seu aporte das áreas verdes e seus espécimes raros e em ciedade, com a mesma dignidade de trabalho e segurança de todos.
extinção, das edificações que remetem ao patrimônio histórico, a proxi- Quando a política urbana, expressa no Estatuto da Cidade, artigo

10 Itálicos do texto original. 11 A referência também compreende propriedades públicas, no caso.

728 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 729
2º, inciso I refere-se à garantia ao direito a cidades sustentáveis “(...) Reabilitação de Centros Urbanos. Brasília: Ministério das Cidades, v. 3, dezem-
para as presentes e futuras gerações”, cabe lembrar que se fala da so- bro de 2005. http://www.cidades.gov.br/index.php?option=com_content&vie
ciedade como um todo e os adolescentes da FASE, parcela das futuras w=article&id=764:biblioteca&catid=131&Itemid=158 . Acesso em 08 set.
gerações, dela fazem parte. 2011.
A FASE que precisa expandir seu número de vagas e readequar suas CASTELLO, Lineu. A percepção do lugar: repensando o conceito de lugar em
unidades na capital nas normativas mais modernas e em sintonia com arquitetura-urbanismo. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2007.
a socioeducação e os direitos humanos, necessita compreender que a FUNDAÇÃO ZOOBOTÂNICA (SEMA). Laudo de cobertura vegetal e mapea-
reformulação das suas estruturas físicas é prioridade de planejamento a mento das principais manchas de vegetação do Centro de Atendimento Sócio
longo prazo, não somente para os próximos quatro anos. Educativo Padre Cacique – Fundação de Atendimento Sócio Educativo – FASE.
Quanto ao lugar, onde hoje está inserida, a FASE deve buscar em Porto Alegre, 2009.
conjunto com os demais agentes da sociedade, nos seus diversos in- INTERNATIONAL FEDERATION FOR HOUSING AND PLANNING – IFHP. Cons-
teresses, qualificar a pluralidade, como aponta CASTELLO (2007). Na truindo Comunidades para as Cidades do Futuro - Anais. Porto Alegre: 2010.
pluralidade – características e conceitos dos agentes urbanos – esti- 1 CD-ROM.
mulada, encontram-se os caminhos de reconhecimento, de aceitação e NYGAARD, Paul Dieter. Espaço da cidade; segurança urbana e participação
respeito aos “outros”, que estão sob o terreno da FASE. popular. Porto Alegre: Livraria do Arquiteto, 2010.
Apesar de não estar localizada na área central da cidade, esta gleba O MORRO É NOSSO. Disponível em: http://www.omorroenosso.com.br/noti-
poderia estar enquadrada em um Plano de Reabilitação de Área, a título cia103.html. Acesso em 07 set. 2011.
do Plano de Reabilitação do Centro de Porto Alegre, firmado entre o Mi- PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória Porto Alegre, espaços e vivências. Por-
nistério das Cidades e a Prefeitura de Porto Alegre em 2004, ou ainda to Alegre: Ed. Da Universidade/UFRGS; Prefeitura Municipal de Porto Alegre,
a aplicação na íntegra da Seção X do Estatuto da Cidade, que trata das 1991.
operações urbanas consorciadas. PORTO ALEGRE. Lei Complementar nº434, de 01 de Dezembro de 1999. Dis-
põe sobre o desenvolvimento urbano no Município de Porto Alegre, institui
o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental de Porto Alegre e dá
ReferênciaS outras providências. Disponível em http://www.portoalegre.rs.gov.br/planeja/
spm/4p1.htm. Acesso em 09 de setembro de 2011.
BRASIL. Decreto nº 439, de 2 de Dezembro de 1845. Funda na Cidade de RIO GRANDE DO SUL. Decreto nº1673, de 29 de Agosto de 1945. Diário Oficial
Porto Alegre hum Collegio para educação de meninas orphãs. Lex: Collecção do Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 566, 29 de agosto de 1945.
das Leis do Império do Brasil, Tomo 8º, Parte 2ª, Secção 36ª, na página 134. RIO GRANDE DO SUL. Decreto-lei nº 890, de 1º de Setembro de 1945. Cria
BRASIL. Lei nº 4.513, de 1 de Dezembro de 1964. Autoriza o Poder Executivo o Serviço Social de Menores do Estado do Rio Grande do Sul. Diário Oficial do
a criar a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, a ela incorporando o pa- Estado do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, p. 40, 3 de setembro de 1945
trimônio e as atribuições do Serviço de Assistência a Menores, e dá outras pro- RIO GRANDE DO SUL. Lei nº5.747, de 17 de Janeiro de 1969. Autoriza o
vidências. Lex: Diário Oficial da União de 4 de dezembro de 1964 – Revogado. Poder Executivo a criar a Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM),
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da e dá outras providências. Lex: Diário Oficial do Estado, 20 de janeiro de 1969.
Criança e do Adolescente e dá outras providências. Lex: Diário Oficial da União RIO GRANDE DO SUL. Lei Estadual nº 11.800, de 28 de Maio de 2002. Dis-
de 16 de julho de 1990. põe sobre execução de medidas sócio-educativas de internação e de semiliber-
BRASIL. Lei nº 10.257, de 10 de Julho de 2001. Regulamenta os arts. 182 dade, autoriza o Poder Executivo a criar a Fundação de Proteção Especial do
e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana Rio Grande do Sul. Lex: Diário Oficial do Estado de 29 de maio de 2002.
e dá outras providências. Lex Diário Oficial da União de 11 de julho de 2001. SOUZA, Célia Ferraz de & MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução
BRASIL. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos. urbana. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2 ed. 2007.

730 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 731
Patrimônio Histórico-Cultural
em Taquara/RS:
preservação e planejamento
Cristina Fernandes Mansueti1

Resumo: O trabalho aborda, de uma forma sucinta, o de-


safio da preservação do patrimônio histórico-cultural da ci-
dade de Taquara, no Rio Grande do Sul, tendo por base o
contexto da formulação do atual plano diretor da cidade
e sua realidade após cinco anos de vigência, apresentando
os conselhos municipais como alternativas viáveis de efetivo
controle social das políticas públicas, através de decisões
colegiadas que decorram de uma participação legítima de
diversos segmentos sociais aptos a definir o que venha a ser
o interesse local.
Palavras-chave: Patrimônio Histórico-Cultural; Taquara; In-
teresse Local; Plano Diretor; Controle Social; Conselho Mu-
nicipal.

1. INTRODUÇÃO

A tutela do patrimônio histórico-cultural em centros urbanos repre-


senta um dos grandes desafios da sociedade, uma vez que é inegável
a necessidade de compatibilizá-la ao desenvolvimento, e a legislação é
abrangente e carregada de conceitos indeterminados, ensejando a inter-
pretação casuística e valorativa, o que é fonte permanente de conflitos.
Os Municípios se viram, a partir da vigência do Estatuto da Cidade,
obrigados a enfrentar tal dilema, quando da elaboração de seus Planos
Diretores.
Este trabalho, assim, objetiva apresentar um esboço sucinto e pano-
râmico do patrimônio histórico-cultural da cidade de Taquara, e a forma
com que o Plano Diretor local trata da sua tutela e busca compatibi­lizá-
la com o plano de desenvolvimento, abordando o papel dos conselhos
municipais nesse contexto.

1 Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais, Especialista em Interesses Difusos e Coletivos e aluna


da pós-graduação em Direito Urbano-Ambiental pela Escola Superior do Ministério Público do Rio
Grande do Sul. E-mail: mansueti@terra.com.br

732 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 733
2. PATRIMÔNIO HISTÓRICO-CULTURAL EM TAQUARA-RS:

Taquara é uma cidade localizada na Encosta Inferior da Serra, dis-


tante 72km de Porto Alegre, com uma população de cerca de 55 mil
habitantes2.
O território de Taquara fez parte da sesmaria concedida em 1814
por Dom Diogo de Souza a Antônio Borges de Almeida Leães e, em
1822, essas terras chamavam-se Fazenda do Mundo Novo, adquiridas
em 1829 por Tristão José Monteiro e Jorge Eggers. Em 1846, Tristão
José Monteiro deu início à colonização alemã, através da venda de lo-
tes, fundando a Colônia do Mundo Novo3. As cidades de Canela, Gra-
mado, Três Coroas, Igrejinha, Parobé, Nova Hartz, Araricá e Sapiranga
integravam a área de Taquara. Casa Vidal Igreja Católica

A arquitetura de Taquara, remanescente ao período de sua coloni- Senhor Bom Jesus

zação, segundo o arquiteto Günter Weimer4, caracteriza-se por uma va-


riedade tipológica, recebendo influências de destaque da cultura portu-
Como referência da influência alemã, des-
guesa e alemã, sendo que da parte portuguesa foram detectados traços
taca, ainda, a Igreja Evangélica:
populares, eruditos e açorianos, como se exemplifica a seguir, a partir
Oportuno referir que Taquara é conhecida
dos endereços indicados na sua obra:
como a única cidade no mundo onde a Igreja
Católica e a Igreja Evangélica foram constru-
ídas com os altares no mesmo plano e simé-
tricos, de forma que Padre e Pastor possam
enxergar-se:

Popular Açoriano Erudito

Referido autor ainda destaca a Casa Vidal (mais antiga da cidade Elaine Miriam Haag, na
– construída em 18825) e a Igreja Matriz, como sendo construções de obra Raízes de Taqua-
origem ibérica nitidamente eruditas: ra6, relata que a origem
das construções decorre
da doação dos terrenos
por Tristão José Montei-
2 Estimativa da População em 2009: 55.473, “in” http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.
htm?1 ro e sua segunda esposa
3 FRANZEN, Darlei Eduardo, MACHADO, Elissandro Conceição e HERRMANN, Luciana Marcele. Christina Haubert Mon-
Taquara: “no túnel do tempo”, artigo extraído da obra Raízes de Taquara, org. Vera Lucia Maciel teiro, ele católico e ela evangélica, sendo que a simetria entre os alta-
Barroso e Paulo Gilberto Mossmann Sobrinho – Porto Alegre, EST, 2008, Vol. I, p. 113.
res não encontra explicação em histórico ecumênico contemporâneo à
4 Obra citada acima
5 http://www.cfnt.org.br/hist_taquara/1983.php 6 Obra citada, pp. 1109-1110

734 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 735
construção, mas talvez na tradição cristã de construir a Igreja no centro
do terreno e o altar também centrado. Vale transcrever sua conclusão:

“Hoje, aprendemos a interpretar esta posição de maneira diferen-


te: como um estreitamento de relações entre as duas comunidades,
numa caminhada em conjunto. Na prática, é o que vem acontecendo.
E que ambos os templos continuem a servir com o propósito a que
foram construídos, e que os taquarenses aprendam, cada vez mais, a
olhar-se frente a frente, num gesto de fraternidade!”7

Para ilustrar, ainda, destacam-se, as seguintes construções8:

Prefeitura Municipal, construída em 18089

Taquara tem um patrimônio histórico-cultural que vai além do acervo


arquitetônico, cujo ecletismo também revela a natureza de seus habitan-
tes, ainda hoje chegando de outras cidades, formando diversas etnias e
acrescentando uma diversidade de religiões e costumes, característica
que mais enriquece a cultura local.
A cidade conta com o 2º mais antigo Centro de Tradições Gaúchas
(C.T.G.) do Estado, fundado em 07.08.194810, a partir de reuniões havi-
das na residência que até hoje está bem conservada pela família11:
Residências particulares na Rua Edmundo Saft

Residência particular na Clube Comercial


Rua Ernesto Alves

9 Extraído da internet http://www.defender.org.br/rs-taquara-lanca-projeto-para-estimular-turismo/


7 Ob. cit., p 1110 10 o CTG 35, de Porto Alegre, foi fundado em abril de 1948.
8 Nesse sentido, vale visitar o seguinte site http://www.panoramio.com/user/807622/tags/RS%20- 11 AGUIAR, Lacy Maria e Noely, O Fogão Gaúcho, no volume II de Raízes de Taquara, ob. cit., PP.
-%20Taquara 879-881

736 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 737
Ainda, possui o Museu Arqueológico Estadual - MARSUL, cujo acer- ventário disponível à população, e as iniciativas legislativas para a tutela
vo também é um dos mais antigos do Estado e possui centenas de mi- do patrimônio não tem continuidade.
lhares de vestígios arqueológicos provenientes do IPHAN (Instituto do Na obra Raízes de Taquara, o Ministério Público contribuiu com dois
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e de pesquisas realizadas em artigos: um apresenta o histórico da Promotoria de Justiça14 e outro
outros estados da federação, como Amazonas, Mato Grosso, Rondônia destaca a efetividade da atuação extrajudicial pela atual composição da
e Santa Catarina, além de doações particulares12. Promotoria de Justiça Especializada15, concluindo pela necessidade de
Enfim, pode-se referir uma vocação cultural na cidade, sendo a única implementação de políticas públicas de proteção ao patrimônio cultural,
na região do Paranhana que possui uma instituição de ensino superior, a fim de evitar que a atuação do Órgão se fragmente pontualmente16.
a FACCAT (Faculdades Integradas de Taquara), o que vem a contribuir Com efeito, a identificação do patrimônio cultural não é algo que
para o desenvolvimento das atividades locais. possa ser imposto por órgãos governamentais ou técnicos. A cultura e
seu legado à sociedade dependem, fundamentalmente, do seu reconhe-
cimento pela própria sociedade como valor a ser apropriado. A ques-
3. PLANEJAMENTO E PRESERVAÇÃO – O DESAFIO: tão é que esse reconhecimento e valorização até podem existir junto a
maioria da sociedade, mas não será tutelado como política pública se
Como se viu, o patrimônio histórico-cultural de Taquara vai além das essa maioria não se destacar perante seus representantes políticos e de-
antigas edificações, mas aqui vale destacá-las em razão da dificuldade mais lideranças responsáveis pelo efetivo poder social, que se constitui,
de a cidade definir uma política específica para sua tutela. de fato, na minoria dominante que escreve e sempre escreveu a história
Apesar de a cidade contar com uma enorme variedade de edificações da sociedade.
de alto valor histórico, somente um prédio é tombado, e tal fato é lembra-
do como uma polêmica que gerou memoráveis conflitos entre membros
da sociedade local. Tanto que esse 4. PLANO DIRETOR – UM COMEÇO:
assunto ainda é tratado como uma
ferida aberta. Vale exemplificar com A vigência do Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001) é um
a própria obra base deste trabalho: marco que viabiliza reverter a lógica da predominância do interesse de uma
mais de mil e quinhentas páginas dis- minoria quando dá forças ao controle social através das diretrizes que en-
tribuídas em dois volumes, intitulada volvem a participação popular, como seu artigo 2º, inciso II, a saber:
Raízes de Taquara, com os mais di-
versos assuntos e temas históricos do Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desen-
município, mas sem qualquer desta- volvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
mediante as seguintes diretrizes gerais:
que ao único imóvel tombado na ci-
...
dade13: II - gestão democrática por meio da participação da população e de
Por aí já se percebe quão espi- associações representativas dos vários segmentos da comunidade na
nhoso é o caminho daqueles que formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e
pretendem trabalhar em prol da pre- projetos de desenvolvimento urbano.
servação das edificações históricas.
Até o momento, sequer existe um in-
14 BISCHOFF, Álvaro e SOUTO, Cintia Vieira, Breve Histórico da Promotoria de Justiça de Taquara,
ob. cit., p. 1207
12 JACOBUS, André Luiz, A contribuição do Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul para a 15 FERREIRA, Ximena Cardozo, Atuação do Ministério Público na proteção do patrimônio cultural,
formação de profissionais em Arqueologia, no vol. II de Raízes de Taquara, ob. cit., p. 1471. ob. cit., p. 1212
13 http://www.iphae.rs.gov.br/Main.php?do=BensTombadosDetalhesAc&item=15714 16 Idem acima, p. 1217

738 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 739
A lei não só estabeleceu a gestão democrática e participativa como de assuma uma visão humanista desse bem jurídico, rompendo com a
diretriz mas também assegurou expressamente o seu exercício em mais perspectiva essencialista do patrimônio – na qual era visto como um fim
de uma oportunidade, destacando-se, no caso do Plano Diretor, os de- em si mesmo, como objeto de contemplação e até de estudos, símbolo
bates, as audiências e consultas públicas como fatores legitimantes do da Nação. A perspectiva humanista confere importância ao patrimônio
próprio processo legislativo, havendo cominação de sanção para o Pre- enquanto fator relevante para o desenvolvimento da personalidade hu-
feito que descumprir, consoante artigos 40 e 52, VI: mana, do crescimento espiritual do indivíduo.
Essas estratégias preservacionistas centradas no urbano têm de os-
Art. 40. O plano diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento tentar um compromisso com reais melhorias na qualidade de vida, so-
básico da política de desenvolvimento e expansão urbana.
bretudo daquelas camadas da população menos privilegiadas.
....
§ 4º No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização Monnet adverte que algumas políticas supostamente de revitaliza-
de sua implementação, os Poderes Legislativo e Executivo munici- ção, preservação ou de restauração patrimonial, aparentando neutra-
pais garantirão: lidade política, acabam por imprimir uma especial legitimação de um
I – a promoção de audiências públicas e debates com a participação status quo por vezes perverso. Assim, no afã de controlar esse possível
da população e de associações representativas dos vários segmentos ímpeto é importante levar em conta dois princípios inarredáveis na
da comunidade;
gestão patrimonial: a participação comunitária na tomada de de-
II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos;
III – o acesso de qualquer interessado aos documentos e infor-
cisões e a tomada em consideração da população residente, como
mações produzidos. recomenda a especialista peruana Cárdenas.17
... No caso de Taquara, a elaboração do Plano Diretor teve início em
Art. 52. Sem prejuízo da punição de outros agentes públicos envolvi- 2002, mas foi paralisado em 2003, após algumas impugnações havidas
dos e da aplicação de outras sanções cabíveis, o Prefeito incorre em na Câmara de Vereadores, sendo retomado o processo com a nova ad-
improbidade administrativa, nos termos da Lei no 8.429, de 2 de ministração, em 2004, que afirmou ter apenas feito algumas correções
junho de 1992, quando:
técnicas no projeto original, justificando a razão de não repetir todas as
...
VI – impedir ou deixar de garantir os requisitos contidos nos audiências públicas setoriais.
incisos I a III do § 4o do art. 40 desta Lei; Dessa forma, para o Plano Diretor vigente em Taquara, somente fo-
ram realizadas algumas reuniões temáticas prévias às audiências públi-
MARCHEZAN ressalta a importância desses instrumentos e da par- cas de apresentação, não havendo, por exemplo, reuniões nos bairros,
ticipação da sociedade na gestão do patrimônio cultural, a saber: como houve na gestão anterior.
Tais instrumentos são aliados importantes no controle da espe- Dentre essas reuniões temáticas, destaca-se aquela na qual se deu a
culação imobiliária e de uma perspectiva urbana marcada pela hiper- delimitação da Zona de Potencial Histórico e Turístico de Taquara (que
trofia da função da circulação – mercadorias e veículos – em detrimento abrange as ruas onde estão localizadas algumas das casas selecionadas
à qualidade de vida. no início deste trabalho), tendo passado o texto por quatro audiências
Pérez Luño pontua que as leis do mercado não perdoam de seus públicas sem qualquer impugnação, pois sempre era defendido esse zo-
especulativos os bens integrantes do patrimônio cultural, os quais neamento como uma forma de aliar preservação ao desenvolvimento
são submetidos, como mercadorias, às regras do tráfico econômico. urbano.
Como forma de resistência à eliminação de tudo o que possa refrear Contudo, às vésperas da votação final do projeto de lei, os vereado-
essa urbanização predatória, que convola as cidades em depósitos de res apresentaram mais de vinte emendas, dentre as quais houve altera-
pessoas e de carros, uma das receitas a serem prescritas é a afirmação
17 MARCHEZAN, Ana Maria Moreira, O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e a proteção do
das políticas de preservação do patrimônio cultural. Não de qualquer patrimônio cultural urbano, “in” Revista de Direito Ambiental, ano 12, nr. 48, out-dez/2007, Ed. RT,
patrimônio. Ou seja, há que se afirmar a necessidade de que a socieda- pp. 47-48.

740 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 741
ção na redação original do dispositivo relativo a essa zona, resultando Ao final, há um capítulo específico sobre esse tema, mas na sua
no seguinte texto18: essência se limita a prever que os imóveis integrarão um livro tombo e
que outra lei irá regulamentar, ou seja, mais uma vez, o Plano Diretor é
Art. 53 - Para efeitos da aplicação desta lei e das leis que a regula- remissivo e dependente de outras leis, a saber, com destaque:
mentarem e a alterarem serão adotadas as seguintes definições de
zonas: CAPÍTULO XI
.... DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E CULTURAL
XIV- Zona de Potencial Histórico e Turístico (ZPHT) são determi- Art. 125 - Fica instituído o Livro de Tombo no Município de Taquara,
nados corredores as margens de ruas da cidade e/ ou constru- onde serão inscritos os prédios, espaços livres, públicos ou privados,
ções que possuem potencial para o desenvolvimento turístico e os quais deverão ter suas características arquitetônicas, paisagísticas,
histórico dentro do município. São eles: históricas e culturais preservadas no que se refere às fachadas da edi-
Rua Edmundo Saft- corredor compreendido entre as ruas Tristão ficação.
Monteiro e Rua Venâncio Aires, lado direito e esquerdo. § 1º - A inscrição no Livro de Tombo deverá ser precedida de Lei
Rua Tristão Monteiro -corredor compreendido entre as ruas Arnaldo específica, na qual conste, no mínimo, a descrição do bem a ser tom-
da Costa Bard e RS 115, lado direito e esquerdo. bado e a justificativa de tombamento.
Qualquer intervenção ocorrida nas fachadas das edificações, dos § 2º - O Executivo Municipal poderá estabelecer o tombamento pre-
prédios construídos até o ano de 1925, inclusive, dentro desta área ventivo de qualquer bem histórico, cultural, arquitetônico ou paisagísti-
mencionada acima, deverá ser analisada e aprovada pelo Conselho co, por decreto, devendo, no entanto, no prazo de 180 dias enca-
Municipal de Acompanhamento do Plano Diretor (CONACPLAN). minhar projeto de Lei previsto no parágrafo anterior, regulamen-
Um grupo de pessoas suscitou, perante os vereadores e o prefeito, tado o tombamento, ouvido o Conselho Municipal competente.
a inconstitucionalidade das emendas por falta de audiência pública, Art. 126 - A regulamentação do livro de Tombo e as demais formas de
inclusive a que restringiu a tutela dos imóveis, ao incluir o parágrafo preservação de bens históricos, culturais, arquitetônicos e paisagísti-
único, mencionando a “fachada” e o ano de 1925, mas o Prefeito san- cos serão objetos de Lei específica.
cionou a lei, com base em um parecer de sua procuradoria, no sentido
não haver qualquer vício na lei.
O que importa destacar, neste ponto, é que o Estatuto da Cidade se
constitui numa inovação legislativa que atribui à própria sociedade o po-
O Plano Diretor de Taquara, então, seguiu vigendo sem qualquer im-
der de participar das decisões sobre o planejamento urbano. Entretan-
pugnação judicial, considerando-se que é melhor ter esse zoneamento
to, não basta a previsão legal, pois o direito precisa ser exercido de fato
do que nada.
e, para tanto, a população precisa ter acesso ao conhecimento, vontade
Oportuno referir que o artigo 53 do Plano Diretor também prevê
e possibilidade de participar. Por isso, diz-se que o Plano Diretor é um
uma Zona de Preservação do Patrimônio Histórico, mas limitou-se a re-
começo, um indicativo para a tutela do patrimônio histórico-cultural da
ferir o entorno do único imóvel tombado no Município, ou seja, apenas
cidade, sendo que a efetividade e legitimidade dessa tutela como fruto
repetiu o que a lei federal já prevê:
de uma genuína participação popular é algo a ser construído com o tem-
IX – Zona de Preservação do Patrimônio Histórico (ZPPH) é aque- po e de acordo com cada sociedade.
la considerada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
do Estado (IPHAE) como área de entorno do imóvel tombado
(Associação Comercial e Industrial de Taquara /ACIT) e todo o 5. CONSELHOS MUNICIPAIS – MEIO DE MONITORAMENTO:
prédio e entorno em que haja interesse do município em preservar
uma área que caracterize e consolide a sua história. O Estatuto da Cidade prevê, em seu artigo 43, os órgãos colegiados
dentre os instrumentos elencados para garantir a gestão democrática
da cidade, a saber:
18 Lei nr 3.715/2006, http://www.camarataquara.com.br/downloads/plano_diretor/3715-2006.pdf

742 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 743
Art. 43. Para garantir a gestão democrática da cidade, deverão IV – propor ao Poder Executivo a elaboração de estudos sobre ques-
ser utilizados, entre outros, os seguintes instrumentos: tões que entender relevantes;
I – órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, esta- V – aprovar Projetos Especiais de Empreendimentos de Impacto Ur-
dual e municipal; bano, bem como indicar alterações que entender necessárias.
II – debates, audiências e consultas públicas; Parágrafo Único - Os representantes da sociedade civil organizada se-
III – conferências sobre assuntos de interesse urbano, nos níveis na- rão indicados por esta, na forma em que a Lei que criar o Conselho o
cional, estadual e municipal; dispuser.
IV – iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e pro- Art. 44 – O CONSELHO MUNICIPAL DE ACOMPANHAMENTO E
jetos de desenvolvimento urbano; CONTROLE DO PLANO DIRETOR – CONACPLAN compõe-se de 12
... (doze) membros titulares e seus suplentes, designados pelo Prefeito
Municipal, com mandato bienal, tendo a seguinte composição:
I- 04 (quatro) representantes governamentais;
Dessa forma, é possível concluir que os Conselhos Municipais se II- 04 (quatro) representantes de entidades não-governamentais,
constituem na principal ferramenta que a sociedade dispõe para fazer constituídas por entidades de classe e afins ao planejamento urbano;
valer seu direito de participação nas políticas de desenvolvimento ur- III– 04 (quatro) representantes da comunidade, indicados pelas As-
bano, já que o Plano Diretor é o instrumento básico dessa política e a sociações Comunitárias legalmente constituídas.
gestão democrática sua diretriz. § 1° - O funcionamento do CONACPLAN será regulamentado por Lei
Entretanto, para que os conselhos municipais cumpram seu mister, é Municipal.
preciso que não sejam apenas órgãos consultivos, mas tenham poderes § 2°-Os representantes das entidades não-governamentais e da co-
deliberativos, e sua composição obedeça a um regime de escolha demo- munidade serão indicados através de audiência pública.
§ 3° - O CONACPLAN será constituído no prazo de 60(sessenta dias)
crática, através de um processo no qual se assegure ampla participação
a contar da data da promulgação desta Lei.
da sociedade organizada, sob pena de terem uma atuação limitada e
meramente burocrática, muitas vezes destinada a assegurar aquele sta-
Vale destacar que a redação original do artigo 43 não previa o cará-
tus quo referido anteriormente.
ter deliberativo, que só veio a surgir no ano seguinte, pela insistência da
No caso de Taquara, o Plano Diretor já estabeleceu a competência
comunidade atuante, através de reunião no próprio Conselho Municipal,
e forma de atuação do Conselho Municipal, bem como a composição
onde se sugeriu a alteração da redação para adequar o que já vinha
paritária e forma de acesso dos membros, a saber:
sendo solicitado nas audiências publicas, resultando, então, na Lei nº.
Art. 43 – Fica instituído o CONSELHO MUNICIPAL DE ACOMPANHA- 3.869/200720, que também veio a alterar alguns prazos estabelecidos
MENTO E CONTROLE DO PLANO DIRETOR – CONACPLAN, com no Plano Diretor para regulamentação de diversos instrumentos, justa-
atuação de natureza deliberativa e consultiva, que tem por fina- mente porque o Conselho já vinha alertando para a omissão nas defini-
lidade exercer o permanente acompanhamento e controle do Plano ções das diretrizes do Município.
Diretor de Taquara, sugerindo políticas, planos e programas de desen- Como se vê, então, é possível que as políticas públicas venham a
volvimento municipal, ao qual compete:19 incluir o interesse da comunidade, desde que esta se organize e tenha
I - Assessorar o Poder Executivo quanto a aplicação, implementação, acesso aos instrumentos legais de participação.
regulamentação e atualização do Plano Diretor e das demais legisla- Especificamente no que respeita ao patrimônio histórico-cultural, o
ções de cunho urbanístico e ambiental; Município ainda não dispõe de um conselho municipal específico para
II – promover debates sobre planos e projetos urbanísticos;
tratar desse tema, pois até o momento não está em vigor a lei que o Pla-
III – receber e encaminhar para discussão, matérias oriundas de seto-
no Diretor referiu no artigo 126 antes transcrito, ficando o controle so-
res da comunidade que sejam de interesse coletivo;
cial, por enquanto, vinculado às hipóteses de atuação do CONACPLAN,
19 Redação dada pela Lei nr. 3869/2007, http://www.camarataquara.com.br/lei/arqui-
vo/1303_3869.pdf 20 Vide lei anexa

744 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 745
de acordo com o Plano Diretor, ou seja, apenas quando houver alguma JACOBUS, André Luiz, A contribuição do Museu Arqueológico do Rio Grande do
intervenção na ZPHT, o que é muito pouco, considerando a extensão do Sul para a formação de profissionais em Arqueologia, artigo extraído da obra
Município e a quantidade de bens que possui. Raízes de Taquara;
MARCHEZAN, Ana Maria Moreira, O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) e a
proteção do patrimônio cultural urbano, “in” Revista de Direito Ambiental, ano
6. CONCLUSÃO 12, nr. 48, out-dez/2007, Ed. RT.

A questão da tutela do patrimônio histórico-cultural em centros ur- ANEXOS


banos está longe de ter uma definição, pois não há consenso quanto a
critérios objetivos para estabelecer uma política pública nesse sentido. LEI MUNICIPAL N° 3.869/2007
A lei e a doutrina traçam linhas gerais e abrangentes, remetendo o as- “Altera a Lei Municipal n° 3.715/06 – Plano Diretor do Município, e dá
sunto para o que seja “interesse local”, sem referir, por exemplo, como outras providências.”
será apurado esse interesse local. GUIDO MÁRIO PRASS FILHO, Prefeito Municipal de Taquara em Exercício,
O Estatuto da Cidade representou um marco ao erigir o Plano Diretor Estado do Rio Grande do Sul, no uso das atribuições que lhe confere a Lei Orgâ-
como principal instrumento da política de desenvolvimento e expansão nica, FAZ SABER que a Câmara Municipal de Vereadores aprovou e eu sanciono
urbana e assegurar a participação da sociedade no processo legislativo, e promulgo a seguinte Lei.
estabelecendo a gestão democrática como diretriz tão forte que pode Art. 1° - Fica alterado o Art. 30, da Lei Municipal n° 3.715, de 10 de outu-
até comprometer a legitimidade da própria lei se não for observada. bro de 2006 – Plano Diretor do Município, que passa a ter a seguinte redação:
Nesse sentido, os conselhos municipais podem ser um instrumento “Art. 30 – Deverá ser elaborado, no prazo máximo de 08 (oito) meses, o
bastante eficaz para a implementação prática e local da diretriz federal Plano de Gestão Ambiental, delimitando áreas de proteção e preservação per-
da gestão democrática, representando o controle social das políticas manente, e contemplando obrigatoriamente um Plano de Gestão de Resíduos
de desenvolvimento e expansão urbana, desde que se constituam em Sólidos, voltado à reciclagem e disposição final adequada.”
órgãos colegiados deliberativos, com atuação paritária, independente e Art. 2° - Ficam alterados os parágrafos 3° e 4° do Art. 42, da Lei Muni-
autônoma, o que só se consegue através de um processo democrático cipal n° 3.715, de 10 de outubro de 2006 – Plano Diretor do Município, que
de escolha dos membros que deverão representar com isenção e efeti- passam a ter a seguinte redação:
vidade os interesses da sociedade civil organizada. “(...)
Parágrafo 3° - Fica estabelecido o prazo de 240 dias, a contar da data da
promulgação desta Lei, para o Município apresentar a Lei do Parcelamento do
REFERÊNCIAS: Solo.
Parágrafo 4° - Fica estabelecido o prazo de 240 dias, a contar da data da
AGUIAR, Lacy Maria e Noely, O Fogão Gaúcho, artigo extraído da obra Raízes promulgação desta Lei, para o Município apresentar a Lei do Código de Obras.
de Taquara; (...).”
BISCHOFF, Álvaro e SOUTO, Cintia Vieira, Breve Histórico da Promotoria de
Justiça de Taquara, artigo extraído da obra Raízes de Taquara; Art. 3° - Fica alterado o caput do Art. 43, da Lei Municipal n° 3.715, de 10
FERREIRA, Ximena Cardozo, Atuação do Ministério Público na proteção do pa- de outubro de 2006 – Plano Diretor do Município, que passa a ter a seguinte
trimônio cultural, artigo extraído da obra Raízes de Taquara; redação:
FRANZEN, Darlei Eduardo, MACHADO, Elissandro Conceição e HERRMANN, “Art. 43 – Fica instituído o CONSELHO MUNICIPAL DE ACOMPANHAMEN-
Luciana Marcele. Taquara: “no túnel do tempo”, artigo extraído da obra Raízes TO E CONTROLE DO PLANO DIRETOR – CONACPLAN, com atuação de na-
de Taquara, org. Vera Lucia Maciel Barroso e Paulo Gilberto Mossmann Sobri- tureza deliberativa e consultiva, que tem por finalidade exercer o permanente
nho – Porto Alegre, EST, 2008;

746 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 747
acompanhamento e controle do Plano Diretor de Taquara, sugerindo políticas,
planos e programas de desenvolvimento municipal, ao qual compete:
Áreas especiais: além do interesse
(....).” social, uma caracterização do território
Art. 4° - Fica revogada a Lei Municipal n° 3.823, de 05 de janeiro de Joseane da Silva Almeida1
2007.
Art. 5° - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Resumo: O artigo pretende destacar a importância da iden-
tificação e delimitação das escalas de planejamento terri-
PALÁCIO MUN. CEL. DINIZ MARTINS RANGEL,
torial, tendo em vista a indefinição de fronteiras, cada vez
Taquara, RS, 14 de maio de 2007. mais mutáveis. A urbanização acelerada e difusa confunde
a distinção campo/cidade, e com isso criam-se novos terri-
GUIDO MÁRIO PRASS FILHO tórios de projeto. O desafio é identificar as diversas escalas
Prefeito Municipal em Exercício territoriais, de forma a estabelecer projetos que atendam
as especificidades locais e ao mesmo tempo promovam a
articulação entre elas, no planejamento macro, sem frag-
mentação. Traz como proposta a superposição dos temas
ambientais, culturais e sociais ao território, adotada no III
Plano Diretor de Pelotas – RS, denominadas Áreas Espe-
ciais de Interesse, cuja delimitação é imprescindível para a
aplicação dos instrumentos do Estatuto da Cidade. Aponta
a dificuldade ainda existente de aplicação de instrumentos
urbanísticos na área rural.
Palavras-chave: Território, planejamento, áreas especiais
de interesse.

O território como ponto de partida


e objeto do planejamento

O Planejamento Urbano sempre teve por objetivo o ordenamento


do território. Porém, o crescimento das cidades, na maioria das vezes
de forma desordenada, e a dificuldade de entendimento de sua orga-
nização, levam a uma indefinição dos limites das “manchas urbanas”
(MEYER, 2006) que compõem esse território. Portanto, o objeto princi-
pal do planejamento deve ser re-estudado.
Diante da constatação de que não temos conseguido prever seu
funcionamento, pergunta-se: Planeja-se uma cidade? Desde quando? E
porque as cidades apresentam cada vez mais problemas? Qual o papel
1 Arquiteta e Urbanista, Mestre em Desenvolvimento Sustentável, Funcionária Pública Municipal,
Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Católica de Pelotas - RS, Brasil.
e-mail: joseanedasilvaalmeida@gmail.com

748 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 749
do planejador? O que houve com a cidade ideal? Existe a cidade ideal? e definindo escalas, que são a base de organização do trabalho desen-
Como planejar uma cidade? volvido. Todas as leituras, diagnósticos, diretrizes, propostas e a própria
As cidades parecem andar sozinhas, em um processo de ocupação gestão municipal, passam a usar as escalas de território, a seguir descri-
muito mais rápido do que o planejamento. Entender a lógica dessa ocu- tas:
pação é fundamental para poder intervir no crescimento desordenado. REGIONAL – Pelotas está inserida formalmente em pelo menos duas
Segundo a análise de MEYER, enquanto prevaleceram as distin- regiões para efeitos de funções públicas com gestão comum. Evidente-
ções que demarcavam claramente o campo e a cidade, a capacidade mente, a lei municipal não poderá intervir fora dos seus limites adminis-
de descrever as duas entidades, seus atributos específicos, seus pontos trativos. No entanto, a presença da escala regional é o reconhecimento
de contato, suas fronteiras, os avanços da urbanização sobre o campo da necessidade de haver uma articulação com outros municípios, espe-
e, principalmente, as relações que existiam entre ambas, a tarefa de cialmente para tratar de assuntos comuns, através de um plano diretor
intervir em cada uma delas foi exercida com alguma precisão e previ- regional.
são. Porém, afirma ela, os instrumentos para capturar a cidade, agora COREDE SUL – é a região de Planejamento nº5 no estado do Rio
transformada em mancha urbana, já não poderão ser os mesmos com Grande do Sul.
os quais o urbanismo vem trabalhando.
O urbanismo tradicional até início do século XX foi voltado para o obje-
to claramente definido: a cidade. O auge das tentativas de organização das
cidades, em um projeto total, foi o Movimento Moderno, com premissas
funcionalistas. A Carta de Atenas, de 1933, propõe uma cidade que funcio-
ne tal qual uma casa, com um zoneamento separador do uso do solo.
Este modelo adquiriu grande prestígio e foi adotado por cidades no
mundo inteiro. O II Plano Diretor de Pelotas, de 1980, é baseado nos
princípios modernistas. A cidade (área urbana do município) foi “zonea-
da”, definindo padrões de ocupação do solo estanques.
A superação desse modelo é um consenso, e também ponto de
partida para revisões teóricas e práticas do planejamento. Conforme
MEYER, foi a partir da constatação da presença de alterações profundas
no seu objeto de estudo e projeto (a cidade), assim como da insuficiên-
cia de seus instrumentos de análise, invalidando as suas premissas de
trabalho, que o urbanismo reencontrou, na segunda metade do século
XX, o termo território.
A urbanização difusa confunde a distinção campo/cidade. O objeto
de projeto não é mais a cidade como um todo. Criam-se novos territó-
rios de projeto. A pergunta-chave é: qual o território? Surgem diversos
conceitos, desde a região, passando pelos aglomerados, conurbações,
distritos rurais, até chegar ao bairro, à quadra, criando-se novas escalas AGLOMERAÇÃO URBANA DO SUL – através da Lei Complementar
de análise e intervenção. nº 11.876 de 2002, fica instituída a Aglomeração Urbana do Sul, com-
O processo de elaboração do III Plano Diretor de Pelotas incorpo- posta pelos municípios de Arroio do Padre, Capão do Leão, Pelotas, Rio
rou o conceito de território no sistema de planejamento, identificando Grande e São José do Norte.

750 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 751
MUNICIPAL URBANO – A zona urbana da cidade de Pelotas é di-
vidida legalmente em zonas administrativas. Porém estas regiões são
muito grandes, guardando dentro de si muitas meso e micro-regiões,
com características diferenciadas, com identidade própria. Entender es-
tas especificidades é fundamental para o planejamento.
Flávio Villaça denomina este espaço de “intra-urbano”, explicando
que esta expressão não deveria ser necessária, já que “espaço urbano”
já é suficiente para designar o que está dentro do perímetro urbano.
Porém, como já foi apontado por MEYER, há uma indefinição das man-
chas urbanas, que também podem se referir ao espaço regional, e por
isso surgiu a necessidade de criar outra expressão para o espaço urbano
propriamente dito.
No caso de Pelotas, o III Plano Diretor organizou o espaço intra-
-urbano da seguinte forma:
7 MACRO-REGIÕES – regiões administrativas (divisão legal)
29 MESO-REGIÕES – regiões de planejamento
109 MICRO-REGIÕES – sistema de informações

MUNICIPAL RURAL – O município de Pelotas, com 328.275 habitan-


tes, conforme dados do IBGE de 2010, possui uma área total de 1.647
Km ², sendo que 88,48% do território é área rural, e 11,52% é área
urbana (sede), conforme delimitação legal. Na área urbana está con­
centrada 93,3% da popu-
lação, enquanto no grande
território rural encon­tra-
se 6,7% dos habitantes.
O III Plano Diretor re-
conhece a responsabilida-
de do município em rela-
ção ao controle do uso e
ocupação do solo da zona
rural.
O território rural é or-
ganizado em 8 distritos,
nos quais identifica-se lo-
calidades intra-distritais.

752 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 753
No entanto, estas delimitações territoriais não são suficientes. O cidos padrões diferenciados, de acordo com a especificidade local. Este
recorte deve ser entendido através de diversos elementos estruturado- instrumento urbanístico está previsto no Estatuto das Cidades. Aliado
res, não só os físicos, mas também funcionais, temporais e, sobretudo, ao macrozoneamento, também presente no Estatuto, o conceito de áre-
sociais. as especiais é ampliado, além do interesse social, atendendo também
as necessidades de preservação ambiental e de patrimônio histórico,
Espaço & Território bem como a necessidade de adensar determinadas áreas, ou coibir o
adensamento de outras.
A ocupação do planeta pelo ser humano é de extrema complexida- Com esta metodologia, foram elaborados os diversos mapas que
de. No terceiro Plano Diretor o “Sistema de Territórios” é complemen- compõem a lei do novo Plano Diretor (lei 5502/08), e que dão as bases
tado com o que foi chamado de “Sistema Temático”, que propicia um para o planejamento, dentre eles:
método contínuo de superposição dos diversos aspectos da vida huma- M 01/04 – Núcleos Urbanos na Área Rural
na. Tem-se então o Modelo Espacial. O território é um dado, o espaço é M 03/04 – Bacias, Nascentes
uma produção. M 04/04 – Interesse Arqueológico
Conforme VIEIRA (2005), a produção do espaço está ligada ao uso U 07/14 – Áreas Especiais de Interesse Social
do solo, ao modo de ocupação de um lugar específico da cidade, con- U 08/14 – Áreas Especiais de Interesse do Ambiente Natural
cluindo que o espaço que deve ser considerado é o social, um produto U 09/14 – Áreas Especiais de Interesse do Ambiente Cultural
complexo da sociedade que, ao mesmo tempo que é resultado, é tam- U 10/14 – Zona de Preservação do Patrimônio Cultural
bém condição da produção e da reprodução social. U 12/14 – Vazios

MODELO ESPACIAL NO III PLANO DIRETOR DE PELOTAS Estatuto das Cidades

SISTEMA DE TERRITÓRIOS Em função das “manchas urbanas”, abdicou-se do “projeto total”,


Regional que pretendia organizar toda cidade, e foram criados novos territó-
Municipal rios de projeto. É necessário demarcar o espaço projetual: a “peça
Urbano urbana”, como define MEYER. Porém, lembra ela, é preciso sublinhar
SISTEMA TEMÁTICO que a demarcação e a separação que se opera no território, isto é, o
Áreas Especiais método utilizado para a montagem do grande quadro de “peças ur-
Interesse Ambiental (ambiente natural e ambiente cultural) banas”, deve ser assumido apenas como uma estratégia de trabalho.
Interesse Social É vital ter presente que o principal alvo do projeto urbano contempo-
Ocupação prioritária e ocupação restrita râneo é a integração do território. A grande escala deve articular as
Mobilidade peças.
Projetos Especiais É fundamental demarcar espaços que serão objeto de propostas,
inclusive para aplicação dos instrumentos do Estatuto das Cidades. As
Os temas estruturam territórios, originando as Áreas Especiais, nos Áreas Especiais cumprem este papel. Assim podem ser utilizados, por
moldes do que originalmente foi desenhado como instrumento urba- exemplo, a Transferência do Direito de Construir nas áreas de patri-
nístico a partir dos anos 80, para regularização das Áreas ou Zonas Es- mônio histórico, o IPTU Progressivo nos vazios urbanos, o Usucapião
peciais de Interesse Social (AEIS ou ZEIS), cuja concepção básica seria Coletivo em assentamentos de baixa renda, o Direito de Preempção nas
incluir no “zoneamento” da cidade, lugares onde pudessem ser estabele- áreas de interesse ambiental, entre outros.

754 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 755
Cabe aqui ressaltar que, apesar dos avanços que o Estatuto trouxe O novo plano diretor de Pelotas aponta para um outro caminho. As
para o planejamento, superando a idéia de cidade ideal, claramente Áreas Especiais possibilitam uma tentativa de inclusão social, através de
delimitada administrativamente, ainda restam dúvidas de como atuar normas específicas e, às vezes, excepcionais, criadas a partir das carac-
sobre o território rural, sob o ponto de vista de sua ocupação “urbani- terísticas próprias do lugar. Os Planos de Bairro podem proporcionar
zada”. Dentre suas diretrizes, está a integração e complementaridade também o fortalecimento do poder local. O termo “peça urbana”, con-
entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento forme MEYER, descreve um trecho de cidade no qual se estabelece um
sócio-econômico do Município e do território sob sua área de influência. perímetro, que será objeto de análise e de projeto urbano. O sistema de
O Guia para Implementação do Estatuto da Cidade pelos Municí- territórios é um método para entender o espaço, produzido socialmente
pios e Cidadãos, explica que o “macrozoneamento define inicialmente no tempo. As escalas de planejamento permitem a análise específica e
grandes áreas de ocupação: zona rural (por exemplo, para produção de ao mesmo tempo identificam os elementos estruturadores do planeja-
alimentos, exploração de minérios, produção de madeira) e a zona urba- mento, que podem promover a integração do território.
na (residências, indústrias, comércio e serviços, equipamentos públicos). O que se sabe é que não existem fórmulas milagrosas, receitas
Dessa maneira, circunscreve-se o perímetro urbano, ou seja, a área em prontas para planejar uma cidade. A única certeza é a de que o ponto
cujo interior valem as regras da política urbana” (pág. 41). de partida deve ser sempre o reconhecimento do lugar e o planejamen-
No caso de Pelotas, ocorre uma ocupação na zona rural que não to deve ter por foco principal, se não o único, uma melhor qualidade de
está mais caracterizada como agrária. São nucleações residenciais e no- vida para as pessoas.
vos loteamentos com concentração populacional, trazendo demandas
de ordem urbanísticas, tais como saneamento e infraestrutura. A ONG
Hectare, através de um convênio com a Prefeitura elaborou o trabalho ReferênciaS:
denominado “Identificação e Descrição de Localidades Interiores aos
Distritos de Pelotas – RS”, que apontou a existência de uma mancha ESTATUTO DA CIDADE. “guia para implementação pelos municípios e cida-
de concentração dessas localidades, descrita como uma AUE (área de dãos”. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2005.
urbanização específica), indicada como prioritária para receber estudos, MEYER, Regina Maria Prosperi. “O Urbanismo: entre a cidade e o território”. In:
projetos e investimentos. No entanto, a maioria dos instrumentos do Revista Ciência e Cultura – Ano 58 – nº 01 – jan/fev/mar 2006.
Estatuto da Cidade refere-se aos imóveis urbanos. VIEIRA, Sidney Gonçalves. “A Cidade Fragmentada. O Planejamento e a Segre-
gação Social do Espaço Urbano em Pelotas”. Pelotas: UFPel, 2005.
VILLAÇA, Flávio. “Espaço Intra-Urbano no Brasil”. São Paulo: Studio Nobel: FA-
Conclusão PESP: Lincoln Institute, 2001.

O papel do planejamento e dos planejadores está em cheque. Res-


ponder à pergunta “planeja-se uma cidade?” não é tarefa fácil.
O fato é que os paradigmas até agora adotados não produziram
cidades melhores. O “zoneamento” proposto pelo modernismo, adota-
do em Pelotas no Plano Diretor de 1980, produz uma fragmentação
apoiada em lei. Os usos não se mesclam, as distâncias a percorrer são
maiores. Em zonas residenciais ricas os lotes são grandes, em zonas
residenciais pobres os lotes são pequenos, o que reforça as diferenças
sociais, impedindo que o espaço possa ser um agente transformador da
realidade social.

756 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 757
Morro Santa Teresa: o Tombamento
de um Patrimônio Cultural
Robson da Silva Dutra Lima1

Resumo: Este estudo busca ampliar a discussão a respeito


dos requisitos para que o poder público, por ato administra-
tivo, realize os tombamentos de bens de natureza material –
móveis ou imóveis -, conforme os critérios previstos pela nos-
sa Carta Magna. A área da FASE, que compreende o Morro
Santa Teresa, esteve envolto em uma tentativa polêmica, por
parte do governo estadual, de entregá-la a iniciativa privada.
Contudo a sociedade civil e os próprios membros do poder
público impediram a venda da área e, atualmente, buscam
um tratamento adequado do poder público à localidade.
Palavras-chave: Tombamento, patrimônio cultural, memó-
ria, história e sociedade civil.

Por meio do PL 388 de 14 de dezembro de 2009, o Governo do


Estado do Rio Grande do Sul visava à alienação ou a permuta da área
da FASE2, localizada no município de Porto Alegre, com o objetivo de
construir unidades descentralizadas para a execução das medidas só-
cio-educativas de internação, como objetiva o Estatuto da Criança e do
Adolescente. Contudo o projeto gerou muitas discussões no seio da so-
ciedade gaúcha.
Em maio do ano seguinte, o relator do projeto - deputado Iradir
Pietrosky – apresentou, à Comissão de Constituição e Justiça da Assem-
bléia Legislativa3, um parecer favorável ao projeto de lei, argumentando
que a proposta vai ao encontro do artigo 37, inciso XXI da Constituição
Federal e possui amparo na lei 8.666/1993, artigo XVII, inciso 1°.
Há de se ressaltar que o parecer apresentado buscava legitimar o
projeto de lei proposto pelo executivo e, com isso, legalizá-lo. Não houve
nenhuma menção às comunidades instaladas no local desde a década
1 Licenciado em História pela ULBRA; Especialista em História do Mundo Afro-Asiático pela FAPA;
graduando em Direito pela FMP. Técnico em Assuntos Culturais da Secretaria da Cultura do Estado
do Rio Grande do Sul, vinculado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado - Iphae.
2 Fundação de Atendimento Sócio-Educativo.
3 A Comissão de Constituição e Justiça – CCJ – da Assembléia Legislativa do Rio Grande do
Sul, naquela ocasião, era composta pelos deputados Alceu Moreira – presidente -, Luiz Fernando
Záchia, Ciro Simoni, Francisco Appio, Pedro Westphalen, Adilson Troca, Iradir Pietrosky, Adroaldo
Loureiro, Elvino Bohn Gass e Raul Pont.

758 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 759
de sessenta, ao patrimônio ambiental e ao patrimônio histórico e cul- biental da região, como podemos verificar no trecho abaixo extraído
tural. Quanto ao Plano Diretor de Porto Alegre, possivelmente, não foi da reportagem.
consultado pelo relator, posto que consta, no referido plano, que parte
da região é uma área especial de interesse institucional; parte como “Os pontos mais polêmicos se resumem em três tópicos: mora-
área especial de interesse ambiental e parte como uma área de interes- dores ilegais no terreno, que estão ali desde os anos 60; árvores
se cultural mista, estando situada numa região da cidade que o plano di- nativas e em extinção, que devem ser protegidas; prédios antigos,
com a possibilidade de serem tombados. De acordo com Irany, as
retor qualifica como área de ocupação rarefeita. Dessa forma, somente
invasões são constantes, apesar da vigilância. “Não são apenas
por meio de uma lei complementar municipal, que altere o plano diretor pessoas humildes que moram na área invadida, ali têm con-
do município, a função social da localidade poderá ser modificada. domínios, sobrados, gente com carro zero na garagem”, afir-
No entanto, o deputado Elvino Bohn Gass apresentou, à mesma co- mou. Quanto ao prédio construído na época do Império (cujos
missão, um relatório que trouxe uma série de questionamentos legais, alicerces a Princesa Isabel visitou), Irany foi categórico: “Esse
ampliando a discussão e possibilitando a articulação de setores da so- imóvel, construído em 1889, passou por uma reforma drás-
ciedade civil, que eram contrários a venda da área. tica na década de 1960, alterando toda a fachada”. Por esse
motivo, explicou ele, o tombamento do edifício fica inviável. A
área verde, que já está comprometida por causa da ocupação de-
sordenada, é protegida pela lei, sendo responsabilidade do gover-
no e dos futuros donos do terreno os cuidados com a fauna e a
flora” [grifo nosso]

Primeiramente, na entrevista, o presidente da instituição tentou


minimizar o problema da ocupação ilegal, mas acabou reconhecendo-
-a. Dessa forma, perante o exposto tentou desqualificar os moradores
chamando-os de “invasores de luxo”. Quanto à argumentação histórica,
torna-se evidente que o poder público estava totalmente equivocado,
haja vista que seus argumentos são confusos e irreais. A história do lo-
cal, conforme veremos mais adiante, é diferente do que foi exposto pelo
entrevistado.
Quanto ao tombamento, o equívoco é muito grande. Em que pese
haver a desconfiguração da fachada do imóvel, o valor histórico do pré-
dio não pode ser desconsiderado. O prédio referido na entrevista não é
de 1889, conforme foi afirmado. O imóvel foi mandado construir pelo
Figura 1 – Situação e localização da área de interesse
Imperador D. Pedro II em 1845, “sob os planos e riscos” do arquiteto
Fonte: Google Earth – 2011.
Grandjean de Montigny, conforme o Livro B-1. 96 do Arquivo Histórico
do RS, sobre os avisos do Império do Ministério do Império.
Com a mobilização da sociedade civil em defesa da área, cou- A afirmação na entrevista, quanto ao tombamento, é fruto de um
be aos agentes políticos do governo defender o projeto, para que a período já superado da política de patrimônio, haja vista que tal política
opinião pública ficasse ao lado do governo e facilitasse a ratificação foi inaugurada na década de trinta do século passado, com o Decre­to-
do mesmo. Em 18 de maio de 2010, o presidente da FASE – Irany Lei 25/37. Naquele primeiro momento, muitos equívocos foram realiza-
Bernardes – concedeu uma entrevista publicada no Cyberfam, que dos, mas que para época representavam um grande avanço para a sal-
evidenciou o desconhecimento da realidade social, histórica e am- vaguarda do patrimônio cultural material. Conforme podemos analisar,

760 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 761
Dessa forma, a informação que foi trazida pelo entrevistado está
equivocada e desatualizada, porque há um entendimento, que foi refor-
çado pela redemocratização, de incluir as comunidades nos processos
de tombamentos, já que os bens materiais são referências da memória
das coletividades. Nesse sentido, atualmente, o tombamento e a pre-
servação do patrimônio histórico tende a se voltar para a comunidade,
objetivando a importância e a ligação histórica do patrimônio para a
comunidade, indiferentemente do padrão arquitetônico.
Por isso, podemos afirmar que, nas últimas décadas, houve uma
efetiva participação popular nas decisões que visam à preservação do
patrimônio cultural, respaldado por uma legislação que atende aos in-
teresses da coletividade. Contudo, a coletividade não deverá, apenas,
Reconstituição do desenho participar do processo de tombamento, mas sim, poder usufruir o bem,
Fachada atual do prédio.
da Fachada Original haja vista que a Função Social da Propriedade garante à coletividade
Levantamentos realizados pelo arquiteto Charles Camara Pizzato, CREA 88133
participação nas decisões que envolvam o patrimônio.

a definição do patrimônio histórico e artístico nacional é realizada no Histórico


artigo primeiro do decreto, conforme abaixo.
No final do século XVII, o Império Português visava ao controle da
Art. 1º Constitui o patrimônio histórico e artístico nacional o con- Bacia do Prata, posto que por ali passavam as embarcações com a prata
junto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja con- oriunda das minas de Potosí. Dessa forma, a fundação da Colônia do
servação seja de interesse público, quer por sua vinculação a fa- Santíssimo Sacramento – no final do século XVII – permitiu aos portu-
tos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional gueses rivalizar com os espanhóis, que estavam estabelecidos em Bue-
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico [grifo nos Aires. Contudo, o Império Português possuía um grande problema
nosso]. para estabelecer um controle e segurança do sul de sua colônia, a cida-
de mais meridional da colônia, excetuada Sacramento, era a cidade de
É pertinente ressaltar que a política patrimonial, que nasceu com o Laguna. A distância entre Laguna e Sacramento é imensa, impossibili-
decreto, ressalta a possibilidade de ser declarado tombado o conjunto de tando o controle da região e deixando Sacramento desprotegida.
bens móveis e imóveis, cuja conservação seja de interesse público, posto A partir disso, em 1737, houve a fundação do forte Jesus–Maria-
que deva estar vinculado aos fatos memoráveis da história do Brasil e -José, que propiciou a formação do núcleo urbano, originando a cidade
possuir excepcional valor. Ao artigo cabe ressaltar que, embora seja o de Rio Grande. Doravante, houve a formação de um núcleo urbano nos
principal artifício para que se realizem os tombamentos, seu artigo pri- Campos de Viamão e, consequentemente, na década de quarenta do
meiro foi reinterpretado – atualmente - de forma extensiva, já que o ex- século XVIII, o governo colonial concede, a três famílias, o direito de im-
cepcional valor era – até meados dos anos setenta – entendido como o plantar suas sesmarias no local onde, atualmente, é a cidade de Porto
tombamento do “belo”, ignorando os valores históricos e comunitários de Alegre.
um bem, havendo uma supremacia dos valores arquitetônicos sobre os Há de se destacar a sesmaria de Sebastião Chaves, que, geogra-
históricos. Assim sendo, havia a exclusão da comunidade nos processos ficamente, limitava-se entre o Arroio Dilúvio e o Arroio Cavalhada, no
de tombamento, embora o bem seja uma referência para a memória do Cristal. A sesmaria corresponde, em boa parte, a área da FASE.
mesmo grupo excluído.
762 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 763
Fotografia da fachada original do
Colégio de Santa Teresa, retirada do
Relatório do Dr. João Pitta Pinheiro
Filho apresentado ao Conselho da
Sociedade Humanitária Padre Caci-
que em 1943.

Na década seguinte, a con-


vite do bispo Feliciano Prates,
Joaquim Cacique de Barros
veio para Porto Alegre com
intuíto de lecionar na velha
Igreja do Rosário. O Padre Ca-
cique – forma como ficará co-
nhecido para a posteridedade
– tinha, apenas, vinte e dois
anos quando chegou a Porto
Mapa das estâncias de Porto Alegre, desenho de 1978.
Alegre. Sua habilidade como
Padre, Teólogo e Professor
Após a formação do núcleo urbano com a vinda dos casais açoria-
tornou-o, muito rapidamente,
nos e da invasão espanhola à Rio Grande, Porto Alegre se torna a capital
uma pessoa de muito crédito
da província, passando a ter um grande valor para a manutenção do sul
e respeito na sociedade porto-alegrense. Dessa forma, em 1864, com
da colônia e, no século XIX, para a manutenção do sul do Império do
recomendações de várias autoridades locais, viaja à Capital do Império
Brasil.
para solicitar, ao próprio imperador, a doação da área antiga Chácara do
Por esse motivo, com o término da Revolução Farroupilha, em 1845,
Cristal, destinada à construção de uma escola para meninas órfãs, como
o Imperador Pedro II visitou a capital da recém pacificada Província de
queria o Imperador em 1845.
São Pedro do Sul – atual capital do Estado do Rio Grande do Sul -, Porto
Com a autorização do imperador, em 1864, Padre Cacique começa
Alegre. Na ocasião, O Imperador, durante as festividades de seus vinte
as atividades da Escola Santa Teresa. Embora a instituição tenha a auto-
anos, adquiriu a Chácara do Cristal, que compreendia parte da Sesmaria
rização imperial, a administração financeira e a forma como mantê-la é
de Sebastião Chaves – atual área da FASE e do Asilo Padre Cacique –
de responsabilidade única e exclusiva do padre, que utiliza todo o seu
para fundar, no local, uma escola para meninas em homenagem à Impe-
salário de professor para manter a obra. Não sendo suficiente, torna-se
ratriz Teresa Cristina, sua esposa.
“um pedinte sublime”, conforme é denominado por Braga, 1998.
No local foi construído um prédio, que será parcialmente concluído
Padre Cacique é obstinado em sua obra, utiliza todo seu tempo lecio-
em 1856, de autoria do arquiteto do Imperador, Auguste Henri Victor
nando e dirigindo a instituição e, quando não as realiza, está nas ruas de
Grandjean de Montigny4. Este, em 1816, chegou ao Brasil com a Missão
Porto Alegre pedindo auxílio – doações - para continuar o seu trabalho.
Artística Francesa, tornando-se o principal arquiteto do império até sua
Muitas contribuições para a sociedade porto-alegrense e sul-rio-
morte em 1850.
grandense foram feitas pelo padre. Foi o primeiro pedagogo da Provín-
4 A confirmação da autoria do projeto vem dos “Avisos do Ministério do Império sobre o Colégio cia de São Pedro do Sul5 e, com ele, o magistério estadual praticamente
Santa Tereza”, de 1846 a 1849. A documentação é farta e clara na informação. Por inúmeras vezes,
o imperador manda e recebe informações sobre o andamento do projeto, sob os riscos e os planos
5 A Província de São Pedro do Sul corresponde, na atualidade, predominantemente, ao Estado
de professor Grandjean de Montigny, que está sob a execução de Carlos Miranda, aluno da Acade-
do Rio Grande do Sul.
mia de Belas Artes do Rio de Janeiro.

764 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 765
nasceu. Por isso, em 1869, Antônio da Costa Pinto Silva, presidente da Para isso, o intendente criou um imposto de caridade que era o
Província, convida-o para dirigir a recém criada Escola Normal, anexa ao responsável por destinar auxílio financeiro para as instituições de inter-
Liceu. A partir desse convite, o padre teve a oportunidade que queria, nação de mendigos, inválidos e os enfermos, que eram encaminhados
porque além de dirigir a escola mais importante da província; teve uma pela guarda municipal às instituições.
ótima oportunidade para dar um destino para suas “filhas” do Colégio Aproveitando os recursos provenientes do novo imposto, a Associa-
Santa Teresa. Portanto, a escola foi a responsável pela formação das ção Humanitária Padre Cacique constrói o Asilo São Joaquim, em 1931,
primeiras professoras do magistério estadual, sendo que todas as pro- já que a política do PRR e da elite burguesa combatia, com o apoio da
fessoras, do século XIX, saíram da instituição. elite burguesa, a vadiagem, a mendicância, a prostituição – que era algo
Não satisfeito com seu trabalho e com um objetivo maior em mente, disseminador de doenças – e os menores abandonados, que se tornariam
o “pedinte sublime” começa uma nova etapa da obra que deixara na vadios na vida adulta, caso não fossem internados em asilos e tivessem
sociedade porto-alegrense. Em 1880, com muito esforço financeiro e uma educação rígida para, posteriormente, quando adultos, tornarem-se
com ajuda de suas meninas – que respeitosamente o chamavam de trabalhadores de rígida disciplina com longas jornadas de trabalhos em
pai – começou a erguer o prédio que abrigará o Asilo de Inválidos, atual troca de um modesto salário, conforme a ideologia dominante da época.
Asilo Padre Cacique. No entanto, logo após a construção da fundação
do prédio, o Imperador manda, inexplicavelmente, que as obras sejam
interrompidas imediatamente.
Contudo, ao receber a visita da Princesa Isabel, em 1884, esta revo-
gou a ordem de seu pai e permitiu a continuidade da construção, já que
conheceu a escola e se surpreendeu pelo trabalho que ali era realizado,
conforme ela descreve em seu diário. Somente em 1898 a construção
foi concluída, e o asilo aberto para receber os mendigos da cidade.
Ainda em vida, o padre registrou uma empresa jurídica para que,
após sua morte, seu trabalho tivesse continuidade. Dessa forma, foi cria-
da a Sociedade Humanitária Padre Cacique, mantenedora do atual Asilo
Padre Cacique.
No início do século XX, em 1907, num dos quartos do Asilo de Men-
dicidade, Padre Cacique morreu em decorrência de uma angina no peito.
Segundo palavras do arcebispo João Becker “morreu pobre, paupérrimo, Asilo São Joaquim, década de trinta.
porque tudo consagrara às obras de caridade”. O “pedinte sublime” mor-
reu com a certeza de que realizara um grande trabalho para a sociedade Ao longo do anos 40, a fundação teve dificuldades financeiras para
porto-alegrense, mas, segundo seus próprios objetivos, incompleto. Na manter ativas as três unidades assistenciais, já que o governo estadual e
ocasião de sua morte a fundação que criara possuía a Escola Santa Teresa municipal estavam reduzindo, gradualmente, suas doações para a fun-
– responsável pela educação de meninas órfãs – e o Asilo de Mendicida- dação. Dessa forma, em 1945, a Escola Santa Teresa não estava mais
de, não conseguindo realizar em vida o asilo para meninos órfãos. ocupando, fisicamente, o prédio projetado pelo Grandjean de Montigny,
Mas a oportunidade de construir o asilo aconteceu em meio à po- visto que as meninas estavam alojadas no prédio do Asilo São Joaquim.
lítica de “higienização” à burguesa na cidade, desenvolvida durante o Nesse momento, o interventor federal Ernesto Dornelles intercedeu, sob
mandato de Otávio Rocha (1924-1928), posto que a elite burguesa pro- protestos da fundação e da sociedade porto-alegrense, na instituição,
moveu uma cruzada contra contra a vadiagem, a mendicância, o jogo, a tomando a área de 74 hectares, que incluía os prédios, argumentan-
prostituição, o alcoolismo, a infância abandonada e os cortiços, confor- do que era uma instituição imperial. Nessa época, a Casa de Correção,
me explica Monteiro, 1995. localizada na Ponta da Cadeia, abrigava adultos e crianças, por isso o

766 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 767
governo projetava criar uma instituição que abrigasse os menores infra- Por último não podemos deixar de referenciar que nos últimos se-
tores do estado. tenta anos, o governo estadual utilizou o espaço para servir de abrigo
Dessa forma, em 1948, o local passou a abrigar a SESME-RS6, que para menores infratores e presos políticos, portanto há uma riqueza his-
ocupou os prédios e começou uma reforma para adaptá-los à sua nova tórica que não pode ser desconsiderada pelo poder público.
função. Após uma ação judicial, ajuizada pela Sociedade Humanitária Dessa forma, o tombamento da área e dos bens materiais imóveis não
Padre Cacique, em 1949, o Governo do Estado devolveu ao impetrante pode ser desconsiderada, haja vista que a Constituição Federal de 1988 trou-
o prédio do Asilo de Mendicidade, que atualmente é asilo para idosos, xe, em seu artigo 216, uma interpretação que tornam patrimônio cultural
e fez uma indenização em dinheiro pela a área. brasileiro os sítios de valor histórico, conforme podemos verificar abaixo.
Na década de sessenta, com a democracia usurpada pelos militares,
o local abrigou, além de menores, presos políticos, conforme é noticiado Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de na-
pelos jornais da época7. Era comum fotografias serem veiculadas nos tureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto,
meios de comunicação mostrando presos políticos sendo carregados portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos dife-
para o prédio do antigo Asilo São Joaquim. Com o fim da repressão mi- rentes grupos formadores da sociedade brasileira, [grifo nosso]:
litar, o local voltará a atender somente menores abrigados pela instinta ...
FEBEM - atual FASE -, fato que se mantém até os dias atuais. V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, ar-
tístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico [grifo nosso].

Conclusão Ao encontro do texto constitucional, a lei n° 10.257/2001, que regu-


lamentou os artigos 182 e 183 da Carta Magna, reafirmou o princípio da
Mediante a exposição histórica que foi realizada acima, podemos função social da cidade; a gestão democrática por meio da população e de
destacar que a área possui uma importância histórica para a comunida- associações civis; a proteção, preservação e recuperação do patrimônio
de porto-alegrense e gaúcha, posto que está relacionada com o início da cultural e histórico, conforme podemos verificar no artigo 2°, incisos II e XII.
formação da cidade e com a história social da região.
Destaco algumas fases históricas que deverão ser levadas em consi- Art. 2o. A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvol-
deração para um tombamento histórico. Primeiro, o local abrigou uma vimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
das três sesmarias que originaram a povoação da cidade; segundo, foi mediante as seguintes diretrizes gerais [grifo nosso]:
propriedade – pessoal - do imperador Pedro II e recebeu um exemplar ...
II – gestão democrática por meio da participação da população
– singular – da arquitetura neoclássica; terceiro, da escola Santa Teresa,
e de associações representativas dos vários segmentos da co-
saíram as primeiras professoras para o magistério estadual; quarto, a
munidade na formulação, execução e acompanhamento de planos,
Sociedade Humanitária Padre Cacique foi uma das primeiras entidades programas e projetos de desenvolvimento urbano [grifo nosso];
filantrópicas assistencialistas do Estado, recebendo meninas da Roda ...
dos Expostos e educando-as. A entidade, além de cuidar de meninas, foi XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural
responsável por abrigar idosos, inválidos e, por fim, meninos. e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagísti-
co e arqueológico [grifo nosso];
6 Em 1945, o Governo do Estado fundou a SESME – Serviço Social do Menor -, responsável pela
política de atendimento às crianças e adolescentes abandonadas ou autores de atos infracionais. Pos- Ao patrimônio cultural é garantido, como meio de proteção, instrumen-
teriormente, em 1964, a SESME se tornou DEPAS – Departamento de Assistência Social da Secre-
taria do Trabalho e Habitação -, que foi desmembrada em 1968. Com isso, abriu-se o caminho para tos jurídicos e políticos que permitam a preservação e a salvaguarda do
que, em 1969, fosse criada a FEBEM – Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor. Desde 2002, a patrimônio histórico e cultural por meio de tombamentos, instituição de
FEBEM foi extinta em detrimento a uma nova fundação, que assumiu o seu lugar, a FASE – Fundação
de Atendimento Sócio-Educativo.
unidades de conservação, instituição de zonas especiais de interesse social,
7 Os jornais do Grupo Caldas Júnior – Folha da Manhã, Folha da Tarde e Correio do Povo - são os
dentre outras. Assim sendo, há um aparato jurídico que garanta o tomba-
que mais se destacam no assunto. mento a áreas de interesse histórico e cultural, conforme foi analisado.
768 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 769
Mediante tudo o que foi exposto, resta saber se o poder público res-
peitará a sociedade civil, preservando a memória da sociedade gaúcha
O desenvolvimento sustentável e a
e garantindo a efetividade da tutela do patrimônio cultural por meio dos tutela do direito à paisagem:
instrumentos aqui analisados.
diretrizes para a defesa do
patrimônio cultural de Vila Juerana,
Referências
Ilhéus, Bahia (2009-2011)
BARROSO, Véra Lucia Maciel; OSMARI, Maria. Do Morro Santana: a cidade
de Porto Alegre. Unidade Editorial da Prefeitura de Porto Alegre, 2004. Thamilis Costa Braitt 1
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Ltda de Blumenau/SC, Porto Alegre, 2010. Extensão “Cidadania e Vilas Sustentáveis” (fomento: FAPESB), membro do Comitê Científico da
UESC (representando o Departamento de Ciências Jurídicas) e membro do Conselho Editorial da
SOUZA, Célia Ferraz e MÜLLER, Dóris Maria. Porto Alegre e sua evolução Revista DIKÉ, do Curso de Direito da UESC. Docente do Colegiado de Direito e representante, pelo
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770 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 771
preservação do patrimônio cultural local. São empecilhos 1. DIREITO À PAISAGEM E DEFESA DO PATRIMÔNIO CULTURAL
que frustram a identidade cultural dessas comunidades e COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.
causam estagnação às atividades turísticas, imprescindíveis
para sustentação econômica regional.
Palavras-chaves: Patrimônio Cultural, Direito Urbanístico, A tutela jurídica da paisagem no espaço urbano perpassa a neces-
Vila Juerana. sidade de se garantir a qualidade de vida do ser humano, direito este,
previsto pela Constituição de 1988, em seu artigo 1º, inc. III, com fun-
damento no princípio da dignidade da pessoa humana. Reforçando esse
INTRODUÇÃO preceito, o art. 225, do mesmo instituto, expressa que:

Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
Existe uma preocupação crescente com a qualidade de vida nas ci-
bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
dades, tendo em vista a agressividade das construções modernas atrela- impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
das ao avanço econômico promovido pelo capitalismo. Neste contexto, e preservá- lo para as presentes e futuras gerações (BRASIL, 1988)
o cuidado com a paisagem urbana, assim como a preservação do pa-
trimônio cultural local, é imprescindível para o bem-estar humano, não Ana Maria Moreira (2008, p. 28) afirma que:
apenas pela estética, mas também pela funcionalidade. De acordo com
Ana Maria Moreira (2008), a paisagem tem a capacidade, quando resul- A paisagem se insere na noção unitária, sistêmica, de meio ambiente.
tado de uma gestão apropriada, assim como o patrimônio cultural, de A Constituição Federal, a partir da exegese combinada dos arts. 182,
colaborar para o estado de elevação espiritual do homem em oposição ‘caput’, 216 e 225, reconhece a necessidade de proteção desse bem
ao caos e ao estresse das cidades, viabilizando a qualidade de vida. A jurídico, além de atribuir competência material concorrente à União,
Estados, Distrito Federal e Municípios para proteger o meio ambiente
Constituição Federal é pertinente a esse aspecto quando resguarda o
e combater a poluição ‘em qualquer de suas formas’ (art. 23, inc. VI).
patrimônio cultural brasileiro, tendo nele a inserção explícita dos sítios
de valor paisagístico, além de dar ao meio ambiente sadio e ecologica-
Em relação ao patrimônio cultural, a Constituição Federal é incisiva
mente equilibrado o caráter de direito fundamental da pessoa humana.
quando assevera por meio do Art. 215, que o Estado garantirá o exer-
Vale acrescentar que uma paisagem harmônica, bem estruturada,
cício de maneira plena dos direito culturais, assim como o acesso aos
exótica, tradicional, que preserva os aspectos histórico-culturais, é um re-
mananciais da cultura nacional, apoiando e incentivando a valorização
curso para atividades turísticas. É exatamente neste ponto que a comuni-
e a difusão das expressões culturais. Outra garantia constitucional está
dade de Vila Juerana merece atenção. Existe a necessidade de um traça-
prevista no § 3º deste mesmo artigo, que estabelece um Plano Nacional
do urbanístico planejado, com locais estratégicos para marketing visual,
de Cultura, destinado ao desenvolvimento cultural do país e a integra-
entre outras modificações que melhorariam significativamente a vida das
ção de ações do poder público que resultem na defesa e valorização do
pessoas, seja no aspecto social, econômico ou cultural. Deve-se atentar,
patrimônio cultural.
destarte, que muitas as comunidades litorâneas de Ilhéus vêm, ao longo
Vale acrescentar que a Constituição na forma do Art. 216, ainda tra-
dos anos perdendo seus traços característicos, causando conseqüente
ça algumas considerações a respeito do patrimônio cultural, ressaltando
perecimento do patrimônio cultural, o que evidentemente compromete a
que são eles os de natureza material e imaterial, tomados individual-
identidade paisagística dessas localidades. Mesmo com a crescente pre-
mente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação,
ocupação com a preservação da paisagem e proteção ao patrimônio cul-
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira,
tural com enfoque em um desenvolvimento sustentável, ainda há uma es-
nos quais se incluem vários objetos, contando para isto com a atuação
cassez de políticas públicas de planejamento físico-territorial e de planos
presente de todos na promoção dos valores e condições sociais em tor-
de gestão municipal, o que dificulta qualquer mobilização em tempo hábil
no da cultura e do exercício da identidade local como elementos funda-
para frear a deterioração da paisagem e perda do patrimônio cultural.
mentais à afirmação da cidadania dos brasileiros.
772 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 773
1.1 O Plano Diretor Participativo de Ilhéus de 2006 e a proteção Local na Vila Juerana, Município de Ilhéus, é realizado sob a coordena-
do patrimônio cultural e da paisagem urbana. ção dos Professores Wagner de Oliveira Rodrigues e Guilhardes de Jesus
Júnior, com laboratório na Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC.
O Plano Diretor participativo de Ilhéus de 2006 dá diretrizes à ação Tem na realização de suas atividades o apoio da UESC, FAPESB, a As-
dos diversos agentes públicos e privados na implantação das políticas de sociação AMORVIJU (Associação de Moradores de Vila Juerana) e da
desenvolvimento urbano. Dentre as regulamentações traçadas em seu tex- ONG Ação Ilhéus. Seu principal objetivo é despertar por meio de ações
to, verifica-se a atenção dada à qualidade de vida, às perspectivas de de- sustentáveis, a consciência dos cidadãos de Juerana no que diz respeito
senvolvimento de atividades econômicas, assim como, dado o interesse aos direitos de cidadania e o seu exercício por meio do fortalecimento
desta pesquisa, às questões referentes à melhoria da paisagem urbana, a de Vila Juerana, assim como desenvolver a capacidade de reivindicação
preservação dos sítios históricos e dos recursos naturais (Art. 10, VII). desses direitos e fortalecer as lideranças locais na comunidade.
Além de determinar alguns objetivos que devem ser perseguidos O Projeto desempenha atividades de extensão na Vila Juerana atra-
pela Política Municipal de Desenvolvimento Urbano no Art. 65, deste vés de oficinas (palestras) que tratam de temas referentes aos direitos
mesmo dispositivo, especificamente àquele expresso pelo inciso XVI:
do cidadão, além de prestar assessoria jurídica à Comunidade, além
de fomentar a criação de associações que agreguem valores políticos e
(...) promover a preservação, conservação e recuperação do ambiente
natural e construído, e da paisagem urbana, inclusive com a criação cidadãos aos moradores daquela localidade. Sua atuação consiste tam-
de programas e mecanismos de incentivo quando for de interesse pú- bém em realizar reuniões periódicas com a presença de representantes
blico e compatível com as funções sociais da cidade; da Vila Juerana, dos parceiros e dos membros do Projeto, a fim de que
haja o planejamento de atividades baseadas nas necessidades da Vila.
No tocante à proteção ao patrimônio cultural, o referido Plano Di- A equipe do projeto está empenhada em trabalhar temas pertinen-
retor disciplina algumas diretrizes da Política Municipal da Cultura (Art. tes ao desenvolvimento da comunidade, a partir de preceitos fundamen-
54, V), tal qual a preservação e conservação do patrimônio cultural do tados no empoderamento, cidadania e sustentabilidade. Temas estes,
município. E por meio do Art. 55, XV, dispõe sobre ações da Política que a partir de ações integradas, são de suma importância para o de-
Municipal da Cultura no que se refere à preservação, atualização, am- senvolvimento social, cultural, econômico e político, com conseqüente
pliação e divulgação da documentação e dos acervos que constituem o elevação da qualidade de vida da vila.
patrimônio cultural do Município.
Ademais, é importante destacar o Art. 15, ao mencionar a Política 2.2 O objeto de estudo e sua contextualização socio-cultural.
Municipal de Turismo, que tem como princípio a criação de condições
adequadas para o pleno desenvolvimento do turismo municipal, obser- O objeto de estudo com base na realidade local (Vila Juerana) fica
vando as dimensões da sustentabilidade sócio-cultural, ecológica, eco- situado no Estado da Bahia, no distrito de Aritaguá, em Ilhéus, Estado
nômica, espacial e política, considerando suas potencialidades e respei- da Bahia (14o4450S, 39o0145W), distante cerca de 20 quilômetros de
tando os recursos naturais, patrimoniais, históricos e culturais. Ilhéus, sendo uma comunidade litorânea remanescente de Mata Atlânti-
ca, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Lagoa Encantada e
2. O PROJETO “CIDADANIA E VILAS SUSTENTÁVEIS”,
Rio Almada, uma Unidade de Conservação da categoria “Uso Sustentá-
VILA JUERANA E AS EXPRESSÕES POLÍTICAS E JURÍDICAS
vel”, de acordo com a Lei Federal nº 9.985, de 18 de julho de 2000. 3
DE SEU PATRIMÔNIO CULTURAL
De acordo com um censo realizado pelos próprios moradores, atra-
vés da Associação de Moradores de Vila Juerana, moram na comunida-
2.1 O que é o projeto “cidadania e vilas sustentáveis”
3 O trabalho, intitulado “PROJETO CIDADANIA & VILAS SUSTENTÁVEIS AÇÕES SUSTENTÁVEIS
O Projeto “Cidadania e Vilas Sustentáveis”, com ações Sustentáveis EM COMUNIDADES LITORÂNEAS DA REGIÃO SUL DA BAHIA: CIDADANIA E PODER LOCAL NA
em Comunidades Litorâneas da Região Sul da Bahia: Cidadania e Poder VILA JUERANA, MUNICÍPIO DE ILHÉUS” (TSC 0035/2009) foi submetido e aprovado pelo Edital n.
015/2009 – FAPESB, e tem previsão de término em fevereiro de 2012.

774 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 775
de cerca de 700 setecentas pessoas, que vivem basicamente de artesa- manifestações ricas que fortalecem a identidade cultural da comunida-
nato, pesca, fabricação de dendê e pequenos comércios, além daqueles de, dando vivacidade às relações interpessoais, além de proporcionar
que são empregados na zona urbana de Ilhéus e nos empreendimentos momentos de lazer, harmonia e bem-estar.
turísticos da região. O Festival do Guaiamum é realizado pela Associação de Moradores
A Vila é caracterizada por população de baixa renda e baixa escola- da Vila Juerana, a AMORVIJU, no mês de abril. Trata-se de uma comemo-
ridade, além de infra-estrutura precária e pouquíssimos serviços sociais ração que integra toda a comunidade, impulsionando a atividade turís-
oferecidos. Esse perfil de comunidade é clientela fácil para políticas pú- tica da vila. O principal objetivo do evento é trabalhar a conscientização
blicas de assistencialismo e para atividades ligadas ao turismo sexual de todos da região enquanto à necessidade de preservação ambiental,
de jovens e adultos, tendo em vista sua baixa auto-estima e baixa re- focando na proteção do guaiamum, crustáceo de grande importância
siliência. Além do mais, a situação de baixa renda e o enfraquecimen- para culinária de Juerana, responsável por impulsionar a economia dos
to institucional favorecem o surgimento de atividades que propiciem a bares e por movimentar grande parte da atividade turística da comuni-
exploração dos recursos ambientais de forma predatória, a exemplo da dade.
caça ilegal e desmatamento, na busca da satisfação das necessidades Este festival é uma tradição, um culto a culinária local, com perspec-
básicas, especialmente a saciedade da fome. tivas que vão da preservação do patrimônio cultural e natural à valoriza-
A comunidade carece de estímulo para o desenvolvimento social, ção de atividades esportivas. Isso porque além de apresentar toda uma
político e econômico, para que se possa superar a pobreza, a deterio- discussão a respeito da proteção do guaiamum e das riquezas naturais
ração ambiental, corrupção e a desigualdade social. Para se fazer uma em geral, o evento inclui em sua programação uma competição de caia-
idéia da realidade que contrasta com a dinâmica da sustentabilidade ques no rio Almada. Essa atividade permite que os visitantes conheçam
ambiental almejadas para uma comunidade deste tipo, um crustáceo a beleza exuberante dos manguezais de Vila Juerana, de modo que se
chamado “guaiamum” é iguaria muito apreciada pelos moradores locais possa vislumbrar toda importância que a natureza representa para a
e que, diante da forma como é coletado – sem o devido respeito ao qualidade de vida da região.
reequilíbrio da reposição dos víveres na natureza, revela em como o A festa do bumba-meu-boi também foi um evento realizado pela As-
relacionamento do ser humano com a natureza e o universo acabam se sociação de Moradores de Vila Juerana, este com um caráter de resgate
espreitando para uma ausência de consciência social quanto ao esgota- da cultura local como fator essencial para o desenvolvimento da ativida-
mento dos recursos naturais ali existentes. de turística, principal meio de renda da região. O evento apresentou um
Em síntese observa-se que Juerana é uma comunidade marcada vasto acervo da tradição local, com músicas típicas da região, danças
pela pobreza, desemprego, baixos índices educacionais, péssimas con- características e fantasias confeccionadas pelos próprios moradores. Foi
dições de saneamento básico e infra-estrutura, entre outros problemas um momento em que crianças, adultos e idosos tiveram a oportunidade
comuns a muitas periferias urbanas brasileiras. de vislumbrar suas raízes culturais, com vivacidade, alegria e entusias-
Este trabalho apresentou uma proposta de ação orientada de pro- mo. A importância dessa manifestação cultural ultrapassa a simples va-
fissionais junto à comunidade universitária dentro de uma formação lorização local, mas tem uma representatividade municipal, e deve ser
interdisciplinar que buscou desenvolver na comunidade em questão a considerado um patrimônio cultural da nação, como explica Marli Lopes
capacidade de entender e enfrentar seus problemas. Para tanto, foram e Ricardo Vieiralves (2008, p.127):
traçados planos de atividades que seriam exercidas ao longo do ano de
2010 até 2012 com oficinas, reuniões, pesquisas de campo, atuação Ao terem suas crenças, seus saberes, suas representações, formas de
nas entidades sociais organizadas – ESO’s existentes e o devido apoio ser, de viver, e de fazer, tomados como patrimônios nacionais, esses
grupos tem que necessariamente assimilar aos seus cotidianos o fato
para o surgimento de outras desta natureza. As expressões culturais de
de que são produtores e/ou detentores das memórias que constituem
destaque de Vila Juerana entre os anos de 2009-2010, foram o Festival o patrimônio cultural imaterial nacional, o que certamente difere do
de Guaiamum e Frutos do rio Almada e a festa do bumba-meu-boi. São fato de serem portadores de memórias que reconstroem seus saberes

776 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 777
e tradições. O que antes poderia ser pensado como memórias do mitidas a partir de reflexões sobre o papel político de cada um dos
grupo que davam sustentação a um estilo local de vida, de expressões membros da AMORVIJU nos canais políticos institucionais do Municí-
ou como lembranças que ancoravam uma tradição regional é agora pio e região.
considerado um patrimônio cultural da nação.
Desse modo, conjectura-se que se torna possível impulsionar a as-
sociação no sentido de buscar alternativas, seja por meio de ações in-
Estas manifestações, que refletem práticas do cotidiano da comuni- ternas ou reivindicações ao poder público, que direcionem o desenvol-
dade vêm como instrumento de identificação de um grupo uma comuni- vimento sustentável no favorecimento da paisagem local, assim como
dade em uma determinada região. Desse modo, quando se faz referên- práticas direcionadas a valorização e conservação de suas expressões
cia a festas culturais inseridas no Brasil, emergem saberes singulares que artísticas e culturais.
atravessaram muitas existências dessas comunidades em suas práticas Atualmente a participação dos membros da AMORVIJU nos canais
simbolizadas por meio da culinária, artesanato, música, dança, celebra- políticos de Ilhéus acontece no Conselho da Cidade de Ilhéus – criado
ções e demais expressões culturais. (CRUZ, MENEZES, PINTO, 2008) pelo Plano Diretor local -, na FAMI – Federação das Associações de Mo-
radores de Ilhéus – e, recentemente, na participação, com conselheiro
2.3 A Importância da preservação da paisagem no contexto da a partir de um dos membros da associação do Comitê Gestor da APA
manutenção do Patrimônio Cultural de Vila Juerana. da Lagoa Encantada (Paulo Emílio P. Nascimento), responsável pelo ge-
renciamento de políticas públicas para a mencionada região onde Vila
Vila Juerana está situada na zona norte de Ilhéus, região de mata Juerana está presente. Há também a participação da ONG Ação Ilhéus,
Atlântica, conhecida pela extensa riqueza natural, histórica e cultural. que está fortalecendo e colaborando, em conjunto com o Projeto, no
Esta paisagem rica e diversificada compõe um patrimônio cultural e na- acompanhamento da comunidade em órgãos institucionais de Ilhéus e
tural de valor inestimável, resultado de uma história construída ao longo região.
dos anos por pescadores, trabalhadores do campo, entre outros agen- A presença da equipe do Projeto nas reuniões semanais, a partir de
tes de diferentes grupos étnicos e raciais. agosto de 2010, da Diretoria da AMORVIJU só confirmou a necessida-
Assim, como diversas comunidades litorâneas de Ilhéus, Vila Jue- de de maior preparo jurídico e político acerca das questões políticas e
rana apresenta dificuldades em conservar a sua paisagem, diante de jurídicas que envolvem a defesa dos interesses da comunidade frente à
uma série de atividades predatórias, que comprometem a qualidade da Prefeitura Municipal de Ilhéus e outros órgãos públicos. Isto porque os
água e do solo. Ainda são tímidas as iniciativas de preservação do meio eventos culturais na Vila não são reconhecidos pelo Município como pa-
ambienta através de práticas sustentáveis. É relevante que a valorização trimônio cultural, e os apoios buscados pela comunidade são frequente-
desse patrimônio e, por conseguinte, a preservação da paisagem que mente condicionados ao apoio de um empreendimento logístico do qual
identifica esta comunidade, é um preceito essencial para salvaguardar a comunidade rejeita sua presença.
os elementos que constituem o patrimônio histórico-cultural da região. Para suprir essa deficiência, todos estão sendo preparados para a
Trata-se de um aspecto relevante, diante do crescente interesse pela apresentação das demandas de Vila Juerana em audiência pública que
paisagem, que tem se revigorado em esfera global no campo de preser- será marcada na Câmara Municipal de Ilhéus, após a finalização do diag-
vação do patrimônio, tendo sua qualificação como paisagem cultural, nóstico participativo em construção, e que tem a participação direta do
onde os aspectos de integração homem-natureza estão ressaltados, en- Projeto no estímulo ao exercício dos direitos políticos frente à noção de
tre patrimônio material e imaterial. (RODRIGUES, 2010) cidadania ativa, defesa dos interesses ambientais, sociais, econômicos e
O Projeto “Cidadania e Vilas Sustentáveis” atua através do forta- culturais da comunidade.
lecimento das ações internas e externas da Associação de Moradores Paralela às situações acima firmadas, uma das principais metas tra-
de Vila Juerana – AMORVIJU, tendo a participação da equipe do çadas pelo Projeto é justamente promover a coesão social na comuni-
projeto nas reuniões da associação, especificamente nas reuniões de dade, de modo que se possa posteriormente desenvolver medidas efi-
sua diretoria, cujas noções de empoderamento social têm sido trans-
778 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 779
cientes na preservação das riquezas naturais, repercutindo sobre a qua- produção de comportamentos e práticas de cidadania que revelem a
lidade da paisagem urbana e natural; na conscientização a respeito dos identidade da comunidade e, através dela, as demandas para a reali-
direitos e deveres do cidadão; na exaltação de todas as manifestações zação dos demais direitos – sejam sociais ou até mesmo políticos – em
artísticas e culturais; entre outras medidas que assegurem o bem-estar prol da dignidade humana e coletiva dos moradores de Vila Juerana e
e a qualidade de vida na região. adjacências.

CONCLUSÃO REFERÊNCIAS

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munidade tende a chegar em um nível que se exija a participação do dade visual da paisagem urbana. Dissertação de mestrado em planejamento
Poder Público na realização dos festejos locais, o que atualmente não urbano e regional. Porto Alegre, 2010.
vem acontecendo.
Por outro lado estes tipos de situações condicionam a comunidade
a ter que encontrar em si mesma a força para a mobilização em prol da
expressão de seus valores com os recursos dos quais dispõem. O que o
Projeto e, em especial, os autores buscam em sua presença em campo
é demonstrar que o direito que eles perseguem é público e não pode
ser condicionado de nenhum nível; além do mais, o conhecimento dos
direitos relacionados à expressão cultural é fator fundamental para a

780 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 781
O Estatuto da Cidade na preservação
de paisagens culturais: o caso da ZEIP
de Paranapiacaba – Santo André – SP
Vanessa Gayego Bello Figueiredo1

Resumo: o presente trabalho discute a aplicabilidade dos


instrumentos urbanísticos na preservação do patrimônio
cultural a partir do exemplo paradigmático da gestão sus-
tentável de Paranapiacaba, onde foi elaborada e implemen-
tada a Lei da ZEIPP – Zona Especial de Interesse do Patri-
mônio de Paranapiacaba. A ZEIPP, aprovada em 2007, é
uma lei específica estabelecida pelo Plano Diretor 2004 de
Santo André que articula diretrizes de preservação do patri-
mônio com desenvolvimento urbano, ambiental, econômico
e social. Seu principal objetivo é orientar a política de pre-
servação da paisagem cultural de Paranapiacaba, concilian-
do o desenvolvimento da atividade turística, com a conser-
vação e sustentabilidade dos patrimônios edificado, natural
e imaterial da vila ferroviária. O processo de elaboração e
dessa lei ocorreu de forma participativa e interdisciplinar,
atendendo às diretrizes do Estatuto da Cidade, envolvendo
a prefeitura, os três órgãos de preservação do patrimônio
cultural (IPHAN, CONDEPHAAT e COMDEPHAAPASA), os
conselhos municipais de política urbana e meio ambiente,
universidades, entidades de classe e a comunidade local.
Esta experiência vem sendo considerada inovadora e exem-
plar por órgãos nacionais, como o IPHAN e Ministério das
Cidades e internacionais como o TICCIH e a INCUNA2.
Palavras-chave: instrumentos urbanísticos, plano diretor
participativo, paisagem cultural.

Introdução

Implantada no topo da Serra do Mar, parte mais alta da cordilhei-


ra marítima, numa altitude de 796 metros, a pequena Vila Ferroviária

1 Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional, bolsista CAPES do Programa de Pós-Gra-


duação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Docente da FAU
CEUNSP-Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio – Salto - SP. Membro do Comitê Brasileiro
do TICCIH, Ex-Subprefeita de Paranapiacaba e Pq. Andreense – PMSA. E-mail: vanbello@usp.br
2 TICCIH – The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage.(Atual
sede: Alemanha). www.ticcih.org e www.patrimonioindustrial.org.br. INCUNA – Industria, Cultura y
Naturaleza- Associación de Arqueologia Industrial (Atual sede: Espanha).www.incuna.org.

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de Paranapiacaba, a cerca de 64 quilômetros da capital paulista, é um
exemplar notável do patrimônio cultural brasileiro.
Situada na cidade de Santo André, a Vila faz parte do Distrito de Pa-
ranapiacaba que possui uma área de 83,22 Km2, representando 48%
da área do município. Essa porção do território andreense está total-
mente inserida em área de proteção aos mananciais e, portanto, pre-
serva significativas reservas naturais. Em 1994 a UNESCO reconheceu a
importância da biodiversidade e dos ecossistemas de Mata Atlântica da
região por meio da criação da Reserva da Biosfera do Cinturão Verde de
São Paulo.
Paranapiacaba, que na linguagem indígena significa “local de onde
se vê o mar”, conserva um significativo acervo tecnológico ligado a fer-
rovia e testemunhos de um modelo arquitetônico e urbanístico bastante
avançados para a época de sua implantação. Essa vila ferroviária nasceu
e se desenvolveu a partir de 1860 com a implantação da Estrada de
Ferro Santos-Jundiaí, a primeira ferrovia paulista, construída pela com-
panhia inglesa SPR - São Paulo Railway, para escoar a produção cafeeira
do Estado de São Paulo ao mercado internacional. Em 1946, a ferrovia Imagem 1. Foto Aérea de Paranapiacaba em 1940. Fonte. ENFA – Empre-
e todo seu patrimônio foram incorporados ao Governo Federal e em sa Nacional de Fotos Aéreas. Governo do Estado de São Paulo. Secretaria
1957 a Rede Ferroviária Federal S.A. passou a administrá-los. A partir de Economia e Planejamento. Coordenadoria de Planejamento e Avaliação.
dos anos 80 a Vila de Paranapiacaba passou por um intenso período de Instituto Geográfico e Cartográfico.
abandono e degradação.
Em 1987, após inúmeras solicitações populares, teve seu patrimônio
cultural e natural reconhecido e tombado pelo CONDEPHAAT, em 2002
cuperação desse precioso patrimônio brasileiro. O amplo e complexo
pelo IPHAN e em 2003 pelo órgão municipal, o COMDEPHAAPASA. En-
programa de gestão desenvolvido vem sendo considerado inovador por
tre 2003 e 2007 foi considerada pela World Monuments Fund um dos
diversas instituições, dentre elas o IPHAN, o Ministério das Cidades3
cem patrimônios mais importantes do mundo em risco. Em 2008 Para-
e organizações internacionais como o TICCIH e a INCUNA, sobretudo
napiacaba tornou-se o primeiro patrimônio cultural paulista e também
pela concepção e implementação integrada e interdisciplinar de polí-
primeiro patrimônio industrial ferroviário brasileiro indicado pelo IPHAN
ticas públicas, mas também pela qualidade e agilidade dos resultados
ao título da UNESCO de Patrimônio da Humanidade.
alcançados. No entanto, não caberá no âmbito desse artigo apresentar
Para administrar as especificidades da região de Paranapiacaba, a
todas essas políticas. Será focado o tema da articulação entre desen-
Prefeitura de Santo André criou em 2001 a Subprefeitura de Parana-
volvimento urbano e preservação do patrimônio cultural, por meio da
piacaba e Parque Andreense, viabilizando a implantação de um modelo
apresentação e problematização da experiência desenvolvida durante
de gestão municipal descentralizada, articulando as políticas de desen-
a elaboração e implantação da ZEIPP– Zona Especial de Interesse do
volvimento urbano e social, com preservação do patrimônio cultural,
Patrimônio de Paranapiacaba.
conservação ambiental, turismo sustentável e participação cidadã.
A partir de 2002, com a compra da Vila pela prefeitura, foi possível
dar início ao paradigmático programa de Gestão do Desenvolvimento
3 A lei foi publicada no site do Ministério das Cidades, como “Boas Práticas”, em 2007 e apre-
Local Sustentável de Paranapiacaba, intensificando o processo de re- sentada na mesa sobre Instrumentos Urbanísticos para a Preservação do Patrimônio no I FORUM
NACIONAL DE PATRIMONIO, promovido pelo IPHAN em Ouro Preto, em 2009.

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A lei da ZEIPP zando 54 horas de trabalho, além de discussões específicas no âmbito
das equipes técnicas da prefeitura e dos cinco conselhos participantes.
A ZEIPP, lei 9.018/07 aprovada em 2007, é uma lei específica esta- O processo foi dividido em cinco etapas e a metodologia de trabalho
belecida pelo Plano Diretor 2004 de Santo André. Além de reconhecer utilizada foi a do planejamento estratégico situacional. A primeira eta-
as especificidades de Paranapiacaba e os desafios da gestão de um con- pa foi a de “Escuta”, cujo objetivo foi informar, sensibilizar e escutar os
junto urbano inserido em uma área ambientalmente sensível, com cerca principais problemas, anseios e sugestões quanto ao desenvolvimento e
de 500 imóveis tombados e uma população de 1500 habitantes, a lei preservação da Vila para os próximos dez anos. Na segunda etapa bus-
estabelece e articula diretrizes de preservação do patrimônio cultural cou-se a constituição dos “Elementos preliminares” da lei, com definição
com desenvolvimento urbano, ambiental, econômico e social. da sua estrutura, princípios, objetivos e diretrizes gerais. Na terceira
Desde o início da elaboração da lei alguns problemas estruturais etapa colocou-se a minuta do projeto de lei em debate na Comissão da
tiveram de ser enfrentados. O maior deles foi o de desenvolver uma lei ZEIPP e na quarta ampliou-se o debate para discussões específicas com
municipal atendendo às prerrogativas do Estatuto da Cidade, da legisla- os cinco conselhos envolvidos, dentre eles os três órgãos de preserva-
ção ambiental (nacional, estadual e municipal) e ao mesmo tempo dos ção do patrimônio. A quinta e última etapa foi reservada ao debate no
tombamentos nas três esferas de governo. legislativo municipal, que durou mais de um ano até a promulgação da
Esse complexo desafio exigiu a resolução de três grandes questões: lei em dezembro de 2007.
a construção de um novo arranjo institucional vertical que articulasse os A discussão da lei no âmbito dos três órgãos de preservação foi de
três níveis de governo no tocante à política de preservação do patrimô- fato uma questão complicada, pois a atuação independente e as com-
nio; a construção da interdisciplinariedade, com a finalidade de compor petências concorrentes de cada um geram diversos conflitos, com sérias
uma única lei que disciplinasse e integrasse as políticas de preservação, conseqüências sobre a preservação e gestão dos bens tombados.
planejamento urbano, meio ambiente e desenvolvimento; e, por fim, a No caso de Paranapiacaba, os conflitos começavam com as diferen-
constituição de um novo arcabouço jurídico que atendesse a todas es- ças de perímetro nos três tombamentos. Outra questão de extrema im-
sas questões. Soma-se ainda a esses desafios a busca pela participação portância, mas não exclusiva de Paranapiacaba, é que os tombamentos
qualificada da comunidade envolvida com as questões de Paranapiaca- no Brasil recorrentemente não estabelecem diretrizes para a preserva-
ba. ção e manejo dos bens, restringindo-se apenas a uma descrição e justi-
Assim, o primeiro passo para o início do processo de elaboração da ficativa de sua relevância cultural. A ausência de diretrizes pré-estabele-
lei foi promover a participação dos diversos atores e instituições: pre- cidas e pactuadas entre os órgãos levam freqüentemente a orientações
feitura; os três órgãos de preservação do patrimônio cultural (IPHAN, distintas, antitéticas e até personalizadas quando da aprovação de pro-
CONDEPHAAT e COMDEPHAAPASA); os conselhos municipais de po- jetos de intervenção, configurando uma atuação não institucionalizada.
lítica urbana e meio ambiente; universidades; entidades de classe e a Por outro lado, no debate conjunto com os órgãos de preservação
comunidade local. Devido à importância dessa lei e à complexidade da afloraram também problemas de ordem conceitual. A complexidade, a
integração desses atores, criou-se a “Comissão da ZEIPP” composta por confusão e os conflitos em torno dos conceitos praticados na área do
34 membros. Embora existissem diversos canais de participação local patrimônio era tamanha que foi necessária a pactuação de uma carta
em Paranapiacaba (Orçamento Participativo, Conselho de Representan- patrimonial para Paranapiacaba referenciada, obviamente, nas premis-
tes dos Moradores, Fórum de Empreendedores, Fórum de Monitores sas e diretrizes das cartas internacionais e nacionais, mas atendendo às
Ambientais e Culturais e a Comissão de Festejos), 50% das cadeiras da especificidades relativas à preservação de um conjunto urbano, patri-
Comissão da ZEIPP foram destinadas aos representantes da comunida- mônio industrial ferroviário, inserido em área de conservação ambiental
de residente na Vila. e compreendido como paisagem cultural.
A lei foi elaborada em oito meses, de novembro de 2005 a julho de Desta maneira, a lei foi organizada em sete títulos, começando pela
2006, quando ocorreram doze reuniões da Comissão da ZEIPP, totali- definição dos princípios, objetivos e conceitos.

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O plano estabelecido pela ZEIPP determina como princípios o de- O título segundo organizou as diretrizes para o desenvolvimento lo-
senvolvimento local sustentável e a gestão democrática e participativa, cal sustentável, orientando, sobretudo, a promoção e regulação da ativi-
também princípios do Plano Diretor de Santo André. O objetivo geral da dade turística na Vila. Resumidamente, as principais diretrizes consistem
lei é preservar e valorizar a paisagem cultural de Paranapiacaba, con- em: promover o desenvolvimento econômico compatível com ambiente
ciliando o desenvolvimento da atividade turística, com a conservação e e com o suporte de infra-estrutura urbana da Vila; promover e garantir a
sustentabilidade dos patrimônios edificado, natural e imaterial da vila ordenação e controle do uso do solo de forma a evitar a proximidade de
ferroviária. usos incompatíveis ou inconvenientes; incrementar e qualificar o uso de
Esta nova abordagem do patrimônio como “paisagem cultural” am- hotelaria; garantir o uso habitacional; promover a formação e qualifica-
plia significativamente o conceito de patrimônio cultural na medida em ção contínua da comunidade local; buscar alternativas de habitabilidade
que reúne e articula conceitos e objetos de diversos campos discipli- e usos compatíveis para os imóveis públicos; melhorar as condições de
nares. Sistematizado por órgãos internacionais, como a UNESCO e o acessibilidade e mobilidade urbana, respeitando as condições geomor-
Conselho de Ministros da Europa, na década de 90, a paisagem cultural fológicas do sítio histórico; propiciar a inclusão social e a geração de
congrega os vários aspectos do patrimônio (cultural, natural, ambiental trabalho e renda; realizar eventos culturais compatíveis com as diretri-
urbano, material e imaterial), frequentemente abordados e geridos se- zes do desenvolvimento local sustentável e de preservação da paisagem
paradamente, desconsiderando sua interdisciplinariedade. Costura con- cultural e garantir a segurança dos imóveis públicos através da implan-
ceitos de memória, história e cultura aos conceitos da geografia, sociolo- tação de medidas preventivas de combate a incêndio e segurança.
gia, antropologia, arqueologia, arquitetura, urbanismo e ecologia, pres- Com base nos objetivos e diretrizes enunciados o Poder Público
supondo a ação integrada do planejamento e gestão territoriais com as Municipal elaborou o Plano de Desenvolvimento Turístico Sustentável; o
políticas ambientais e sociais em suas dimensões culturais e econômicas Plano de Melhoria do Saneamento Ambiental; o Programa de Prevenção
(Recomendação R(95) do Conselho da Europa em 1995). e Combate ao Incêndio e o Projeto de Requalificação dos Sistemas de
Busca conjugar a política de preservação com o processo dinâmi- Energia Elétrica e Iluminação Pública. Paranapiacaba possui sistemas de
co de desenvolvimento das cidades, o que implica necessariamente em abastecimento de água, energia e iluminação pública implantados pela
não impedir as mudanças, mas em direcioná-las e, portanto, trabalha na São Paulo Railway no início do século XIX, com curioso posteamento
perspectiva do desenvolvimento sustentável (Ribeiro, 2007). em trilhos metálicos advindos da ferrovia que funcionam até hoje, mas
Ao compreender o conceito de paisagem cultural, a Comissão da precariamente, necessitando de atualização tecnológica e adequação às
ZEIPP percebeu que seria este a abordagem ideal para trabalhar Parana- normas legais vigentes. Foram três anos de discussão para aprovação
piacaba e seu modelo de gestão, visto que já se promovia a articulação de um projeto que atendesse às exigências dos órgãos de preservação,
entre diversas políticas setoriais dentro da estrutura descentralizada da do licenciamento ambiental e as normas de segurança da companhia
Subprefeitura. responsável pela provisão de energia elétrica.
O artigo quinto desse título define os conceitos de manutenção, No título terceiro foram criadas as diretrizes para a preservação da
adaptação, atualização tecnológica (retrofit), reparação, restauração, re- paisagem cultural de Paranapiacaba, suprindo a lacuna existente nos
qualificação urbana, dentre outros utilizados na lei, visando criar maior tombamentos e ao mesmo tempo pactuando normas para a preserva-
clareza na compreensão e aplicação da lei, mas, sobretudo, estabelecer ção e gestão do sítio reconhecido nas esferas nacional, estadual e muni-
procedimentos diferenciados de aprovação, desburocratizando e agili- cipal.
zando os processos a fim de garantir a efetiva preservação e gestão dos Dentro das diretrizes gerais, a ZEIPP propõe a divisão de Parana-
bens. (Pois a legislação vigente no Brasil estabelece o mesmo procedi- piacaba em quatro setores de planejamento urbano (Parte Alta, Parte
mento de aprovação tanto para uma intervenção simples de manuten- Baixa, Ferrovia e Rabique), identificando as características peculiares de
ção, como a troca de um vidro quebrado, quanto para a restauração situação fundiária e tipo de uso e ocupação urbana de cada área da Vila.
completa de bem).

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Imagem 3. Esquema de preservação das relações urbanas de construção da paisagem
cultural de Paranapiacaba. Desenho: Vanessa Figueiredo

A lei disciplina a comunicação visual ao ar livre e determina que os


anúncios permanentes deverão ser posicionados na frente dos imóveis
e ter, no máximo, 0,5 m² (meio metro quadrado), segundo modelos pré-
Imagem 2. Paranapiacaba: Vila Nova e Vila Velha, 2006. Fonte: LUME FAU USP/PMSA. apro­vados pela prefeitura e pelos órgãos de preservação. Esta diretriz
implica na confecção de publicidade padronizada, gerando uma unida-
Foram estabelecidas diretrizes específicas, como a criação dos de visual compatível com a paisagem cultural da Vila. Permite-se tam-
“Exemplares de Tipologias Residenciais”, superando a adoção dos níveis bém a colocação de cercamentos nos lotes (com padrão pré-definido);
de tombamento ou níveis de intervenção, compreendidos como uma de antenas parabólicas somente no recuo de fundo e de vegetação que
gradação hierárquica incoerente à concepção de paisagem cultural. As- possibilite a visualização da edificação e não prejudique sua estabilida-
sim, edificações representativas de cada tipologia arquitetônica foram de estrutural.
selecionadas, com o objetivo de destacar o valor documental e cognitivo Embora os diagnósticos apontassem que menos de 30% dos imó-
do projeto ou construção original e, por isso, destiná-las à visitação pú- veis possuíam cobertura para automóveis dentro dos lotes, essa tornou-
blica. -se uma das questões mais polêmicas junto à comunidade. Todavia, nes-
Para os demais imóveis as intervenções de ampliação funcional são se caso, a proibição da cobertura refletiu o prevalecimento do direito
permitidas, entretanto devem respeitar as relações urbanas entre cheios difuso da maioria à fruição da paisagem da Vila ao direito individual de
e vazios (áreas construídas e espaços livres), configurados pelo padrão algum poucos moradores em ter seus carros cobertos.
urbanístico da Vila, preservando a relação entre os recuos, o corpo prin- Outra questão muito discutida foi a definição de cores para as edifi-
cipal da edificação, o quintal, o sanitário ao fundo do lote e a viela sani- cações. A lei determina que as casas devem permanecer pintadas para
tária ao meio da quadra. Isto é, para os imóveis que têm originalmente manter a proteção contra as intempéries. As edificações em madeira
os banheiros fora da casa será permitida a ampliação, desde que esta devem ser pintadas na cor marrom já existente e uma eventual altera-
não junte o corpo principal do imóvel ao anexo do sanitário ao fundo e ção deverá ser aprovada mediante projeto de prospecção e justificativa.
não ocupe os recuos frontais e laterais. As casas em alvenaria deverão manter as cores claras em três opções:
branco, creme ou amarelo.

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Já as intervenções internas deverão orientar-se pela distribuição es- O quarto título estabeleceu os parâmetros urbanísticos para a orde-
pacial e circulação existentes, pressupondo o uso compatível da edifica- nação do uso e ocupação do solo, do sistema viário e a redefinição dos
ção. níveis de incomodidade por emissão sonora.
Nesse título foram criados ainda o “Manual de Diretrizes e Proce- A ZEIPP reorganizou o uso do solo com o objetivo de promover o
dimentos para Intervenção no Conjunto Edificado de Paranapiacaba” e desenvolvimento sustentável, compatibilizando as atividades turísticas
o “Manual de Áreas Verdes e Paisagismo” que, por seu detalhamento, com a preservação do patrimônio e a manutenção da qualidade de vida
foram regulamentados posteriormente. O primeiro manual decorreu de da população residente. Por isso foi criado um zoneamento com o obje-
quatro anos de pesquisa financiada pela FAPESP e a Fundação Santo tivo de minimizar os conflitos de vizinhança, ou seja, evitar que ativida-
André e foi concluído em 2008. O Manual de áreas verdes foi concluído des incompatíveis ou inconvenientes estivessem próximas.
em 2009. No Setor da Parte Baixa, onde estão 334 imóveis de propriedade pú-
A ZEIPP propõe também a criação do Banco de Materiais, cujo ob- blica, foram criadas zonas onde se conserva o uso residencial e ambien-
jetivo é constituir um estoque centralizado para reposição de materiais e tal e zonas onde se estimula a atividade comercial e turística, através
elementos construtivos específicos para cada tipologia arquitetônica em das seguintes “Áreas de Uso do Solo”, conforme mapa a seguir: Área
madeira de Paranapiacaba. Com base nos manuais, os desenhos especí- Predominantemente Residencial; Área Predominantemente Comercial;
ficos para portas, janelas, mãos francesas, cercamentos e guarda-corpos Área de Transição do Parque; Área de Serviços Diferenciados e Área de
são fabricados pela Cooperativa de Marcenaria, criada em 2007 e com- Atividades Noturnas.
posta por moradores capacitados nos cursos oferecidos pela prefeitura.

Imagem 5. Paranapiacaba: Zoneamento. Mapa: Vanessa Figueiredo. Fonte: Lei da ZEI-


PP, 2007.

O zoneamento proposto trabalha com predominância de usos, con-


trolando e estimulando esta predominância por meio da regulação de
estoque das edificações disponíveis em cada área. Enquanto na Área
Predominantemente Residencial as categorias de uso não-residencial
Imagem 4. Cooperativa de Marcenaria, Oficina do Banco de Materiais e Restauro das e misto são permitidas até atingir 20% dos lotes disponíveis, na Área
Casas Tipo E-CDARQ. Fonte: LIMA, G. et al, 2008. Fotos: Gilson Lameira de Lima Predominantemente Comercial o uso não-residencial é permitido até o

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estoque máximo de 60%. Desta maneira, o zoneamento garante uma O Setor da Parte Alta, com casario implantado seguindo o mode-
mistura de uso nas zonas evitando ao mesmo tempo a existência de lo colonial português, configura-se por um tipo de ocupação urbana
zonas de uso exclusivo e a incomodidade pela proximidade de usos in- mais homogênea e, por isso, não foi necessária sua subdivisão. Nele
compatíveis. Ademais, ainda fixa uma reserva para uso residencial cor- são permitidos os usos residencial, não-residencial e misto, mantendo
respondente a 50% dos imóveis da Parte Baixa, garantindo a presença a característica histórica de ocupação, com sobrados de uso comercial
das habitações, uso importante para manter uma dinâmica urbana sau- no térreo e habitacional acima. Lembrando que a legislação ambiental
dável e imprescindível para a preservação da vila ferroviária e de sua vigente à época não permitia o uso misto no lote, constituindo um ponto
economia baseada no turismo de base comunitária. de conflito entre as diretrizes de conservação ambiental e as de preser-
A Área de Transição do Parque Natural Nascentes de Paranapiacaba vação do patrimônio.
corresponde a uma faixa de 50 metros do fim dos lotes até o começo O Setor da Ferrovia corresponde ao pátio ferroviário sob conces-
da Unidade de Conservação, onde proibe-se o uso habitacional e per- são da MRS Logística onde são permitidos apenas usos relacionados
mitem-se apenas os usos ambientalmente compatíveis, como camping e ao transporte ferroviário e ao comércio e serviços de apoio ao turismo,
estufas vegetais. visto que nessa área há edificações ferroviárias e espaços expositivos de
A Área de Serviços Diferenciados dispõe de apenas nove edificações interesse cultural e uso turístico.
localizadas em uma pequena colina onde está o Hospital Velho. Nesta O Setor do Rabique, localizado entre a via férrea e a rodovia, é uma
área estimulam-se usos de apoio ao turismo, mas que requerem baixa área imprópria a urbanização devido aos problemas de acessibilidade e
incomodidade, como hotelaria, arte, artesanato e prestação de serviços à alta declividade que representa risco geotécnico de deslizamentos. A
especiais relacionados ao condicionamento ou relaxamento físico, men- pequena população que ocupou irregularmente a área deverá ser remo-
tal ou espiritual, como spas, clínica médica, psicológica, psiquiátrica ou vida e por isso o zoneamento não permite o uso habitacional, apenas os
tratamentos de saúde alternativos. usos relacionados à recuperação ambiental da encosta.
Na Área de Atividades Noturnas os níveis de incomodidade por Nesse título são definidas ainda as taxas de permeabilidade dos lo-
emissão sonora são mais permissivos visando manter e estimular os tes e o gabarito máximo de oito metros ou dois pavimentos, com possi-
usos de comércio e serviços relacionados ao turismo, lazer e alimenta- bilidade de outorga onerosa até dez metros ou três pavimentos, somen-
ção estendidos até o períodos noturno. O único uso não permitido nesta te no Setor da Ferrovia (para o caso de novas instalações industriais),
área é o de hotelaria, por exigir baixa incomodidade. sempre mediante prévia aprovação dos órgãos de preservação.
A ZEIPP promove também a regularização urbanística da Parte Bai-
xa da Vila, área de propriedade da prefeitura, definindo os limites entre
os lotes. A área planejada da Vila Nova apresenta terrenos já definidos,
mas a Vila Velha e a área de transição entre as casas e o Parque não
tinham delimitação definida, gerando diversos conflitos de utilização
entre os moradores e invasões da Unidade de Conservação. A lei indi-
ca também a necessidade da regularização fundiária do Setor da Parte
Alta, área com propriedades privadas e terras devolutas.
Para organizar o fluxo de veículos e pedestres o Plano da ZEIPP esta-
Imagem 6. Pa- belece uma hierarquização do sistema viário, com definição de três tipos
ranapiacaba: de vias: Vias de Acesso Liberado, onde a circulação de veículos e pedes-
Parte Alta. Foto: tres é liberada; Vias de Acesso Restrito, onde é permitida apenas a cir-
Vanessa Figuei- culação de veículos de moradores e de prestação de serviços públicos;
redo, 2006. e Vias de Acesso de Pedestres, onde não é permitida a circulação de

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veículos automotores. As vias exclusivas para pedestres concentram-se Para incentivar a preservação da paisagem cultural, a lei garante o
na Vila Velha, que foi o acampamento inicial dos ferroviários, constituin- direito de assistência técnica gratuita àqueles que comprovarem a im-
do o primeiro núcleo de povoamento caracterizado por uma ocupação possibilidade de arcar com custos de elaboração de projetos ou orienta-
urbana irregular, com vias estreitas sem pavimentação. Neste caso, a ções técnicas para fins de preservação do patrimônio. Cria ainda bene-
ordenação do sistema viário foi imprescindível para preservar os espa- fícios fiscais para aqueles que realizarem ações de conservação, desde
ços urbanos de circulação historicamente definidos. A lei também pro- que orientadas e aprovadas pelo Poder Público Municipal e pelos ór-
moveu a regularização dos logradouros, com correção da toponímia de gãos de defesa do patrimônio. Para os permissionários da Parte Baixa,
ruas, praças, largos e vielas e criação de vias ainda sem denominação. onde estão os imóveis púbicos, os materiais investidos em manutenção
O título quinto trata dos instrumentos e incentivos para a preserva- e demais intervenções poderiam ser descontados da contraprestação,
ção da paisagem cultural de Paranapiacaba. Devido às especificidades desde que as reformas estivem em conformidade com os projetos apro-
relativas ao campo da preservação do patrimônio e ao caso de Para- vados. Para os moradores da Parte Alta, onde os imóveis são privados,
napiacaba, alguns instrumentos previstos no Estatuto da Cidade e no há a possibilidade de descontos no IPTU Imposto Predial e Territorial
Plano Diretor de Santo André foram adaptados e novos instrumentos Urbano.
foram criados, como: o Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV; a Outor- Estas ações, já praticadas pela Subprefeitura desde 2002, tinham a
ga Onerosa do Direito de Construir; a Assistência técnica gratuita para finalidade de fazer com que a comunidade se habituasse a conservar os
fins de preservação e conservação; Incentivos e benefícios fiscais; Incen- imóveis e, ao mesmo tempo, aprovar as reformas nas instâncias com-
tivos para benfeitorias nos bens imóveis; a Cessão de imóveis públicos; petentes gerando maior controle de fiscalização sobre as intervenções
a Dação de bens imóveis em pagamento de dívidas e a Compensação executadas. A intenção de colocá-los em lei foi garantir a instituciona-
Patrimonial. lização desses direitos, ou seja, que eles constituissem uma política de
O Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV) é o instrumento utilizado Estado e não se restringissem apenas a uma política de Governo.
para análise e aprovação de atividades ou empreendimentos de impac- A lei também consolida outra prática já adotada pela prefeitura.
to, públicos ou privados, que possam vir a causar alterações significati- Trata-se da possibilidade de ceder, a título precário ou oneroso, através
vas na paisagem cultural ou nas relações sociais, sobrecarga na capaci- de concorrência pública, o uso dos imóveis públicos para fins residen-
dade de infra-estrutura urbana e deterioração da qualidade de vida da ciais, não-residenciais ou mistos, atividades culturais diversas, exposi-
população. Previamente, A ZEIPP estabelece como de impacto alguns ções temporárias, dentre outros usos. Para o uso residencial utiliza-se a
empreendimentos, como: estações de tratamento; estações de radioco- permissão de uso de cinco anos, renováveis, por meio de chamamento
municações; cemitérios; complexos esportivos; clubes recreativos; es- público. Já para o uso comercial, de serviços ou misto, que envolve a
tacionamentos acima de vinte vagas e novas construções com gabarito obtenção de lucros a partir de atividades econômicas, a lei instituiu a
acima de 8 metros ou área construída acima de 200 metros quadrados. concessão do direito real de uso de vinte anos, renováveis por igual pe-
Ademais, quando se julgar necessário, o EIV poderá ser exigido para ríodo, por meio de licitação pública. Todos os casos de usos permanen-
outros empreendimentos não previsto na lei. tes eram onerosos e no contrato estava previsto o investimento mínimo
A outorga onerosa do Direito de Construir, mediante contrapartida necessário para a conservação ou recuperação das edificações.
financeira, poderá ser aprovada apenas no Setor da Ferrovia, conforme Um novo e polêmico instrumento, ainda não praticado no campo da
os índices pré-estabelecidos, no entanto poderá ser negada pelo Con- preservação no Brasil, foi criado pela ZEIPP: a compensação patrimonial.
selho Municipal de Política Urbana, caso se verifique a possibilidade de A intenção é promover compensações econômicas, sociais e culturais
impacto não suportável pela infra-estrutura ou o risco de comprome- de empreendimentos ou projetos de intervenção aprovados pela pre-
timento da paisagem cultural. É importante ressaltar que o direito da feitura e órgãos de preservação, tal como se pratica na área ambiental.
outorga não interfere no processo de aprovação no âmbito dos órgãos Esta idéia surgiu a partir da discussão sobre os impactos ambientais do
responsáveis pela preservação e pelo licenciamento ambiental. projeto do TCLD – Transporte de Correia de Longa Distância, proposto

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pela MRS Logística, concessionária que administra o transporte de carga Ademais, para o controle de utilização, aprovações e fiscalização, a
no trecho de Paranapiacaba. Como o empreendimento estava em área Subprefeitura criou o Banco de Dados de Gestão do Patrimônio Cultu-
ambientalmente protegida, o processo de licenciamento exigia a com- ral, um sistema totalmente informatizado, articulando informações do
pensação ambiental dos danos e interferências causadas sobre o meio inventário arquitetônico, com o cadastro sócio-econômico da população
ambiente, visto prioritariamente com foco sobre o ambiente natural. No e informações administrativo-financeiras, como as intervenções aprova-
entanto, para avaliação e possíveis compensações dos impactos sobre das e executadas, infrações cometidas, pagamento das contrapresta-
o patrimônio ferroviário da São Paulo Railway não haviam instrumentos ções, descontos e benefícios concedidos ao permissionário, registrando
específicos e adequados. Todos os órgãos envolvidos, inclusive os de toda a história de uso dos imóveis tombados.
patrimônio, aprovaram o estudo preliminar para a implantação do TCLD Neste título é estabelecido o sistema de acompanhamento e gestão
sobre a linha desativada do segundo sistema funicular, compreendendo do plano da ZEIPP, exigidos pelo Estatuto da Cidade. Mesmo com todo
a necessidade econômica e as externalidades urbanas positivas de pro- o aparato institucional de participação já em funcionamento, julgou-se
mover a logística ferroviária do transporte de cargas. Ademais, a melhor necessária, pela importância desta lei, criar um organismo específico:
maneira de recuperar o funicular desativado e em adiantado processo o Fórum de Paranapiacaba, que institucionaliza a Comissão da ZEIPP,
de ruína é promover sua atualização tecnológica, procedimento inerente responsável pela elaboração da lei, com participação da prefeitura, con-
aos sistemas industriais e, portanto, questão essencial para a preserva- selhos de política urbana e meio ambiente, órgãos de preservação, uni-
ção e utilização do patrimônio industrial. Partindo destas premissas e versidades, entidades de classe e da comunidade local. Este Fórum foi
da aprovação pelos órgãos competentes, tal empreendimento estaria regulamentado em 2008 através de decreto municipal.
sujeito à avaliação específica pelo Estudo de Impacto de Vizinhança e
a uma compensação que pudesse gerar a recuperação de todo o patri-
mônio edificado no trecho do empreendimento, inclusive daqueles não Considerações Finais
afetados diretamente, bem como em minimizar as eventuais interferên-
cias causadas sobre a dinâmica urbana e a paisagem cultural de Para- Por disciplinar de maneira integrada uma grande quantidade e di-
napiacaba. No entanto, o empreendimento foi abortado por questões versidade de temas, geralmente normatizados em leis específicas e seto-
orçamentárias e os instrumentos não puderam ser aplicados. Por outro riais, a Zona Especial de Interesse do Patrimônio de Paranapiacaba vem
lado, a compensação patrimonial ainda aguarda sua regulamentação sendo considerada pelos órgãos de preservação do patrimônio, como
para poder ser testada. o IPHAN, e pelo Ministério das Cidades um instrumento inovador e um
Por fim, o título sexto dispõe sobre a gestão de Paranapiacaba, esta- caso exemplar a ser acompanhado.
belecendo critérios para o uso dos espaços livres, dos imóveis públicos A lei da ZEIPP de fato representou um instrumento de grande avan-
e da imagem da Vila, bem como para autorização de obras e atividades ço na articulação interdisciplinar entre as políticas de preservação do
econômicas. Cria também um rigoroso e preciso sistema de fiscalização, patrimônio abordado como “paisagem cultural”, e as políticas de de-
infrações e penalidades, imprescindível para a preservação do patrimô- senvolvimento urbano, econômico, social e ambiental. No entanto, não
nio, visto que os órgãos responsáveis não dispõem de instrumentos re- é possível isolar o processo de elaboração e implementação de uma lei
gulamentados para penalizar infrações cometidas. tão avançada como essa da existência de uma estrutura administrativa
Na ZEIPP constitui infração qualquer ação que descumpra a legis- descentralizada e interdisciplinar de gestão já instalada (a Subprefeitu-
lação, tais como depredação e descaracterização da paisagem cultural ra) e de um projeto de desenvolvimento local sustentável também em
ou execução de intervenções em desconformidade com as autorizações. andamento.
As infrações são classificadas em leves, graves e gravíssimas, de acordo Se por um lado é notável o próprio avanço dos instrumentos urba-
com a intensidade e reversibilidade do dano, a reincidência de infração, nísticos brasileiros regulamentados pelo Estatuto da Cidade, por outro,
o não cumprimento de normas técnicas ou administrativas. os estudos realizados nestes dez primeiros anos revelam sua pouca uti-

798 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 799
lização ou a utilização genérica, com a definição dos instrumentos na cal devem ser encampados em nível federal por meio da construção
redação da lei, mas sem a demarcação de áreas da cidade para sua de um sistema nacional de patrimônio que possibilite a ação integrada,
utilização ou mesmo a necessidade de leis complementares para sua complementar e co-responsável entre as instituições nos níveis federal,
aplicação (MONTANDON et al, 2011). estadual e municipal.
No caso de Paranapicaba, já havia um sistema de gestão e um pro- Por fim, é importante considerar que a partir de 2009, devido à
jeto de desenvolvimento em curso. Diversos artigos presentes na Lei da descontinuidade ocorrida na troca de governo da administração muni-
ZEIPP, como o novo zoneamento, o banco de materiais, a cooperativa cipal, houve uma desarticulação da gestão local em função, sobretudo,
de restauro, os inventários e os sistemas de participação e gestão do da extinção da Subprefeitura. No entanto, a lei da ZEIPP, embora com
patrimônio público já estavam em implantação e a lei foi uma forma de maior morosidade em sua aplicação, parece ter sobrevivido como o úni-
institucionalizar diretrizes, normas e procedimentos detalhando-os e, in- co instrumento capaz de garantir minimamente a continuidade do plano
clusive, aperfeiçoando-os, como foi o caso dos sistemas de fiscalização, de desenvolvimento urbano e ambiental, bem como a preservação da
infrações e penalidades, sistemas muito frágeis no âmbito dos órgãos de paisagem cultural. O sucesso da legislação urbanística, portanto, está
preservação do patrimônio cultural. evidentemente ligado à sua estrutura de gestão e à vontade política dos
A lei é, em sua maior parte, auto-aplicável. Apenas alguns artigos e dirigentes eleitos. E, mesmo diante dos atropelos, vale lembrar que faz
instrumentos necessitam de regulamentação por meio de decretos que parte do processo democrático a interrupção e a continuidade, assim
institucionalizem os procedimentos de aplicação, como a Compensação como as prioridades eleitas a cada governo. Nesse jogo, estamos ape-
Patrimonial e o Fórum, ou instruções normativas e planos, detalhando nas começando, afinal nossa democracia é tão juvenil, quanto nosso
informações técnicas, como é o caso dos manuais e planos de sanea- infante Estatuto da Cidade.
mento, energia e iluminação pública.
No que tange especificamente à política de preservação do pa-
trimônio, a ZEIPP representa uma conquista, tanto conceitual quanto REFERÊNCIAS
instrumental e de gestão: a abordagem integrada dos diversos patri-
mônios. Compreendida como “paisagem cultural” (articulação entre os CHIAS, Marketing. Plano Patrimônio de Paranapiacaba. Santo André: Prefeitu-
aspectos culturais, naturais, materiais e imateriais), a Vila Ferroviária de ra de Santo André, 2003.
Paranapiacaba recebeu, através desta lei, um conjunto de diretrizes e FERREIRA, João, PASSARELLI, Silvia, SANTOS, Marco Antonio Perrone. Pa-
parâmetros urbanísticos e ambientais específicos à sua realidade, mas ranapiacaba – estudos e memória. Santo André: Prefeitura de Santo André,
articulados entre si, contribuindo para a institucionalização de uma po- 1990.
lítica adequada a um conjunto urbano de edificações em madeira, do LIMA, G.; AZEVEDO, M; PASSARELLI, S. Diretrizes e Procedimentos para a Re-
período da primeira industrialização, inserido em área ambientalmente cuperação do Patrimônio Habitacional em Madeira na Vila Histórica de Parana-
sensível, como a área de mananciais andreense, com forte presença de piacaba. Relatórios de Pesquisa FAPESP/Fundação Santo André/PMSA, 2008.
mata atlântica preservada. MONTANDON, Daniel T. e SANTOS JR, Orlando A. (orgs.). Os Planos Diretores
Embora seja uma experiência pontual, a lei municipal possibilitou a Municipais Pós-Estatuto das Cidades: balanço crítico e perspectivas. Rio de
elaboração, pactuação e institucionalização de diretrizes para a preser- Janeiro: LetraCapital: Observatório das Cidades: IPPUR/UFRJ,2011.
vação sustentável de Paranapiacaba entre os órgãos responsáveis pelo PMSA, Memorial da ZEIPP - Zona Especial de Interesse do Patrimônio de Para-
tombamento nas três esferas de governo, que comprometeram-se a in- napiacaba. Santo André. Prefeitura de Santo André, 2005.
corporar e validar juridicamente a normatização criada na lei 9.018/07 PMSA, Sumário de Dados de Paranapiacaba e Pq. Andreense. Santo André.
por meio de portarias ou inclusão nos processos de tombamento de Prefeitura de Santo André, 2008.
cada instância. Todavia, ainda não o fizeram, exceto o órgão municipal PMSA, Plano de Desenvolvimento Turístico Sustentável de Paranapiacaba. San-
(CONDEPHAAPASA), pois os desafios desse arranjo institucional verti- to André. Prefeitura de Santo André, 2008.

800 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 801
Ribeiro, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Rio de Janeiro: IPHAN/
COPEDOC, 2007.
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
CAPÍTULO VIII

O Judiciário Diante da Nova


Ordem Jurídico-Urbanística

802 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Da construção à ressignificação
dos espaços: um elo entre o direito
urbanístico e a justiça de transição
Christine Rondon Teixeira1

Resumo: O processo de redemocratização do Brasil, ini-


ciado com o término da ditadura civil-militar ocorrida entre
1964 e 1985, ainda não está concluso. Nossa incipiente
democracia carrega consigo fortes traços do autoritarismo e
da violência do Estado que ainda permeiam nossas institui-
ções oficiais e perseguem as vítimas de perseguições políti-
cas perpetradas ao longo de todos estes anos. Para efetiva
superação deste legado repressor, a Justiça de Transição
conta com um importante papel do Direito Urbanístico: o
de buscar formas de efetivar o direito à cidade através do
cumprimento de suas funções sociais, em atenção ao amplo
rol de direitos abarcados por este princípio. Neste ponto,
a construção e a (res)significação dos espaços são meios
fundamentais para a efetivação do direito à memória e à
verdade, que é correlato às funções sociais das cidades e,
assim, possui o condão de aproximar os objetivos do Direito
Urbanístico com os objetivos da Justiça de Transição.
Palavras-chave: direito urbanístico; justiça de transição; direito
à memória e à verdade; funções sociais das cidades; espaços.

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto de uma reflexão sobre as possíveis relações exis-


tentes entre o Direito Urbanístico e a Justiça de Transição. Das possi-
bilidades verificadas, coube ao presente estudo aproximar o direito à
cidade, compreendido como uma das principais vertentes do Direito
Urbanístico, com a ressignificação dos espaços, doravante defendida
como uma fonte de fornecimento da verdade e de construção de uma
memória histórica, que é um dos papéis da justiça transicional.
Para tanto, será necessário tecer breves considerações sobre estes
dois grandes campos, demonstrando que, apesar de ocuparem lugares
1 graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUC-RS e integrante da ONG Acesso Cidadania
e Direitos Humanos

804 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 805
diferentes nas páginas dos livros de direito, história e arquitetura, eles A experimentação do lugar passa também pela simbologia dos es-
se sobrepõem e permeiam diversas outras áreas do conhecimento, de paços construídos e/ou nominados em memória de algo ou de alguém.
forma transdisciplinar e interdependente. A exemplo, vê-se que não é E aqui chegamos a uma das principais conclusões que se pretende cons-
possível pensar a construção dos espaços sem considerar, em suas di- truir: os nomes dos logradouros, das praças, das estátuas e dos mo-
mensões econômicas e sociais, o sistema geral sobre o qual serão alicer- numentos são partes tão integrantes das cidades quanto as estruturas
çadas as estruturas físicas e simbólicas do lugar. Da mesma forma, não é físicas que lhes dão concretude física. O cimento de suas formações não
possível pensar a ressignificação dos espaços sem considerar as cidades é mais sólido do que a memória que evocam.
sob seus prismas jurídicos e arquitetônicos. Doravante, se compreendermos que o direito à cidade abarca uma
Dos esclarecimentos a seguir desenvolvidos, cumpre antecipar, em série de outros direitos exercíveis em seu bojo, incluindo o direito à me-
linhas gerais, que a Justiça de Transição, a partir do recorte histórico da mória, veremos que a construção e a ressignificação dos espaços não
ditadura civil-militar brasileira vigente entre 1964 e 1965, é responsá- podem ser pensadas de forma dissociada dos objetivos da Justiça de
vel pelo processo de redemocratização do país. Aos que pensam tra­ Transição. No contrário, estaríamos diante de um verdadeiro obstáculo
tar-se de algo distante de nossa realidade atual, vale advertir que a inci- à consolidação de nossa democracia e, por corolário, da concretização
piente democracia brasileira tem suas raízes cravadas no regime militar. do Estado Social e Democrático de Direito.
Nossa cultura e instituições oficiais ainda bebem do restolho autoritário A partir deste panorama, objetiva-se trazer maiores esclarecimentos
e repressivo do período ditatorial, de modo que ainda hoje existem per- sobre estes dois grandes temas que se misturam – o Direito Urbanístico
seguidos políticos e repressão oficial. e a Justiça de Transição – e, uma vez fortalecido este elo anamnético
A par disso, importa referir que a Justiça de Transição possui quatro entre eles, fomentar maiores discussões sobre as medidas tendentes
grandes dimensões políticas: a) a promoção da reparação às vítimas; b) a à efetivação do direito à cidade e à concretização da quarta dimensão
regularização das funções da justiça e re-estabelecimento da igualdade pe- política da justiça transicional.
rante a lei; c) a reforma das instituições perpetradoras de violações contra
os direitos humanos e, por fim, d) o fornecimento da verdade e construção
da memória. Esta quarta dimensão, que evoca a verdade e a memória, pas- A JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E O DIREITO À MEMÓRIA
sa a ter especial destaque em nossos estudos, precisamente porque será
através dela que analisaremos a sobreposição da justiça transicional com o Grande parte dos esforços engendrados no sentido de trazer luz ao
Direito Urbanístico, sendo este abordado a partir do direito à cidade. período de trevas pelo qual passamos entre 1964 e 1985 - levando a
Antecipa-se também que o direito à cidade, por seu turno, será abor- público os fatos, os documentos e a localização dos corpos das vítimas
dado sob dois aspectos: o da “produção capitalista do espaço”, no sentido do regime civil-militar brasileiro - vêm sendo taxados de revanchistas.
dos estudos desenvolvidos por David Harvey em livro que leva o mesmo Inobstante às graves violações de direitos humanos cometidas na épo-
título, e o das funções sociais das cidades, compreendidas não apenas ca, o que mais chama a atenção é a repercussão negativa que o levanta-
pelo viés de equânime acesso aos direitos exercíveis no espaço urbano, mento destes fatos vem tendo junto à opinião pública brasileira, o que já
mas especialmente na dimensão mais abstrata dos efeitos do lugar. demonstra a necessidade de ampliação dos debates referentes à Justiça
São os efeitos simbólicos do lugar que nos permitirão a aproxima- de Transição e ao direito à memória e à verdade.
ção desejada, vez que, não raro, os espaços estão impregnados de me- Não foram poucos os que acusaram os estudiosos e os militantes
mória, memória esta que pode tanto servir para perpetrar certa cultura em defesa da consolidação de nossa democracia de passadistas. Neste
autoritária, quanto para auxiliar na consolidação de uma nova ordem. ponto, é mais do que oportuna a contundente a resposta oferecida por
Assim, um dos muitos efeitos que o lugar produz sobre as pessoas diz Maria Rita Kehel:
respeito aos próprios objetivos da Justiça de Transição, na medida em
que os lugares podem remeter a certo período ou postura humana. O Brasil é passadista sim. Não por culpa dos poucos que ainda lu-
tam para terminar de vez com as mazelas herdadas de 21 anos de
806 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 807
ditadura militar. É passadista porque teme romper com o passado. A possibilitará a efetivação do direito à verdade. Nas palavras de Paulo
complacência e o descaso com a política nos impedem de seguir em Abrão e Marcelo Torelly:
frente. Em frente. Livres das irregularidades, dos abusos e da conivên-
cia silenciosa com a parcela ilegal e criminosa que ainda toleramos, Talvez, através da Comissão da Verdade seja possível a efetivação do di-
dentro de nosso Estado frouxamente democratizado2. reito pleno à verdade histórica, com a apuração, localização e abertura
dos arquivos específicos dos centros de investigação e repressão ligados
Nossa frouxa democratização se expressa também através da passi- diretamente aos centros de comandos militares: o CISA (Centro de Infor-
vidade do povo que, sem ter acesso a informações concretas da época mações de Segurança da Aeronáutica); e CIE (Centro de Informações do
Exército) e o CENIMAR (Centro de Informações da Marinha). Para que,
ditatorial, é constantemente bombardeado por narrativas que vinculam
assim, sejam identificadas e tornadas públicas as estruturas utilizadas
nossos medos e insatisfações às causas mais rasas e imediatas, ou, pior para a prática de violações aos direitos humanos, suas ramificações nos
que isso, tratam de heroificar os agentes repressores. Não é segredo diversos aparelhos de Estados e outras instâncias da sociedade, e sejam
que até hoje os quartéis comemoram anualmente a “revolução de 64”, discriminadas as práticas de tortura, morte e desaparecimento, para en-
orgulhando-se de seus feitos em defesa da ordem e do progresso. Não caminhamento das informações aos órgãos competentes3.
são raras também as avenidas “Castelo Branco”, as praças “Geisel” e
os monumentos públicos erguidos para homenagear, quase que saudo- Nós, brasileiros, não conhecemos as engrenagens da ditadura. Ao
samente, os ditadores de ontem, que parecem estar vivos no cimento contrário dos nossos vizinhos argentinos, que instauraram a Comissão
destas construções, como se a qualquer momento pudessem voltar e Nacional de Inquérito sobre os Desaparecidos e elaboraram o relató-
subverter nossa ordem para tornar-nos subversivos. rio “Nunca Mas”, acessível a toda população4, nós não temos idéia de
Os veículos de comunicação e os espaços públicos cumprem, pois, como funcionava o aparelho repressor do Estado. A prevalência de uma
importante papel no processo de alienação e pacificação da sociedade. história oficial, que ignora as graves violações de direitos que ainda lan-
A exemplo, com inacreditável inventividade e desfaçatez, o Deputado çam seus efeitos em nossa sociedade e instituições, nos anestesia e nos
Federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) encontrou espaço na Folha de São Paulo, impede de compreender a importância das medidas transicionais.
jornal de grande circulação, para afirmar que os guerrilheiros do Ara- Percebe-se que quanto mais nos afastamos temporalmente dos fa-
guaia foram oportunamente vencidos, “evitando-se que hoje, a exemplo tos históricos que compuseram o quadro brasileiro de 64 a 85, mais
da Colômbia, tivéssemos organizações como as FARC (Forças Armadas turva fica a memória coletiva da repressão e mais difícil parece ser a
Revolucionárias da Colômbia) atuando no coração do Brasil”. Ao que missão de correlacionar os problemas de nossa democracia inconclusa
parece, fizeram-nos um favor ao massacrar os opositores da ditadura. com a ausência de uma efetiva Justiça de Transição. É certo que a repre-
Não se pretende abrir espaço para discutir no presente artigo os limites sentação coletiva do tempo se dá de acordo com as condições e hábitos
da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão. Contudo, é necessário de determinados grupos5. É igualmente constatável que tais hábitos e
considerar que esta mesma população não possui acesso aos documentos condições se relacionam com o espaço físico de forma tão estreita quan-
históricos do período ditatorial para que, através de sua análise, cheguem às to a memória se relaciona com o lugar.
suas próprias conclusões. A falta de informação traz confusões comuns que O papel que as imagens espaciais desempenham na memória co-
impossibilitam a qualificação dos debates referentes à justiça de Transição. letiva é explicado por Maurice Halbwachs através da relação existente
Por exemplo, inobstante às inúmeras críticas decoradas pelos opo-
sitores com relação à instauração de uma Comissão da Verdade, parece 3 ABRÃO, Paulo; TORELLY, Marcelo D. Justiça de Transição no Brasil: a dimensão da reparação.
In: SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília Macdwell; TORELLY, Marcelo
estar pouco claro à população qual é o verdadeiro objetivo desta Co- (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Gua-
missão. Não se trata de revanchismo. Não se trata de uma comissão de temala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal:
Justiça para julgamento daqueles que cometeram crimes em nome do Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 39.
4 GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar. Para uma Justiça Inter-
estado na época da ditadura. Cuida-se, isso sim, de um instrumento que
nacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. p. 215.
2 KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de maio de 2010. 5 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 114.

808 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 809
entre as pedras e os homens. A representação do lugar se alicerça no nosso estado democrático e social de direito passa pela compreensão de
fato de que não há memória coletiva que não aconteça em um contexto que nossa democracia está em pleno processo de construção e se encontra
espacial. Nas exatas palavras de Halbwachs: profundamente contaminada pela herança de nosso regime civil militar.
Tendo o espaço físico papel fundamental neste resgate de memória
[...] o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem e na disputa pela história real – que vem sendo reiteradamente negada
umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreende- ao povo brasileiro através, principalmente, da ocultação dos arquivos
ríamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse con- históricos da ditadura militar – cabe ao Direito Urbanístico protagonizar
servado no ambiente material que nos circunda. É ao espaço, ao nosso os debates referentes ao papel dos espaços públicos neste processo. Se
espaço – espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a
é a partir da cidade que grande parte do povo exerce seus direitos e sua
que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imagina-
ção ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que
cidadania, é também através dela que os grupos sociais desenvolvem
devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamente tem de sua consciência acerca do passado e definem suas posturas futuras, seja
se fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça.6 no sentido de manutenção do estado de coisas vigente, seja no sentido
de transformação desta realidade.
Estando o espaço impregnado de memória e de dispositivos para
reativação de determinadas categorias de lembranças, é fato que os sig-
nos do lugar desempenharão importante papel na manutenção ou alte- O DIREITO URBANÍSTICO E AS FUNÇÕES
ração do estado de coisas existente, influenciando no comportamento SOCIAIS DAS CIDADES
dos grupos sociais que experimentam o contato com estas representa-
ções materiais. A representação física tendente a homenagear persona- Dentre os objetivos das políticas de desenvolvimento urbano, nossa
lidades responsáveis por crimes de Estado é uma forma de perpetrar a Constituição Federal de 1988 trouxe, em seu artigo 182, o ordenamento
cultura autoritária, impedindo a completa superação de seu restolho. das plenas funções sociais das cidades e a garantia do bem-es­tar de seus
Como bem refere Holbwachs em seguimento ao raciocínio supra espo- habitantes. Estas funções sociais clamam pela redução das desigualdades
sado, “a memória que garante a permanência desta situação se baseia e pela busca de acesso equânime a todos os direitos exercíveis no âmbito
na permanência do espaço [...]”7. citadino. Por ser a base física de todos os direitos humanos8, o direito de
É inegável a intensa relação existente entre a memória coletiva e as moradia ganha especial destaque nos estudos que mais comumente abor-
representações espaciais do passado. Com relação à época de nossa dam este tema. Todavia, há uma dimensão mais ampla a ser considerada.
ditadura, que é o foco de nossa análise, já referimos que muitas são as Como refere Nelson Saule Júnior, as funções sociais das cidades
referências simbólicas espalhadas por nossa cidade no sentido de exal- somente poderão ser plenamente desenvolvidas quando houver redu-
tar nossos ditadores, divorciando suas imagens da repressão que prota- ção das desigualdades sociais, promoção de justiça social e melhoria da
gonizaram em passado recente. Gerações que não viveram diretamente qualidade de vida urbana9. Letícia Marques Osório, por sua vez, pon-
as atrocidades do período tiveram – e continuam tendo – suas rotinas dera que “o direito à cidade é interdependente de todos os direitos
marcadas pelas inúmeras vezes que cruzaram maquinalmente por estas humanos internacionalmente reconhecidos”10. Ou seja, não é possível
ruas, escolas e praças, privados de análises mais acuradas sobre a his- falar em pleno desenvolvimento das funções sociais das cidades, na di-
tória de seu país e, não raro, de seus antepassados.
8 ALFONSIN, Jacques Távora. Do “diga que eu não estou” à relação entre pobreza e função social
Mas o que o Direito Urbanístico tem a dizer sobre esta realidade? da terra no Brasil. In: ALFONSIN, Betânia (org.); FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico.
O direito á memória é fundamental para que as pessoas se apoderem do Estudos Brasileiros e Internacionais. p. 180.
passado e, com isso, tomem para si a responsabilidade de construir um 9 SAULE JR., Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro. Ordenamento
Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano Diretor. Porto Alegre: Sérgio Antô-
amanhã comprometido com as gerações futuras. Isso porque efetivação de nio Fabris Editor, 1997. p. 61.
10 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Cidade Como Direito Humano Coletivo. In: Direito Ur-
6 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 170. banístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. ALFONSIN, Betânia (coord.); FERNANDES, Edésio
7 Ibidem. p. 172. (coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 196.

810 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 811
mensão constitucional deste princípio que deve nortear as políticas de o desenvolvimento dos sistemas democráticos13. Não há dúvidas de que
desenvolvimento urbano, sem considerar o rol de direitos que são am- o direito à memória e à verdade é internacionalmente reconhecido, sendo
plamente garantidos às gerações presentes e futuras. invocado, inclusive, nas razões de julgamento da CIDH. Tal constatação,
Esta análise dá ensejo a diversos recortes temáticos. Nas pautas que já havia sido parcialmente antecipada, remonta aos estudos de Letí-
mais urgentes e comuns dos movimentos sociais estão as funções sociais cia Marques Osório, que afirmou ser o direito à cidade interdependente
da terra, o direito de moradia e o direito ao meio ambiente saudável e de todos os outros direitos humanos internacionalmente reconhecidos14.
equilibrado. Não menos importante, porém, é a correlação existente Os espaços públicos não podem ser construídos ou signifcados a par-
entre as funções sociais das cidades e o direito à memória, vez que o tir da violação do direito à memória e à verdade. Se as figuras que se
desrespeito a este último é responsável pela repetição das violências de tornaram públicas em razão das atrocidades que cometeram devem ser
ontem e pela não efetivação do próprio direito à cidade. lembradas, isso deve ser feito em atenção ao histórico que tais persona-
Se não podemos dissociar o pleno desenvolvimento das funções so- lidades fazem juz. A homenagem aos ditadores, na contramão do que se
ciais das cidades de todos os outros direitos internacionalmente reco- proclama, tende a apagar o desconforto que seus nomes deveriam invo-
nhecidos, é certo que não poderemos falar em direito à cidade sem falar car à população, que continua sofrendo cegamente os efeitos da repres-
em direito à memória. Nas palavras do professor José Carlos Moreira da são e do autoritarismo que na transição democrática buscamos superar.
Silva Filhos, “a justiça só pode ser feita através de uma política de me- Segundo Zygmunt Bauman, os espaços públicos são “pontos cruciais
mória, de um projeto que reconheça nas injustiças do passado, quando nos quais o futuro da vida urbana é decidido neste exato momento”15.
confrontadas, a base segura de uma cultura democrática”11. Ao fazer esta afirmação, o sociólogo procurou dar destaque às possibi-
Portanto, não há exagero na afirmação de que a Justiça de Transi- lidades de, através do contato com o outro, criar espaços de exaltação
ção, através, principalmente, do exercício da memória, é um caminho das diferenças e de superação do medo e da insegurança nas cidades.
essencial para a realização de nosso Estado Democrático de Direito. Ao Mas também é possível abordar outra dimensão da experimentação do
fazer esta relação, Gabriel Merheb Petrus destacou que: lugar público: a dimensão da memória e do empoderamento histórico.
Ao tratar das simbologias urbanas através das modulações espaciais,
[...] o direito à memória e à verdade apresenta-se como uma chave dia- Manuel Castells afirmou que “o espaço está carregado de sentido”16.
lética que abre, ao mesmo tempo, duas portas aparentemente opostas. Conclui, a partir desta constatação, que as estruturas simbólicas exer-
Conecta com o passado, na medida em que constitui, como preceitua a cem influência sobre as práticas sociais17. De forma mais relacionada
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, um “direito de caráter aos objetivos do presente estudo, o professor José Carlos Moreira da
coletivo que permite à sociedade ter acesso à informação essencial para Silva Filho ressalta que “a memória não diz respeito apenas ao tempo,
o desenvolvimento dos sistemas democráticos”. Mas também rompe
mas também ao espaço”18, constatação que nos remete, mais uma vez,
com o passado, medida que possibilitaria às instituições do estado que
se envolveram na repressão converterem-se de fato à democracia [...].12 aos ensinamento de Maurice Halbswachs:

13 Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. Informe 126/99
A citação atribuída à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de 22 de dezembro de 1999. p. 224
diz respeito ao “caso Ignacio Ellacuría y otros”, no qual foi destacado que 14 OSÓRIO, Letícia Marques. Direito à Cidade Como Direito Humano Coletivo. In: Direito Ur-
o direito à memória e à verdade possui caráter coletivo e é essencial para banístico. Estudos Brasileiros e Internacionais. ALFONSIN, Betânia (coord.); FERNANDES, Edésio
(coord.). Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 196.
11 SILVA, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da 15 BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. p. 70.
Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In.:Repressão
e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambi- 16 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 304.
que, Peru e Portugal. SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell; 17 CASTELLS, loc. cit.
TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de 18 SILVA, José Carlos Moreira da. Dever de memória e a construção da história viva: a atuação da
Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 212. Comissão de Anistia do Brasil na concretização do direito à memória e à verdade. In.:Repressão
12 PETRUS, Gabriel Merheb. A Justiça de Transição como Realização do Estado Democrático de e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambi-
Direito: Caminhos para a Desconstrução Político-Jurídica do Legado Autoritário no Brasil. In: Revis- que, Peru e Portugal. SANTOS, Boaventura de Souza; ABRÃO, Paulo; SANTOS, Cecília MacDowell;
ta Anistia Política e Justiça de Transição. jan./jul. 2010. TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Brasília: TORELLY, Marcelo D. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de
Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2010. p. 282. Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. p. 201.

812 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 813
Não é somente a relação entre o homem e a coisa, é o próprio homem man, a modernidade tem seu marco paradigmático na separação entre
que supomos ser imóvel e não mudar, quando pensamos nos direitos o tempo e o espaço:
dos homens sobre as coisas.19
A modernidade começa quando o espaço e o tempo são separados
As formas espaciais são receptoras e transmissoras de práticas ideoló- da prática da vida e entre si, e assim podem ser teorizados como
gicas20. Por isso, a construção e a ressigificação dos espaços deve ser cons- categorias distintas e mutuamente independentes da estratégia e da
cientemente pensada no sentido dar forças à consolidação das práticas ação; quando deixam de ser, como eram ao longo dos séculos pré-
-modernos, aspectos entrelaçados e dificilmente distinguíveis da ex-
democráticas, repudiando qualquer tentativa de exaltar pensamentos ou
periência vivida, presos numa estável e aparentemente invulnerável
personalidades que representaram a subversão da ordem democrática. correspondência biunívoca. Na modernidade, o tempo tem história,
Mas esta lógica de construção e ressignificação dos espaços depen- tem história por causa de sua “capacidade de carga”, perpetuamente
de de mecanismos e engrenagens que fogem aos limites da vontade po- em expansão – o alongamento dos trechos do espaço que unidades
lítica de sujeitos isoladamente considerados. Daí também a necessidade de tempo persistem “passar”, “atravessar”, “cobrir” – ou conquistar. O
de ampliar os debates sobre o tema para que a sociedade, consciente tempo adquire história uma vez que a velocidade do movimento atra-
vés do espaço (diferentemente do espaço eminentemente inflexível,
de seu passado, adote as posturas necessárias para a realização desta
que não pode ser esticado e que não escolhe) se torna uma questão
dimensão da Justiça de Transição, que é o conhecimento da verdade e de engenho, da imaginação e capacidade humanas.23
a construção da memória.
A quebra das barreiras espaciais – um claro objetivo perseguido pelo
capitalismo – trouxe um paradoxo ao sistema capitalista: “a organização
A CONSTRUÇÃO E A RESSIGNIFICAÇÃO DOS ESPAÇOS COMO espacial é necessária para superar o espaço”24. Isso porque a otimização
GARANTIA DO DIREITO À CIDADE E À MEMÓRIA do tempo de circulação de pessoas, capitais e mercadorias depende de
certo complexo estrutural, de certa organização e implementação tec-
Já se afirmou, com base em raciocínio desenvolvido pelo professor nológica do espaço. Com efeito, como a produção e manutenção destas
José Carlos Moreira da Silva Filho, que a memória diz respeito tanto estruturas depende da força de trabalho local, é possível constatar que
ao tempo quanto ao espaço. Enquanto o tempo, a partir de frações “as concentrações urbanas acompanharam as concentrações de capi-
convencionadas, expressa certa ordem e sucessão de fases da vida so- tais no sentido de Marx”25.
cial21, o espaço é expressão das correntes ideológicas produzidas pelas O antropólogo David Harvey, ao ponderar que as possibilidades de
práticas sociais de determinado período22, que são representadas nas dominação do espaço estão ligadas à necessidade de produzir espaços,
estruturas urbanas com forte elemento histórico-oficial. destaca que os impactos da produção capitalista do ambiente atingem
Porém, a relação espaço-tempo adquire outros contornos quando as infra-estruturas físicas e sociais do lugar, sendo nocivos a ambas. A
se trata da produção de espaços. O constante tensionamento entre es- criação de espaços geográficos, apesar de significar a imobilização de
tes elementos está representado pelos inúmeros esforços engendrados determinada quantia de capital, garante a ampliação de sua circulação
no sentido de acelerar a velocidade do movimento para superação das e da circulação da mão-de-obra, o que se mostra claro no caso dos
barreiras espaciais. A evolução tecnológica logrou reduzir as distâncias, transportes. O investimento em estruturas arquitetônicas fixas possui
rompendo a resistência do espaço quase que à instantaneidade, fator papel de catalizar o sistema, criando certa contradição entre seu méto-
que, como adiante se verá, tem grande influência na formação e refor- do (criação de espaço físico) e seu objetivo (superação do espaço físico).
mulação das cidades. Vale lembrar que, conforme defendido por Bau- Por esta lógica, Harvey conclui que:
19 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 173.
20 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p.307. 23 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 16.
21 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006. p. 113. 24 HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. 2. ed. São Paulo: Annablume, 2005. p. 145.
22 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009. p. 306. 25 LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001. p. 15.

814 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 815
O capitalismo se esforça para criar uma paisagem social e física da sua Urbanístico no processo de redemocratização do Brasil vai ganhando con-
própria imagem, e requisito para as suas próprias necessidades em um tornos mais definidos, uma vez que identificada a possibilidade de efeti-
instante específico do tempo, apenas para solapar, despedaçar e inclu- vação do direito à verdade e à memória, bem como do direito à cidade, a
sive destruir essa paisagem num instante posterior do tempo. As con-
partir dos processos de construção e de ressignificação dos espaços.
tradições internas do capitalismo se expressam mediante a formação
e a reformação incessantes das paisagens geográficas. Essa é a música
pela qual a geografia histórica do capitalismo deve dançar sem cessar.26
CONCLUSÃO
Nesta linha, conclui-se que as cidades são tanto um produto do ca-
pitalismo quanto um instrumento necessário ao seu desenvolvimento. É ne- A efetivação do direito à cidade depende da observância do princí-
cessário romper com esta lógica que serve prioritariamente aos interesses do pio de pleno desenvolvimento de suas funções sociais, sendo que estas,
capital e consolidar a idéia de que o bem-estar das pessoas e a preservação por sua vez, somente podem ser efetivadas em conjunto com os demais
do meio ambiente são os elementos de todo o desenvolvimento urbanístico. direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Neste extenso rol
Se lembrarmos que os efeitos da produção do espaço também influenciam de direitos abarcados pelo princípio das funções sociais das cidades,
na construção das estruturas sociais, veremos que é impossível pensar o de- encontra-se o direito à memória e à verdade, internacionalmente reco-
senvolvimento urbanístico sem pensar o próprio desenvolvimento social, que nhecido por seu caráter coletivo e pelo papel essencial que possui no
traz em seu bojo uma complexa rede de elementos que se inter-relacionam, desenvolvimento dos sistemas democráticos.
entre os quais se destacam a política, a cultura e a economia. O próprio desenvolvimento de nossa democracia depende do respeito
A produção dos espaços é pensada a partir de determinados inte- à memória e à verdade, exercível, entre outros, através do combate ao es-
resses hegemônicos, intimamente relacionados com o poder do capital. quecimento e à deturpação dos fatos históricos que compõem nosso pas-
A disputa pela história é uma das facetas deste jogo, não restando a sado. Aí reside o papel que se exalta ao Direito Urbanístico. O desenvolvi-
menor dúvida de que há muitos interesses ocultos sob o véu do es- mento urbano deve ser pensado em atenção ao cumprimento das funções
quecimento e das verdades oficiais cunhadas sobre ele. As simbologias sociais das cidades e ao papel que o lugar exerce sobre seus habitantes.
urbanas são constituídas, senão na própria construção destes espaços, Os espaços físicos são, a um só tempo, estruturas materiais e sim-
em suas ressiginificações, seja pela nomenclatura, seja pelas estruturas bólicas que não apenas representam certa organização social e ideoló-
materiais que sempre podem lhe dar nova forma física e simbólica. gica, mas também produzem efeito sobre as organizações e ideologias
Manuel Castells considera que o espaço “é sempre uma conjuntu- vigentes. É precisamente por isso que a construção e/ou ressignificação
ra histórica e uma forma social que recebe seu sentido dos processos dos lugares, em especial dos espaços públicos – que devem servir de
sociais que se exprimem através dele”27. Numa perspectiva histórica, estímulo à coabitação e à experimentação coletiva da cidade – deve ser
podemos observar um monumento erguido em uma praça e, a partir de pautada no respeito aos objetivos da justiça transicional, em especial no
uma análise espacial, extrair elementos sociais da época e das ideolo- que diz respeito à consolidação da democracia brasileira.
gias representadas pelo lugar. Por outro ângulo, o espaço não apenas A produção dos espaços não deve servir aos interesses do capital,
reflete certa conjuntura histórica, mas também produz efeitos específi- segundo as lógicas de circulação, troca e espoliação social, mas sim aos
cos sobre as demais estruturas da organização social. interesses das pessoas e da natureza, que devem ser o centro de toda e
Assim, os efeitos dos lugares possuem papel fundamental na luta pela qualquer política de desenvolvimento urbanístico. Como transmissores
efetivação do direito à verdade e à memória, podendo influir positivamente e receptores de ideologias sociais, os espaços cumprem importante pa-
na consolidação das estruturas democráticas, ou negativamente no proces- pel no âmbito da memória história histórica e da conscientização social.
so de deturpação e esquecimento do passado. Assim, o papel do Direito Por isso não podem servir de instrumento à prática do esquecimento,
abrindo as portas para a perpetuação das práticas que marcaram o pe-
26 HARVEY, op. cit., p. 150. ríodo de nossa ditadura civil-militar.
27 CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. p 539.

816 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 817
A preservação dos avanços democráticos até então conquistados
e a garantia de que continuaremos avançando no desenvolvimento de
Os conflitos indenizatórios decorrentes
nossa democracia dependem da compreensão de que é necessário su- da proteção do meio ambiente urbano
perar de forma consciente as páginas do nosso passado autoritário para
que, a partir do exercício da memória, possamos superar definitivamen-
e a jurisprudência do
te as violações de direitos que ainda sofremos hoje. Para isso, a cons- Supremo Tribunal Federal e do
trução e a ressigificação dos espaços deve ser pensada no sentido de
repudiar qualquer tentativa de exaltar pensamentos ou personalidades
Superior Tribunal de Justiça
que representem a subversão da ordem democrática.
Daniel Gaio1

REFERÊNCIAS Resumo: O presente texto realiza uma apreciação crítica acer-


ca do método e dos elementos de análise que pautaram as de-
ABRÃO, Paulo; SANTOS, Boaventura de Sousa; SANTOS, Cecília Macdwell; cisões do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de
TORELLY, Marcelo (Orgs.). Repressão e Memória Política no Contexto Ibe- Justiça acerca desse tema — especialmente nas duas últimas
ro-Brasileiro. Estudos Sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. décadas. Tendo em vista as particularidades que envolvem as
múltiplas vinculações ao conteúdo do direito de propriedade
Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de
urbana, o exame dos julgados será realizado a partir de três
Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010. matérias distintas: áreas verdes protegidas; bens culturais; e
ALFONSIN, Betânia (Org.); FERNANDES, Edésio (org.). Direito Urbanístico. funções sociais da cidade.
Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Palavras-chave: meio ambiente, propriedade urbana, indeni-
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. zação, Supremo Tribunal Federal, Superior Tribunal de Justiça
_______, Zygmunt. Confiança e Medo na Cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. 4 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
Comissão Interamericana de Direitos humanos. Caso Ignacio Ellacuría y otros. 1. Introdução
Informe 126/99 de 22 de dezembro de 1999.
GARAPON, Antoine. Crimes que Não se Podem Punir nem Perdoar. Para Deve-se preliminarmente ressaltar que, não obstante a precípua
uma Justiça Internacional. Lisboa: Instituto Piaget, 2002. função do Supremo Tribunal Federal (STF) em realizar a guarda da Cons-
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, tituição, o sistema brasileiro adota o controle e a interpretação constitu-
2006. cional de modo difuso. Com efeito, na hipótese de serem contrapostos
HARVEY, David. A Produção Capitalista do Espaço. 2. ed. São Paulo: Annablu- valores como o meio ambiente e o direito de propriedade, torna-se im-
me, 2005. prescindível que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) realize a uniformi-
KEHL, Maria Rita. Tortura, por que não? O Estado de São Paulo. Em 31 de zação da interpretação da legislação federal2 tomando como parâmetro
maio de 2010. as delimitações previamente efetuadas pela Carta Magna.
LEFEBVRE, Henri. O Direito à Cidade. São Paulo: Centauro, 2001. Assinala-se que a necessidade de promover a interpretação da tota-
TORELLY, Marcelo D. (Coord.). Revista Anistia Política e Justiça de Transi- lidade dos valores constitucionais é ainda mais compreensível em virtu-
ção. jan./jul. 2010. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia, 2010. de do conteúdo do direito de propriedade ser substancialmente defini-
SAULE JR., Nelson. Novas Perspectivas do Direito Urbanístico Brasileiro.
1 Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Pesquisador visitante
Ordenamento Constitucional da Política Urbana. Aplicação e Eficácia do Plano na Università di Bologna. Professor do Mestrado em Direito Ambiental e Políticas Públicas da Uni-
Diretor. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997. versidade Federal do Amapá.
2 Nesse sentido, ver o art. 105, III, da Constituição Federal.

818 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 819
do por uma pluralidade de normativas infraconstitucionais editadas por tivação de qualquer modalidade de parcelamento do solo6. Assinala-se
todos os entes federativos, e não mais pelas faculdades previstas pela que o reconhecimento do esvaziamento econômico não considerou, ao
codificação civil3. menos no relatório e no voto condutor, a aferição acerca da metragem
Além disso, a relevância da interpretação realizada pelo Superior da propriedade. Ou seja, tendo em vista que não há menção à proibição
Tribunal de Justiça acerca dessa matéria é também maior em razão do de construir, mas apenas de parcelar, a informação acerca da área total
progressivo aumento do rigor por parte do Supremo Tribunal Federal no do imóvel poderia ser decisiva para a solução do conflito.
que se refere ao juízo de admissibilidade — sobretudo na exigência de Além disso, cabe assinalar que o supracitado acórdão decretou a
comprovação de agravo direto à Constituição Federal (CF)4. desapropriação indireta em virtude da criação de uma unidade de con-
servação de uso sustentável sem fazer quaisquer referências às suas
qualidades ambientais e à sua função social, embora tenha assinalado
2. Áreas verdes protegidas que inexistem no local áreas protegidas pelo Código Florestal7.
Em outro caso concreto, o STJ se manifestou pela ocorrência de de-
Esclarece-se inicialmente que parte dos acórdãos estudados não sapropriação indireta8 em virtude da legislação de proteção de manan-
fornece indicações de modo preciso acerca do efetivo esvaziamento ciais ter restringido atividades construtivas em 42,79% de um imóvel
econômico do direito de propriedade urbana. Em um desses julgados5, com área de 166.970 m². Anota-se que o voto vencedor justificou tal
por exemplo, entendeu-se haver interdição total do imóvel na medida posição afirmando que as imposições administrativas impediam o uso
em que a restrição ambiental alcançou 75% de sua área — embora pleno do imóvel, e que gerou forte desvalorização perante o mercado.
não haja no relatório e nos votos proferidos informações acerca da sua Anota-se que nesse caso, o STJ sustentou que houve violação do
metragem. direito de propriedade na medida em que a restrição ambiental impos-
Com efeito, poderia se chegar à conclusão diversa caso fosse anali- sibilitou o uso da totalidade do imóvel, embora pudesse caracterizá-la
sada detidamente a situação em concreto. Portanto, supondo-se hipo- como vinculação geral, pois incidiu sobre todos os imóveis situados em
teticamente que esse imóvel possua 1.000 m² de área total e que a le- áreas de mananciais9. Com efeito, para além do fato das limitações se-
gislação municipal preveja coeficiente de aproveitamento igual a 1 (um), rem gerais ou não, a análise indenizatória foi estruturada no sentido de
subsistiriam 250 m² de superfície para utilizar os 1.000 m² de potencial que a propriedade possui plena vocação edificatória.
construtivo. Nesse caso, embora reduzida a superfície edificável, resta- Em realidade, não existe do ponto de vista constitucional qualquer
ria garantido o conteúdo essencial do direito de propriedade urbano. diferenciação quanto à modalidade da criação do espaço ambiental
Seguindo a mesma lógica, o Superior Tribunal de Justiça decidiu protegido. Se em relação ao patrimônio cultural a Constituição Fede-
pela ocorrência de desapropriação indireta em virtude da unidade de ral discrimina de modo apenas exemplificativo alguns instrumentos de
conservação criada ter vedado a implantação de loteamento ou a efe- proteção10, nas disposições gerais contidas no capítulo sobre o meio

6 Cf. STJ. RESP 142.713. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. José Delgado. Julgado em 05 maio
3 Cf. PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costituzionale. 2ª ed. Napoli: Edizione
1998. Publicado em 03 ago. 1998.
Scientifiche Italiane, 1991, p. 436; e SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 5ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2008, p. 80. 7 Nesse sentido, ver STJ. RESP 142.713. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. José Delgado. Julga-
do em 05 maio 1998. Publicado em 03 ago. 1998.
4 Cf. a ementa a seguir transcrita: “A alegação de ofensa à garantia dominial impõe, para efeito de
seu reconhecimento, a análise prévia da legislação comum, pertinente à regência normativa do di- 8 Nesse sentido, ver STJ. RESP 149.834. 1ª Turma. Maioria. Rel. Min. José Delgado. Julgado em
reito de propriedade, o que poderá caracterizar, quando muito, situação de ofensa reflexa ao texto 01 dez. 1998. Publicado em 29 mar. 1999.
da Constituição, suficiente, por si só, para descaracterizar o próprio cabimento do apelo extremo”. 9 Cf. STJ. RESP 149.834. 1ª Turma. Maioria. Rel. Min. José Delgado. Julgado em 01 dez. 1998.
Cf. STF. AGRG. no Agravo de Instrumento 338.090-2. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Celso de Publicado em 29 mar. 1999. Na mesma direção, ver STJ. RESP 16.151. 2ª Turma. Unanimidade.
Mello. Julgado em 12 mar. 2002. Publicado em 12 abr. 2002. Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro. Julgado em 07 fev. 1994. Publicado em 28 fev. 1994. No
5 Cf. STJ. RESP 16.151. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro. Julgado mesmo sentido, ver STJ. RESP 10.731. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Pedro Acioli. Julgado em
em 07 fev. 1994. Publicado em 28 fev. 1994. No mesmo sentido, ver STJ. RESP 10.731. 1ª Turma. 05 fev. 1992. Publicado em 09 mar. 1992.
Unanimidade. Rel. Min. Pedro Acioli. Julgado em 05 fev. 1992. Publicado em 09 mar. 1992. 10 Cf. o art. 216, § 1º, CF.

820 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 821
ambiente tampouco se vislumbra a existência de diferentes graus de (...) na desapropriação urbana não se avalia uma casa ou um terreno
relevância11. pela possibilidade futura e abstrata de em seu lugar se construir um
Portanto, ponderando que a criação de um bem ambiental possui os Shopping Center ou loteamento, exceto se o proprietário puder apre-
sentar válida licença urbanística para tanto.
atributos materiais que justificam a sua proteção12, independe se a sua
concretização ocorre por legislação geral ou por ato individual, pois em
ambos os casos a incidência da referida afetação decorre de um dever
expressamente estabelecido pela Constituição. 3. Bens culturais
Com efeito, a verificação acerca da natureza indenizatória das com-
pressões do conteúdo do direito de propriedade deve considerar à par- Diversamente da complexidade de elementos sopesados em rela-
tida a afetação ambiental determinada pelo texto constitucional, já que ção às áreas verdes protegidas, as controvérsias acerca do dever de
a sua atribuição e garantia são diretamente condicionadas ao cumpri- indenizar são bem mais reduzidas no que se refere aos bens culturais.
mento da função social, que, nesse caso específico, consiste na proteção Note-se que essa configuração é em grande parte devida à declaração
do meio ambiente. Nesse sentido, descabe a alegação de que a criação feita pelo Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da Lei
do espaço protegido viola o princípio da igualdade, na medida em que a de proteção do patrimônio histórico e artístico nacional (DL 25/37), e ao
própria Constituição Federal estabelece a diferenciação em relação aos conseqüente indeferimento da pretensão indenizatória solicitada pelo
demais imóveis. proprietário do imóvel tombado denominado “Arco do Teles”16.
De qualquer modo, embora sujeitos a um regime jurídico especial, Nesse processo, particularmente importante foi a argumentação desen-
impõe-se o dever de indenizar sempre que não for possível compati- volvida pelo ministro Castro Nunes, ao aduzir que o interesse público
bilizar a afetação ambiental com a garantia do conteúdo essencial do em conservar os monumentos históricos e objetos de arte supera o inte-
direito de propriedade. Isso significa que é tarefa do intérprete verificar resse do titular do bem, e que a redução das faculdades do proprietário
se subsiste conteúdo econômico aos bens ambientais por meio de uma está ao alcance do legislador ordinário com base na Constituição17.
pormenorizada análise das condições de aproveitamento urbanístico. As manifestações seguintes do STF não destoaram do leading case
Nesse sentido, ultimamente o Superior Tribunal de Justiça tem sina- acima assinalado. Com efeito, decidiu-se que a decretação de um imóvel
lizado a necessidade de verificar o efetivo prejuízo ocasionado por uma de interesse cultural não afronta o direito de propriedade, sendo rele-
limitação ambiental. Desse modo, além de já ter decidido pela impro- vante mencionar que o ministro relator assentou o seu entendimento
cedência do dever indenizatório13, permite-se que em processos de de- na necessária convergência de outros direitos com o âmbito interno do
sapropriação seja utilizada como parâmetro de aferição a real situação direito de propriedade, ocasionando a redução da sua fruição18.
do imóvel, e não apenas sua situação jurídica14. Nessa direção, afirma É oportuno igualmente fazer referência à ratificação do Supremo
Herman Benjamin15 que: Tribunal Federal acerca da constitucionalidade da legislação municipal
do Rio de Janeiro que instituiu as Áreas de Proteção do Ambiente Cultu-
11 Cf. o art. 225, § 1º, IV, CF.
12 Cf. o art. 225, § 1º, IV, CF. 1ª Turma. Maioria. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 07 dez. 2006. Publicado em 08 mar. 2007.
13 Cf. STJ. RESP 628.588. 1ª Turma. Maioria. Rel. Min. Albino Zavascki. Julgado em 02 jun. 16 Cf. STF. Apelação Cível 7.377. Pleno. Maioria. Rel. Min. Castro Nunes. Julgado em 17 jun.
2005. Publicado em 01 ago. 2005. 1942. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 147, p. 785-811, jan. 1944; e Revista de Direito
14 Cf. STJ. RESP 503.418. 2ª Turma. Maioria. Rel. Min. João Otávio de Noronha. Julgado em 21 Administrativo, Rio de Janeiro, vol. II, p. 100-123, jul. 1945.
nov. 2006. Publicado em 07 mar. 2007. Cf. STJ. RESP 905.783. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. 17 Nesse sentido, ver STF. Apelação Cível 7.377. Pleno. Maioria. Rel. Min. Castro Nunes. Julgado
Herman Benjamin. Julgado em 07 fev. 2008. Publicado em 27 maio 2008. Em sentido contrário, em 17 jun. 1942. In: Revista dos Tribunais, São Paulo, nº 147, p. 785-811, jan. 1944; e Revista de
defendendo que não importa perquirir se os autores tinham planos para efetiva exploração econô- Direito Administrativo, Rio de Janeiro, vol. II, p. 100-123, jul. 1945.
mica da área, ver STJ. RESP 439.192. 1ª Turma. Maioria. Rel. Min. Luiz Fux. Julgado em 07 dez. 18 Cf. STF. RE 114.468. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Carlos Madeira. Julgado em 31 maio
2006. Publicado em 08 mar. 2007. 1988. Publicado em 24 jun. 1988. Ressalta-se que essa fundamentação foi extraída da obra CRE-
15 Cf. STJ. RESP 905.783. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Herman Benjamin. Julgado em 07 TELLA JÚNIOR, José. Regime jurídico do tombamento. Revista de Direito Administrativo. Rio de Ja-
fev. 2008. Publicado em 27 maio 2008. Em sentido contrário, defendendo que não importa perqui- neiro, abr.-jun. 1973, nº 112, p. 50-68, p. 51. Ver também STF. RE 246.243. Decisão monocrática.
rir se os autores tinham planos para efetiva exploração econômica da área, ver STJ. RESP 439.192. Rel. Min. Nelson Jobim. Julgado em 28 maio 2001. Publicado em 28 ago. 2001.

822 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 823
ral (APACs), reconhecendo-as como limitações administrativas gratuitas, Cabe ressaltar que a propriedade urbana tem uma característica
ou seja, não geradoras do dever de indenizar19. especial que não é extensiva a outras mercadorias24: a de ser suporte
Assinala-se ainda que o ministro relator foi categórico ao eleger a es- indispensável para assegurar as funções sociais da cidade, incluindo-se
peculação imobiliária como obstáculo à proteção dos bens culturais, a proteção do meio ambiente. Portanto, conceber o conteúdo essencial
afirmando que “(...) a extraordinária volúpia do capital (...) na edificação do direito de propriedade com base na expectativa de lucro significaria
de espigões, conjuntos residenciais e comerciais, que têm desnudado, ignorar a totalidade dos bens constitucionais, colocando o patrimônio
desfigurado e aniquilado o belo cenário construído, ora por obra da na- em posição de destaque em face dos valores sociais e existenciais.
tureza, ora pelas mãos de artistas”20.
Em relação ao Superior Tribunal de Justiça, foram selecionados
dois acórdãos relevantes acerca da matéria. No primeiro deles, o STJ 4. Funções sociais da cidade
aplicou o princípio da proporcionalidade para afastar a intenção do
Poder Público em desapropriar um imóvel que já era devidamente Ressalta-se que o meio ambiente ecologicamente equilibrado não
protegido por meio do tombamento21. Enquanto no segundo, em sen- depende apenas dos espaços ambientais protegidos, mas igualmen-
tido oposto à fundamentação desenvolvida pelo STF, o STJ entendeu te do conjunto de intervenções urbanísticas que cumprem as funções
que a localização privilegiada de um imóvel tombado na Avenida Pau- sociais da cidade, de modo a garantir o bem-estar dos seus cidadãos.
lista (município de São Paulo) tornava a restrição incompatível com Tomando-se como pressuposto essa configuração globalizante do meio
o “aproveitamento natural” do bem, tendo sido imposto, por isso, o ambiente urbano, entende-se ser oportuno apresentar alguns julgados
pagamento do valor de mercado ao proprietário22. Ou seja, nesse que possibilitam uma interpretação do direito de propriedade urbana
caso foi considerada a potencialidade econômica como se inexistisse em consonância com os interesses da coletividade, mesmo quando não
a referida afetação ambiental. tratem diretamente de situações envolvendo conflitos de natureza inde-
Além dessa interpretação não tomar em consideração a incidência nizatória.
do princípio da função social sobre os bens que contenham elemen- Cita-se inicialmente uma decisão do STF, a qual declarou a consti-
tos ambientais relevantes23, acolher nessas hipóteses o valor do merca- tucionalidade do Poder Público auferir recursos para uma obra com a
do como lucro máximo — tal como considerado pelo setor imobiliário construção e a venda de unidades habitacionais25. Dessa forma, com
— equivale a inviabilizar a proteção dos espaços ambientais no Brasil, a finalidade de executar o Plano Diretor do município de São Paulo,
sobretudo em uma perspectiva de ampliação na classificação de bens procedeu-se à captura da valorização imobiliária consubstanciada na
culturais e paisagísticos. alienação de área expropriada26. Registra-se em particular a fundamen-
tação desenvolvida pelo ministro Leitão de Abreu, que associou a pro-
19 Cf. STF. RE 121.140. 2ª Turma. Maioria. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julgado em 26 fev. 2002. funda modificação do direito de propriedade em face dos interesses
Publicado em 23 ago. 2002. coletivos à necessidade de garantir condições adequadas de vida nas
20 Cf. STF. RE 121.140. 2ª Turma. Maioria. Rel. Min. Maurício Corrêa. Julgado em 26 fev. 2002.
cidades27.
Publicado em 23 ago. 2002.
21 Nesse sentido, ver STJ. RESP 2.640-0. 2ª Turma. Maioria. Rel. Min. Américo Luz. Julgado em
03 jun. 1992. Publicado em 29 jun. 1992.
24 Cf. LEAL MALDONADO, Jesus. Instrumentos de intervención sobre el suelo. CT. Catastro. Revis-
22 Cf. STJ. RESP 220.983. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. José Delgado. Julgado em 15 ago.
ta de la Dirección General del Catastro. Madrid, n° 22, octubre 1994, p. 24-31, p. 25.
2000. Publicado em 25 set. 2000.
25 Cf. STF. RE 82.300. Pleno. Maioria. Rel. Min. Rodrigues Alkmin. Julgado em 12 abr. 1978. In:
23 Cabe esclarecer que o STF, ao decidir pela não aplicação do princípio da função social na
Revista Trimestral de Jurisprudência. Brasília, n° 86, p. 155-212.
mensuração do valor indenizatório, não trata de espaços protegidos, mas da vegetação restante no
imóvel. Nesse sentido, afirma o ministro relator: “(...) salvo no tocante às reservas permanentes já 26 Veja-se o voto do ministro Soares Muñoz. Cf. STF. RE 82.300. Pleno. Maioria. Rel. Min. Rodri-
constituídas por lei federal, parece fora de dúvida que a cobertura vegetal não poderia deixar de gues Alkmin. Julgado em 12 abr. 1978. In: Revista Trimestral de Jurisprudência. Brasília, n° 86, p.
haver sido contemplada, por seu valor próprio, na indenização, segundo o preço de mercado”. Cf. 209.
STF. RE 114.682. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Octavio Gallotti. Julgado em 05 nov. 1991. 27 Cf. STF. RE 82.300. Pleno. Maioria. Rel. Min. Rodrigues Alkmin. Julgado em 12 abr. 1978. In:
Publicado em 13 dez. 1991. Revista Trimestral de Jurisprudência. Brasília, n° 86, p. 184.

824 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 825
Por outro lado, no que se refere ao direito de construir28, o Supremo dade de dispositivos da Constituição paraibana, os quais estabeleciam
Tribunal Federal tem entendido que, exceto nas hipóteses de esvazia- restrições ao direito de construir.
mento econômico, cabe ao Poder Público atribuir as faculdades proprie- Nessa decisão, entendeu-se que a proteção dos valores imateriais,
tárias em atenção ao interesse coletivo e às funções sociais da cidade. como a paisagem e a comodidade da população, deve prevalecer em
Nesse sentido, de acordo com esse Tribunal, não há violação ao direito relação ao interesse meramente municipal33. Ademais, analisando-se os
de propriedade no caso de revogação da licença de construção em vir- votos vencedores34, percebe-se nitidamente existir uma preocupação
tude de legislação urbanística superveniente mais restritiva, exceto se com a suscetibilidade dos municípios à especulação imobiliária e à dimi-
as obras já tiverem sido iniciadas29. nuição da qualidade de vida nas cidades.
Outro acórdão do Supremo Tribunal Federal relacionado ao cum-
primento das funções sociais da cidade, e que traz alguns subsídios re-
levantes às controvérsias indenizatórias, é a declaração de constitucio- 5. Conclusões articuladas
nalidade da legislação municipal de Florianópolis que instituiu a outorga
onerosa do direito de construir como contrapartida para quem edificar 5.1. A verificação acerca da natureza indenizatória das compressões do
acima do coeficiente de aproveitamento 1 (um)30. conteúdo do direito de propriedade deve considerar à partida a afetação
Veja-se que, por ocasião desse julgamento, o ministro Ricardo ambiental determinada pelo texto constitucional, já que a sua atribuição e
Lewandowski retomou uma discussão que já foi bastante intensa em garantia são diretamente condicionadas ao cumprimento da função social,
outras épocas no STF: a questão da apropriação das mais-valias urba- que, nesse caso específico, consiste na proteção do meio ambiente.
nas31. Com efeito, afirmou o referido ministro: “(...) à medida que se ele- 5.2. Não existe do ponto de vista constitucional qualquer diferen-
va uma edificação, evidentemente o Poder Público tem maior ônus no ciação quanto à modalidade da criação do espaço ambiental protegido,
que tange à infra-estrutura de seu entorno”. Nesse caso, complementa, portanto, independe se a sua concretização ocorre por legislação geral ou
“existiria um locupletamento indevido do particular se não houvesse um por ato individual, pois em ambos os casos a incidência da referida afeta-
ressarcimento do Poder Público em função dos investimentos que ele ção decorre de um dever expressamente estabelecido pela Constituição;
faz”32. 5.3. Conceber o conteúdo essencial do direito de propriedade com
Por outro lado, tendo em vista que os julgamentos acerca de confli- base na expectativa de lucro significaria ignorar a totalidade dos bens
tos de competência legislativa em muitas situações expõem as concep- constitucionais, colocando o patrimônio em posição de destaque em
ções sobre as matérias envolvidas, avalia-se que é relevante citar um face dos valores sociais e existenciais;
acórdão do Supremo Tribunal Federal que declarou a constitucionali-
28 No caso específico, o Poder Público municipal indeferiu a licença construtiva sob o argumento
de instalar no local uma área verde de lazer. Cf. STF. RE 107.918. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Referências
Célio Borja. Julgado em 16 jun. 1987. Publicado em 14 ago. 1987.
29 Cf. STF. RE 85.002. 2ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Moreira Alves. Julgado em 01 jun. 1976.
CRETELLA JÚNIOR, José. Regime jurídico do tombamento. Revista de Direito
Publicado em 11 mar. 1977; STF. RE 212.780-9. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Ilmar Galvão.
Julgado em 27 abr. 1999. Publicado em 25 jun. 1999; STF. RE 178.836. 2ª Turma. Maioria. Rel. Administrativo. Rio de Janeiro, abr.-jun. 1973, nº 112, p. 50-68.
Min. Carlos Velloso. Julgado em 08 jun. 1999. Publicado em 20 ago. 1999. LEAL MALDONADO, Jesus. Instrumentos de intervención sobre el suelo. CT.
30 Cf. STF. RE 387.047-5. Pleno. Unanimidade. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 06 mar. 2008.
Publicado em 02 maio 2008. 33 Cf. STF. Representação 1.048-1. Pleno. Maioria. Rel. Min. Djaci Falcão. Julgado em 04 nov.
31 Note-se que o STF em diversas situações entendeu que a mais-valia deve ser recuperada por 1981. Publicado em 30 abr. 1982. Na mesma direção, ver STF. RE 105.634-7. 2ª Turma. Unanimi-
meio da contribuição de melhoria, que contempla todos os beneficiários e não apenas os atingidos dade. Rel. Min. Francisco Rezek. Julgado em 20 set. 1985. Publicado em 08 nov. 1985; e STJ. AR
pela desapropriação. Cf. STF. RE 24.815. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. Min. Nelson Hungria. Julga- 756. 1ª Seção. Maioria. Rel. Min. Teori Albino Zavascki. Julgado em 27 fev. 2008. Publicado em
do em 18 jan. 1954. Publicado em 20 maio 1954; STF. RE 78.506. 1ª Turma. Unanimidade. Rel. 14 abr. 2008.
Min. Aliomar Baleeiro. Julgado em 23 ago. 1974. Publicado em 04 nov. 1974. 34 Ver, em especial, os votos dos ministros Djaci Falcão e Clovis Ramalhete. Cf. STF. Representação
32 Cf. STF. RE 387.047-5. Pleno. Unanimidade. Rel. Min. Eros Grau. Julgado em 06 mar. 2008. 1.048-1. Pleno. Maioria. Rel. Min. Djaci Falcão. Julgado em 04 nov. 1981. Publicado em 30 abr.
Publicado em 02 maio 2008. 1982.

826 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 827
Catastro. Revista de la Dirección General del Catastro. Madrid, n° 22, octubre
1994, p. 24-31.
Políticas públicas na garantia de um
PERLINGIERI, Pietro. Il diritto civile nella legalità costituzionale. 2ª ed. Napoli: município ambientalmente sustentável
Edizione Scientifiche Italiane, 1991.
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Malhei-
e o controle jurisdicional através
ros, 2008. da ação civil pública
Fábio Scopel Vanin1

Resumo: Os objetivos e as diretrizes da política urbana no


Brasil visam, entre outros aspectos, garantir um Município
ambientalmente sustentável, e essa construção tem como
um dos pontos chaves, as políticas públicas. Entretanto, pode
haver omissão ou ineficiência do Estado na sua prestação,
caso em que se buscará a tutela no Poder Judiciário. Com o
advento do Estatuto da Cidade a ordem urbanística passou a
ser um dos objetos tutelados pela Ação Civil Pública, que se
torna um importante instrumento a ser utilizado no controle
jurisdicional de Políticas Publicas, contribuindo na efetivação
e na garantia de um Município Ambientalmente Sustentável.
Palavras Chaves: Município Ambientalmente Sustentável.
Políticas Públicas. Ação Civil Pública. Política Urbana. Esta-
tuto da Cidade. Plano Diretor.

Introdução

As constantes catástrofes naturais ocorridas no planeta transformaram


a problemática ambiental em uma das principais preocupações da socieda-
de. É sabido que tal realidade é um reflexo da conduta humana, que sem-
pre se utilizou dos recursos naturais sem maiores preocupações. Assim, a
relação homem-meio ambiente precisa ser repensada, sendo necessário
uma modificação nas práticas sociais para evitar danos ainda maiores.
Um exemplo desta realidade é a situação atual das grandes cidades.
O processo de urbanização ocorrido nos últimos anos, fez com que a po-
pulação urbana crescesse demasiadamente, concentrando-se em gran-
des centros. Esse processo, aliado a falta de políticas públicas, fez com
que as cidades fossem ocupadas de forma desordenada, inclusive com a
utilização de áreas definidas como de preservação permanente.
1 Mestrando em Direito Ambiental UCS – Especialista em Direito da Economia e da Empresa
FGV/RJ – Advogado OAB/RS. Professor e Coordenador do Curso de Ciência Política da Faculdade
América Latina

828 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 829
A ideia de Município ambientalmente sustentável, derivada dos ob- O desenvolvimento sustentável indica uma utilização racional dos
jetivos da Política urbana, contidos na Constituição Federal, e das diretri- recursos naturais, que defina padrões qualitativos da produção e do
zes desta política, regulamentadas pelo Estatuto da Cidade, passa pela consumo, garantindo a existência digna das atuais e futuras gerações,
formulação e implementação de políticas públicas, entretanto, o Poder muito embora, na prática, esta definição acabou não se materializando,
Público pode apresentar-se omisso ou ineficiente nesta função, e para uma vez que o desenvolvimento sustentável foi interpretado de diferen-
a solução deste problema exigem-se instrumentos inovadores na esfera tes formas. O significado passou a variar e se dar a partir de concepções
jurisdicional, e que rompam com a ideia de processo como local onde ou ecológicas, ou sociopolíticas, ou econômicas, o que tem prejudicado
são resolvidas demandas individuais. o seu correto entendimento.
É sob essa constatação que surge a Ação Civil Pública, com o intuito Para este estudo, é importante destacar como o desenvolvimento
de defender interesses difusos, dentre os quais está a ordem urbanís- sustentável é visto no âmbito do meio ambiente urbano, onde o signifi-
tica. O apontamento de algumas das peculiaridades de como a Ação cado do termo também pode ser abordado de diversas formas, mas o
Civil Pública poderá ser utilizada no controle jurisdicional das Políticas conceito trazido por M. Castells e J. Borja aponta para um entendimen-
Públicas e na efetivação da garantia de um Município Ambientalmente to adequado:
Sustentável é o principal aspecto abordado neste artigo.
El desarrollo sostenible presenta distintas dimensiones que deben ser
tenidas en cuenta en el diseño de las estrategias de desarrollo urbano.
El concepto “desarrollo sostenible” debe enfatizar el desarrollo como in-
O Município Ambientalmente Sustentável cremento de riqueza material, como aumento de la calidad de vida – de
e a relação lógica com o Planejamento Urbano definición variable, según la cultura – y la reproducción de las condicio-
nes sociales, materiales e institucionales para seguir adelante con este
O que se entende por “Município Ambientalmente Sustentável”? A desarrollo. Por tanto, la sostenibilidad no tiene una única dimensión
busca de uma reposta para essa pergunta passará pela análise de duas ambiental, sino que incluye una visión integral del desarrollo urbano.3
questões: A primeira: o que significa o termo “desenvolvimento susten-
tável” e como ele pode ser abordado no âmbito urbano; e a segunda: Conforme disposto, a sustentabilidade urbana deve incluir uma vi-
como se deu o processo de urbanização no Brasil e os consequentes são integral do desenvolvimento urbano, não se baseando somente no
impactos ambientais urbanos. aspecto ambiental, e deve enfatizar o aumento da qualidade de vida.
Conforme leciona I. Sachs, o desenvolvimento sustentável surge a par- Embora essa seja a ideia, a concepção atual de cidade tem se dificulta-
tir de duas posições opostas sobre o futuro da humanidade, que foram de- do essa ênfase, uma vez que segundo os mesmos autores, as caracte-
batidas durante as preparações para a Conferência de Estolcomo. Uma, rísticas das ocupações urbanas contemporâneas são de degradação do
considerava que “as preocupações com o meio ambiente eram descabi- meio ambiente urbano:
das” e impediriam o crescimento de países em desenvolvimento, a outra,
En las condiciones actuales de las ciudades, el medio ambiente urbano
apontava para o apocalipse, no caso de não haver uma estagnação no se ha degradado notablemente. Existen numerosos aspectos en los que
crescimento demográfico e econômico, e principalmente do consumo. Es- se refleja esta pérdida de calidad de vida, entre los que podríamos citar la
tas duas posições extremas foram descartadas e emergiu uma alternativa contaminación atmosférica, el aumento de la superficie ruidosa, la dismi-
média, que objetivava o estabelecimento de um aproveitamento racional nución del confort climático, las espectaculares subidas de los consumos
na natureza, com vista ao desenvolvimento socioeconômico, denominado y la producción de residuos, el aumento de la inseguridad vial o la mayor
concienciación de la existencia de barreras arquitectónicas.4
desenvolvimento sustentável, que engloba os aspectos e a harmonização
de objetivos sociais, ambientais e econômicos. 2
3 BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local y global: la gestión de las ciudades en la era de la
información. Madri: Taurus, Habitat, 1997. P.195
2 SACHS, Ignacy. Caminhos para o desenvolvimento sustentável. 3. ed. Rio de Janeiro: Gara- 4 BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local y global: la gestión de las ciudades en la era de la
mond, 2002. p 50-55. información. Madri: Taurus, Habitatm, 1997. p.198.

830 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 831
Este problema também é característico no Brasil, e têm origem no população irregular e seu reassentamento em outro local, com o obje-
desordenado processo de urbanização, que ocorre com a saída de pes- tivo de garantir a proteção dos recursos naturais. Do outro lado, esta a
soas da área rural e das pequenas cidades rumo aos grandes centros, perspectiva urbana, que defende a regularização da própria ocupação,
sendo que “entre 1940 e 2000 o país apresentou um crescimento da tendo em conta os aspectos sociais. 9 Neste debate há um entendimen-
população urbana de 31,2% para 81,2%, passando de uma condição to de que “a intocabilidade destas áreas tem sido ineficaz para cumprir
basicamente rural para outra, predominantemente urbana”. Além disso, a função de proteção ambiental”, pois “a proibição cria vazios urbanos
em 1950 o Brasil tinha apenas duas cidades com mais de 1 milhão de propensos a novas ocupações informais”. Segundo as autoras, “as APPs
habitantes e na década de 1990, esse número saltou para 13 cidades.5 transformam-se em grandes espaços isolados dentro da malha urbana,
Esse processo é caracterizado pela falta de planejamento, e, quando em que a proibição de acesso não tem sido suficientes para evitar os
existente, acaba por levar em consideração somente uma parte da cida- danos aos recursos ambientais”, sendo frequentes a sua depredação,
de, dando margem para criação da “cidade fora das ideias” 6, que são independente do tipo de uso. 10
localidades que emergem paralelas as leis, devido a falta de uma preo- Nesta linha, se tem claro que os impactos ambientais urbanos origi-
cupação sistêmica com o Município e um dos efeitos dessa exclusão ter- nam-se, em especial, na falta de planejamento da ocupação das cidades.
ritorial e habitacional dos assentamentos espontâneos é a depredação A concentração de população em grandes centros, que passaram a ser
ambiental. ocupados de forma desordenada, acabou criando sobrecargas urbanas,
Consoante dispõe E. Maricato, as áreas ambientalmente frágeis, fator que tem afetado a qualidade de vida nessas localidades, que se
como a beira de córregos, rios e reservatórios, encostas íngremes, man- afastam, cada vez mais de uma situação ambientalmente sustentável.
gues, áreas alagáveis fundos de vale, merecem legislação específica, e Isto posto, não há como negar que existe uma relação lógica entre
devido a esse fato não interessam ao mercado legal. Essas localidades planejamento e a sustentabilidade urbana. Portanto, pode-se afirmar
são consideradas como as que “sobram” para a moradia de grande par- que o Município ambientalmente sustentável é o Município planejado
te da população. 7 As consequências dessas ocupações nesses locais com base em políticas públicas, formuladas e implementadas com fun-
são muitas, como a poluição dos recursos hídricos e dos mananciais, damento nos preceitos da Política Urbana, apontados nos art. 182 e
banalização de mortes por desmoronamentos, enchentes, epidemias.8 183 da Constituição Federal, que são regulamentados pelo Estatuto da
Outra questão que afeta diretamente a temática deste artigo é a Cidade. A forma como se dará abordagem sobre as Políticas Públicas é
ocupação das áreas urbanas de preservação permanente. Neste caso, o tema do próximo tópico.
o poder público, demonstra-se ineficiente tanto na efetivação da prote-
ção integral quanto na apresentação de alternativas socioeconômicas, Apontamentos Gerais na abordagem
ficando inerte diante deste grave dilema. M. Bezerra e T. Chaer afirmam, das Políticas Públicas
que duas visões diferenciadas predominam neste debate: de um lado
esta a perspectiva ambiental, que aponta como solução a remoção da Segundo C. de Souza, “não existe uma única, nem melhor, definição
sobre o que seja política pública” 11. Conforme dispõe a autora, do pon-
5 SILVA, Lucia Sousa e; TRAVASSOS, Luciana. Problemas ambientais urbanos: desafios para a
elaboração de políticas públicas integradas. Disponível em http://web.observatoriodasmetropoles.
net/download/cm_artigos/cm19_118.pdf. Acesso em 05/01/2010. p. 32. 9 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de prote-
6 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES, ção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20
Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis: Vozes, CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em 23.11.2010. p. 2.
2000. p. 152. 10 BEZERRA, Maria do Carmo; CHAER, Tatiana M. S. Regularização fundiária em áreas de prote-
7 MARICATO, Ermínia. A Idéia fora do Lugar e o Lugar fora das Idéias. P. 121-192 in ARANTES, ção ambiental - a visão urbana e ambiental. Disponível em http://www.joaobn.com/chis/Artigos%20
Otília. VAINER, Carlos. MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. 2. ed. Petrópolis. Vozes. CHIS%202010/106-C.pdf. Acesso em 23.11.2010. p. 3.
2000. p.163. 11 SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8,
8 COELHO, Maria Célia Nunes. Impactos Ambientais em Áreas Urbanas – Teorias, Conceitos e nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45. p. 24. Acrescenta a autora: Mead (1995) a define como um campo
Métodos de Pesquisa. p. 19-45 in GUERRA, Antonio José Teixeira; CUNHA, Sandra Baptista da. dentro do estudo da política que analisa o governo à luz de grandes questões públicas e Lynn
Impactos Ambientais Urbanos no Brasil. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. p. 27-28. (1980), como um conjunto de ações do governo que irão produzir efeitos específicos. Peters (1986)

832 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 833
to de vista teórico-conceitual, a política pública é multidisciplinar, “e seu Assim, não será encontrado um conceito de política pública no Di-
foco está nas explicações sobre a natureza da política pública e seus reito, todavia os objetivos que ela pretende atingir serão buscados no
processos.” Desta maneira “uma teoria geral da política pública implica ordenamento jurídico: “sua identidade deve estar ajustada à contida no
a busca de sintetizar teorias construídas no campo da sociologia, da ci- ordenamento jurídico”. É fato a existência de atos discricionários, que
ência política e da economia.”. Resumidamente, a política pública pode permitem uma interpretação subjetiva do agente público na tomada de
ser considerada como um “campo do conhecimento que busca, ao mes- decisão podem desviar a finalidade destas políticas, entretanto, haven-
mo tempo, “colocar o governo em ação” e/ou analisar essa ação e, quan- do incongruência com a norma positivada, a política pública deverá ser
do necessário, propor mudanças no rumo ou curso dessas ações”.12 descartada. 16 A construção de políticas públicas efetiva-se com a sua
Embora não seja lembrado pela autora, o Direito é preponderante formulação e implementação.
neste tema, pois “a política pública a ser aplicada é aquela escorada no A utilização dos termos “formulação, implementação e monitora-
espírito da lei”. 13 Desta forma, o Direito deve atuar não conceituando, mento” de políticas públicas ocorre pois a responsabilidade e a compe-
mas através da criação de “métodos jurídicos capazes de objetivar a for- tência dos governos locais será avaliada a partir do modelo denominado
ma como dados políticos, sociais e econômicos devem ser apreendidos ciclo da política pública 17, que tradicionalmente classifica as políticas
pelo Executivo e pelo Legislativo para conformar projetos de governo e públicas em três fases: formulação, implementação e controle.
de Estado” 14. Nesse sentido: A fase da formulação consiste na definição das prioridades, onde
algumas questões como “O que determina que uma questão passe a
Políticas públicas são microsistemas de Direito, integrados entre si, ter relevância a ponto de ser incluída na agenda? Como uma questão
que obrigam, ao mesmo tempo, o legislador, o administrador, o juiz e se torna relevante? Quem elabora as políticas públicas?” 18 devem ser
a própria sociedade a concretizar princípios e programas, explícita ou
respondidas. Nesta fase é indispensável que a definição das políticas
implicitamente contidos no texto constitucional, para a efetiva legiti-
mação de aspirações resultantes de projetos sociais ideológicos. Eles públicas, que devem ter como objetivo aqueles dispostos na Constitui-
são a cristalização e a efetiva concretização de uma verdadeira realiza- ção Federal. Para o autor J. Camargo, a escolha dos programas depende
ção do Estado. Nesse aspecto, a constituição passa a ser considerada de vários fatores, entre os quais ele destaca: “o volume de recursos,
muito mais como estatuto político do que jurídico, já que determina definição de prioridades e geração de incentivos.” 19 Conforme orientam
fins capazes de transformar e moldar o Estado, não se limitando a fi- C. Gelinski e E. Seibel, “O montante de recursos e as prioridades esta-
xar um estatuto organizatório de competências, limites e declarações belecidas é que definirão a abrangência das políticas, isto é se serão fo-
abstratas de garantias e direitos fundamentais. Ela procura conformar
um Estado Novo, não fixar normas de regulação para um Estado exis- 16 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 111.
tente. 15
17 SILVA, Pedro Luiz Barros; MELO, Marcos André Barreto. O Processo de Implementação de Po-
líticas Públicas no Brasil: Características e determinantes da Avaliação de Projetos. Disponível em
segue o mesmo veio: política pública é a soma das atividades dos governos, que agem diretamente
www.nepp.unicamp.br/d.php?f=42. Acesso em 11.06.2011. p. 06. Embora o modelo seja perti-
ou através de delegação, e que influenciam a vida dos cidadãos. Dye (1984) sintetiza a definição
nente para o estudo, que pretende identificar as competências e as responsabilidades dos governos
de política pública como “o que o governo escolhe fazer ou não fazer”. A definição mais conhecida
locais em relação as políticas públicas de planejamento de ocupação, os autores referem algumas
continua sendo a de Laswell, ou seja, decisões e análises sobre política pública implicam responder
limitações do modelo, afirmando que essa perspectiva de análise do ciclo político está “assenta-
às seguintes questões: quem ganha o quê, por quê e que diferença faz.
da em premissas equivocadas” pois, “em primeiro, ela confere um primado excessivo à atividade
12 SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão da literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, de formulação, em detrimento das outras dimensões. Embora a questão da implementação e do
nº 16, jul/dez 2006, p. 20-45. p. 25-26. monitoramento sejam incorporados a análise, a formulação é vista como uma atividade não proble-
13 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades. mática. Assume-se que: o diagnóstico que informa a formulação de políticas esta essencialmente
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 87. correto; o formulador dispõe de todas as informações necessárias ao desenho das propostas pro-
14 RIZZO JUNIOR, Ovídeo. Controle Social Efetivo de Políticas Públicas. 2009. 207 f. Tese (Dou- gramáticas; o formulador dispõe de um modelo causal válido.”
torado em Direito Econômico e Financeiro) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São 18 GELINSKI,Carmen Rosario Ortiz; SEIBEL; Erni José. Formulação de políticas públicas: questões
Paulo, 2009. p.103. metodológicas relevantes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, v. 42, n. 1 e 2, p.
15 RIZZO JUNIOR, Ovídeo. Controle Social Efetivo de Políticas Públicas. 2009. 207 f. Tese (Dou- 227-240, Abril e Outubro de 2008. p. 235.
torado em Direito Econômico e Financeiro) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São 19 CAMARGO, J.M.. Política social no Brasil: prioridades erradas, incentivos perversos. São Paulo
Paulo, 2009. p.104. em Perspectiva, 18(2): 68-77, 2004. p. 69.

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calizadas ou de caráter universal”. 20 Neste caso, pode considera-se que As Políticas Públicas Urbanas: Objetivos,
a formulação termina, a partir do momento em que a política pública é Diretrizes e Instrumentos de Planejamento
de alguma forma regulamentada, sendo necessária sua colocação em
prática, ou, em outras palavras sua implementação. O Direito Urbanístico consiste no “conjunto de normas que têm por
Segundo P. Silva e M. Melo, a fase da implementação “correspon- objeto organizar os espaços habitáveis, de modo a propiciar melhores
de à execução das atividades que permitem que ações sejam imple- condições de vida ao homem na comunidade” 23 e, segundo B. Vichi,
mentadas com vistas à obtenção de metas definidas no processo de “a consecução de políticas públicas é praticamente a razão de ser do
formulação das políticas.” É nesta fase em que as políticas são colocas direito urbanístico”. 24 Através da articulação das ideias dos autores J.
em prática. 21 A terceira fase, do controle, significa um monitoramento da Silva e B. Vichi, chegar-se-á a conclusão de que um Município am-
constante nos resultados da política pública, com base na qual a formu- bientalmente sustentável somente será alcançado com a efetividade das
lação e a implementação poderão ser alteradas, para que o resultado políticas públicas.
buscado seja de fato atingido, em outras palavras: se configura como Há uma relação quase que intrínseca entre as regras de ocupação e
um “instrumento de correção de rota”. 22 as políticas públicas que lhes darão efetividade. Desta forma o Município
Tal verificação é relevante, por inúmeros aspectos: uma política ambientalmente sustentável será aquele que contar com uma ocupação
pública formulada não basta, é preciso sua implementação. A sua im- urbana planejada e baseada nos fundamentos da Política Urbana, que
plementação deve ser constantemente monitorada, para verificar se os são encontrados no art. 182 e 183 da CF e no Estatuto das Cidades.
objetivos propostos estão sendo alcançados ou para oportunizar uma A Constituição Federal é quem “encarta as decisões políticas da so-
melhoria no seu funcionamento. ciedade” e os princípios nela constantes exercem “influência sobre a le-
Baseando-se nas premissas apontadas até aqui, pode-se afirmar gitimidade das políticas públicas” 25 a serem executadas pelos governos.
que os fundamentos da Política Urbana é que darão base e orientarão Dito isso, o objetivo da Política Urbana no Brasil, constante no art. 182
a formulação das políticas públicas de planejamento da ocupação. En- caput 26 da Constituição Federal27, e que orientará qualquer política des-
tretanto, de pouco valerão esses fundamentos e essas formulações, se sa espécie, a ser desenvolvida no território nacional, é ordenar o pleno
elas não se realizarem, uma vez que a norma precisa atingir seu alcance. desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar
Desta forma, são indispensáveis instrumentos que deem forma e efeti- dos seus habitantes.
vem as pretensões dos governos locais, possibilitando a implementação Segundo J. Rocha, a efetivação da função social da cidade irá ser
de políticas públicas que garantam a consecução de objetivos propos-
tos. 23 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 49.
Nesse sentido, é necessário apontar quais são os fundamentos e os 24 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 111.
instrumentos jurídicos que orientam e vinculam os governos locais na
25 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades.
execução das políticas públicas de ocupação urbana, o que poderá ser Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 113.
verificado a partir dos objetivos, diretrizes e instrumentos que orientam 26 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em http://www.planalto.
a Política Urbana, com será visto no tópico a seguir. gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 07.01.2010. Art. 182. A política
de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e
20 GELINSKI,Carmen Rosario Ortiz; SEIBEL; Erni José. Formulação de políticas públicas: questões garantir o bem- estar de seus habitantes.
metodológicas relevantes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, EDUFSC, v. 42, n. 1 e 2, p.
27 Cf. PINTO, Vitor Carvalho. Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade. São
227-240, Abril e Outubro de 2008. p. 235.
Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. P. 117-128. “A Constituição de 1988 foi a primeira no Brasil
21 SILVA, Pedro Luiz Barros; MELO, Marcos André Barreto. O Processo de Implementação de Po- e talvez seja uma das únicas no mundo a tratar diretamente da politica urbana” isso ocorreu pois
líticas Públicas no Brasil: Características e determinantes da Avaliação de Projetos. Disponível em “quando a Assembleia Nacional Constituinte iniciou os seus trabalhos havia no Brasil um conjunto
www.nepp.unicamp.br/d.php?f=42. Acesso em 11.06.2011. p. 04. de fatores que convergiram para que a política urbana viesse a ser objeto de atenção: uma política
22 SILVA, Pedro Luiz Barros; MELO, Marcos André Barreto. O Processo de Implementação de Po- pública e uma burocracia estatal em funcionamento e prestigiada; uma sensibilidade social para a
líticas Públicas no Brasil: Características e determinantes da Avaliação de Projetos. Disponível em problemática urbana; uma proposta de institucionalização do direito urbanístico em tramitação no
www.nepp.unicamp.br/d.php?f=42. Acesso em 11.06.2011. p. 04. Congresso Nacional; um conjunto de organizações mobilizadas para alterar as políticas publicas.”

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cumprida quando o direito à cidade puder ser exercido em sua plenitu- cas. Segundo B. Vichi, esta norma “serve como referencial jurídico para
de: “isto inclui o direito a vida com dignidade, a moradia, a alimentação, a consecução de políticas urbanas, cumprindo um papel fundamental de
a saúde, a segurança, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado” 28 sistematização e ordenação coordenada das ações políticas” na cidade
nesse sentido, observados estes preceitos, estaria garantido o bem-es- 31
. Entretanto, formuladas, as políticas públicas precisam ser implemen-
tar dos habitantes. Com igual entendimento M. Cammarosano reforça tadas. Para isso é que existem os instrumentos de Política Urbana, em
que o objetivo principal da política urbana é garantir que a cidade seja especial, o Plano Diretor. Nesse sentido, C. Sunfeld esclarece que “con-
direcionada aos anseios dos seus habitantes: vém não superestimar os efeitos imediatos do Estatuto, pois ele, em
larga medida, é um conjunto normativo intermediário” e que, embora
[..] parece certo que a finalidade mais imediata dos dispositivos cons- em muitas de suas regras não dependa de “complementação legislativa”
titucionais em questão é viabilizar a democratização das funções so- em outras, como é o caso do planejamento da ocupação urbana para
ciais da cidade em proveito de seus habitantes, prevendo mecanismos
a garantia de um Município ambientalmente sustentável, o Estatuto da
de promoção do adequado aproveitamento do solo urbano. 29
Cidade exige “desdobramentos legislativos ulteriores”. 32

O principal destes desdobramentos é o Plano Diretor, que é defi-
O caput do art. 182 da Constituição além de dispor sobre o objetivo
nido como “o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
orientador de toda a Política Pública a ser realizada no Brasil, aponta
expansão urbana”. Justamente por ser considerado “o mais importan-
outras duas questões fundamentais: que o executor dessa política será
te instrumento de planificação urbana previsto no Direito Brasileiro” 33,
o poder público municipal, e, que as diretrizes dessa política serão es-
este instrumento deve ser abordado de forma cautelosa e consciente.
tabelecidas em lei, estando dispostas no art. 2º da Lei n. 11.257, o
Não se pode permitir que um otimismo exacerbado em relação ao ins-
Estatuto da Cidade 30.
tituto, acabe por ocultar alguns problemas inerentes a aplicação e, que
No total, o Estatuto da Cidade prevê dezesseis diretrizes, que devem
se veja, de maneira simplista, a construção de um plano como a solução
ser compreendidas a partir do que determinam os objetivos da Política
de todos os problemas das cidades contemporâneas, como bem aborda
Urbana, estudados até aqui. Entre elas, podem ser citadas aquelas dis-
os autores J. Borja e M. Castells:
postas no art. 2º, nos incisos I; IV e XII e que dão respaldo ao objeto de
estudo deste artigo. Tais diretrizes garantem o direito a cidades susten- [...] nos parece que hay que guardar-se de mitificar el gran proyecto
táveis, a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natu- en si mismo, suponer que la flexibilidad o la desregulación (respecto a
ral e construído, e, que o planejamento do desenvolvimento das cidades planes o normas generales) resuelven automáticamente su viabilidad
deve ocorrer de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento y su adecuación al entorno y que el partenariado, por su parte, garan-
urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente. tiza la complejidad posible.
Assim, da mesma forma que na Constituição Federal encontra-se o El agotamiento del planeamiento territorial clásico y la ambigüedad
objetivo da Política Urbana, no Estatuto da Cidade estão dispostas as di- del gran proyecto supuestamente aislado obliga a proponer un pla-
neamiento adecuado a la naturaza de las intervenciones que corres-
retrizes, que deverão ser observadas na formulação das políticas públi-
ponden a los nuevos espacios metropolitano urbano-regionales. 34
28 ROCHA, Julio César de Sá da. Função Ambiental da Cidade. São Paulo: Juarez de Oliveira,
Muito contribui na construção de uma visão mais crítica e elaborada
1999. p. 36
31 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades.
29 CAMMAROSANO, Márcio. Fundamentos Constitucionais do Estatuto da Cidade. p. 21-26. In
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 122.
DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade: Comentários à Lei Federal 10.257.
2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 22. 32 SUNFELD, Carlos Ari. O Estatuto da cidade e suas diretrizes gerais. In DALLARI, Adilson Abreu;
FERRAZ, Sergio (Org.). Estatuto da Cidade: Comentários à Lei 10.257/01. São Paulo: Malheiros,
30 Cf. VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabili-
2002. p. 54.
dades. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 119. “[...] a Lei n. 10.257/01 é destacadamente
o estatuto que enfeixa, juridicamente, as linhas gerais da política urbana, fixando-se suas diretri- 33 CÂMARA, Jacintho Arruda. Plano Diretor. In DALLARI, Adilson Abreu; FERRAZ, Sergio (Org.).
zes gerais e regras de competência para sua implementação, elencando instrumentos políticos e Estatuto da Cidade: Comentários à Lei 10.257/01. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 311.
jurídicos de atuação, determinando institutos de gestão democrática em matérias urbanísticas e 34 BORJA, Jordi; CASTELLS, Manuel. Local y global: la gestión de las ciudades en la era de la
definindo práticas comissivas ou omissivas incompatíveis com a política urbana definida.” información. Madri: Taurus, Habitat, 1997. p. 237.

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sobre o alcance e as limitações do Plano Diretor, o autor L. Alochio, en- da situação existente, bem como, o fato que deflagrou a causação da
tendendo que “não se pode continuar acreditando cegamente na ilusão realidade atual”. Essa construção seria indispensável para que os Mu-
de que o planejamento pelo planejamento seja a solução” nesse senti- nicípios adotassem “planos devidamente estruturados e adequados às
do, há “planejadores que esquecem que o sucesso de um planejamento suas realidades”. 37
não depende apenas do que é feito, mas como é feito”, argumentado Essa “mobilidade das normas urbanísticas” se faz necessário, segun-
ainda que o Plano, em especial no Brasil, “não é mais Diretor” e “acaba do J. Miranda, pois os problemas de ocupação urbana “evoluem com o
assumindo a definição por completo do que se pode esperar da cidade”. tempo, e a forma de os resolver tem de acompanhar esse dinamismo.”
Nesse sentido, “a lei tem ficado demasiadamente inchada, superlativa, 38
Nesse quadro, há duas constatações pertinentes, que contrariam a
minudente, exauriente, enfim, suforcadora, autoritária, fascista”. Em ou- ideia do plano diretor como um planejamento estático e imutável: o
tras palavras, o próprio autor indaga: “Planejar é bom; porém, qual a poder público se vê diante da “necessidade de alteração freqüente da
extensão desse plano para que a ordenação não se transforme em um legislação e da regulamentação dos planos urbanísticos” e “as regras de
grilhão da comunidade?” Nesse sentido, o planejamento deixa de exis- urbanismos têm, por natureza, um caráter temporário”. 39
tir, dando espaço a um ato de “controle da cidade, travestido de plano”: Segundo V. Pinto, um aspecto fundamental a ser destacado para que
se compreenda o Plano “no sistema de planejamento urbano é o que ele
Não estamos diante de um objetivo a ser alcançado e das diretrizes se constitui em pré-requisito para a realização de obras públicas e para o
para tal fim. Já se quer, através do plano, o engessamento das possi- parcelamento do solo urbano”, nesse sentido “o Plano não deve se limitar
bilidades de erro. Com isso, obtém-se tão somente a vedação do dife-
a fixar diretrizes gerais, a serem posteriormente traduzidas em leis urbanís-
rente. Mesmo o diferente que possa vir a ser melhor. Ou, coisa pior, o
discurso do plano, se transforma veladamente em algo suficiente em ticas, mas deve estabelecer concretamente a ordenação do território urba-
si, ficando extremada a visão estática de nossas leis-plano. Nossas lei- no” e reunir de forma exclusiva, “os elementos necessários para defini-la”.
pla­no, no Direito Urbanístico, padecem de uma nobreza franciscana, Com base nesse entendimento, o Plano Diretor deve abarcar as re-
a despeito de seu inchaço. Particularmente deixam de dar atenção gras de planejamento que irão estabelecer de que forma irá ocorrer
àquele que é o principal princípio para qual os doutrinadores do Di- parcelamento do solo, e orientará onde serão realizadas as obras públi-
reito do Urbanismo se têm voltado nos últimos tempos. Referimo-nos cas e como se dará a ocupação do território urbano. Assim, definido o
ao Princípio da Mobilidade ou Mutabilidade das normas de planos ur- Plano Diretor, as políticas públicas de planejamento da ocupação, esta-
banísticos. Raramente os PDUs se ocupam com a mutação normativa,
rão vinculadas as regras nele formuladas, restando aos governos locais
que é inerente ao Direito Urbanístico. 35
implementá-las. Nesse quadro, eventuais diretrizes políticas programá-
ticas servirão apenas para sustentar a definição das prioridades. 40
O autor entende que o planejamento deve ser observado com ponde-
Além do Plano Diretor, os governos locais necessitam de outros ins-
ração, uma vez que, “o planejamento urbano só será eficaz se for capaz de
trumentos para que os objetivos da política urbana sejam alcançados e
oferecer condições de reação quando os problemas das cidades se apresen-
as diretrizes sejam observadas. Essa constatação se dá, pois o Plano,
tarem em dado momento histórico”, ou seja, a efetividade estará na capaci-
dade de identificar e enfrentar os efeitos decorrentes de um problema.36 37 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 126.
Assim, L. Alochio, defende que o planejamento urbanístico não
38 MIRANDA, João. A dinâmica jurídica do planeamento territorial: a alteração, a revisão e a sus-
pode ser estático, sendo necessário que haja uma “visão dinâmica e pensão dos planos. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. p. 14.
evolutiva” acerca do plano. Esse processo envolveria, como “uma das 39 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e
principais funções do plano, a realização de um levantamento exaustivo Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 126.
40 Cf. RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção
de um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 87. “O Plano
35 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e Direto é um dos instrumentos eficazes de planejamento, que vinculam os atos do administrador de
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 87-89. forma permanente a curto, médio e longo prazo, sob pena de responsabilidade. Ele significa um
36 ALOCHIO, Luiz Henrique Antunes. Plano Diretor e Estatuto da Cidade: Medidas Cautelares e projeto de cidade que não é de ninguém, mas que pertence a todos. A construção de obras vincu-
Moratórias Urbanísticas. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 91. ladas ao Plano Diretor significa o fim do personalismo dos prefeitos.”

840 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 841
isoladamente, de nada valerá, se outros instrumentos jurídicos munici- num ideal individualista” 44, o aumento da complexidade social exige “o
pais não estiverem de acordo com suas regras, assim, J. Silva, aponta desenvolvimento de novas formas jurídicas que superem, tanto quanto
que uma das características das normas urbanísticas é que elas devem possível, o modelo processual calcado numa visão individualista de di-
ser observadas de forma sistêmica: “a normatividade urbanística impõe reito subjetivo”. 45
uma visão dinâmica dirigida ao complexo de normas e dos instrumentos Assim, com o avanço das relações sociais e sua conjectura com-
urbanísticos” e não a observação da norma de forma singular e os efei- plexa, novos instrumentos são necessários, para que os interesses
tos, que, isoladamente ela produziria. 41 difusos sejam efetivados, em outras palavras, M. Abelha dispõe que
Ainda com base neste autor, as normas urbanísticas no Brasil “não “se fossem confrontados as técnicas processuais existentes” no CPC
adquiriram unidade substancial, formando conjunto coerente e sistema- tradicional com “certos problemas que são frutos de uma sociedade
do legislativamente” e encontram-se dispersas em diversas instituições, de massa” não seria possível “oferecer uma resposta satisfatória, ou
não guardando relação entre si, o que dificulta a sua eficácia. 42 Neste soluções justas”.
sentido, A. Rech destaca a necessidade de haver uma vinculação das Um destes instrumentos processuais é a Ação Civil Pública. Conso-
normas municipais com o planejamento de ocupação dos Municípios: ante o entendimento de H. Mazzilli, a Ação Civil Pública, seria, “a rigor,
sob o aspecto doutrinário” aquela de “objeto não penal proposta pelo
As leis municipais são todos instrumentos de planejamento, que de- Ministério Público”, entretanto, com o advento da Lei n. 7.347/1995,
vem observar o Plano Diretor e servir também como instrumento de ela “nada mais é do que uma espécie de ação coletiva, como o mandado
sua efetivação. Mas o que ocorre é uma profusão de normas sem
de segurança coletivo e ação popular”, que versa sobre a defesa de inte-
nenhuma preocupação com o planejamento, desvinculadas do Plano
Diretor. 43 resses difusos, coletivos e individuais homogêneos. 46 Este trabalho tem
como objetivo apontar as peculiaridades de como a Ação Civil Pública
Desta forma, se as normas forem criadas deliberadamente, sem co- poderá ser utilizada como um instrumento de controle jurisdicional de
nexão com o Plano Diretor, a implementação das políticas públicas de políticas públicas na garantia de um município ambientalmente susten-
planejamento da ocupação urbana se distanciarão dos objetivos e das tável, entendendo-se este, como um interesse difuso oriundo da ordem
diretrizes da Política urbana, tornando-se, ainda mais difícil, a garantia de urbanística.
um Município ambientalmente sustentável. Assim, havendo ineficiência Conforme L. Figueiredo pode-se afirmar que os interesses difusos
ou omissão na atuação do Município, poder-se-á buscar a tutela no Poder “são aqueles que transcendem a esfera do individuo”, sendo de direito
Judiciário, e um dos instrumentos a ser utilizado é a Ação Civil Pública. de todos “não obstante seu reflexo individual”, nesse sentido, o direi-
to difuso caracteriza-se por abrigar o direito “da coletividade como um
todo” sendo que essa “é a característica fundamental do direito difuso.
A Ação Civil Pública: reflexões sobre Não obstante, possa haver direito individual”. 47 Reforçando o entendi-
a Defesa da Ordem Urbanística mento de que o interesse difuso é de cada um e de todos ao mesmo
tempo, M. Abelha destaca que se trata do “interesse que cada indivíduo
Embora a tutela de interesses coletivos apresente-se na contramão
44 ABELHA, Marcelo. Ação Civil Publica e Meio Ambiente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Univer-
dos regramentos contidos no Código de Processo Civil, fator que pode sitária, 2004. p. 12.
ser comprovado “numa singela leitura”, onde “não teremos dúvidas de 45 MENDES, Gilmar Ferreira. Ação Civil Pública e Controle de Constitucionalidade. p. 151- 165. In
que a nossa regra fundamental de direito processual civil foi montada WALD, Arnoldo (Coordenador). Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. 2ª ed. São Paulo: Sarai-
va, 2007.p 151.
46 MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 22ª ed. São Paulo: Saraiva,
41 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 61. 2009. p. 74.
42 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 6 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 37. 47 FIGUEIREDO. Lúcia Valle. Ação Civil Pública. Ação Popular. A defesa dos interesses difusos
43 RECH, Adir Ubaldo; RECH, Adivandro. Direito Urbanístico: Fundamentos para a construção de e coletivos. Posição do Ministério Público. P. 233-256. WALD, Arnoldo (Coordenador). Aspectos
um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 205. Polêmicos da Ação Civil Pública. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 234-235.

842 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 843
possui pelo fato de pertencer à pluralidade de sujeitos a que se refere a De acordo como o art. 5º da Lei da ACP, têm legitimidade para pro-
norma em questão”. 48 por a ação principal e a ação cautelar, entre outros, o Ministério Público,
A ordem urbanística é expressamente tutelada pela Lei da Ação Civil a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e as associações.
Pública, no art. 1º, VI da Lei n. 7.347 de 1985. Nesse sentido, C. Bue- Neste quadro, conforme dispõe L. Figueiredo, o Ministério Público “por
no, dispõe que “não é por falta de lei, nem por falta de instrumento efi- força dessa legitimidade ativa [...] tem o dever de propor a ação civil
caz de sua aplicação compulsória, que as diretrizes da Lei 10.257/2001 pública, todas as vezes que essa se coloque como possível” 53 E, de fato,
serão frustradas” 49 e acrescenta: como informa o autor C. Bueno, a ação civil pública visando a tutela da
ordem urbanística tem como uma das situações mais comuns aquelas
O papel a ser desempenhado pela ação civil pública voltada a “ações civis ajuizadas pelo Ministério Público (Estadual e Federal) em
proteção da ordem urbanística é o de dar efetivo cumprimento face de pessoas políticas e/ou administrativas visando a compeli-las ao
às diversas normas de conteúdo material previstas no Estatuto da
cumprimento de políticas publicas” e acrescenta que “a atuação do Mi-
Cidade e, evidentemente, em outros diplomas legislativos federais,
estaduais, distritais ou municipais que digam respeito a “ordem ur- nistério Público, nesse particular, tem tudo para ser decisiva quanto ao
banística. 50 sucesso e efetividade dessas prescrições substanciais.” 54
Embora não tão usual, ainda segundo C. Bueno, a União, os Estados
Neste quadro é que está contextualizada a Ordem Urbanística. Sua membros e os Municípios também poderão valer-se deste instrumento
tutela através da Ação Civil Pública representa um instrumento de ga- “contra particulares ou, de maneira mais geral, contra os destinatários
rantia de que os objetivos da Política Urbana, constantes no art. 182 da das normas definidoras das políticas urbanísticas” e aprofunda a expli-
Constituição Federal sejam alcançados, e que as diretrizes, dispostas no cação, trazendo um exemplo:
Estatuto da Cidade, sejam cumpridas. Tais interesses são difusos, uma
O que tem aptidão para ser diferente, se não novo, no caso do Es-
vez que há uma indeterminação na quantidade de pessoas protegidas
tatuto da Cidade, é que o Município que vê, de qualquer forma, o
por esta regra. Nesse sentido, H. Mazzilli, dispõe que “a jurisprudência particular frustrando o cumprimento de seu palno diretor ou, mais
já reconheceu acertadamente que, quando o interesse a ser tutelado amplamente, de quaisquer diretrizes urbanísticas pode valer-se da
em juízo é o respeito ao padrão urbanístico, cabe o ajuizamento de ação ação civil pública para impor jurisdicionalmente ao particular o dever
civil pública” e que “esse interesse tem natureza difusa, pois há indivi- de fazer ou de não-fazer descumprido. Na exata proporção em que a
sibilidade do objeto e uma indeterminação dos titulares, que não são só atuação administrativa mostrar-se insuficiente ou insatisfatória no
ligados entre si por nenhuma relação jurídica”. 51 perseguimento das políticas públicas e urbanísticas, a via jurisdicional
O fato de ser um interesse difuso traz consigo uma relação direta potencializada da ação civil pública está expressamente reconhecida
também para o Município. Formulo, a propósito, um exemplo: a ação
sobre de quem é a legitimidade para ingressar com este tipo de ação.
civil pública ajuizada pelo Município para que o proprietário de imóvel
No entendimento de C. Bueno, “todos os legitimados pelo art. 5º da subutilizado promova sua edificação ou utilização compulsória, nos
Lei 7.347/1985 detêm esta legitimidade, concorrentemente; e, nessas termos no art. 5º do Estatuto da Cidade. 55
condições, todos eles estão legalmente a tomar idêntica iniciativa”. 52
48 ABELHA, Marcelo. Ação Civil Publica e Meio Ambiente. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Univer- Quanto as associações é necessária a observância de dois requisi-
sitária, 2004. p. 43. tos: a pré-constituição e pertinência temática, o autor H. Mazzilli, dispõe
49 BUENO, Cassio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. P. 393 a 409. In DALLARI,
Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 409. 53 FIGUEIREDO. Lúcia Valle. Ação Civil Pública. Ação Popular. A defesa dos interesses difusos
50 BUENO, Cassio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. P. 393 a 409. In DALLARI, e coletivos. Posição do Ministério Público. P. 233-256. WALD, Arnoldo (Coordenador). Aspectos
Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 405. Polêmicos da Ação Civil Pública. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 244.
51 MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, 54 BUENO, Cassio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. P. 393 a 409. In DALLARI,
2009. p. 678. Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 406.
52 BUENO, Cassio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. P. 393 a 409. In DALLARI, 55 BUENO, Cassio Scarpinella. Ação Civil Pública e Estatuto da Cidade. P. 393 a 409. In DALLARI,
Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 407. Adilson de Abreu; FERRAZ, Sérgio. Estatuto da Cidade. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 407.

844 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 845
que, quanto a primeira “o juiz pode dispensar o prazo de pré-constitui- tanto, presente a ideia, da separação e harmonia dos poderes. Neste
ção, se houver manifesto interesse social evidenciado pela dimensão apanhado, as palavras de C. Souza Neto são elucidativas:
ou característica do dano” sendo assim “já se admitiu que o prazo de
pré-constituição pode ser completado no curso da própria ação”. Quan- Tem sido bastante discutida, como se sabe, a relação entre democra-
to ao segundo, “não pode ser dispensado pelo juiz” pois a pertinência cia e constitucionalismo. A possibilidade de o judiciário substituir, na
produção de normatividade, o legislativo e o executivo, legitimados
significa a adequação “entre o objeto da ação e a finalidade institucio-
pelo voto popular, exige, efetivamente, uma justificação complexa. 59
nal” sendo assim, “as associações necessitam, portanto, ter finalidades
institucionais compatíveis com defesa do interesse transindividual que
Nesse sentido, A. Freire Junior, refere que “a eleição não corresponde
pretendam tutelar em juízo” 56
a um cheque em branco e que, portanto, a atuação parlamentar deve
Desta forma, mesmo não apontado comentários mais aprofundados
respeito a Constituição, devendo o magistrado ter sensibilidade” garan-
acerca dos demais legitimados, como a Defensoria Pública, autarquia, em-
tindo que as forças políticas respeitem a Carta Magna, assim, “a atuação
presa pública, fundação ou sociedade de economia mista, na defesa dos
do juiz deve ser na efetivação das normas constitucionais, especialmente
interesses da ordem urbanística, fica evidente que inúmeras são as possibi-
os direitos fundamentais, mesmo que isso implique desagradar maiorias
lidades de utilização da Ação Civil Pública para a eficácia desta tutela.
ocasionais”.60 R. Mancuso, destaca que “as inconstitucionalidades que po-
A utilização da Ação Civil Pública para o controle de políticas pú-
dem inquinar as políticas públicas podem se revelar por via comissiva”, o
blicas em específico, se da pela existência de atos discricionários, que
que representaria a ineficiência ou “o fracasso dos objetivos colimados”
permitem uma interpretação subjetiva do agente público na tomada de
ou, “por via omissiva”, que estaria estampada “ante uma abstenção irre-
decisão, e que podem desviar a finalidade destas políticas, entretanto,
cusável” 61, e cada qual, merece uma apreciação específica.
havendo incongruência com a norma positivada, a política pública deve-
O controle judicial das políticas públicas, através da Ação Civil Pú-
rá ser descartada. 57 Sendo assim, o Plano Diretor, e as políticas dele ad-
blica deve apreciar, se houve omissão ou se há ineficiência na política
vindas, devem guardar relação com as diretrizes do Estatuto da Cidade,
pública prestada, isto “não para impedir a fixação da responsabilidade
estando presentes entre elas, aquelas que garantem a sustentabilidade
estatal, mas para que seja construída uma forma de viabilização” 62 do
ambiental do Município.
interesse difuso pleiteado, neste caso, a sustentabilidade ambiental a
O debate não se dá quanto a utilização ou não da Ação Civil Pública,
partir do planejamento urbano, como decorrente da ordem urbanística.
segundo R. Mancuso, o expediente tem sido utilizado, tanto “em matéria
Assim, “não há como sustentar o argumento de que a sindicalidade
de política urbana”, quanto “na defesa de segmentos marginalizados da so-
judicial sobre as políticas implicaria ingerência indevida do Judiciário so-
ciedade”, sendo que “a abertura constitucional e legal para que através da
bre a separação dos Poderes”, o que se torna fundamental, nas palavras
ação civil pública se promova a proteção judicial de “outros direitos difusos
de Renato Nalini é “a lucidez de consciência do Judiciário, quanto ao
e coletivos” acena para uma constante prospecção” afirmando ainda, que
que lhe incumbe quando custodia interesses difusos”. 63
tais interesses difusos, ocupam cada vez mais espaço, entretanto carecem
de uma tutela específica e tem, na Ação Civil Pública, esta possibilidade. 58 59 SOUZA NETO, Claudio Pereira. Teoria da Constituição, democracia e igualdade. Rio de Janeiro:
Verificada a possibilidade de utilização da Ação para controle de Lumen Juris, 2003. p. 1.
políticas públicas, o problema que surge é se há legitimação judicial para 60 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. Controle Judicial de Políticas Públicas. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2005. p. 61.
61 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Ação Civil Pública como Instrumento de Controle Judicial
56 MAZZILI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 22ª ed. São Paulo: Saraiva, das chamadas Políticas Públicas. p.753-798. In MILARÉ, Edis (Coordenador). Ação Civil Pública: Lei
2009. p. 309. 7.347/1995 – 15anos. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2002. p. 789.
57 VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Responsabilidades. 62 FREIRE JUNIOR, Américo Bedê. Controle Judicial de Políticas Públicas. São Paulo: Revista dos
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007. p. 111. Tribunais, 2005. p. 79.
58 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Ação Civil Pública como Instrumento de Controle Judicial 63 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Ação Civil Pública como Instrumento de Controle Judicial
das chamadas Políticas Públicas. p.753-798. In MILARÉ, Edis (Coordenador). Ação Civil Pública: Lei das chamadas Políticas Públicas. p.753-798. In MILARÉ, Edis (Coordenador). Ação Civil Pública: Lei
7.347/1995 – 15anos. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2002. p. 793-795. 7.347/1995 – 15anos. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais 2002. p. 789-791.

846 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 847
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diretrizes da Política Urbana, uma vez que, o processo de urbanização e dá outras providências. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/
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Havendo omissão ou ineficiência do Município na execução das Po- Comentários à Lei Federal 10.257. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
líticas Públicas, a Ação Civil Pública pode ser utilizada como um instru- COELHO, Maria Célia Nunes. Impactos Ambientais em Áreas Urbanas – Te-
mento de tutela jurisdicional, uma vez que a ideia de Município Ambien- orias, Conceitos e Métodos de Pesquisa. p. 19-45 in GUERRA, Antonio José
talmente Sustentável é um desdobramento da ordem urbanística; Teixeira; CUNHA, Sandra Baptista da. Impactos Ambientais Urbanos no Brasil.
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Na apreciação, o Poder Judiciário deve ter em vista não só a res-
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uma vez que, são constantes as colisões de direitos fundamentais, como resses difusos e coletivos. Posição do Ministério Público. P. 233-256. WALD,
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Acesso em 05/01/2010.
ou construção de casa própria. Com efeito, o foco deste estudo está nos
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plementação de Políticas Públicas no Brasil: Características e determinantes programas de governo vigentes que abrangem todo o território do país.
da Avaliação de Projetos. Disponível em www.nepp.unicamp.br/d.php?f=42. A fim de adentrarmos no mérito da questão proposta, necessário
Acesso em 11.06.2011. se faz tecer um exame sobre os direitos humanos, direitos sociais e a
SOUZA NETO, Claudio Pereira. Teoria da Constituição, democracia e igualda- evolução do direito à habitação no Brasil, no intuito de se estabelecer
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VICHI, Bruno de Souza. Política Urbana: Sentido Jurídico, Competências e Res- o cidadão e a cidade.
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1 Advogado. Mestrando em Política Social pela Universidade Católica de Pelotas.
2 Pós- Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Doutora em Direito pela
Universidade Federal do Paraná. Professora do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito da
UNISC- Universidade de Santa Cruz do Sul e do Mestrado em Política Social da UCPEL- Universi-
dade Católica de Pelotas-RS. Professora pesquisadora do CNPq e FAPERGS. Grupo de Pesquisa:
direito, meio ambiente e desenvolvimento.
3 Mestrando em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul. Bolsista CAPES.

850 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 851
Cabe também realizar uma rápida digressão sobre o instituto da pos- Locke, filósofos que defendiam a idéia de que existem direitos naturais,
se e o direito de propriedade, objetivando estabelecer suas diferenças, inerentes a todos os seres humanos a partir do nascimento e ainda, ina-
formas como os mesmos são tratados pelo Estado e suas influências no lienáveis, como o direito à vida e o direito à liberdade.
desenvolvimento social. Agregada ao direito de propriedade encontra- Com a evolução dos direitos humanos convencionou-se distribuí-los
-se a função social da propriedade, hoje considerada como peça chave e classificá-los em categorias, sendo a mais atual dividida em cinco ti-
na correta utilização dos espaços, principalmente os urbanos privados. pos: direitos de primeira, segunda, terceira, quarta e quinta dimensões.
Os direitos humanos de primeira dimensão abrangem os direitos
relacionados à proteção da vida e da liberdade, os quais impõem obri-
1. DIREITOS HUMANOS gações negativas ao Estado, ou seja, obrigações que impõem uma não
intervenção estatal na esfera pessoal do indivíduo. Os direitos humanos
A sociedade há muito trava conflitos relacionados à proteção do de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais econômicos, sen-
ser humano, os quais estão diretamente relacionados ao tensionamento do que estes carecem, para sua efetivação, de uma intervenção positiva
existente entre direitos individuais e coletivos. do Estado. Os direitos humanos de terceira dimensão são os direitos
Ao princípio o ser humano vivia de forma individualista, sem uma or- coletivos e difusos. Estão atrelados à idéia de proteção do todo social
ganização social. Entretanto, com o passar do tempo, fruto da evolução e apresentam como base um dos pilares da Revolução Francesa: a fra-
da espécie humana, o homem ultrapassa o pensamento puramente in- ternidade. Em sua gama de cobertura encontramos os direitos dos con-
dividual e ingressa no campo da coletividade, criando o que chamamos sumidores e de proteção ao meio ambiente. Os direitos humanos de
hoje de sociedade. quarta dimensão são aqueles que têm por escopo abarcar as questões
Muitos motivos podem ser levantados para explicar a união dos ho- relacionadas à biotecnologia, bioengenharia e bioética; direitos estes
mens para viver em sociedade. No dizer de Celso Ribeiro Bastos, tais surgidos a partir das inovações tecnológicas no estudo do genoma hu-
razões se confundem “[...] com o próprio evoluir do homem, perdendo-se, mano. Por fim, são considerados direitos humanos de quinta dimensão
portanto, nas origens da própria espécie humana.” 4 aqueles que versam sobre a realidade virtual, informática, cibernética.
A vida em sociedade transforma o modo de vida humano. O conví- Questão complexa e de difícil controle e atualização, tendo em vista a
vio coletivo gera problemas e conflitos sociais, que dão origem ao surgi- velocidade que acompanha seu desenvolvimento e evolução.
mento de estruturas de poder, e, mais tarde, à criação do Estado. Diante da breve exposição acerca da classificação dos direitos hu-
O Estado detém soberania em seu território. Contudo, essa soberania manos, destacam-se os direitos de segunda dimensão, direitos sociais,
estatal mostra-se vulnerável na hipótese de violação de alguns direitos do em especial o direito à moradia, tema a ser tratado no presente estudo.
cidadão, visto que atualmente, a idéia de humanidade ultrapassa fronteiras.
Ao adentrarmos na análise dos direitos humanos, merece ser destaca-
do o marco histórico de sua positivação internacional: a Declaração Univer- 2. DIREITOS SOCIAIS
sal dos Direitos Humanos, assinada em 1948, na qual constam os direitos
que todo o ser humano detém independentemente de suas condições, ten- A noção de direitos sociais surgiu no século XX e teve como norte
do sida ratificada pelo Brasil. Em tal carta encontramos os mais variados de positivação a Constituição Mexicana de 1917, a qual institui diversas
tipos de direitos: direito à vida, direito à educação, direito à habitação, etc. disposições relativas à previdência social e aos direitos dos trabalhado-
Os direitos humanos emergiram no cenário internacional em mea- res, merecendo destaque a definição de jornada máxima de oito horas
dos do século XX, contudo, o seu surgimento efetivo remonta ao final de trabalho, proibição de trabalho aos menores de quatorze anos e di-
do século XVIII, por meio do pensamento de Thomas Hobbes e John reito à capacitação ao trabalho.5

4 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Celso Bastos Edi- 5 CÁMARA DE DIPUTADOS. Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos. Dispo-
tor, 2002. p. 4. nível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.pdf>. Acesso em 25/11/2010.

852 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 853
No entanto, ao se analisar a Declaração dos Direitos do Homem e do los como integrantes das limitações materiais arroladas no art. 60
Cidadão de 1789 pode-se vislumbrar que a partir de então os direitos so- da CF/88, de sorte que as expressões direitos e garantias individuais
ciais começaram a fazer parte das discussões, ainda que de forma velada. se referem aos direitos fundamentais e sociais, estando, assim, pro-
tegidos dos atos do poder reformador (Congresso Nacional e Poder
No Brasil, os direitos sociais ingressam de forma positivada através
Executivo) de alteração constitucional, seja, como menciona Sarlet,
da Constituição de 1934, a qual instituiu normas sociais de proteção ao
na condição de limites expressos, seja como limites implícitos. 8
trabalhador, destacando-se a imposição de observância pela legislação
trabalhista dos seguintes preceitos: (a) proibição de diferença de salário

para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou
3. EVOLUÇÃO DO DIREITO À HABITAÇÃO NO BRASIL
estado civil; (b) salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condi-
ções de cada região, às necessidades normais do trabalhador;  (c) traba-
Muito embora seja um direito social de grande importância, o direito
lho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis
à habitação somente passou a ser inserido de forma clara nos textos
nos casos previstos em lei.6 Após este marco constitucional, os direitos
legais a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948,
sociais passaram a evoluir a passos largos, como decorrência direta da
ratificada pelo Brasil, como já referido.9
luta da classe dos trabalhadores frente à industrialização acelerada do
Assim, o direito à habitação já se encontrava protegido, de forma cla-
país e seus efeitos nefastos aos operários.
ra e específica, em um tratado internacional desde o ano de 1948. A par-
Atualmente, vários autores abordam a questão dos direitos sociais
tir de 1988 com a promulgação da atual Constituição Federal, o direito
e intentam descrevê-los e conceituá-los. Embora os direitos sociais atin-
à moradia deixou de ficar na penumbra da legislação nacional e passou
jam as pessoas na sua individualidade, tais direitos apresentam um fim
a ser tratado de forma mais evidente, entretanto, não ainda específica. A
maior, qual seja o benefício de toda a sociedade. A esse respeito Júlio
Constituição Federal de 1988 em seu artigo 7º, inciso IV assim estipulou:
César de Carvalho Pacheco assevera que os direitos sociais, extrapolam
o viés individualista dos direitos humanos de primeira dimensão, já que Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de ou-
se destinam “[...] à sociedade em geral, e não apenas a uma pessoa ou tros que visem à melhoria de sua condição social:
a um grupo isolado.” 7 IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de
Ante a relevante importância dos direitos sociais, os mesmos se en- atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com mo-
contram protegidos na atual Constituição Federal, não podendo nem radia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transpor-
mesmo ser objeto de alterações através de Emenda Constitucional. Nes- te e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o
se sentido, a lição de Pacheco: poder aquisitivo, sedo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Essa é uma questão polêmica entre os constitucionalistas, já que há Percebe-se, pois, que a Constituição brasileira de 1988 vinculou a
autores, como se irá verificar, que não consideram os direitos sociais moradia de forma indireta, ou seja, tendo como base a fixação de re-
como cláusulas pétreas. Entretanto, o mais adequado é conside­rá- muneração mínima, o salário mínimo, sendo que este deve atender as
necessidades básicas do cidadão, como por exemplo, a moradia.
6 Essa a redação do art. 121 da CF/1934: “A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as Dois anos mais tarde, no ano de 2000, por meio da Emenda Cons-
condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os
interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além
titucional nº 26, o artigo 6º da Constituição Federal foi alterado e com
de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: a) proibição de diferença de salário para
um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; b) salário mínimo, capaz 8 Ibidem, p. 156.
de satisfazer, conforme as condições de cada região, às necessidades normais do trabalhador;  c) traba- 9 Constou no artigo XXV da referida Declaração: “ Todo ser humano tem direito a um padrão de
lho diário não excedente de oito horas, reduzíveis, mas só prorrogáveis nos casos previstos em lei; [...].” vida capaz de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário,
PALÁCIO DO PLANALTO. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto. habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao34.htm>. Acesso em: 30/11/2010. desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência
7 PACHECO, Júlio César de Carvalho. Os Direitos Sociais e o Desenvolvimento Emancipató- em circunstâncias fora de seu controle.” ONU. Brasil. Disponível em <http://www.onu-brasil.org.br/
rios. 1. ed. Passo Fundo:Editora IMED, 2009, p. 148. documentos_direitosh umanos. php>. Acesso em 27/11/2010.

854 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 855
isto restou incluído o direito à moradia, agora de forma específica, con- dadãos, como entre estes e o Estado. A disputa pela posse de imóveis
forme a redação a seguir: “São direitos sociais a educação, a saúde, o é notícia corrente no meio social, enquanto que, na medida em que se
trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a pro- concede a propriedade do imóvel ao cidadão estes conflitos diminuem
teção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na e tendem a se extinguirem. Não são raros os casos de pessoas que, em
forma desta Constituição”. razão de dificuldades financeiras, se apossam de terrenos desocupados
Portanto, a maneira tímida como o direito à moradia vinha sendo e nestes locais passam a residir, exercendo precariamente a posse, em
tratado abriu espaço para uma maior garantia e importância no meio habitações subumanas e insalubres, ofensivas à dignidade humana.
jurídico e político. O direito à habitação passou a ser protegido direta- O direito de propriedade, por seu turno, é talvez a mais antiga das
mente pela Constituição Federal, o que passou a gerar discussões e pre- prerrogativas humanas. Nasce o “ter” quase que simultaneamente ao
ocupações sobre a efetividade de disponibilização de tal direito ao cida- “ser”. Em Roma (principal referência de leis escritas da antiguidade),
dão. Medidas eficazes e de grande abrangência com relação ao direito à construiu-se aquilo que é, até hoje, a estrutura do direito real de proprie-
moradia foram criadas após a alteração constitucional introduzida pela dade, consistente em um complexo de direitos ou prerrogativas exerci-
Emenda nº 26, a qual, como visto, incluiu definitivamente, o direito à das por uma pessoa sobre uma determinada coisa.
habitação de forma distintiva na Constituição Federal. Fixou-se, desde então, que o direito de propriedade é o direito con-
ferido a determinada pessoa de usar, gozar e dispor da coisa (vendê-la,
trocá-la), além de poder reavê-la das mãos de quem injustamente a pos-
4. A POSSE E O DIREITO DE PROPRIEDADE sua ou a detenha. Bruno Bauer, citado por Karl Marx expõe sobre o tema:

A posse se constitui no exercício de um dos poderes ou das facul- O direito humano da propriedade privada, portanto, é o direito de fruir
dades inerentes à propriedade, isto é, consiste no exercício de usar e/ou da própria fortuna e de dela dispor como se quiser, sem atenção pe-
gozar do imóvel. Então, aquele que exerce o direito ou faculdade de usar los outros homens, independentemente da sociedade. É o direito do
interesse pessoal. Esta liberdade individual e a respectiva aplicação
e/ou gozar do imóvel detém a sua posse. Porém, o possuidor apesar de
formam a base da sociedade civil. Leva cada homem a ver nos outros
poder usar e gozar do imóvel, não pode, ao contrário do detentor do di- homens, não a realização, mas a limitação da sua própria liberdade.
reito de propriedade, aliená-lo ou vendê-lo, quando muito pode apenas Afirma acima de tudo o direito de desfrutar e dispor como se quiser dos
ceder seus direitos de posse. seus bens e rendimentos, dos frutos do próprio trabalho e diligência. 10
Além disso, a posse é um direito temporário e precário, uma vez que
pode ser cessada contra a vontade do seu possuidor, o que via de regra Ao contrário da posse, a propriedade tem como características ser: ab-
não acontece com relação ao direito de propriedade. soluta, tendo em vista que é oponível contra todos; exclusiva, porque é in-
Importante salientar que a posse é adquirida desde o momento em tegral de seu titular não admitindo o fracionamento do direito mas apenas
que se torna possível o exercício, em nome próprio, do uso e/ou gozo do da coisa; definitiva: visto que somente pode ser retirada de seu titular com
imóvel. Destarte, qualquer pessoa pode adquirir a posse de um bem. E, a sua autorização (excepcionalmente o Estado pode retirar a propriedade
aquele que exerce a posse pode defendê-la através de ações judiciais, contra a vontade do titular, como nos casos de desapropriação).
contra terceiros. Mesmo a posse sendo um instituto precário, a lei a O direito de propriedade é por demais protegido pela lei e pelo
protege, resguarda o possuidor de ser privado do bem no qual está exer- direito constitucional, uma vez que exerce importância fundamental so-
cendo sua vontade por um período razoável de tempo. bre os direitos básicos do cidadão, em especial o direito à moradia, o
A posse se apresenta no meio social como algo tangível a qualquer qual se encontra resguardado no artigo 6º da Constituição Federal de
pessoa, seja por ser possível seu exercício sobre um bem móvel como 1988. De se enfatizar mais uma vez que a inclusão do direito à moradia
um bem imóvel. Neste ponto há que se salientar que as moradias exer-
cidas apenas através da posse geram muitos conflitos, tanto entre ci- 10 MARX, Karl. Manuscritos Económicos Filosóficos. 1. ed. Lisboa: Editora Edições 70, 1975,
p. 57.

856 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 857
no artigo 6º da Constituição Federal, o qual trata dos direitos sociais, Nas constituições que se seguiram, em especial a que está em vigor,
ocorreu apenas no ano de 2000, através da Emenda Constitucional nº promulgada em 1988, a função social da propriedade foi mantida como
26, a qual alterou o referido artigo. princípio, sendo ainda mais enaltecida com a legislação infraconstitu-
Realizadas tais considerações, cabe tecer uma análise sobre a fun- cional que também trata da questão, como por exemplo o Estatudo da
ção social da propriedade, mais especificamente da propriedade imóvel Cidade, Lei nº 10.257, vigente desde 10 de outubro de 2001.
urbana. No entanto, mesmo com o ingresso no ordenamento jurídico brasi-
leiro do princípio da função social da propriedade, sua conceituação não
se mostrou tarefa simples. A função social da propriedade urbana está
5. FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE URBANA inserida no contexto das cidades, entendidas como espaços territoriais
organizados no intuito de estabelecer convivência, segurança e provisão
A função social da propriedade pode ser vislumbrada de forma po- para seus habitantes. As cidades podem ser consideradas organizações
sitivada desde 1891, quando da publicação da Encíclica Rerum Nova- em constante mutação e que têm de se adaptar às mudanças introduzi-
rum, de autoria do Papa Leão XIII, a qual é considerada como base para das por seus próprios cidadãos, visando o bem comum, o bem social.
a mais tarde chamada doutrina social da igreja. A referida obra, além Assim, para que a propriedade urbana possa cumprir com sua fun-
de estabelecer direitos aos trabalhadores, humanidade e justiça nas re- ção social, deve se adequar aos ditames da cidade, mais especificamen-
lações de trabalho, também realizou considerações a respeito do uso te ao respectivo Plano Diretor, se houver, e ao Estato da Cidade, tendo
da propriedade. A Carta Papal definia que a propriedade quanto a sua em vista que nestes, via de regra, devem existir disposições que orien-
aquisição era individual, mas quanto ao uso coletiva. Assim, a utilização tam e determinam o desenvolvimento urbano ordenado e sustentável,
da propriedade pelo particular que a adquiriu devia ser voltada ao bem atingindo assim o bem social. Neste ponto, devem os imóveis urbanos,
comum, gerando benefícios para a coletividade. para atender sua função social, cumprir com algumas das funções da
No Brasil, a função social da propriedade teve sua introdução mar- cidade, as quais, segundo Lilian Regina Gabriel Moreira Pires, são a ha-
cada na Constituição de 1946, a qual dispôs que o uso da propriedade bitação, o trabalho, o lazer e a circulação:
deve ser condicionado ao bem-estar social, conforme artigo 147, que
assim determinava: “O uso da propriedade será condicionado ao bem- A cidade passa a ter como funções essenciais a habitação, o trabalho,
es­tar social. A lei poderá, [...], promover a justa distribuição da proprie- o lazer, a circulação e tudo isso visando à qualidade de vida. Todas
essas funções estão ligadas, principalmente, à forma de uso do solo
dade, com igual oportunidade para todos.” 11
apresentando, portanto, a propriedade urbana especial relevo. Essa
Entretanto, foi na Constituição de 1967 que a função social da pro- realidade veio estampada em nossa Constituição Federal, que dedi-
priedade adquiriu o status de princípio, demonstrando o interesse de se cou um capítulo à política urbana. 13
valorizar o uso adequado daquele direito, muito embora o Estado auto-
ritário da época tenha resguardado para si muitas prerrogativas sobre Portanto, pode-se afirmar que a cidade apresenta uma função social pró-
os direitos individuais.12 Dessa forma, a função social da propriedade pria e que a propriedade privada deve se adequar aos interesses daquela,
ingressou no ordenamento constitucional brasileiro com caráter de prin- cumprindo assim com a sua função social. Alguns autores, dentre eles Jac-
cípio, com grande relevância no que pertine ao tratamento a ser dado ques Távora Alfonsin, arriscam afirmar que o cumprimento da função social
ao direito dos proprietários de imóveis urbanos. da propriedade seria de responsabilidade objetiva do proprietário do imóvel:

11 PALÁCIO DO PLANALTO. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www. Visto o cumprimento da função social do direito de propriedade priva-
planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao46.htm>. Acesso em 30/11/2010. da, de outro lado, como responsabilidade do seu titular, e tendo em
12 Preconizava o artigo 157, inciso III, da CF/67: “A Ordem Econômica tem por fim realizar a conta as balizas constitucionais que tanto para o meio urbano quanto
justiça social. Com base nos seguintes princípios; ... III – função social da propriedade.” PALÁCIO
DO PLANALTO. Subchefia para Assuntos Jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ 13 PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira. Função Social da Propriedade Urbana e o Plano Di-
ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao64.htm>. Acesso em 30/11/2010. retor. 1. ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2007, p. 95.

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para o meio rural estão previstas para o gozo e exercício desse direito, A necessidade da criação do BNH se deu muito em razão do acele-
parece claro que tal responsabilidade é objetiva, seja para aferição dos rado crescimento urbano e migração do homem do campo para a cida-
efeitos jurídicos que ela desencadeia, no plano do direito material, seja de a partir do ano de 1930. Esta migração e o consequente crescimento
para a distribuição do ônus da prova, no plano do direito processual. 14 acelerado urbano foram motivados pelo desenvolvimento de manufatu-
ras e surgimento do setor industrial.
O pensamento do citado autor, encontra guarida na teoria de que a pro- Como consequência do grande desenvolvimento econômico da épo-
priedade em si transfere ao seu titular direitos e também deveres a ela ine- ca surgiram os problemas sociais, característica típica do sistema capi-
rentes, dos quais não se pode esquivar, sendo que o vínculo se mostra tão talista o qual prega a acumulação do capital a todo custo. Dessa forma,
intenso que a responsibilidade sobre o bem em questão é objetiva, no senti- houve uma maior aglomeração nos meios urbanos, os quais não estavam
do de que, não é necessário se investigar a presença de culpa na hipótese de preparados para receber o grande contingente oriundo do meio rural,
ocorrência de um ato danoso advindo da propriedade ou de seu mau uso. com uma desigualdade social que ia além das questões relativas à fome,
Isso equivale dizer que os efeitos do não cumprimento da função so- ao desemprego e à segurança. A conseqüência drástica da situação se
cial da propriedade são julgados de forma objetiva contra o proprietário revelou com o aparecimento de cortiços e alojamentos em condições pre-
do bem, muito embora sua mensuração e constatação específica seja cárias, favelas e habitações em áreas de risco ambiental, em sua maioria
atividade difícil de se implementar, uma vez que se dão sobre um todo, através do instituto da posse. A miséria se instalou ao lado da riqueza, em
sobre a cidade, sobre a sociedade. função da grande diferença entre classes as quais tinham de conviver lado
Dentre tais efeitos, se encontra o direito de morar dos não proprie- a lado, enquanto as desigualdades não fossem solucionadas.
tários, os quais se quedam a mercê de oscilações imobiliárias ou de O Banco Nacional da Habitação então se revelou de grande impor-
programas habitacionais capitaneados pelo Estado que não suprem a tância para o desenvolvimento da infraestrutura urbana, principalmen-
necessidade de todos. Ademais, a inutilização ou subutilização de um te no tocante ao saneamento básico, como também no suprimento de
imóvel pode acarretar efeitos indesejados aos não proprietários e até moradia, porém, como medida mais paliativa do que de mudança nos
mesmo aos programas de financiamento imobiliário, decorrentes da paradigmas sociais.
chamada especulação imobiliária. Outro fator que influenciou na escassez de habitação foi a explosão
A partir destas considerações a respeito da função social da proprie- demográfica ocorrida em torno da década de 1950, na qual não só o Brasil
dade, passa-se à análise dos programas habitacionais brasileiros. mas todo o mundo assistiu a um crescimento expressivo da população. A
explosão demográfica por si só já é capaz de influenciar nos direitos so-
ciais, como explana Boaventura de Souza Santos: “A explosão demográfica
6. PROGRAMAS HABITACIONAIS BRASILEIROS torna-se um problema quando produz um desequilíbrio entre a população
e os recursos naturais e sociais para a sustentar adequadamente, e é um
A primeira medida de grande repercussão na garantia do direito à problema tanto mais sério quanto mais grave for esse desequilíbrio”.15
moradia no Brasil foi a criação do Banco Nacional da Habitação, ocorrida Cabível salientar que, o Banco Nacional da Habitação além de suprir
em 1964, o qual detinha como principal função conceder crédito imobi- uma necessidade de origem no desenvolvimento acelerado, também
liário para que o cidadão pudesse adquirir a casa própria, desenvolver a contribuiu com este, na medida em que gerou inúmeros empregos e
estrutura básica de saneamento urbano, bem como evitar a favelização. estimulou o surgimento de novas empresas, especialmente na área de
O BNH compunha o Sistema Financeiro de Habitação, que concedia em- construção civil.
préstimos através de recursos advindos do Fundo de Garantia por Tempo Entretanto, o sistema de financiamento imobiliário do Banco Nacio-
de Serviço e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE). nal da Habitação passou a apresentar problemas após alguns anos, visto
que todos os recursos advindos do BNH foram focalizados na disponi-
14 ALFONSIN, Jacques Távora. A Função Social da Cidade e da Propriedade Urbana como Pro-
priedade de Funções. In: Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. 1. 15 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela Mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade.
ed. Porto Alegre: Editora Fórum, 2004, p. 55. 7. ed. São Paulo: 2000, p. 287.

860 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 861
bilização de valores apenas para a aquisição da casa própria, sem, con- por reflexos de suspeita de corrupção no governo federal, que vieram a
tudo, auxiliar o cidadão nesta construção. Assim, o mutuário na maioria se confirmar mais tarde.
das vezes construía sua moradia sem o auxílio de engenheiros e outros Por outro lado, a partir de 1995 grandes avanços na área de habitação
técnicos, acarretando em edificações fora de padrão e em alguns casos foram alcançados. Não há como negar que a maior abertura dos merca-
irregulares. E mais, quando a intervenção do sistema era para o mesmo dos, gerando entrada de capital no país alavancou a economia interna e
administrar obras ou licitar para construir, o problema persistia, tendo gerou um maior investimento do Estado nas políticas sociais. Pode-se, pois,
em vista que eram construídos prédios de apartamentos padrão para estabelecer uma relação muito próxima entre o contexto econômico e as
toda e qualquer região do país, sem respeitar as peculiaridades de cada políticas sociais. A esse respeito, Maria da Conceição Tavares destaca:
zona urbana, gerando uma desorganização urbanística. Além disso, a
maioria dos empreendimentos eram construídos na periferia, causando [...] historicamente, as diferentes formas de expressão da questão da
uma segregação espacial das classes que optavam por adquirir estes moradia, tais como, o déficit de construções, as habitações subnor-
imóveis, na maioria operários. mais, a segregação espacial, o alto valor dos aluguéis, estão relacio-
nadas ao contexto social e refletem as determinações econômicas,
A falta de planejamento urbano para a construção das moradias
sociais e políticas inerentes a cada época.16
também é motivo de crítica, pois a urbanização desordenada ocasionou
grandes aglomerações e até mesmo surgimento de favelas no entorno
A evolução das políticas sociais na área da habitação passou a ocorrer
dos empreendimentos, um dos problemas que se propunha a evitar.
de forma mais dinâmica e em maiores proporções, destacando-se dentre
A partir de 1980 o sistema do Banco Nacional da Habitação atraves-
aquelas efetivadas a partir de 1995 o Programa de Arrendamento Residen-
sou período de incertezas e diminuição de capacidade, em muito pela cri-
cial – PAR, implementado pela Caixa Econômica Federal no ano de 2001.
se econômica pela qual o país lutava para sobreviver. Em razão da reces-
O PAR é destinado às famílias com rendimentos de até mil e oitocen-
são econômica e do desemprego, muitos mutuários não conseguiam mais
tos reais, com exceção dos profissionais da área de segurança pública,
adimplir com as parcelas dos financiamentos e acabavam perdendo seus
particularmente policiais civis e militares, para os quais o limite de renda
imóveis, gerando novamente o problema da moradia indigna, poquanto
é de dois mil e quatrocentos reais. No referido programa, o arrendatário
tais cidadãos acabavam tendo que residir em habitações subumanas, in-
tem de quitar parcelas mensais de arrendamento, durante quinze anos
salubres, em favelas, muitas vezes voltando à condição de posseiros.
e ao final é concedida opção de compra do imóvel, com o pagamento
Apesar das mazelas enfrentadas pelo BNH, o mesmo foi responsável
do saldo residual, se houver, além das taxas para transferência do bem
pela maior expansão de habitações para população de classe média e
para a titularidade do mutuário, junto ao registro de imóveis.
baixa. Mas, como se pode perceber, os problemas eram muitos e com
No entanto, além da questão referente à renda máxima familiar, o
o fim do regime militar em 1985, o Banco Nacional da Habitação foi
PAR ainda impõe outros requisitos ao pretendente, tais como: (a) ser
extinto e o gerenciamento do Sistema Financeiro da Habitação passou
brasileiro nato ou naturalizado ou, se estrangeiro, detentor de visto
a ser exercido pela Caixa Econômica Federal (CEF).
permanente no país; (b) ser maior de 18 anos ou emancipado; (c) pos-
A Caixa Econômica Federal passou então a desenvolver o controle
suir capacidade de pagamento compatível com as despesas mensais
de todos os financiamentos imobiliários. No ano de 1990, a CEF passou
do arrendamento; (d) não ser proprietário ou promitente comprador de
também a gerir toda a administração do Fundo de Garantia por Tempo
imóvel residencial no local de domicílio nem onde pretende fixá-lo, ou
de Serviço, o que facilitou a operacionalidade dos sistemas de finan-
detentor de financiamento habitacional em qualquer local do país; (e)
ciamento imobiliário, em razão de que muitos dos recursos advêm do
apresentar idoneidade cadastral.17
referido fundo. Inobstante tenha havido um avanço no modelo adminis-
trativo dos financiamentos imobiliários para cidadãos de baixa renda,
16 GONÇALVES. Maria da Conceição. O Trabalho Social e a Política Habitacional. Revista Socie-
no período compreendido entre 1991 e 1995 houve uma diminuição na dade em Debate, nº 36. Pelotas: Editora EDUCAT, 2007. p. 177.
concessão dos benefícios por uma gama de decisões políticas, inclusive 17 CAIXA. Habitação. Disponível em: <http://www.caixa.gov.br/habitacao/aquisicao_residencial/
arrendamento/hab_res_aq_arr_aq.asp>. Acesso em 23/12/2010.

862 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 863
O PAR trouxe novamente ao meio social os empreendimentos que Trata-se, portanto, de um programa misto, isto é, voltado à cons-
remontam ao tempo do Banco Nacional da Habitação, ou seja, a cons- trução de moradias pelo Poder Público, como também à concessão de
trução de prédios de apartamentos ou de habitações térreas, estas financiamento para que os próprios cidadãos as construam, ao contrário
também em forma de condomínios. As construções são realizadas por do que ocorre no PAR, no qual não existe esta última opção. Entretan-
construtoras privadas, credenciadas através de licitações. Outro fato to, mesmo após um ano de implementação, o Programam Minha Casa
importante é a abrangência nacional, característica também do extinto Minha Vida entregou apenas 3.500 imóveis de um total de 400 mil pre-
BNH, sem limitação espacial, abrangendo diversas cidades em todos os vistos inicialmente.20
Estados da Federação. Porém, ao contrário do que ocorria no tempo No campo institucional, o Ministério das Cidades é o órgão respon-
de atuação do Banco Nacional da Habitação, os empreendimentos hoje sável pela Política Nacional de Habitação - PNH, tendo como principal
não são alocados na periferia, evitando a segregação espacial. Atual- projeto o Plano Nacional de Habitação – PlanHab, o qual apresenta três
mente, o número de arrendatários ultrapassa 240.800 em todo o país, etapas: a contextualização, a elaboração de cenários e metas, e a defini-
sendo o Estado de São Paulo o que concentra o maior número de uni- ção do plano de ação, estratégias e implementação. Ocorre que apesar
dades e a cidade que contém o maior número de beneficiários do Pro- de ter sido criado no ano de 2007, atualmente o PlanHab se encontra
grama é Salvador.18 apenas na segunda fase, com a elaboração da proposta para debate de
Outra política habitacional implementada em nível nacional que me- cenários e metas. Apesar de não haver celeridade no processo, impor-
rece destaque é o Programa Minha Casa Minha Vida, criado em março tante destacar um aspecto muito positivo que está sendo implementa-
do ano de 2009, também sob a administração operacional da Caixa do, qual seja, a participação da população. A realização de reuniões e
Econômica Federal. Assim como o PAR, o Programa Minha Casa Minha de consultas aos conselhos de participação e controle social durante o
Vida tem como objetivo atender as necessidades de habitação da popu- processo de elaboração das propostas está garantida.21
lação de baixa renda nas áreas urbanas, garantindo o acesso à moradia Além do exemplo citado, na cidade de Porto Alegre – RS, também
digna com padrões mínimos de sustentabilidade, segurança e habitabi- houve um movimento por uma maior participação da sociedade na
lidade. Os beneficiários estão, na sua maioria, na faixa de renda de três tomada de decisões, com o desenvolvimento do programa chamado
salários mínimos, equivalente hoje a mil seiscentos e trinta e cinco reais, Orçamento Participativo, no qual a comunidade decide a destinação
porém, os beneficiários das faixas de renda mais elevada é que estão de parcela do orçamento público. Referido programa teve grande acei-
obtendo maior êxito com o referido programa. tação dos cidadãos locais e passou a ser adotado em outras cidades
O Programa Minha Casa Minha Vida funciona por meio da cons- do país.
trução de moradias pelo próprio poder público, como também pela Contudo, ainda são poucos os exemplos de uma democracia par-
concessão de financiamentos a beneficiários. Apresenta como fonte de ticipativa no Brasil, a qual se desenvolve a passos lentos, em razão de
recursos o Orçamento Geral da União – OGU, aportados ao Fundo de diversos motivos. Toda democracia participativa encontra dificuldade
Desenvolvimento Social – FDS (a previsão de investimento inicial no Pro- de se desenvolver em países com dimensões espaciais muito amplas.
grama foi de 34 bilhões de reais). Além desses recursos, pode haver Quanto maior o território a ser abrangido, maior será a necessidade de
ainda a contrapartida complementar de Estados, do Distrito Federal e delegação das decisões, até porque há dificuldade de reunir a comuni-
dos Municípios, por intermédio do aporte de recursos financeiros, bens dade em assembléias para as discussões. A esse respeito, Boaventura
(por exemplo: doação de terrenos) e/ou serviços economicamente men- de Souza Santos cita Robert Dahl:
suráveis, necessários à composição do investimento a ser realizado.19

18 Entrevista com funcionário da Caixa Econômica Federal: Carlos Augusto Alves Pratti (Gerente 20 O GLOBO. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/eleicoes2010/mat/2010/08/13/em-
de Serviços – Setor GILIE-PO). -mais-de-um-ano-programa-minha-casa-minha-vida-entregou-apenas-3-5-mil-dos-400-mil-imoveis-
19 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/ -previstos-para-baixa-renda-917394957.asp>. Acesso em: 10 jan 2011.
secretaria-de-habitacao/progr amas-e-acoes/mcmv/minha-casa-minha-vida>. Acesso em: 15 jan 21 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/
2011. secretaria-de-habitacao/planha b>. Acesso em: 15 jan 2011.

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[...] quanto menor for uma unidade democrática maior será o poten- Por seu grau de cultura, por suas condições econômicas, físicas e fi-
cial para a participação cidadã e menor será a necessidade para os siológicas o proletariado é o elemento mais fraco da nossa sociedade.
cidadãos de delegar as decisões de governo para os seus represen- O operário isolado encontra-se, na realidade, submetido sem defe-
tantes. Quanto maior for a unidade, maior será a capacidade para sa à exploração dos que são economicamente mais fortes. Apenas
lidar com problemas relevantes para os cidadãos e maior será a ne- aglomerando-se e dando à sua aglomeração uma estrutura é que os
cessidade dos cidadãos de delegar decisões para os seus represen- proletários adquirem a capacidade de resistência política, e ao mes-
tantes. 22 mo tempo, uma dignidade social.

Também razões políticas são um complicador à democracia partici- O Brasil atravessa uma fase de grande desenvolvimento econô-
pativa, uma vez que os representantes do povo não têm interesse em mico, o que reflete na habitação como um todo, tanto na iniciativa
repassar ao povo suas decisões, resguardando assim seu poder e influ- privada como nos financiamentos habitacionais disponibilizados por
ência. Robert Michels, citando Proudhon explana sobre a matéria: órgãos ou instituições financeiras ligadas ao Estado, como é o caso da
Caixa Econômica Federal. Entretanto, o sistema capitalista adotado
Podemos completar esta crítica do sistema representativo com uma não valoriza os aspectos sociais como deveria, o que acarreta em pro-
observação política de Proudhon: “Os representantes do povo, dizia gramas governamentais que, na sua maioria, são meros paliativos para
ele, mal conquistam o poder e logo procuram consolidá-lo e refor­çá- os reais problemas que atingem a questão da moradia no Brasil. Ob-
lo. Eles cercam incessantemente suas posições com novas trincheiras
viamente, a curto prazo tais benefícios geram satisfação aos cidadãos,
defensivas, até conseguirem se libertar por completo do controle po-
pular. É um ciclo natural percorrido por todo representante: oriundo porém a longo prazo constata-se que o problema voltará ou então
do povo ele acaba por cima do povo”. 23 outros surgirão.
Atualmente, o déficit habitacional brasileiro é de 5,8 milhões de do-
Outra razão que dificulta uma democracia participativa no Brasil vin- micílios, o que representa 10,1% do país, sendo que do ano de 2007 até
cula-se ao fato de o país estar adotando cada vez mais uma postura ne- o presente, houve redução de 7,9% no déficit.24 No mesmo período, o
oliberal capitalista, que exige decisões rápidas, dada à globalização dos Produto Interno Bruto cresceu 11,2%.25 Por certo, em números gerais,
mercados, o que é um tanto incompatível com a participação popular. há um descompasso entre o desenvolvimento econômico e a adoção de
Isso dificulta o estabelecimento da habitação como prioridade política. políticas sociais voltadas à habitação.
Porém, mesmo em um sistema capitalista mostra-se possível que
o Estado priorize a inserção de políticas sociais voltadas à moradia,
como é caso do Programa de Arrendamento Residencial, como tam- CONCLUSÕES ARTICULADAS
bém do Programa Minha Casa Minha Vida. Por outro lado, não se pode
olvidar que a ausência de mobilização e organização dos interessados 1. A habitação, meio essencial ao desenvolvimento humano, deve
em políticas habitacionais também contribui para que o governo não ser tratada com um olhar sério e crítico, até porque está presente na
invista mais em tais medidas. Em razão de que a classe de baixa renda Constituição Federal como direito social. Nesse contexto, merecem es-
já carece de poder econômico e também de espaço para expor suas pecial atenção do Poder Público as moradias estabelecidas através do
idéias, necessita de organização e mobilização, a fim de que possa ver instituto da posse, porquanto geram conflitos, instalações subumanas e
atendidas suas reivindicações. Robert Michels há muito salienta essa insalubres, favelização, ocupações em áreas de preservação ambiental,
questão: dentre outras irregularidades.

22 SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia 24 MINISTÉRIO DAS CIDADES. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/noticias/ministro-anun-
participativa. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 48. cia-novo-deficit-habitacional-de-5-8-durante-fum5/>. Acesso em: 05 set 2011.
23 MICHELS, Robert. Sociologia dos Partidos Políticos Pensamento Político. Brasília: Editora 25 BANCO CENTRAL DO BRASIL. Disponível em: <http://www.bcb.gov.br/?INDECO>. Acesso em:
Universidade de Brasília. Brasília, 1982. p. 24. 05 set 2011.

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2. O Brasil vem avançando na área das habitações populares, di- CAIXA. Habitação. Disponível em: <http://www.caixa.gov.br/habitacao/
minuindo o déficit da habitação no país. Contudo, o desenvolvimento aquisicao_residencial/arrendamento/hab_res_aq_arr_aq.asp>. Acesso em
econômico e a aceleração do crescimento da economia nacional não 23/12/2010.
têm acompanhado a necessidade de habitações. O desenvolvimento ca- CÁMARA DE DIPUTADOS. Constitución Política de los Estados Unidos Me-
pitalista voltado à acumulação do capital acaba por deixar em segundo xicanos. Disponível em: <http://www.diputados.gob.mx/LeyesBiblio/pdf/1.
plano a questão social. Como consequência, o país carece de controle e pdf>. Acesso em 25/11/2010.
fiscalização do cumprimento da função social dos proprietários de bens CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. 1. ed. São Paulo: Xamã,
imóveis, o que acaba por prejudicar o desenvolvimento da cidade como 1996.
um todo. FURASTÉ, Pedro Augusto. Normas técnicas para o trabalho científico: ex-
3. O Brasil se encontra em pleno crescimento, inexistindo justifica- plicitação das normas da ABNT. 15. ed. Porto Alegre: s.n., 2010.
tiva para a falta de maior investimento em programas sociais. O Progra- GENTILI, Pablo (org.). Globalização Excludente. 4. ed. Petrópolis: Vozes,
ma de Arrendamento Residencial, bem como o Programa Minha Casa 2000.
Minha Vida são iniciativas positivas para o enfrentamento do problema O GLOBO. Programa Minha Casa Minha Vida. Disponível em: <http://oglo-
habitacional brasileiro. Contudo, a falta de maior investimento, princi- bo.globo.com/pais/eleicoes2010/mat/2010/08/13/em-mais-de-um-ano-pro-
grama-minha-casa-minha-vida-entregou-apenas-3-5-mil-dos-400-mil-imoveis-
palmente no acompanhamento do beneficiário no momento da constru-
-previstos-para-baixa-renda-917394957.asp>. Acesso em: 10/01/2011.
ção de sua moradia, acarreta problemas secundários que não podem
GONÇALVES, Maria da Conceição. O Trabalho Social e a Política Habitacional.
ser desconsiderados.
Revista Sociedade em Debate, nº 36. Pelotas: Editora EDUCAT, 2007.
4. Cabe ao Estado intervir com maior empenho e eficácia a fim de
INÁCIO. Gilson. Direito Social à Moradia e a Efetividade do Processo: con-
suprir o déficit habitacional existente no país, instituindo cada vez mais
tratos do sistema financeiro da habitação. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2002.
políticas e programas sociais que viabilizem que todos os cidadãos pos-
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sam adquirir uma moradia digna. Como alternativa à falta de iniciativa
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VENOSA, Silvio S. Curso de Direito Civil. 3. ed. Livro V (Direitos Reais). São fim de resguardar os direitos constitucionais e a qualidade
Paulo: Atlas, 2003. de vida da população. “Everyone should have the right to
easily accessible opens spaces, just as they have a right to
clean water. Everyone should be able to see a tree from their
window, or to sit on a bench close to their home with a play
space for children, or to walk to a park within ten minutes.
Well-designed neighborhoods inspire the people who live in
them, whilst poorly designed cities brutalize their citizens.”5

A ideia de redigir um paper sobre o papel do Poder Judiciário diante da


nova ordem jurídica-urbanística no Distrito Federal nasceu das reflexões ori-
ginadas de constantes notícias mundiais acerca de mudanças climáticas, de
sua relação com os processos de urbanização sem qualquer planejamento
e, mais especificamente, de problemas urbanísticos, concretos, levados ao
conhecimento da Promotoria de Defesa da Ordem Urbanística do Ministério
Público do Distrito Federal e Territórios, doravante denominada PROURB.
Frequentemente são encaminhadas reclamações à PROURB sobre
poluição sonora, problemas de trânsito, ausência de drenagem pluvial,
1 Promotora de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios. Mestre em Direito pela UFPE - 2003. Professora de Pós-Graduação da FESMPDFT.
2 Promotora de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística do Ministério Público do Distrito Federal
e Territórios.
3 Arquiteta/Urbanista da PRORB/MPDFT. Especialista em Gestão de Patrimônio Cultural. Traba-
lhou como Diretora Técnica do IPHAN. Membro do Instituto Histórico e Geográfico do DF.
4 Arquiteto/Urbanista da PRORB/MPDFT.
5 Rogers Richard – Foreword in Cities for People Jan Gehl. Islandpress. Washington/Covelo/Lon-
don, 2010

870 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 871
insuficiência de rede de esgotamento sanitário, falta de água, quedas mento sustentável e da preservação do meio ambiente7, dentre outros,
constantes de energia, violação do zoneamento das cidades com exer- também constitucionais ou decorrentes de tratados e convenções inter-
cício de atividades incompatíveis às pré-fixadas para determinadas re- nacionais ratificados pela República Federativa do Brasil.
giões, impermeabilizações de solo, dentre outros temas que afetam a Em 2001 entrou em vigência o Estatuto da Cidade, por meio da Lei
qualidade de vida nas cidades, direito fundamental, constitucionalmen- nº 10.257, que disciplina de forma geral o direito urbanístico, conferin-
te assegurado nos artigos 182 e 225, da Constituição Federal de 19886. do concretude aos mandamentos constitucionais referentes à cidade.
A Constituição Federal de 1988, com o fim de assegurar a qualidade Dentre os instrumentos da política urbana previstos no Estatuto da
de vida para a atual e para as futuras gerações positivou os princípios da Cidade encontra-se, no item VI do artigo 4º, o Estudo de Impacto de
função social da propriedade, da função social da cidade, do desenvolvi- Vizinhança, doravante denominado de EIV8. O EIV tem como fim atestar
a viabilidade técnica-urbanística de um empreendimento, a fim de ga-
6 Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, con-
rantir, em última instância, o crescimento ordenado e sustentável das
forme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun- cidades, preservando-se a qualidade de vida de seus cidadãos.
ções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. O EIV pode ser entendido também como uma atualização dos es-
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de
vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. tudos e levantamentos que subsidiaram em algum momento alterações
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais em legislações de uso e ocupação que tenham permitido aumentos de
de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa indenização em dinhei-
gabarito, de coeficientes de aproveitamento ou alterações de uso. O de-
ro. correr do tempo pode demonstrar que, o que era aceitável e desejável
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica para área incluída no plano quando da formulação de um Plano Diretor, pode em um momento pos-
diretor, exigir, nos termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado
ou não utilizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, sucessivamente, de: terior mostrar-se danoso à coletividade e ao meio ambiente, expondo o
I - parcelamento ou edificação compulsórios; caráter de transitoriedade dessas mudanças e decisões anteriores, ante
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública de emissão previamente
do dinamismo do crescimento das cidades.
aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e Em paralelo a esse momento, de 1997 a 2006 foram aprovados
sucessivas, assegurados Planos Diretores Locais (PDL) para algumas Regiões Administrativas9
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do
povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever do Distrito Federal como Sobradinho (LC 56/97), Candangolândia (LC
de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. 97/98), Taguatinga (LC 90/98), Ceilândia (LC 314/2000), Samambaia
§ 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público:
I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espé-
(LC 370/2001), Guará (LC 733/2006) e Gama (LC 728/2006), bem
cies e ecossistemas; (Regulamento) como o Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF, o PDOT (Lei
III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem Complementar 803/2009).
especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei,
vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua pro- Algumas dessas legislações elaboradas após 2001, com o intuito de
teção;  (Regulamento) conferir densidade à Constituição e ao Estatuto da Cidade, dispuseram
IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de
significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará
sobre os conteúdos mínimos a serem observados no instrumento deno-
publicidade; (Regulamento) minado Estudo de Impacto de Vizinhança – EIV.
V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que Contudo, a despeito da farta legislação vigente, os problemas de
comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; (Regulamento)
VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para
7 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
a preservação do meio ambiente;
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.  (Regulamento)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
§ 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degrada-
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social
do, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
§ 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, 8 Art. 4o Para os fins desta Lei, serão utilizados, entre outros instrumentos:(...)
pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação VI – estudo prévio de impacto ambiental (EIA) e estudo prévio de impacto de vizinhança (EIV).
de reparar os danos causados. (...) 9 O Distrito Federal não é dividido em Municípios, mas em Regiões Administrativas.

872 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 873
ordem urbanística e ambiental no Distrito Federal tem aumentado de técnico que fica, juntamente com os documentos, à disposição da comu-
forma notória desde o início dos anos 2000, com recorrentes manifesta- nidade, a qual em seguida irá se manifestar em audiência pública.
ções da comunidade atingida pelo adensamento urbano, alterações de Após a audiência pública as sugestões e críticas da população serão
uso, impactos no trânsito, etc. acolhidas ou refutadas, de forma fundamentada, e o órgão estatal vai
Diante dos casos concretos observamos que as reclamações e os decidir se o empreendimento é viável ou não. Se o empreendimento ou
conflitos surgem, em grande parte, após a implantação de grandes em- atividade for viável, mas houver impactos negativos, esses deverão ser
preendimentos imobiliários, atividades que causam grande adensamen- mitigados e para isso o empreendedor deverá se comprometer a execu-
to e impacto na infra-estrutura nas áreas onde são erigidos. Tal situação tar as obras necessárias pó meio de um termo de compromisso.
tem ocorrido, por exemplo, na implantação do Setor Sudoeste10, na A legislação exige o EIV nos casos acima elencados, destacando-se
verticalização das cidades do Guará e do Gama e na consolidação da que o rol é exemplificativo. No caso do Distrito Federal, o PDOT exempli-
cidade de Águas Claras, conhecido como o maior canteiro de obras da fica os casos no artigo 205, incisos I a IV (Lei Complementar 803/2009).
América Latina. Nos casos explicitados pela lei, como por exemplo, aumento do po-
Esses casos ensejaram a instauração de procedimentos internos de tencial construtivo de um lote ou adensamento, caso comum em Águas
fiscalização ou inquéritos civis públicos, que têm por fim conferir efetivida- Claras, Gama e Guará há um fluxograma claro a ser atendido.
de ao direito constitucional à cidade sustentável. Alguns já foram concluí- Antes de receber a licença para o início das obras, o empreendedor
dos e transformados em Ações Civis Públicas levadas ao Poder Judiciário, deve elaborar o EIV com base nos projetos aprovados e apresentá-lo ao
como no caso das cidades do Guará, do Gama e no Setor Sudoeste11. órgão com atribuição para o planejamento urbano, no caso do DF a SE-
No curso dos procedimentos internos, verificamos que em todos os DHAB, o qual procederá a uma análise técnica e fundamentada acerca
casos houve um elemento comum, a falta do Estudo de Impacto de Vizi- do conteúdo do estudo.
nhança, ou melhor, a falta de elaboração do EIV pelo empreendedor e de Há ainda, a previsão legal de audiência pública, para que a popula-
análise e aprovação prévias pelo órgão estatal responsável pelo plane- ção possa se manifestar acerca do EIV de forma a atender o preceito de
jamento urbano no Distrito Federal, atualmente denominado de SEDHAB, gestão popular e democrática da cidade, direito assegurado no Estatuto
Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal. da Cidade. Isso significa a participação da população no que concerne
Segundo o artigo 37 do Estatuto da Cidade, o EIV é o estudo prévio ao crescimento e desenvolvimento sustentável da cidade, pois será ela a
que deve ser elaborado pelo empreendedor e analisado pelo órgão es- atingida pelo impacto de determinados empreendimentos e atividades.
tatal responsável pelo planejamento urbano, de forma a verificar os efei- Para que a população possa se manifestar, o órgão com atribuição
tos positivos e negativos do empreendimento ou atividade na qualidade para o planejamento urbano deve divulgar a audiência pública referente
de vida da população residente na área e suas proximidades, incluindo ao EIV com no mínimo trinta dias de antecedência e deixar à disposição
a análise, no mínimo, das seguintes questões: da comunidade os estudos e relatórios referentes ao empreendimento
I – adensamento populacional; ou atividade objeto do estudo.
II – equipamentos urbanos e comunitários; Dessa forma a população pode participar com questionamentos, crí-
III – uso e ocupação do solo; ticas e sugestões que devem ser apreciadas pelo órgão com atribuição
IV – valorização imobiliária; para o planejamento urbano e após, acolher ou refutar as argumenta-
V – geração de tráfego e demanda por transporte público; ções e pretensões da população de forma fundamentada e técnica.
VI – ventilação e iluminação; A seguir, as manifestações da população serão acolhidas ou não, de
VII – paisagem urbana e patrimônio natural e cultural. forma fundamentada e o órgão emitirá um parecer técnico aprovando
Após a análise feita pelo poder público, é elaborado um relatório ou reprovando o EIV. A aprovação do EIV se dará com ou sem medidas
mitigadoras para os impactos causados pelo empreendimento como,
10 Bairro residencial localizado na área tombada do Plano Piloto de Brasília por exemplo, ampliação das vias de circulação, obras de ampliação de
11 Foram propostas ações civis públicas e ações de responsabilização por improbidade administrativa.

874 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 875
redes de esgotos, água, drenagem pluvial, limitações na altura das edifi- e da eficiência, pois há a concreta possibilidade de tais obras e altera-
cações ou quantidade de unidades, etc ções novas virem de encontro com as diretrizes que estão na iminência
Contudo, observa-se que nos casos de adensamento e verticalização de serem fixadas pelo PPCUB.
das cidades e bairros como o Sudoeste, Gama, Águas Claras e Guará Na Europa, há países que administram o crescimento urbano com
esse procedimento não foi feito. mais prudência, pois quando o governo inicia um novo plano de orde-
A população local e a sociedade distrital têm sido surpreendidas rei- namento urbanístico, não se licencia obra pelo período de um ano a fim
teradamente com lançamentos imobiliários decorrentes de alterações de evitar que tais obras possam confrontar com os dispositivos do novo
na legislação que representam intervenções urbanas significativas. Além plano14 em uma espécie de “moratória urbanística”.
de alterar a percepção do skyline da cidade , o que repercute inclusive Tal exemplo demonstra organização, racionalidade e razoabilidade dos
no sentimento de pertencimento ao local, os empreendimentos impac- administradores públicos e evitam maiores desgastes com os particulares,
tantes possuem alto potencial de alteração do microclima local (ilumi- além de conferir tratamento impessoal, pois todos se sujeitam a essa limi-
nação e ventilação), trazendo a expansão e concentração de demandas tação em benefício da coletividade e da qualidade de vida das cidades.
de trânsito, drenagem pluvial, esgotamento sanitário, abastecimento de Também se percebe a priorização dos princípios da eficiência, da
água e demais redes de infra-estrutura. prevenção e da precaução, que ao fim garantem o desenvolvimento sus-
Além das consequências acima apontadas, intervenções tratadas tentável das cidades, direito que transcende a geração atual e que deve
sem a devida cautela no interior do perímetro tombado do Plano Piloto ser assegurado para as futuras gerações.
de Brasília – como a Quadra 500, do Setor Sudoeste e o novo Setor É imprescindível a adequação do direito de propriedade à sua
Hoteleiro, além dasregiões limítrofes (zona tampão) e que interferem função social, ou seja, o direito à propriedade não é um direito fun-
no horizonte percebido, como o Guará e Águas Claras, tem trazido forte damental ilimitado oponível a todos como já foi outrora. Atualmente,
temor de comprometimento do título de Patrimônio Cultural da Huma- o direito à propriedade encontra limites e essa propriedade deve,
nidade, conferido pela UNESCO. segundo a Constituição Federal de 1988, exercer função social, em
Além da ausência dos estudos técnicos aprofundados, em especial outras palavras, não se admite mais o uso nocivo da propriedade,
do EIV, causa espécie que apesar de estar em elaboração o Plano de tampouco seu uso em benefício do proprietário, mas em prejuízo de
Preservação do Conjunto Tombado (PPCUB), documento equivalente ao um coletividade.
Plano Diretor da área tombada do Plano Piloto. Esse documento en- Sobre essa questão vale citar Cyrillo: “Nota-se assim no texto cons-
contra-se na fase de prognóstico preliminar e já aponta indícios de que titucional a ligação umbilical entre o princípio da função social da pro-
em determinados locais haveria necessidade de retrocesso em direção priedade e proteção ao meio ambiente”15.
à preservação do conjunto urbano do plano piloto. Contudo, continuam Para arrematar, traz-se à colação o pensamento de Fábio Konder
alterando destinações e parâmetros urbanísticos nessas áreas, novos Comparato16, segundo o qual, quando se fala em função social da pro-
projetos urbanísticos são propostos e novos alvarás de construção con- priedade
tinuam sendo concedidos em um claro processo de inversão lógica da
preservação do patrimônio cultural e do meio ambiente natural e urba- “não se indicam as restrições ao uso e gozo dos bens próprios. Estas
no, onde ações dentro do próprio governo mos­tram-se antagônicas. últimas são limites negativos aos direitos do proprietário. Mas a noção
Tal conduta demonstra desrespeito total aos princípios ambientais te: Tutela inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento na forma específica, SP: Editora RT,
da prevenção12 e precaução13, bem como aos princípios da moralidade 2004, Normas Ambientais voltadas à prevenção: princípios e regras.
14 Pinto, Victor Carvalho. Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo. Editora RT, 2ª
12 Princípio da prevenção, sob essa perspectiva, em havendo conhecimento da superveniência de
Ed. 2010.
um dano ambiental, este deve ser evitado. TESSLER, Luciana Gonçalves. Tutelas Jurisdicionais do
meio ambiente: Tutela inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento na forma específica, SP: 15 CYRILLO, Rose Meire. Função Socioambiental da propriedade. Dissertação de Mestrado,
Editora RT, 2004, Normas Ambientais voltadas à prevenção: princípios e regras. UFPE, 2002.
13 O princípio da precaução parte da análise do potencial lesivo da atividade para afastar o perigo, 16 A função social da propriedade dos bens de produção. Anais do XII Congresso de Procura-
a fim de evitar o próprio risco. TESSLER, Luciana Gonçalves. Tutelas Jurisdicionais do meio ambien- dores de Estado, pág. 81.

876 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 877
de função, no sentido em que é empregado o termo nesta matéria, as construções foram iniciadas e a comunidade procurou a PROURB
significa um poder, mais especificadamente, o poder de dar ao objeto que, após tentar sem sucesso a paralisação de obras por meios extraju-
da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. diciais, não vislumbrou alternativa senão buscar o Poder Judiciário, que
O adjetivo social mostra que este objetivo corresponde ao interesse
tem um relevante papel na nova ordem jurídica diante da omissão ou
coletivo e não ao interesse próprio do dominus, o que não significa
ação indevida dos demais poderes. Assim, além da PROURB ingressar
que não possa haver harmonização entre um e outro. Mas, de qual-
quer modo, se se está diante de um interesse coletivo, essa função com ações contra empreendimentos, o MPDFT ajuizou Ação Direta de
social da propriedade corresponde a um poder-dever do proprietário, Inconstitucionalidade17 contra o PDL do Guará a Lei Complementar nº
sancionável pela ordem jurídica”. 733/06. Após o início das investigações, que tiveram por conseqüência
a protocolização das ações e concessão de liminares determinando a
Não pairam dúvidas quanto ao caráter não mais absoluto do direito paralisação de obras, o Órgão Distrital (SEDHAB) exigiu o EIV que está
de propriedade, bem como à legalidade imposta pelas limitações admi- sendo elaborado atualmente, quando vários empreendimentos já estão
nistrativas àquele, tais como tombamento, limites ao direito de cons- perto da conclusão e não se tem notícias da conclusão das análises fei-
truir, zoneamento entre outros. tas pelo órgão distrital. O que se tem de concreto são impactos urba-
Diferentemente da postura preventiva e favorável à garantia do di- nos negativos que as alterações do Plano Diretor Local deram ensejo:
reito ambiental atualmente buscada por muitos países europeus, temos trânsito caótico, problemas de drenagem pluvial, impermeabilização de
no Distrito Federal, capital do país, a postura oposta. Primeiro autori- solo, mudança do perfil da cidade e situação indefinida quanto à real
zam-se as construções, depois se elabora um estudo corretivo, se é que capacidade de atendimento das novas demandas de energia pela CEB
isso é possível e de alguma efetividade. Em verdade, acolhe-se a ideia e de água e esgoto pela CAESB, concessionárias do DF. Destaca-se a
do fato consumado que beneficia o setor da construção civil em detri- forte interferência visual na linha de horizonte da área tombada devido a
mento do meio ambiente (natural e urbano) e da coletividade. verdadeira muralha de edifícios com 12 andares na área limítrofe à zona
Dos casos citados, far-se-á uma breve abordagem um a um: tombada, o que pode por em risco o título de patrimônio da humanida-
de conferido pela UNESCO a Brasília.
Verticalização e adensamento da cidade do Guará.
Verticalização do GAMA.
A região administrativa do Guará é uma das mais próximas da área
tombada (Brasília) e a ela se limita por uma rodovia denominada Via No Gama houve problema semelhante. O Plano Diretor Local do
EPIA (Estrada Parque Indústria e Abastecimento). O Plano Diretor Lo- Gama, Lei Complementar 728/2006, que não foi precedido de Estudo
cal do Guará trouxe em 2006 repentino adensamento, verticalização e de Impacto Ambiental, foi aprovado e flexibilizou os parâmetros de uso
alterações de uso de diversas áreas da cidade criando condições para e ocupação do então Setor Industrial da cidade, aumentando os poten-
implantação de empreendimentos residenciais de grande porte, em ciais de construção e alterando usos favorecendo novamente a ocupa-
especial na interface do Guará com a área tombada do Plano Piloto ção residencial de grande densidade e com verticalização. Da mesma
de Brasília,. Todas essas alterações também não foram precedidas dos forma que ocorreu no Guará, obras de diversos empreendimentos fo-
necessários estudos técnicos que atestassem a viabilidade das referi- ram autorizadas sem a aprovação prévia do EIV, ainda que a elabora-
das intervenções urbanas. As edificações decorrentes dessas alterações ção obrigatória desse estudo estivesse também prevista no Plano Dire-
foram aprovadas e as suas obras licenciadas pelo Poder Público sem tor da Cidade. Houve tratativas extrajudiciais, também sem sucesso. A
que qualquer EIV fosse efetivamente concluído e aprovado e sem que PROURB ingressou com ação judicial para paralisar as obras até que
a população afetada fosse ouvida O que chama atenção é que o EIV o EIV do Setor Industrial fosse concluído. Após o ajuizamento da ação
está previsto no próprio texto do Plano Diretor do Guará como pré- o EIV foi concluído, e para surpresa de todos, apontou que a infra-es­
-requisito para a aprovação desses empreendimentos. Mas, o fato é que
17 ADIN aguarda julgamento.

878 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 879
trutura disponível somente comportará 50% dos empreendimentos lá de transporte público para atender a demanda da população residente.
previstos. Verifica-se que o Plano Diretor da cidade propôs uma inter- Tamanho cenário de caos em uma cidade que ainda não atingiu sequer
venção urbana que não era possível. Desta forma, ao se elaborar o EIV, 50% da ocupação de seus lotes18.
este instrumento urbanístico não serviu apara adequar a intervenção à Dessa forma, não há outra alternativa que não seja a judicialização da
realidade e sim a realidade à intervenção urbana, na medida em que o questão, a fim de resguardar a qualidade de vida da população que lá reside.
EIV foi alterado várias vezes: à proporção em que se verificava a impos-
sibilidade da alteração de uso proposta no PDL ser adotada em todos os A expansão do Setor Sudoeste – Quadra 500.
lotes, passou-se a utilizar cenários que não eram mais 100% dos lotes
e reduzindo-os para 50% e finalmente para apenas aqueles lotes que A questão foi judicializada porque segundo entendimento técnico
já tinham obtido o alvará de construção, o que gerou e gerará diversos da PROURB/MPDFT, a implantação da Quadra 500 não estava prevista
mandados de segurança com fundamento na isonomia, criando-se uma no projeto de Lucio Costa para expansões residenciais dentro da área
situação completamente fora da lógica. Quem constrói primeiro pode tombada, conforme registrado em seu documento Brasília Revisitada.
utilizar a alteração de uso. Quem constrói depois não Como resolver Tal documento tem força legal por ser parte integrante do Decreto nº
o problema criado pela falta do estudo prévio, exigido por lei? Mais 10.829/87, o qual preserva o conjunto urbanístico do Plano Piloto de
uma vez, houve necessidade de se buscar o Poder Judiciário que dever Brasília no âmbito distrital. Outrossim, há questões ainda não discutidas
exercer o novo papel de protagonismo a fim de assegurar a ordem ur- tais como a falta de capacidade de suporte da Bacia do Lago Paranoá
banística, sob pena do fato consumado se impor e a situação se tornar para o atendimento de mais esta demanda. Agrava-se a situação, ante o
irreversível, com prejuízo irreparável à qualidade de vida dos cidadãos. sério problema de água no DF, pois o Lago Paranoá vai se transformar em
novo fornecedor de água para consumo humano. Soma-se a isso a ques-
Caso de Águas Claras. tão de absoluta saturação das vias projetadas para o Setor Sudoeste, que
apresenta engarrafamentos em determinados períodos do dia. Também
Em Águas Claras o problema é semelhante e já há mandados de se- destaca-se que há notória falta de vagas para veículos nas áreas comer-
gurança ajuizados. Cidade projetada para viabilizar a implantação do me- ciais e me algumas áreas residenciais do bairro, não há poli´ticias públicas
trô de Bras´lia, contava, em sua concepção original, com edificações de para estímulo ao uso de bicicletas por meio de implantação de ciclovias
até 36 metros (12 andares) e a sua infra-estrutura foi assim executada. e não há transporte púbico de qualidade, Na verdade, são diversos pro-
Contudo, por volta de 1998, diversas alterações legislativas permitiram o blemas já existentes decorrentes da falta de planejamento urbano e de
incremento dos pavimentos culminando no PDL de Taguatinga, cidade a estudos técnicos, que são agravados por sucessivas expansões do bairro
qual Águas Claras era vinculada à época. A PROURB fiscaliza a situação, com adensamentos residenciais não previstos originalmente. A expansão,
já expediu Termo de Recomendação para a Administração Regional e denominada de Quadra 500 ainda não foi implantada devido à decisão
está elaborando ações judiciais devido ao forte adensamento instituído e liminar que valia há 2 anos, mas que foi cassada agora em agosto, decisão
às alterações de uso indiscriminadas, que suprimiram equipamentos pú- essa que será objeto de recurso.
blicos comunitários e adensaram a área, tudo sem a realização de prévio
EIV. Como resultado prático pode-se depreender da leitura da matéria da
revista National Geografic, edição nº 130 e matérias veiculadas no perió- CONCLUSÂO
dico Correio Braziliense, que a qualidade de vida é muito ruim. O trânsito
não flui porque as vias não foram projetadas para absorver o tamanho da Como visto nos exemplos citados, pinçados dentre muitos outros ca-
população que lá se encontra; há refluxo de esgoto em prédios e nas ruas sos que são objeto de investigação da PROURB/MPDFT, as tentativas ex-
porque a infra-estrutura também não comporta o número de usuários; há
problemas de falta de vagas, de quedas constantes de energia, de falta 18 http://tribunadolagonorte.com.br/portal/materia.php?tipo=684F57324E6A626E5152552D
65744F324C326762795667&site=TribunaSaoSebastiao

880 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 881
trajudiciais não foram exitosas, em especial, na gestão do ex-governador LUCIANA MEDEIROS COSTA, PROMOTORA DE JUSTIÇA DA 5ª PROURB DO
José Roberto Arruda; MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS. MESTRE EM
O poder público, em muitos casos,não exigia a aprovação prévia de DIREITO – UFPE
EIV para a implantação de empreendimentos de impacto, o que fosse MARISA ISAR, PROMOTORA DE JUSTIÇA DA 3ª PROURB DO MINISTÉRIO
respeitado, com certeza, teria evitado ou minimizado o caos urbano que PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS.
se vê hoje no Distrito Federal, local que foi planejado e que tem apenas VERA LÚCIA FERREIRA RAMOS – ARQUITETA-URBANISTA DA PROURB/
cinqüenta e um anos; MPDFT – PÓS-GRADUADA EM GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL.
A única opção para se tentar evitar o fato consumado foi levar as
demandas ao Poder Judiciário que na visão da PROURB/MPDFT deve
ter papel firme para fazer valer os direitos ao meio ambiente sadio e ao REFERÊNCIAS
desenvolvimento sustentável das cidades;
Para viabilizar a atuação da PROURB/MPDFT seria necessária uma COMPARATO, Fábio Konder. A função social da propriedade dos bens de pro-
estrutura mínima dedicada, composta por analistas periciais capacita- dução. Anais do XII Congresso de Procuradores de Estado.
dos nas áreas de arquitetura/urbanismo, engenharia ambiental, biolo- CYRILLO, Rose Meire. Função Socioambiental da propriedade. Dissertação de
gia, engenharia sanitária e civil e economia/orçamento, pois diante da Mestrado, UFPE, 2002.
multidisciplinaridade e complexidade do fenômeno da urbanização, o GEHL Jan. Cities for Peoples. Islandpress. Washington/Covelo/London, 2010.
Promotor de Justiça necessita dessa mínima estrutura para poder tra- PINTO, Victor Carvalho . Plano Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo.
duzir todas as irregularidades para a linguagem jurídica e apresentá-las Editora RT, 2ª Ed. 2010.
ao Poder Judiciário de forma clara e objetiva; ROCCO, Rogério. Estudo de Impacto de Vizinhança: instrumento de garantia do
O poder econômico do mercado imobiliário (construtoras, incorpo- Direito às Cidades Sustentáveis. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009 2ª tiragem.
radoras etc) é o réu das ações propostas (em muitos casos juntamente TESSLER, Luciana Gonçalves. Tutelas Jurisdicionais do meio ambiente: Tutela
com o Distrito Federal), portanto, com recursos e estruturas organizadas, inibitória, tutela de remoção, tutela de ressarcimento na forma específica, SP:
sofisticadas e difíceis de serem combatidas; Editora RT, 2004, Normas Ambientais voltadas à prevenção: princípios e re-
O Poder Judiciário tem paulatinamente se conscientizado da com- gras.
plexidade da questão e do novo papel constitucional que lhe cabe dian-
te da omissão ou da ação indevida na seara das políticas públicas neces-
sárias à garantia do crescimento sustentável das cidades e, no Distrito
Federal, o papel do Poder Judiciário tem crescido, bastando para isso
verificar o número de liminares e decisões. Registre-se, contudo, que
esse papel ainda pode ser mais contundente a fim de deixar algo em
termos de meio ambiente e qualidade de vida para as futuras gerações.
A cidade tem que ser pensada não para o capital, mas para as pes-
soas19, como uma área de domínio público, onde predomine o interesse
da coletividade, para viabilizar o encontro de pessoas e o desenvolvi-
mento de atividades, com qualidade de vida e de forma sustentável.
Como diz Jan Gehl “We shape cities, and they shape us.”
CRISTIANO DE SOUSA NASCIMENTO, ARQUITETO-URBANISTA DA PROURB/
MPDFT

19 Jan Gehl. Cities for Peoples. Islandpress. Washington/Covelo/London, 2010.

882 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 883
A efetividade da ação civil pública na
tutela dos direitos urbano-ambientais
no município de Porto Alegre
Luciano Saldanha Varela1

Resumo: O presente trabalho se propõe a analisar a efe-


tividade das ações civis públicas ajuizadas pelo município
de Porto Alegre no ano de 2007, contra os responsáveis
pela implantação de loteamentos irregulares e clandestinos,
na tutela dos direitos urbano-ambientais. Analisa os fun-
damentos da tutela coletiva assim como os bens tutelados
pela ação civil pública, meio ambiente e ordem urbanísti-
ca, lesados quando da implementação de glebas de forma
irregular. Demonstra a situação de cada ação civil pública
ajuizada e conclui que a efetividade das ações é alcançada
parcialmente, em razão da possibilidade do deferimento da
antecipação da tutela, que determina o congelamento do
loteamento. Contudo as ações analisadas ainda não obtive-
ram êxito no sentido de regularizar a gleba, não em função
do instrumento em si, mas principalmente por problemas no
sistema processual vigente.
Palavras-Chave: ação civil pública, tutela dos direitos urba-
no-ambientais, regularização fundiária.
Sumário: 1. Introdução; 2. Fundamentos da tutela coleti-
va; 3. Bens tutelados: meio ambiente e ordem urbanística;
4. Ações civis públicas ajuizadas pelo Município de Porto
Alegre; 5. Análise estatística; 6. Conclusão; 7. Referências
bibliográficas.

1. Introdução

A ação civil pública (ACP) é a via processual adequada para impedir


a ocorrência ou reprimir danos aos bens coletivamente tutelados e en-
contra-se disciplinada pela Lei n. 7.347, de 24.07.1985 (LAC). Dentre

1 Engenheiro Civil graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul/1986; Advogado
graduado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/1999; Pós-graduando em
Direito Municipal pela Fundação Escola Superior de Direito Municipal – ESDM; Engenheiro do Mu-
nicípio de Porto Alegre exercendo as atividades na Procuradoria de Assistência e Regularização
Fundiária – PARF da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre – PGM.

884 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 885
estes bens tutelados, a LAC enumera, em primeiro lugar o meio ambien- Os interesses difusos e coletivos começaram a ser tratados pela
te (art. 1º, inciso I) e no inciso VI do mesmo artigo foi incluído entre es- doutrina no final da década de 70, sendo reconhecida, desde então,
tes bens a ordem urbanística2. Tendo em vista que os danos oriundos do a inadequada defesa destes interesses. Julgava-se necessário a efetiva
parcelamento irregular e ocupação do solo em loteamentos irregulares proteção dos interesses difusos e coletivos com a instituição de meca-
e clandestinos são evidentes, seja no aspecto ambiental ou urbanístico, nismos processuais específicos e atribuição de legitimidade a órgãos e
e que o desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos entidades.
em lei - Lei Federal n. 6.766/79 e Plano Diretor do Município de Porto Para uma análise dos meios processuais destinados a amparar direi-
Alegre – PDDUA – Lei Complementar Municipal n. 434/99, a coletivi- tos coletivos, é fundamental avaliar também a experiência de outros pa-
dade tem direito de ver observados os padrões legais de urbanismo. A íses no trato de conflitos envolvendo múltiplos interesses ou interesses
lesão à ordem urbanística e ao meio ambiente autorizam o Município a difusos.
buscar judicialmente a reparação aos mesmos, nos termos do artigo 5°, Na França temos uma solução distinta em favor de cada demandan-
III c/c artigo 1º, I e VI, da Lei Federal n. 7.347/85. te pois a jurisprudência se recusa a emanar decisões de efeito geral ou
Isto posto, desde a criação da Gerência de Regularização de Lo- coletivos. Acaba havendo uma desproporção entre as despesas de um
teamentos – GRL – através do Decreto Municipal n. 15.432 de 26 de processo comum e os interesses em discussão, além da demora na ob-
dezembro de 2006, o Município de Porto Alegre tem ajuizado inúmeras tenção das soluções, o que paralisa os consumidores. Mesmo assim na
ações civis públicas contra loteadores, tendo em vista que as medidas França existe a possibilidade de que algumas associações representem
administrativas acabaram não sendo suficientes para impelir os loteado- os direitos coletivos, pertencentes à determinada classe ou grupo por
res à implementar as regularizações dos loteamentos irregulares. ela representado.
Quando da instituição da GRL, havia uma demanda reprimida, e no Na Holanda e Alemanha, as pretensões de classe são veiculadas
ano de 2007 foram ajuizadas onze ações civis públicas e nos propomos, através de ações coletivas, mesmo que haja o surgimento de proteção a
no presente estudo, a analisar a efetividade das mesmas na tutela dos consumidores e ao meio ambiente com a legitimação de associações de
direitos urbano-ambientais. classe.3
Os estudos na Itália a respeito do tema são mais aprofundados e as
principais correntes doutrinárias distinguem interesses difusos dos cole-
2. Fundamentos da tutela coletiva tivos e estes dos gerais ou da sociedade com um todo, embora inexista
critério rígido a amparar tal distinção. Destaca-se a posição de Cappel-
Desde o início da vigência da CPC – Código de Processo Civil, no letti ao sustentar que as principais violações de ordem jurídica seriam
início da década de 70, o mesmo foi concebido para resolver conflitos violações de interesse de massa tutelados pelo direito; diminui de im-
interindividuais. Foi estabelecido como regra, artigo 3º, que somente portância a separação entre direito privado e público, uma vez que as
tem interesse e legitimidade para propor a ação o titular do direito sub- exigências atuais da sociedade impelem para a proteção de interesses
jetivo. A substituição processual, de acordo com o artigo 6º do referido difusos, daí a necessidade de formação de associações para a defesa de
Código, só é admitida quando constar de autorização dada por lei. tais direitos, como, por exemplo, o dos consumidores. A melhor forma
O Código de Processo Civil, em função da concepção individualista, de atender à necessidade de tutela dos interesses difusos consistiria em
não contém nenhum artigo sobre a tutela dos direitos difusos e coleti- esforço combinado de instituições governamentais, do cidadão indivi-
vos e nem acerca dos direitos individuais homogêneos, este tutelado dualmente considerado, e de grupos de particulares, neste último caso,
somente a partir do Código de Defesa do Consumidor (CDC), vigente a equiparados aos titulares das “class actions” .4
partir de 1990.
2 A ordem urbanística foi instituída como bem tutelado pela Ação Civil Pública com a Lei 10.257 3 CAMPOS, Ronaldo Cunha. Ação Civil Pública, 1. ed., Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 73-75.
de 10 de julho de 2001, conhecida como o Estatuto da Cidade, que regulamentou os artigos 182 e 4 SCARTEZZINI, Ana Maria. Ação Civil Pública, in Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública, co-
183 da Constituição Federal, estabelecendo as diretrizes gerais da política urbana no Brasil. ord. Arnold Wald, 2. ed., São Paulo: Saraiva, 2007, p. 7.

886 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 887
É imprescindível, também, uma análise da class action, do siste- os defendesse. Se individualmente não se podia defender o bem cole-
ma norte-americano, uma vez que foi utilizada com parâmetro para as tivo, a solução era mesmo alterar a lógica do Código de Processo Civil,
ações coletivas, especialmente para a ação civil pública, inspirando o implementando-se paralelamente um sistema de processo civil coletivo,
texto original da Lei da Ação Pública no Brasil. com condições de assegurar-lhe proteção.
A class action tem por objetivo proteger os interesses individuais Para operar-se a legitimidade havia a necessidade de indicação, em
que podem ser agrupados, em razão de seu numero elevado, mas se lei, dos legitimados concorrentes, sendo isto realizado pelas Leis da Ação
identificados individualmente seriam inexpressivos, considerados em Civil Pública e de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.078, de 11.09.1990).
sua valoração econômica e ligados a um denominador comum a todos Isto tornou viável a legitimação extraordinária, por intermédio da qual o
pertencentes àquela classe ou grupo. Desde que haja adequação entre legitimado pleiteia em nome próprio, direito alheio, que traz benefícios
as providências tomadas pelos representantes do grupo em relação aos à coletividade em não somente a indivíduos.
interesses da classe. Entretanto, não é possível a propositura da ação Outro aspecto importante que mereceu a atenção de doutrinadores
e seu imediato acolhimento pelo juiz, tendo que inicialmente ser estu- e legisladores era o de que a concepção do Código de Processo Civil de
dada a questão de fato para enquadrá-la em uma das hipóteses que que a coisa julgada somente opera efeitos entre as partes conduziu a im-
ensejam a adoção da class action e que esta se mostra como a solução passe para a tutela coletiva, já que os bens tutelados não pertencem às
mais adequada para a defesa dos interesses de número expressivo de partes legitimadas e sim à coletividade. Assim sendo, temos a coisa jul-
indivíduos.5 gada de acordo com a natureza de cada direito. Para os direitos difusos
A adequada divulgação da existência da class action é muito re- e individuais homogêneos teremos a coisa julgada erga omnes e para
levante pois a decisão proferida, quando aceita a demanda, faz coisa os direitos coletivos, ultra partes. Altera-se, desta forma, o estabelecido
julgada, quanto ao objeto da ação, em relação a todos os membros da para a tutela individual, ou seja, inter partes.8
classe, inclusive os ausentes.6 Com relação a prazos, requisitos da petição inicial, resposta do réu,
Contudo, não há perfeita identidade entre a ação civil pública do provas e recursos, permanece a norma processual geral do Código de
Brasil e a class action, pois esta se destina a proteger a soma de interes- Processo Civil.
ses individuais, que tornam-se relevantes se considerados em conjunto, A ação civil pública, desta forma, acabou se tornando a via proces-
tendo cunho de generalidade excepcionalmente e aquela busca defen- sual adequada para impedir a ocorrência ou reprimir danos aos bens
der direitos coletivos e difusos que não correspondem a tal definição, ou coletivamente tutelados.
a garantir a tutela dos direitos individuais homogêneos, oriundos de fato A Doutrina refere que a expressão “ação civil pública” foi utilizada
ou direito comum, sempre voltada à proteção do coletivo como escopo pela primeira vez no artigo 30, II da Lei Orgânica Nacional do Ministério
principal, quando se tratar de relação de consumo, embora mantida a Público, Lei Complementar 40, de 13.12.1981.
individualidade do direito. A class action serviu como ponto de partida Mas efetivamente consagrou-se esta expressão na Lei n. 7.347 de
dos estudos que culminaram com a legislação disciplinadora das ações 24/07/1985. Posteriormente passou a integrar a Constituição Federal
voltadas para a proteção dos interesses denominados transindividuais, de 1988, em seu artigo 129, IIII, sendo incluída entre as funções institu-
que ganharam expressiva dimensão social, configurando até nova cate- cionais do Ministério Público, sendo legitimado a promover o inquérito
goria política e jurídica.7 civil e a ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social,
No Brasil surge então a Lei n. 7.347, de 24.07.1985 – Lei da Ação do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos. Desde então,
Civil (LAC). Relevantes interesses circulavam à procura de um autor que a ação civil pública foi prevista em diversas leis como o instrumento
processual em condições de assegurar a proteção de diversos bens tu-
5 SCARTEZZINI, Ana Maria. Ação Civil Pública, cit., p. 10.
telados, entre os quais podemos citar, as pessoas portadoras de defici-
6 CAMPOS, Ronaldo Cunha. Ação Civil Pública, cit., p. 90.
7 GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil pública no STJ, Revista de Processo, São Paulo, n. 99, p. 8 ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor, 7. ed. rev., atual. e ampl., São
9-26, jul./set 2000. Paulo: Saraiva, 2009, p. 31-34.

888 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 889
ência (Lei n. 7.853, de 24.10.1989), os titulares de valores mobiliários Os interesses ou direitos individuais homogêneos tiveram a sua pro-
e os investidores nos mercados de valores mobiliários (Lei n. 7.913, de teção a partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor, Lei n.
07.12.1989), a criança e o adolescente (Lei n. 8.069, de 13.07.1990 8078 de 1990, quando foi assegurada a sua tutela a título coletivo, arti-
- ECA), a probidade administrativa (Lei n. 8.429, de 02.06.1992), ao go 81, parágrafo único, inciso III. Estes são direitos vinculados à pessoa,
torcedor (Lei n. 10.671, de 15.05.03) e ao idoso (Lei n. 10.741, de de natureza divisível e de titularidade plúrima, decorrentes de origem
01.10.03, conhecida como Estatuto do Idoso). comum. Caracteriza este direito a sua homogeneidade, isto é, o fato
Como já citado, a ação civil pública é utilizada para a proteção dos de decorrerem do mesmo fato causador de lesão a um grande número
interesses difusos da sociedade, dos coletivos e dos interesses ou direi- de consumidores, pelo que deve o ressarcimento ser pleiteado em face
tos individuais homogêneos socialmente relevantes, não se prestando a do mesmo réu que foi parte em todas as relações jurídicas subjacen-
amparar direitos individuais subjetivos, cujos titulares deverão utilizar as tes. Mesmo que alguns autores defendam que para tutelar os direitos
vias ordinárias para a solicitação de ressarcimento de dano sofrido ou individuais homogêneos a ação adequada seria a ação civil coletiva, a
para suspensão de ato que eventualmente possa afetar o seu direito. jurisprudência vem entendendo que estes direitos, quando socialmente
Pelas disposições da Lei da Ação Civil Pública (art. 1º), regem-se as relevantes, devem ter tratamento coletivo e podem ser buscados pela
ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao ação civil pública.
meio-ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, esté-
tico, histórico, turístico e paisagístico, a qualquer outro interesse difuso
ou coletivo, por infração da ordem econômica e da economia popular e 3. Bens tutelados: meio ambiente
à ordem urbanística. e ordem urbanística
Desta forma é adequada a responsabilidade do réu por danos cau-
sados por este aos interesses difusos ou coletivos ou a direitos individu- Dentre os bens tutelados, a Lei de Ação Civil Pública enumera, em
ais homogêneos, que de acordo com o Código de Defesa do Consumidor primeiro lugar o meio ambiente (art. 1º, inciso I).
são tutelados coletivamente. Na Constituição Federal de 1988, quando disciplinou as funções
A Lei da Ação Civil Pública não definiu as expressões interesses di- institucionais do Ministério Público, elencou taxativamente o meio am-
fusos e coletivos. A doutrina foi a responsável pela conceituação dos biente dentre os bens tutelados merecedores da proteção por via da
referidos interesses, a partir de 1975, através de Mauro Cappelletti, na ação civil pública (art. 129, III).
Itália e Ada Pellegrini Grinover no Brasil.9 A partir da doutrina, em 1990 O texto Constitucional de 1988 reservou capítulo especial ao tema, dis-
tais interesses passaram a ser definidos em lei. O Código de Defesa do pondo ser direito de todos “o meio ambiente ecologicamente equilibrado”,
Consumidor, em seu artigo 81, parágrafo único, incisos I e II, informa definido como “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
que interesses ou direitos difusos são os transindividuais, de natureza vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e
indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (art. 225, caput).
circunstâncias de fato, grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas Todavia, a Constituição fez mais do que declarar o direito ao meio
entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base. ambiente, pois estabeleceu que o poder público deveria preservar e res-
Nestas situações, tais interesses ou direitos estão acima do indivíduo, taurar os processos ecológicos essenciais, preservar a diversidade e a in-
são indivisíveis e titularizados não pelo indivíduo isoladamente considera- tegridade do patrimônio genético do País, bem como proteger a fauna e
do, mas pela sociedade como um todo ou grupos mais ou menos extenso a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
de pessoas. A diferença entre ambos está na titularidade, podendo ser função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os
de pessoas indeterminadas da coletividade, chamado difuso, ou pessoas animais a crueldade (art. 225, § 1º, incisos I, II e VII). Com isso, estabe-
determináveis, integrantes de grupo, categoria ou classe, dito coletivo. leceu a responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente,
sem prejuízo das sanções penais e administrativas (art. 225, § 3º).
9 ALMEIDA, João Batista de. A proteção jurídica do consumidor, cit., p. 31-34.

890 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 891
Doutrinariamente, meio ambiente tem sido definido como “a in- XV - simplificação da legislação de parcelamento, uso e ocupação do
teração de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciam o solo e das normas edilícias, com vistas a permitir a redução dos cus-
desenvolvimento equilibrado da vida do homem”10 ou “o conjunto de tos e o aumento da oferta dos lotes e unidades habitacionais;”
elementos da Natureza - terra, água, ar, flora e fauna - ou criações hu-
manas essenciais à vida de todos os seres e ao bem-estar do homem na Assim sendo, defender a ordem urbanística constitui interesse difu-
comunidade”11. so da coletividade, pois as violações afetam todos os seus integrantes,
A Lei n. 6.938, de 31.08.1981 - que dispõe sobre a Política Nacio- além de descumprirem sua função social.
nal do Meio Ambiente -, entende que meio ambiente é “o conjunto de Já poderia ser interpretado que a ordem urbanística estava contida
condições, leis, influências e interações de ordem física, química e bio- na expressão “qualquer outro interesse difuso ou coletivo” do art. 1º da
lógica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas” (art. Lei n. 7.347/85 e no art. 129, III, da Constituição Federal de 1988. En-
3º, inciso I). tretanto o legislador quis evitar discussões maiores sobre o tema, com
O Estatuto da Cidade, Lei Federal n. 10.257, de 10 de julho de 2001, infindáveis recursos à Justiça para determinar a qualificação do interes-
regulamentou os artigos 182 e 183 da CF/88 e estabeleceu diretrizes se tutelado, e decidiu não apenas se referir à ação civil pública no texto
gerais da política urbana. Além disto, em seu art. 53, incluiu na Lei n. do Estatuto da Cidade, como alterou a lei específica da tutela coletiva,
7.347/85 entre os bens tutelados, a ordem urbanística, garantindo-lhe dando-lhe nova redação.
a tutela coletiva por meio da ação civil pública.
O que se busca é assegurar a via jurisdicional para a implementação
das normas contidas no Estatuto da Cidade. Isto posto, ordem urbanísti- 4. Ações civis públicas ajuizadas
ca vem a ser o conjunto de normas e atividades que envolvem o projeto, pelo Município de Porto Alegre
a elaboração, a execução e o acompanhamento da política urbana, nos
termos do que definido no art. 2º do Estatuto da Cidade. Dessa natu- A moradia do cidadão é direito fundamental inerente à dignidade da
reza, por exemplo, as violações ao Plano Diretor, ao parcelamento do pessoa humana. Como é constitucionalmente previsto como direito so-
solo, à utilização de espaço público, aos gabaritos e à destinação das cial pelo artigo 6º da Constituição de 1988, impõe aos administradores
áreas urbanas. públicos intensa e constante preocupação com a forma de atendimento.
O art. 2º do Estatuto da Cidade especifica as diretrizes gerais da po- Colocada como premissa básica a necessidade dos programas de
lítica urbana, com isso declarando o campo de atuação dos legitimados regularização objetivarem a integração dos assentamentos informais
na tutela coletiva da ordem urbanística: ao conjunto da cidade, e não apenas o reconhecimento da segurança
individual de posse e propriedade para os ocupantes, o Município de
“I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direi- Porto Alegre montou uma equipe de trabalho multidisciplinar, formada
to à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestru- por procuradores, arquitetos, engenheiros, biólogos, geólogos, agentes
tura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao comunitários, topógrafos, criando a Gerência de Regularização de Lote-
lazer, para as presentes e futuras gerações; amentos – GRL.
XIV - regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por po-
A mesma foi instituída através do Decreto Municipal n. 15.432 de
pulação de baixa renda mediante o estabelecimento de normas espe-
26 de dezembro de 2006, é coordenada pela Procuradoria-Geral do
ciais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, considera-
das a situação socioeconômica da população e as normas ambientais; Município e possui em sua estrutura, além de um núcleo jurídico, um nú-
cleo de análise urbanística, coordenado pela Secretaria de Planejamen-
10 MUKAI, Toshio. Direito ambiental sistematizado, 2. ed., Rio de Janeiro: Forense Universitária, to Municipal, e um Grupo Técnico de Regularização Fundiária – GTRF,
1994, p. 3. composto por representantes de diversos órgãos, como a Secretaria
11 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado
Municipal de Meio Ambiente, Secretaria Municipal de Obras e Viação,
de injunção, “hábeas data”, 13. ed. atual. pela Constituição de 1988, São Paulo: RT, 1989, p. 121-
122. Secretaria Municipal de Coordenação Política e Governança Local, De-
892 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 893
partamento de Esgotos Pluviais, Departamento Municipal de Água e Es- Caso as medidas administrativas não sejam suficientes para impelir
goto e Departamento Municipal de Habitação. o proprietário/loteador à regularizar o loteamento, é necessário o ajuiza-
Este grupo técnico tem como objetivo elaborar diretrizes urbanísti- mento de ações judiciais para este fim.
cas para a regularização dos loteamentos irregulares e clandestinos, o Neste aspecto, o melhor instrumento à disposição da municipalida-
que acarreta na agilização do processo de regularização e procura dar de, sem dúvida, é a ação civil pública, regulamentada pela Lei Federal n.
um olhar diferenciado para a questão, pois o processo se dá de maneira 7.347/85. Aliás, a alteração legislativa ocorrida em 2001, com o adven-
inversa, ou seja, parte-se de uma situação consolidada. to do Estatuto da Cidade, conforme anteriormente citado, afastou qual-
A Gerência de Regularização de Loteamentos não trata de vilas e quer discussão a respeito do cabimento desta ação ao incluir o inciso VI
núcleos irregulares que são aqueles formados por moradores de áreas no artigo 1º, enfatizando que os danos causados à ordem urbanística
públicas e privadas cujos habitantes não são proprietários da terra e são passíveis de responsabilização e indenização através deste instru-
não tem nenhum contrato legal que lhes assegurem a permanência no mento processual.
O desenvolvimento urbano submete-se a regramentos previstos em
local. Estes assentamentos autoproduzidos, terminologia adotada pelo
lei – Lei Federal n. 6.766/79 e aos planos diretores municipais. A co-
Plano Diretor de Desenvolvimento urbano e Ambiental – PDDUA, é tra-
letividade tem direito de ver observados os padrões legais do urbanis-
tado pelo Departamento Municipal de Habitação.
mo. Por outro lado, é dever constitucional do órgão federado – no caso
A GRL trata de loteamento irregulares e clandestinos. Loteamento
os municípios – defender a ordem urbanística, bem de uso comum do
é uma das formas de parcelamento de solo urbano, com desmembra-
povo. Por isto não há dúvida de que a lesão à ordem urbanística au-
mento da área em lotes e abertura de novas vias de circulação. Pela
toriza o Município a buscar judicialmente a reparação ao mesmo, nos
Lei Federal n. 6.766/79, o loteador é obrigado a elaborar o projeto do
termos do artigo 5º c/c artigo 1º, inciso VI da Lei Federal n. 7.347/85.
loteamento, aprová-lo pelos órgãos municipais e depois registrá-lo no Assim como o direito ao meio ambiente saudável e sustentável per-
cartório de registro de imóveis, além de ser obrigado a realizar obras de tence à coletividade e não ao indivíduo isolado, a gestão ordenada do
infraestrutura. Somente após o cumprimento destas etapas é que seria solo urbano também representa um direito difuso, como soma e síntese
possível a comercialização dos lotes. Quando o loteamento não atende de interesses individuais que merece proteção jurídica de forma diferen-
aos preceitos legais, torna-se irregular ou clandestino. É irregular quan- ciada daquelas previstas pela regras processuais do direito clássico.
do o mesmo possui algum tipo de registro no Município. O responsável A legitimidade passiva resta evidenciada a partir da enunciação dos
pode ter dado entrada com a documentação, mas não chegou a apro- fatos. Deve figurar como réu na ação o loteador, seja ele proprietário e/
var o projeto. Também é considerado irregular o loteamento que tem ou vendedor da área que foi loteada, com prova da comercialização do
projeto aprovado, mas o loteador deixou de atender as outras etapas lote. E, nos casos em que as vendas não são realizadas pelo proprietá-
previstas na Lei Federal n. 6.766/79, como a realização das obras de rio, este também será responsável pelo parcelamento na medida em
infraestrutura ou registro do loteamento no cartório de registro de imó- que perdura documentalmente a indivisibilidade do patrimônio imóvel
veis. e o consequente dever de zelar pela imutabilidade da área. Ademais,
Já o loteamento é considerado clandestino quando é implantado qualquer procedimento a ser adotado para fins de regularização do par-
sem nenhum tipo de projeto ou intervenção pública, ou seja, nenhuma celamento dependerá da regularidade registral, por isto a importância
norma é respeitada. em responsabilizar o proprietário que consta como titular na matrícula
Entre as competências da GRL, está a notificação de proprietários do imóvel.
e loteadores para que, de forma administrativa, encaminhem os proce- O pedido principal desta ação judicial será a condenação dos res-
dimentos necessários para a regularização da gleba e o ajuizamento de ponsáveis pela implantação do loteamento à obrigação de não fazer,
ações competentes para responsabilização civil e penal dos loteadores consistente na vedação de execução de loteamento e de venda de lotes.
irregulares e clandestinos. A obtenção de liminar, nesta hipótese, é de extrema importância, pois

894 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 895
somente se evitará a consolidação e/ou a ampliação do loteamento se 3) Loteamento União Social
houver ordem que impeça os loteadores de efetuarem parcelamento Nº do Processo Judicial: 107005505XX
do solo, vendas ou construções, sob pena de multa diária em caso de Data do Ajuizamento: 30/3/2007
descumprimento. Vara da Fazenda Pública: 10ª Vara
Deferida Liminar: Sim
Importante destacar que a tomada de providências pelo Município
Sentença: Não.
não é opção, mas imposição, pois a inércia do ente público o faz co-
Situação: Desde 05/04/2011 o processo está com o juiz possivelmen-
-responsável, de forma solidária ou subsidiária, como preconiza a Lei te para SENTENÇA.
Federal n. 6.766/79.
O Município de Porto alegre, por intermédio da Procuradoria-Geral 4) Loteamento Cidade Nova
do Município, no ano de 2007 ajuizou inúmeras ações civis públicas Nº do Processo Judicial: 107005991XX
contra loteadores/proprietários com vistas a regularizar loteamentos ir- Data de Ajuizamento: 9/4/2007.
regulares ou clandestinos. Vara da Fazenda Pública: 1ª Vara
São apresentadas a seguir as informações de 11 ações civis públicas Deferida Liminar: Sim
ajuizadas pelo Município no ano de 2007 com vistas a uma posterior Sentença: Sim, proferida em 29/04/2009.
análise da efetividade do instrumento. Teor Sentença: Procedente em relação aos pedidos. Para um dos
réus foi determinada a ilegitimidade passiva (na sentença de 1º grau
determinava a ilegitimidade passiva de dois réus, sendo a decisão re-
1) Loteamento Serra Verde
Nº do Processo Judicial: 107000865XX e 700330792XX formada no 2º grau).
Data do Ajuizamento: 15/1/2007 Situação: Processo em fase de apelação de sentença.
Vara da Fazenda Pública: 5ª Vara
Deferida Liminar: Sim 5) Loteamento Bernardes
Sentença: Sim, proferida em 09/07/2008 Nº do Processo Judicial: 107005990XX
Teor Sentença: Extingue o feito sem julgamento de mérito por ho- Data de Ajuizamento: 9/4/2007.
mologação de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC entre Autor e Vara da Fazenda Pública: 2ª Vara
Réu. Da decisão ocorreu apelação. Deferida Liminar: Sim. Foi solicitada liminarmente a demolição das
Situação: TAC está sendo cumprido. Como para cumprir o TAC exis- casas construídas após o ajuizamento da ação. O pedido foi negado
te a necessidade de remoção de casas que estão á margens de um pelo juiz de 1º grau. O Município agravou a decisão e foi dado provi-
arroio, isto é, em área de preservação permanente, há uma ação de mento ao recurso, com a determinação da demolição das casas.
reintegração de posse ajuizada pelo réu da ACP, sem decisão judicial Sentença: Não.
sobre o pedido. Teor Sentença: Não.
Situação: Processo ainda em fase de instrução.
2) Loteamento Carmindo
Nº do Processo Judicial: 107005089XX 6) Loteamento Aroldo Gomes.
Data do Ajuizamento: 26/3/2007 Nº do Processo Judicial: 107010431XX
Vara da Fazenda Pública: 4ª Vara Data de Ajuizamento: 31/5/2007
Deferida Liminar: Sim Vara da Fazenda Pública: 3ª Vara
Sentença: Não. Deferida Liminar: Sim
Situação: Foi realizada audiência em 23/04/2008 com a suspensão Sentença: Não.
do processo por 60 dias. A regularização está sendo feita dentro da Situação: Última citação ocorreu em 08/10/2009. Em 15/05/2011,
ação judicial com muitos atos protelatórios da defesa. Foi publicada juiz informa do decurso do prazo contestacional e dá vistas ao Minis-
nota de expediente em 08/04/2011 para que réu apresente o Estudo tério Público. No retorno do processo o processo irá para SENTENÇA.
de Viabilidade Urbanística – EVU em 90 dias.

896 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 897
7) Loteamento Quatro de Junho Teor Sentença: Sentença procedente condenando a requerida a
Nº do Processo Judicial: 107012525XX apresentar cadastro completo das construções incidentes na área,
Data de Ajuizamento: 25/6/2007 projeto urbanístico em 3 meses, registro do loteamento, a remover
Vara da Fazenda Pública: 5ª Vara ou reassentar moradores em área não regularizáveis e realizar obras
Deferida Liminar: Sim de infraestrutura.
Sentença: Sim, proferida em 1/9/2009 Situação: Nota de Expediente de 14/05/2010 para Município dizer
Teor Sentença: Julga procedente o feito para condenar os réus, soli- do interesse na execução do julgado. Em 02/06/2011 o Município
dariamente, nos termos da inicial (integralmente) no prazo de 6 meses informa o juízo que os projetos de regularização já foram contratados
sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 a contar do dia seguinte ao pelo DEMHAB – Departamento Municipal de Habitação por se tratar
vencimento do aludido prazo até o adimplemento da obrigação. de uma Cooperativa.
Situação: Execução da sentença em curso. Como é obrigação de fa-
zer, em 04/10/2010 foi determinado o cumprimento de sentença no 11) Loteamento Extrema
próprio processo. Ainda está em fase de intimação acerca da execu- Nº do Processo Judicial: 107027717XX
ção. Data de Ajuizamento: 23/11/2007.
Vara da Fazenda Pública: 3ª Vara
8) Loteamento Bexiga Deferida Liminar: Sim
Nº do Processo Judicial: 107014347XX Sentença: Não.
Data de Ajuizamento: 11/7/2007 Situação: Os réus não foram todos citados. Em 13/05/2011 o Muni-
Vara da Fazenda Pública: 3ª Vara cípio se manifestou no processo solicitando prosseguimento do feito
Deferida Liminar: Sim tendo em vista que desde 16/12/2010 não havia movimentação.
Sentença: Não.
Situação: Audiência realizada em 19/11/2009 onde Réu se com-
promete apresentar topográfico de acordo com Decreto Muncipal 5. Análise estatística
12.715/2000. Desde a audiência foi anexado levantamento topográ-
fico. Publicada nota de expediente em 26/05/2011 para Município se
Fazendo uma análise estatística dos resultados oriundos das fi-
manifestar acerca do levantamento topográfico. Este está em análise
pelos técnicos do Município.
chas dos loteamentos concluímos que em todas as ações civis públicas
(100%) foram concedidas antecipações de tutela. Somente na ação civil
9) Loteamento Beco Cecílio Monza pública do Loteamento Jardim das Estrelas é que a liminar foi concedi-
Nº do Processo Judicial: 107022602XX da em função de agravo de instrumento e deferindo o pedido de forma
Data de Ajuizamento: 29/7/2007. parcial.
Vara da Fazenda Pública: 3ª Vara. Das onze Ações Civis Públicas ajuizadas pelo Município de Porto
Deferida Liminar: Sim Alegre contra loteadores em 2007, verificamos que três ACP’s (27%)
Sentença: Não.
possuem sentença que foram proferidas em um prazo médio de dois
Situação: Os réus não foram citados em sua totalidade. Nota de ex-
pediente de 22/06/2011 para Município se manifestar acerca de di-
anos e dois meses após o ajuizamento da ação, sendo que destas, uma
versos pedidos relativos a contestações dos réus já citados. está em fase de apelação (Loteamento Cidade Nova) e duas em fase
de execução de sentença (Loteamentos Quatro de Junho e Jardim das
10) Loteamento Jardim das Estrelas Estrelas). Para o Loteamento Serra Verde houve sentença que extinguiu
Nº do Processo Judicial: 107024520XX o feito sem julgamento de mérito (9%) por homologação de TAC entre
Data de Ajuizamento: 18/10/2007. o Município e o Réu. Esta decisão ocorreu após um ano e seis meses da
Vara da Fazenda Pública: 4ª Vara data do ajuizamento. Desta decisão o Município apelou. Em duas ações
Deferida Liminar: Sim, através de agravo de instrumento.
ainda falta a citação de alguns réus (Loteamentos Beco Cecílio Monza
Sentença: Sim, proferida em 28/12/2009
e Extrema) (18,5%), duas ACP’s há expectativa de que as sentenças
898 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 899
serão proferidas em breve (Loteamentos União Social e Aroldo Gomes) Em função desta decisão o Município interpôs com agravo de ins-
(18,5%) e três ainda estão em fase de instrução (Loteamentos Carmin- trumento alegando descumprimento da liminar, foi dado provimento ao
do, Bernardes e Bexiga) (27%), passados, em média, 4 anos e dois me- recurso, determinando a demolição das construções apontadas pelo
ses do ajuizamento das mesmas. Município.
De outra banda, observa-se que, até o presente momento, as ações
civis públicas ajuizadas em 2007, não obtiveram êxito no sentido de
6. Conclusão regularizar a gleba, nem mesmo na dimensão registral, com aprovação
de projeto urbanístico e emissão de matrículas individualizadas. Porém,
Concluímos, após os estudos objeto deste trabalho, que a efetivida- isto se deveu não ao instrumento em si, mas ao fato de que com rela-
de das ações civis públicas na tutela dos direitos urbano-ambientais no ção a prazos, requisitos da petição inicial, resposta do réu, provas e
Município de Porto Alegre é alcançada, mesmo que parcialmente, em recursos, permanece a norma processual geral do Código de Processo
razão da possibilidade do deferimento da antecipação da tutela. Civil. Afloram, neste sentido os problemas no sistema processual vigen-
Nas Ações Civis Públicas ajuizadas pelo Município contra Loteado- te, como o acúmulo de processos no judiciário, dificuldades de citações,
res, foram obtidas liminares em todas as demandas no sentido de evitar petições e recursos protelatórios.
a consolidação e/ou a ampliação do loteamento, com a proibição da Associado a isto, temos que levar em consideração de que é muito
comercialização de lotes pelos demandados e por terceiros, estabele- mais fácil julgar uma causa individual pautada no direito positivo tradi-
cendo também procedimentos preliminares importantes para a poste- cional que uma lide coletiva. Esta envolve áreas de conhecimento, como
rior regularização da gleba, tais como a apresentação de levantamento é o caso da regularização fundiária, estranhas à ciência jurídica, uma vez
topográfico com vista à consolidação do cadastro de congelamento da que a transdisciplinaridade é uma das características marcantes da tute-
área, e dos contratos de compra e venda e termos de quitação dos lotes la jurisdicional coletiva. Além disto, a análise do trabalho de um juiz em
já vendidos. E para garantir a regularização pretendida, obteve-se, tam- geral é medida pelo número de processos julgados e não pela relevância
bém, a proibição imediata da alienação pelos réus de imóveis em seus social deles. É mais valorizado o julgamento de dez causas iguais do que
nomes além da expedição de ofício para todos os cartórios de Registro uma coletiva, mesmo que esta solucione a lide de dezenas de pessoas.
de Imóveis de Porto Alegre para que gravem os imóveis dos réus com Ainda não foi possível alterar totalmente a mentalidade individualista
as ações e para que se abstenham de registrar a alienação dos bens de construída ao longo de nossa formação jurídica.
propriedade dos réus. A tutela dos direitos urbano-ambientais, buscada por meio das
Estas imposições prévias, associadas à fiscalização, possibilita a ma- ações civis públicas contra loteadores, mereceria proteção jurídica de
nutenção do loteamento na mesma situação de consolidação do mo- forma diferenciada daquelas previstas pela regras processuais do direito
mento do ajuizamento da medida judicial, impedindo que novas pesso- clássico, principalmente em termos de prioridade nos julgamentos, de
as venham a ser lesadas. forma que a efetividade do instrumento fosse potencializada na defesa
A importância da antecipação de tutela e da fiscalização de seu dos interesses da coletividade.
cumprimento, fica reforçada quando se analisa a ACP ajuizada no Lote-
amento Bernardes. No caso em tela, embora tenha sido concedida limi- Referências
nar proibindo a comercialização de lotes, os demandados continuaram
negociando-os de forma ilegal, o que inclusive estava causado danos ALMEIDA, João Batista de. Aspectos Controvertidos da Ação Civil Pública. 2.
ao ecossistema local, com a movimentação de terras e construção de ed. São Paulo: RT, 2009
casas. _______________________ A proteção jurídica do consumidor. 7. ed. rev., atual.
O Município solicitou a demolição das casas e foi indeferido o pedi- e ampl., São Paulo: saraiva, 2009, p. 31-34
do liminar de demolição no juízo de 1º grau. CAMPOS, Ronaldo Cunha. Ação Civil Pública, 1. ed., Rio de Janeiro: Aide, 1989.

900 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 901
DALLARI, Adilson Abreu e FERRAZ, Sérgio (coordenador). Estatuto da Cidade
(comentários à Lei Federal 10.257/2001), 3. ed., São Paulo: Malheiros, 2010.
GRINOVER, Ada Pelegrini, A ação civil pública no STJ, Revista de Processo,
São Paulo, n. 99, p. 9-26, jul./set 2000.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação Civil pública, 6. ed., São Paulo: RT,
1999.
MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pú-
blica, mandado de injunção, “hábeas data”, 13. ed. atual. pela Constituição de
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
1988, São Paulo: RT, 1989
MILARÉ, Édis (coord.). A Ação Civil Pública após 20 anos: efetividade e desa-
fios, 1. ed. São Paulo: RT, 2005.
MUKAI, Toshio, Direito ambiental sistematizado, 2. ed., Rio de Janeiro, Foren-
se Universitária, 1994, p. 3.
PRESTES, Vanêsca Buelatto (Organizadora). Temas de Direito Urbano-Ambien-
tal, 1. ed., Belo Horizonte, Fórum, 2006
WALD, Arnoldo. Aspectos Polêmicos da Ação Civil Pública. 2. ed. São Paulo:
Saraiva, 2007. CAPÍTULO IX

A Gestão Urbano-Ambiental na Nova


Ordem Jurídico-Urbanística

902 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


Os impactos na nova ordem jurídica
urbanística no planejamento
e na gestão urbano-ambiental
Carlos Eduardo Silva1

Sumário: 1. Introdução – 2. Função social da cidade, bem-


es­
tar dos seus habitantes, planejamento e gestão urbano-
-ambiental – 3. O planejamento como instrumento da política
de desenvolvimento urbano e a gestão democrática da cidade
– 4. A visão totalizante de planejamento e de gestão urbano-
-ambiental - 5. Conclusão – 6. Referências Bibliográficas
Resumo: A Reversão dos impactos negativos da urbani-
zação perpassa pela realização de um adequado planeja-
mento urbano e pela tomada de decisões que incorporem
a proteção do meio ambiente natural inserido no contexto
urbano. Desse modo, o presente trabalho tem o propósito
de analisar como pode ocorrer a interação entre cidade e
meio ambiente, tendo como importante instrumento o pla-
nejamento urbano, acompanhado de um agir administrativo
conectado com as novas exigências do ordenamento jurídi-
co urbanístico.
Palavras-Chave: Planejamento, Gestão urbano-ambiental,
Meio ambiente urbano e Bem-estar dos habitantes da ci-
dade.

1. Introdução

De cada dez habitantes do Brasil, oito moram em cidades. De acor-


do com o Censo de 2000, a população brasileira é majoritariamente
urbana (81,2%). Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), no
ano de 2005 o Brasil já havia alcançado uma taxa de urbanização de
84,2% e, de acordo com algumas projeções, até 2050, a porcentagem
da população brasileira que vive em centros urbanos deve alcançar
93,6%.
Todo esse processo de urbanização continuará operando profundas
conseqüências sociais, econômicas e políticas, com sérias transformações
1 Promotor de Justiça de Defesa da Ordem Urbanística de Cuiabá e Mestrando em Direito Urba-
nístico pela PUC-SP.

904 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 905
no meio ambiente urbano. Os reflexos da ocupação desordenada do ter- dever de alcançar o interesse público, mediante o uso dos poderes ins-
ritório na qualidade de vida da população urbana são cada vez mais níti- trumentalmente conferidos pela ordem jurídica.2
dos e têm colaborado para a sua degradação em níveis insuportáveis. Somente no século XX, em decorrência do agravamento de certos
Hoje, necessariamente, o valor do meio ambiente urbano equilibra- problemas urbanos, é que os Estados passaram a propor soluções que
do e a característica da sadia qualidade de vida são pautas irrenun- não mais se resumissem a funções decorativas e sanitárias das cidades,
ciáveis no rol das preocupações da sociedade brasileira, inspirando a tendo como marco importante a Carta de Atenas, de 1933, a qual de-
atuação e a organização do nosso Estado (CF, arts. 3º, IV, 182 e 225). finiu proposições que persistem até hoje como as funções básicas da
A atividade urbanística, tendo como referencial os novos valores que cidade (morar, trabalhar, circular e divertir). Além disso, as transforma-
devem ser consagrados na realização de um ambiente urbano mais equili- ções sociais ocorridas durante este último século fizeram evoluir este
brado e justo, consiste na ação destinada a realizar os fins do urbanismo, enfoque, possibilitando a inserção de novos elementos na coordenação
tais sejam, o de corrigir os impactos negativos do processo de urbaniza- de espaços habitáveis, advindo daí as recentes preocupações com o
ção e o de valorizar posturas preventivas, diante de ações que possam meio ambiente e a qualidade de vida.3
trazer risco de dano ao meio ambiente urbano. E, para tal desiderato, um Desse modo, através da atividade urbanística, o Estado assumiu
dos instrumentos primordiais é o planejamento, o qual deve vir acom- atribuições para ordenar os espaços habitáveis dos núcleos urbanos, de
panhado de uma gestão urbana (implementação de decisões) atrelada à modo a prevalecer o interesse social e o ambientalmente equilibrado.
idéia do permanente diálogo entre as esferas urbana e ambiental. Tal atividade é tida como essencialmente pública no ordenamento bra-
Historicamente, a resistência em incorporar a questão ambiental no sileiro, pois sua estrutura é assim apontada pela Constituição Federal
planejamento urbano teve como origem a dificuldade de melhor com- (por exemplo, nos arts. 30, VIII, e art. 182) e o Poder Público não pode
preensão da dimensão da proteção do meio ambiente natural inserido se furtar a tomar a iniciativa de realizá-la.
no contexto urbano. Sempre houve uma falta de clareza quanto à po- Já, a função social da cidade, como princípio constitucional dirigen-
tencialidade da aplicação do planejamento como meio de viabilizar um te da política urbana, decorre da previsão constitucional da política de
meio ambiente urbano mais equilibrado. desenvolvimento urbano, a ser executada pelo Poder Público Municipal
No atual estágio, há necessidade de uma maior reflexão sobre a dimen- e tendo como objetivo ordenar o desenvolvimento das cidades de modo
são da proteção e dos usos do meio ambiente nas cidades e verificar se ele a proporcionar o bem-estar da população. Foi introduzida na Consti-
continua ou não a ser entendido como mero sinônimo de natureza intocada tuição da República de 1988 pelo caput do artigo 182, que atribui ao
ou se passou também a abarcar desde nossas casas, local de trabalho e Município, no desenvolvimento desta política, que observe as diretrizes
cidade como um todo. Diante desse panorama, o presente trabalho tem gerais fixadas em lei. A lei que fixa as diretrizes gerais da política urba-
o propósito de analisar como pode ocorrer essa necessária convergência na, e que tem entre seus objetivos ordenar o pleno desenvolvimento das
e interação entre cidade e meio ambiente, tendo como importantes instru- funções sociais da cidade, é o Estatuto da Cidade.
mentos o planejamento urbano e a adequada gestão urbano-ambiental. A propósito, discorrendo sobre o conceito de função social da cida-
de, afirma a professora Daniela Libório Di Sarno:

2. Função social da cidade, bem-estar dos seus Entendemos esta expressão consagrada no Texto Constitucional, no
habitantes, planejamento e gestão urbano-ambiental art. 182, como a síntese suprema do Direito Urbanístico. Ela resume
a finalidade última das atividades urbanísticas, quer sejam públicas,
quer sejam privadas. Traduz, em sua essência, a vocação do coletivo
A essência do entendimento de que o Poder Público deve buscar in-
teresses coletivos ou de natureza pública encontra-se na base da noção
2 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo: Ma-
de função pública. Assim, no Estado Democrático de Direito, o sentido lheiros, 2009, p. 29.
de função pública relaciona-se basicamente à idéia de cumprimento do 3 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. Barueri, SP: Manole,
2004, p. 87.

906 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 907
sobre o particular, dá respaldo e sustenta o princípio da função social articulação de planos de ordenação territorial nacional, regional e local
da propriedade; por isso que, mais que a propriedade, a cidade deve e de desenvolvimento econômico.7
existir e servir a seus habitantes.4 Por certo, o planejamento e a gestão do meio ambiente urbano devem
se orientar pelos objetivos da República Federativa do Brasil, indicados no
Por certo, a busca da adequada ordenação da cidade para que ela se art. 3º da Constituição Federal, especialmente nos incisos II (garantia do
equilibre nas suas múltiplas funções não prescinde do adequado plane- desenvolvimento nacional) e IV (promoção do bem de todos), conjugados
jamento. Pode-se conceituar o planejamento como um processo técnico com os ditames dos artigos 182 e 225 do Texto Magno.
instrumentalizado para transformar a realidade existente no sentido de Nesse sentido, o desenvolvimento nacional e o bem comum serão
objetivos previamente estabelecidos. O processo de planejamento se alcançados se o Poder Público promover uma ação planejada, voltada,
viabiliza concretamente mediante atos jurídicos, que se traduzem num inicialmente, para a economia, mas que acompanhe as necessidades
plano, que é o meio pelo qual se instrumentaliza o processo de planeja- sociais e que por tal razão viabilize meios de conjugação e de harmo-
mento.5 nização dos valores das funções sociais da cidade e do meio ambiente
Enfatiza-se que o planejamento tornou-se uma instituição jurídica, ecologicamente equilibrado, essencial ao bem-estar dos habitantes de
sem perder suas características técnicas. Nesse sentido, atualmente, a um município, interesse público qualificado pela Constituição Federal
atividade de planejar está prevista no art. 174 da Constituição Federal no art. 182, a ser alcançado pelo Estado, cuja regulamentação se deu
de 1988, inserida no capítulo “Dos Princípios Gerais da Atividade Eco- através da edição do Estatuto da Cidade.
nômica”, pertencente ao Título VII, “Da Ordem Econômica e Financeira”,
e é tida como dever-poder do Estado, enquanto agente normativo e
regulador da atividade econômica. 3. O planejamento como instrumento da política
de desenvolvimento urbano
A planificação deve anteceder a atividade administrativa de
e a gestão democrática da cidade
gestão (atrelada à idéia de função executiva que compreende
as atividades de fomento, serviço público, intervenção e polícia
Conforme adrede abordado, a institucionalização do processo de
administrativa).6
planejamento encontra fundamentos sólidos na Constituição Federal de
Assim, a concessão de incentivos econômicos, a execução de pro-
1988. Nesse diapasão, o planejamento tornou-se imposição jurídica,
gramas governamentais, a prestação do serviço público, a realização das mediante a obrigação de elaborar planos, que são instrumentos con-
atividades de licenciamento ambiental e urbanístico (que envolvem o substanciadores do respectivo processo. Já, os planos urbanísticos con-
exercício da polícia administrativa), e demais decisões do gestor que solidaram-se como vias necessárias à adequada ordenação das cidades.
possam repercutir na territorialidade não podem se apartar das condi- No Brasil, a Constituição Federal , art. 182 § 1º, dispõe que o Pla-
cionantes impostas pelo planejamento urbano, sejam elas indicadas no no Diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de
plano local (Plano Diretor), bem como nos planos estaduais, macrorre- expansão urbana do Município. Todavia, a Carta Constitucional não se
gionais e nacional de ordenação territorial. restringe a esta única possibilidade, indicando uma série de planos que
Isso porque, partindo-se da idéia de que o planejamento urbano podem ser elaborados pelas unidades federativas para que realizem
não pode restringir-se à figura do Plano Diretor, o ordenamento jurídico adequadamente o desenvolvimento urbano.8
estabelece arranjos institucionais entre os níveis de governo, no âmbito
7 A própria legislação que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81) pre-
do planejamento, com o objetivo de promover a elaboração e a implan- viu implicitamente a articulação dos planos urbanísticos de ordenação do território com os planos
tação de políticas públicas mais eficazes, especialmente subsidiadas na de preservação ambiental, conforme indicação feita no seu art. 5º, notadamente quanto à formu-
lação das diretrizes da política ambiental.
8 Os planos explícitos previstos na Constituição de 1988 são os seguintes: a) âmbito federal:
plano nacional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); plano
4 Ibidem, p. 47.
regional de ordenação territorial e desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX); b) âmbito es-
5 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 89. tadual: plano regional (art. 25, § 3º); c) âmbito municipal: plano diretor (art. 182); plano parcial de
6 DI PIETRO. Maria Sylvia Zanello. Direito administrativo brasileiro. São Paulo: Atlas, 2002, p. 56. ordenação territorial – uso do solo urbano – art. 30, VIII.

908 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 909
O art. 2º, IV, do Estatuto da Cidade estabelece como diretriz ge- Do mesmo modo, a adoção do sistema democrático pela Constitui-
ral da política urbana o planejamento do desenvolvimento das cidades, ção de 1988 foi responsável pela introdução de inovações na própria
da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do estrutura da Administração Pública, que, paulatinamente, vem abando-
município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar nando o perfil autoritário, burocrático e distante dos cidadãos.
e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos Como forma de viabilizar este processo de participação democrá-
sobre o meio ambiente. tica, o ordenamento jurídico introduziu mecanismos que possibilitam a
O Plano Diretor, como instrumento básico da política de desenvol- existência entre os cidadãos e a administração de uma relação pautada
vimento urbano, deverá apresentar normas que determinem o orde- na transparência, que possibilite que os primeiros tenham acesso, por
namento territorial mediante o planejamento do parcelamento, uso e meio da publicidade das informações administrativas, aos motivos que
ocupação do solo, tendo como um dos seus instrumentos principais o levaram o administrador a tomar certa decisão para que possam contro-
zoneamento. lar, sugerir, consultar e deliberar, participando ativamente das decisões
A propósito, a partir da Constituição Federal de 1988 e da pro- administrativas junto ao administrador público.10
mulgação do Estatuto da Cidade, na esteira de um novo ordenamento Dessa forma, percebe-se que o exercício da função administrativa, seja
jurídico que reconheceu que as formas de planejar e gerir o espaço ur- ela de fomento, de prestação de serviços públicos, de intervenção na or-
bano deveriam sofrer transformações, a utilização do zoneamento como dem econômica e social, e de realização da polícia administrativa (na qual
instrumento de planejamento também sofreu mudanças, ditadas pelos se destaca o licenciamento), deve ser permeada por todos os princípios
contornos estabelecidos nos Planos Diretores dos municípios. e institutos democráticos, bem como deverá sempre partir de uma visão
É o que afirma Paulo Somlanyi Romeiro: totalizante que inclua os componentes naturais, sociais e econômicos.

Os novos contornos na previsão do zoneamento em planos diretores mu-


nicipais dão conta de que estes não mais são pensados apenas como 4. A visão totalizante de planejamento
zonas de uso, mas zona sobre as quais se tem alguma intenção de plane-
e de gestão urbano-ambiental
jamento. O conceito de macrozoneamento passa a ser utilizado por mui-
tos municípios para estabelecer uma estratégia de planejamento para
grandes porções do território municipal, seguido ou não de um zonea- É fundamental, para compreender o significado do capítulo da po-
mento que divida as macrozonas em zonas menores com intenções de lítica urbana e da promulgação do Estatuto da Cidade, ter como ponto
planejamento específico e, ainda, se sobrepondo às demais zonas, as zo- de partida o entendimento de que a conjugação dos arts. 182 e 225
nas especiais, sobre as quais se estabelece um regime jurídico especial.9 da Constituição Federal e as diretrizes do Estatuto da Cidade, propug-
nam novas formas de planejar e gerir o espaço urbano, considerando,
Logo, a nova dinâmica de planejamento urbano conferiu especial inclusive, os desafios que temos para controlar o acelerado processo de
relevo às “zonas especiais” e ao “macrozoneamento” no processo de or- urbanização que se apresenta, para que a população das cidades possa
denamento territorial a que se refere o artigo 30, VIII da Constituição viver com condições mais dignas, num meio mais equilibrado.
Federal, operando transformações profundas no ordenamento jurídico Da mesma forma, a abordagem até o momento feita serviu para
brasileiro e na concepção e elaboração de instrumentos utilizados há reforçar a idéia da responsabilidade do Poder Público na implementa-
algum tempo na ordenação do território urbano, como é o caso do pró- ção de atividades e programas de desenvolvimento urbano que visem
prio Plano Diretor e da forma de se proceder ao zoneamento, conforme a adequar a estrutura econômica e os recursos naturais das cidades à
observado ao longo desta análise. finalidade última do processo de desenvolvimento, qual seja, a de pro-
piciar melhores condições de vida aos seus habitantes.
9 ROMEIRO, Paulo Somlanyi. Zonas especiais de interesse social: materialização de um novo pa-
radigma no tratamento de assentos informais ocupados por população de baixa renda. 2010. 122
f. Dissertação (Mestrado em Direito Urbanístico) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 10 MENCIO, Mariana. Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática das cidades.
São Paulo, p. 32. Belo Horizonte: Forum, 2007, p. 91.

910 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 911
Por certo, a busca pela sustentabilidade das cidades perpassa pela necessário encontrar os valores a serem protegidos e os critérios que
compreensão de que não mais podemos pensar em meio ambiente e servirão para sua proteção.11
cidade como se fossem duas entidades díspares e conflitantes. Parte-
-se, portanto, de uma visão urbanística integrada ao meio ambiente, Diante da complexidade do planejamento e das ações de gestão
fortalecendo a idéia de que os temas “desenvolvimento urbano” e “meio urbano-ambiental não é virtuoso dissociar o ambiente construído dos
ambiente” designam fenômenos interdependentes. resquícios de paisagens “seminaturais”, ou então, as externalidades ne-
Apesar disso, ainda há dificuldades de compatibilização do planeja- gativas advindas do modo de vida urbano sobre os elementos “natu-
mento urbano com o ambiental, associadas a uma equivocada dicotomia rais”, ambos os casos como se houvesse uma dualidade entre ambiente
de entendimento e distintas racionalidades entre as duas áreas. Como urbano e ambiente “natural” na cidade.
uma das conseqüências desta forma de visão está o tratamento dispen- Ou seja, a partir da necessidade de uma visão totalizante, que, como
sado aos assentamentos informais urbanos, quando são alvos de políticas foi visto, o ordenamento jurídico estabelece, o planejamento urbano e o
sociais, mas, em geral, não contempladas pela racionalidade ambiental. conseqüente agir administrativo devem considerar o território da cidade
Por outro lado, os órgãos responsáveis pelo planejamento urbano incluindo todas as necessidades para a sobrevivência dos seus habitantes.
parecem perceber o meio ambiente como entrave e empecilho à expan-
são urbana e ao desenvolvimento econômico, desconsiderando, muitas
vezes, sua dinâmica e necessidade de equilíbrio e integração com o am- 5. Conclusão
biente construído para conferir qualidade de vida aos habitantes. No
agir administrativo, por exemplo, são constantes os conflitos advindos O intuito deste trabalho foi o de demonstrar que a reversão dos
da análise dos processos de licenciamento ambiental e urbanístico. impactos negativos da urbanização perpassa pela realização de um ade-
A harmonia entre as necessidades de promover o desenvolvimento quado planejamento urbano e pela tomada de decisões que incorporem
urbano e de reduzir os problemas socioambientais, inerentes ao ecos- a proteção do meio ambiente natural inserido no contexto urbano. Par-
sistema urbano, demanda ações estratégicas comuns e um empenho te-se, portanto, de uma visão urbanística integrada ao meio ambiente,
coletivo. É o panorama que se descortina a partir das reflexões feitas fortalecendo a idéia de que os temas “desenvolvimento urbano” e “meio
por Daniela Libório Di Sarno: ambiente” designam fenômenos interdependentes.
Além disso, o estudo tenta evidenciar que a harmonia entre as
A possibilidade de convergir um entendimento sobre os ditames dos necessidades de promover o desenvolvimento urbano e de reduzir os
artigos 182 e 225 do Texto Magno é de grande importância, isto por- problemas socioambientais, inerentes ao ecossistema urbano, deman-
que, ao definir como os valores das funções sociais da cidade se har- da ações estratégicas comuns, tendo o planejamento urbano, nas suas
monizarão com o meio ambiente ecologicamente equilibrado, estará
variadas formas, como o principal instrumento, acompanhado de um
se realizando o “bem-estar dos habitantes” e a “qualidade de vida”
agir administrativo conectado com as novas exigências do ordenamento
esperada por todos. Entretanto, parece-nos que estamos longe de
conseguir tal harmonização. Muros construídos para isolar pessoas, jurídico urbanístico.
áreas verdes, delas e por elas. Polícia Militar é um dos órgãos mais
atuantes para intervir nas questões de moradia. Poderes paralelos
estabelecidos em favelas são preferidos ao Estado. (...) O que estamos Referências
querendo proteger? A manutenção de um modo de vida insustentá-
vel, deslocando para um futuro incerto, mas não muito distante, a BANDEIRA DE MELLO, C. A. Curso de direito administrativo. 26. ed. São Paulo:
necessidade de intervir drasticamente na forma em que nos organiza- Malheiros, 2009.
mos? Será sempre a teoria do fato consumado? O Estado Social des-
crito na Constituição Federal pátria se realiza por meio de atividades 11 DI SARNO, Daniela Campos Libório. Cidade sustentável. Artigo publicado na Revista da Pro-
imediatas ou permanentes? Em ambas as formas? Se assim é, faz-se curadoria-Geral do Município de Belo Horizonte, ano 2, n. 3 – jan./jun.2009, Belo Horizonte, p.
36-37.

912 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 913
DI SARNO, D. C. L. Cidade sustentável. Artigo publicado na Revista da Procura-
doria-Geral do Município de Belo Horizonte, ano 2, n. 3 – jan./jun. 2009, Belo
Conflitos de competência quanto ao
Horizonte.
__________________________. Elementos de direito urbanístico. Barueri, SP:
licenciamento ambiental no
Manole, 2004. município de Cuiabá
MENCIO, Mariana. Regime jurídico da audiência pública na gestão democrática
das cidades. Belo Horizonte: Forum, 2007.
Catarina Gonçalves de Almeida1
ROMEIRO, P. S. Zonas especiais de interesse social: materialização de um novo
Nely Tocantins2
paradigma no tratamento de assentos informais ocupados por população de
baixa renda. 2010. 122 f. Dissertação (Mestrado em Direito Urbanístico) - Pon-
tifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. Resumo: O processo de ocupação desordenada das cidades
SILVA, J. A. da. Direito urbanístico brasileiro. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. combinado com o adensamento demográfico, à desigualda-
de social e fundiária, à exploração econômica desenfreada e
à degradação ambiental, é realidade hoje em nosso País. A
partir dessa expansão acelerada surgiu a necessidade de or-
denação das cidades de forma a equilibrar o meio ambiente
naturalmente constituído em consonância com o desenvol-
vimento econômico. Fez-se necessário a adoção de instru-
mentos de ordem geral visando à ordenação das cidades.
O presente trabalho tem por objetivo avaliar o processo e
o procedimento do licenciamento, ambiental voltado para
ordenação do solo urbano, especificamente quanto aos con-
flitos de competência entre o órgão ambiental municipal e
estadual, quando da concessão da licença ambiental, o qual
resulta em um dos maiores entraves administrativo e jurídi-
co para o município de Cuiabá, frente à descentralização de
competência por parte do Estado de Mato Grosso no qual
delegou ao município de Cuiabá tal atribuição e competência.
Palavras chaves: Licenciamento ambiental; conflito de
competência; ordenamento territorial

1. INTRODUÇÃO

O processo de urbanização no Brasil sucedeu até recentemente sem


planejamento. Na primeira metade do século XX, o país era tipicamen-
te rural. Desde então mudou-se para um perfil urbano e na década de
1970 a população já era mais urbana que rural. Pesquisa realizada pelo
Ministério das Cidades presta-nos importantes informações abaixo:
1 Catarina Gonçalves de Almeida, advogada, professora da Universidade de Cuiabá – Unic, asses-
sora jurídica do Instituto de Planejamento e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá – IPDU, mestranda
em Geografia pela Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT
2 Professora Doutora Orientadora do Departamento de Geografia da Universidade Federal de
Mato Grosso – UFMT.

914 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 915
As cidades brasileiras abrigavam, há menos de um século, 10% da ção e fixação de suas ca­racterísticas urbanísticas: a construção de edifícios
população nacional e que atualmente são 82%. Incharam, num proces- públicos diversificou e enriqueceu o repertório arquitetônico, tornando o
so perverso de exclusão e de desigualdade. Como resultado, 6,6 mi- desenho urbano nítido. Na metade do século XIX, o povoado de Cuiabá
lhões de famílias não possuem moradia, 11% dos domicílios urbanos ligou-se ao povoado do Porto, reunindo cerca de 10.000 ha­bitantes.
não têm acesso ao sistema de abastecimento de água potável e quase O movimento urbanístico decorrente da transferência da capital
50% não estão ligados às redes coletoras de esgotamento sanitário. Em para Cuiabá contribuiu para que no início do século XX a cidade come-
municípios de todos os portes, multiplicam-se favelas.
çasse a ganhar as características de me­trópole que tem hoje.
Como resultado desse processo, o crescimento urbano trouxe a ocu-
Nessa época começaram a surgir no País às primeiras Leis objetivan-
pação desordenada dos espaços. A ineficiência do planejamento – quando
existente – para as cidades intensificou a expansão desordenada das peri- do a regulamentação do uso e ocupação do solo urbano, especificamen-
ferias, especialmente nas áreas metropolitanas, consolidando, por sua vez, te a Lei 6766/69 (Lei Federal de Uso e Ocupação do solo Urbano).
na cidade formal, um mercado imobiliário restritivo e especulativo. Em Cuiabá, em 1982 foi estabelecido o Zoneamento da cidade, que
Nesse contexto, a exemplo de outras cidades, Cuiabá também passou seu principal objetivo foi identificar e destinar os usos corretos dessas
por uma expansão urbana de forma muito acelerada. Conforme dados do áreas, de forma que houvesse o estimulo de adensamento em determi-
IBGE, a população de Cuiabá passou de 100.860 habitantes, em 1970, nado local, bem como a proibição/limitação de uso em outras áreas.
para 212.980 em 1980, e daí praticamente dobrou até 1990, quando Com a edição da Constituição Federal de 1988 que determinou a
chegou a 402.814 habitantes. Em 2000 eram 483.346 e já ultrapassado obrigatoriedade da elaboração do Plano Diretor para todos os muni-
o número de meio milhão em 2010, atingindo 551.350 habitantes. cípios com população acima de 20 mil habitantes como instrumento
Nesse contexto, fez-se necessário a adoção de medidas e instru- básico de ordenamento municipal. Aderindo a essa determinação a Lei
mentos preventivos de gestão territorial, a fim de compatibilizar o de- Orgânica Municipal, aprovada em 1990, reafirmou a obrigatoriedade
senvolvimento econômico em consonância com a questão ambiental.
do Plano Diretor, dispondo sobre os critérios para a sua elaboração.
Um dos princípios que regem as diretrizes tanto do Estatuto da Cida-
Dando continuidade a esse processo, em dezembro de 1992 foi apro-
de quanto do Plano Diretor de Cuiabá é o resguardo ao direito a uma cida-
de sustentável para as atuais e futuras gerações, considerando o elevado vada a Lei Complementar Municipal n.º 003 (Lei do Plano Diretor de
ritmo de urbanização da população brasileira nas últimas décadas. Desenvolvimento Urbano de Cuiabá), que ordenou o crescimento da ci-
A utilização desses instrumentos se faz de grande urgência para dade e estabeleceu diretrizes para o desenvolvimento social integrado e
amenizar os graves problemas urbanos já acumulados, tais como mo- ecologicamente sustentável.
bilidade urbana, preservação e conservação ambiental, vida social em Visando a regulamentar a Lei do Plano Diretor foram elaboradas as
crescente degradação etc. Leis do Perímetro Urbano e a de Uso e Ocupação do Solo Urbano.
O licenciamento ambiental é instrumento preventivo de gestão am- A Lei do Perímetro Urbano, Lei n.º 3.412, de 30 de dezembro de
biental urbana, um dos atos materiais de gestão de competência dos 1994, teve como diretrizes a incorporação ao perímetro urbano das par-
municípios. celas urbanas localizadas fora dos limites legais e a ampliação de oferta
Assim, sempre que o impacto a ser evitado ou minorado for local, os de áreas para fins industriais, sendo alterada pela Lei n.º 4.719, de 30
Municípios são os entes públicos responsáveis pelo licenciamento am- de dezembro de 2004.
biental, embora possam também coordenar esse procedimento quando
A Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano, Lei Complementar Muni-
o Estado delegar-lhes esta atribuição através de lei ou convênio, confor-
cipal n.º 044/97, disciplinou o uso e a ocupação do solo urbano, bus-
me é o caso do município de Cuiabá.
cando assegurar condições de integração harmoniosa entre as diversas
2. A QUESTÃO AMBIENTAL NO MUNICÍPIO DE CUIABÁ funções urbanas e padrões mínimos e máximos de intensidade de ocu-
pação do solo. Dentro das determinações desta lei, foram elaboradas
Elevada à categoria de cidade em 1818, Cuiabá seria logo depois, em e aprovadas a Lei de Hierarquização Viária, Lei n.º 3.870/99, que clas-
1836, declarada oficialmente capital provincial, fato decisivo na configura- sificou as vias em estruturais, principais, coletoras e locais e fixou seu

916 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 917
‘padrão geométrico mínimo’ (PGM); e a Lei de Zoneamento, Lei Com- A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 182, dispõe que o
plementar Municipal n.º 103/03, que descreveu o perímetro e definiu Poder Público tem o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das fun-
os padrões de uso e ocupação das Zonas, discriminando e relacionando ções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.
as atividades e empreendimentos que compõem as categorias de uso O inciso VIII do mesmo artigo atribuiu competência aos municípios e
urbano, e ainda especificou os critérios de sua localização e instalação. ao Distrito Federal de promoverem, no que couber, o adequado ordena-
Por ser lei recente, suas alterações ainda não trouxeram mudanças mento territorial, mediante planejamento e controle do uso do parcela-
estruturais na cidade, o que observa ainda é o reflexo do zoneamento mento e da ocupação do solo urbano.
determinado pela Lei de Uso e Ocupação do Solo Urbano de 1982, em A Lei de Uso e Ocupação do Solo nº 6.766, de 19 de dezembro
vigor até o ano de 1997, a qual estabeleceu Corredores de Uso Múltiplo de 1979, estabelece as regras para loteamentos urbanos, proibidos em
e Zonas de Uso sem a observância da infraestrutura existente nas mes- áreas de preservação ecológica, naquelas onde a poluição representa
mas. A lei atual incentiva a ocupação dos vazios urbanos e condiciona perigo à saúde e em terrenos alagadiços. A partir da Resolução 001 do
o adensamento à infraestrutura instalada, que necessariamente refletira Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), de 23 de janeiro de
na melhor qualidade de vida da pretensa população local. 1986, quando o empreendimento for de construção de mais de mil ca-
Nos últimos anos a expansão da cidade vem acontecendo princi- sas, obriga a que se proceda a um Estudo Prévio de Impacto Ambiental.
palmente por meio dos condomínios fechados, o que levou a Prefeitura No que concerne ao parcelamento do solo, atendida as normas
a elaborar a Lei Complementar n.º 056/99 e a Lei Complementar n.º federais, deve obedecer à legislação estadual, distrital e/ou municipal,
100, de 03/12/2003, disciplinando este tipo de empreendimento. conforme competência estabelecida no art. 1º, parágrafo único, da Lei
Com o advento da Lei Complementar n 103 de 2003, foi introduzido nº 6.766 de 1979, assim dispondo: “Os Estados, o Distrito Federal e os
o Estudo de Impacto de Vizinhança e Relatório de Impacto de Vizinhan- Municípios poderão estabelecer normas complementares relativas ao
ça – EIVRIV com objetivo de disciplinar a implantação de determinados
parcelamento do solo municipal para adequar o previsto nesta Lei às
empreendimentos e atividades no município de Cuiabá, com efetivo po-
peculiaridades regionais e locais.”
tencial degradador. O EIVRIV foi recepcionado pelo Plano Diretor de
O art. 225 insere a temática ambiental como princípio constitucio-
Desenvolvimento Estratégico de Cuiabá – PDDE.
nal para nortear o desenvolvimento do país em bases sustentáveis. Esta-
belece diretrizes para o licenciamento ambiental, o princípio do poluidor
3. O LICENCIAMENTO AMBIENTAL
pagador e biomas como patrimônio natural, além de outros mecanis-
mos de proteção e precauções ambientais.
Em virtude da expansão desordenada das cidades, do desenvolvi-
O Licenciamento Ambiental integra ordenamento jurídico brasileiro
mento econômico, tornou-se cada vez mais complexa qualitativa e quan-
titativamente a relação socioambiental presente nas sociedades contem- como norma geral por meio da Lei Federal n° 6938, de 31 de agosto
porâneas, cuja perversidade se traduz na degradação do meio ambiente. de 1981, com as modificações introduzidas pela lei n° 7804, de 18 de
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 patenteou o reconheci- julho de 1989. Destarte, todas as pessoas de direito público interno são
mento do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equi- obrigadas a adotá-lo.
librado, impondo a obrigação aos Poderes Públicos e à coletividade de A referida Lei é considerada a mais importante lei ambiental. Define
defendê-lo e preservá-lo, bem como cominou sanções para as condutas que o poluidor está obrigado a indenizar danos ambientais que causar,
ou atividades lesivas. As questões ligadas à preservação e à recupera- independentemente de culpa. Também esta lei criou os Estudos e res-
ção do meio ambiente natural e urbano passaram a ser, portanto, a pectivos Relatórios de Impacto Ambiental (EIA/Rima), regulamentados
base em que se assenta a política econômica e social do país. em 1986 pela Resolução 001/86 do Conselho Nacional do Meio Am-
A ordenação das cidades está assegurada no artigo 182 da CF/88, biente (Conama). O EIA/Rima deve ser feito antes da atividade que afete
dispondo que a política de desenvolvimento urbano, executada pelos significativamente o meio ambiente.
municípios “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das fun- A definição de licenciamento ambiental ficou a cargo do artigo 1°
ções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”. da Resolução Conama 237/97, que assim dispôs:

918 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 919
Art 1°. Licenciamento Ambiental: procedimento administrativo pelo coordenada pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvi-
qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, mento Urbano – Smades. Reza o artigo 4 da lei:
ampliação e operação de empreendimentos e atividades utilizadoras
de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente po- Compete à secretaria municipal de meio ambiente e desenvolvimento ur-
luidoras ou aquelas que, sob qualquer forma, possam causar degrada- bano – Smades, analisar e emitir pareceres em processos de licenciamen-
ção ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e to ambiental, conceder e expedir licenças para estabelecimentos, obras
as normas técnicas aplicáveis ao caso”. e atividades que utilizam recursos ambientais, que sejam considerados
efetiva ou potencialmente poluidores, bem como para empreendimentos
Outro estudioso diz a propósito que: capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, resguar-
dada a competência do conselho municipal de defesa do meio ambiente.
O licenciamento ambiental é condição essencial para o funcionamen-
to regular de uma atividade econômica ou não, e que a conformida-
Dessa forma, a partir do ano de 2008 o município de Cuiabá passou
de ambiental obtida por meio desse instrumento não é apenas uma
exigência dos órgãos ambientais competentes, mas da sociedade civil a emitir licença ambiental, oriunda de empreendimentos e atividades
por meio de organizações não governamentais. (Antunes, 2004) constantes do rol taxativo da resolução Consema nº 004/08.
A referida resolução reafirmou os princípios de cooperação da polí-
O licenciamento ambiental também se define como: tica ambiental contida na Resolução 237/97, que esclarece os critérios
de competência correspondentes aos níveis de governo para a execu-
Uma ação típica e indelegável do poder executivo, na gestão do meio ção do licenciamento ambiental, com base nos impactos ambientais da
ambiente, por meio da qual a administração pública procura exercer
atividade ou empreendimento, como mostrado abaixo.
o devido controle sobre as atividades humanas que possam causar
impactos ao meio ambiente. (Milaré, 2004)
Art. 6º. Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos
competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando
Cumpre dizer que muitas controvérsias existem no que tange à defi- couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades
nição do impacto ambiental local, visto que não há definição legal, bem de impacto ambiental local e daqueles que lhe forem delegados pelo
como quanto à delimitação espacial do impacto ao meio ambiente fi- Estado por instrumento legal ou convênio.
cando a critério do órgão municipal licenciador, na maioria das vezes
estabelecer tais critérios do que seja entendido como impacto local. O processo de licenciamento se dá em três fases: da concessão da licen-
ça prévia, de instalação, de operação, e o acompanhamento das consequên-
4. A DESCENTRALIZAÇÃO DO LICENCIAMENTO cias da implantação de uma atividade econômica ou empreendimento.
AMBIENTAL NO MUNICÍPIO DE CUIABÁ Nesse momento começam as dificuldades do município de Cuiabá
no processo de licenciamento. Mesmo “atendendo” aos critérios impos-
Cuiabá foi o primeiro município do Estado de Mato Grosso a licenciar, tos por Lei, vários são os desafios a serem superados.
em novembro de 2006, quando firmou Termo de Cooperação Técnica com Nesse contexto, o principal desafio está associado à dificuldade de
o Estado de Mato Grosso (Secretaria de Estado de Meio Ambiente – Sema), definição de âmbitos, competências e procedimentos relativos ao licen-
por meio da Secretária Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Ur- ciamento ambiental de uso e ocupação do solo em Cuiabá.
bano – Smades, tendo como objeto estabelecer a gestão ambiental com- Especialmente no que se refere aos procedimentos para concessão da
partilhada entre os respectivos entes. A Sema “transferiu ao município de licença ambiental para uso e ocupação do solo urbano, inúmeros são os
Cuiabá a competência para licenciar os empreendimentos e atividades ur- problemas vivenciados pelo município de Cuiabá, como a carência de re-
banas de pequeno e/ou médio níveis de poluição e degradação ambiental”, cursos humanos/técnicos capacitados, a falta de infraestrutura física inade-
por meio da portaria nº 166, de 27 de dezembro de 2006. quada para cumprimento das suas atribuições, inadequação na legislação
genérica que não incorpora as especificidades dos ecossistemas locais, au-
Em janeiro de 2007 publicou a Lei Complementar nº 148 que ins-
sência de rotina administrativa institucional para as fases do licenciamento.
tituiu e disciplinou o processo de Licenciamento e Avaliação Ambiental,
920 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 921
Diante disso, há que repensar a forma de aplicação da legislação e médio impacto, ficando os demais ainda para o órgão ambiental esta-
pertinente ao licenciamento ambiental, assim como o processo e pro- dual licenciar.
cedimento para concessão da licença, e ainda a análise da legislação Nos casos de empreendimentos habitacionais, seja horizontal ou
urbana de Cuiabá, de modo a propor soluções adequadas aos conflitos vertical somente serão licenciados pelo município quando os mesmos
gerados pelo uso e ocupação do solo em Cuiabá. possuírem até 100 (cem) unidades habitacionais.
Quando ao que seja considerado de impacto local, no município de Com relação aos empreendimentos habitacionais é que ocorre o con-
Cuiabá, impacto ambiental local significa o raio de influência direta e in- flito de competência. Quando compete ao órgão estadual licenciar, este
direta do empreendimento, fixado pelo órgão ambiental licenciador no emite a licença, mas em alguns casos o município diverge daquela licença.
momento de elaboração A divergência apontada por parte do município de Cuiabá se dá prin-
cipalmente quando a área em que será implantado a atividade/empre-
5. O CONFLITO DE COMPETÊNCIA ENTRE OS ÓRGÃOS endimento for envolvida por Área de Preservação Permanente – APP.
LINCENCIADORES NO MUNICÍPIO DE CUIABÁ Nesses casos o órgão estadual concede a licença, mas no momento que
a mesma é apresentada ao município ocorre a fiscalização in loco, e em
Uma das questões que mais divergentes questão ambiental brasilei- alguns casos há divergência entre o que é considerado APP para o estado
ra é a delimitação da competência para a realização do licenciamento e para o município. É de conhecimento público que por diversas vezes o
ambiental. O conflito para conceder licença ambiental, entre os diversos município entendeu que, o que é considerado como esgoto para o órgão
entes da Federação, ainda é muito discutido e questionado. estadual o município entende tratar-se de um córrego, por exemplo.
A Constituição Federal de 1988, atribuiu aos entes federativos suas Em havendo a supressão da vegetação nas áreas que o município
atribuições e competências. No que se refere a questão ambiental, é reconhece como APP, o proprietário é multado e ainda responsabilizado
de competência da União, Estado, Distrito Federal e Município legislar. pela recomposição da área.
Conforme o artigo 225 da CF/88. Nesse contexto, os empreendimentos hoje são licenciados tanto
Ainda na Constituição Federal de 1988, ratifica a competência co- pelo órgão municipal quanto pelo estadual, de forma a onerar o empre-
mum entre tais entes. A competência comum está preceituada no art. endedor duas vezes pelo mesmo motivo.
23, VI e VII, da CF/88. Em um caso específico o interessado solicitou a suspensão do pro-
cesso, tendo em vista a multa recebida que onerou de tal forma que o
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito
empreendimento tornou-se inviável, nas palavras do mesmo.
Federal e dos Municípios:
(...)
VI - proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de 6. CONCLUSÕES ARTICULADAS
suas formas;
VII - preservar as florestas, a fauna e a flora; Um dos maiores desafios dos gestores municipais é compatibilizar o
desenvolvimento econômico em consonância com a questão ambiental.
A competência nesse caso é dividida de forma igual e solidária entre O desenvolvimento sustentável é pautado nas aspirações de aten-
os três entes federativos. É evidente a intenção do legislador que atri- der a presente geração sem comprometer a possibilidade de atendê-las
buiu a competência para todos trabalharem em conjunto na proteção no futuro, lembrando que sempre há o riso de que o crescimento econô-
do meio ambiente. mico prejudique o meio ambiente, uma vez que ele aumenta a pressão
A união fixa as regras gerais que devem ser seguidas pelos estados sobre os recursos ambientais.
e municípios que ficam com a competência suplementar. No Brasil em O Estatuto da Cidade e o Plano Diretor são importantes instrumen-
regra as Leis ambientais são em nível federal. tos que subsidiam na elaboração e aplicação normas, políticas de pla-
Em Cuiabá, o Conselho Estadual de Meio Ambiente concedeu a des- nejamento urbano, habitacional e ambiental (de forma integrada), numa
centralização apenas para empreendimentos considerados de pequeno gestão compartilhada com a sociedade (gestão democrática).

922 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 923
O licenciamento ambiental é um dos instrumentos de gestão públi-
ca que objetiva disciplinar o uso dos recursos naturais. No entanto, é
Gênese, conceitos e legislação
necessário que os municípios se estruturarem para que o licenciamento básica sobre estudos de impacto
ambiental passe a cumprir com um de seus principais objetivos que é
promover melhor qualidade de vida a população local.
em meio urbano1
Uma das questões que mais causam divergências questão ambiental
Denise Bonat Pegoraro2
com relação ao licenciamento é a competência para se definir o órgão
licenciador. Mesmo após a definição desses órgãos os conflitos ainda per-
manecem, conforme foi demonstrado no corpo do presente trabalho. Resumo: Com o propósito de melhor conceituar o Estudo de
Esses conflitos, invariavelmente, dificultam o procedimento, conse- Impacto de Vizinhança (EIV) e o Estudo de Impacto Ambien-
quentemente refletindo na efetividade do instrumento. tal (EIA) serão abordados o contexto histórico e a dinâmica
dos processos que viabilizaram a proposição destes dois ins-
trumentos. A partir destas referências, pretende-se compre-
REFERÊNCIAS ender melhor seus propósitos originais, aplicáveis a procedi-
mentos de uso, ocupação e parcelamento do solo, como for-
ANTUNES, Paulo de Bessa. A questão dos ativos ambientais. Gazeta Mercan- ma de conhecimento prévio a fim de minimizar os problemas
til, 09 jan. 2004. e conflitos urbanos. Pela análise das normas federais que con-
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente (MMA). Secretaria de Qualidade Am- ceberam o EIV e o EIA, almeja-se o adequado entendimento
biental nos Assentamentos Humanos. Avaliação ambiental estratégica. Bra-
da instituição original de cada instrumento, verificando como
sília, 2002.
os conceitos originais foram absorvidos e instituídos pela le-
BRASIL, CONAMA Resolução 237 de 19 de dezembro de 1997. Disponível
gislação federal brasileira. Segundo Fernandes (2005, p. 17),
no site http://www.mma.gov.br. Acesso em 20.07.2009.
lei é sempre um instrumento (nunca objetivo ou neutro), mas
BRASIL. Ministério das Cidades. Manual orientador da 4ª conferência na-
é, acima de tudo, uma das arenas sócio-políticas mais im-
cional das cidades. Disponível em www.cidades.gov.br/conferenciadascida-
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em setembro/2010, no PROPUR/UFRGS, com o título “A implementação institucional do Estudo de
bá: Cathedral Publicações, 2005. (Coleção Tibanaré, v. 6). Impacto de Vizinhança e as práticas consolidadas de outros estudos de impacto”
SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Licenciamento Ambiental. In: FÓRUM
2 Arquiteta, Gerente do Programa Porto do Futuro do Gabinete de Planejamento Estratégico –
DE DIREITO URBANÍSTICO E AMBIENTAL, 2. Belo Horizonte, 2002. Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Mestre em Planejamento Urbano e Regional.

924 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 925
de bairro, representou um amadurecimento da organização social na tico, o que marcou a inclusão de uma série de dispositivos e instrumen-
reivindicação de melhorias na qualidade de vida urbana, pela defesa de tos mais de princípio do que de ação (SOUZA, Op. Cit., p. 482).
suas áreas de vizinhança, contra empreendimentos impactantes e pela A Constituição de 1988, pela primeira vez na história constitucio-
criação de parques e espaços de lazer (ROCCO, 2006, p. 28). nal brasileira, tratou da problemática urbana, estabelecendo uma nova
Souza (2002, p. 482) comenta o seguinte: ordem social. A cidade que adormece não é a mesma que desperta,
tamanha a dinâmica de transformações no meio urbano, assim, este
Estas experiências conduziram a um ambiente propício e demanda- palco da vida mereceu atenção especial na Constituição de 1988, se-
dor de novos instrumentos capazes de fornecer respostas à questão guindo a mesma direção adotada por outros países, especialmente os
urbana percebida naquele momento, e apontaram a necessidade de
do continente europeu. A partir de então, no caso brasileiro, a cidade foi
um olhar local, isto é a necessidade da criação de novos dispositivos,
que permitissem privilegiar a dimensão da vida cotidiana, do bairro, alçada à dimensão constitucional, aglutinando, no seu âmbito, direitos
da quadra, da unidade de vizinhança, etc, e de incorporar a participa- fundamentais, entre os quais o direito à moradia, ao planejamento e a
ção direta de moradores nas decisões sobre alterações urbanas. gestão do território (BASSUL, 2005, p. 101; VIZZOTTO, 2009, p. 420).
Para Rogério Gesta Leal (1998, p. 114) trata-se de uma Constituição
Desde a primeira versão da lei em 1976, na qual “tem origem o Estu- não só do Estado-aparelho, mas fundamentalmente do Estado-comuni-
do de Impacto de Vizinhança” (ROCCO, Op. Cit., p. 26), até a última ver- dade, funcionando como um estatuto de organização da vida econômica
são denominada Projeto 7753, de 1983, também elaborado pelo CNDU e social. O autor entende que a partir deste significado constitucional, o
(BASSUL, 2005, p. 99) foi forte a reação de entidades que representavam espaço físico em que mais de perto se pode perceber e sentir a aplica-
os proprietários de terras, da construção civil e do setor imobiliário, pro- bilidade ou não das normas constitucionais, tanto seus princípios como
vocando o engavetamento do projeto nos anos de 1980. Embora fosse suas regras, é a cidade. Os centros adensados e de recursos concentra-
uma versão abrandada pela exclusão de certos institutos, tais como a dos representam a expressão da civilização, abarcando desde aspectos
concessão da posse aos moradores urbanos que apresentavam condi- do êxodo rural aos da mais requintada sofisticação cultural.
ções ilegais de ocupação (GRAZIA, 2002, p. 21), sendo que “a proposição A partir dos novos preceitos constitucionais, as municipalidades procu-
conservava a essência do anteprojeto de 1976” (BASSUL, Op. Cit., p. 99). raram encontrar alternativas para o enfrentamento dos conflitos urbanos:
As críticas referiam-se ao caráter estatizante do projeto e à ameaça à
propriedade privada, pois feria a livre iniciativa (GRAZIA, Op. Cit., p. 22). Como o texto constitucional remetia para os planos diretores a expli-
A luta pelas funções sociais4 da propriedade e da cidade teve uma citação das condições de cumprimento da função social da proprieda-
de, houve um esforço de elaboração coletiva por parte das prefeituras
longa trajetória, que começou no início dos anos de 1960 e foi retoma-
no sentido de incorporar nas leis orgânicas e planos diretores novos
da e reafirmada nos anos de 1980 pelo Movimento Nacional de Re- instrumentos que interviessem sobre o mercado de terras de forma a
forma Urbana. Esta retomada aconteceu no momento da discussão da ampliar seu acesso para setores populares (Câmara dos Deputados
Emenda Popular pela Reforma Urbana, no processo de negociação que apud ROCCO, 2006, p. 31).
se deu durante a elaboração da nova Constituição Brasileira. A forte
mobilização foi fundamental para a inclusão no texto constitucional, do O EIV foi incluído pela primeira vez em textos legais, no contexto das
Capitulo que trata da Política Urbana, com os artigos 182 e 183. Leis Orgânicas Municipais, que decorreram da revisão constitucional.
A elaboração da nova carta constitucional deveria marcar a ruptura A Lei Orgânica do Município de São Paulo, promulgada em 04 de
definitiva com o governo da ditadura militar. Ao menos no discurso ou na abril de 1990, exigiu, no artigo 159, a apresentação de Relatórios de
intenção era forte a ênfase na restituição do Estado de Direito Democrá- Impacto de Vizinhança (RIVI) para empreendimentos de significativa re-
percussão ambiental ou na infraestrutura urbana, e condicionou à apro-
3 O governo do general João Figueiredo tinha como Ministro do Interior o coronel Mário Andre-
azza, responsável pela questão urbana, envia ao Congresso Nacional o projeto de nº 775/83. vação destes projetos a realização de audiências públicas, sempre que
4 A função social dá caráter público ao uso da coisa privada, que deve inspirar-se no bem estar requerida pelos moradores e associações.
coletivo, isto é, na segurança, no sossego e na saúde dos habitantes da cidade (ROCCO, 2006, p. 22).

926 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 927
A Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro exige no artigo 445, compulsórias, o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo
de 05 de abril de 1990, a apresentação do Relatório de Impacto de Vi- no tempo, o direito de preempção, as operações urbanas consorciadas,
zinhança para “qualquer projeto de edificação multifamiliar ou destinado o consórcio imobiliário, dentre outros.
a empreendimentos industriais e comerciais, de iniciativa privada ou pú- A implantação de empreendimentos e atividades em área urbana, além
blica ...”. No artigo 447 define que o órgão público competente realizará das tradicionais limitações administrativas físico-territoriais e de zoneamen-
audiência pública, quando solicitada pela associação de moradores local. to, passa a submeter-se a outro exame, relativo à possibilidade de absor-
A Lei Orgânica do Município de Porto Alegre, promulgada em 04 de ção do projeto por meio do qual irá se inserir (PRESTES, 2005, p. 83).
abril de 1990, não faz referência à exigência de estudos de impacto. No O EIV permite a avaliação dos impactos causados por empreendi-
artigo 252 define que “o Município adotará o princípio poluidor-paga- mentos e atividades urbanas e busca conciliar interesses, que são de
dor para os empreendimentos causadores de poluição ambiental, que, um lado o interesse na realização de construções e de outro o interes-
além de serem obrigados a tratar seus efluentes, arcarão integralmente se daqueles que, por sua proximidade, são suscetíveis a sofrer os seus
com os custos de recuperação das alterações do meio ambiente ...”. efeitos, evitando assim conflitos de vizinhança (CARVALHO FILHO apud
Promulgada a Constituição, os aspectos legislativos do ideário da AVZARADEL, 2008, p. 43).
reforma urbana passaram a depender de lei federal que regulasse a apli-
cação das normas constitucionais. Neste sentido, em 28 de junho de
1989 foi apresentado no Senado federal o “Projeto de Lei do Senado 1.2 Os conceitos de vizinhança
(PLS) nº 181, de 1989 (Estatuto da Cidade)”5. Nesta Câmara Legislativa
ele foi aprovado exatamente um ano depois e após, enviado para apre- 1.2.1 O termo vizinhança no direito
ciação na Câmara dos Deputados, onde permaneceria por onze anos
(BASSUL, op. Cit., p. 108 -109). Segundo Rogério Rocco (Op. Cit., p. 1 - 4), no Brasil os direitos de
Em 10 de julho de 2001 o projeto teve a sanção presidencial. O vizinhança ganham força com a edição do Código Civil de 1916, consti-
Estatuto da Cidade, Lei Federal n° 10.257/01 regulamentou o capítulo tuindo uma sessão específica dividida em sete modalidades: do uso no-
que trata da Política Urbana da Constituição Federal, disponibilizando civo da propriedade, das árvores limítrofes, da passagem forçada, das
instrumentos empregados na gestão urbana contemporânea, visando águas, dos limites entre prédios, do direito de construir e do direito de
preencher lacunas na aplicação dos instrumentos da legislação urbana tapagem. Tais direitos de vizinhança possuíam um perfil exclusivamente
tradicional (SOUZA, Op. Cit., p. 479). privado, inspirado nos valores liberais da Revolução Francesa.
Bassul (Op. Cit., p. 132 – 135) analisa os aspectos distributivos6 A relação entre vizinhos era regida pelas regras privatistas dos di-
e redistributivos7 das diretrizes e instrumentos do Estatuto da Cidade, reitos civis e foi, por muito tempo, a única forma de obstáculo para as
conceitos acrescidos da noção de que não apenas a renda, mas também atividades impactantes em determinadas comunidades. As regras pri-
o poder pode ser considerado menos ou mais distribuído. O autor iden- vatistas, constantes no código civil do início do século passado (1916),
tifica o Estudo de Impacto de Vizinhança como instrumento predominan- autorizavam somente o vizinho, individualmente considerado, a recla-
temente distributivo, assim como os relacionados aos procedimentos mar em juízo quando prejudicado por efeitos que se estendiam até sua
de regularização fundiária, a contribuição de melhoria, a transferência propriedade (Idem, p. 15 -16).
do direito de construir e o direito de superfície. Como potencialmente Este autor descreve que, após a Segunda Guerra Mundial, os confli-
redistributivos o autor elenca o parcelamento, edificação ou utilização tos de massa deram origem à reflexão acerca das violações de caráter
essencialmente coletivo. O aprofundamento da defesa e proteção de di-
5 Identificação oficial que o Projeto de Lei recebeu, ao ser apresentado no Senado Federal.
reitos coletivos deu lugar ao surgimento dos chamados direitos difusos.
6 Relacionados com a democratização de direitos e a universalização de condições básicas de acesso
a bens e serviços urbanos, sob a responsabilidade direta, indireta ou compartilhada do poder público. São assim chamados em relação ao alcance dos destinatários legitima-
7 No sentido de capturar e redistribuir parcelas de mais valias fundiárias urbanas, que possam vir dos para a sua defesa, que são todos e qualquer um (Idem, p. 07).
a ser injustamente apropriadas, com o objetivo de reduzir desigualdades sociais.

928 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 929
Assim, tem-se no direito difuso uma evolução dos direitos de vizi- a) Vizinhança como entidade social
nhança no Brasil, extrapolando as propriedades vizinhas e alcançando a Neste sentido a vizinhança está associada à dimensão identitária da
ordem urbanística (Idem, p. 18). vida cotidiana, do bairro, da quadra e da unidade de vizinhança, com as
Ao comparar a legislação civil brasileira, tanto no Código de 19168 necessidades diárias dos moradores atendidas por deslocamentos a pé,
como no atual de 2002, Lei 10.4069, o conceito de vizinhança relacio- facilitando interações face a face e encontros e trocas entre vizinhos.
na-se com a proteção ao direito de propriedade - um direito individual, Com o objetivo de dar publicidade aos conteúdos do EIV é aconse-
no sentido de estabelecer limites ao uso da propriedade a fim de pro- lhável a realização de Audiências Públicas para o exame, pela sociedade,
teger também o direito individual do outro proprietário - o vizinho. O dos processos de licenciamento com base neste instrumento. Este pro-
tratamento na norma civil não foi alterado - a regulação do código atual pósito vem apoiar a necessidade de conhecimento das transformações
é muito semelhante à anterior, e não absorveu completamente a con- no local de moradia, reforçando laços identitários com base em relações
cepção do Estatuto da Cidade. de vizinhança, incorporando a participação de moradores nas decisões
Segundo Souza (Op. Cit., p. 482), no âmbito da formulação da Cons- sobre as alterações urbanas (Idem, p. 489).
tituição Federal de 1988 entre os “direitos fundamentais”10, apregoados à Segundo Barcellos (2001), na década de 1920, a tendência de for-
época, estava o “direito à cidade”11, o “direito à moradia” e a garantia da talecimento dos laços comunitários urbanos, com forte influência das
participação popular direta. Nesse quadro de garantia dos direitos funda- Cidades Jardim inglesas, foi fortemente defendida pela concepção urba-
mentais foi cogitada, naquele momento, a garantia de um direito de vizi- nística de Unidades de Vizinhança, de autoria do sociólogo americano
nhança, uma antiga aspiração de especialistas e planejadores com diversas Clarence Arthur Perry. A organização urbana é baseada em unidades
e difusas conotações. O direito de vizinhança, a princípio, foi pensado no sócio espaciais, separadas e autossuficientes, ganhando repercussão na
sentido de assegurar o direito à vista, isto é, ao desfrute do espaço aéreo implantação de Radburn/Nova Jersey, em 1929, de autoria dos arqui-
ou de paisagem, incorporando-o ao direito de propriedade adquirido com tetos Clarence Stein e Henry Wright.
a compra do imóvel, e quase sempre perdido devido às transformações O Movimento Modernista defendeu a presença de instituições nas
que vêm passando as cidades brasileiras nas últimas décadas. proximidades da moradia, como verdadeiros prolongamentos da ativi-
dade habitacional. A Carta de Atenas, de novembro de 1933, na 3ª
1.2.2 A vizinhança no urbanismo parte/conclusões, expressa a seguinte posição:

88 - O número inicial do urbanismo é uma célula habitacional (uma


Souza (Idem, p. 479 - 480) destaca a relevância do EIV, no tocante
moradia) e sua inserção num grupo formando por uma unidade habi-
à organização social, por instaurar a noção de vizinhança como unidade tacional de proporções adequadas.
comunitária de recorte espacial, reforçando identidades sociais a partir
do local de moradia. Le Corbusier (1984, p. 65 - 67), ao analisar a “criação de um ins-
A ideia de vizinhança como concepção urbanística tem sido associa- trumental de urbanismo para uso da sociedade da máquina” expressa a
da a dois sentidos: o primeiro como entidade social, o segundo como necessidade de ferramentas de habitação, da seguinte forma:
unidade espacial (Idem, p. 487).
8 Capitulo II – Da Propriedade Imóvel; Seção V - Dos Direitos de Vizinhança do Uso Nocivo da Essas ferramentas têm por objetivo facilitar as condições de existên-
Propriedade. cia, realizar a saúde moral e física dos habitantes, favorecer a perpetu-
9 Capitulo V – Dos Direitos de Vizinhança. ação da espécie oferecendo equipamentos necessários a uma perfeita
10 Seria uma concepção orientada pelo Texto Constitucional, por sua literalidade, sistematização educação, proporcionar alegria de viver e desenvolver sentimentos
e teleologia (finalidade ligada à realidade), bem assim pelo modelo de Estado e de Constituição sociais capazes de levar ao civismo, (...).
imaginado e realizado pelos constituintes (Sampaio, 2003, p. 89).
11 O direito à cidade tem como fonte de origem os princípios constitucionais das funções sociais
da cidade e da propriedade. Pertencem à categoria dos direitos difusos, como o direito ao meio
Para este arquiteto, “no atual estágio de comportamento civilizado
ambiente. de relações sociais, o homem exige serviços complementares, forneci-
930 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 931
dos por organizações exteriores à sua morada, serviços que podem ser trás sua característica individual e absoluta, para dar espaço a uma re-
qualificados como prolongamentos da moradia” (idem, p. 67). Estes são lativização que não considera apenas o interesse do proprietário. Há
de duas naturezas: uma mudança de paradigma, caracterizada pela análise da cidade e dos
1) material: abastecimento, serviço doméstico, serviço sanitário, empreendimentos, pontualmente considerados, na qual o direito de
manutenção e melhoria física do corpo; propriedade está separado do direito de construir, não reconhecendo a
2) espiritual: creche e escola. A posição próxima ou distante dessas propriedade se esta não cumprir com a função social expressa no Plano
ferramentas quotidianas cria, na medida de tempo, agrado ou descon- Diretor. Desta forma, o uso de determinada propriedade passa a estar
forto (CORBUSIER, op. Cit., p. 67- 68). submetido a restrições administrativas e ao atendimento da sua função
No Brasil, Ferrari (1977, p. 297- 309), com a definição de poli nu- social, isto é, coexistindo interesses diversos de outros grupos e da cida-
cleação e escalões urbanos, entende que a unidade de vizinhança, por de como um todo, bem como a outros valores e garantias assegurados
assemelhar-se ao tradicional bairro e por comportar, até certo ponto, à coletividade (PRESTES, 2005, p. 81; FERNANDES, 2002, p. 03).
uma vida autônoma, é o núcleo básico da cidade. Campos Filho (2001 e O artigo 2° do Estatuto da Cidade estabelece que “a Política Urbana
2006) apresenta a proposta de unidade de vizinhança adaptada às con- tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
dições brasileiras. Este autor parte da realidade local vivenciada pelo da cidade e da propriedade urbana, mediante ... diretrizes gerais”.
cidadão comum, estabelecendo uma análise crescente e ampliada desta Quanto ao EIV, o Estatuto da Cidade define que:
realidade, até chegar à compreensão de questões maiores da cidade, e
assim encontrar as soluções. Art. 37. O EIV será executado de forma a contemplar os efeitos positi-
vos e negativos do empreendimento ou atividade quanto à qualidade
b) Vizinhança como unidade espacial de vida da população residente na área e suas proximidades, incluin-
do a análise, no mínimo, das seguintes questões:
Outra concepção refere-se à vizinhança como unidade espacial as-
I - adensamento populacional;
sociada à materialidade, ao conjunto de edificações, de infraestrutura, II - equipamentos urbanos e comunitários;
de equipamentos urbanos e de população presentes no entorno do imó- III - uso e ocupação do solo;
vel a ser licenciado, na qual recebe os impactos ou efeitos diretos e in- IV - valorização imobiliária;
diretos produzidos por sua introdução neste meio urbano (SOUZA, Op. V - geração de tráfego e demanda por transporte público;
Cit., p. 490). VI - ventilação e iluminação;
A metodologia de avaliação de impactos considera como unidade VII - paisagem urbana e patrimônio natural e cultural.
espacial à área de abrangência dos impactos, e a classifica em dois ní-
veis. A primeira limita-se à vizinhança imediata (efeitos diretos) e a se- As questões apresentadas no artigo 37, de preocupação eminente-
gunda, a uma área cujos limites são estabelecidos conforme o raio de mente urbanística, nada mais são do que um desdobramento das fun-
influência dos impactos produzidos (efeitos diretos e indiretos). Esta úl- ções sociais da cidade e da propriedade urbana, definidas nas diretrizes
tima definição, segundo Souza (Idem, ibidem) gera várias e controversas gerais do Estatuto da Cidade em seu artigo 2°. A piora de qualquer dos
questões, e deve ser justificada pelo órgão licenciador, mas negociada itens citados significa o declínio na qualidade de vida da vizinhança, po-
com o interessado. A autora entende que a área de vizinhança depende dendo ter reflexos em toda a cidade que poderá ser taxada de não estar
do tipo de impacto e das configurações do local. cumprindo as funções sociais básicas previstas na Constituição Federal
(BONIZZATO apud AVZARADEL, 2008, p. 43).
1.2.3 O EIV no Estatuto da Cidade Ainda, no art. 37 do Estatuto da Cidade temos:

A partir do Estatuto da Cidade surge uma nova ordem social, que Parágrafo único. Dar-se-á publicidade aos documentos integrantes do
EIV, que ficarão disponíveis para consulta, no órgão competente do
reveste o direito à propriedade de um caráter moderno, deixando para
Poder Público municipal, por qualquer interessado.

932 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 933
Este parágrafo único expressa, como característica fundamental do e multidimensional nestas definições. Parâmetros subjetivos (bem-estar,
EIV, a publicidade e a garantia do acesso aos seus documentos por qual- felicidade, amor, prazer, inserção social, liberdade, solidariedade, espi-
quer interessado. Segundo Rocco (Op. Cit., p. 231) deve ser previsto em ritualidade, realização pessoal) e objetivos (satisfação das necessidades
lei municipal o Relatório de Impacto de Vizinhança (RIV), que tem a função básicas e das necessidades criadas pelo grau de desenvolvimento econô-
de disponibilizar o resumo do EIV em linguagem popular e deve estar dis- mico e social de determinada sociedade: alimentação, acesso à água po-
ponível para consulta aos interessados. De acordo com a diretriz geral de tável, habitação, trabalho, educação, saúde e lazer) se interagem dentro
Política Urbana contida no artigo 2°- XIII do Estatuto da Cidade, relativa a da cultura para constituir a noção contemporânea de qualidade de vida.
realização de audiência pública, e o parágrafo único do artigo 37, na qual O Estatuto da Cidade define que o EIV deverá ser regulado por le-
estabelece que a publicidade do EIV se dará por consulta, Rocco (Idem, p. gislação municipal, a qual definirá as hipóteses em que será necessária
52) entende que não resta dúvida quanto à obrigação contida na norma a sua elaboração. Segundo o artigo 36:
geral para que os municípios estabeleçam as condições e a forma de rea-
lização de audiências públicas em sua legislação. Lei municipal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públi-
Quanto ao termo “qualidade de vida da população”, empregado na cos em área urbana que dependerão de elaboração de estudo prévio de
definição do EIV, no artigo 37 do Estatuto da Cidade, falta um consenso impacto de vizinhança (EIV) para obter as licenças ou autorizações de cons-
em torno de seu significado o que tem levado muitos estudiosos a em- trução, ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público municipal.
pregar o termo “qualidade de vida” de forma reduzida e indiscriminada,
desconsiderando sua riqueza e complexidade (MINAYO et al, 2000). Desta forma, o EIV é aplicável somente aos casos especificados em
Estes autores entendem que: cada lei municipal e, portanto, de acordo com a realidade local, o que
deve variar com o nível de desenvolvimento de cada cidade (ROCCO,
Qualidade de vida é uma noção eminentemente humana, que tem sido Op. Cit., p. 48).
aproximada ao grau de satisfação encontrado na vida familiar, amo- O Estatuto da Cidade apresenta no artigo 38:
rosa, social e ambiental e à própria estética existencial. Pressupõe a
capacidade de efetuar uma síntese cultural de todos os elementos que A elaboração do EIV não substitui a elaboração e a aprovação de es-
determinada sociedade considera seu padrão de conforto e bem-estar. tudo prévio de impacto ambiental (EIA), requeridas nos termos da
O termo abrange muitos significados, que refletem conhecimentos, ex- legislação ambiental.
periências e valores de indivíduos e coletividades que a ele se reportam
em variadas épocas, espaços e histórias diferentes, sendo, portanto
uma construção social com a marca da relatividade cultural (idem). Neste artigo, encontra-se a necessidade de definir escalas e campos
de atuação do EIV, focando seu uso para casos de impacto em área
A Organização Mundial de Saúde em seu estudo para elaborar um urbana e agregando análises ainda não plenamente contempladas nos
instrumento que avaliasse a qualidade de vida, em uma perspectiva in- instrumentos vigentes em alguns municípios brasileiros.
ternacional e transcultural, adota a seguinte definição para qualidade de
vida: ”a percepção do indivíduo de sua posição na vida no contexto da
cultura e sistema de valores nos quais ele vive e em relação aos seus ob- 2. Estudo de Impacto Ambiental
jetivos, expectativas, padrões e preocupações” (WHOQOL GROUP apud
Fleck, 2003). Segundo Fleck, diferentemente de outros instrumentos 2.1. As origens
utilizados para avaliação de qualidade de vida, este questionário ba­seia-
se nos pressupostos de que qualidade de vida é um construto subjetivo Sanches (2006, p. 48) ressalta que a Avaliação de Impacto Ambien-
(percepção do indivíduo em questão), multidimensional e composto por tal (AIA) resultou de um processo político que buscou atender a uma
12

dimensões positivas (p. ex. mobilidade) e negativas (p. ex. dor). demanda social, que estava mais madura nos Estados Unidos. Em janei-
Assumpção et al (2002, p. 02) destaca que, na busca de uma concep-
ção mais abrangente, tem-se destacado o caráter objetivo e/ou subjetivo 12 No Brasil foi adotado o nome de Estudo de Impacto Ambiental (EIA).

934 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 935
ro de 1970 entrou em vigor a lei de política nacional do meio ambiente Na legislação brasileira, o EIA surgiu na época do regime ditatorial,
deste país, a National Environmental Policy Act (NEPA), a qual se aplica de forma tímida, “como se os responsáveis pela sua introdução dese-
a todas as decisões das agências do governo federal e, também, a pro- jassem escondê-lo dos grupos de pressão e dos próprios militares” (MI-
jetos privados de aprovação pelo governo federal que possam acarretar LARÉ & BENJAMIM, Op. Cit., p. 17). Inspirado no NEPA13, o EIA foi
modificações ambientais significativas, como mineração, usinas hidrelé- introduzido no Brasil pela Lei 6.803 de 02 de julho de 1980, que dispõe
tricas e nucleares, etc. sobre as “diretrizes básicas para o zoneamento industrial nas áreas críti-
A AIA evoluiu ao longo do tempo, conforme foi sendo aplicado em cas de poluição”. Como assinala Hermam Benjamim14 “as limitações im-
outros contextos culturais ou políticos, mas sempre dentro do objetivo postas, tanto pela taxatividade de suas hipóteses de ocorrência, como
primário de prevenir a degradação ambiental e de subsidiar um pro- pela aplicabilidade setorizada para projetos industriais têm uma estreita
cesso decisório, para que as consequências sejam apreendidas antes utilidade no processo diário de destruição da natureza”.
mesmo de cada decisão ser tomada. Nos anos de 1980 a mobilização social ganha novo impulso pela
No Canadá (1973), Nova Zelândia (1973) e Austrália (1974) estive- conquista de maiores espaços no campo sócio-político, com práticas
ram entre os primeiros países a adotar a avaliação de impactos como democráticas na gestão do Estado e pelo surgimento do movimento
instrumento precedente a decisões governamentais importantes. A ado- ambientalista, o qual foi impulsionado por diversos acontecimentos,
ção da AIA deveu-se fundamentalmente à similaridade dos problemas tais como: o lançamento do Manifesto Ecológico Brasileiro, de 1980
ambientais, decorrentes do estilo de desenvolvimento (Idem, p. 50). de José Lutzemberger, os livros de memória de Fernando Gabeira sobre
Na Europa o modelo americano da AIA não foi bem visto. Os gover- sua conversão ao ecologismo, a resistência dos cientistas brasileiros ao
nos sustentavam que suas políticas de planejamento já levavam em con- Acordo Nuclear Brasil-Alemanha, além do Movimento dos Atingidos por
ta a variável ambiental. Somente em 1985 a Comissão Europeia ado- Barragens. Assim, no apagar das luzes do regime autoritário, a avaliação
tou uma resolução (Diretiva 337/85) que muito se assemelha ao NEPA, de impacto ambiental ganha nova função e amplitude (MOURA FILHO,
embora diferenças marcantes tenham sido introduzidas, de aplicação 2006, p. 151; MILARÉ & BENJAMIM, 1993, p. 18).
compulsória por parte dos países membros da atual União Europeia, No Rio Grande do Sul, a primeira manifestação pública organizada
obrigando-os a adotar procedimentos formais de AIA (SANCHES, Op. com o objetivo de questionar a implantação de um empreendimento, foi
Cit., p. 50; MILARÉ & BENJAMIM, 1993, p. 96). promovida pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural –
A França antecipou-se e foi o primeiro país da Europa a adotar a ava- AGAPAN, por ocasião da implantação do Pólo Petroquímico de Triunfo
liação de impacto ambiental pela lei de 1976. Diferentemente dos Es- no Rio Grande do Sul, em 1980 (MOURA FILHO, Op. Cit., p. 153).
tados Unidos – em função de um regime jurídico e de uma organização
administrativa muito diversos – a AIA foi adotada na França como uma 2.2. EIA na legislação federal
modificação do sistema de licenciamento de indústrias e outras ativida-
des que posam causar impacto ambiental (SANCHES, 2006, p. 51). No cenário descrito no item anterior é que surge a Lei nº 6.938, de
Os primeiros estudos ambientais preparados no Brasil direcionaram-se a 31 de agosto de 1981, dispondo sobre a Política Nacional do Meio Am-
alguns grandes projetos hidroelétricos durante os anos de 1970, financiados biente, na qual a avaliação de impacto ambiental passou a integrar de
em parte pelo Banco Mundial, como as barragens de Sobradinho no Rio São forma ampla e generalizada à legislação ambiental, elevada à categoria
Francisco, em 1972, e de Tucuruí no Rio Tocantins, em 1977. Os estudos de instrumento de política ambiental (MIRRA, 2002, p. 07).
são, em grande parte, um reflexo da influência de demandas originadas no
exterior. O Banco Mundial teve papel muito importante na difusão das Ava- Art 9° - São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente:
liações de Impacto Ambiental, na medida em que movimentou bilhões de I – o estabelecimento de padrões de qualidade ambiental;
dólares por ano em projetos de desenvolvimento nos países do Sul, muitos 13 Lei de política nacional do meio ambiente dos Estados Unidos, aprovada em 1969. Entrou em
deles capazes de causar impactos significativos (idem, p. 55 e 62). vigor a partir de 1° de janeiro de 1970.
14 BENJAMIM, Hermam, 1987, p . 275 apud MILARÉ & BENJAMIM, 1993, p. 18.

936 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 937
II – o zoneamento ambiental; maioria dos impactos, uma vez que, em área urbana, os impactos não têm
III – a avaliação de impactos ambientais; relação direta com a bacia hidrográfica. Não faz sentido analisar questões
IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencial- de tráfico ou de valorização imobiliária a partir da bacia hidrográfica em
mente poluidoras; que o projeto se localiza. A área de influência dos impactos pode ser
(...).
diferente ou coincidente, dependendo da abrangência e da natureza do
impacto, podendo cada impacto ter sua área de influência.
O artigo 7º desta lei cria o Conselho Nacional do Meio Ambien-
Já o inciso I da Resolução 001 refere-se a alternativas locacionais, o
te (CONAMA) e o artigo 8°, incisos I e II, atribui suas competências, que em meio urbano já é mais difícil de contemplar, visto que a análise
estabelecendo normas e critérios sobre o licenciamento de atividades de solicitação de um empreendimento ou atividade é feita com o intuito
poluidoras e determinando estudos das alternativas e das possíveis con- de atender ao zoneamento estabelecido e a partir da matrícula do imó-
sequências ambientais de projetos públicos e privados. vel. As alternativas locacionais para um empreendimento em meio rural
Alguns anos mais tarde, por intermédio da Resolução nº 001 do são mais viáveis, uma vez que a gleba apresenta menos condicionantes
CONAMA de 23/01/1986, são estabelecidos os critérios básicos e as que uma propriedade urbana, tais como: dimensões, vizinhança, infra-
diretrizes gerais e específicas para a elaboração do Estudo de Impacto estrutura e mobilidade, dentre outras.
Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). O artigo 2° re- Quanto à conceituação, Hermam Benjamim (MILARÉ & BENJAMIM,
mete a elaboração de EIA/RIMA para o licenciamento de atividades mo- 1993, p. 27) entende que o EIA é o todo: complexo, detalhado, muitas
dificadoras do meio ambiente que, através de dezesseis incisos, enume- vezes com linguagem, dados e apresentação incompreensíveis para o leigo.
ra estas atividades tais como estradas, ferrovias, aeroportos, oleodutos, O RIMA é a parte mais visível (ou compreensível) do procedimento, verda-
extração de combustível fóssil, extração mineral, distritos industriais, deiro instrumento de comunicação do EIA ao administrador e ao público.
projetos urbanísticos acima de 100 ha, dentre outros. Cappelli15 define o EIA como “um conjunto de atividades científi-
O artigo 5° da Resolução 001 especifica as diretrizes gerais do EIA: cas e técnicas que incluem o diagnóstico ambiental, a identificação,
previsão e medição dos impactos, sua interpretação e valoração e a
I - Contemplar todas as alternativas tecnológicas e de localização de definição de medidas mitigadoras e de programas de monitorização
projeto, confrontando-as com a hipótese de não execução do projeto;
destes”. Por sua vez, entende que o RIMA espelha as conclusões do
II - Identificar e avaliar sistematicamente os impactos ambientais gera-
dos nas fases de implantação e operação da atividade; EIA, é um resumo deste, consubstanciado em um documento elabora-
III - Definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente do em linguagem acessível, municiado com gráficos, cartazes, fluxogra-
afetada pelos impactos, denominada área de influência do projeto, con- mas e outras técnicas visuais para facilitar seu entendimento.
siderando, em todos os casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza; Referente ao conteúdo, Medeiros (2006, p. 146) expressa que ao ela-
lV - Considerar os planos e programas governamentais, propostos e em borar um EIA as primeiras questões a serem abordadas são aquelas
implantação na área de influência do projeto, e sua compatibilidade.
relativas ao quadro natural onde se localiza o empreendimento, com ên-
Parágrafo Único - Ao determinar a execução do estudo de impacto
ambiental o órgão estadual competente, ou o IBAMA ou, quando cou-
fase nos impactos provocados no espaço natural e as prováveis transfor-
ber, o Município, fixará as diretrizes adicionais que, pelas peculiarida- mações no ecossistema da região. Mas também salienta a importância
des do projeto e características ambientais da área, forem julgadas dos aspectos sociais, desde que haja uma população envolvida, tanto
necessárias, inclusive os prazos para conclusão e análise dos estudos. quanto os aspectos naturais. Considerar o homem como um simples
objeto que pode ser deslocado, mudado ou transferido com relativa
Neste artigo o inciso III, ao definir que a área de influência do projeto facilidade é pensar o homem fora da natureza.
deve considerar a bacia hidrográfica na qual se localiza, demonstra que o A Resolução 001/86, em seu artigo 11, §2°, dispõe que o órgão
principal foco de abordagem são os recursos naturais. Esta definição de público competente, sempre que julgar necessário, promoverá a realiza-
limites, como regra de análise, é válida para o estudo de impactos asso-
15 CAPPELLI, Sílvia. O Estudo de Impacto Ambiental na Realidade Brasileira. Disponível em: http://
ciados à drenagem urbana, não servindo como referência para a grande www.mp.rs.gov.br/ambiente/doutrina . Acesso em 13/06/2009.

938 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 939
ção de audiência pública para prestar informações sobre o projeto. Por Os autores acima entendem que se qualquer um destes objetivos
meio da Resolução n° 009 de 03/12/1987, o CONAMA disciplinou a ficar sem atendimento, o EIA está maculado e descaracteriza-se.
realização de audiências públicas: O EIA é exigido como condição para o licenciamento de obras, ati-
vidades e empreendimentos potencialmente degradadores do meio
Art. 1º - A Audiência Pública (...) tem por finalidade expor aos interessa- ambiente, integrando o processo de licenciamento ambiental. O licen-
dos o conteúdo do produto em análise e do seu referido RIMA, dirimindo ciamento ambiental, como o EIA, é um dos instrumentos da Política Na-
dúvidas e recolhendo dos presentes as críticas e sugestões a respeito. cional do Meio Ambiente, previsto nos artigos 9°, IV e 10 da Lei n°
Art 2° - Sempre que julgar necessário, ou quando for solicitado por enti- 6.938/81, nos artigos 17 e 19 do Decreto Federal nº 99.274/90 e na
dade civil, pelo Ministério Público, ou por 50 (cinqüenta) ou mais cidadãos,
Resolução n° 237/97 do CONAMA.
o Órgão de Meio Ambiente promoverá a realização de audiência pública.
A partir da Resolução 237/97, os municípios brasileiros estavam
liberados para atender plenamente o que está definido na legislação
Velasques (2006, p. 37), ao avaliar a aplicação do EIA, constata que
e pleitear a municipalização do trâmite de aprovação dos empreendi-
se transformou em instrumento de um processo gradativo de abertura
mentos, através do licenciamento ambiental. Caracteriza-se por ser um
para a divulgação de informações e participação pública, ampliando sig- procedimento administrativo, que se desenvolve em três fases específi-
nificativamente seu objetivo inicial. cas, definidas no art 8º da Resolução 237, compreendendo as Licenças
Com a Constituição Federativa do Brasil promulgada em 05 de ou- Prévia (aprovação), de Instalação (obra) e de Operação (funcionamento),
tubro de 1988, os estudos de impacto adquiriram status de matéria expedidas pelo Poder Público. O EIA está inserido na primeira etapa do
constitucional, ao serem incluídos no capítulo do Meio Ambiente: processo de licenciamento, elaborado e aprovado antes da expedição
da Licença Prévia e como condição desta, pois são nesta fase que se
Art 225. § 1° - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe realizam os estudos de viabilidade do projeto.
ao poder público;
IV – exigir na forma da lei, para instalação de obra ou atividade poten-
cialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente,
3. Conclusões
estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade.

A Resolução 237/97 do CONAMA permitiu aos municípios definir outros


O objetivo central do EIA é evitar que um projeto (obra ou atividade),
procedimentos de avaliação de impactos dependendo da natureza, caracte-
justificável sob o ponto de vista econômico ou em relação aos interes-
rística e peculiaridades da atividade ou empreendimento a ser instalado em
ses imediatos de seu proponente, venha, posteriormente, a revelar-se
área urbana. Esta é uma importante definição para um país que tem uma
nefasto ou catastrófico para o meio ambiente. É um estudo prévio das grande diversidade natural e cultural, representando um grande avanço para
prováveis modificações nas diversas características socioeconômicas e o interesse local, e permitindo assim que cada municipalidade identifique o
biofísicas do meio ambiente, que podem resultar de um projeto propos- melhor procedimento de acordo com seu grau de desenvolvimento.
to, e tem o papel de qualificar e quantificar antecipadamente estas mo- O EIV e o EIA tiveram uma trajetória diferenciada em relação à nor-
dificações. O EIA é um instrumento preventivo, que visa à identificação matização federal. O EIV recebeu assento legal quase 25 anos após
do risco e a informação prévia, antes da execução do projeto (MILARÉ sugestão do CNDU em uma proposta de lei. Apesar de ser instituído
& BENJAMIM, Op. Cit., p. 13 – 14). tardiamente, apresenta um escopo mínimo de questões a serem ana-
Como objetivos principais, elencam-se os seguintes (idem, p. 76): lisadas, que abrangem a diversidade e a complexidade urbana. O EIA,
desde os anos de 1970, contou com a pressão dos organismos inter-
a) Prevenção do dano ambiental; nacionais, financiadores de grandes obras de infraestrutura de abran-
b) Transparência administrativa;
gência regional, pela exigência de avaliação de impactos e a partir de
c) Consulta aos interessados;
d) Influenciar o processo decisório administrativo com o suprimento 1980, foi regulamentado paulatinamente, atendendo a evolução das
de informações úteis. necessidades referentes à perpetuação do ambiente natural.
940 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 941
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nistrações locais, no que se refere à análise dos impactos urbanos. O ______________. Reinvente seu bairro: caminhos para você participar do plane-
emprego do EIA teve importante contribuição para a análise urbana e jamento de sua cidade. São Paulo: Editora 34, 2006.
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Ao analisar a trajetória de formulação do EIV e do EIA, verifica-se que & Fundação Escola Superior de Direito Municipal. Avaliando o estatuto da Cida-
tiveram propósitos lógicos iguais, ou seja, ambos foram concebidos para de II Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico, Porto Alegre, 2002, p. 1 - 4.
analisar os impactos de determinados empreendimentos com a finalida- ___________________. “O Jogo da Cidade”. In: BASSUL, José Roberto. Estatuto
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944 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 945
dos municípios do estado do Rio Grande do Sul. Conclusão. Assim, o presente trabalho tem como escopo analisar as vantagens
Referência Bibliográfica e também sopesar as desvantagens sociais e econômicas do ente mu-
Palavras-chave: Política Nacional do Meio Ambiente - Li- nicipal que possui o poder da concessão do licenciamento ambiental,
cenciamento Ambiental – Competência Municipal.
levando em consideração, para isso, o Estado do Rio Grande do Sul,
que, segundo dados da FEPAM , possui 277 dos seus 496 Municípios
com habilitação para a concessão do licenciamento.
INTRODUÇÃO
Para isso, em um primeiro momento serão tecidas algumas consi-
derações históricas essenciais a respeito do Direito ao Meio Ambiente
A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 225, assegurou a
Equilibrado e sua elevação à categoria de Direito Fundamental, assim
todo indivíduo o direito à manutenção de um meio ambiente ecologica-
como sua previsão e aplicação na Constituição Federal de 1988.
mente equilibrado, e para isso conferiu ao Poder Público e a coletivida-
Logo após parte-se para a análise da Política Nacional do Meio Am-
de o dever de sua defesa e preservação, a fim de garantir esta condição
biente, onde o instituto do licenciamento ambiental se apresenta como
às gerações futuras.
uma forma eficaz de intervenção estatal na atividade privada, com base
Igualmente é assegurado a todos o livre exercício das atividades
no poder de polícia, e com vistas ao controle prévio das atividades po-
econômicas, conforme artigo 170, parágrafo único da CF/88, observan-
tencialmente poluidoras, fazendo valer assim o princípio da precaução,
do, na seara ambiental, os impactos e danos ao meio ambiente que tais
tão importante na orientação das políticas ambientais atuais.
atividades podem causar.
A partir de tais considerações busca-se fazer uma abordagem espe-
Diante do condicionamento das atividades econômicas em função
cífica das competências acerca da concessão de licenciamento ambien-
da necessidade de um meio ambiente saudável é que se busca encon-
tal, onde, originalmente esta competência estava a cargo dos Estados
trar meios viáveis para o desenvolvimento econômico e a preservação
Federados - com base na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente,
ambiental, partindo de uma análise local, tendo como base o ente mu-
datada de 1981 sendo que, logo após, por meio de uma interpretação
nicipal.
hermenêutica constitucional de acordo com a Constituição Federal de
De acordo com a Carta Maior, em seu art. 23, inciso VI , é dever do
1988, tal procedimento pode ser delegado ao ente federado municipal
Estado, em todas as suas esferas - União, Estados, Distrito Federal e
quando a atividade for de impacto estritamente local, na forma da legis-
Municípios - proteger o meio ambiente. Um dos institutos que o Poder
lação específica.
Público dispõe para efetuar tal proteção é o Licenciamento Ambiental,
O ente municipal que detém o poder de conceder o licenciamento
através do qual são estabelecidos limites e condições para o desenvol-
ambiental pode ser beneficiado pela reversão dos custos do procedimen-
vimento de atividades passíveis de causarem danos ao meio ambiente.
to em seu favor, os quais devem ser reinvestidos na qualificação de seus
Diante disso vislumbra-se como alternativa para o melhor geren-
agentes, na fiscalização e educação ambiental, beneficiando a comunida-
ciamento dos bens naturais, a descentralização da administração em
de local, a qual, logicamente, será a mais atingida com a efetiva instalação
matéria ambiental concedendo aos Municípios o poder de concessão do
e/ou funcionamento da atividade objeto do referido licenciamento.
licenciamento ambiental para obras de caráter local, uma vez que estes,
Além disso, com celeridade e redução de custos no licenciamento
com a devida capacitação, possuem maior proximidade com a realidade
ambiental, torna-se possível a implantação de um programa de estímulo
local.
aos empreendedores para que regularizem suas atividades, contribuin-
Importante referir também que a morosidade recorrente dos ór-
do para o desenvolvimento sustentável local.
gãos responsáveis para licenciar os empreendimentos, assim como o
Como consequência, a delegação de competência do licenciamento
alto custo cobrado para tal procedimento se mostra como os principais
das atividades de impacto local aos Municípios acarreta uma diminuição
fatores que justificam a intenção de o Município se tornar um ente capaz
de requerimentos ao Estado, o qual poderá tornar mais ágil e efetivo o
de atuar no licenciamento e também na fiscalização das atividades que
procedimento em relação ao licenciamento das atividades que lhe cabem.
causem impacto local.

946 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 947
Dessa forma, este estudo pretende atingir uma relevância acadêmi- legalmente meio ambiente como sendo o “conjunto de condições, leis,
ca e social, a fim de que possa ter uma efetiva contribuição para a socie- influências e interações de ordem física, química e biológica, que permi-
dade, visto que os problemas ambientais exigem uma resposta efetiva te, abriga e rege a vida, em todas as suas formas”.
para que seja possível reverter o nível de degradação existente atual- A doutrina, porém, com o advento da Constituição Federal de 1988,
mente, possibilitando a compatibilização entre a proteção do ambiente ampliou o conceito legal de meio ambiente definido pela referida Lei,
e o desenvolvimento, para as presentes e futuras gerações. afirmando que a expressão “meio ambiente” inclui também condições
Ou seja, o presente estudo tem como objetivo a análise de opções artificiais, culturais e do trabalho.
concretas e viáveis para a preservação do meio ambiente local, pois, Marchesan, Steigleder e Cappeli conceituam meio ambiente como
em se tratando de direito ambiental, o estudo deve estar em constan-
te evolução para acompanhar o crescimento da sociedade e regular as [...] um bem jurídico unitário, a partir de uma visão sistemática e
relações humanas com o meio ambiente, visto que dele depende a sub- globalizante, que abarca os elementos naturais, o ambiente artificial
sistência da vida em todas as suas formas. (meio ambiente construído) e o patrimônio histórico-cultural, pressu-
pondo-se uma independência entre todos os elementos que integram
o conceito, inclusive o homem, valorizando-se a prepodenrância da
complementaridade recíproca entre o ser humano e o meio ambiente
I. A PRESERVAÇÃO AMBIENTAL NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA sobre a ultrapassada relação de sujeição e instrumentalidade.4

A Constituição Federal de 1988 representa um marco na defesa ao Nesse mesmo sentido Edis Milaré aponta, sobre os elementos que
meio ambiente, pois, diferentemente das anteriores, reserva um capítulo fazem parte do meio ambiente que
exclusivo à matéria ambiental, reconhecendo expressamente o direito fun-
damental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como condição de Para o Direito brasileiro, portanto, são elementos do meio ambiente,
proteção da dignidade da pessoa humana e do bem estar da sociedade. além daqueles tradicionais como o ar, a água e o solo, também a bio-
A respeito da CF/88 no que tange a matéria ambiental, Edis Milaré sfera, esta com claro conteúdo relacional (e, por isso mesmo, flexível).
assinala que ela representou um Temos, em todos eles, a representação do meio ambiente natural. Além
disso, vamos encontrar uma serie de bens culturais e históricos, quem
Marco histórico de inegável valor, dado que as Constituições que também se inserem entre os recursos ambientais, como meio ambiente
precederam a de 1988 jamais se preocuparam da proteção do meio artificial ou humano, integrado ou associado ao patrimônio natural.5
ambiente de forma específica e global. Nelas sequer uma vez foi em-
pregada a expressão “meio ambiente”, a revelar total despreocupação Sendo assim, todos os fatos relacionados com a ordem física, quími-
com o espaço que vivemos.3 ca, biológica, artificial, cultural e do trabalho, que permite, abriga e rege
a vida, em todas as suas formas, são relacionados com o meio ambiente.
Assim, a Constituição Federal de 1988 consagra a proteção ao meio Ressalta-se que é igualmente assegurado a todos o livre exercício das
ambiente, com vistas ao desenvolvimento sustentável, reservando um capí- atividades econômicas, conforme artigo 170, parágrafo único da CF/886.
tulo específico para tratar do assunto.
4 FARIAS, Paulo José Leite. Competência Federativa e Proteção Ambiental. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris, 1999, p. 214 (apud MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Mon-
1.1. Conceito Jurídico De Meio Ambiente teiro; CAPPELI, Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004. p. 15).
5 MILARÉ, 1991, p. 116.
É importante definir qual a abrangência da expressão meio ambien- 6 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa,
tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados
te no seu sentido jurídico. A Lei n. 6.938, de 1981, que dispõe sobre a os seguintes princípios:
Política Nacional do Meio Ambiente, em seu art. 3º, inciso I, conceitua [...]
Parágrafo único - É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, indepen-
3 MILARÉ, Edis. Legislação ambiental do Brasil. São Paulo: APMP, 1991. p. 3. dentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.

948 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 949
No entanto, o livre exercício das atividades econômicas encontra sendo este uma forma do exercício do poder de polícia, como já falado
limites, e, no que tange a matéria ambiental, a liberdade esbarra na ne- anteriormente.
cessidade de observação dos impactos e danos ao meio ambiente que
estas podem causar. 1.3. A Política Nacional do Meio Ambiente

1.2. O Poder de Polícia Administrativa na Seara Ambiental Classificado como bem público, o meio ambiente deve ser gerenciado
pelo Poder Público. Esse gerenciamento se dá através de comandos objeti-
Essa limitação é feita através da intervenção do Poder Público nas vos dispostos na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6.938/81.
atividades privadas, a fim de garantir que estas cumpram sua função Sendo assim, a Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecida
social, conforme preveem os artigos 5º, XXIII, 170, III e IV, e parágrafo mediante a edição da Lei nº 6.938, institui conceitos, princípios, objeti-
único, 182, §2, e 186, II, todos da CF/88. vos, instrumentos, penalidades, mecanismos de formulação e aplicação,
A intervenção do Poder Público nas atividades privadas é feito com e instituindo o SISNAMA - Sistema Nacional de Meio Ambiente e o CO-
base no Poder de polícia administrativa, que, com base no artigo 78 do NAMA - Conselho Nacional do Meio Ambiente.
Código Tributário Nacional, visa condicionar o exercício de direitos por De acordo com Luís Paulo Sirvinskas9 a referida lei definiu conceitos
parte dos particulares ao bem estar coletivo. basilares como o de meio ambiente, de degradação e de poluição e de-
Rafael Maffini7 nos ensina que a polícia administrativa se caracteriza terminou os objetivos, diretrizes e instrumentos, além de ter adotado a
por apresentar, necessariamente, uma finalidade preventiva, com vistas teoria da responsabilidade.
a evitar lesões ao interesse coletivo, tendo, para tanto, instrumentos Para Ricardo Carneiro10, a política ambiental é a organização da ges-
preventivos (o que ocorre com maior frequência) e repressivos. tão estatal no que diz respeito ao controle dos recursos ambientais e
Além disso, o doutrinador ainda ressalta que o poder de polícia ad- à determinação de instrumentos econômicos capazes de incentivar as
ministrativa incide sobre bens, direitos e atividades (enquanto que o po- ações produtivas ambientalmente corretas.
der de polícia judiciária incide sobre pessoas). A Política Nacional do Meio Ambiente possui objetivo geral e ob-
Especificamente na matéria ambiental, Paulo Affonso Leme Macha- jetivos específicos. O objetivo específico subdivide-se em preservação,
do define o exercício do poder de polícia ambiental como a atividade
8
melhoramento e recuperação do meio ambiente e encontra-se previsto
da administração pública que limita ou disciplina direito, interesse ou no caput do art. 2º da Lei nº 6.938/81:
liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato em razão de
interesse público concernente à saúde da população, à conservação dos A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação,
ecossistemas, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de melhoria e recuperação da qualidade ambiental propicia à vida, visando
atividades econômicas ou de outras atividades dependentes de conces- assegurar, no país, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos in-
são, autorização, permissão ou licença do Poder Público de cujas ativi- teresses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.
dades possam decorrer poluição ou agressão à natureza.
A competência para o exercício do poder de polícia ambiental segue Antônio Inagê de Assis Oliveira11 afirma que o objetivo da Política
a competência legislativa, ou seja, o ente a quem a Constituição Federal Nacional do Meio Ambiente é viabilizar a compatibilização do desen-
outorga a competência para legislar sobre determinada matéria tam- volvimento socioeconômico com a utilização racional dos recursos am-
bém será competente para sobre ela exercer a polícia administrativa. bientais, fazendo com que a exploração do meio ambiente ocorra em
Em função do objeto de estudo desse trabalho, o capítulo seguin- condições propícias à vida e à qualidade de vida.
te será destinado ao estudo do instituto do licenciamento ambiental, 9 SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 59.
10 CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Janeiro: Forense,
7 MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribu- 2003. p. 98.
nais, 2008. p. 70. 11 OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira e licenciamento
8 MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 303. ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 307.

950 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 951
A Política Nacional do Meio Ambiente prevê diversos mecanismos Edis Milaré define o licenciamento ambiental
para a realização de seus objetivos, que estão elencados em seu art. 9º.
Paulo de Bessa Antunes12 refere que os instrumentos da Política Como ação típica e indelegável do Poder Executivo, o licenciamento
Nacional do Meio Ambiente encontram fundamento constitucional no constitui importante instrumento de gestão do ambiente, na medi-
da em que, por meio dele, a Administração Pública busca exercer o
art. 225 da Constituição Federal, especialmente no § 1º e seus incisos.
necessário controle sobre as atividades humanas que interferem nas
Todos os instrumentos possuem suas características e peculiarida- condições ambientais, de forma a compatibilizar o desenvolvimento
des específicas, sendo que, para o fim do presente estudo, será analisa- econômico com a preservação do equilíbrio ecológico. Isto é, como
do em específico o procedimento do licenciamento ambiental, previsto prática do poder de polícia administrativa, não deve ser considerado
no inciso IV do dispositivo. como obstáculo teimoso ao desenvolvimento, porque este também é
um ditame natural e anterior a qualquer legislação.13

II. LICENCIAMENTO AMBIENTAL - CONCEITO A instrumentalidade do instituto do licenciamento ambiental é ma-


E PROCEDIMENTO nifesta, vez que, por meio dele o Poder Público estabelece condições
e limites para o exercício de determinadas atividades, consentindo so-
Como referido acima, um importante instrumento de gestão am- mente aquelas que tenham impacto ambiental reduzido ou dentro de
biental que o Poder Público dispõe para efetuar a referida interven- padrões admitidos.
ção é o Licenciamento Ambiental estabelecido pela Lei da Política Nesse caso de impacto ambiental reduzido, tem-se que considerar
Nacional do Meio Ambiente, em seu artigo 10, segundo o qual que a maioria das atividades produz algum efeito prejudicial ao meio
ambiente, sendo que a função do licenciamento vem a ser apontar ações
A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabele- com o intuito de mitigar os efeitos negativos do empreendimento polui-
cimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, conside- dor, equilibrando a proteção ao meio ambiente com o desenvolvimento
rando efetiva ou potencialmente poluidores, bem como os capazes,
econômico.
sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão
O licenciamento é composto por três tipos de licença: prévia, de
de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do
Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasi- instalação e de operação. Cada uma refere-se a uma fase distinta do
leiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em empreendimento e segue uma sequência lógica de encadeamento.
caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. Todo esse complexo procedimento que envolve o licenciamento
ambiental obedece a preceitos legais e normas administrativas e deve
O conceito jurídico do licenciamento é encontrado no artigo 1º, in- atender, obviamente, todos os princípios gerais do direito ambiental,
ciso I da Resolução 237/97 do CONAMA, onde dispõe que o licencia- além dos específicos, entre os quais podemos destacar para o presen-
mento ambiental te estudo o Principio da legalidade, o Princípio da precaução, o Prin-
cípio da prevenção, o do Poluidor-pagador, o Princípio da Educação
É o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental com- Ambiental e o Princípio da Publicidade.
petente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de
empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, 2.1 Competências acerca do Licenciamento Ambiental
consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que,
sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, conside-
A competência do licenciamento ambiental, originariamente, incide
rando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas
aplicáveis ao caso. primariamente sobre os Estados, com base no art. 10 da já referida Lei
Federal n.º 6.938/8119, o que se dá através do Sistema Nacional do

12 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 70. 13 MILARÉ, 1991, p. 406.

952 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 953
Meio Ambiente (SISNAMA) e, subsidiariamente, pelo Instituto Brasileiro co, expressando, pelo uso da expressão “competência comum”, que
do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA): tal responsabilidade, em matéria ambiental, está inserida na compe-
tência administrativa das pessoas políticas de direito público, agindo
Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de es- cada qual na esfera de sua competência. Não se pode perder de vista
tabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, con- que o artigo 225 estabelece o poder-dever dos integrantes do poder
siderados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, público de assegurar a todos o usufruto de um meio ambiente hí-
sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão gido, ecologicamente equilibrado. Assim, está ínsita na competência
de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do administrativa de cada uma das pessoas políticas de direito público, a
Sistema Nacional do Meio Ambiente - SISNAMA, e do Instituto Brasi- obrigação de usar os instrumentos à sua disposição para atingir a este
leiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, em objetivo constitucional.15
caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.
Aos municípios, além da competência administrativa comum para
Portanto, conforme preceitua a legislação de 1981, cabe aos Esta- dispor sobre o meio ambiente, cabe-lhe também a competência prevista
dos e, supletivamente à União a competência para concessão do licen- na conjugação dos artigos 23 e 30, ambos da CF/88, pelos quais há
ciamento ambiental. competência municipal para legislar sobre assuntos locais e, para suple-
A Constituição Federal de 1988 - posterior à Lei 6.938/81 - reco- mentar, no que couber, a legislação federal e estadual.
nheceu formalmente os municípios como entes da federação, conceden- Considerando a legitimidade que o município possui para defender
do-lhes autonomia e, em matéria ambiental, conferiu-lhes certas compe- e preservar o meio ambiente no que diz respeito ao seu interesse local,
tências, abrindo a possibilidade de licenciamento ambiental municipal. somada à competência administrativa comum, abriu-se a possibilidade
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello: para, na forma da lei, a concessão do licenciamento ambiental municipal
para empreendimentos com impacto eminentemente local.
A Constituição de 1988 modifica profundamente a posição dos Mu- Importante apontar aqui o significado de impacto ambiental local.
nicípios na Federação, porque os considera componentes da estru- Wellington Pacheco Barros define a expressão da seguinte forma:
tura federativa. [...] Nos termos, pois, da Constituição, o Município
brasileiro é entidade estatal integrante da Federação, como entidade Impacto ambiental local é qualquer alteração direta (ou seja, decor-
político-administativa, dotada de autonomia política, administrativa e rente de uma única relação de causa e efeito) das propriedades físicas,
financeira.14 químicas e biológicas do meio ambiente, que afetem a saúde, a segu-
rança e o bem-estar da população, as atividades sociais e econômicas,
De maneira ampla, no que tange a defesa e preservação do meio a biota, as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente e/ou a
ambiente por parte do poder público, a CF/88 determinou, em seu ar- qualidade dos recursos ambientais, dentro dos limites do Município.16
tigo 23, que é competência comum da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios a proteção do meio ambiente e o combate Nesse contexto, a viabilidade da competência municipal para o li-
à poluição em todas as suas formas, bem como compete à União, aos cenciamento foi dada pela Resolução 237, de 19 de dezembro de 1997
Estados e ao DF legislar concorrentemente acerca da matéria. do Conselho Nacional do Meio Ambiente, a qual regulamenta o licencia-
Comentando o dispositivo citado, Antonio Inagê de Assis Oliveira mento ambiental municipal.
refere que
Art. 6º Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos
O artigo 23 da Constituição Federal estabelece as responsabilidades competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando
administrativas de cada uma dessas pessoas jurídicas de direito públi-
15 OLIVEIRA, 2005.p. 69.
14 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito constitucional Positivo. 16. ed. São 16 BARROS, Wellington Pacheco. Direito Ambiental Sistematizado. Porto Alegre: Livraria do Advo-
Paulo: Malheiros, 1999. p. 620-621. gado, 2008, p. 176.

954 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 955
couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades Ilegal, pois uma resolução não poderia ir além do disposto na Lei
de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo 6.938/81, que confere aos estados a concessão do licenciamento, con-
Estado por instrumento legal ou convênio. forme já referido; e inconstitucional, pois se adiantar à lei complementar
prevista no parágrafo único do art. 23 da Constituição Federal.
À respeito da referido resolução, Édis Milaré Todavia, apesar das discussões existentes acerca da constitucionali-
dade da Resolução 237/97 do CONAMA, entende-se, majoritariamente
Na letra do art. 6º da Resolução 237/1997, compete ao órgão am-
que a competência do município para o licenciamento ambiental decor-
biental municipal o licenciamento de empreendimentos de empre-
re diretamente da CF/88, pois esta estabeleceu competências expressas
endimentos e atividades de impacto ambiental local (aquele que se
circunscreve aos lindes territoriais do Município) e daquelas que lhe ao ente municipal.
forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio. A Nesse sentido é o entendimento do ambientalista Edis Milaré:
oitiva dos demais órgãos é também aqui exigida. [...] Para isso, é pró-
prio enfatizar que cada Município, pela ação legítima do Poder Públi- A seguir, a Constituição de 1988, recepcionando a Lei nº 6.938/81,
co local, deve preocupar-se em instituir o Sistema Nacional do Meio deixou claro que os diversos entes da Federação devem partilhar as
Ambiente, considerado como o conjunto de estrutura organizacional, responsabilidades sobre a condução das questões ambientais, tanto
diretrizes normativas e operacionais, implementação de ações geren- no que tange à competência legislativa, quanto no que diz respeito à
ciais, relações institucionais e interação com a comunidade. Tudo o competência dita implementadora ou de execução.
que interessa ao desenvolvimento com qualidade ambiental deverá Assim, integrando o licenciamento o âmbito da competência de imple-
mentação, os três níveis de governo estão habilitados a licenciar empre-
necessariamente ser levado em conta.17
endimentos com impactos ambientais, cabendo, portanto, a cada um
dos entes integrantes do Sistema Nacional de Meio Ambiente promover
Assim, no que diz respeito aos interesses locais, a partir da CF/88, o a adequação de sua estrutura administrativa com o objetivo de cumprir
ente municipal possui competência para realização do licenciamento am- essa função, que decorre, insista-se, diretamente da Constituição.18
biental, através do poder de polícia administrativo que detêm sobre assun-
tos locais, sendo tal competência regulada pela legislação supracitada. Ou seja, conforme o exposto, concordam a doutrina e a jurisprudên-
cia que a competência municipal é consequência natural do art. 23, VI da
2.2. Resoluções do CONAMA Acerca da Delegação de CF/88, que legitima o exercício do poder de polícia ambiental do Municí-
Competências - Constitucionalidade da Resolução 237 pio, portanto, a competência do município para realizar o licenciamento
do Conselho Nacional do Meio Ambiente ambiental, como exercício do poder de polícia que detém sobre todos os
assuntos locais, a partir da promulgação da Constituição Federal.
O CONAMA, ao regulamentar o licenciamento ambiental municipal
com a edição da Resolução 237, simplesmente aclarou a questão acer- 2.3. Consequências sociais e econômicas do
ca do assunto, uma vez que as regras de competência advêm da Carta Licenciamento Ambiental Municipal - Análise da situação
Maior de 1988. dos municípios do estado do Rio Grande do Sul
No entanto, na doutrina pende uma discussão acerca da constituciona-
lidade do licenciamento ambiental municipal, pois ainda não existe lei com- No Estado do Rio Grande do Sul o Licenciamento Ambiental está a
plementar prevista no parágrafo único do art. 23 da CF/88 para fixar normas cargo da Secretaria Estadual do Meio Ambiente19, sendo realizado pela
de cooperação entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Fundação Estadual de Proteção Ambiental Henrique Luiz Roessler - FE-
PAM, ora vinculada à Secretaria Estadual do Meio Ambiente - SEMA20.
Além disso, alega-se que a previsão para o licenciamento municipal
contida na Resolução 237/97 do CONAMA é ilegal e inconstitucional. 18 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina - jurisprudência - glossário. 3. ed. São Paulo: Re-
vista dos Tribunais, 2004. p. 492.
17 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed. São Pau- 19 Lei Estadual n. 11.362, de 29 de julho de 1999.
lo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 21. 20 Lei Estadual n. 9.077, de 04 de junho de 1990.

956 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 957
Indo ao encontro de todo exposto no decorrer desse trabalho em re- Até o presente momento, conforme informação obtida junto ao site da
lação à possibilidade de concessão de licenciamento por parte do ente FEPAM,estão habilitados pelo CONSEMA, 277 dos 496 Municípios gaú-
municipal, foi aprovado o Código Estadual e Meio Ambiente21 o qual es- chos, e diversos outros estão em processo de obtenção da habilitação.
tabeleceu, em seu artigo 69 que “caberá aos municípios o licenciamen- De acordo com um estudo publicado em 201024, entre 38 muni-
to ambiental dos empreendimentos e atividades consideradas como de cípios gaúchos habilitados para concessão de licenças ambientais que
impacto local, bem como aquelas que lhe forem delegadas pelo Estado participaram da pesquisa realizada, 97% destes informaram que tive-
por instrumento legal ou Convênio”. ram aumento nos pedidos de licenciamento.
Com base na supracitada legislação, o Estado do Rio Grande do Sul, Ainda com base nesse estudo, temos que, entre todos os municípios
vem desenvolvendo através da Secretaria Estadual do Meio Ambiente que participaram da pesquisa, em 66% houve um substancial aumento
- SEMA, o incremento do processo de descentralização do licenciamen- na arrecadação municipal com o recolhimento das taxas de licencia-
to ambiental municipal para aquelas atividades cujo impacto é estrita- mento ambiental.
mente local, e que estão descritas no Anexo I da Resolução 102/2005 Diante dos números apresentados, podemos perceber, ainda que
do Conselho Estadual do Meio Ambiente - CONSEMA, nos seus Ane- brevemente, que o licenciamento ambiental municipal possibilita a re-
xos II e III, referentes a manejo florestal - adicionados pela Resolução versão dos benefícios para a comunidade local, a qual, consequente-
110/2005, nas atividades adicionadas pela Resolução 111/2005, bem mente será a mais atingida com a efetiva instalação e/ou funcionamento
como nas adições relativas ao licenciamento de atividades de minera- da atividade objeto do referido licenciamento.
ção descritas pela Resolução 168/2007. Ademais, com o licenciamento a cargo dos municípios temos a me-
Ademais, no ano de 2000, houve a publicação da Resolução CON- lhor adequação dos empreendimentos à realidade e as necessidades
SEMA 04/2000, estabelecendo critérios para o licenciamento ambiental regionais, bem como tornando mais ágil o procedimento.
pelos municípios. Este crescente aumento na busca pelos municípios da capacitação
Em 22 de outubro de 2007, em substituição à Resolução 04/2000, foi para a concessão do licenciamento ambiental nos permite concluir, ain-
publicada a Resolução CONSEMA 167/2007, que dispõe sobre a qualifica- da que de forma tímida, que a municipalização da proteção ambiental
ção dos municípios, atualizando os critérios e as diretrizes para o exercício possibilita, de forma eficaz, a adoção de medidas preventivas e sancio-
da competência do licenciamento ambiental das atividades de impacto lo- nadoras, pois compreende um controle territorial de maior qualidade,
cal, bem como sobre a gestão ambiental compartilhada no Estado. refletindo na qualidade de vida da população e, consequentemente,
A qualificação exigida dos municípios para estarem aptos à conce- tornando-a mais sadia, cumprindo assim o preceito fundamental que
der o licenciamento são: possuir legislação ambiental própria, conselho embasa este trabalho que é o desenvolvimento sustentável em vista do
e fundo municipal de meio ambiente, corpo técnico e fiscal capacitado, meio ambiente equilibrado.
Plano Diretor e Plano Ambiental Municipal.22
Cumpre referir que com a qualificação, os municípios passam a ter
uma maior responsabilidade ambiental, sendo, consequentemente, pre-
CONCLUSÃO
visto um maior comprometimento com a gestão ambiental local, o que,
juntamente com a FEPAM não mais receber os pedidos de licenciamen-
A Política Nacional do Meio Ambiente, estabelecida mediante a edi-
to das atividades de impacto local nesses municípios.23
ção da Lei nº 6.938/81, tem por objetivo a preservação, melhoria e
recuperação da qualidade ambiental propicia à vida, visando assegurar,
21 Lei Estadual n. 11.520 de 03 de agosto de 2000.
no país, condições ao desenvolvimento socioeconômico, aos interesses
22 FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL HENRIQUE LUIS ROESSLER (FEPAM).
Contribuições ao conhecimento da evolução do licenciamento ambiental municipal no Rio Grande da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana.
do Sul. FEPAM em Revista, Porto Alegre: FEPAM, v. 1, n. 1, 2010. p. 14.
23 FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL HENRIQUE LUIS ROESSLER (FEPAM). 24 FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL HENRIQUE LUIS ROESSLER (FEPAM).
Contribuições ao conhecimento da evolução do licenciamento ambiental municipal no Rio Grande Contribuições ao conhecimento da evolução do licenciamento ambiental municipal no Rio Grande
do Sul. FEPAM em Revista, Porto Alegre: FEPAM, v. 1, n. 1, 2010. p. 14. p. 17. do Sul. FEPAM em Revista, Porto Alegre: FEPAM, v. 1, n. 1, 2010. p. 14., p. 18.

958 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 959
Para a realização de seus objetivos, a referida legislação prevê diver- ambiental, através do poder de polícia administrativo que detêm sobre
sos instrumentos, entre eles o instituto do Licenciamento ambiental, o assuntos locais, sendo tal competência regulada pela resolução supraci-
qual foi objeto de estudo do presente trabalho. tada.
Como vimos, o licenciamento ambiental constitui uma forma de in- Em que pese entendimentos em contrário, concordam a doutrina e
tervenção estatal na atividade privada, através do exercício do poder de a jurisprudência que a competência municipal é consequência natural
polícia, onde são verificadas as condições para o desenvolvimento e a do art. 23, VI da CF/88, que legitima o exercício do poder de polícia
operação de empreendimentos passíveis de causarem danos ambien- ambiental do Município, portanto, a competência do município para re-
tais, representando claramente a consolidação do princípio da precau- alizar o licenciamento ambiental, como exercício do poder de polícia
ção. que detém sobre todos os assuntos locais, a partir da promulgação da
A instrumentalidade do instituto do licenciamento ambiental é ma- Constituição Federal.
nifesta, vez que, por meio dele o Poder Público estabelece condições Destaca-se ainda que o Município é a instância mais adequada para
e limites para o exercício de determinadas atividades, consentindo so- realizar o licenciamento ambiental, pois é sobre ele que recairão os efei-
mente aquelas que tenham impacto ambiental reduzido ou dentro de tos diretos e mais imediatos de qualquer impacto ambiental ocorrido.
padrões admitidos. Diante dos números apresentados no final da presente explanação
Em relação à divisão de competências entre os entes da federação em relação aos Municípios que já estão concedendo licenças ambientais,
para a concessão do referido instituto foi verificado que, originariamente temos que, com base em tais dados, houve um aumento nos pedidos de
estava à cargo dos Estados e, supletivamente da União, conforme pre- licenciamento, assim como um significativo acréscimo na arrecadação
visto na Lei nº 6.938/81. municipal com o recolhimento das taxas do licenciamento ambiental.
No entanto, a Constituição Federal de 1988 - posterior à Lei Em função do acréscimo na arrecadação é possível a reversão des-
6.938/81 - reconheceu formalmente os municípios como entes da fede- tes benefícios para a comunidade local, a qual é a mais atingida com
ração, concedendo-lhes autonomia, abrindo a possibilidade de licencia- a efetiva instalação e funcionamento da atividade objeto do referido
mento ambiental municipal. licenciamento.
Cumpre referir que, aos municípios, além da competência adminis- Ademais, como já foi dito, com o licenciamento a cargo dos municí-
trativa comum para preservação do meio ambiente, cabe-lhe também pios temos a melhor adequação dos empreendimentos às necessidades
a competência prevista na conjugação dos artigos 23 e 30, ambos da regionais, bem como tornando mais ágil o procedimento, proporcionan-
CF/88, pelos quais há competência municipal para legislar sobre assuntos do assim o desenvolvimento sustentável partindo da realidade local,
locais e, para suplementar, no que couber, a legislação federal e estadual. sempre em busca da manutenção de um meio ambiente ecologicamen-
Sendo assim, considerando a legitimidade que o município possui te equilibrado como condição de proteção da dignidade da pessoa hu-
para defender e preservar o meio ambiente no que diz respeito ao seu mana e do bem estar da sociedade.
interesse local, somada à competência administrativa comum, conclui-
-se que o ente municipal possui legitimidade para a concessão do licen-
ciamento ambiental no que se refere a empreendimentos com impacto REFERÊNCIAS
local.
Nesse contexto, a viabilidade da competência municipal para o li- ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito ambiental. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen
cenciamento foi dada pela Resolução 237, de 19 de dezembro de 1997 Juris, 2000.
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito constitucional Positivo.
do Conselho Nacional do Meio Ambiente, a qual regulamenta o licencia-
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Assim, no que diz respeito aos interesses locais, a partir da CF/88, Livraria do Advogado, 2008.
o ente municipal possui competência para realização do licenciamento BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível: <http://www.planalto.
960 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 961
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Desenvolvimento das infra-estruturas de
______. Presidência da República. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981.
Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos
telecomunicações nas cidades
de formulação e aplicação, e dá outras providências. Brasília, 1981. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Leis/L6938.htm>. Acesso em: 15 Andre Imar Kulczynski1
ago. 2011. Lafaiete Everardi dos Santos2
______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg n. 973.577/SP, da 2a Turma. Re- Zilmino Tartari3
lator: Ministro Mauro Campbell Marques. Data do Julgamento, 16 set. 2008.
Diário da Justiça Eletrônico, 19 dez. 2008. Disponível em: <http://www.stj.jus.
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INTRODUÇÃO
&l=10&i=2>. Acesso em: 15 ago. 2011.
______. Superior Tribunal de Justiça. RMS n. 9.279/PR, da 1a Turma. Relator:
Ministro Francisco Falcão. Data do Julgamento, 7 dez. 1999. Diário da Justiça, Na última década, houve um significativo aumento de serviços pos-
28 fev. 2000. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc. tos à disposição da população, os quais, para sua instalação, necessitam
jsp?livre=RMS+9279&&b= ACOR&p=true&t=&l=10&i=2>. Acesso em: da extensão de redes subterrâneas ou aéreas no espaço urbano. São
15 ago. 2011. exemplos destes novos serviços a telefonia celular, as televisões a cabo,
CARNEIRO, Ricardo. Direito ambiental: uma abordagem econômica. Rio de Ja-
as infovias próprias, a Internet ou as ligações dos sistemas em rede.
neiro: Forense, 2003.
FUNDAÇÃO ESTADUAL DE PROTEÇÃO AMBIENTAL HENRIQUE LUIS ROES- Além disto, também dependem de redes subterrâneas o gás canalizado,
SLER (FEPAM). Contribuições ao conhecimento da evolução do licenciamento a energia elétrica, a água canalizada e o esgoto.
ambiental municipal no Rio Grande do Sul. FEPAM em Revista, Porto Alegre: Desta forma, o avanço tecnológico, o acelerado processo de amplia-
FEPAM, v. 1, n. 1, 2010. ção das telecomunicações, os serviços que estão sendo postos à dispo-
______. Licenciamento ambiental. Porto Alegre, [200-]. <http://www.fepam. sição do mercado consumidor que se encontra nas grandes cidades, dão
rs.gov.br/central/licenc_munic.asp>. Acesso em: 15 ago. 2011. conta de um novo fato, no qual o espaço privilegiado para implantação
MACHADO, Paulo Afonso. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Malheiros,
das redes aéreas e subterrâneas necessárias à efetivação dos mesmos,
2000.
MAFFINI, Rafael. Direito Administrativo. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: pertence aos municípios.
Revista dos Tribunais, 2008. Para avaliar este momento, e mais especificamente a crescente im-
MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; CAPPELI, plantação de redes de comunicação em Porto Alegre, faremos uma aná-
Direito Ambiental. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2004. lise do mercado de telecomunicações no Brasil; das tendências de im-
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina - jurisprudência - glossário. 3. ed. plantação de redes de telecomunicações nas cidades com o surgimento
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
da Internet e dos resultados evidenciados através do uso tecnologia da
______. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência, glossário. 2. ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
informação por governos municipais, mais particularmente pela admi-
______. Legislação ambiental do Brasil. São Paulo: APMP, 1991. nistração popular de Porto Alegre.
OLIVEIRA, Antônio Inagê de Assis. Introdução à legislação ambiental brasileira
e licenciamento ambiental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal Regional Federal (4a Região). AC n. 1. PRIVATIZAÇÕES MARCAM SETOR DE TELECOMUNICAÇÕES
2002.72.08.003119-8, da 4a Turma. Relator: Valdemar Capeletti, Diário da
Justiça, 28 set. 2005. Disponível em: <http://www.trf4.jus.br/trf4/jurisjud/re-
sultado_pesquisa.php>. Acesso em: 15 ago. 2011.
Na década de 1990, o cenário brasileiro de telecomunicações so-
SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 3. ed. São Paulo: Sarai- freu profundas modificações. A partir da aprovação da Emenda Consti-
va, 2005. 1 Diretor-Presidente da PROCEMPA. E-mail: andrek@procempa.com.br
2 Gerente de Operações/PROCEMPA. E-mail: lafaiete@procempa.com.br
3 Diretor Técnico/PROCEMPA. E-mail: zilmino@procempa.com.br

962 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 963
tucional de agosto de 1995, o país veio discutindo e implementando a 1.1 Após a privatização, o mercado busca novas alternativas
reforma estrutural das telecomunicações. O quadro atual situa-se em
um contexto marcado por grandes modificações, todas elas associadas A privatização do setor de telecomunicações iniciada há três anos
ao comportamento internacional do mercado competitivo do setor. atrás estabeleceu uma série de novos paradigmas e opções de negócios:
A privatização das grandes companhias telefônicas foi o grande a demanda de informações sobre este setor; uma nova relação entre
referencial deste processo. Em 1999, grandes conglomerados estran- fornecedores de equipamentos e serviços com as operadoras; os fun-
geiros, liderados por outras operadoras, bancos e fundos de pensão, dos de investimentos entraram no mercado; órgãos públicos tornaram-
adquiriu a maior parte das ações das empresas estatais de telecomu- -se grandes demandadores de serviços e grandes empresas passaram a
nicações. utilizar as telecomunicações para apoiar seus respectivos processos de
Não é por acaso que a atenção das maiores corporações de todo negócios. Neste período, o número de operadoras multiplicou, e novos
mundo estão voltadas para o setor de telecomunicações. As previsões preços começaram a ser praticados.
são de que, nos próximos dez anos, este setor assumirá a posição de Uma concorrência muito forte estabeleceu-se neste mercado. Pode-
maior negócio do mundo, desbancando a indústria química (petróleo) e mos citar alguns exemplos, como a telefonia de longa distância, onde as
mesmo a de seguros. Nos Estados Unidos já representa 10% de toda a três operadoras regionais de telefonia fixa, duas delas cobrindo exten-
economia. Um estudo do governo japonês mostrou que, para cada dó- sões geográficas imensas, logo começaram a disputar este mercado que
lar investido em telecomunicações, gera-se três dólares de retorno em antes era exclusivo da Embratel.
crescimento econômico. Outro segmento foi o de serviços de redes com valor agregado. São
Neste cenário, onde a chamada “nova economia” era alicerçada dirigidos a uma faixa de mercado nobre representada por grandes cor-
por vultuosos investimentos provindos, especialmente, do mercado de porações e entidades públicas. Este tipo de prestador de serviços, de-
ações das empresas de alta tecnologia (NASDAQ), recursos financei- pois da privatização das telecomunicações, surgiu em todo o país em
ros eram facilmente disponibilizados e novas empresas com projetos função da facilidade de conseguir autorização. E mais recentemente,
revolucionários surgiam aos milhares. Este ritmo foi quebrado, pois as com a entrada em operação das empresas espelhos de telefonia fixa,
respostas esperadas quanto aos resultados das operações, não foram a concorrência chegou a este segmento, representando também, mais
satisfatórias, fazendo com que as fontes de investimentos praticamente opções aos serviços de telefonia de longa distância e transmissão.
desaparecessem. Na área de linhas de comunicação em alta velocidade por meio ter-
Os maiores efeitos foram sentidos sobre as empresas de tecnolo- restre, fibra óptica e microondas, este mercado - antes de uma única em-
gia. Porém, as empresas de telecomunicações que dependem, cada vez presa - foi aberto à concorrência, surgindo então empresas operadoras
mais, das primeiras, também entraram em um processo de desacele- como Díveo, Engeredes, Impesat, ATT, Pégasus, entre outras.
ração. Outros fatores que contribuíram na mudança deste “status quo”
foram: Telefonia Móvel

– A crise das chamadas ponto.com; Na telefonia celular, a movimentação do setor também foi significa-
– A crise do modelo de desregulamentação da ANATEL (espelhos e
tiva. Por volta de 1995, quando o atual modelo foi proposto, existiam
espelhinhos), a limitação das fontes financiadoras (fornecedores de
32 operadoras. Este número foi reduzido para 12 dentro da modelagem
equipamentos e infra-estrutura estão reposicionando seus planos de
negócio); da chamada banda A, e subiu para 22 com a abertura da licitação da
– A desistência ou reposicionamento, por parte de algumas grandes banda B. A hipótese atual é de que este número deve chegar a algo em
operadoras, sobre as antecipações das metas e conseqüente adianto torno de seis operadoras da banda A e seis da banda B, ou a um modelo
de ampliação de mercado em outras áreas; mais concentrado com 2 operadoras para cada banda. Mas restam ain-
– A revisão do modelo de expansão da ANATEL, possibilidade de no- da os serviços PCS (Personal Communication Systems), conhecidos im-
vos concorrentes.
964 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 965
propriamente como banda C, já que inclui na classificação outras duas mentos e infra-estruturas, que estão retraídos e não têm como suportar
bandas a E e D. financiamentos elevados e de longo prazo. Estes estão reposicionando
Também merecem atenção os serviços de terceira geração de celu- seus planos de negócios e reestruturando suas empresas. Outro aspec-
lares, onde a decisão sobre a faixa de freqüência para os serviços PCS to importante, e decorrente da retração dos investimentos e que tem
abriu caminho para que também se definam as regras a serem seguidas impacto no setor, é a já conhecida decisão de algumas empresas em
no Brasil para os serviços de celular de terceira geração, o 3G. As maiores não mais antecipar para 2001 as metas de universalização previstas
interessadas para que isto ocorra são as operadoras de telefonia fixa, que para o ano de 2003. Este movimento resultou no cancelamento de pe-
têm um forte argumento comercial: já que não puderam participar das didos dos fornecedores de equipamentos e infra-estrutura, ocorrendo
primeiras licitações do PCS, o Plano Geral de Outorgas impede que as um prejuízo para fabricantes de equipamentos e prestadores de serviço.
concessionárias fixas explorem novos serviços até 2005 ou 2002, se não
anteciparem as metas de universalização. A sobrevivência destas empre- 1.3 Continuidade do monopólio desafia modelo da ANATEL
sas depende de sua entrada no mercado da mobilidade. A evolução dos
serviços está terminando com a divisão tradicional entre telefonia local e A revisão do modelo adotado pela ANATEL de desregulamentação
de longa distância, entre os serviços fixos e móveis, e entre voz e dados. do setor evidencia as debilidades deste processo. A crise das empresas
espelhos e espelhinhos, que tinham como objetivo levar serviços de tele-
1.2 Tendências de expansão do mercado comunicações a pequenas cidades e áreas rurais são pontos vulneráveis
no modelo. As primeiras não conseguiram impor-se frente às empresas
A ANATEL prevê que o Brasil terá em torno de 58 milhões de telefo- “incubents”, devido à complexidade de montar uma infra-estrutura para
nes fixos até 2005. Para 2001, estima-se 40,5 milhões de acessos fixos. prestar serviços. E as segundas fracassaram pela falta de financiamen-
A planta instalada de serviço móvel atingiu 15 milhões em 1999. Até o to e investidores dispostos a colocar recursos diante das incertezas do
final deste ano, os números da Agência indicam que estariam instalados futuro. Inclusive o BNDES, que tem preferido investir na ”incubents”, ao
29,2 milhões de celulares. Para 2004, estão previstos 52,5 milhões de invés dos espelhinhos.
telefones celulares. A soma dos investimentos programados pelas ope- Assim, segundo dados da ANATEL, ainda não há competição em
radoras de serviços de telecomunicações no país é de cerca de U$ 68,4 5.294 municípios, onde vivem 81,84 milhões de brasileiros. Quebrar as
bilhões para os próximos 5 anos. Representa dispêndios de U$ 11,6 situações de monopólio que continuam intactas e muito mais arraigadas
bilhões por ano. Esta expectativa talvez não se confirme em função da que em mercados mais desenvolvidos é um desafio que permaneceu
crise econômica mundial e já começa a ter reflexos no setor. para a Agência reguladora. Há uma falência do mercado de competição
Nos últimos anos, o setor foi marcado por intensos investimentos no mercado residual.
e pela facilidade para obter recursos, uma etapa de euforia. Hoje, esta- Para o início do ano de 2002, o serviço telefônico fixo comutado
mos diante de uma nova realidade. A retração da Nova Economia, com terá novas regras. A intervenção da ANATEL será baseada em uma con-
conseqüências no desaquecimento econômico, e uma queda nos inves- sulta pública. O mercado estará totalmente aberto à competição, as em-
timentos que afeta os Estados Unidos e o resto do mundo, diminuiu o presas não terão que participar do processo de licitação, não deverão
lucro das empresas, reduziu drasticamente as carteiras de investimento pagar tanto pelo direito de explorar serviço de telefonia local como pelo
e teve conseqüências diretas no setor tecnológico, atingindo as empre- de chamada de longa distância nacional ou internacional. As empresas
sas de tecnologia da informação. poderão comprar três tipos de licença: uma para telefonia local, outra
No quadro de uma economia globalizada, onde o setor esta intima- para longa distância nacional e internacional. Observadas as regiões por
mente inserido e dependente, a reação foi direta. As perspectivas em plano de numeração, cada licença terá um valor. Com esta medida a
curto prazo não são das melhores. Há uma limitação das fontes de fi- Agência procura revigorar o mercado e pretende estimular a compe-
nanciamento. Como exemplo, pode-se citar os fornecedores de equipa- tição. Alguns aspectos que têm influência na implantação das infra-es-

966 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 967
truturas de telecomunicações e que concentrarão os investimentos das localização física dos usuários. Se analisarmos onde mais se usa a Inter-
operadoras são: net e se utiliza os sistemas de informação, chegaremos a conclusão que
é nos grandes centros urbanos e nas grande cidades. Para instalar os
1) O atendimento às grandes corporações, que têm investimentos de cabos de fibra óptica é necessário a construção de obras de infra-estru-
telecomunicações e serviços IP; turas para colocação de dutos ou aproveitar as infra-estruturas antigas,
2) A construção de IDCs (Internet Data Centers), onde há um aluguel
como ao longo de ferrovias, rodovias, no interior de canos de esgotos,
de serviços IP, como hospedagem de páginas WEB e de aplicações.
No fim desse processo, a empresa-cliente terá pouca coisa para man- ou em redes de distribuição e transmissão de energia existente.
ter, exceto os computadores nas mesas e notebooks das equipes de
campo. A parte de servidores, armazenamentos, segurança, aplica- 2.1 Infra-estrutura da Telecomunicações
ções e até conteúdos, será alugado de alguém, que assumirá essa res-
ponsabilidade. O objetivo principal desses IDCs é atingir o mercado Avanços importantes na transmissão por fibra óptica e emissão laser,
das pequenas e médias empresas, que terceirizaram suas necessida-
combinados com a tecnologia de transmissão por pacotes digitais, promo-
des de telecomunicações e informática. A Telefônica construiu em São
Paulo um Data Center para 40 mil servidores: empresas como Díveo, veram um aumento surpreendente de capacidade das linhas de transmis-
Impsat, investiram também em Data Centers. são. Surgem tecnologias avançadas como o ATM (Modo de Transmissão
3) O investimento em para gerar tráfego em suas redes, como a Te- Assíncroma) e TCP/IP (Protocolo de Controle de Transmissão/Protocolo
lefônica (Terra), Telemar (IG), Embratel e a Brasil Telecom, que está de Interconexão), recentemente o MPLS (Multi Protocol Lable Switch),
investindo R$10 milhões para iniciar as operações do seu portal. protocolo que unifica a característica de universalidade do TCP IP e a
qualidade de serviço do ATM, e o DWDM (Dense Wave-Division Multiple-
xing), que multiplica várias vezes a capacidade de cada fibra, utilizando
2. IMPACTO DA INTERNET NA INFRA-ESTRUTURA DE diferentes cores de luz, que possuem diferentes comprimentos de onda.
TELECOMUNICAÇÔES NAS CIDADES Para as prefeituras, esta é uma questão nova. Estas intervenções
acarretam uma grande transtorno e é também preciso estabelecer a
Criada com o objetivo impedir a tomada ou destituição do sistema norte- questão do direito de passagem. É nas grandes cidades, que costumam
-americano de comunicação pelos soviéticos, em caso de uma guerra nucle- ser centros de irradiação rodoviárias, ferroviárias e maritímas, que tam-
ar, a Internet possui uma arquitetura de rede que, como pretendiam seus bém estão situados os locais lógicos para a instalação de centros de
inventores, não pode ser controlada. É composta por milhares de redes de irradiações de redes e servidores, os poderosos computadores que ar-
computadores autônomos com inúmeras maneiras de conexão, contornan- mazenam e distribuem dados. Este fato tem promovido a criação de
do barreiras eletrônicas, uma rede de comunicação horizontal global. grandes IDC’s (Internet Data Centers), também conhecidos como os
Neste contexto, a Internet está em todos os lugares, mas em nenhum centros de dados ou local para hospedagem de dados. São vastos ar-
em particular. É, freqüentemente comparada com uma nuvem. Pode-se mazéns que fornecem espaço físico, energia e capacidade de conexão
dizer que tem capacidade para cruzar fronteiras, desmontar barreiras e com a Internet para grandes quantidades de computadores, também
destruir distâncias. E cada vez mais o desenvolvimento desta tecnologia e localizados predominantemente em áreas urbanas. Outra alternativa é
a necessidade de suprir as residências, empresas e governos com os no- a hospedagem gerenciada, na qual as empresas alugam capacidade de
vos serviços (e-commerce, e-govermnent) de forma segura e efetiva exige computação juntamente com a energia e as conexões com a rede.
conexões mais rápidas e fontes confiáveis de fornecimento de energia. Tudo indica que a concentração física da armazenagem de informações
Além disso, há uma demanda crescente pela localização geográfica será ainda maior. A centralização promoverá a demanda das tecnologias
de usuários da Internet, seja para fazer cumprir as leis de uma determi- que possam eliminar os problemas geográficos da Internet e acelera a
nada jurisdição, direcionar propaganda ou para garantir a presença de transmissão de dados, em resumo, tecnologias para ocultar aos usuários
um Web site na tela do computador no idioma correto. Existem formas a localização física do conteúdo da Internet. Em termos gerais, temos duas
inteligentes para ocultar a localização física de dados e determinar a
968 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 969
atuações os servidores estarão perto dos consumidores de conteúdo ou es- ociosa são obrigadas a franqueá-la, se forem solicitadas. O compartilha-
tarão perto dos fornecedores de conteúdo (conteúdo na borda da Internet). mento só pode ser negado por razão de limitação de capacidade e risco
Para ver a importância que as empresas de telecomunicações con- à segurança, entre outras razões aceitáveis. O valor do aluguel de infra-
centram suas ações nos grandes centros urbanos, vejamos: estru­tura compartilhada vai variar de cerca de US$ 0,52 a US$0,60
– Em solo brasileiro, as operadoras de telefonia, de serviços especia- mensais por poste ou torre, valor calculado conforme a fórmula constan-
lizados e “carries to carries” deverão gastar, segundo cálculos do Yankee te do regulamento.
Group, US$ 10 bilhões em redes ópticas nos próximos quatro a cinco As empresas olhando para o que aconteceu nos EUA, onde a “ban-
anos. A malha óptica somará no final de 2001, 209 mil quilômetros de da” de comunicação virou commodity porque, como dezenas de em-
rotas encravadas em regiões metropolitanas e ao longo de rodovias, presas construíram suas próprias estruturas de fibra óptica, há situa-
ferrovias, redes elétricas, metrôs e gasodutos. ções em que o usuário conta com até dez cabos passando na porta de
– Há um excesso de banda larga disponíveil das redes de fibra óptica sua casa. Muitas empresas que atuam aqui também estão presentes
em algumas áreas no Brasil, como por exemplo as regiões nobres de São no mercado americano, e foram alertados pelo que aconteceu lá. Estão
Paulo, cidade onde 50% das grandes corporações já tem fibra óptica. mais precavidas e evitaram a corrida desenfreada para construção de
– A malha de redes ópticas em território brasileiro deve ter em tor- backbones, com essa atitude mais racional, os provedores investiram
no de 80% de fibras apagadas, mas não é um indicativo de superoferta, mais em compartilhamento e acordos.
considerando que 5% das empresas brasileiras estão conectados via fibra O ano de 2001 está sendo marcado por intensos investimentos na
óptica, o que dá uma idéia de potencial de mercado para os provedores. construção de infra-estrutura para suportes de serviços de telecomu-
– Ausência de planejamento na construção de backbones, concen- nicações no Brasil, estima um valor em torno de R$ 15 bilhões. Esses
trando em uma região e deixando outras áreas a descoberta, com con- investimentos concentram-se nos seguimentos mais atrativos do mer-
sumidores potenciais, como grandes e médias empresas que ficaram cado corporativo, no segmento residencial de classes A e B, pequenas
sem acesso ao cabo óptico. No caso da Prefeitura de Porto Alegre e médias empresas e nas principais regiões metropolitanas do país. A
estabeleceu um plano diretor de fibras ópticas, onde estabelece: maior parte desses investimentos concentram-se nos acessos (chegada
a) garantir a existência de uma rede urbana de fibras ópticas; e b) da rede de telecomunicações até o cliente) e nos Anéis Metropolita-
induzir o desenvolvimento econômico da cidade. nos e são nestes pontos da construção de rede onde as operadoras
– Existência da APTEL – Associação de Empresas Proprietárias de encontram maior dificuldade de implantação e facilidade de acordo.
Infra-Estrutura e Sistemas Privados de Telecomunicações, que compar- Com a movimentação do mercado e exemplos de outras situações
tilha experiências, organiza grupos de trabalho e desenvolve parcerias semelhantes onde há uma ociosidade de infra-estrutura, as empresas
com as principais empresas do Setor de Telecomunicações Nacional e estão apostando na “coopetição“ (competir e cooperar). A coopetição
Internacional. surge para otimizar o investimento em infra-estrutura das operadoras e
– O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, criou o Site para acompanhar a crescente demanda por soluções completas e maior
Infra-estrutura Brasil, portal brasileiro para oportunidades em Infra-es- valor agregado, principalmente as exigências do mercado corporativo.
trutura e negócios. Alguns aspectos são estimuladores para esta situação, alguns naturais
como a exigência por maior variedade de opções de serviço e maior
2.2 Compartilhamento das infra-estruturas de backbone capilaridade das redes de telecomunicações, propiciar que as empresas
focar em tecnologia, outros são situações forçadas, como a dificuldade
A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) divulgou em 30 para atender a demanda apenas com serviços próprios, uma vez que os
de agosto as regras que vão reger os contratos de compartilhamento investimentos foram reduzidos devido à limitação de captação de recur-
de infra-estrutura entre empresas de telecomunicações. Por este regu- sos financeiros no mercado e a necessidade de buscar retorno sobre os
lamento, as empresas de telecomunicações que tiverem infra-estrutura investimentos já realizados.

970 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 971
A “coopetição” vem sendo adotada principalmente para completar o Em mais uma mudança de paradigma, a telefonia convencional começa
alcance das redes das operadoras. Entre alguns modelos de coopetição a ser substituída pela tecnologia de transmissão de voz sobre pacotes. Esta
estão: o compartilhamento de infra-estrutura como dutos, subdutos, fi- tecnologia consiste em podermos transformar a voz, como a conhecemos,
bras, postes, prédios, estação rádios base entre outros; troca de capi- em dados de computadores e posteriormente dividi-la e compactá-la de
laridade; troca de capacidade de rede; troca e produtos e/ou serviços; maneira a podermos enviá-la por uma rede de pacotes, neste caso utili-
troca de tráfego de dados e/ou Internet e associações entre provedores zando o protocolo de comunicação IP (Internet Protocol), e retirarmos em
e portais com o intuito de gerar tráfego nas redes das operadoras. outro ponto da rede, reconstruindo a voz como conhecemos.
No caso de Porto Alegre, onde já existem formas de compartilhamento Assim, com o desenvolvimento da microeletrônica, com circuitos
de infra-estrutura em várias regiões da cidades estimuladas pela Prefeitura mais rápidos e o aumento da capacidade de processamento das máqui-
através de Decreto Municipal e Lei, empresas concorrentes unem-se para nas, além de enlaces de alta velocidade, cada vez mais se pensa em utili-
fazer um único investimento e com isto dividir custos. O retorno para a zar esta estrutura de transmissão em pacotes para a disponibilização de
comunidade é uma intervenção de menor impacto e o acesso aos benefí- serviços multimídia (dados, voz e imagem).O ponto central está em que
cios desta tecnologia. Um dos exemplos recentes é a construção de infra- todas estas tecnologias baseiam-se essencialmente no armazenamento,
-estrutura na III Perimetral. Nesta obra urbana estrutural para a cidade, tratamento e transmissão de informações de forma digital.
nove empresas de abrangência nacional uniram-se para construção de dois
bancos de dutos, com uma reserva técnica deixada para a Prefeitura Mu- 3.2 Infovia Procempa: Porto Alegre implanta sua própria Rede
nicipal. Desta forma, futuros empreendedores e poder público municipal
serão beneficiados com uma infra-estrutura comum para suas redes. Em Porto Alegre, a prefeitura através da Cia. de Processamento de Da-
dos do Município de Porto Alegre – PROCEMPA, se relaciona diariamente
com esta realidade em função da construção de redes que garantam as
3. REDES DE INFORMAÇÃO PROMOVENDO condições necessárias ao governo municipal para o uso da tecnologia da
O ACESSO AO ESTADO informação na qualificação dos serviços públicos. Desde 1998, a PRO-
CEMPA está envolvida com a implantação física de uma infovia própria,
3.1 Características das novas tecnologias a Infovia Procempa. Esta rede de alta velocidade tem garantido a im-
plantação de um conjunto de serviços de informática e telecomunicações
O acelerado desenvolvimento tecnológico (no caso das telecomuni- através da interligação dos diversos órgãos municipais e possibilitado a
cações, o acelerado desenvolvimento da microeletrônica) vem permitin- estruturação de novas soluções para o atendimento à população.
do que a informação (seja ela representada por um filme, uma chamada
A Infovia Procempa é um sistema de comunicação de dados confiá-
telefônica, um artigo de revista, etc.) seja armazenada e transmitida de
vel e econômico trabalhando com tecnologia de ponta para garantir uma
forma digital (na forma de bits) através de diversos meios: linha telefô-
infra-estrutura de comunicações multisserviços e viabilizar o crescimento
nica, cabo coaxial, microondas, fibra ótica, entre outros. Como resulta-
local. Utilizando a mais avançada tecnologia de acesso digital, é forma-
do, as fronteiras entre campos de atividades como os das indústrias de
da por uma rede de cabos de fibras ópticas com 660 Km de extensão,
entretenimento, da informação e de telecomunicações estão cada vez
constituindo um backbone próprio. Esta estrutura tem capacidade para
mais tênues, podendo ser eliminadas em curto espaço de tempo.
oferecer um conjunto diversificado de serviços de comunicação. Devido
A telefonia é uma tecnologia antiga e eficiente. É também uma for-
ao anel óptico redundante, o sistema tem disponibilidade permanente:
ma de comunicação que atinge grande parte da humanidade. A rede
24 horas por dia, 7 dias por semana. A Infovia está conectada à Internet
telefônica, desta forma, possui uma base instalada muito estável e con-
por dois links redundantes de 562 Mbps que podem alcançar até 2 Gbps,
fiável. Entretanto, é inegável que as redes de comutação de pacotes,
conforme a necessidade dos usuários conectados. A rede e os serviços
inicialmente projetadas para a transmissão de dados, vêm experimen-
são monitorados por uma Central de Atendimento, 24 horas por dia.
tando um grande crescimento no número de usuários nos dias atuais.

972 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 973
A Infovia foi projetada e construída dentro dos mais altos padrões 3.3 A democratização do acesso à informação
de segurança, qualidade e confiabilidade, oferecendo serviços de comu- em experiências municipais
nicação de dados, internet, voz e imagens. O gerenciamento da Infovia
PROCEMPA, está sendo implementado utilizando a tecnologia MetroE- A oferta crescente e a rapidez das evoluções na área de tecnologia
thernet, referência mundial no campo das telecomunicações e informáti- de informação têm desafiado o poder público a fazer uso destas no-
ca. Através da INFOVIA podemos disponibilizar circuítos especializados vas tecnologias para democratizar o acesso ao Estado, seja através da
e acesso à Internet, através de conexões digitais dedicadas ponto a pon- oferta de informações, seja com a qualificação da oferta de serviços ou
to, na velocidade de 64 Kbps até 1 Gbps. através da promoção de políticas públicas que promovam a inclusão
A infraestrutura da Infovia é composta de: digital. Assim, diversas administrações públicas, entre elas Porto Alegre,
tem explorado as novas possibilidades priorizando iniciativas que visam
• 660 km de cabos de fibras ópticas na região metropolitana da cida- garantir o acesso às redes e aos seus conteúdos e também o incremento
de de Porto Alegre; da relação entre Estado e cidadão.
• 61 Pontos de Presença (PoPs) da Infovia com alta disponibilidade em Telecentro - Em Porto Alegre, o recente lançamento do Telecentro
locais estratégicos da cidade; Porto Alegre, no Parque Chico Mendes garantiu uma infra-estrutura de
• 14 Torres para rádios base para cobertura wireless da cidade; informática e telecomunicações para acesso à Internet. O próximo pas-
• Backbone (conexões) de até 1 Gbps com mais de 70 switches ins- so, será a criação de laboratórios de informática para a prática comu-
talados; nitária de atividades de formação na área. O objetivo estratégico desta
• Links de rádio de até 30 Mbps e 10 Km de alcance; iniciativa é o combate à exclusão digital através da potencialização da
• 39 HotSpots públicos para acesso gratuito wi-fi à Internet; prática democrática e da preparação das comunidades para melhora-
rem condições de vida e trabalho.
Os principais serviços de telecomunicações da Infovia são: Para a implantação de Telecentros, a Prefeitura de Porto Alegre tem
Rede de Computadores (Dados):   atuado com as mais diversas organizações, governamentais ou não, co-
  locando a Internet como uma ferramenta mais próxima da população
• 587 locais da PMPA atendidos, sendo 422 com Banda Larga  (aci- menos favorecida, com aplicações concretas que facilitam a sua vida e a
ma de 1 Mbps); inserem no contexto da Sociedade da Informação.
• 10.000 computadores; Orçamento Participativo - Outra iniciativa é a inserção do Orça-
• 39 HotSpot (acesso wireless gratuito) mento Participativo na Internet desde o início de 2001. Presente na
  rede desde 1995, a partir deste ano os cidadãos de Porto Alegre pu-
Telefonia deram participar da Primeira Rodada do OP apresentando demandas
  através da Internet. Ampliando o espaço de participação para a esfera
• 228 prédios da PMPA com telefonia RDTM (Rede Digital de Telefonia digital, a Prefeitura recebeu demandas que foram em seguida encami-
Municipal). nhadas para serem avaliadas e submetidas a aprovação do Fórum de
• Custo zero entre unidades. E ligações externas com baixo custo; Delegados eleitos. Os participantes pela Internet são convidados às reu-
• 8.600 ramais interligados; niões da Rodada Intermediária, onde têm direito à voz.
• 95 mil ligações telefônicas por dia;
RDTM - A Rede Digital de Telefonia Municipal concentra as ligações
• Economia para a PMPA de mais de R$ 7 Milhões ao ano;
das centrais telefônicas (PABX) das diversas secretarias e órgãos da pre-
 
feitura em uma única  Central Telefônica. As ligações externas entre os
Vídeo
órgãos municipais são feitas de ramal para ramal, sem custos. Já as de-
 
• 190 câmeras de vigilância; mais ligações são encaminhadas ao leilão diário da RDTM, que escolhe
• Videoconferência para 6 salas virtuais com até 12 participantes a menor tarifa do dia oferecida pelas operadoras que atuam no sistema.
(locais remotos) Neste serviço também é utilizado o recurso de VoIP – Voz sobre IP,  um
conjunto de tecnologias que usa a Internet ou as redes IP privadas para
974 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 975
a comunicação de voz, substituindo ou complementando os sistemas
de telefonia convencionais como alternativa de menor custo. Através
A arrecadação de imóveis abandonados
do uso da estrutura em fibra óptica da Infovia, a RDTM centraliza todas e o cumprimento da
as chamadas de entrada/saída (ligações local, celular, DDD e DDI) em
uma única central, chamada de Central Trânsito, localizada na Procem- função social da propriedade
pa. Viabilizada através da Infovia Procempa e interligando mais de 228
prédios municipais e 8.600 ramais telefônicos, a RDTM está gerando Marcelo Dias Ferreira1
uma economia aos cofres públicos na ordem de R$ 7,2 milhões por ano.
Esta economia permite a Prefeitura ter mais recursos para fazer novos
investimentos na melhoria dos serviços prestados aos cidadãos. Resumo: O artigo tem por objetivo discorrer sobre os requi-
Infovia Educação – Os ambientes informatizados das escolas aten- sitos referentes ao abandono da propriedade imóvel, con-
forme previsto no artigo 1276 e parágrafos, do Código Civil
dem todos os alunos através de uma rede que interliga 95 redes locais
Brasileiro, sob o enfoque da função social da propriedade,
de escolas de variadas regiões da cidade. A rede dispõe de correio ele- visando a garantir a atuação dos municípios direcionada a
trônico e acesso Internet. permitir o acesso à terra urbana e ao pleno desenvolvimen-
Esta rede possui 1516 micros nas escolas e mais 335 micros na sede to das funções sociais da cidade, e ao mesmo tempo coibir a
administrativa da secretaria de educação. Cada ambiente informatizado especulação imobiliária e a utilização inadequada dos imó-
tem como configurações mínimas 15 microcomputadores e impressora. veis urbanos, atendendo aos ditames da Constituição Fe-
Todas as escolas têm acesso livre à Internet utilizando tecnologias de fibra deral e da Lei Federal n° 10.257, de 10 de julho de 2001.
ópticas ou rádios da Infovia Procempa. Implantados como parte da polí- Palavras-chave: abandono; imóvel; presunção absoluta;
ônus fiscais; ampla defesa; contraditório; função social.
tica pedagógica, os ambientes informatizados são usados pelas diversas
disciplinas para desenvolver seus conteúdos. O projeto, premiado nacio-
nalmente , busca romper a lógica de exclusão social, criando meios para
apropriação de tecnologia da informação desde a escola. I – INTRODUÇÃO
Infovia Saúde – O projeto Infovia Saúde é uma destas iniciativas.
Através dele, a rede municipal de saúde pública utiliza o conjunto de Trata o presente estudo de analisar, à luz do ordenamento consti-
tecnologias disponíveis hoje, como por exemplo, a prática da teleme- tucional e infraconstitucional vigente, mormente o que dispõe o novo
dicina, reduzindo custos públicos e qualificando o atendimento à popu- Código Civil Brasileiro e o Estatuto da Cidade, as questões concernentes
lação. Entre as vantagens do uso desta tecnologia, estão a redução de ao Instituto do Abandono, previsto no art. 1276 do CC e seus pa-
custos e a qualificação dos atendimentos aplicações, que passam pelo rágrafos, sob o enfoque da função social da propriedade urbana, em
diagnóstico, pelo atendimento às diversas necessidades de controle e razão da possibilidade de os municípios brasileiros, em suas respectivas
intervenções. Baseada na infra-estrutura de telecomunicações e anéis circunscrições, promoverem a arrecadação judicial e/ou administrativa
de fibras ópticas da PROCEMPA , a Infovia Saúde qualifica a transmis- de imóveis abandonados e a incorporação destes bens ao patrimônio
são remota de dados biomédicos e o controle de equipamentos à dis- público, destinando-os para fins de moradia popular, para atividades
tância no município de Porto Alegre. O projeto prevê uma abrangência coletivas, serviços ou equipamentos públicos, ou de fins cooperativos.
crescente para todos os 173 postos de saúde e 11 unidades do SAMU. Nesse sentido, convém ressaltar que, como um dos modos de perda
Hoje já são 136 unidades de saúde interligadas, contando com acesso da propriedade imóvel, o instituto do abandono já estava presente na
banda larga, telefonia e uma infra-estrutura de anel ótico redundante, redação do Código Civil de 1916 (art. 589, parágrafo segundo), com a
que garante disponibilidade 24h, sete dias por semana.
inclusão estabelecida pela Lei Federal n. 6.969, de 1981. Em essência,
o novo Código Civil (Lei Federal nº 10.406, de 2002) manteve o ins-
Setembro de 2011
Procempa – Cia. de Processamento de dados do Município de Porto Alegre 1 Procurador do Município de Porto Alegre. Especialista em Políticas de Solo Urbano pelo Depar-
tamento de Estudos Internacionais do Lincoln Institute Of Land Policy (USA).

976 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 977
tituto, promovendo modificações em relação ao tempo, e incluindo i) os Como podemos depreender da análise acima expendida, o simples
Municípios como eventuais beneficiários dos imóveis urbanos abando- abandono material ou físico do bem imóvel pela inexistência do exer-
nados e arrecadados como bens vagos, e ii) requisito referente aos ônus cício dos atos de posse não caracteriza, de per si, a perda do direito
fiscais, como podemos observar abaixo: de propriedade. É essencial a intenção, o “animus derelinquendi”, de
se despojar da propriedade. Como assegura CARVALHO SANTOS, `a
`Código Civil de 1916 (revogado) simples negligência em reclamar a coisa ou qualquer outro ato negativo
`Art. 589. Além das causas de extinção consideradas neste Código, importa no abandono, que exige sempre um ato positivo do proprietá-
também se perde a propriedade imóvel: rio, que abandona voluntariamente a posse da coisa, com a intenção de
(...) deixar que outro a adquira. Há de haver sempre, portanto, uma renúncia
`III – pelo abandono;
simultânea de posse e de domínio`2
(...)
Entretanto, como requisito subjetivo, que está exclusivamente na
`§2° O imóvel abandonado arrecadar-se-á como bem vago e passará
ao domínio do Estado, do Território ou do Distrito Federal, se se achar mente do dominus e, portanto, de difícil comprovação fática, a presun-
nas respectivas circunscrições: (Redação dada pela Lei nº 6.969, de ção de abandono do bem imóvel depende da conjunção de uma série
1981) de requisitos para gerar, ao final, a perda da propriedade por parte
10 (dez) anos depois, quando se tratar de imóvel localizado em zona do particular e a incorporação, como bem vago, ao domínio do erário.
urbana; Em artigo publicado na internet3, o eminente Procurador de Justiça AR-
3 (três) anos depois, quando se tratar de imóvel localizado em zona MANDO ANTONIO LOTTI expôs perfeitamente a temática,verbis:
rural.
`Código Civil de 2002 (texto vigente) `O abandono de bem imóvel é heterodoxa forma de perda voluntária
`Art. 1.275. Além das causas consideradas neste Código, perde-se a da propriedade em razão complexa caracterização da força abdicati-
propriedade: va, a derrelição, elemento anímico substancial para que, em cir-
(...) cunstâncias tais, a extinção do direito de propriedade opere-se.
`III – pelo abandono; É bem verdade que, sendo móvel o seu objeto, a conduta do agente
(...) em deixar, por exemplo, a coisa na calçada de sua residência é sufi-
`Art. 1276. O imóvel urbano que o proprietário abandonar, com a in- ciente para evidenciar o propósito de não mais tê-la para si, imbrican-
tenção de não mais conservar em seu patrimônio, e que se não encon- do-se, assim, o abandono de bem móvel com o instituto da renúncia
trar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e (muito embora o primeiro seja ato-fato e o segundo negócio jurídico
passar, três anos depois, a propriedade do Município ou a do Distrito unilateral). Mas em relação à “res soli”, a caracterização do “animus
Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. derelinquendi” sempre foi questão de difícil superação, uma vez que
`§1º O imóvel situado na zona rural, abandonado nas mesmas cir- se exerce, por igual, o direito de propriedade pelo não uso do bem
cunstancias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três de raiz. Como anota Caio Mário da Silva Pereira, “uma pessoa pode,
na verdade, deixar de exercer qualquer ato em relação à coisa, sem
anos depois, a propriedade da União, onde quer que ele se localize.
perda do domínio.”E a despeito do inciso III do artigo 589 do anterior
`§2º Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este
Código Civil consagrar expressamente o abandono como modo de
artigo quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de
perda da propriedade imobiliária, a práxis forense, e mesmo tabular,
satisfazer os ônus fiscais.`
não se deparou, ao longo do tempo, com questões dessa natureza.`

Pode-se verificar que, para a caracterização do abandono de bem Desse modo, o mero desuso não importa em abandono, sendo ne-
imóvel, os elementos determinantes são i) o despojamento da coisa, cessária a sua conjugação ao elemento psíquico, na perquirição da real
deixando o proprietário de utilizar o imóvel e exercer os atos ineren-
tes ao direito de propriedade (elemento objetivo), e ii) o animus ou a 2 CARVALHO SANTOS, J.M. de. Código Civil Brasileiro Interpretado, 10ª edição, 1963, volume-
VIII, p.201.
intenção de ser desfazer da coisa, sem transmití-la a outra pessoa
3 `Abandono de Bem Imóvel e Derrelicção Presumida`, http://www.mp.rs.gov.br/urbanistico/dou-
(elemento subjetivo). trina/id506.htm

978 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 979
intenção do proprietário de se desfazer da propriedade, na medida em imóvel, estabelecendo uma serie de requisitos para sua comprovação,
que ele possui, ao lado das prerrogativas de usar e fruir da coisa, tam- como veremos.
bém a liberdade de não utilizá-la4.
Na prática, porém, verificamos que uma parte destes imóveis urba-
nos abandonados, a reclamar do Poder Público Municipal providências II – REQUISITOS PARA A CONFIGURAÇÃO DO ABANDONO
em função das externalidades negativas geradas por estes prédios
- como acúmulo de lixo e vetores de doenças, riscos de desabamen- O Código Civil determina que a configuração do abandono está
tos, depósitos ilegais de mercadorias, prática de crimes, aglomeração vinculada à vontade unilateral do proprietário em não mais conservar
de moradores de rua, entre outras – acabam por compor estoque para o bem imóvel como seu, razão pela qual os municípios ou o Distrito
a crescente especulação imobiliária, em função da escassez de terra Federal poderiam, caso não houvesse outrem exercendo atos de pos-
urbanizável em nossas cidades, pois, invariavelmente, um sem-número se sobre o bem abandonado, proceder à arrecadação dele como bem
de proprietários não utilizam, não conservam e não respondem pelas vago, passando, após três anos, ao domínio do Estado. É claro que,
dividas tributárias e não-tributárias de seus imóveis, na expectativa de nesse intervalo de tempo, enquanto a titularidade no Álbum Imobiliário
que investimentos públicos ou privados possam alavancar, em um futu- permanecer em nome do abandonante, poderá o mesmo reivindicar o
ro incerto, a provável comercialização destes prédios por preços mais bem de quem quer que o possua indevidamente, uma vez que o direito
elevados. Em outros casos, temos que os cadastros imobiliários apon- do Estado, após o abandono, é direito expectativo, como assevera
tam como proprietários pessoas há muito tempo falecidas, sem que te- Pontes de Miranda, ao analisar o instituto do abandono à luz do CC de
nha havido qualquer registro sucessório de possíveis herdeiros do bem 19165:
abandonado; ou mesmo, que emigraram para outros estados ou países,
e são de dificílima localização; ainda mais dramático, naqueles casos de `O direito do Estado, após o abandono, é direito expectativo. O ato
bens imóveis de valor histórico ou cultural, que se encontram abandona- de arrecadação, - que é o ato processual do art. 591 do Código de
dos por absoluta falta de interesse (ou de dinheiro) de seus proprietários Processo Civil, porque a arrecadação do bem como `vago` se referiu
o §2º, do Código Civil, - apenas acautela: a medida constritiva so-
em recuperarem estes imóveis.
mente supõe que se ignora de quem seja, ou que os atos, positivos
Aliados aos problemas extrínsecos e intrínsecos gerados em fun- ou negativos, do dono se podem ter como de abandono do direito
ção da ausência de utilização desses bens, como vimos acima, tanto de propriedade, previsto, como caso de perda, no art. 589, III, e §2º
os municípios como a União Federal carecem de um estoque de terras do Código Civil. A constrição não implica qualquer direito ao bem,
urbanizadas para a realização de programas públicos, como o Programa por parte do Estado. Se, ao ser arrecadado, no imóvel se encontra
Minha Casa, Minha Vida (PMCMV), que visem à solução do grave déficit possuidor próprio, ou impróprio, é de ser-lhe respeitada a posse,
habitacional das grandes cidades. Dessa forma, ao lado de outros insti- segundo os princípios; após a arrecadação, qualquer tomada de pos-
tutos costumeiramente utilizados para aumentar este estoque – a desa- se é contra direito, porque a arrecadação significou tomada de
posse pelo Estado, posse imediata não-própria. A posse anterior
propriação, o parcelamento, edificação e utilização compulsória, o IPTU
à arrecadação não se torna de má-fé por ter sobrevindo a arrecada-
progressivo no tempo, por exemplo – a Administração Pública pode va- ção e o possuidor tem, em tal espécie, legitimação para alegar o que
ler-se do instituto do abandono toda vez que comprovada a ausência entenda perante quem arrecadou e para propor a ação declaratória
de interesse do proprietário em conservar a coisa como parte integrante positiva da posse.` (o grifo é nosso)
do seu patrimônio. O legislador ordinário, ante tal situação, buscou sa-
nar a complexidade de identificarmos o elemento anímico substancial Veja-se que se faz necessário a conjunção de todos os requisitos per-
a configurar a vontade unilateral do titular em abdicar da propriedade tinentes a fim de permitir que, ao fim do prazo definido no caput do art.
4 Um exemplo comum dessa possibilidade se situa nos casos de proprietários de residências de
veraneio, que as utilizam eventualmente, um ou dois meses ao ano. Não há, nesses casos, como 5 MIRANDA, PONTES DE. Tratado de Direito Privado, Tomo XIV. Borsoi Editor, Rio de Janeiro,
cogitar-se de abandono e, via de conseqüência, de perda da propriedade. (N.do A.) 1955. Pág. 135.

980 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 981
1276 do Código Civil, seja o imóvel, abandonado e arrecadado como bem tendo em mira a weltanschauung finalística ou axiológica da norma em
vago, definitivamente incorporado ao patrimônio publico, independente- comento, que se traduz no uso social da propriedade, comprovada-
mente de qualquer indenização ou compensação financeira a quem quer mente, abandonada. Já vimos anteriormente que o inadimplemento
que seja, seja para o proprietário ou para qualquer possuidor direto e de fiscal não é o único elemento caracterizador do abandono, até mesmo
boa fé que esteja no imóvel em momento anterior ao ato de arrecadação. porque, se o proprietário reclamar, dentro do triênio legal, a posse do
Caracterizada a inexistência do exercício de atos de posse por quem imóvel declarado vago, terá que resolver suas obrigações tributárias
quer que seja (proprietário ou terceiro), autoriza a legislação que, cum- com o fisco e `levantar` a arrecadação.
pridas determinadas formalidades administrativas e/ou judiciais per- Desse modo, deverá o Poder Público, sempre que possível, instruir
tinentes6, passemos a cogitar de direito de apropriação pelo fisco. o processo administrativo ou judicial com todos os elementos carac-
Nesse sentido, comprovado, pela via administrativa ou judicialmente, terizadores do abandono do imóvel por parte do proprietário (animus
o abandono, o Estado pode exercer os atos de preparação para ad- derelinquendi), como notificações administrativas, cobranças judiciais,
quirir, que são, também, atos de proteção da propriedade imobiliá- autuações por infrações ao Código de Posturas, Obras, Meio Ambiente
ria abandonada. Entendemos que, após a decisão (administrativa ou ou de Saúde Publica, ocorrências policiais por infrações ao Código Penal
judicial) de vacância do bem abandonado, e atendidas as garantias de ou de Contravenções Penais, editais, fotografias do estado de abandono
do imóvel, e comprovação pelo órgão fazendário do inadimplemento
ampla defesa constantes do Enunciado nº 242 do Conselho da Justiça
persistente dos ônus fiscais, e não apenas o inadimplemento pon-
Federal7, poderão os municípios ou o Distrito Federal serem imitidos
tual, circunstancial, justificado8. Tudo isto, garantindo sempre ao pro-
provisoriamente na posse da coisa arrecadada, dentro do prazo de
prietário, tanto na esfera administrativa quanto na judicial, o postulado
três anos, até a incorporação definitiva ao patrimônio estatal, garan-
constitucional do due process of law, de forma a que possa comprovar
tindo-se ao proprietário abandonante, dentro deste prazo, o direito de
a inexistência do animus derelinquendi ou justificar sua inadimplência
retomar a posse do bem declarado vago, ressarcindo o município ou o
fiscal, oportunizando-se a regularização do pagamento, mediante quita-
DF das despesas que eventualmente houver feito em razão do exercício
ção dos débitos não-prescritos ou acordo de parcelamento, ou mesmo
da posse provisória (guarda, conservação e administração do bem), e o enquadramento do dominus nas normas isentivas de incidência do tri-
das obrigações tributárias que deixou de cumprir por ser (ainda) o pro- buto, cumpridas as formalidades legais atinentes ao mínimo existencial.
prietário do bem abandonado, conforme o registro imobiliário. Diante de uma solução que atende, de um lado, a finalidade espe-
Com relação à presunção absoluta (iuris et de iure) de abandono cífica da norma – interesse social de concessão de função a proprieda-
pela não satisfação dos ônus fiscais (§2° do art. 1276 do Código Civil), de urbana -, e, de outro, garante a razoabilidade da decisão judicial ou
temos que a matéria comporta algumas considerações, sempre man- administrativa que determina a perda de propriedade imobiliária ante o
abandono, depois de atendidos os preceitos do devido processo legal e
6 Podemos citar, à guisa de exemplo, os procedimentos administrativos descritos pelo Ministério das do contraditório, é despiciendo sustentar que o dispositivo citado não
Cidades (http://www.cidades.gov.br) para orientar os Municípios a cumprirem o disposto no art. 1276 do pode ser usado como instrumento de confisco, nos termos do Enuncia-
CC: a) promover um levantamento de imóveis abandonados; b) instaurar um processo adminis-
trativo de arrecadação para cada imóvel abandonado, instruindo-o com prova da omissão no do nº 243 do Conselho da Justiça Federal9, pois não é o escopo da
pagamento do IPTU e informações do setor de fiscalização (inclusive fotografias); c) notificar o norma insculpida no §2° do art. 1276 do Código Civil o confisco
proprietário, pessoalmente por funcionário da Prefeitura (Lei 10.257/01, art. 5°, inc. LV); d)
após, proferir decisão administrativa, decretando (ou não) a arrecadação como bem abando- de propriedade via ordem tributária, e sim compor, juntamente com
nado. Também não pode ser descartada, como meio de garantia do devido processo legal – art. 5º,
LIV da CF/88 - , a possibilidade de a Administração Publica ingressar em juízo, munida das informações
outros requisitos, os elementos caracterizadores do abandono, com o
e documentos comprobatórios do abandono de bem imóvel, visando a obtenção de sentença declara-
tória de bem vago, sujeita à arrecadação pelo erário, com imediata imissão provisória na posse da res 8 Como bem lembrado pela Procuradora do Município de Porto Alegre, Dra. ALEXANDRA GIA-
derelicta por parte do Poder Público, dentro do prazo de três anos, até a incorporação definitiva do bem COMET PEZZI, `(...) é sabido que o inadimplemento de débito, in casu, debito tributário, pode estar
ao patrimônio publico. O rito processual adequado poderia seguir o disposto nos arts. 1.170 e segs. autorizado por discussão administrativa ou judicial. O art. 151, do Código Tributário Nacional, as
do CPC, que tratam da arrecadação de bens móveis declarados vagos, ou o previsto nos arts. 1.142 e inclui como causa de suspensão da exigibilidade do crédito`.In ALCANCE DO ART. 1276 DO NOVO
seguintes do Diploma Processual Civil, que tratam da herança jacente. (N. do A.) CóDIGO CIVIL, publicado no site http://www.apmpa.com.br/apmpa/art/asp?id=17 (N.do A.)
7 Enunciado n° 242 do CNJ. `A aplicação do art. 1276 depende do devido processo legal, em 9 Enunciado nº 243. `A presunção de que trata o §2º do art. 1276 do CC não pode ser inter-
que seja assegurado ao interessado demonstrar a não-cessação da posse`. pretado de modo a contrariar a norma-princípio do art. 150, IV, da Constituição da Republica`.

982 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 983
fim de dar a propriedade abandonada uma destinação social. Como as- Conforme o Diagnóstico do Setor Habitacional de Porto Alegre divulga-
severa SACHA CALMON NAVARRO COELHO10: do em fevereiro de 2009, a Prefeitura Municipal trabalha com um déficit
de 38.572 moradias e aproximadamente 124.000 domicílios em si-
`A teoria do confisco, e especialmente do confisco tributário ou, nou- tuação inadequada (valores definidos a partir dos dados do IBGE do ano
tro giro, do confisco através do tributo, deve ser posta em face do de 2000 e atualizado através de métodos de expansão em 2004)12.
direito de propriedade individual, garantida pela Constituição. Se não
Mesmo considerando que estes números podem vir a ser ajustados
se admite a expropriação sem justa indenização, também se faz inad-
missível apropriação através da tributação abusiva. Mas não se per- por causa das novas informações do censo 2010, não se pode deixar de
cam de vista dois pontos essenciais: destacar a contradição de o Município de Porto Alegre aportar enormes
admite-se a tributação exacerbada, por razões extrafiscais, e em de- recursos orçamentários para a construção de novas unidades habitacio-
corrência do exercício do poder de policia (gravosidade que atinge o nais, enquanto existem 48.635 domicílios particulares vagos para
próprio direito de propriedade); uma demanda oficial de 38.572 moradias em condições de habi-
o direito de propriedade, outrora intocável, não o é mais. A Consti-
tabilidade! Provavelmente, nem todos estes imóveis vagos são adequa-
tuição o garante, mas subordina a garantia ”à função social da pro-
priedade”( ao direito de propriedade causador de disfunção social, dos para a resolução do déficit, mas o mínimo que se deve pensar é so-
retira-lhe a garantia).` (o grifo é nosso) bre uma estrutura fiscal e jurídica capaz de cobrar destes proprietários
a função social da propriedade. Portanto, mesmo que a Prefeitura
não utilize diretamente estes imóveis para a solução do problema, eles
III – A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE ABANDONADA poderiam não só financiar pelo menos parte das novas construções (por
conta dos instrumentos fiscais) como também, ao serem recolocados no
Com base nos resultados apontados pelo último censo do IBGE mercado, baixar o preço da terra urbanizada, estimular a regularização
(2010), conforme tabela abaixo transcrita11, o Município de Porto Ale- fundiária e o melhor ordenamento urbano, redirecionar os investimen-
gre possui mais de 48 mil imóveis vagos, ou seja, que não estão sendo tos públicos para as outras ações prioritárias definidas no Orçamento
ocupados sequer ocasionalmente. Ressalte-se que isto é diferente de Participativo e, notadamente, coibir a especulação imobiliária13.
imóveis fechados, que significa que os recenseadores do IBGE sabem Dessa forma, a função social da propriedade traduz o compor-
por informações que o imóvel é ocupado, mas não conseguiram encon- tamento regular do proprietário, exigindo que ele atue em dimensão
trar ninguém em casa para entrevistas. ético-so­cial, na qual não prejudique interesses coletivos. Vale dizer, a
propriedade mantém-se privada e livremente transmissível, porém de-
Censo 2010 – Primeiros Resultados – Disponíveis tendo finalidade que se concilie com as metas do organismo social. Bus­
no site do IBGE ca-se paralisar o egoísmo do proprietário, com a prevalência dos valores
ligados à solidariedade social, a fim de que o exercício dos poderes
Nome do Município Porto Alegre dominiais seja guiado por uma conduta ética, pautada no respeito aos
Total de domicílios particulares 574.001 interesses metaindividuais que sejam dignos de tutela, e o acesso de
Total de domicílios particulares ocupados 502.155 todos os bens mínimos capazes de conferir-lhes uma vida digna. Como
Total de domicílios particulares não-ocupados vagos  48.635 assegura CRISTIANO CHAVES DE FARIAS14,
Total de domicílios particulares não-ocupados fechados    6.917
Total de domicílios particulares não-ocupados de uso ocasional  16.294 `Penetrando na própria estrutura interna e substância do direito à pro-
priedade privada, traduz-se em uma necessidade de atuação promocio-
10 COELHO SACHA CALMON NAVARRO. Manual de Direito Tributário. Rio de Janeiro, Forense,
2002. Pág. 134. 12 Dados disponibilizados no site da ONG CIDADE (N.do A.)
11 Tal quadro encontra-se disponibilizado no site da ONG CIDADE – Centro de Assessoria 13 Idem, ibidem.
e Estudos Urbanos ( http://www.ongcidade.org/site/php/noticias/noticias.php?id_noticia=1378) , 14 FARIAS, CRISTIANO CHAVES DE; ROSENVALD, NELSON. Direitos Reais, Rio de Janeiro: Lúmen
para consulta. (N.do A.) Júris, 2006, p. 208.

984 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 985
nal pelo proprietário, pautada no estímulo a obrigações de fazer, consis- este poder conferido pela legislação constitucional ao detentor do direi-
tentes em implementação de medidas hábeis a impulsionar a exploração to de propriedade, tal não pode ser exercido sem a plena observância
racional do bem, com a finalidade de satisfazer os seus anseios econômi- de sua função social (art. 5°, XXIII, da CF/88), bem como respeitando o
cos sem aviltar as demandas coletivas, promovendo o desenvolvimen-
princípio da autonomia do interesse público. Dessa forma, a proprieda-
to econômico e social, de modo a alcançar a justiça social. Enquanto o
de privada não poderá ser considerada puro direito individual, relativi-
proprietário do Estado Liberal agia nos limites impostos pela lei, segundo
a máxima `posso fazer o que quiser, desde que não prejudique terceiros`, zando-se seu conceito e significado, especialmente porque os princípios
o proprietário dos tempos modernos sofre uma remodelação em sua au- da ordem econômica (art. 170, incs. II e III, da CF/88) são preordenados
tonomia privada, considerando que deve fazer tudo para colaborar com a vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna,
a sociedade, desde que não se prejudique`. conforme os ditames da justiça social.
Diante do exposto, o direito de propriedade não pode ser exercido
Nesse sentido, a exegese contida no art. 1276 do Código Civil traduz em detrimento de sua função social, parâmetro básico de sua compre-
uma modalidade de perda da propriedade imóvel decorrente da ausên- ensão na estrutura da Constituição Federal de 1988 e no disposto no ar-
cia, por parte do proprietário derrelinquente, da concessão de função tigo 1276 do Código Civil, na análise do tema pertinente à arrecadação
social ao imóvel que lhe pertence, atrelando uma presunção iuris et de de imóveis abandonados. O valor constitucional de suma relevância
iure de abandono pela falta de satisfação dos ônus fiscais, facultando- aqui debatido é, e será sempre, o da função social da propriedade, que
-lhe, porém, dentro da necessidade de harmonização com o principio naturalmente deve harmonizar-se com outros, também de jaez constitu-
constitucional do due process of law, o direito de arrepender-se e, den- cional, como o principio da ampla defesa e do contraditório, não se po-
tro do triênio definido pela lei, levantar o procedimento arrecadatório, dendo asseverar a existência de um direito fundamental absoluto, ante
pagar ou parcelar eventuais pendências tributarias ou mesmo regulari- o dever de ponderação de valores colidentes. Como reza o eminente
zar a sua situação com o fisco municipal. professor da Universidade de Colônia, JOHANNES HESSEN15:
Entretanto, deve o Estado exercer o seu direito/dever de zelar pelo
cumprimento da função social das propriedades em suas respectivas `Todos nos valoramos e não podemos deixar de valorar. Não e possí-
circunscrições. Constatado o abandono e, após os três anos sem que vel a vida sem proferir constantemente juízos de valor. E da essência
haja manifesto interesse privado na manutenção da propriedade da do ser humano conhecer e querer, tanto como valorar. E ate, se pre-
tendermos ver na vontade o centro de gravidade da natureza humana
res derrelicta, obedecendo-se aos princípios da ampla defesa e do con-
– como já Santo Agostinho protendia a crer – mais uma razão para
traditório, deve o Estado tomar o bem para si, e utilizá-lo de forma a
afirmar que o valorar pertence a essência do homem. Nada pode-
promover condições para o exercício da função social da propriedade,
mos querer senão aquilo que de qualquer maneira nos pareça
conforme dispõe a Constituição Federal em seus artigos 5°, XXII e XXIII; valioso e como tal digno de ser desejado.`
170, II e III; 182; 184; 186 e 243, e o Estatuto da Cidade (Lei Federal
n° 10.257, de 10 de julho de 2001), em seus arts. 1°, § único, Art. 2° Como princípio constitucional que é, a função social da proprie-
e seus incisos, em especial os incs. IV, alíneas `a` a `g`, X, XI, XII e XIV. dade ocupa espaço na hermenêutica jurídica – desempenhando fun-
ções de interpretação, integração, direção, limitação e prescrição – não
só nos casos em que a propriedade está diretamente vinculada à causa
IV – CONCLUSÃO – devendo esta ser resolvida em favor da situação que melhor atenda
à função social –, mas naquelas demandas em que o interesse social
Um dos alicerces básicos de sustentação da sociedade brasileira, deve prevalecer, como em se tratando de habitação, urbanismo e pre-
fundada no Estado Democrático de Direito, está justamente no direito servação do meio ambiente. Contudo, a concretização dessa nova visão
de propriedade, visto que inserido entre os direitos e garantias funda-
mentais previstos na Carta Magna (art. 5°, XXII). Mas, apesar de todo 15 HESSEN, JOHANNES. Filosofia dos Valores, Trad. Prof. L. Cabral de Moncada. 5 edicao. Armê-
nio Amado, Ed. Suc. Coimbra, Portugal. Pág. 40.

986 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 987
jurídica sobre a propriedade é sempre dificultada pelas constantes con-
trovérsias entre o anseio pelo uso (tantas vezes nocivo ou abusivo) da
Especulação Imobiliária no Município
propriedade e a função social. Como resolver as controvérsias em torno de Porto Alegre: A Imobilidade
do tema e concretizar a função social da propriedade, notadamente em
relação à propriedade urbana abandonada? Esta é uma tarefa ainda em
Legislativa como Obstáculo
construção, nos pretórios brasileiros. à Gestão Urbanística
Marcos Luiz Lovato1
REFERÊNCIAS

CARVALHO SANTOS, J.M. de. Codigo Civil Brasileiro Interpretado, 10ª edição, Resumo: O presente trabalho pretende abordar o tema da
1963, volume VIII. especulação imobiliária no município de Porto Alegre, ques-
LOTTI, ARMANDO ANTONIO. Abandono de Bem Imóvel e Derrelicção Presumi- tionando como a omissão do Poder Legislativo local acabou
da, http://www.mp.rs.gov.br/urbanistico/doutrina/id506.htm por contribuir para a disseminação e a continuidade desta
MIRANDA, PONTES DE. Tratado de Direito Privado, Tomo XIV. Borsoi Editor, Rio danosa atividade. Para tanto, abordaremos o instituto da
de Janeiro, 1955. função social da propriedade e como a especulação imobi-
PEZZI, ALEXANDRA GIACOMET. Alcance do Art. 1276 do Novo Código Civil, liária se concretiza no espaço urbano brasileiro, para que
publicado no site http://www.apmpa.com.br/apmpa/art/asp?id=17 então seja debatida esta prática no cenário jurídico-social
COELHO, SACHA CALMON NAVARRO. Manual de Direito Tributário. Rio de Ja- da cidade de Porto Alegre.
neiro, Forense, 2002. Palavras-chave: Especulação Imobiliária – Porto Alegre –
FARIAS, CRISTIANO CHAVES DE; ROSENVALD, NELSON. Direitos Reais, Rio de Função Social – Gestão Urbanística
Janeiro: Lúmen Júris, 2006.
HESSEN, JOHANNES. Filosofia dos Valores, Trad. Prof. L. Cabral de Moncada.
5 edição. Armênio Amado, Ed. Suc. Coimbra, Portugal. 1 – Introdução:

É notável o progressivo ritmo de desenvolvimento dos grandes cen-


tros urbanos brasileiros, nos quais os benefícios de seu crescimento
contrastam com os incontáveis e cada vez mais constatáveis problemas
que seus ocupantes se deparam. Neste cenário, a desequilibrada valori-
zação econômica dos imóveis figura como uma prejudicial conseqüência
do desenvolvimento das cidades. E um dos fatores que mais contribuem
para a perpetuação deste quadro é a especulação imobiliária, figura
objeto do estudo em questão.
A especulação imobiliária (ou retenção especulativa) é uma prática
que obsta a efetivação da função social da propriedade - instituto pri-
mordial para o bem estar de todos - em razão do benefício econômi-
co de poucos. Para melhor compreender esta prática, abordaremos o

1 Formado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre,
RS, Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre, RS, Mes-
tre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Unisinos, RS, advogado e professor de
Direito Municipal e Direito Urbanístico na Faculdade Palotina, em Santa Maria, RS.

988 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 989
conceito de função social da propriedade urbana, o modus operandi da inclusive a respeito do instituto da propriedade privada. Aquele caráter
retenção especulativa e como a legislação brasileira, desde seu axioma absoluto da propriedade, em que o proprietário possuía apenas liber-
constitucional até o advento do Estatuto da Cidade, visa impedir a pro- dades e nenhum dever, não tinha mais sentido em uma sociedade que
pagação desta prática. Por fim, será analisado como (ou se) a legislação pretendia (ou deveria) se livrar das desigualdades que nela estavam in-
do município de Porto Alegre veio a coibir a especulação imobiliária. crustadas.
Os direitos de propriedade e à atividade econômica são garantias Assim, Constituições de variados países passaram a condicionar o
fundamentais, expressos em nossa Constituição e de vital importância direito de propriedade do indivíduo ao bem de todos3. E esta é a gênese
para a sociedade. Porém, exercer estes direitos individuais pressupõe, do ideal de função social, no qual a propriedade, concomitantemente à
também, o cumprimento de deveres para com a coletividade. Neste sua natureza de direito fundamental de todo indivíduo, deva ser usufru-
sentido, faz-se necessário questionar o instituto da especulação imobi- ída de modo a também proporcionar o bem estar dos demais:
liária e tentar coadunar o conceito de propriedade à sua função social,
sob pena de continuarmos a testemunhar a degradação sistêmica de O que mais releva enfatizar, entretanto, é o fato de que o princípio
nossos centros urbanos. da função social da propriedade impõe ao proprietário - ou a quem
detém o poder de controle, na empresa - o dever de exercê-lo em
benefício de outrem, e não, apenas, de não o exercer em prejuízo de
II – A função social da propriedade
outrem. Isso significa que a função social da propriedade atua como
e a especulação imobiliária: fonte de imposição de comportamentos positivos - prestação de fazer,
portanto, e não, puramente, de não fazer – ao detentor do poder que
A conceituação que cerca o Direito de Propriedade sofreu significa- deflui da propriedade.4
tivas alterações através da história acompanhando a evolução dos ide-
ais que regeram a sociedade em cada um de seus momentos históricos. A existência da função social não pressupõe propriamente limita-
Se na idade antiga o homem era muito mais uma propriedade de um rei ções ao direito de propriedade, mas é, sim, uma característica inerente
soberano do que proprietário de alguma coisa, ao final do século XVIII deste5, é sua funcionalização por inteiro e não de modo fracionado. Ou
este cenário começa a sofrer profundas modificações com o advento seja, a propriedade deixa de ser analisada unicamente pelo ângulo do
dos ideais iluministas e as conquistas pelas liberdades individuais. A par- direito civil (individual) para ser inserida no contexto do direito público
tir deste momento, estes direitos (e, entre eles, o de propriedade) ad- (voltado para coletividade). É esta característica, a da supremacia do
quirem status de intrínsecos ao cidadão, não cabendo limitação quanto interesse social sobre o interesse privado, que está contida na função
à sua fruição. Um dos principais documentos históricos concernentes a social.
este período, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1789, No que diz respeito ao sistema jurídico brasileiro, historicamente nos-
continha explicitamente a concepção de total inviolabilidade e mesmo sas constituições apresentam algumas tímidas referências à função social
sacralidade do direito à propriedade2. da propriedade em seus textos. No entanto, a atual Constituição Federal
No entanto, com o avanço em direção aos direitos sociais e coleti-
3 A Constituição Alemã de 1919 (conhecida como Constituição Weimar) trazia em seu artigo
vos e, mais propriamente, da idealização do Estado de bem estar social, 153: “A propriedade é garantida pela Constituição. O seu conteúdo e os seus limites são fixados
já no século 20, reconheceu-se que era possível - e necessário - existir em lei (...). A propriedade obriga. O seu uso deve servir ao bem comum.”
determinadas condições para o homem gozar das liberdades individu- 4 GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São Paulo: Malheiros
Editores, 1997. 255.
ais (quando desarticuladas em relação aos interesses da coletividade),
5 “A funcionalização não é limitadora, é delineadora dos direitos. Exerce a conformação jurídica
dos diversos institutos que em sua essência têm seu conteúdo amoldado à função que o ordena-
2 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789): Art. 17.º Como a propriedade mento jurídico lhe atribui. Os institutos somente os são enquanto atentam a função social que
é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade lhes é inerente. Não podem manifestar-se sem ela, não podem produzir efeitos que a deturpem.
pública legalmente comprovada o exigir e sob condição de justa e prévia indenização. (Nota-se que (GUERRERO, Camilo Augusto Amadio. O fundamento científico da função social da propriedade
o texto dispõe sobre uma futura necessidade pública, condicionando a propriedade a um possível intelectual. In: NERY, Rosa Maria Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual momento
interesse do Estado, não se falando, ainda, no interesse social – da coletividade – sobre essa.) histórico. São Paulo: RT, 2006. p. 252.)

990 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 991
Brasileira é clara ao instituir a propriedade como direito fundamental da vida valorização imobiliária, quase sempre resultante dos melho-
pessoa humana, condicionando este direito ao bem estar social: ramentos públicos da área, custeados por todos mas auferidos
por alguns (grifo nosso). Essa realidade tem reclamado providências
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na- estatais específicas para as diferentes áreas urbanas, a fim de compati-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no bilizar sua utilização com as necessidades da coletividade, autorizando
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à imposições urbanísticas de toda ordem, agravamentos tributários dos
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: terrenos não edificados, urbanização compulsória pelos proprietários e
XXII - é garantido o direito de propriedade; até a desapropriação por interesse social.7
XXIII - a propriedade atenderá a sua função social;
Diante deste quadro deparamo-nos, portanto, com o fenômeno da
É notável que o dispositivo constitucional citado acabou por tratar a especulação imobiliária, ou seja, o aumento exagerado de preço do ter-
propriedade como um direito que necessite atingir uma função benéfica ritório urbano, em que o proprietário não dá uma devida utilização ao
na sociedade. É um direito individual que deve coexistir com os interes- imóvel, no aguardo que este tenha um aumento de preço decorrente
ses coletivos, podendo e devendo ser exercidos por seus particulares. das melhorias de sua localização para, em um momento posterior, co-
No entanto, quando o direito individual à propriedade colidir com os mercializá-lo por um alto valor.
interesses gerais da sociedade, coloca-se em iminente risco a garantia A retenção especulativa é, definitivamente, um entrave ao bem coleti-
da ordem social, devendo os direitos particulares subordinarem-se aos vo e ao desenvolvimento urbano. A propriedade urbana que se encontra
direitos coletivos6. inativa, subutilizada, acaba por acumular uma valorização com o decorrer
O desvio da função social da propriedade vêm se agravando com as do tempo, afinal, apesar da estagnação deste terreno, a cidade continua
freqüentes transformações sociais em nosso meio. No que diz respeito a se desenvolver ao seu redor. Esta propriedade, de função social desa-
às cidades, o solo urbano escassa cada vez mais com a ocupação em bilitada, cujo sua potencial capacidade de uso pelo proprietário ou por
massa dos grandes centros. Começa aí a preocupação com o aumento terceiros fora dolosamente obstaculizada pelo primeiro, agrega o valor do
exacerbado do preço do terreno urbano e suas prejudiciais conseqüên- desenvolvimento do centro urbano. O proprietário especulador, então,
cias à coletividade, sendo exigido, nesses casos, a intervenção e contro- acaba por finalmente dar uma “função” ao bem, geralmente vendendo ou
le do poder público frente a este cenário de enriquecimento de poucos alugando-o. Mas sempre por um alto preço e, consequentemente, para
em detrimento do empobrecimento de muitos. Helly Lopes Meirelles aquele que possua uma grande capacidade econômica. Este novo adqui-
vem a dispor sobre o tema nos seguintes termos: rente do imóvel supervalorizado investiu uma desproporcional quantia de
dinheiro, a qual poderia ser aplicada de melhor forma.
O controle do uso do solo urbano apresenta-se como uma das mais De outro lado, as camadas menos favorecidas economicamente,
prementes necessidades em nossos dias, em que o fenômeno da urba- que antes poderiam ter adquirido aquela propriedade, mas não o fi-
nização dominou todos os povos e degradou as cidades mais humanas, zeram pela dolosa contensão do imóvel pelo proprietário, perderam a
dificultando a vida de seus moradores pela redução dos espaços habi- oportunidade de ocupar o centro urbano e acompanhar seu desenvol-
táveis, dificultando a vida de seus moradores pela redução dos espaços
vimento. Logo, acabam por migrar para as zonas periféricas da cidade,
habitáveis, pela deficiência dos transportes coletivos, pela insuficiência
dos equipamentos comunitários, pela promiscuidade do comércio e da
aumentando nestes locais todos os problemas sociais que uma região
industria com as áreas de habitação e lazer. Daí o crescente encareci- marginalizada possui8. Está alicerçado, portanto, o cenário caótico ad-
mento dos terrenos para habitação, o que vem impossibilitando
a aquisição pelos menos abastados e exigindo a intervenção do 7 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 13. ed. atual. São Paulo: Malheiros Edito-
poder público no domínio fundiário urbano, para conter a inde- res, 2003, p. 532.
8 “Face à especulação imobiliária, o trabalhador passa a residir cada vez mais longe de seu local de
trabalho, o que lhe acarreta sacrifícios adicionais em termos de horas de descanso e despesas com
6 LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil. Porto Alegre: Livra- transporte, agravando o pauperismo existente e todas as mazelas que lhes são inerentes”. (DALLARI.
ria do Advogado, 1998, p. 118. Adilson de Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Janeiro: Forense, 1981, p.16.)

992 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 993
vindo da retenção especulativa, uma cascata de efeitos negativos em ro, tratando de inúmeros instrumentos de política urbana. O Estatuto da
nossa sociedade, onde todos pagam um alto preço. Cidade, como é conhecida a norma em questão, se opõe explicitamente
A Constituição Federal Brasileira, ao dispor sobre os rumos da polí- à especulação imobiliária:
tica urbana em seu artigo 182, delegou aos planos diretores municipais
a tarefa de definir os limites de utilização dos imóveis urbanos. E, mais Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desen-
do que isso, definiu as medidas que o poder público pode tomar quanto volvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana,
ao não cumprimento da função social em uma propriedade: mediante as seguintes diretrizes gerais:
VI – ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Po- [...]
der Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem e) a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua
por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da subutilização ou não utilização;
cidade e garantir o bem - estar de seus habitantes.
[...] Este mesmo Estatuto estabelece critérios gerais quanto à aplicação
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei específica das ferramentas de combate à não efetivação da função social da pro-
para área incluída no plano diretor, exigir, nos termos da lei federal,
priedade previstos na Constituição Federal:
do proprietário do solo urbano não edificado, subutilizado ou não uti-
lizado, que promova seu adequado aproveitamento, sob pena, suces-
sivamente, de: Art. 5o Lei municipal específica para área incluída no plano diretor
I - parcelamento ou edificação compulsórios; poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização com-
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progres- pulsórios do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado,
sivo no tempo; devendo fixar as condições e os prazos para implementação da refe-
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida públi- rida obrigação.
ca de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo § 1o Considera-se subutilizado o imóvel:
de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, I – cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano di-
assegurados o valor real da indenização e os juros legais. retor ou em legislação dele decorrente;
§ 2o O proprietário será notificado pelo Poder Executivo municipal
O sistema jurídico brasileiro defronta a especulação imobiliária, por- para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averba-
da no cartório de registro de imóveis.
tanto, já desde sua base constitucional, que impõe obrigações e sanções
§ 3o A notificação far-se-á:
àquele que não cumprir com a função social da propriedade urbana, atra- I – por funcionário do órgão competente do Poder Público municipal,
vés da edificação e parcelamento compulsório, IPTU progressivo no tem- ao proprietário do imóvel ou, no caso de este ser pessoa jurídica, a
po e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. quem tenha poderes de gerência geral ou administração;
Restava uma lei federal estabelecer as diretrizes gerais de aplicação des- II – por edital quando frustrada, por três vezes, a tentativa de notifica-
ses instrumentos, para que então fossem implantados concretamente nos ção na forma prevista pelo inciso I.
municípios. Daí a importância de se analisar, também, como o Estatuto da § 4o Os prazos a que se refere o caput não poderão ser inferiores a:
Cidade veio a abordar a questão da especulação imobiliária. I - um ano, a partir da notificação, para que seja protocolado o projeto
no órgão municipal competente;
II - dois anos, a partir da aprovação do projeto, para iniciar as obras
do empreendimento.
III – O Estatuto da Cidade como instrumento
coercitivo à especulação imobiliária:
Portanto, traçado o plano diretor, deverá a lei municipal determinar as

áreas ociosas que serão alvo de edificação, parcelamento e utilização com-
A Lei Federal 10.257, de 10 de julho de 2001, teve grande impor-
pulsória por parte do poder público local. Segundo o texto legal, o proprie-
tância no que diz respeito à ordenação jurídica do meio urbano brasilei-

994 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 995
tário do terreno, após ser notificado, terá um ano para protocolar o projeto vento do Estatuto da Cidade, esta lei trata, basicamente, sobre a me-
relativo à utilização do solo, e dois anos para iniciação das obras. Porém, é a lhor utilização do solo urbano do Município, visando adequar os imóveis
lei municipal que tratará do tempo limite para a conclusão das mesmas.9 sub-utilizados e não utilizados à sua função social e a função social da
Decorridos os prazos acima expostos, não tendo o proprietário to- cidade11:
mado as devidas providências quanto sua propriedade ociosa, começa-
rá a incidir sobre esta o imposto sobre propriedade predial e territorial Art. 1° - O Município de Porto Alegre, através dos Poderes Legisla-
urbana progressivo no tempo, conforme o art; 7° do Estatuto da Cida- tivos e Executivo e com a participação da comunidade, conforme as
de. Pelo período de cinco anos, o IPTU será majorado progressivamen- diretrizes gerais fixadas na Lei Orgânica do Município, promoverá o
pleno desenvolvimento das funções sociais da Cidade, para garantir o
te, até o limite de duas vezes o valor do ano anterior, respeitando-se a
bem-estar dos seus habitantes.
alíquota máxima de 15%. §2° - Para assegurar as funções da Cidade, o Poder Público pro-
Decorridos todos os prazos para utilização compulsória e, após, moverá e exigirá do proprietário do solo urbano, nos termos
para a incidência do IPTU progressivo no tempo, temos como última desta Lei Complementar, a adoção de medidas que visem o cum-
medida coercitiva da retenção especulativa da propriedade urbana a primento da função social da propriedade, orientado pelo Plano
desapropriação da mesma pelo poder público municipal, com o paga- Diretor e na Legislação Urbanística Municipal.
mento em títulos da dívida pública.
Estabelecer critérios menos subjetivos possíveis para se analisar se Conforme o texto contido no referido diploma legal, o Poder Execu-
uma propriedade está cumprindo sua função social não é tarefa fácil. tivo de Porto Alegre listará, anualmente, uma relação de “Áreas de Ur-
Para tanto, quem dispõe sobre esses requisitos é o plano diretor da banização e Ocupação Prioritárias (AUOPs)”, ou seja, áreas urbanas do-
cidade, pois ninguém melhor que a administração local para reconhe- tadas de infra-estrutura básica e que contenham em seus limites imóveis
cer os melhores parâmetros de utilização de um terreno que ocupa seu que não estejam cumprindo com sua função social. Após a identificação
território, os quais devem atender, por óbvio, às peculiaridades locais.10 dessas áreas e dos terrenos subutilizados ou não utilizados, o Poder Pú-
Assim, vamos verificar como o poder local do município de Porto Alegre blico local exigirá do proprietário, mediante notificação, medidas para o
especificou a aplicação dos instrumentos de combate à retenção espe- devido uso do imóvel, através do parcelamento e/ou parcelamento com-
culativa. pulsórios (artigos 5º à 10º), urbanizando e ocupando estas localidades,
ou seja, fazendo-se cumprir com a função social da propriedade.
Para fins de qualificação de uma propriedade cumpridora de sua
IV – A legislação do município de Porto Alegre função social, a lei n°312/93 utilizou-se de dois critérios. Em um pri-
e o combate à retenção especulativa: meiro momento tem-se como referencia o tamanho da gleba e a di-
visão fiscal em que se encontra. Em um segundo passo, considera-se
O município de Porto Alegre teve como principal norma para fins o percentual de efetiva utilização da propriedade e a área construída,
coercitivos à especulação imobiliária a lei complementar n° 312, de considerando-se atendida a função social do imóvel quando o mesmo
1993. Visando cumprir as diretrizes constitucionais e anterior ao ad- tenha utilizado no mínimo 50% (cinqüenta por cento) do índice do apro-
veitamento computável segundo o regime urbanístico do plano diretor
9 PEREIRA. Luis Portella. Estatuto da Cidade: A revolução social na propriedade urbana. Salva- de Porto Alegre.
dor: Omar G. Editora, 2001, p. 25. Em caso de não cumprimento dos prazos para parcelamento e edi-
10 Oportuno observar que alguns autores tem utilizado, analogicamente, os princípios de direito
administrativo relativos à função pública na abordagem da função social da propriedade. Assim, o
ficação da propriedade ociosa, incidirá sobre a mesma o Imposto sobre
proprietário de imóvel em perímetro urbano teria o poder-dever de utilizar produtivamente este
bem, bem como o funcionário público tem o poder-dever de exercer suas funções. Se no caso deste 11 Como função social da cidade, entende-se como sendo uma extensão do conceito de função
o que defini suas funções é a lei, na política urbana o que dirigi a função do imóvel é o plano diretor social, no qual as cidades possuem quatro funções básicas a serem viabilizada aos indivíduos:
municipal, devendo o proprietário cumpri-lo. (PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico: Plano habitação, trabalho, circulação e lazer. (DI SARNO. Daniela Campos Libório. Elementos de Direito
Diretor e Direito de Propriedade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 187.) Urbanístico. Barueri: Manole, 2004, p. 13/28.

996 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 997
a propriedade Territorial Urbana de forma progressiva no tempo, tendo texto adequado ao Estatuto da Cidade, bem como o Poder Público de
sua alíquota limitada ao máximos de 30%. E, finalmente, transcorrido Porto Alegre deixou de elencar anualmente as “Áreas de Urbanização e
o tempo limite para incidência do IPTU progressivo, o poder público Ocupação Prioritárias”.
municipal dará início à desapropriação da propriedade, com pagamento Aquela lei que tanto inovou ao aplicar as ferramentas constitucio-
mediante títulos da dívida pública. nais de combate à retenção especulativa acabou por se tornar obsoleta
Assim, a Lei Complementar 312/93, de forma inovadora, visou con- em pouco tempo, devido à estagnação do poder legislativo em atualizá-
cretizar o texto constitucional no plano local, especificando legislativa- -la. Em visionária pesquisa sobre os instrumentos de gestão e uso do
mente os instrumentos de coerção à especulação imobiliária na cidade solo urbano da cidade de Porto Alegre, Betânia Alfonsin e Claudio Gu-
de Porto Alegre. No entanto, não obstante seu caráter vanguardista, a tierrez acabam por concluir:
referida lei municipal antecipou-se ao Estatuto da Cidade, que veio a
apresentar inúmeras disparidades em relação à norma local. As incon- “A conclusão a que se chega é que, retirado da pauta da Câmara de
gruências entre a lei municipal e a posterior lei federal se deram princi- Vereadores o projeto que adequava a lei municipal ao Estatuto da
palmente no que diz respeito ao limite da alíquota do IPTU progressivo Cidade, não há neste momento, como se aplicar a lei que determi-
na o gravame anual de AUOPS em Porto Alegre e a notificação dos
no tempo e aos prazos para apresentação do projeto de edificação das
proprietários que não estejam dando a suas glebas adequada função
propriedades ociosas. social. Não deixa de ser paradoxal que Porto Alegre, cidade que foi
O Estatuto da Cidade estabeleceu que a alíquota máxima incidente pioneira na implementação dos instrumentos previstos no artigo 182
no IPTU progressivo seria no percentual de 15% (art. 7° da Lei Federal da Constituição Federal, e que ainda em meados da década de 90
n° 10.257/01). Já a legislação municipal limitou a mesma em 30% (art. (muito antes da promulgação do Estatuto da Cidade), já havia notifi-
12 da Lei Complementar municipal n° 312/93). Quanto aos prazos para cado diversos proprietários de terrenos para parcelar ou edificar com-
apresentação do projeto de ocupação da propriedade, a lei federal dis- pulsoriamente, esteja agora em uma situação de anomia em relação
pôs como sendo de um ano após a notificação do proprietário (art. 4°, a essa matéria.”13
§5° do Estatuto da Cidade), quando a lei portoalegrense limita à onze
O município de Porto Alegre se encontra com seus instrumentos
meses, se não em menos tempo (art. 8° e 9° da lei municipal).
de combate à especulação imobiliária travados. A conseqüência deste
Diante destas disparidades, temos um caso de necessária sobre-
engessamento legislativo é, por óbvio, a continuação da atividade es-
posição da norma posterior e mais benéfica ao contribuinte (e, mesmo
peculativa na cidade, principalmente no que diz respeito aos grandes
porque, os termos relativos ao percentual máximo do IPTU progressivo
negócios imobiliários que agregam valor muito antes ao início de suas
e prazos para protocolo e início das obras da edificação compulsória
obras mediante a retenção de áreas ociosas14.
eram atinentes à legislação federal, segundo dispôs a Constituição de
1988). Logo, frente à revogação tácita de alguns de algumas passagens 13 ALFONSIN, Betânia. GUTIERREZ, Cláudio. Estudo Crítico sobre Instrumentos de Gestão do Uso
do Solo em Porto Alegre. [online] Disponível na Internet via www.url: <http://www.urbanizadorsocial.
do texto original da Lei 312/93, se fez necessária uma mudança na le- org.br/pdf/Estudo%20Critico.pdf> Acesso em 20 de abril de 2008.
gislação municipal, a fim de que a mesma se enquadrasse nos ditames 14 Em oportuno e esclarecedor estudo, Marcelo Eibs Cafrune e Verônica Korber Gonçalves ana-
do Estatuto da Cidade. Para tanto, foi formada uma comissão técnica lisam o projeto “Pontal do Estaleiro”, uma área situada na orla do Rio Guaíba, em Porto Alegre,
para revisar e modificar as disposições da lei complementar 312/93, adquirida em leilão para fins de construção de área privada em um espaço que deveria ser de
acesso público: “Realizado novo leilão, cujo valor mínimo para o arremate era previsto em torno de
tendo o projeto da nova lei sido protocolado para fins de aprovação.12 12 milhões de reais, este não obteve êxito novamente, até que, no segundo leilão após a mudança
Ocorreu que o projeto de lei acima referido acabou retirado de da legislação, o imóvel foi adquirido pelo valor de 7,2 milhões de reais (Jornal Já, 2009, p. 5). A
compra do imóvel não acarretou, no entanto, qualquer modificação concreta em sua utilização, per-
pauta e nunca chegou a ser votado. Assim, a lei municipal n° 312/93 manecendo o mesmo ocioso, abandonado e sem acesso público, configurando, do ponto de vista
acabou por perder sua eficácia jurídica, uma vez que deixou de ter seu econômico, sua permanente valorização, tipicamente associada aos processos de especulação imo-
biliária nas grandes cidades brasileiras.” (CAFRUNE. Marcelo Eibs. GONÇALVES. Verônica Korber.
12 ALFONSIN, Betânia. GUTIERREZ, Cláudio. Estudo Crítico sobre Instrumentos de Gestão do Uso Aprovação dos Projetos “Pontal do Estaleiro” e “Gigante para Sempre” em Porto Alegre: Legislação
do Solo em Porto Alegre. [online] Disponível na Internet via www.url: <http://www.urbanizadorsocial. À La Carte? Revistas Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre. v.30, p.9-10,
org.br/pdf/Estudo%20Critico.pdf> Acesso em 20 de abril de 2008. Jun-jul.2010.

998 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 999
Há de ser questionado o porquê dessa imobilidade da atividade le- seus mecanismos legais para combate à especulação imobiliária contri-
gislativa, tão característica quando diz respeito às políticas públicas e, buiu para a perpetuação desta atividade e o conseqüente crítico cenário
como neste caso, à gestão urbano-ambiental das cidades. Em verdade, habitacional em que a cidade se encontra.
a coletividade, que é quem deveria estar representada no poder legis- Manter uma legislação moderna e que acompanhe os acelerados
lativo, parece ter sido substituída por aqueles que possuem maiores passos do desenvolvimento urbano e do mercantilismo imobiliário é
poderes políticos e econômicos. E isto se reflete não apenas nas normas uma eficaz ferramenta contra a retenção especulativa, juntamente com
que beneficiam unicamente determinados grupos, mas também no si- uma fiscalização efetiva por parte da Administração local. O Poder Pú-
lêncio legislativo quanto aos interesses de todos15. blico do município de Porto Alegre, bem como de qualquer outro que
vise, de fato, concretizar a função social da propriedade em seu ter-
ritório, necessita tomar urgentes providencias para fins de estancar a
V – Conclusão prática da especulação imobiliária e seus efeitos devastadores para os
centros urbanos e para aqueles que o habitam.
A manutenção de áreas ociosas para fins de valorização econômica,
mote da especulação imobiliária, desrespeita o preceito constitucional
da função social da propriedade, tendo como fim o benefício do parti- REFERÊNCIAS
cular de detrimento de toda a coletividade. Entre outros malefícios, a
retenção especulativa acaba por causar uma migração forçada da popu- ALFONSIN, Betânia. GUTIERREZ, Cláudio. Estudo Crítico sobre Instrumentos de
lação mais pobre para as zonas periféricas dos centros urbanos, trazen- Gestão do Uso do Solo em Porto Alegre. [online] Disponível na Internet via www.
do para as cidades todos os problemas decorrentes da marginalização url: <http://www.urbanizadorsocial.org.br/pdf/Estudo%20Critico.pdf>
e segregação social. DALLARI. Adilson de Abreu. Desapropriações para fins urbanísticos. Rio de Ja-
A legislação brasileira, no entanto, reconhece o caráter ameaçador neiro: Forense, 1981FERNANDES, Edésio (ORG.). Direito Urbanístico e Política
Urbana no Brasil. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
da especulação imobiliária e visou, desde sua Carta Maior, a coibição
DI SARNO. Daniela Campos Libório. Elementos de Direito Urbanístico. Barueri:
desta prática. No entanto, cabe ao Poder Publico de cada município,
Manole, 2004,
melhor conhecedor das especificidades, segmentos e vicissitudes de
GRAU, Eros Roberto. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 3. ed. São
seus centros urbanos aplicar os instrumentos de efetivação da função Paulo: Malheiros Editores, 1997.
social nas áreas não utilizadas ou subutilizadas. KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e proteção ambiental: o
No caso específico aventado neste estudo, observamos que o Mu- controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos
nicípio de Porto Alegre foi pioneiro e inovador em sua legislação, que ambientais: Um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004.
visava, de fato, coibir a atividade especulativa. Porém, com o advento LEAL, Rogério Gesta. A função social da propriedade e da cidade no Brasil.
do Estatuto da Cidade, a lei municipal apresentou disparidades em re- Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
lação à norma federal, perdendo sua eficácia e restando obsoleta. Mais MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Municipal Brasileiro. 13. ed. atual. São Paulo:
do que isso, a inércia do poder legislativo porto alegrense em adaptar Malheiros Editores, 2003.
NERY, Rosa Maria Andrade (Coord.). Função do Direito Privado no atual mo-
mento histórico. São Paulo: RT, 2006
15 “Assim, existem leis – normalmente dotadas de fórmulas vagas e pouco concisas – que são
criadas por forças políticas, as quais não têm a verdadeira intenção de vê-las aplicadas, mas so- PEREIRA. Luis Portella. Estatuto da Cidade: A revolução social na propriedade
mente querem realizar uma demonstração de sua “boa vontade”. Nesses casos, pode-se falar até urbana. Salvador: Omar G. Editora, 2001.
de uma programação de ineficácia da norma. Em outras circunstâncias, pode ser mais fácil para os PINTO, Victor Carvalho. Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Proprie-
opositores de uma lei evitar sua implementação do que sua promulgação, especialmente quando os
partidários do status quo possuem poderes políticos e econômicos suficientes para abafar reformas
dade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005.
legais no nível administrativo.” (KRELL, Andreas J. Discricionariedade administrativa e proteção am- Revistas Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre. v.30, Jun-
biental: o controle dos conceitos jurídicos indeterminados e a competência dos órgãos ambientais: -jul.2010.
Um estudo comparativo. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004. p. 90).

1000 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1001
O estudo de impacto urbano para a
expansão industrial: uma proposta
Pablo Luis Barros Perez1

Resumo: O paper apresenta um estudo preliminar sobre


o meio ambiente urbano e seus nuances para sociedade.
Aborda-se, o fenômeno urbano por meio da atividade in-
dustrial. Estas análises preliminares dão azo à conclusão do
papel indutor da autoridade pública nas diretrizes do plane-
jamento urbano para a expansão industrial. Para fundamen-
tar este papel indutor se analise a generalidade do plano di-
retor para chegar-se ao conceito de zoneamento industrial.
No final, o breve estudo aponta para a necessidade de se
pensar em um mecanismo específico para o planejamento
urbanístico em razão dos impactos sociais que a expansão
industrial acarreta para o meio ambiente urbano.
Palavras chave: Meio ambiente urbano. Atividade indus-
trial. Impacto Urbano.

1. Introdução

O fenômeno urbano, caracterizado pelo crescimento desordenado


das cidades, tem sido objeto de constante análise de juristas, políticos e
estudiosos do tema. Responsável pelo caos e exclusão social nas cida-
des, mostra-se incontrolável mediante a política pública tradicional. A
inexistência de políticas urbanas adequadas e a ausência de conscienti-
zação da população são fortes aliados para a manutenção deste modo
irracional de ocupação do ambiente comum.
Dentre os agentes que compõe o fenômeno urbano atual pode-se
citar o crescimento industrial. Sempre presente nas cidades pós-Revo-
lução Industrial, a indústria tem sido o pilar do sistema capitalista de
produção e sustento das cidades modernas. Em virtude de seu caráter
institucional, social e econômico as indústrias criaram cidades graças à
transformação da sociedade de artesãos e mercadores em uma socie-
dade baseada no acúmulo de capital e na tecnologia. Seu papel e fun-

1 Mestre em direito ambiental pela Universidade de Caxias do Sul. Professor da Faculdade de


Tecnologia – FTEC e Professor Convidado para os cursos de Pós Graduação da Faculdade da Serra
Gaúcha – FSG. Advogado em Caxias do Sul, RS.

1002 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1003
ção social colocam-na em uma posição privilegiada em relação a todos teve desde logo o direito de intervir nos negócios particulares de cada
os outros componentes necessários para a urbanização da cidade. uma desses pequenos corpos.” (COULANGES, 1998, p. 134-135).
Em função desta singular posição, muitas vezes, a indústria tem sido
legitimada pela autoridade municipal a desrespeitar o direito urbano, Historicamente, a cidade nasce sob um prisma individual, em que cada
prejudicando a população, a urbanização e o meio-ambiente ecologi- tribo poderia dispor de sua própria individualidade e deveria ser respei-
camente equilibrado. É objeto do presente estudo a apresentação de tada por isto. Ainda que possuíssem objetivos em comum as famílias e
mecanismos e instrumentos jurídicos capazes de regulamentar o plano tribos que formavam as cidades buscavam o melhor desempenho social
de expansão industrial de modo que este atenda os anseios da urbani- para cada um dos seus, pouco importando os anseios da coletividade que
zação e da comunidade. formava a cidade. Aos poucos a ordem social evoluiu. Normas sociais en-
contram na juridicidade o amparo para a sua eficácia e legitimidade, nasce
à sociedade moderna. A cidade começa a se organizar diante de um novo
2. A cidade e sua realidade instinto coletivo que surge no mundo moderno. Assim, passou a atender as
necessidades que permeavam a sociedade, crescendo de modo que não se
A cidade possui origem na necessidade de segurança e convivência atinha ao planejamento social necessário para seu controle futuro.
do homem. Surgiu inicialmente em cavernas chegando ao status de po- Platão (2002) na República, já alertava sobre o caos e a necessida-
voação e posteriormente de cidade. de sobre o controle demográfico das cidades. “[...] a cidade fica gran-
de demais, com habitantes a mais do que o suficiente, com profissões
“Antes da cidade, houve a pequena povoação, o santuário e a aldeia; a menos do que o necessário”. Ainda hoje a cidade apenas atende a
antes da aldeia, o acampamento, o esconderijo, a caverna, o montão imediata necessidade de crescimento humano. Além de crescerem sem
de pedras; e antes de tudo isso houve certa predisposição para a vida infra-estrutura alguma, as cidades ainda mantêm a mesma natureza so-
social que o homem compartilha, evidentemente, com diversas outras cial que originou seu nascimento, ou seja, o individualismo exacerbado
espécies animais.” (MUNFORD apud RECH, 2007, p. 13)
de determinados grupos que a compõe.
As cidades não se atêm a quase nenhuma norma de direito urbano,
Foi um lugar idealizado pelo homem para manter sua convivência so- “desrespeitando os meios natural e criado, as potencialidades naturais
cial representou o fim da evolução da sociedade e da natureza humana. geográficas, culturais, humanas”. (RECH, 2007, p. 18). Talvez este fato se
(ARISTÓTELES, 2000, p.10). É fruto da unidade social que representa a dê em função do rápido crescimento destas. A Organização das Nações
própria natureza do homem. Além disso, as primeiras cidades possuíam Unidas (ONU) tem alertado sobre o rápido crescimento das cidades. No
como objetivo três finalidades: a provisão de alimentos, a habitação e a Brasil, o relatório do Programa das Nações Unidas para os Assentamen-
regulação de atividades das pessoas que não desempenhavam qualquer tos Humanos (UN-HABITAT), divulgado no Rio de Janeiro em outubro de
ofício. (PLATÃO apud RECH, 2007, p. 17). 2008, alerta que as pequenas e médias cidades vêm formando médios e
As famílias formavam as fratrias, por sua vez as fratrias formavam as grandes centros urbanos e exigindo largos investimentos nestes locais.
tribos e a reunião de várias tribos formava as cidades. De forma total-
mente análoga, estes entes se transformaram em sociedades e uma das “‘As pessoas são atraídas pela instalação de grandes empresas nas
outras nasceram em uma série de federações. regiões que abrem boas oportunidades de emprego. Há um apelo
turístico também, além da saturação das grandes cidades em termos
“[...] assim como muitas fratrias estavam reunidas em uma tribo, mui- de transportes, serviços, segurança e habitação’, afirmou a diretora
tas tribos puderam associar-se, sob condição de o culto de cada uma do escritório regional para América Latina e o Caribe do UN-HABITAT,
delas ser respeitado. No dia em que nasceu esta aliança nasceu a Cecília Martínez Leal.”2
cidade. [...] A cidade era uma confederação. Por isso se viu obrigada,
pelo menos durante alguns séculos, a respeitar a independência reli- 2 Disponível em: http://br.reuters.com/article/domesticNews/idBRSPE49M00A20081023?page
giosa e civil das tribos, das cúrias e das famílias, e ainda por isso não Number=0, Acesso em 10/08/2011.

1004 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1005
No entanto, nenhum investimento é feito a título de planejamento ur- tejam totalmente dissociadas dos efeitos da globalização do mercado,
bano, mesmo em cidades e ou em micro e macro regiões metropolitanas. não sofrem tanto com a alta volatilidade do mercado econômico global
Hoje a cidade é um exemplo de pobreza e exclusão social. Atraídas pelas como vem sofrendo as grandes corporações.
indústrias locais, as pessoas têm se agrupado cada vez mais em regiões Este novo paradigma, que discute a expansão industrial na cidade,
industriais, que por sua vez, formam micro e macro regiões metropolita- deve estar presente nos novos conceitos de planejamento urbano que sur-
nas. Em função da volatilidade do mercado, bem como diante do mercado gem diante da emergente necessidade de regulamentação da urbaniza-
globalizado, as indústrias mantêm uma rotatividade de postos de trabalho, ção das cidades. O direito urbanístico e seus instrumentos de realização,
gerando muitas vezes, altos índices de desemprego local que podem gerar tais como o Estatuto das Cidades, o Plano Diretor, o Estudo de Impacto
pobreza e marginalização das pessoas desprovidas de sustento. Ambiental, o novel Estudo de Impacto de Vizinhança e todas as normas
A volatilidade do mercado é uma das causas, dentro de várias ou- urbanísticas devem voltar-se também para este novo fenômeno que está
tras, da pobreza e exclusão social dos centros urbanos. Assim, surge surgindo, qual seja: o malefício da expansão industrial desmedida.
um novo paradigma para o crescimento industrial nas cidades, eis que
não se sabe até que ponto a instalação ou expansão de uma indústria
3. A expansão industrial
é vantajosa para a urbanização local. Este argumento pode ser melhor
debatido quando percebido em determinado local a falta ou excesso de
Atualmente, a indústria é sinônimo de prosperidade, criação de em-
atividade industrial.
pregos e de arrecadação, tanto Federal, Estadual como Municipal. É fon-
Em um primeiro momento pode-se questionar quando poderá existir te de desenvolvimento econômico e também de contrastes sociais para
um excesso de atividade industrial em uma cidade. Para dirimir esta ques- o país. Pode-se dizer que é objeto de desejo de todos os municípios, eis
tão, deve-se ter em mente os processos que a globalização tem gerado no que fomenta a economia local e propicia o crescimento municipal.
mercado nacional e, por conseguinte os efeitos destes processos: A produção industrial em massa teve início na revolução industrial
em meados do século XVIII. Consistiu em um processo de avanço tecno-
“No Brasil, a globalização tem aprofundado as dimensões da desigual-
lógico que culminou em profundas mudanças econômicas e sociais. Ini-
dade social, criando processos que podemos denominar de exclusão
cialmente, no período pré-revolução, a atividade produtiva era pautada
social. Esses processos estão acompanhados de uma urbanização,
cuja importância na compreensão das transformações recentes, bem nos meios artesanais de produção. Tratava-se de corporações de ofícios
como, na elaboração de alternativas aos problemas contemporâne- que tinham por objetivo a proteção e organização de uma determina-
os, é decisiva. A recente urbanização brasileira tem evidenciado duas da atividade produtiva. Este método de produção, de modo inteligente,
dimensões desses processos mais gerais: um processo global, impon- buscou a socialização da força de produção por meio de uma maneira
do padrões de consumo e, um outro processo local, reproduzindo a racional de administrar os recursos naturais, humanos e sociais.4
desigualdade social, com novos conteúdos. A expansão das cidades No entanto, com o advento da revolução industrial “os traba-
médias tem revelado muito mais do que a simples expansão das de- lhadores perderam o controle do processo produtivo, uma vez que
sigualdades ou da exclusão social, evidencia uma descontinuidade na passaram a trabalhar para um patrão (na qualidade de empregados
experiência social da vida cotidiana. Portanto, para analisar, desde o
ou operários), perdendo a posse da matéria-prima, do produto final
ato básico de morar ao mais amplo do conviver na cidade sugere a
e do lucro.”5 Os trabalhadores passaram a controlar máquinas que
fundação de novos paradigmas.”3

4 Officios livres ou corporações juramentadas contribuiram para assegurar a capacidade techni-


Nesse sentido, a cidade deve ater-se, além da produção industrial ca e a dignidade profissional, educando e instruindo aprendizes, fiscalizando a boa qualidade e a
em massa, à outras atividades econômicas, que muito embora não es- medida exacta dos productos, estabe­lecendo a solidariedade e a disciplina e habituando os seus
membros á pratica do self government. Na luta contra o despotismo feudal, foi a corporação uma
arma poderosa. No movimento communal, foi tambem notavel o papel da corporação, — nucleo
3 REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. em torno do qual ás vezes se constituiu a communa. (SERRANO, 1926, p. 34)
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. VII, núm. 146(128), 1 de agosto de 2003. 5 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_Industrial. Acesso em
Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146%28128%29.htm. Acesso em 10/06/2009. 10/06/2009.

1006 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1007
pertenciam aos donos dos meios de produção, os quais passaram sejam criadas em locais nunca antes visualizados para este fim. É caso
a receber todos os lucros. Nasce, portanto, o ponto de passagem da Índia, em cidades como Mumbai e Bangalore. Estas cidades em sido
que culminou na revolução tecnológica, econômica e social que fez alvos de instalação de diversas empresas globais. Os governos da Índia
emergir os meios modernos de produção e a empresa contemporâ- e Cingapura têm investido para criar em Bangalore o International Tech-
nea. nology Park. Trata-se de um conjunto de modernos edifícios semelhan-
Os meios modernos de produção, esculpidos para atender o sis- tes ao Centro Empresarial de São Paulo, composto de cinco blocos de
tema capitalista, passaram ter o lucro como seu principal objetivo. O prédios que abrigam mais de 100 empresas indianas e multinacionais.
volume de produção aumentou extraordinariamente e a produção de Segundo a Revista Digital a primeira impressão de quem visita a ci-
bens deixou de ser artesanal e passou a ser maquinofaturada. As po- dade de Bangalore é a “alternância do caos das ruas e da tranqüilidade
pulações iniciaram um deslocamento para os centros urbanos em bus- da indústria da cidade”. Mas lá estão mais de 300 empresas “cheias de
ca de trabalho abandonando o campo. As indústrias fabris passaram a jardins, academias de ginástica, piscinas e restaurantes. É o silicon val-
concentrar centenas de operários, que vendiam sua força de trabalho ley indiano, motor das exportações de software de US$ 8 bilhões por
em troca de um salário. Estes fatores, combinados com outros de or- ano”. 7 Bangalore é o mais bem sucedido exemplo de caos urbanístico
dem social e cultural, propiciaram um progresso econômico nunca an- pela desmedida expansão industrial. Empresas mundiais de software,
tes visto na história mundial, eis que antes dela levavam séculos para hardware, de serviços de telecomunicações a partir de 2003 tem se ins-
que a renda per capita aumentasse sensivelmente. (BLAINEY, 2007, p. talado naquela cidade sem que haja o respeito do meio-ambiente local,
259) da diversidade cultural e possivelmente do plano urbanístico da cidade,
No Brasil, a industrialização foi vivida em quatro períodos. O perío- planejado ainda que de forma empírica.8
do da proibição, de 1500 a 1808, o período da implantação vivido en- O crescimento industrial desmedido em Bangalore e em outras tan-
tre 1808 a 1930, o período da revolução industrial brasileira de 1930 tas cidades mundiais é um dos fatores de caos e exclusão social. As in-
a 1956 e finalmente o mais relevante de todos - o período da interna- fluências que as grandes companhias exercem em todos os locais onde
cionalização da economia brasileira, vivido a partir de 1956 até os dias se instalam forçam as economias locais e os pequenos municípios a su-
atuais. A atividade industrial brasileira, hoje voltada principalmente para portarem uma carga de investimentos em infra-estrutura urbana nunca
a exportação de “commodities”, vem crescendo e alcançando status antes planejados. Por outro lado, é comum que as pessoas de pequenas
mundial e destaque dentre os países mais ricos do mundo: “A época da cidades que rodeiam os grandes centros metropolitanos se desloquem
globalização 2.0 quando o mundo se encolheu do tamanho médio para diariamente para estes centros a procura de trabalho e sustento familiar.
o tamanho pequeno, foi a época da reforma por atacado, um tempo de Estas pessoas não deixam contudo, de morar em suas cidades saté-
amplas reformas macro econômicas. Essas reformas por atacado foram lites, tornando-as verdadeiras cidades “dormitório”. Este fato tem causa-
iniciadas por um punhado de líderes em países como a China, a Rússia, do inúmeros problemas para as prefeituras destas pequenas cidades, eis
o México, o Brasil e a Índia.”(FRIEDMAN, 2007, p. 354) que ficam sobrecarregadas com sistemas de saneamento, escolas, pos-
A realidade mundial aponta para o fato de que as grandes corpora- tos de saúde e, em contrapartida, não ficam com a gama da arrecadação
ções estão situadas em pontos comerciais estratégicos, concentrando a gerada pelas grandes companhias localizadas nos grandes centros.
atividade industrial em determinados pontos específicos do globo. No A experiência industrial brasileira, assim como a mundial, não permi-
entanto, o achatamento mundial6 tem permitido que zonas industriais te um retrocesso no que tange o papel e ocupação da indústria no plano
urbanístico da cidade. Em 2006, o Cadastro Central de Empresas (CEM-
6 A expressão achatamento do mundo vem calcada na tese brilhante de Thomas L. Friedman em
PRE) foi integrado por 5,7 milhões de empresas e outras organizações
sua obra “o mundo é plano”. O autor baseia sua pesquisa à medida que os avanços tecnológicos e
comunicativos conectam as pessoas, criando uma riqueza em países como Índia e China. O autor 7 Trata-se uma publicação semanal da agência de desenvolvimento do Estado do Rio Grande do
demonstra como a globalização tem acelerado a desmistificação da economia global por meio de Sul, Polo RS, que posse ser acessada no sítio web www.revistadigital.com.br.
dez forças de “achamento” que permitem que diversas economias globais estejam interconectadas 8 http://www.revistadigital.com.br/caderno_especial.asp?NumEdicao=211&CodMateria=1592.
para o crescimento do lucro e do sistema capitalista. Acesso em 13/08/2011.

1008 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1009
ativas, com inscrição no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), um objeto de especial estudo no que tange o plano urbanístico das cida-
representando o segmento formal da economia. Deste total, 89,8% fo- des. O estatuto das cidades, Lei n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, é
ram empresas; 0,3%, órgãos da administração pública; e 9,9%, entida- o maior exemplo brasileiro que delineia uma relevante questão constitu-
des sem fins lucrativos. Em relação a 2005, houve um crescimento de cional: a propriedade e sua conformação social. Originou-se de projeto
1,0% no total das empresas e outras organizações.9 de lei que tomou o n.º 2.191, de 1989, de lavra do Sr. Raul Ferraz; ao
A pesquisa feita pelo Instituto Brasileiro de Estatística e Geografia depois, tomou o nº 181/89 no Senado Federal10, e, finalmente, na Câ-
(IBGE) no ano de 2006 concluiu que as grandes empresas localizam-se mara dos Deputados, o n.º 5.788 de 199011.
principalmente nas Regiões Sudeste (52,2%) e Sul (25,1%), que juntas O texto legal traz a tona uma perspectiva axiológica e constitucio-
concentram, aproximadamente, 77,0% do total das empresas de gran- nal do artigo 5º, XXIII e artigos 182 e 183 da Constituição de 1988
de porte do País. As demais áreas mostram as seguintes participações: como forma de quebrar uma visão dogmática e cerrada da ótica secular
Nordeste (12,6%), Centro-Oeste (5,9%) e Norte (4,2%). A estrutura re- da propriedade para sujeitar-se ao atendimento da função social desta.
gional aponta que nas grandes empresas, assim como no total do setor Outro ponto central do Estatuto da Cidade diz respeito ao planejamento
industrial, a participação do pessoal ocupado e do valor da transforma- para fins de atingir um equilíbrio ambiental:
ção industrial continua concentrada na Região Sudeste, com respectiva-
mente 51,2% e 63,4%, bem distanciada da segunda área mais impor- “A grande ênfase dada ao planejamento municipal através do Estatuto da
tante, a Região Sul, com 24,5% e 16,0%, respectivamente. Cidade, diz respeito ao equilíbrio ambiental, numa preocupação constante
As cidades brasileiras também têm sofrido com a ausência de pla- com a necessidade de preservar a natureza, corrigindo os erros e inconse-
qüências já cometidos por nossa geração e pelas gerações passadas, para
nejamento urbano no que tange a expansão industrial. Grandes centros
legar às gerações futuras uma cidade que ofereça todas as condições de
empresariais como as Regiões Metropolitanas de São Paulo, Belo Hori- vida saudável e bem estar dos munícipes.” (KIRZNER, 2003, p. 4)
zonte, Porto Alegre são exemplos de caos e exclusão social em função
da instalação desmedida de empresas. Cada vez mais pessoas de outras A Lei nº 10257/2001, tendo tratado exaustivamente das questões
cidades e até mesmo outros estados brasileiros têm se deslocado até da Política Urbana, traz uma série de instrumentos legais que devem
estes centros à procura de empregos e melhores oportunidades de vida. ser utilizados para se conseguir atingir os objetivos propostos. O mais
Vive-se hoje um verdadeiro êxodo urbano de pequenas localidades importante de todos os instrumentos, que a Lei coloca como sendo o
para grandes centros superlotados, que não possuem o tempo nem o di- básico, entretanto, é o Plano Diretor, que deve se revestir da forma de
nheiro necessário para suportar esta carga de pessoas que diariamente Lei municipal. Previsto no capítulo três do Estatuto da Cidade vem siste-
aportam em grandes cidades. Talvez este seja o maior problema enfren- matizado nos artigos 39 e 4012.
tado pelo planejamento urbano das cidades e encontra uma possível
solução no zoneamento industrial previsto no plano diretor instituído
10 Disponível em: www.senado.gov.br. Acesso em 16/08/2011.
pelo novel Estatuto das Cidades. 11 Disponível em: www.camara.gov.br. Acesso em 16/08/2011.
12 Art. 39. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fun-
damentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das
4. O plano diretor e o zoneamento industrial necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das
atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. Art. 40. O plano
diretor, aprovado por lei municipal, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e ex-
A questão ambiental no planejamento urbano já encontrou muitas pansão urbana. § 1º. O plano diretor é parte integrante do processo de planejamento municipal,
devendo o plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporar as diretri-
renovações doutrinárias que culminaram em uma evolução legal no or- zes e as prioridades nele contidas. § 2º. O plano diretor deverá englobar o território do Município
denamento jurídico brasileiro. A socialização do domínio passou a ser como um todo.§ 3º. A lei que instituir o plano diretor deverá ser revista, pelo menos, a cada dez
anos.§ 4º. No processo de elaboração do plano diretor e na fiscalização de sua implementação,
os Poderes Legislativo e Executivo municipais garantirão: I – a promoção de audiências públicas e
9 http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/economia/industria/pia/empresas/comentario2006.pdf. debates com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos
Acesso em 13/08/2011. da comunidade; II – a publicidade quanto aos documentos e informações produzidos.

1010 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1011
A característica mais marcante dos dispositivos da Lei que institui o naturais nela existentes; contribuir para a realização da função social da
Estatuto da Cidade talvez seja aquela que determina que a propriedade propriedade.
urbana cumpre sua função social, quando ela atende às exigências fun- Afonso da Silva (2004, p. 268) defende que existem duas formas de
damentais de ordenação da cidade expressas no Plano Diretor. Essas zoneamento: o urbano e o ambiental – do qual fazem parte o zoneamen-
exigências fundamentais devem assegurar o atendimento das necessi- to industrial, o zoneamento para as áreas de proteção ambiental, para
dades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao aos parques públicos e corredores ecológicos. O zoneamento industrial,
desenvolvimento das atividades econômicas: que se faz presente ao objeto de estudo, tem, atualmente, mais de 27
anos. Instituído inicialmente pela Lei 6.803, em 03.07.1980, esse diplo-
“É o Plano Diretor a lei municipal que deve tratar de todo o processo ma legal representou avanço significativo no que concerne às questões
de desenvolvimento e de expansão urbana. Ora, se o Plano Diretor ambientais, pois as elevou a tema de grande importância, conseguindo
é o instrumento básico, significa dizer que, sem ele, os municípios
atrair, pela a primeira vez, todo o Congresso Nacional para formular pon-
não conseguirão alcançar seus objetivos de ordenação da cidade.” A
abrangência deste artigo é ainda maior quando determina que o pla- tos de vista e votar um problema ambiental.
no não é apenas relativo ao desenvolvimento urbano, mas também de Em virtude do quanto disposto na Lei de 1980, defini-se que o Zo-
expansão urbana. E o § 2º, a nosso ver, complementa caput, quando neamento industrial seria uma área de terras, demarcadas previamente,
diz: “§ 2º. O plano diretor deverá englobar o território do Município inserida na zona urbana ou dela separado, com topografia, tipo de solo
como um todo.” (KIRZNER, 2003, p. 4) e distância pré-determinada de manancial hídrico. Essa breve conceitu-
ação pode facilmente visualizada nos artigos 2º e 3º da Lei 6.803/80.13
Kirzner (2003, p. 4) deixa clara a questão da previsibilidade da ex- A Lei n.º 6.803/80 estabelece o zoneamento industrial somente
pansão urbana no plano diretor. Assim, “deve ser tido como a orienta- com fundamento em aspectos físicos. Além disso, invoca a validade do
ção para as futuras administrações municipais, que deverão pautar suas zoneamento industrial determinado pela autoridade municipal para a
ações dentro do que estiver definido no Plano, por ser esta a ‘vontade aprovação do estado, conforme determina o artigo 10 e seus incisos.
do povo’.” Nesse sentido, qualquer que seja a administração municipal Estes fatores engessam a visão axiológica do zoneamento industrial, eis
eleita para determinado mandato, deverá atender o planejamento urba- que não permitem ao Plano Diretor, de forma plena, administrá-lo de
no deixado pelas administrações anteriores, ainda que isto denote con- acordo com a necessidade e realidade do plano urbanístico da cidade.
tra a visão política do partido que estará à frente da administração do Diz-se engessamento do plano diretor, uma vez que o zoneamento
município. Isto é um grande avanço, eis que a politicagem que comanda industrial não pode ser analisado somente diante dos aspectos físicos
os governos locais deverá dar espaço para os anseios reais da popula- do meio ambiente, sejam eles relativos à geografia, fauna e flora. O zone-
ção, regularmente previstos no Plano Diretor instituído com fundamento amento da área industrial deve atender os anseios sociais e econômicos
no Estatuto da Cidade. do município para que haja a concretização do meio ambiente ecologi-
A forma mais racional encontrada na legislação para atingir o equi- camente equilibrado previsto no Estatuto da Cidade e instrumentalizado
líbrio urbano dentro do planejamento previsto no Plano Diretor é o zo- por meio do Plano Diretor.
neamento. Para Afonsa da Silva (2004, p. 267), zoneamento consiste Nem o Estatuto da Cidade, tampouco a Lei n.º 6.803/80 previu a
num “instrumento de ordenação e ocupação do solo”. De outro modo, necessidade de planejar o zoneamento por motivos que ultrapassam os
esse instituto é utilizado para “encontrar lugar para todos os usos es-
senciais do solo e dos edifícios na comunidade e colocar cada coisa em 13 Art. 2º - As zonas de uso estritamente industrial destinam-se, preferencialmente, à localização
de estabelecimentos industriais cujos resíduos sólidos, líquidos e gasosos, ruídos, vibrações, ema-
seu lugar adequado, inclusive as atividades incômodas”. (SILVA, 2004, p. nações e radiações possam causar perigo à saúde, ao bem-estar e à segurança das populações,
268). Machado (2004, p. 122) aponta que a finalidade do zoneamento mesmo depois da aplicação de métodos adequados de controle e tratamento de efluentes, nos
termos da legislação vigente.
consiste em delimitar geograficamente áreas territoriais, com o objetivo Art. 3º - As zonas de uso predominantemente industrial destinam-se, preferencialmente, à insta-
lação de indústrias cujos processos, submetidos a métodos adequados de controle e tratamento
de estabelecer regimes especiais de uso da propriedade e dos recursos de efluentes, não causem incômodos sensíveis às demais atividades urbanas e nem perturbem o
repouso noturno das populações.

1012 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1013
aspectos físicos do meio ambiente, do meio ambiente natural. Entende- “qualquer alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas do
-se que o zoneamento industrial encontra uma maior validade quando meio ambiente, causada por qualquer forma de matéria ou energia re-
previsto no plano diretor e legitimado por fatores que ultrapassam ape- sultante das atividades humanas que direta ou indiretamente afetam:
I – a saúde, a segurança e o bem-estar da população; II – as atividades
nas a visão sistêmica do meio ambiente natural.
sociais e econômicas; III – a biota; IV – as condições estéticas e sani-
O Plano Diretor, como exemplo de autonomia da vontade popular,
tárias do meio ambiente; V – a qualidade dos recursos ambientais”.
deve estabelecer critérios objetivos que, além de determinantes para o pla-
nejamento do zoneamento industrial, possam influenciar no planejamento
Diante da sistemática legal da Resolução n.º 001/86 do CONAMA,
da expansão industrial do município. Assim, o Plano Diretor deve ser um o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EPIA) e o respectivo Relatório de
instrumento que preveja os impactos da expansão industrial, não somente Impacto Ambiental (RIMA) tornaram-se requisitos indispensáveis para o li-
em relação ao impacto ambiental na perspectiva de preservação do meio cenciamento ambiental de atividades humanas potencialmente poluidoras,
ambiente, mas também deve prever um meio ambiente ecologicamente dentro das quais se pode considerar a atividade industrial. Assim, o licen-
equilibrado também na ordem cultural, social e econômica. A partir disso, ciamento ambiental apresenta uma série de procedimentos específicos,
surge a necessidade de aplicação de um estudo prévio para que haja a inclusive realização de audiência pública, e envolve diversos segmentos da
instalação e expansão industrial dentro do município, estudo que pode ser população interessada ou afetada pelo empreendimento. No caso do Esta-
avaliado por meio impacto da industrialização no plano urbanístico. do do Rio Grande do Sul, o EIA e RIMA ficam à disposição do público que
se interessar, na Biblioteca da Fundação Estadual de Prevenção Ambiental
(FEPAM), respeitada a matéria versante sobre sigilo industrial, conforme
4. A expansão industrial e a necessidade de criação estabelecido no Código Estadual do Meio Ambiente daquele estado.
do estudo prévio de impacto urbano O EIA, instrumento indispensável para o licenciamento ambiental, foi
o início da consagração da efetiva Política Nacional do Meio Ambiente.
O elenco dos argumentos lançados em torno da expansão industrial Pode-se dizer que foi o primeiro limite delineado para frear a expansão
desmedida deixa clara a necessidade de uma avaliação prévia para a industrial impondo regras e conceitos para a instalação de indústrias no
instalação de indústrias no plano urbanístico da cidade. Hoje conta-se plano urbanístico da cidade. Mais tarde, como meio de dar mais efetivida-
somente com a necessidade do licenciamento ambiental, instrumentali- de pragmática ao artigo 225, § 1º, IV da Constituição Federal, sobreveio
zado por meio do estudo prévio de impacto ambiental, para a instalação o Estatuto das Cidades, Lei n.º 10.257 de 10 de julho de 2001, que
industrial e isto pressupõe o controle preventivo de danos ambientais. institucionalizou mais uma possibilidade de estudo prévio para diminuir o
Uma vez constatado o perigo ao meio ambiente, deve-se ponderar sobre impacto ambiental e o nominou de Estudo de Impacto de Vizinhança - EIV.
os meios de evitar ou minimizar o prejuízo. A Lei n. 6.938/81 estabele- O Estatuto da Cidade estabelece em seu artigo 36, que “lei munici-
ceu a avaliação dos impactos ambientais como instrumento da Política pal definirá os empreendimentos e atividades privados ou públicos em
Nacional do Meio Ambiente. área urbana que dependerão de elaboração de Estudo Prévio de Impac-
Além disso, o Decreto n. 88.351/83 determinou ao Conselho Nacio- to de Vizinhança para obter as licenças ou autorizações de construção,
nal do Meio Ambiente (CONAMA) que este fixasse os critérios básicos e ampliação ou funcionamento a cargo do Poder Público Municipal”. O
as diretrizes gerais para estudos de impacto ambiental para fins de licen- EIV pode ser considerado como instrumento preventivo e pragmático
ciamento de obras e atividades. A Resolução n.º 001/1986 do CONA- que tem como objetivo evitar o desequilíbrio no crescimento urbano e
garantir condições mínimas de ocupação dos espaços habitáveis.
MA tratou dessa matéria. O impacto ambiental pode ser considerado, a
Fernandes (2005, p. 118) sustenta que com a entrada em vigor do
partir da inteligência da legislação que regula a política nacional do meio
Estatuto da Cidade, tanto o Estudo Prévio de Impacto Ambiental, quan-
ambiente, como qualquer deterioração do meio ambiente que decorre
to o estudo prévio de impacto de vizinhança foram erigidos como instru-
de atividade humana. A Resolução n.º 001/86 do CONAMA, em seu art.
mentos da política urbana.14 Diante disto, conclui Simões Pereira:
1º, considera impacto ambiental:
14 artigo 4.º, VI

1014 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1015
“A Lei impõe algumas condições para se obter as respectivas licenças que fizeram 70% das aquisições de terras na região de Balsas em 2008.
de construir, bem como quando da ampliação de obra já existente. A reportagem declara que a expansão da cidade é desordenada, eis que
Isso deve ocorrer, objetivando que se faça um planejamento e decida “vem a reboque da riqueza do agronegócio”. Ainda, a repórter afirma:
se o local comportará a atividade sem causar grandes danos ao meio.
E não se trata de discutir danos ao meio ambiente, os quais serão ana-
“Balsas é caótica e paradoxal. Ao mesmo tempo que boa parte das
lisados no EPIA, que não foi substituído pelo EIV, conforme se observa
ruas não é asfaltada e a telefonia celular ainda é precária, um hiper-
no artigo 38 do Estatuto da Cidade.” 15
mercado e um restaurante japonês são ícones da chegada da moder-
nidade. Enquanto bairros mais velhos estampam a pobreza nordesti-
A conclusão de Simões Pereira16 deixa claro que o estudo incremen- na, casa elegantes e jardins bem cuidados surgem em outros cantos”
tado pelo EIV não se limita apenas ao plano do meio ambiente natural. (STEFANO, 2009, p. 32-35)
Para complementar, Cassilha (2005, p. 53) entende que o EIV será exe-
cutado de forma a contemplar a análise dos efeitos positivos e negativos A pequena cidade localizada no sertão nordestino, que hoje con-
do empreendimento ou atividade na qualidade de vida da população ta com aproximados 81.497 habitantes tem sido vítima da expansão
residente na área e em suas proximidades. Tal estudo inclui a análise industrial, no caso da indústria do agronegócio, eis que este vem se
do incremento populacional na vizinhança, a taxa de impermeabilização instalando no Município sem planejamento urbanístico algum e causa
do terreno, o impacto sobre a paisagem natural ou construída, impactos contrastes físicos, sociais e econômicos. A volatilidade do agronegócio,
sobre o comércio e serviços locais ou sobre a produção de pequenos bem como dos investimentos estrangeiros no país, devem ser fatores de
agricultores, a sobrecarga nos equipamentos públicos e na infra-estru- peso a serem analisados pelo estudo para o licenciamento ambiental,
tura de saneamento, no sistema viário e na demanda por transporte viabilizador da atividade industrial no Município.
coletivo. É latente o risco social e econômico que as atividades do agrone-
No entanto, ainda que o artigo 36 do Estatuto da Cidade disponha gócio podem acarretar para a modesta cidade de Balsas. Basta que o
sobre a necessidade de elaboração de estudo prévio para a instalação clima não ajude ou até mesmo que o comércio e exportação de grãos
de empreendimentos no plano municipal e remeta esta tarefa regula- estejam em declínio para que os grandes agricultores e até mesmo os
mentar ao poder legislativo do Município, entende-se que a amplitude investidores estrangeiros debandem do Município deixando-o com toda
dos temas do estudo podem não atingir, de forma eficaz, a totalidade uma malha de pessoas ociosas e comércio à beira da falência.
dos efeitos causados pelos empreendimentos industriais. Argumenta-se Assim, como complemento ao EPIA ao EIV, deve ser criado um me-
isto, mormente quando visualizados todos os efeitos sociais que serão canismo que avalie o impacto econômico e social que o empreendimen-
potencialmente desarmonizados pela atividade industrial no plano mu- to industrial acarretará para o Município. Referido impacto pode ser
nicipal. Tais efeitos ultrapassam o plano físico do meio-ambiente e atin- uma das causas de exclusão social e caos nas cidades, uma vez que a
gem também o plano social, econômico e cultural da população. instalação da atividade industrial desmedida no plano urbanístico do
Um exemplo facilmente encontrado, além do já citado da cidade Município pode causar contrastes sociais e econômicos irreversíveis.
de Bangalore na Índia, é a cidade de Balsas, localizada no estado do Portanto, deve ser criado um Estudo Prévio de Impacto Urbano
Maranhão, no sertão nordestino. Recentemente empresas do agrone- (EPIU) capaz de analisar os aspectos econômicos, sociais e culturais
gócio, principalmente investidores estrangeiros, têm se instalado na ci- não vislumbrados no EPIA e no EIV, como forma concreta de evitar o
dade para a compra de terras. Estima-se, segundo a reportagem da já conhecido êxodo do campo para grandes cidades, o novo êxodo de
Revista Exame n.° 13 de 2009, que foram investidores estrangeiros pequenas cidades para grandes centros, e a possível marginalização de
pessoas menos qualificadas profissionalmente oriundas destas localida-
15 Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/AnaPaulaMendesSimõesPe- des (campo e pequenas cidades) para o plano do município, com o fim
reira.pdf> Acesso em 27 de agosto de 2011. de que seja combatida a violência, o tráfico de drogas, os assaltos e
16 Disponível em: <http://www.conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/AnaPaulaMendesSimõesPe- demais fenômenos sociais originários da segregação social.
reira.pdf> Acesso em 27 de agosto de 2011.

1016 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1017
Tal instrumento jurídico, de origem legislativa do Poder Municipal, Referências
deve constituir-se de um estudo profundo e específico concluído por
um amplo e circunstanciado relatório que irá determinar o local de ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro: Editora Lúmen
instalação, bem como a possibilidade de vedar determinada atividade Júris, 2005.
industrial no Município quando esta atividade não for saudável para ARISTÓTELES. Política. Trad. de Carlos Garcia Gual. Madrid: Alianza, 2000.
o plano urbanístico da cidade. Assim, a expansão industrial não fica BLAINEY, Geoffrey. Uma breve história do mundo. Versão brasileira. São Paulo:
somente vinculada às atividades potencialmente poluidoras e desar- Fundamento, 2007.
monizadoras do meio ambiente no plano urbanístico da cidade, mas CASSILHA, Gilda Amaral. Auditoria em obras públicas: um olhar a partir do
também ficará vinculada ao estudo da atividade econômica do empre- Estatuto da Cidade. Curitiba, 2005.
endimento para melhor planejar os efeitos desta atividade no plano COULANGES, Fustel de. A cidade antiga. São Paulo : Martins Fontes, 1998.
municipal. CRUZ, Rita de Cássia Sapia Alves da. A Cidade e os seus ruídos, in A cidade e
seu estatuto. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2005.
FERNANDES, Paulo Victor. Impacto Ambiental doutrina e jurisprudência. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.
5. Conclusão
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade comentado: Lei
10.257/2001: Lei do Meio Ambiente Artificial. São Paulo: Editora Revista dos
A expansão industrial desmedida tem como alvo a exclusão social e
Tribunais, 2005.
o caos na cidade. Isto porque o crescimento industrial exerce em todos
FRIEDMAN, Thomas L. (2007). O Mundo é Plano - Uma história breve do século
os locais onde se instala uma forte influência econômica que força a ci-
XXI. Edição actualizada e ampliada, 7ª edição. Lisboa. Actual Editora.p. 354
dade a suportar uma carga de investimentos em infra-estrutura urbana KIRZNER, Vania. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano. Estatuto da Cida-
nunca antes planejado. Além disso, a instalação e expansão industrial de (Lei nº 10.257/2001). http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3899.
em grandes centros são responsáveis pelo êxodo no campo e pelo êxo- Acesso em: 16 jun. 2009.
do urbano de pequenas localidades. Esta fuga de pessoas do campo e MACHADO, Paulo Afonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: Ma-
de pequenas localidades é o termo inicial para a segregação social de lheiros Editores., 2003.
trabalhadores menos qualificados profissionalmente, que acabam, mui- MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Impacto Ambiental aspectos da Legislação brasilei-
tas vezes, marginalizados e influenciados pela violência e seus consectá- ra. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.
rios. PLATÃO. República. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de
Muito embora a legislação urbana preveja dentro de seus instru- Enrico Corvisieri.
mentos jurídicos requisitos necessários para o licenciamento ambiental RECH, Adir Ubaldo. A exclusão social e o caos na cidade. Caxias do Sul, RS:
para a instalação de empreendimentos fabris, nota-se que ainda existe Educs, 2007.
uma lacuna no que tange os elementos não físicos do meio ambiente SERRANO, Jonathas. O movimento corporativo na França medieval e a idéia
ligados a sócio-economia e cultura. A expansão industrial não está so- da independencia na America — theses apresentadas no concurso para o pro-
mente atrelada às atividades potencialmente poluidoras e desarmoniza- vimento da cadeira de história do Collegio Pedro II. Rio de Janeiro: O Pharol.
doras do meio ambiente no plano urbanístico da cidade, mas também é 1926.
vinculada as questões de atividade econômica que geram efeitos sociais SILVA, José Afonso. Direito Ambiental Constitucional. São Paulo: Malheiros Edi-
no plano da cidade. Assim, é latente a criação de um mecanismo que ex- tores, 2004.
plore minuciosamente a atividade econômica do empreendimento para SOARES, Lucélia Martins. Estudo de Impacto de Vizinhança, In Estatuto da ci-
que sejam analisados os seus efeitos sócio-econômicos futuros, como dade (Comentários a Lei 10.257/2001). São Paulo: Malheiros Editores, 2003.
requisito indispensável para a obtenção do licenciamento ambiental de STEFANO, Fabiane. O sertão agora é assim. Revista Exame, São Paulo, Edição
instalação e expansão industrial. 947, n.º 13, Julho. 2009.

1018 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1019
Estatuto da Cidade x Gestão
Urbano-Ambiental x Análises Integradas
Rosane Zottis Almeida1
Maria do Carmo Gualdi Lebsa2
Liamara Nique Liberman3
Ricardo Kerber4

Resumo: Dentre as diversas diretrizes gerais constantes no


Estatuto da Cidade para implementar a política urbana e
garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da ci-
dade em prol do bem coletivo, da segurança, do bem-estar
dos cidadãos e do equilíbrio ambiental (natural e antrópico)
o Município de Porto Alegre vem apresentar, em especial,
a diretriz que trata da ordenação e controle do uso do solo.
Para consecução deste objetivo de ordenar e controlar o
uso do solo será apresentado um dos instrumentos da po-
lítica urbana talvez mais difundidos entre os agentes públi-
cos e privados: o Plano Diretor. É neste instrumento que
se verifica a participação mais intensa da população, seja
na sua elaboração, no seu acompanhamento, seja na sua
revisão; através dos conselhos municipais ou comissões
técnicas com a participação de representantes de vários
segmentos da população, do empresariado e das diferen-
tes esferas do governo, nos níveis local, regional e nacional.
Nós observamos, nesta nova ordem Jurídico-Urbanística e
após oito anos de Estatuto da Cidade que a instituição de
comissões técnicas através de decretos contendo definição
dos participantes, dos prazos, dos documentos técnicos a
1 Arquiteta e Urbanista, formada pela Uniritter, lotada no Gabinete do Prefeito de Porto Alegre,
exercendo os cargos de Assessora Especialista e Presidente da Comissão de Análise Urbanística e
Gerenciamento – CAUGE; da Comissão Técnica de Análise e Aprovação de Parcelamento do Solo –
CTAAPS; da Comissão de Análise e Aprovação da Demanda Habitacional e Prioritária – CAADHAP
e da Comissão de Análise Urbanística e Ambiental das Estações de Rádio Base – CAUAE.
2 Engenheira Civil,formada pela PUCRS(Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
doSul),lotada no Gabinete do Prefeito de Porto Alegre exercendo cargo de Secretária Executiva da
Comissão de Análise e Aprovação da Demanda Habitacional Prioritária – CAADHAP. E-mail:lebsa@
gp.prefpoa.com.br
3 Arquiteta e Urbanista,formada pela UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), lotada
na Secretaria do Planejamento Municipal de Porto Alegre, onde exerceu os cargos de Chefe da Unida-
de de Viabilidades e Edificações e Coordenadora de Projetos Urbanos. liamara@spm.prefpoa.com.br
4 Arquiteto e Urbanista, formado pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, lotado na Secre-
taria do Planejamento Municipal de Porto Alegre/RS e Secretário-Executivo da Comissão Técnica
de Análise e Aprovação de Parcelamento do Solo – CTAAPS nomeado pelo Gabinete do Prefeito.
E-mail: kerber@spm.prefpoa.com.br.

1020 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1021
serem apresentados e de todas as etapas de análise de um instalado em 3 de março de 1939, pelo prefeito José Loureiro da Silva,
empreendimento representaram um enorme avanço na ges- como uma comissão de caráter consultivo “para a qual apelarei nas ho-
tão urbanística, mas ainda há vários aspectos que podem e ras difíceis de minha administração, no que concerne ao bem-estar da
devem ser melhorados.
De uma forma geral estas melhorias devem ocorrer através
coletividade porto-alegrense” e uma experiência incipiente de trabalho
da qualificação dos recursos humanos e da disponibilidade integrado de comissões através da CPS ( Comissão de Parcelamento do
de recursos tecnológicos para que as tomadas de decisão Solo) e CVEA ( Comissão de Viabilidade de edificações e atividades),
em uma comissão técnica ou conselho municipal sejam mais As comissões existentes e o Conselho do Plano Diretor são vincula-
um resultado da razão do que resultado da emoção. As de- dos à SPM ( Secretaria de Planejamento Municipal)
cisões devem estar mais amparadas com base nos fatos, O Conselho do Plano avaliava empreendimentos e parcelamentos do
dados e números e menos nas convicções de cada um.
Palavras-chave: Direito Urbano, Direito Ambiental, Estatu-
solo quase que restritos ao parecer técnico das comissões e estas analisa-
to da Cidade, Gestão Urbano-Ambiental, Plano Diretor vam os projetos de forma pontual. A proposta circulava em sequência por
cada órgão municipal e os pareceres eram exarados considerando apenas
o objeto específico de análise da secretaria: urbano, ambiental, circulação
Introdução viária, drenagem etc. O parecer final da comissão era uma compilação de
todos os pareceres setoriais, que haviam sido emitidos sem a discussão
Este trabalho tem o objetivo de apresentar a nova proposta de trabalho conjunta necessária á compatibilização dos mesmos.
da Prefeitura de Porto Alegre para viabilizar a implementação de princípios A partir de 2003, já na vigência dos princípios do Estatuto da Cidade
básicos do Estatuto da Cidade, focando a Gestão Urbano-Am­biental. e do plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental, temos uma
Com a promulgação da Lei 10257/01, que trouxe um conjunto ino- linha de corte, que leva o Município a repensar suas formas de trabalho.
vador de instrumentos de intervenção, ordenamento, planejamento e Buscou-se conhecer experiências positivas que pudessem ser apli-
gestão urbano-ambiental e territorial, o Poder Público obrigou-se a pro- cadas à sua realidade, adaptando-as á estrutura administrativa e ás pe-
curar caminhos que facilitassem a implementação das diretrizes e instru- culiaridades locais.
mentos constantes nesta nova proposta de avaliação e proposição do A cidade de São Paulo trabalhava na época com uma comissão inte-
desenvolvimento urbano ambiental das cidades. grada de análise de empreendimentos, que envolviam órgãos municipais
e estaduais, bem como entidades ligadas à construção civil.
Estrutura do trabalho: Após a vinda da Coordenadora da comissão para palestra sobre a
1 - Histórico finalidade e trabalho desta comissão e participação de integrantes da
2 - Comissões e objetivos PMPA em reunião da mesma comissão para entendimento da dinâmica
3 - Estruturas das Comissões e do Conselho de trabalho, formou-se um grupo para pensar uma experiência seme-
4 - Pontos positivos lhante, que pudesse ser adequada á estrutura administrativa e á cultura
5 - Avanços necessários de participação popular existente na cidade.
6 - Conclusão Desta discussão conjunta, chegou-se à conclusão de que o geren-
7 - Bibliografia ciamento desta nova forma de trabalho deveria ser de responsabilidade
do Gabinete do Prefeito, visto que deveria integrar um número maior de
participantes, em uma decisão técnica-política, de uma nova forma de
1 - Histórico: avaliação dos empreendimentos da cidade.
Destacamos aqui a importância da decisão política na mudança da
Porto Alegre, cidade vanguarda nas soluções das questões urbanas, forma de trabalho, que ajudou a vencer resistências iniciais por parte de
já possuía desde 1939 o Conselho do Plano Diretor. Este Conselho foi alguns setores.

1022 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1023
Este grupo minutou um Decreto, embrião da primeira comissão, in- Da mesma forma que na comissão de parcelamento do solo, foi rea-
tersecretarias, que envolvesse todos os entes públicos vinculados à aná- lizada uma ampla discussão com todos os entes envolvidos na avaliação
lise das questões de parcelamento do solo. dos grandes empreendimentos e composta a nova comissão, através do
Decreto 14826/05.
Objetivos:
2 - Comissões e objetivos: A CAUGE busca implementar os objetivos da política urbana, quan-
to à garantia do direito a cidades sustentáveis, a gestão democrática
Foram identificados 10 integrantes, entre secretarias e departamen- através da participação da população e de entidades representativas de
tos envolvidos na análise e deliberações sobre parcelamentos do solo. diversos segmentos, à oferta de equipamentos urbanos e comunitários,
Após longa discussão, envolvendo todos os possíveis integrantes, sobre transporte e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades
os objetivos, benefícios desta análise integrada tanto para o Poder Pú- da população, controle da ordenação do uso do solo, justa distribuição
blico, como para o empreendedor e a comunidade do entorno do em- dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização, prote-
preendimento, foi promulgado o Decreto 14203/03 que cria a CTAAPS ção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e cultural,
(Comissão Técnica de Análise e avaliação de Parcelamento do Solo). todos objetivos definidos no Estatuto da Cidade.
Objetivos: A Gestão Urbano-Ambiental, que cumpra às legislações urbanísti-
Esta nova forma de pensar a cidade através da avaliação integrada, cas e ambientais que compõem a nova ordem jurídica é buscada atra-
buscava atender os objetivos da Política urbana contidos na Constituição vés da avaliação integrada entre as diversas secretarias e departamen-
Federal, quanto a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais tos, permitindo desta forma que em um mesmo empreendimento, não
da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes e do Licenciamento prevaleça um enfoque em detrimento de outro. A discussão conjunta,
Ambiental, como instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. onde as questões de desenvolvimento, meio ambiente, infra estrutura
Cada proposta de parcelamento do solo passou a ser analisada não disponível, circulação viária, disponibilidade de equipamentos urbano
como uma célula isolada, mas como parte integrante de um tecido ur- comunitários e impactos sociais e econômicos, oportuniza a inserção do
bano, onde todos os olhares, urbanos, ambientais, econômicos, sociais empreendimento, parcelamento do solo ou equipamento com a redu-
etc eram discutidos em conjunto de forma a integrar todas as visões e ção dos impactos e as mitigações e compensações necessárias.
obter um resultado onde a ordem pública e o interesse social que regu- A participação da população para uma gestão urbano-ambiental,
lam o uso da propriedade urbana atingissem o bem estar dos cidadãos princípio também do Estatuto da Cidade, é viabilizada através das au-
e o equilíbrio ambiental, conforme disposto no Art 1º do Estatuto da diências públicas definidas em grande parte dos empreendimentos que
Cidade, em suas diretrizes gerais. tramitam nestas comissões, ou nas representações contidas nos Con-
Após dois anos de atuação da comissão de parcelamento do solo, selhos onde também são avaliados os empreendimentos geradores de
onde os resultados positivos já podiam ser avaliados, e a nova expe- maiores impactos.
riência possibilitava um acúmulo de conhecimento da nova forma de Cada secretaria e departamento efetuavam sua avaliação, desco-
trabalho, partiu-se para a criação da comissão que faria a avaliação dos nectada das interferências com as demais áreas, ficando desta forma, os
empreendimentos de edificação, que causassem maior impacto na vida impactos minimizados por não serem vistos de uma forma global.
da cidade, seja em sua paisagem, na polarização de pessoas ou veículos Os ônus e bônus decorrentes do empreendimento têm uma distri-
gerada, ou na poluição ambiental decorrente. buição mais justa via participação da comunidade, que conhece melhor
Estes empreendimentos estavam dispostos no Art 61 da LC 434/99, do que ninguém suas carências podendo apontar medidas como forma
Plano Diretor vigorante à época da criação da CAUGE ( Comissão de de compensação dos impactos não mitigados.
Análise Urbana e Gerenciamento), e Art 61 da LC 434/99 modificada Tendo em vista o avanço das tecnologias e as legislações regulató-
pela LC 646/10 ( Plano Diretor hoje vigente). rias, em 2007, valendo-se de toda experiência acumulada com o traba-

1024 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1025
lho das comissões integradas, foi criada a CAUAE, (Comissão de Análise 3 - Estruturas das Comissões e do Conselho
Urbanística e Ambiental das Estações de Rádio Base) através do Decre-
to 15.542/07.
Objetivos:
A partir de 2002, através de Decreto, o Município começou a
analisar de forma mais criteriosa as instalações de rádio bases e de-
mais equipamentos, tais como, rádio, televisão, telefonia e teleco-
municações em geral, autorizados e homologados pela Agência Na-
cional de Telecomunicações (ANATEL), visando a compatibilizar com
as normas de saúde e ambientais; observar o princípio da precaução
e estabelecer normas urbanísticas aplicáveis, de acordo com o inte-
resse local. Em 2007, foi instituída a CAUAE nos moldes das demais
comissões.
Em 2009, avaliando a importância social do Programa Minha Casa
Minha Vida como forma de viabilizar habitação à um significativo seg-
mento da sociedade, e minimizar um dos problemas cruciais das cida-
des brasileiras, o déficit habitacional, compatibilizado com o meio am-
biente.
O Município de Porto Alegre valeu-se mais uma vez da experiência
positiva do trabalho das comissões integradas e implementou nova am- Discriminação dos órgãos e entidades
pla discussão para criação de uma comissão específica, que viabilizasse
os empreendimentos vinculados á este programa. GP – Gabinete do Prefeito
Através do Decreto 16477/09 é criado a CAADHAP (Comissão de SPM – Secretaria de Planejamento Municipal
Análise e Aprovação da Demanda Habitacional Prioritária). SMAM – Secretaria Municipal do Meio Ambiente
O acúmulo das experiências de trabalho das outras comissões ( CTA- SMOV – Secretaria Municipal de Obras e Viação
SMED – Secretaria Municipal de Educação
APS, CAUGE, CVEA, CAUAE) permitiu avançar de forma significativa na
SMU – Secretaria de Mobilidade de Urbana (SMT/EPTC)
proposta desta nova comissão.
DEMHAB – Departamento Municipal de Habitantes
Objetivos:
SMS – Secretaria Municipal da Saúde
A importância para a sociedade do Programa Minha Casa Minha
DEP – Departamento de Esgotos Pluviais
Vida, requeria uma avaliação integrada e que englobasse todas as eta-
DMAE – Departamento Municipal de Água e Esgotos
pas de aprovação dos empreendimentos vinculados á este programa,
PGM – Procuradoria – Geral Municipal
para que o gerenciamento do processo acontecesse em todas as eta-
SMIC – Secretaria Municipal da Produção, Industria e Comércio
pas.
SMC – Secretaria Municipal da Cultura
Desta forma a CAADHAP trabalha integrada com todos os segmen- SMF – Secretaria Municipal da Fazenda
tos envolvidos desde a emissão da DM ( Declaração Informativa das SMGAE – Secretaria Municipal de Gestão e Acompanhamento Estratégico
Condições Urbanísticas de ocupação do Solo) até a entrega da Carta de SEACIS – Secretaria Especial de Acessibilidade e Inclusão Social
Habitação. RP – Região de Planejamento
OP – Orçamento Parcipativo

1026 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1027
CMDUA – Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental – Criação de sistema de monitoramento dos Termos de Compromis-
CEVEA – Comissão Técnica de Análise de Viabilidade de Edificações e Atividades so firmados com o Município;
CTAAPS – Comissão Técnica de Análise e Aprovação de Parcelamento do Solo – Qualificação dos integrantes do Conselho;
CAUGE – Comissão de Análise Urbanística e Gerenciamento – Qualificação da área técnica quanto à participação popular;
CAUAE – Comissão de Análise Urbanística e Ambiental das Estações de Rádio Base – Criação de sistema de monitoramento dos impactos após a im-
CAADHAP – Comissão de Análise e Aprovação da Demanda Habitacional Prioritária plantação do empreendimento;
SINDUSCON/RS – Sindicato das Indústrias da Construção Civil do Rio Grande – Canalização de medidas compensatórias de grandes empreendi-
do Sul mentos para as áreas de implantação dos empreendimentos Minha Casa
ASBEA – Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura Minha Vida ou para as AEIS (Áreas Especiais de Interesse Social).
SERGS – Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul
CREA/RS – Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia
AGADIE – Associação Gaúcha dos Advogados do Direito Imobiliário Empresarial 6 - Conclusão:
OAB/RS – Ordem dos Advogados do Brasil
STICC – Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção Civil Após oito anos da criação da primeira comissão focada exclusiva-
SINDIMÓVEIS – Sindicatos dos Corretores de Imóveis mente na integração entre os diversos agentes que participam mais
IPES – Instituto de Planejamento e Estudos Sócio-Ambientais efetivamente das transformações da cidade, podemos afirmar que,
ABES/RS – Associação Brasileira de Engenharia Sanitária Ambiental vencidas as resistências iniciais quanto às modificações na forma de tra-
UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul balho e rompido o paradigma de que trabalhando de forma integrada
METROPLAN – Fundação Estadual de Planejamento Metropolitano e Regional as decisões técnicas de cada secretaria ficariam reduzidas, as comissões
CEF – Caixa Econômica Federal mostraram-se a forma mais viável, dinâmica e democrática de pensar e
IAB/RS – Responsável Técnico, Empreendedores, Proprietários e outras Entidades decidir sobre os empreendimentos da cidade, trazendo qualidade física,
social e ambiental ao desenvolvimento da mesma, possibilitando que as
decisões administrativas sejam cada vez mais integradoras, com partici-
4 - Pontos positivos: pação nas decisões relativas à ocupação e a transformação do espaço
urbano, mediante consultas ou audiências públicas dos empreendimen-
– Avaliação de forma integrada dos empreendimentos da cidade; tos de maior impacto.
– Possibilidade de compreensão dos pontos positivos e negativos de A gestão urbano-ambiental passou a ter uma equidade de ações,
cada empreendimento de forma global; com uma visão global do território da cidade.
– Definição de medidas mitigadoras e compensatórias integradas;
– Redução dos prazos de análises;
– Conhecimento das regiões da cidade com os empreendimentos REFERÊNCIAS
aprovados e em análise e suas interfaces;
http://www2.portoalegre.rs.gov.br/spm;
LF 10.257/01- Estatuto da Cidade;
5 - Avanços necessários: LC 434/99 – Plano Diretor de Porto Alegre (PDDUA);
Decreto 16.836/10 – Conselho Municipal (CMDUA);
– Espacialização de todos os empreendimentos que tramitam nes- Decreto 14826/05 – Comissão Técnica (CAUGE);
tas comissões com a utilização mais intensiva de softwares apropriados, Decreto 14203/03 – Comissão Técnica (CTAAPS);
em especial, o geoprocessamento; Decreto 12925/00 – Comissão Técnica (CEVEA);

1028 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1029
Decreto 15542/07 – Comissão Técnica (CAUAE);
Decreto 16477/09 – Comissão Técnica (CAADHAP).
Congresso Comemorativo aos
10 anos do Estatuto da Cidade
II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
10
CAPÍTULO X

Planejamento Urbano e Projetos


de Revitalização

1030 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade


A responsabilidade socioambiental na
preservação do ambiente urbano
Adir Ubaldo Rech1
Adivandro Rech2

Resumo: Os loteamentos fechados, se devidamente previs-


tos no Plano Diretor, situados em zoneamentos adequados,
com seus entornos dotados de macrossistema viário, bem
como com espaços para equipamentos institucionais e de
lazer e com acesso a toda a população, além de legais, são
instrumentos de sustentabilidade socioambiental de uma ci-
dade, constituindo-se em significativa contribuição da classe
alta à qualidade de vida da presente e futuras gerações
Palavras-chave: Loteamentos fechados. Plano Diretor. Pre-
visão legal. Sustentabilidade socioambiental. Contribuição
da classe alta a presente e futuras gerações.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, têm surgido, em todas as cidades brasileiras,


os denominados loteamentos fechados, parcelamentos do solo diferen-
ciados que valorizam e preservam as exuberantes belezas naturais, con-
templam imensas áreas verdes, respeitam a paisagem e têm uma preo-
cupação com a preservação ambiental e ecológica, buscando priorizar a
qualidade de vida para a presente e futuras gerações.
O custo desses loteamentos é muito elevado o que inviabiliza o
acesso a eles pelas classes menos abastadas, e tudo isso associado ao
fato de que a estrutura viária e áreas de lazer locais ficam restritas aos
moradores, tem gerado polêmicas e divergências quanto à legalidade e
ao seu papel numa cidade para todos.
A discussão sobre esses loteamentos derivou para um discurso mais
ideológico do que propriamente uma análise da sua contribuição so-

1 Graduado em Filosofia e Direito. Mestre e Doutor em Direito público pela Universidade Federal
do Paraná. Pós-Doutorando em Direito urbanístico pela Universidade de Lisboa, Portugal. É pro-
fessor de Direito urbanístico no Programa de Mestrado em Direito ambiental da Universidade de
Caxias do Sul. Autor de livros de Direito urbanístico e relator de vários Planos Diretores, entre eles,
o do Vale dos Vinhedos de Bento Gonçalves e o de Gramado, no Rio Grande do Sul.
2 Procurador do Município de Caxias do Sul. Mestre em Direito ambiental. Professor e autor de
livros sobre Direito urbanístico. Atuou na elaboração do Plano Diretor de Caxias do Sul.

1032 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1033
cioambiental e legal. Nesse sentido, muitos têm afirmado que são lo- natureza diversa. Nos condomínios há vários titulares do direito da mes-
teamentos ilegais e que se trata de privilégio de ricos, que não pode ma propriedade, que não foi objeto de parcelamento, mas apenas de
ser tolerado pelo restante da população de uma cidade. Ocorre que a ocupação do solo, não estando obrigados, portanto, à submissão à lei
sustentabilidade socioambiental tem um custo para as cidades, e esse dos loteamentos, enquanto nos loteamentos fechados, há parcelamento
custo não é apenas de responsabilidade do poder público, mas pode e do solo, abertura de ruas de acesso, espaços de lazer comum e individu-
deve ser suportado em proporções bem maiores pela classe alta, deso- alização da propriedade.
nerando, assim, as classes mais pobres, bem como economizando re- Isso nos remete à necessidade de analisarmos os loteamentos fe-
cursos tributários para políticas de inclusão social. chados à luz da Constituição Federal de 1988, no que se refere à função
Diante disso, nos propomos a fazer uma reflexão racional, científica, le- social da propriedade, ao Estatuto da Cidade, especialmente no que
gal, , sem ignorar, contudo, as abordagens de cunho ideológico e já citadas dispõe o art. 2°, inciso I, que assegura o direito a uma cidade ambiental-
sobre o importante papel dos loteamentos fechados, como instrumentos mente sustentável, buscando cumprir o que determina a CF/88, quando
de sustentabilidade e responsabilidade socioambiental de uma cidade. assegura, no seu art. 225, um ambiente ecologicamente equilibrado a
toda a população, a observância dos princípios de Direito urbanístico e
a competência dos municípios para a elaboração de seu Plano Diretor.
LOTEAMENTOS FECHADOS E SUA LEGALIDADE A propriedade tem uma função social, e a função social da proprie-
dade urbana é definida pelo Plano Diretor, em atenção às regras de
Os denominados loteamentos fechados, ou loteamentos condo- ocupação que assegurem uma cidade sustentável.
miniais, são parcelamentos do solo, em que o microssistema viário de Referindo-se a isso, Freitas ensina:
acesso às moradias (áreas verdes, de lazer e de preservação ambiental),
apesar de ser área pública, é destinado especificamente aos moradores O problema é conseguir detectar, no caso em estudo, se esses novos
desses referidos loteamentos, não sendo permitido o acesso universal à tipos de empreendimentos realizam uma função social da proprieda-
toda a população dessas estruturas de caráter local. de e em que intensidade, e nesse caso, elucidar se os mesmos devem
receber uma legislação específica.3
As questões aqui postas são: “Como os loteamentos fechados po-
dem ser legalizados?” e “São eles ou não instrumentos de responsa-
Não há dúvidas de que esses loteamentos fechados promovem uma
bilidade social para assegurar uma cidade sustentável e um ambiente
maior qualidade de vida, garantem o meio ambiente ecologicamente
ecologicamente equilibrado não apenas aos moradores específicos dos
equilibrado e contribuem para a sustentabilidade ambiental da cidade.
referidos loteamentos, mas se beneficia toda a população?”
No que se refere ainda ao direito a uma cidade sustentável, garantem
É preciso, inicialmente, dizer que existem divergências quanto à le-
moradia de qualidade, segurança, lazer, etc., motivos suficientes, que
galidade e à natureza jurídica desse tipo de loteamento. Alguns defen-
serão objeto da presente reflexão, de modo que se possa concluir que a
dem que à luz das exigências da legislação federal, Lei 6.766/79, com a
função social da propriedade foi contemplada.
redação que lhe deu a Lei 9.785/99, não há como se admitirem lotea-
No entanto, relativamente ao interesse e ao contexto global da ci-
mentos fechados, pois a citada lei elenca uma série de exigências, como
dade, a construção de loteamentos fechados gera alguns problemas que
a obrigação de abertura de vias públicas, implantação de infraestrutu-
o Direito urbanístico necessita resolver, para torná-los legais, mas mais
ra, criação de áreas verdes e destinação de áreas para implantação de
do que isso transformá-los em instrumentos de responsabilidade socio-
equipamentos públicos e comunitários de acesso universal à população
ambiental da classe mais abastada. Na realidade, não geraria nenhum
de uma cidade. Portanto, não se enquadrariam no que dispõem as nor-
problema se todas as cidades tivessem um Plano Diretor que definisse,
mas gerais da legislação federal.
em todos os espaços urbanos e de potencial expansão urbana, o zone-
Porém, os loteamentos fechados também não podem ser enqua-
drados no instituto do condomínio de que trata o Código Civil, pois tem 3 FREITAS, Willian de Souza apud in DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório.
Direito urbanístico e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 299.

1034 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1035
amento, o macrossistema viário, as áreas destinadas à construção de Diretor contemple zoneamentos potenciais para esse tipo de empreen-
equipamentos para serviços públicos, como escolas, creches, Unidades dimento. Também é preciso que assegure, nos seus limites, a estrutu-
Básicas de Saúde, bem assim espaços destinados a atividades econômi- ração de um sistema viário macro, típico de cidade de acesso universal
cas de sustentabilidade da região, etc. e de escoamento do trânsito, bem como espaços para áreas de lazer,
É necessário que, antes de se definir espaços da cidade para lotea- com equipamentos institucionais, como: escolas, Unidades Básicas de
mentos fechados, as vias do macrossistema viário e de escoamento do Saúde, etc. destinados ao atendimento de toda a população.
trânsito devem estar previstas no Plano Diretor, assim como os espaços Nesse sentido, impõe-se a observância de um dos princípios de Di-
destinados aos serviços públicos com vistas a atender àquela determi- reito urbanístico, consolidado pelo Estatuto da Cidade, qual seja, o da
nada região de expansão urbana. É necessário que, na definição da es- sustentabilidade, que assegura estrutura urbana, transporte, serviços
trutura macro das cidades, o Plano Diretor assegure acessibilidade, mo- públicos, áreas de lazer e trabalho às presentes e futuras gerações. No
bilidade e serviços básicos sustentáveis a toda a população e em todos que se refere ao trabalho, o princípio da sustentabilidade impõe tam-
os espaços da cidade. bém que sejam reservados, nesses zoneamentos, espaços para ativida-
Portanto, os loteamentos fechados devem ficar restritos aos espaços des econômicas necessárias ao atendimento do potencial de densidade
que não são ocupados pela macroestrutura da cidade, buscando cumprir demográfica previsto no Plano Diretor para cada região.
um dos princípios de Direito urbanístico de sustentabilidade, que prevê a Essas atividades econômicas, além de significar trabalho, espe-
garantia de infraestrutura urbana, transporte, serviços públicos e lazer às cialmente para os moradores do entorno, evitariam deslocamentos da
presentes e futuras gerações. Prevista e respeitada a macroestrutura da população local para outros lugares da cidade, o que contribuiria para
cidade no Plano Diretor, que será sempre de acesso a toda a população, amenizar o já caótico sistema de transporte de nossas cidades.
o parcelamento do solo, na forma de loteamentos fechados, é perfeita- A razoabilidade deve levar em conta o tamanho e o número des-
mente legal, pois tratará apenas da microestrutura local, cujo acesso, ge- ses loteamentos em uma única região, buscando evitar problemas de
ralmente, se restringe aos moradores do loteamento, pois não são equi- sustentabilidade tanto para os moradores dos referidos loteamentos
pamentos de cidade, mas de unidade de vizinhança. quanto para o restante da população da cidade. O ideal é que esses lo-
Afirma Fernandes: “Para a propriedade urbana atender sua função social teamentos fechados sejam bem distribuídos em vários espaços urbanos,
é preciso que exista um grau de razoabilidade entre a intensidade de seu uso buscando a sustentabilidade, inclusive, dos demais espaços destinados
e o potencial de desenvolvimento das atividades de interesse urbano.” 4 a outros tipos de loteamento e atividades econômicas.
Para reforçar o raciocínio que estamos construindo, trazemos a afir- Questiona-se, ainda, quanto à legalidade, a aplicação das normas
mativa de Freitas: federais de parcelamento do solo, as quais são, na realidade, regras ge-
rais que deixam em aberto as adequações locais. Nesse sentido, afirma
O direito de propriedade é garantido constitucionalmente no Bra- a Lei Federal 9.785/99, no § 5° do seu art. 2°,6 quando estabelece que
sil, desde que esta atenda a sua função social, ou seja, o direito de a infraestrutura básica deva compreender os equipamentos urbanos de
propriedade constitucionalmente é garantido apenas enquanto esta
água, esgoto, iluminação pública, energia elétrica, vias de circulação, o
atenda a sua função social, não prejudicando nem interferindo no in-
teresse maior da comunidade (povo) ou no interesse público.5 que sempre está presente nos referidos loteamentos, sendo que essa
estrutura básica, na forma do § 4° do referido artigo, deve atender às
Para que não haja interferência no interesse maior da comunidade dimensões e aos índices urbanísticos definidos pelo Plano Diretor ou por
ou de uma cidade ou no potencial de desenvolvimento das atividades de lei municipal da zona em que se situa.
interesse urbano de caráter universal, a autorização para a criação des-
6 Lei Federal 9.785/99, art. 2o. [...]; § 4o. Considera-se lote o terreno servido de infra-estrutura
ses loteamentos fechados prescinde, necessariamente, de que o Plano básica cujas dimensões atendam aos índices urbanísticos definidos pelo plano diretor ou lei municipal
para a zona em que se situe; § 5o. Consideram-se infra-estrutura básica os equipamentos urbanos de
4 FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 53. escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto sanitário e abastecimento de
5 FREITAS apud DALLARI; DI SARNO; op. cit., p. 298. água potável, e de energia elétrica pública e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não.

1036 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1037
Na realidade, os loteamentos fechados devem observar a norma- já referido acima, que traz como pressuposto também a necessidade
tização cogente, prevista no Plano Diretor, no que se refere à observa- de ser assegurado, nos Planos Diretores, o saneamento ambiental. O
ção de normas urbanísticas para a garantia de uma cidade sustentável segundo é um princípio do Direito urbanístico denominado “a justa dis-
e também as normas de Direito civil e especificamente a Lei Federal tribuição dos benefícios e ônus derivados da atuação urbanística”, que,
4.591/64. segundo Rech,9 “é o princípio que afirma que a urbanização deve ser
Nesse sentido, afirma Freitas: solidária, buscando reverter-se benefícios a toda a coletividade e não
apenas a alguns”.
Assim, o loteador que pretende lotear uma gleba de terra tanto para Ao analisarmos, à luz desses dois princípios, a contribuição socio-
realizar um loteamento convencional, como um loteamento fechado ambiental dos loteamentos fechados, precisamos ter presente que os
(embora este não possua normatização própria) deverá subordinar mesmos são planejados com abundantes espaços verdes, baixa taxa de
esse empreendimento às normas civis e às normas urbanísticas exis-
ocupação e índices construtivos, o que por si já assegura sustentabilida-
tentes. Colocado de outro modo, o loteador deverá adequar seu em-
preendimento tanto à lei 6.766/79 como às demais normas urbanís- de ambiental. Esses loteamentos (bem distribuídos nos vários espaços
ticas editadas pelo Município, Estados-membros e União, referentes urbanos da cidade) servem como áreas de permeabilização da água das
ao empreendimento que pretende realizar. Isto porque as diretrizes chuvas, evitando alagamentos nas regiões em que estão situados.
da Lei n° 6.766 são de caráter geral e trazem em seu corpo exigên- As imensas áreas verdes são instrumentos de equilíbrio ambiental e
cias para urbanização e habitações saudáveis das unidades a serem ecológico, propiciando qualidade de vida não apenas aos seus morado-
comercializadas, ficando a cargo dos Municípios, no exercício de sua res, mas a toda a população que vive nos entornos e à própria cidade.
competência constitucional, a faculdade de legislar nesse assunto de Além disso, a baixa densidade demográfica verificada nesses lotea-
interesse local, segundo suas peculiaridades, estabelecendo maiores
mentos contribui para distribuir melhor a ocupação humana na cidade
exigências que se façam necessárias.7
e diminuir o congestionamento de trânsito, que tem se multiplicado em
todos os espaços urbanos.
As afirmativas não deixam dúvidas quanto à competência dos mu-
No que se refere à necessidade de assegurar um ambiente ecologica-
nicípios, mas, ao contrário do que afirma Freitas, de que é necessária
mente equilibrado a toda a população de uma cidade, os loteamentos fe-
uma legislação federal para resolver a situação de fato já consolidada,8
chados, bem distribuídos em diversos espaços urbanos, também prestam
entende-se que as normas gerais existentes já são suficientes. O que
relevantes serviços ambientais, dado que há a preservação de imensas
falta é uma legislação municipal, ou seja, um Plano Diretor que assegure
áreas verdes, invertendo-se a lógica de quem presta serviço deve receber
zoneamentos, macroestrutura viária e equipamentos institucionais de
por eles, pois, além de o cidadão residente nesses loteamentos prestar
cidade, os quais devem ser respeitados no momento em que são auto-
serviço ambiental na preservação dessas áreas, paga mais caro por residir
rizados loteamentos fechados, deixando para uso privativo e exclusivo
nelas, o que significa dupla contribuição socioambiental.
dos seus moradores a microestrutura viária, as áreas de lazer, etc. de
Portanto, ao contrário do que muitos afirmam, isto é, que os lotea-
uso local ou de vizinhança.
mentos fechados apenas asseguram privilégios urbanos a alguns, o que
na realidade ocorre é que eles são instrumentos valiosos para respon-
LOTEAMENTOS FECHADOS E SUA CONTRIBUIÇÃO
sabilizar a classe rica a contribuir mais com o custo da preservação de
SOCIOAMBIENTAL
mais espaços verdes indispensáveis e importantes para a sustentabilida-
de socioambiental das cidades.
No que se refere à contribuição socioambiental dos loteamentos
O cidadão menos abastado não tem condições de manter uma man-
fechados, vamos fundamentar a sua legalidade em dois princípios de
são com enorme quantidade de áreas verdes, necessárias ao equilíbrio
Direito urbanístico: primeiramente, no “princípio da sustentabilidade”
7 FREITAS apud DALLARI; DI SARNO; LIBÓRIO, op. cit., p. 311. 9 RECH, Adir U.; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para construção de um pla-
8 Idem no Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul: Educs, 2010. p. 71.

1038 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1039
ambiental de uma cidade. Isso implica custos, mas essa pode ser uma do Rio de Janeiro e Niterói são fatos que estão revelando os primeiros
significativa forma de contribuição, bem como o ônus de quem tem me- sinais da reação da natureza; são exemplos de ocupações socioambien-
lhor poder aquisitivo, constituindo-se numa justa e solidária distribuição talmente incorretas, cuja responsabilidade primeira é do poder público,
dos benefícios da atuação urbanística, perfeitamente amparada pelos mas que pode ser dividida com a sociedade.
princípios de Direito urbanístico. O Estado socioambiental assegurado pela nossa Constituição, in-
Ao mesmo tempo, propicia que aos pobres possa ser barateado o discutivelmente, diante do quadro dos riscos ambientais que compro-
custo de suas moradias, em áreas menores, mas sem o risco de provo- metem os próprios direitos fundamentais e a dignidade humana, deve
car desequilíbrio ambiental, o qual fica compensado pelos loteamentos utilizar o Direito urbanístico como instrumentos para regular e ajustar as
fechados nos entornos. formas de ocupação e de parcelamento do solo, buscando garantir sus-
As encostas e os morros de nossas cidades, hoje invadidas por fa- tentabilidade social e ambiental à população das cidades. O loteamento
velas com elevada densidade demográfica, falta de áreas de permeabi- fechados, apesar de ser um desejo de consumo da classe alta, está lon-
lização das águas, sem saneamento e infraestrutura e os consequentes ge de ser uma mera perspectiva do capitalismo liberal-individualista, em
problemas de todos conhecidos, poderiam ser objeto de loteamentos face da sua relevante contribuição socioambiental.
fechados desde que não se tratasse de Áreas de Preservação Perma- Nesse sentido, afirma Sarlet que o
nente (APPs), pois passariam a ser espaços de grande valor econômico.
O custo da remoção de milhares de pessoas que residem nessas Estado Socioambiental de Direito, longe de ser um Estado “Mínimo”,
áreas de risco, com graves problemas de segurança e de infraestrutu- é um Estado regulador da atividade econômica, capaz de dirigi-la e
ra, poderia ser compensado e absorvido pela classe dominante, que ajustá-la aos valores e princípios constitucionais, objetivando o de-
passaria a comprar e a residir nesses locais, atraída pela paisagem e senvolvimento humano e social de forma ambiental sustentável. O
princípio do desenvolvimento sustentável, expresso no art. 170 (inci-
beleza. Com os recursos, o Poder Público planejaria espaços adequados
so VI) da CF/88, confrontando com o direito de propriedade privada
à construção de habitações populares em locais sem riscos, com mais
e a livre iniciativa (caput e inciso II do art. 170), também se presta
segurança, infraestrutura e, sobretudo, com mais dignidade. a desmitificar a perspectiva de um capitalismo liberal-individualista
O pobre mora no morro não porque quer, mas porque foi excluído em favor de sua leitura à luz dos valores e princípios constitucionais
devido à inexistência, em nossas cidades, de espaços de zoneamento socioambientais.10
adequados e planejados no Plano Diretor, destinado a eles. Para funda-
mentar o que estamos afirmando, toma-se como exemplo que, mesmo O Estado, portanto, além de regulador da atividade econômica e
após a adoção de Planos Diretores, portanto de normas urbanísticas e das regras de ocupação urbana e parcelamento do solo, precisa, fun-
ambientais, que buscam contemplar a função socioambiental da pro- damentalmente, valorar quais delas e quais formas são contribuições
priedade, constata-se que as ocupações nas cidades, nas periferias e na essenciais para assegurar os direitos fundamentais e a dignidade ao ho-
ampliação do perímetro urbano têm colocado a população pobre em mem, o que está intrinsecamente ligado à não degradação ambiental,
áreas de permanentes riscos ambientais. fato que não se verifica em loteamentos fechados.
A culpa é do Poder Público que não destina espaços para os pobres O Estatuto da Cidade, no que diz respeito à função social da terra,
no planejamento das cidades e deixa essas áreas de encostas sem pla- traz inúmeros instrumentos legais que podem ser adotados em termos
nos de ocupação sustentável, portanto, sem valor econômico, as quais locais, nos Planos Diretores e em leis de parcelamento do solo, fato que
poderiam ser objeto de loteamentos fechados, com parcelamentos di- por si não ordena o crescimento, mas pode, inclusive, incentivar o ca-
ferenciados e preservação ambiental. Porém o que ocorre é que essas os.11 A iniciativa de leis locais inteligentes, cientificamente corretas, é a
passam a ser ocupadas de forma desordenada pelos despossuídos, ge-
rando insegurança e caos urbano. 10 SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria
Os alagamentos na cidade de São Paulo e em cidades no Estado de do Advogado, 2010. p. 22.
11 O Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01, na Seção II, trata do parcelamento, da edificação
Santa Catarina; deslizamentos de terra em Angra dos Reis, nas cidades ou da utilização compulsória; na Seção III, do IPTU progressivo; na Seção IV, da desapropriação com

1040 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1041
base do encaminhamento de soluções duradouras, de um ordenamento Os loteamentos fechados, sob o aspecto ambiental, também garan-
urbanístico efetivo e da construção de cidades sustentáveis. tem enormes espaços de permeabilização das águas pluviais o que é
Diante da efetiva demanda desse tipo de loteamento, a comunida- indispensável e necessário para evitar alagamentos, desmoronamentos
de local justifica-os considerando a segurança, o bem-estar, o turismo, e prejuízos à população das grandes cidades. Além disso, podem sig-
o lazer, etc. Os municípios, para atender à demanda, vêm burlando a nificar a redução do valor do lote popular, cujo custo de aquisição e
legislação e autorizando sua efetivação, mediante decreto ou lei espe- preservação de áreas verdes, necessárias à permeabilização das águas
cífica, desvinculada do Plano Diretor e da Lei de Parcelamento do Solo e o equilíbrio ambiental da região, seria absorvido e compensado em
municipal, o que, nessa hipótese, além de ilegal, é preocupante e com loteamentos fechados.
consequências que afetam a sustentabilidade das cidades. Conclui-se, finalmente, que os loteamentos fechados, se observado
Efetivamente, não existe a menor possibilidade jurídica, nessas con- o ordenamento urbanístico, previsto no Plano Diretor Municipal e regu-
dições, de um loteamento surgir fechado ou de ser regularizado. O que lamentado o seu parcelamento de acordo com a Lei Municipal de Parce-
se tem feito é simular uma regularização, violando normas urbanísticas lamento do Solo, são perfeitamente legais, além de serem instrumentos
superiores, diante da inexistência e/ou omissão de normas locais. O que de preservação do ambiente urbano, sustentabilidade socioambiental
não é permitido é autorizar tais loteamentos sem que essas definições de responsabilidade do poder público e da população mais abastada.
legais e socioambientais abordadas estejam contempladas no Plano Di-
retor e na Lei de Parcelamento do Solo.
REFERÊNCIAS

CONCLUSÃO BRASIL. Lei Federal 4.591, de 1964. Brasília, 1965.


BRASIL. Lei Federal 6.766, de 1993. Brasília, 2000.
Os loteamentos fechados, desde que previstos no Plano Diretor, ou BRASIL. Lei Federal 9.785, de 1999. Brasília, 2000.
seja, que sejam zoneamentos adequados, em entornos com garantia de BRASIL. Lei Federal 10.257, de 2001. Brasília, 2001.
disponibilizar uma estrutura macro de cidade, como sistema viário de FERNANDES, Edésio. Direito urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. p. 53.
escoamento do trânsito de acessibilidade universal, bem como espaços DALLARI, Adilson Abreu: DI SARNO, Daniela Campos Libório. Direito urbanísti-
para a construção de áreas de lazer e equipamentos institucionais a co e ambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
toda a população, são instrumentos valiosos e eficazes para assegurar RECH, Adir U.; RECH, Adivandro. Direito urbanístico: fundamentos para cons-
uma cidade sustentável e o direito subjetivo a um ambiente ecologica- trução de um Plano Diretor sustentável na área urbana e rural. Caxias do Sul:
mente equilibrado, constituindo-se em relevante contribuição socioam- Educs, 2010.
biental de responsabilidade do poder público, mas também das classes SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Porto
mais abastadas. Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 22.
O desejo de consumo da classe alta, ou seja, de residir em lote-
amentos fechados, longe de ser mera perspectiva de um capitalismo
liberal-individualista, significa uma dupla contribuição ambiental, pois,
além de pagar para ocupar e preservar enormes espaços verdes, ela
presta relevantes serviços ambientais e de forma gratuita.

pagamento em títulos; na Seção V, do usucapião especial de imóvel urbano; na Seção VII, do direito
de superfície; na Seção VIII, do direito de preempção; na Seção IX, da outorga onerosa do direito
de construir; na Seção X, das operações urbanas consorciadas e na Seção XI, das transferências
do direito de construir, todos esses mecanismos facilitadores para serem utilizados na definição de
espaços e moradias populares.

1042 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1043
Planejamento urbano e acessibilidade:
o direito a uma cidade inclusiva
Alexsandro Rahbani Aragão Feijó�
Viviane Gomes de Brito1

Resumo: O presente artigo versa sobre o planejamento urbano


e a acessibilidade. Tem como objetivo central evidenciar como
o planejamento urbano é importante para efetivar a acessibili-
dade na cidade, tornando-a inclusiva, para todos, exercendo a
sua função social. Para tanto, se aborda, inicialmente, a relação
da função social da cidade e o planejamento urbano, para, na
sequência, analisar a acessibilidade enquanto direito fundamen-
tal a uma cidade inclusiva. Ao fim, examina-se o plano diretor
do Município de São Luís e os instrumentos de acessibilidade.
Palavras-chave: Planejamento urbano. Acessibilidade.
Função social da cidade. Plano Diretor.

INTRODUÇÃO

Abordar a questão da pessoa com deficiência é tarefa densa, mas igual-


mente instigante, não só por causa da dificuldade de literatura sobre o as-
sunto, mas também pela sua interdisciplinaridade (engenharia, arquitetura,
finanças públicas, ciências sociais, saúde etc.), bem como pela satisfação em
investigar um campo de estudo em construção, posto que ainda há muito a
se conhecer e a efetivar sobre os direitos desse segmento da sociedade.
É importante frisar que a pessoa com deficiência representava, em
2000, 14,5% da população brasileira, consoante dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (2010, on line), o que corresponde
a mais de 24,5 milhões de pessoas, representando, assim, uma signifi-
cativa parcela da população brasileira detentora de direitos fundamen-
tais correspondentes à sua peculiar posição em relação à sociedade, tal
como outros grupos (mulheres, idosos, crianças, índios).
É relevante tecer considerações acerca da acessibilidade no seu viés
de direito fundamental a uma cidade inclusiva, onde o cidadão possa
1 Doutoranda em Direito Público pela Universidad Nacional de Lomas de Zamora - AR. Especia-
lista em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá e em Direito do Trabalho e
Processual do Trabalho pela Universidade Anhanguera. Professora do Centro Unificado do Mara-
nhão. Procuradora do Município de São Luís. Email: vivbrito@yahoo.com.br

1044 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1045
plenamente usufruí-la em suas várias potencialidades (cultural, política, co municipal, no primeiro artigo, a política de desenvolvimento urbano,
social etc.), eliminando-se, pois, as barreiras físicas e sociais limitadoras tendo por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais
do pleno exercício desse direito. Para tanto, o planejamento urbano da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes.
torna-se ferramenta indispensável, sem o qual o desenvolvimento das A Constituição de 1988 passou a exigir o plano diretor como instru-
cidades será desordenado e não contemplará a acessibilidade, descum- mento básico da política de desenvolvimento urbano, obrigatório para
prindo a sua função social. os Municípios com mais de vinte mil habitantes. No § 2º do artigo 182
Por fim, inserido nesse contexto de reconhecimento de direitos das determina: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando
pessoas com deficiência, pondera-se acerca da atuação do Poder Públi- atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
co no Município de São Luís, por meio do seu Plano Diretor, na efetiva- no plano diretor.” (BRASIL, 2010). José Afonso da Silva (2008, p.97)
ção dos mesmos, dando-se especial atenção à questão da função social ensina que o “planejamento em geral, é um processo técnico instrumen-
da cidade voltada para a acessibilidade e o direito à cidade. tado para transformar a realidade existente no sentido de objetivos pre-
viamente estabelecidos”. Na lição de Toshio Mukai (2004, p. 35):

1 FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE E PLANEJAMENTO URBANO O plano diretor, nome que se dá ao plano urbanístico municipal, pode
ser conceituado como um complexo de normas legais, contendo dire-
A busca pela qualidade de vida, digna e plena dos cidadãos perpas- trizes, objetivos, programas e metas, que abrangem o desenvolvimen-
sa pelo cumprimento da função social da cidade, e intrinsecamente de- to econômico social, o meio ambiente e o uso e ocupação do solo,
corre de um planejamento e consequente atendimento da função social projetados todos para um determinado período de tempo.
da propriedade. Impossível pensar a cidade sem que estejam presentes
esses três elementos. Para Hely Lopes Meirelles (1996, p.25) o plano diretor ou plano diretor
Fernando Chueca Goitia (2003) explana que cidade é a aglomera- de desenvolvimento integrado “é o complexo de normas legais e diretrizes
ção humana fundada num solo convertido em pátria, cujas estruturas técnicas para o desenvolvimento global, constante do Município, sob os
internas e externas se constituem e desenvolvem por obra da história, aspectos físico, social, econômico e administrativo, desejado pela comuni-
para satisfazer e exprimir as aspirações da vida coletiva, não só a que dade local”. Segue o mencionado autor conceituando Plano Diretor:
nelas se desenvolve, mas também da humanidade em geral. Na concep-
ção de Rogério Gesta Leal (2003, p. 40-41): é o instrumento técnico legal definido dos objetivos de cada Muni-
cipalidade e por isso mesmo com supremacia sobre os outros, para
a concretização da função social da cidade precisa ser condizente com orientar toda atividade da Administração e dos Administrados nas re-
os demais princípios e objetivos fundamentais do Estado, presentes alizações públicas e particulares que interessem ou afetem a coletivi-
na Carta Constitucional, o que significa pressupor o exercício da cida- dade. (MEIRELLES,1996, p. 32).
dania maximizando a realização da justiça social, através da atuação na fixação dos objetivos e na orientação do desenvolvimento do Mu-
do Poder Público, do mercado e da sociedade. Intervém o planeja- nicípio é a lei suprema e geral que estabelece as prioridades nas rea-
mento urbanístico na forma de um conjunto de medidas integradas lizações do governo local, conduz e ordena o crescimento da cidade,
para resolver e evitar o problema das cidades, englobando desde os disciplina e controla as atividades urbanísticas em benefício do bem
traçados das ruas, o sistema de fornecimento de água e esgoto, a estar social. (MEIRELLES,1996, p. 35).
instituição de áreas verdes preservadas, além da determinação das
zonas de implantação de indústrias, hospitais, comércio e serviços. A Lei no. 10.257, de 10 de julho de 2001, que se autodenominou
Estatuto da Cidade, regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição
Devido ao aumento populacional e à crescente urbanização o legis- Federal e estabelece diretrizes gerais para a política urbana. Em seu arti-
lador passou a editar normas na tentativa de ordenar o uso e ocupação go 41 determina que o plano diretor é obrigatório para cidades com mais
do solo, nesse ínterim, a Constituição Federal de 1988 dispôs sobre de vinte mil habitantes, que sejam integrantes de regiões metropolitanas
a política urbana, nos artigos 182 e 183, ordenando ao Poder Públi-
1046 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1047
e aglomerações urbanas, integrantes de áreas de especial interesse turís- por natureza, com o seu destino, qual seja, viver em sociedade, em as-
tico, inseridas na área de influência de empreendimentos ou atividades sociação, na cidade (pólis).
com significativo impacto ambiental de âmbito regional ou nacional. E no Como em Atenas, berço de muitos dos princípios que fundamen-
artigo 42 enumera o conteúdo mínimo de um plano diretor. tam a ideia de democracia, onde tudo gravitava ao redor da polis, pois
O Estatuto da Cidade é de grande relevância para a efetiva concreti- somente nela e por meio dela, os seres humanos podiam se realizar e
zação do plano diretor nos Municípios, criou instrumentos da política de viver como cidadãos, detentores de direitos (sobretudo, de liberdade e
desenvolvimento urbano, e ainda estabeleceu sanções aos Prefeitos Mu- de igualdade) e deveres, na qual poderiam ter “boa vida”, uma vida em
nicipais e agentes públicos que não seguirem as diretrizes estabelecidas. plenitude (HELD, 1995), e guardadas as devidas proporções, o muni-
Destaca Odete Medauar (2004) algumas funções sociais da cidade: cípio brasileiro surge como uma espécie de cidade-estado dos tempos
habitação, o trabalho, a circulação, o lazer, visando a plena integração modernos, apesar da existência na organização político-administrativa
dos seres humanos, seu crescimento educacional e cultural, num am- brasileira de outros entes políticos.
biente sustentável, ecologicamente equilibrado. Tal constatação decorre não apenas da nova formatação que a Cons-
tituição de 1988 atribuiu aos municípios, mas também de questões ge-
Nessa seara, é relevante tecer considerações acerca da acessibili-
ográficas e até psicológicas, uma vez que o indivíduo não se sente di-
dade no seu viés de direito fundamental a uma cidade inclusiva, onde
retamente vinculado à União Federal ou ao Estado-membro, mas sim
o cidadão possa plenamente usufruí-la em suas várias potencialidades
domiciliado em determinado município, representando este, em verda-
(cultural, política, social etc.), eliminando-se, pois, as barreiras físicas e
de, o local onde interage com o meio em que vive (ruas, praças, espaços
sociais limitadoras do pleno exercício desse direito. públicos, equipamentos públicos, edificações) e com a sociedade.
Nessa linha de raciocínio, ter e ser um município com ambiente urba-
no inclusivo passa, necessariamente, pela ideia de uma cidade de e para
2 ACESSIBILIDADE ENQUANTO DIREITO todos, independentemente do tipo de deficiência, exigindo uma nova con-
FUNDAMENTAL A UMA CIDADE INCLUSIVA cepção de viver em sociedade, sem segregação, sem barreiras. Por isso,
a compreensão do que seja acessibilidade auxiliará na concretização dos
Acredita-se que os municípios, sobretudo após a Constituição de direitos inerentes às pessoas com deficiência, alterando o pensamento de
1988, em face de suas novas competências, é o grande propulsor – ao que acessibilidade é simplesmente a construção de rampas, a colocação
lado da participação popular e democrática – de uma modificação es- de corrimãos e a instalação de elevadores. É nesse cenário, na nova pólis,
trutural no modo de vida da sociedade e da cidade onde esta sociedade que as pessoas com deficiência devem exercitar o direito fundamental a
está sediada; uma mudança que proporciona o direito de acesso em ple- uma cidade inclusiva5 para que também possam viver em plenitude, usu-
nitude, do acesso democrático à cidade2, pois o homem é por natureza fruindo, legitimamente, dos benefícios de ser um cidadão.
(phusei) destinado a viver nessa comunidade mais ampla que a família
ou o vilarejo que é a cidade3, “formada originariamente para atender às 2.1 Conceito de acessibilidade
necessidades da vida, e, na sequência, para o fim de buscar viver bem”
(ARISTÓTELES, 2010, p. 56). É o encontro do homem, animal político4, O direito constitucional de acessibilidade é, antes de tudo, uma
2 Esse pensamento arrimou a elaboração do Programa Nacional de Direito Humanos – PNDH materialização do direito constitucional de igualdade6. Surgiu com a
que, através do Decreto Federal n.º 7.037, de 21 de dezembro de 2009 (2009, on line), reforçou a
garantia do direito a cidades inclusivas e sustentáveis, cujas ações programáticas específicas são a 5 Salienta-se que o conceito de cidade inclusiva é bem amplo, nele se inserindo não apenas elementos
de apoiar ações que tenham como princípio o direito a cidades inclusivas e acessíveis como elemen- econômicos ou de circulação, mas também políticos, culturais e sociais, consoante elucida Padmashree
to fundamental da implementação de políticas urbanas e a de fomentar políticas e ações públicas Gehl Sampath: “Uma cidade inclusiva é aquela que busca solucionar não apenas a igualdade econômi-
voltadas à mobilidade urbana sustentável.
ca, mas também a igualdade social, política e cultural em todos os segmentos da cidade” (2011, on line).
3 Na visão urbanística de José Afonso da Silva, “Cidade, no Brasil, é um núcleo urbano qualificado
6 Aplica-se também às pessoas com deficiência o pensamento de Jürgen Habermas para as
por um conjunto de sistemas político-administrativo, econômico não-agrícola, familiar e simbólico
minorias “inatas”, pois quando a sociedade onde vivem está organizada como Estado democrático
como sede do governo municipal, qualquer que seja sua população. A característica marcante da
de direito, apresenta-se diversos caminhos para se chegar a uma inclusão “com sensibilidade para
cidade no Brasil consiste no fato de ser um núcleo urbano, sede do governo municipal” (2008, p. 26).
as diferenças”, pois “a coexistência com igualdade de direitos de diferentes comunidades étnicas,
4 Para um maior aprofundamento sobre o assunto, sugere-se o livro “A condição humana”, de grupos lingüísticos, confissões religiosas e formas de vida, não pode ser obtida ao preço da frag-
Hanna Arendt (2010). mentação da sociedade” (2007, p. 172).

1048 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1049
Emenda n.º 12 à Constituição Federal de 1967, promulgada em 17 de pessoas) mediante traço diferencial que não seja nelas mesmas
de outubro de 1978. Luiz Alberto David Araújo (2003), ao comentar residentes. Por isso, são incabíveis regimes diferentes determinados
a mencionada emenda constitucional, tece ponderação bastante perti- em vista de fator alheio a elas; quer-se dizer: que não seja extraído
delas mesmas. (MELLO, 1999, p. 29)
nente e precisa ao registrar que a mesma representou grande avanço na
[...] a discriminação não pode ser gratuita ou fortuita. Impede que
proteção das pessoas com deficiência, servindo de base para uma série
exista uma adequação racional entre o tratamento diferenciado cons-
de medidas judiciais, como a ação que requereu acesso às rampas de truído e a razão diferencial que lhe serviu de supedâneo. Segue-se
embarque do metrô de São Paulo.7 que, se o fator diferencial não guardar conexão lógica com a dispari-
Na Constituição de 1988, a base do direito de acessibilidade está dade de tratamentos jurídicos dispensados, a distinção estabelecida
prevista, como já mencionado, no direito de igualdade o qual propiciará afronta o princípio da isonomia. (MELLO, 1999, p. 39)
um desdobramento em todo o ordenamento infraconstitucional. O ar-
tigo 5º, caput, da Constituição Federal de 1988 trata, genericamente, A discriminação gratuita é condenada por J. J. Gomes Canotilho
desse princípio quando expõe que “todos são iguais perante a lei, sem quando este analisa que uma das funções dos direitos fundamentais
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos es- mais acentuada pela doutrina na atualidade é a de não discriminação:
trangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liber-
dade, à igualdade, à segurança e à propriedade privada”. A partir do princípio da igualdade e dos direitos de igualdade espe-
Registre-se que o princípio da igualdade não deve ser compreendido cíficos consagrados na constituição, a doutrina deriva esta função
primária e básica dos direitos fundamentais: assegurar que o Esta-
no sentido da igualdade formal. Em verdade, ele exige uma igualdade ma-
do trate os seus cidadãos como cidadãos fundamentalmente iguais.
terial através da lei, devendo tratar-se por “igual o que é igual e desigual- Esta função de não discriminação abrange todos os direitos. Tanto
mente o que é desigual” (CANOTILHO, 2000, p. 418). Por exemplo, a iso- se aplica aos direitos, liberdades e garantias pessoais (ex: não dis-
nomia, norma geral que se coaduna com o ideal de igualdade, encontra criminação em virtude de religião), como os direitos de participação
regra específica em relação ao portador de deficiência enquanto traba- política (ex: direito de acesso aos cargos públicos) como ainda aos
lhador no artigo 7º, XXXI, da Carta Política de 1988, a saber, “proibição direitos dos trabalhadores (ex: direito ao emprego e formação profis-
de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do sional). Alarga-se, de igual modo, aos direitos a prestações (prestação
trabalhador portador de deficiência”. Com efeito, só é possível entender de saúde, habitação). É com base nesta função de não discriminação
que se discute o problema das quotas (ex: ‘parlamento paritário de
o tema da proteção excepcional das pessoas com deficiência se a com-
homens e mulheres’) e o problema das afirmative actions tendentes
preensão do princípio da igualdade for uma realidade, pois igualdade é a a compensar a desigualdade de oportunidades (ex: ‘quotas de defi-
viga mestra e superior de todo o direito à inclusão social dessas pessoas cientes’). É ainda com uma acentuação-radicalização da função anti-
e sempre deverá estar presente na aplicação do direito. discriminatória dos direitos fundamentais que alguns grupos minori-
É mister destacar que essa proteção excepcional não gera privilé- tários defendem a efectivação plena da igualdade de direitos numa
gios ou “situações de vantagem não fundadas”, na expressão de Jorge sociedade multicultural e hiperinclusiva (‘direitos dos homossexuais’,
Miranda, mas sim “discriminações positivas” por serem “situações de ‘direitos das mães solteiras’, ‘direitos das pessoas portadoras de HIV’).
vantagem fundadas, desigualdades de direito em consequência de de- (CANOTILHO, 2000, p. 403).
sigualdades de facto e tendentes à superação destas” (1998, p. 213-
214). Na lição de Celso Antônio Bandeira de Mello: Nesse sentido, os direitos dos cidadãos são os mesmos, mas as
condições para exercê-los não o são. Daí a importância do princípio da
[...] é inadmissível, perante a isonomia, discriminar pessoas ou situa- igualdade ser aplicado conjuntamente com outros direitos como, por
ções ou coisas (o que resulta, em última instância, na discriminação exemplo, o de acessibilidade, a fim de proporcionar a pessoa com defi-
ciência uma vida o mais natural possível. Acerta Jorge Miranda (1998,
7 Processo n.º 835/87 da 2ª Vara da Fazenda Estadual, contra a Companhia do Metropolitano
p. 202) quando, analisando a questão, afirma que:
de São Paulo. A decisão foi confirmada pela 7ª Câmara Civil do TJ/SP, através da Apelação Cível
n.º 106.872-1.

1050 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1051
os direitos são os mesmos para todos; mas, como nem todos se acham 2.2 Categorias de acessibilidade, o desenho
em igualdade de condições para os exercer, é preciso que essas con- livre de barreiras e o desenho universal
dições sejam criadas ou recriadas através da transformação da vida e
das estruturas dentro das quais as pessoas se movem.
Fica claro que acessibilidade é muito mais do que construir rampas,
sendo indispensável o estudo técnico aplicado para a criação de novas
Somente com essa compreensão do sistema é que se pode trazer
formas de acesso à informação nos meios de comunicação, além de
esse direito da acessibilidade para a esfera infraconstitucional, sendo
acesso ao meio físico, propiciando autonomia, liberdade e individuali-
exemplos a Lei Federal n.º 10.048, de 08 de novembro de 2000, que,
dade a pessoa com deficiência. Por isso, Sérgio Rodrigues Bahia et al.
dentre outros direitos, garante o acesso aos logradouros e sanitários pú-
(1998, p. 12) divide a acessibilidade nas seguintes categorias:
blicos, bem como a Lei Federal n.° 10.098/2000, a qual dispõe sobre
normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das a) o acesso como capacidade de se chegar a outras pessoas
pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, concei- Os seres humanos são entes sociais e o contato entre eles torna-se
tuando acessibilidade como (art. 2°, inciso I): necessário para o bem-estar de todos. Esta é a visão dos espaços co-
letivos como cenário de trocas entre as diferentes pessoas.
A possibilidade e a condição de alcance para utilização, com seguran- b) o acesso à atividades chave
ça e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, A acessibilidade surge como atributo imprescindível na sociedade,
das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunica- permitindo que todos possam desfrutar das mesmas oportunidades
ção, por pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzi- em: educação, trabalho, habitação, lazer, turismo e cultura.
da. (BRASIL, 2000, on line) c) o acesso à informação
Através da comunicação sensorial, reprodução dos significados da
vida comum pelas formas, cores, texturas, sons, símbolos e signos ex-
Verificou-se que, cada vez mais, cresce a busca de diretrizes que pressos em cada espaço e mobiliário urbanos, é possível realizar um
orientem os municípios na elaboração de políticas públicas que contri- sistema de sinalização acessível a qualquer pessoa.
buam para o processo de adequação do ambiente coletivo às exigên- d) a autonomia, a liberdade e a individualidade
cias da população, principalmente o grupo de pessoas que apresentam A acessibilidade pressupõe a liberdade de escolha ou a opção indivi-
necessidades especiais em acessibilidade. Esse segmento da sociedade dual no ato de relacionar-se com o ambiente e com a vida. Basear-se
na idéia que as pessoas portadoras de deficiência dependem da ajuda
é representado por idosos, obesos, pessoas com deficiência, dentre ou- de terceiros gera situações constrangedoras e que somente perpetu-
tros. Nesse contexto, o acesso aos elementos que compõem o ambiente am a segregação.
é fator a ser trabalhado no processo de planejamento urbano das cida- e) o acesso ao meio físico
des. Assimilar o que de fato é acessibilidade torna-se fundamental para O planejamento da boa forma da cidade, levando em consideração
o alcance de uma cidade mais humana, onde toda a população possa a acessibilidade ao meio físico, possibilitará a construção de uma so-
conquistar sua plena cidadania (BAHIA et al., 1998). ciedade inclusiva que assimile progressivamente a idéia de integração
social e espacial das pessoas com todas as suas diferenças. Convém
Por fim, adverte-se que a acessibilidade não se resume a construção ressaltar que os transportes coletivos exercem papel importante na
de rampas. Ela deve permitir a pessoa com deficiência exercer plena- integração das diversas atividades da cidade.
mente sua cidadania cumprindo os direitos fundamentais já reconheci-
dos. O espaço concreto dos municípios é o cenário onde se desenvolve Uma comissão foi criada em Washington (EUA), em 1963, para elabo-
esta ação. Elaborar um planejamento urbano adequado, que contemple rar um projeto de um “Desenho Livre de Barreiras”, que se constituiu em
medidas asseguradoras de acessibilidade, como as suas categorias e o uma corrente ideológica para o desenho de equipamentos, edifícios e áreas
desenho universal, viabilizará o uso democrático do espaço urbano e a urbanas. Por esse pensamento, os fatores comportamentais são associa-
efetivação da função social da cidade, tornando os ambientes acessíveis dos às barreiras existentes, onde a exclusão e a segregação das pessoas
a todos, com ou sem deficiência. com deficiência estariam vinculadas à existência desses obstáculos. Assim,

1052 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1053
o conceito de um desenho livre de barreiras acabou evoluindo para a con- perfil demográfico com o aumento da expectativa de vida; e a necessi-
cepção de desenho universal, ou seja, aquele que se destina a qualquer dade de se promover a integração através da eliminação de barreiras
pessoa e, por ser tão básico para a realização dos objetivos essenciais da físicas e sociais” (BAHIA et al., 1998, p. 14-16). A elaboração de um pla-
vida cotidiana, auxilia na consolidação dos direitos fundamentais. nejamento urbano adequado, que contemple essas medidas assegura-
Afirma-se que esse desenho não se aplica simplesmente para a pes- doras de acessibilidade, resultará no acolhimento das mesmas no Plano
soa com deficiência, mas leva em consideração as múltiplas diferenças Diretor do município, reforçando os instrumentos legais para efetivação
existentes entre as pessoas. Busca-se, por ele, garantir a acessibilida- do direito à cidade inclusiva.
de aos componentes do ambiente e aos produtos concebidos no de-
correr do processo projetual, evitando, dessa forma, a necessidade de
ambientes e produtos especiais para a pessoa com deficiência. Ele tem 3 PLANO DIRETOR DO MUNICIPIO DE
seu alicerce nos seus quatros princípios, comentados da seguinte forma SÃO LUIS E ACESSIBILIDADE
(BAHIA et. al, 1998, p. 14):
O Município de São Luís, antes mesmo da Lei 10.257/01, seguindo
a) acomodar uma grande gama antropométrica o estabelecido na Constituição Federal de 1988 editou seu primeiro Pla-
Significa acomodar pessoas de diferentes padrões ou situações, altos,
no Diretor em 29 de dezembro de 1992, e em 11 de outubro de 2006,
baixos, em pé, sentados etc. Acomodar todas as pessoas ou pensar
em todos os parâmetros antropométricos é ficar atento a alguns limi- à luz do Estatuto da Cidade, foi aprovado novo plano diretor de São
tes de ação e alcance manual ou visual impostos a pessoas que, por Luís, Lei Municipal no 4669/06, revogando o anterior. O Plano Diretor
exemplo, fazem uso de cadeiras de rodas. vigente do Município de São Luís estabelece em seu artigo 2º.:
b) reduzir a quantidade de energia necessária para utilizar os produ-
tos e o meio ambiente I - FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE é a função que deve cumprir a cidade
Limitações ou dificuldades no alcance e na locomoção podem também para assegurar a plena realização dos direitos de todos os cidadãos à
levar a um esforço adicional ou a um cansaço físico se o ambiente não moradia digna, aos serviços públicos de saneamento ambiental, infra-
estiver adequado a determinadas necessidades especiais das pessoas. -estrutura, transporte, educação, saúde, cultura, esporte, lazer, traba-
Quando um idoso busca realizar determinadas atividades, o espaço lho, segurança, acessibilidade e mobilidade, informação, participação
por ele percorrido revelará a incidência do fator distância na sua utili- e decisão no processo de planejamento territorial municipal;
zação e nos objetos que deseja alcançar. Com um planejamento con-
cebido segundo o desenho universal, esta energia e distância serão
reduzidas e os espaços, com todos os seus elementos, bem utilizados E conceitua acessibilidade no inciso XI do mencionado artigo:
e aproveitados por ele.
c) tornar o ambiente e os produtos mais compreensíveis XI – ACESSIBILIDADE é a condição para utilização, com segurança e
Para portadores de deficiência sensoriais, como os cegos, pessoas que autonomia, total ou assistida, dos espaços, mobiliários e equipamen-
enxergam pouco ou de visão subnormal, pode ser muito difícil localizar tos urbanos, das edificações, dos serviços de transporte e dos disposi-
obstáculos presentes nas ruas ou se situar em espaços muito amplos. tivos, dos sistemas e meios de comunicação e informação por pessoa
Tornar o ambiente e os produtos mais compreensíveis para estas pesso- portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida.
as significa projetar para todos segundo um desenho universal.
d) pensar em produtos e ambientes como sistemas No inciso V, do artigo 3o do referido Plano Diretor tem-se a universa-
Estes produtos e ambientes devem constituir peças intercambiáveis
lização da acessibilidade e mobilidade entre os objetivos gerais. Ainda,
ou que apresentem a possibilidade de acrescentar as características
para o atendimento às pessoas que têm necessidades especiais. pertinente a acessibilidade, a Lei 4669/06, preceitua em seu artigo 46:

Art. 46. A política de acessibilidade do Município de São Luís se des-


Muitas são as razões que justificam a necessidade da implantação
tina a garantir o acesso de todas as pessoas aos equipamentos, meios
de um desenho universal, dentre elas, destacam-se: “a modificação do de transporte e de comunicação e espaços de uso público, visando

1054 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1055
assegurar os direitos fundamentais da pessoa, priorizando as pessoas Portanto, passados quase cinco anos da entrada em vigor do Plano
portadoras de deficiência e/ou com mobilidade reduzida. Diretor, muito ainda há o que ser feito para viabilizar o que nele se esta-
belece, mas já foram dados os primeiros passos para a concretização do
O censo 2010 divulgado pelo IBGE (2010, on line), mostra que direito a uma cidade inclusiva.
a cidade de São Luís ultrapassou a casa de um milhão de habitantes
(1.011.943 pessoas), mas não foi divulgado o número de pessoas com
deficiência. O último censo que trouxe esses dados foi o de 2000, quan- CONCLUSÃO
do a capital tinha 870.028 habitantes e 117.467 eram pessoas com
deficiência, correspondendo a 13,5% da população (2000, on line). A Constituição Federal de 1988 consagrou a democracia, a cidada-
Percebe-se que o Município de São Luís implementou, de forma tímida, nia, a dignidade da pessoa humana e a igualdade como fundamentos da
alguns projetos relacionados a acessibilidade a seguir relacionados. A Se- República. E a acessibilidade, enquanto materialização do direito cons-
cretaria Municipal de Trânsito e Transporte informou em audiência pública titucional de igualdade, deve ser entendida não apenas no aspecto da
para tratar sobre as políticas destinadas ao segmento de pessoas com defi- igualdade formal, mas, sobretudo, em sua perspectiva material, de dar
ciência pela Prefeitura de São Luís com o título “Rediscutindo acessibilidade tratamento diferenciado na medida da desigualdade que o caso con-
e garantindo direitos na cidade de São Luís”8 realizada no dia 12 de Julho creto demanda, premissa essa plenamente aplicável às pessoas com
de 2010, que 25% da frota de ônibus coletivos é adaptada. deficiência.
Em agosto de 2010 a Prefeitura de São Luís aderiu, de forma volun- Como consectário dessa nova ordem de direitos, surge a noção de ci-
tária, ao “Compromisso Nacional pela Inclusão das Pessoas com Defici- dade inclusiva, onde o cidadão pode viver plenamente, usufruindo dos be-
ência”. Em decorrência dessa adesão o Município se obriga a adotar as nefícios que esta lhe oferece, não só no aspecto econômico, mas também
diretrizes referentes às políticas públicas de trabalho, saúde, habitação, social, cultural e política, implicando no usufruto equitativo da cidade por
educação, transporte e infraestrutura constantes no Decreto 6.215/07, todos os citadinos, especialmente os grupos vulneráveis e desfavorecidos.
além do disposto no termo de adesão. Nesse contexto, a eliminação de barreiras físicas e sociais apresenta-se
Observa-se que o “Comitê Gestor da Agenda Social de Políticas como medida necessária ao atingimento de uma cidade inclusiva.
Públicas de Inclusão das Pessoas com Deficiência (CGPD) já havia sido Diante do reconhecimento dos direitos fundamentais das pessoas
instituído em 06 de outubro de 2009, por meio do Decreto 38.243. E com deficiência, bem como do direito de acessibilidade e de cidade in-
encontra-se em fase de apresentação, discussão e aprovação a Agenda clusiva, mostra-se necessário que o Poder Público, em todas as suas es-
Social Direitos de Cidadania da Pessoa com Deficiência. feras, utilize os vários instrumentos legais disponíveis no ordenamento
Desde agosto do ano em curso, a Prefeitura de São Luís, por meio jurídico pátrio, sobretudo o planejamento urbano, e efetive o direito à
do Comitê Gestor Municipal de Políticas de Inclusão, está divulgando cidade proporcionando, assim, o pleno exercício do direito a um padrão
para todas as secretarias e órgãos municipais um folder que ensina, em de vida adequado e, em última instância, consagrando o direito à digni-
especial aos servidores municipais, as expressões corretas e apropria- dade da pessoa humana.
das a serem utilizadas no tratamento diário à pessoa com deficiência. Por fim, ressalta-se que a efetivação do direito de acessibilidade
Outra ação providencial da Prefeitura foi a inclusão de oficinas de Libras ocorrerá no espaço concreto dos municípios. Por isso, elaborar um pla-
(Linguagem de Sinais) no Programa Cidadania Para Todos9, realizado nejamento urbano adequado, que contemple medidas asseguradoras de
todos os meses nos bairros da cidade. acessibilidade, como as suas categorias e o desenho universal, viabilizará
o uso democrático do espaço urbano e a efetivação da função social da ci-
8 Esta audiência foi requerida pela vereadora Rose Sales (PC do B-MA) em articulação com o Fó- dade, tornando os ambientes acessíveis a todos, com ou sem deficiência.
rum Maranhense de Entidades de Pessoa com Deficiência e Patologias e com o Conselho Municipal
dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
9 O Programa Cidadania para Todos, desenvolvido pela Prefeitura de São Luís, oferece serviços
de saúde e ações culturais, sociais e de educação para a comunidade da área escolhida.

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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L10098.htm>. Além disso, a partir do estudo de caso da cidade de Porto
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1058 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1059
ocorreu na Revolução Industrial Inglesa no século XVIII. Em função da soa, podendo promover a “contaminação social”, enquanto que a casa
necessidade dos trabalhadores de morar próximo de seu trabalho, no própria unifamiliar permitia a qualidade da vida social.
caso a atividade fabril, criaram-se cortiços e favelas nas proximidades Dessa maneira, começa a difusão sociológica americana, principal-
dos centros urbanos que até então estavam se consolidando de maneira mente de Pierson4, da Escola de Sociologia e Política, baseada na eco-
gradual e organizada. logia urbana. A idéia era de que o trabalhador comprando sua casa
Concomitantemente, a intensa urbanização em oposição à ruraliza- própria, de preferência não-coletiva estaria se aproximando da elite e
ção nessa época, provoca o inchaço habitacional nas regiões metropo- ao mesmo tempo se afastando da pobreza, demonstrando que o fruto
litanas (que não haviam sido instauradas nessa época ainda – somente do seu trabalho se materializava.
tendo sido criadas a partir da década de 80) e a conseqüente falta de A atuação dos Institutos de Aposentadoria e Pensões e da Fundação
habitação para essas comunidades de baixa e média renda que vinham da Casa Popular (primeiros órgãos federais que atuam no setor da ha-
para as cidades no intuito de emprego e renda. Por outro lado, na im- bitação social) foi intensa nesse período populista e, embora a questão
prensa da época surgiam debates ao modelo produzido pelo mercado habitacional fosse reconhecida como um problema do Estado, até 1964
rentista, pois os trabalhadores acabavam indo às grandes cidades e mo- os governos populistas não deram a devida prioridade para implantar
rando em habitações coletivas e precárias, construídas para o inquilina- uma política habitacional social de maior alcance. Entretanto, no perío-
to nos famosos cortiços. Portanto, iniciou-se a ideologia no Brasil dos do de 1945 a 1964 houve uma produção habitacional marcada essen-
anos 30 de que os trabalhadores não deviam mais ser locatários, mas cialmente pelos conjuntos habitacionais do IAPI.
sim proprietários, através da aquisição da casa própria. O modelo nacional instaurado, a partir dos moldes militares aca-
Tais conflitos ideológicos somente foram possíveis a partir da ten- bou sucumbindo às ações estatais e municipais, pois o modelo nacional
dência fascista e socialista instaurada mundialmente, sendo que nos pa- delegava todas as funções e o poder financeiro e de decisão à Nação,
íses europeus, a produção habitacional de interesse social havia já se ao Banco nacional de Habitação – BNH. Portanto, “raras foram as re-
iniciado nos anos 20, em plena I Guerra Mundial. Nesse âmbito, surgiu, alizações de governos municipais ou estaduais na área de habitação,
a partir da organização do Instituto de Engenharia, em 1931, o I Con- independentes do BNH, tal o acentuamento da centralização de recur-
gresso de Habitação e o IDORT (Instituto de Organização Racional do sos e decisões nas mãos do governo federal, durante o período que vai
Trabalho), que promoveu em 1941 as Jornadas de Habitação Econômi- do início do regime militar, 1964, até seus últimos anos, 1982 a 85
ca. O IDORT, embora com grande ausência dos arquitetos influenciados (quando novas experimentações são tentadas, principalmente através
pelo movimento moderno e técnicos do Ministério do Trabalho e do da institucionalização de construção com mutirões).” 5
Instituto de Aposentadorias e Pensões, surgiram os IAPs, sendo que o Mas esse modelo, com diversas falhas principalmente quando do
Realengo-São Paulo – foi o primeiro grande conjunto habitacional, em pagamento dos mutuários ao banco, acabou falecendo em 1986, pois
1941. o credor não conseguia recuperar os investimentos realizados, além de
No entanto, a idéia socialista, totalmente contrária a ideologia nazi- ignorar alguns quesitos básicos na concessão do financiamento no que
-fascista devia ser derrubada de maneira mais incisiva aqui no Brasil diz à localização e fiscalização, dentre outros. Nesse sentido, Ermínia
e, portanto, a casa própria dos trabalhadores foi vendida de maneira Maricato afirma que “O isolamento dos conjuntos habitacionais, cons-
de que com isso os mesmos “estavam progredindo materialmente, de- truídos sempre a longa distancia dos locais de trabalho e locais de abas-
monstrando que o trabalho grã frutos e riqueza”3Além disso, com a pe- tecimento e serviços, a falta de recursos das prefeituras para a produ-
quena propriedade, as idéias socialistas não vigoravam, estabilizando ção dos complementos à habitação, a falta de recursos ou de interesses
a ordem política e social, na medida em que se propagavam que os das empresas públicas em relação à implantação de redes de serviços,
cortiços eram habitados por diversas classes sociais e todo tipo de pes- a falta de fiscalização da construção são alguns dos outros “enganos” co-

3 MARICATO, Ermínia. Metrópoles na periferia do capitalismo. Ilegalidade, desigualdade e violên- 4 PIERSON – Dr. Donald Pierson in Estudos de Organização Social, org., São Paulo, 1949
cia. São Paulo: HUCITEC, 1996 5 MARICATO, 1996.

1060 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1061
metidos. É surpreendente que experiências tenham sido levadas a cabo população e cada comunidade tem suas necessidades e suas possibili-
de Norte a Sul do Brasil e só depois de muitos fracassos, que resultaram dades. Não há como se prever, por exemplo, um loteamento com lotes
em custos sociais muito altos, as autoridades responsáveis começaram de 500m² para a produção habitacional de interesse social, bem como
a reconhecer a inviabilidade do BNH em servir a população de rendas não se pode prever para uma população de nível mais favorecido, lotes
mais baixas, mantendo as regras do jogo”6. de 175m². Cada comunidade e cada cultura com sua respectiva neces-
Em 1988, em contraponto, a Constituição delegou que a Nação, sidade e sua respectiva possibilidade de habitação.
Estados e Municípios seriam os responsáveis por defender o direito à As leis municipais, de acordo com suas competências constitucio-
moradia. Com essa atribuição concorrente, os municípios, essencial- nais, deveriam permitir a flexibilização de padrões urbanísticos quando
mente, passaram a produzir habitação de interesse social, em virtude destinados à população de menor renda. Não se pode praticar a mesma
de inexistir uma política nacional no setor, com a extinção do BNH e o lei de parcelamento do solo e alguns pontos do código de edificações
sucateamento do SFH. Nesse período, entre 1986 e 2003, quando foi de um município integralmente em todos os projetos, principalmente no
criado o Ministério das Cidades, a política habitacional nacional ficou que concerne à produção habitacional de baixa renda e de alta renda.
delegada essencialmente aos Estados e Municípios, sendo que o agente Os lotes de alta renda terão outra configuração e o próprio loteamento
financiador do SFH acabou sendo o Banco Caixa Econômica Federal, destinado às classes mais favorecidas será totalmente diferente de um
através dos recursos do FGTS. loteamento popular.
Mas, através de uma política equivocada, ocorreu um rombo nas Entretanto, a flexibilização da normatização e dos padrões urbanís-
contas do FGTS, paralisando as concessões de crédito, no período de ticos deve permitir que não haja a “favelização” do empreendimento ou
1991 a 1995, quando se iniciou o governo do presidente Fernando do condomínio, ou seja, não se pode permitir a construção de edifica-
Henrique Cardoso. Desse governo até 2003, perpassando pelo início do ções subumanas, com padrões totalmente distintos da cidade formal,
governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, surgiram alguns progra- sem condições sanitárias e de conforto mínimas para sua população.
mas de produção de habitação de interesse social, tais como em 1996 A habitabilidade torna-se fundamental e o mais complexo é elaborar
o Pró-Moradia, em 1998 o Apoio à Produção, em 1999 o Programa de um projeto que atenda aos critérios financeiros (custos) e aos critérios
Arrendamento Residencial - PAR - e em seguida o Associativo, a Carta urbano-arquiteturais.
de Crédito para compra de material de construção, dentre outros me- Os municípios, nesse sentido, devem elaborar suas normas e leis que
nos significativos. Nesse período, foram investidos mais de 9 bilhões de complementem os estados e a Nação quanto às suas peculiaridades lo-
reais, sendo que 42% desse investimento foi aplicado na aquisição de cais. A extensão do país não permite a aplicabilidade do mesmo projeto
imóveis usados o que não diminuiu o déficit habitacional pois as famílias arquitetônico de Norte a Sul do Brasil, necessitando que cada municí-
mais beneficiadas foram as de renda entre 5 e 10 salários mínimos. pio, conforme sua disponibilidade de materiais, cultura e tamanho, tenha
De uma maneira sucinta, os entes devem permitir que todas as ques- suas próprias regras e suas próprias limitações projetuais. O “carimbar”
tões sejam abarcadas nos projetos, tanto nos critérios arquitetônicos, de uma tipologia em todo território brasileiro acaba por excluindo toda a
como jurídicos, sociais, ambientais, urbanísticos, dentre outros. Aquele parcela cultural/regional de cada localidade, não permitindo que o proje-
ente federativo que não legisla dentro de suas competências acaba por to seja concebido para aquela parcela da habitação em especial.
quebrando o triângulo mínimo para um bom desenvolvimento de produ- Na arquitetura e urbanismo, a concepção de um projeto é totalmen-
ção habitacional. te influenciada pelo Programa de Necessidades do Cliente. O Programa
Além disso, deve ser prevista na legislação no que concerne aos de Necessidades aponta o que é possível de ser elaborado, dentro dos
padrões urbanísticos, principalmente, que a cidade desenvolvida para recursos financeiros disponíveis, bem como os anseios do Cliente quan-
a população mais carente é e deve ser totalmente diferente da cidade to aos revestimentos, tamanho de ambientes, quantidade de ambientes,
desenvolvida para a população mais favorecida economicamente. Cada funcionalidade e estética. Neste caso de habitações populares, o Cliente
também tem seus anseios que devem ser levados em consideração no
6 MARICATO, 1996.

1062 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1063
primeiro traço do projeto arquitetônico/urbanístico e não é isso que vem pulares. Ainda, a Caixa com seus custos operacionais elevados restringiu
se disseminando na maioria das cidades brasileiras. o acesso ao financiamento pela população e, portanto, devia se analisar a
Na prática, a maioria dos conjuntos habitacionais criados foi oriundo utilização de novos agentes financeiros, inclusive cooperativas de crédito.
das Companhias Habitacionais – COHAB’s e Cooperativas Habitacionais Para resolver a situação, propôs-se que os três níveis de governo de-
– INOCOOPS, que acabaram produzindo casas térreas, geminadas, as- veriam formar um sistema articulado institucional e financeiro, formando
sobradas e apartamentos, além de financiamento de lotes e material de o Sistema Nacional de Habitação. Congregando os três níveis governa-
construção, realmente no intuito de erradicar as favelas. Esses projetos, mentais, os fundos de habitação, os órgãos da administração direta, os
disseminados de norte a sul do país, sendo a tipologia mais conhecida conselhos de habitação, o SFH teria força suficiente para reunir todas as
a de blocos laminares, projetava apartamentos populares, com áreas parcelas da população, bem como controlar socialmente e administrati-
menores, mas ao mesmo tempo com um caráter técnico quanto ao ta- vamente os órgãos públicos.
manho das peças, tamanho de esquadrias, definição de revestimentos e Além disso, foi proposta a criação do Ministério das Cidades, que
sistemas possíveis de barateamento das construções. teria incumbências de organizar e regrar a questão habitacional e urba-
A partir do Instituto Cidadania, foi criado o Projeto Moradia na ten- na (saneamento, transportes urbanos, política de ordenação territorial).
tativa de criar oportunidades no contexto da habitação de interesse O novo Ministério passaria a se preocupar, além das questões urbanas,
social. De início surgiu como um programa não-governamental exclusi- com a coordenação da política urbana e habitacional no país, estrutu-
vamente, mas sim um programa que envolvesse ONG’s, movimentos so- rando o Sistema Nacional de Habitação, elaborando o Plano Nacional
ciais, entidades de classe e universidades. Com a proposta de propiciar de Habitação e estabelecendo as regras gerais do financiamento habita-
a toda população uma moradia digna, houve reuniões entre arquitetos, cional. O Ministério, ainda, deveria regrar os fundos nacional, estaduais
urbanistas, sociólogos, administradores públicos, assistentes sociais no e municipais de habitação, bem como a forma de constituição dos con-
intuito de transformar a moradia como uma prioridade nacional e resol- selhos e a política urbana organizada. Ao ser criado, o Ministério defini-
ver o déficit habitacional. ria ser a meta inicial a intitulação do Estatuto das Cidades, Lei Federal
Dessa maneira, foi analisado o orçamento nacional para dispor a ver- nº 10.257/2001, até então somente previsto.
ba necessária e disponível para a promoção dos programas habitacionais, Com o Estatuto das Cidades determinando a criação dos Planos Di-
avaliando qualitativa e quantitativamente as necessidades de moradia. A retores Urbanos, o Projeto Moradia assumiria ser importante a articula-
partir da análise das fontes de recursos disponíveis, definiu-se como meta ção com os Planos de Habitação, de forma a evitar concorrências lega-
que em quinze anos devia ser resolvido o problema do déficit e propiciar listas, bem como fortalecer a política habitacional. Com isso, os planos
que todo cidadão brasileiro tivesse uma moradia digna. definiriam programas, tipologias, localidades de maneira a concatenar
A partir da análise da disponibilidade de recursos, concluiu-se que o todas as ações urbanas ligadas. Com um planejamento de equaciona-
FGTS poderia ser uma boa fonte de recursos, pois o mesmo tinha supe- mento do problema, as estratégias, diretrizes, prioridades, prazos e ne-
rávit desde 1996, bem como que a União, os estados e municípios apli- cessidades da comunidade em nível local, permitiram a produção de
cavam uma parcela de seus recursos na habitação desarticuladamente. um Plano Estadual Regional (Estadual) e o Plano Nacional de Habitação
Com a competência concorrente, segundo o Instituto, as três esferas – PlanHab articulado.
governamentais implementaram programas ou projetos habitacionais Dessa maneira, o Projeto Moradia acabou atacando fortemente a
sem articulação, coordenação e planejamento, criando programas con- questão urbana, principalmente na teoria, de forma a facilitar e barate-
correntes ou não específicos. Portanto, o Projeto Moradia levantou a ar o custo da terra urbanizada, bem como a criação e demarcação de
necessidade de se propor um sistema único em que cada ente governa- zonas especiais de interesse social, permitindo a integração das classes
mental tivesse suas funções definidas e complementares um do outro. menos favorecidas com o traçado da cidade consolidada e legal.
Levantou-se, ainda, que os recursos na década de 80 limitaram-se a Nos últimos dez anos, o Governo Federal tem implantado o Pro-
aplicação em moradias para as classes médias, denegando as classes po- grama de Arrendamento Residencial-PAR, regido pela Lei Federal nº

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10.188, de 12 de fevereiro de 2001. O objetivo do PAR é o atendimen- des com até 50 mil habitantes. Por último, a Lei Federal nº 12.424, de
to com moradias para a população de baixa renda em grandes centros 2011, definiu que “O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem
urbanos ou nas Regiões Metropolitanas. A forma de acesso à moradia por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição
se dá através de um contrato de arrendamento residencial, com parce- de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos
las mensais consecutivas que culminam com a opção de compra ao final e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda
do período, usando-se os valores já pagos ao Governo. mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)”
A produção da habitação é do segmento da indústria civil, com pro- em cidades com população superior a 20.000 habitantes. Então, a LF
jeto, compra, construção financiada pelo Governo. Após, quando da en- 12.424/2011, acabou permitindo a abrangência de mais municípios no
trega, o empreendedor tem seu valor restituído, baseado nas tabelas programa, mas também limitando em renda de 8,5 salários mínimos,
de financiamento por unidade da Caixa e a Caixa cobra os valores do aproximadamente, que ao ser atualizada não poderá exceder os 10
arrendamento diretamente do Cliente. A indicação das famílias que po- salários mínimos, permanecendo inalterado o público alvo (Inciso I, do
derão ser beneficiadas pelo empreendimento vem dos poderes públicos parágrafo 6º do artigo 3º).
locais, ou seja, das Prefeituras Municipais e seus derivados órgãos de Além disso, o artigo 2º da LF 11977/2009 (redação dada pela
habitação ou moradia. LF 12.424/2011) em seu Inciso I define que para a implementação do
A destinação do empreendimento sob a forma de PAR se dá para PMCMV, a União “concederá subvenção econômica ao beneficiário pes-
o cadastramento de famílias junto aos municípios de renda de até seis soa física no ato da contratação de financiamento habitacional”, limita-
salários mínimos. Somente municípios com mais de 100 mil habitantes do às famílias de renda familiar não superior a R$ 2.790,00 ou seis sa-
(conforme o Censo Demográfico do IBGE-200) podem ter programas lários mínimos atualizados. Essa subvenção tem a finalidade de reduzir
desse tipo e, para tanto, devem fornecer estrutura para a população se o custo da habitação para as famílias mais carentes, tendo seus valores
cadastrar nos programas, através de uma secretaria competente. máximos definidos pelo Poder Federal.
Além da questão urbana, econômica, arquitetônica, é obrigatório Ainda, a lei permite que a subvenção seja maior que a determinação
a execução de Trabalho Técnico Social quando da entrega dos imóveis federal, desde que seja concedida pelos Estados ou Municípios, com
pelo PAR. O trabalho social, executado por pessoas jurídicas creden- créditos tributários, fiscais, assistência ou recursos financeiros. Além dis-
ciadas à Caixa, visa à inserção da população no programa de arrenda- so, torna-se obrigatório a execução de Trabalho Técnico Social em em-
mento, havendo a apresentação do empreendimento, como se portar, preendimentos para populações de renda de até três salários mínimos
direitos e deveres, de forma a garantir que o condomínio ou o lotea- e o trabalho deverá ser executado e supervisionado pelos estados ou
mento tenha condições de habitabilidade quanto às relações humanas. municípios.
O trabalho social é sem dúvida um dos fatores primordiais para que o Com relação aos critérios técnicos, a legislação não define nenhu-
empreendimento funcione em todos seus aspectos. ma especificação quanto ao tamanho das edificações, revestimentos,
O Programa Minha Casa, Minha Vida foi instituído a partir da Lei formas de construção e tudo mais que concerne. Define, somente, as
Federal nº 11.977, de 01 de julho de 2009, que regula tanto o PMCMV diretrizes gerais de contratação, bem como a abrangência do Programa.
como os programas de regularização fundiária de assentamentos Entretanto, ao mesmo tempo, a União lançou uma Cartilha do progra-
em áreas urbanas. Quando da sua criação, a legislação definiu que o ma com algumas definições básicas, calcadas no estudo e aprovação
PMCMV tinha como finalidade “criar mecanismos de incentivo à produ- dos empreendimentos pela Caixa. Dessa maneira, a caixa acaba sendo
ção e à aquisição de novas unidades habitacionais pelas famílias com responsável pela análise dos projetos e repasse dos valores, diferencian-
renda mensal de até 10 (dez) salários mínimos, que residam em qual- do-se do PAR, na medida que a construção de até 3 salários mínimos
quer dos Municípios brasileiros.” Após, a redação foi alterada pela Me- acaba sendo “comprada” pela Caixa, que comercializa diretamente e as
dida Provisória nº 514, de 2010, que excluiu a limitação de renda, bem demais construções até 10 salários mínimos cabem aos construtores a
como definiu que os recursos somente poderiam ser aplicados em cida- sua comercialização.

1066 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1067
Entretanto, a especificação com metragem mínima, número de am- famílias com maior renda familiar, a família analisará se aquele projeto
bientes e revestimentos da edificação acaba por carimbar um estilo na- ou aquele empreendimento está de acordo com suas necessidades e
cionalmente, na medida que os critérios mínimos acabam sendo disse- anseios, bem como se o custo está adequado ao que lhe é oferecido. En-
minados pelo país pelo fator preço. É indubitável que o empreendedor tretanto, a Caixa define um limite máximo de financiamento para esses
irá realizar empreendimentos com o mínimo de infraestrutura e reves- imóveis, não permitindo, com isso, o distanciamento do cunho social de
timentos de baixo nível, de forma a baratear seus custos e aumentar uma moradia digna, mas dentro de padrões previamente estabelecidos
sua margem de lucro. Da maneira estigmatizada, o empreendedor irá pelo custo da obra.
receber o mesmo valor pela unidade habitacional utilizando-se, ou não, A diferença maior entre os financiamentos para a segunda (3 a 6
acabamentos de primeira classe. Portanto, é natural que os edifícios SM) e a terceira fases (6 a 10 SM) está na concessão do subsídio. So-
construídos por empreendedoras acabam tendo a mesma configuração, mente famílias com faixa de renda de 3 a 6 salários mínimos poderão
muitas vezes a mesma planta da unidade, bem como do edifício, quan- obter subsídio na compra da casa própria pelo PMCMV, limitado a R$
do se trata de unidades multifamiliares. 23.000,00. Isso significa que ao comprar um imóvel de R$80.000,00,
O PMCMV distinguiu três faixas específica para promover o finan- a família somente financiará R$ 57.000,00, pois o restante será sub-
ciamento: a primeira faixa se refere às famílias com renda familiar dos 0 sidiado pelo governo, desde que ela tenha uma renda em torno de
aos 3 salários mínimos, a segunda faixa dos 3 aos 6 salários mínimos e R$800,00, por exemplo. Quanto menor a renda familiar, maior o sub-
a terceira dos 6 aos 10 salários mínimos. Na primeira e segunda faixas, sídio que a Caixa dá, como uma espécie de desconto àqueles que pos-
a Caixa oferece o subsídio para a compra da casa própria, enquanto que suem rendas menores.
na terceira faixa somente oferece juros baixos para comercialização. A padronagem nacional de uma tipologia residencial destinada à
Para a primeira faixa (0 a 3 salários mínimos de renda familiar), a Cai- produção habitacional para classes mais populares proporciona a redu-
xa estipula valores máximos (limites) de financiamento de cada unidade ção de custos e a otimização de mão-de-obra e compra de materiais,
habitacional, seja ela em forma de apartamento (multifamiliar) ou casas produzindo industrialmente um sistema. Com a construção industrializa-
(unifamiliar). As famílias inseridas nessa faixa devem se cadastrar nos Es- da, os imóveis acabam tendo a mesma qualidade e padrão de constru-
tados ou municípios e serão escolhidas conforme sua renda e sua inscri- ção e, com isso, o empreendedor poderia onerar mais suas obras com
ção para serem contempladas pelos imóveis. Os imóveis, ainda, deverão melhores acabamentos pois o custo da edificação acaba se dissolvendo
atender a uma especificação mínima que será avaliada quando da apro- em grandes quantidades.
vação do empreendimento pela Caixa. Essa especificação mínima serve Em um loteamento com mais de cem unidades de casas gemina-
de maneira a equiparar, mais uma vez, os projetos, não permitindo altera- das, ou as chamadas casas em fita, de mesma planta baixa, o empreen-
ções substanciais de inferioridade quando aos acabamentos. Além disso, dedor poderá otimizar sua mão-de-obra organizando a construção em
é exigência da Caixa, quando da aprovação do projeto, o lançamento de formatos de fitas em que há otimização da infraestrutura instalada que
um trabalho Técnico-Social permitindo a inserção da comunidade a ser sempre se torna um custo imenso em um loteamento. Na medida que
formada na malha urbana da cidade bem como na melhoria das condi- se adota residências em terrenos geralmente de sete metros por vinte e
ções sócio-pessoais, auxiliando a nova comunidade nas mais diferentes cinco metros, por exemplo, toda a rede pública instalada acaba sendo
áreas, incluindo geração de trabalho e renda, atitudes comportamentais, mais utilizada e, consequentemente, cada metro linear de pavimento
utilização de suas moradias, entendimento de regimento interno e con- das vias, rede de iluminação pública, distribuição de energia, abasteci-
venção de condomínio (direitos e deveres), dentre outros fatores. mento de água, recolhimento de esgoto pluvial e cloacal acaba sendo
Com relação às unidades habitacionais destinadas para famílias com dividido entre uma maior quantidade de lotes, reduzindo o custo de
renda entre 6 e 10 salários mínimos, a Cartilha da Caixa não orienta em cada lote com a edificação.
nenhuma especificação mínima, sendo que o que regulará a qualidade Da mesma maneira, a generalização tipológica, bem como arquite-
dos empreendimentos será o mercado. Por se tratarem de projetos para tônica, permite que as grandes construtoras nacionais possam comprar

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revestimentos e materiais de construção em grandes quantidades o que Além disso, Haesbaert define que o território acaba se transfor-
seria perfeito para a redução dos custos de construção e de comercializa- mando em uma área/espaço em que há uma dimensão política definida
ção, mais uma vez. Além disso, a organização das plantas baixas de cada (demarcação) e esses limites desempenham a territorialidade, definindo
unidade, concentrando as chamadas área sumidas (cozinha, banheiro e tanto o próprio espaço como a região em que se promovem as relações
lavanderia) seja nas casas ou nos apartamentos permite uma redução de humanas. Ao mesmo tempo, esse território, segundo o autor, pode se
quantidade de material hidráulico e de complexidade de instalações. conformar em um espaço introvertido em que as pessoas acabam se
Portanto, a vantagem maior da generalização tipológica está centra- envolvendo em relações para se excluírem de outros grupos e confor-
da principal, senão exclusivamente, na redução dos custos de produção marem um único grupo, um único espaço com pessoas com as mesmas
e operacionalização das moradias. Essa redução caso fosse passada características.
para os futuros proprietários acabaria por permitir uma qualidade maior Portanto, o território acaba por tendo e dando identidade para
de acabamentos ou até no tamanho dos ambientes de cada residência, aquela comunidade ali inserida, com seus marcos físicos e ou teóricos
em virtude de que poderiam ser utilizados os mesmos limites máximos de espaço. As pessoas acabam se identificando com seu território a
de financiamento. Mesmo havendo uma especificação mínima, o dife- partir de relações sociais ou de relações físicas com os objetos ou visões
rencial de cada construtora seria a qualificação das moradias, permitin- ali inseridas. A quebra dessa área, dos elementos simbólicos nele inse-
do que se adaptasse ainda mais à cultura e identidade local. ridos, generalizando a relação humana e dando a mesma feição para
Com a implantação em grandes condomínios ou loteamentos, have- todos os espaços acaba por consagrando a desterritorialização.
ria também o predomínio de relações sociais entre as famílias habitan- O simbolismo de um território está justamente em cada elemento
tes. Essa relação social, caso fosse trabalhada com profissionais da área ou em cada memória daquela pessoa que ali vive, identificando-se com
de assistência social, pedagogos e sociólogos permitiria uma interação o espaço não meramente por ali morar/habitar, mas sim porque cada
entre as famílias com objetivos comuns, podendo gerar cooperativas um daqueles elementos ali inseridos retratam uma parte da vida daque-
econômicas ou organizações que melhorassem ou reivindicassem seus la pessoa e identificam uma relação boa ou ruim que ali ocorreu. Dessa
direitos em uma comunidade maior. Esse início de associação política maneira, o espaço acaba delimitando uma questão política-econômica
poderia disseminar idéias ou defender interesses das comunidades nos bem como de apropriação cultural.
mais diferentes âmbitos. Ao transportar a teoria de território e identidade para uma comunida-
De outro ponto de vista, juridicamente, a generalização também de carente, nota-se que aquela comunidade, mesmo às vezes estando em
permitiria a redução de custos com montagens de memoriais descriti- um ambiente indigno ou que demonstre uma certa exclusão social acaba
vos com vistas a individualização dos imóveis, honorários advocatícios se identificando com cada um daqueles espaços. Ao entrar em uma co-
e geração de matrículas. Embora a lei do PMCMV dê subsídios também munidade, as pessoas acabam por identificando os lugares pelos nomes
para o registro de imóveis, há uma considerável diminuição de trabalho dos moradores, pela profissão dos mesmos ou por fatos que ocorreram
se forem individualizados duzentos lotes com a mesma configuração de como o lugar onde ocorreu alguma atividade diferente do cotidiano diário.
planta-baixa, por exemplo. Os favelados (embora o termo pareça pesado para a explanação) acabam
Indubitavelmente, a maior desvantagem da generalização tipológica por constituir em suas favelas espaços em que há relações sociais, econô-
reside no caráter de territorialidade e identidade, ou melhor, na falta de micas, políticas e simbolismos ligados a todos esses fatos. Cada parte de
territorialidade e identidade. Na geografia, conforme Haesbaert e outros uma favela acaba tendo uma característica ou uma alteração urbana que
teóricos do assunto, a definição de território designa um espaço social acaba por identificando o espaço. As diferentes modalidades de residên-
marcado/defendido por determinadas espécies animais, constituindo-se cias, as diferentes cores e padrões das habitações, a paisagem que cada
seu espaço de sobrevivência. Esse território, na espécie humana, acaba viela transpassa, a perspectiva daquela rua, tudo acaba por identificando
sendo um “conjunto de relações que desenvolve uma coletividade”.7 o lugar, dando um ar simbólico e específico para cada um dos pequenos
pedaços do grande es­paço-território.
7 Claude Raffestin, 1986.

1070 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1071
Não se pode negar que toda comunidade autoconstruída acaba por lorização dos loteamentos com habitações unifamiliares, priorizando-se,
definindo alguns simbolismos e alguns espaços nos quais a identidade ainda, para a comunidade de baixa renda.
está presente. Cada um dos marcos de uma comunidade carente, embo- Os IAPI’s quando da sua concepção arquitetônica e urbanística es-
ra para os excluídos das favelas (classe média/alta) pode simplesmente tavam voltados para grandes loteamentos, mesclando áreas de blocos
parecer mais um pedaço de favela provoca relações no sub e consciente de apartamentos com residências geminadas, residências isoladas, com
daquela comunidade, refletindo simbolismos e identidade àquele lugar. áreas de lazer públicas, áreas de comércio separadas, em suma conso-
Na arquitetura, em especial no urbanismo, estuda-se e busca-se lidando novos bairros com residência e serviços de pequeno porte. Sua
muito a idéia da perspectiva. Ao parar em uma determinada rua, nos concepção arquitetônica, ainda, abrangia, obviamente, revestimentos
primeiros anos da faculdade, os professores acabam ensinando a pers- da época, com estilo arquitetônico mais simplista que o neoclássico,
pectiva que aquela rua promove no consciente humano. Para tanto, mas com alguns ornamentos ainda. Os ambientes eram relativamente
busca alguns pontos específicos que são chamados de marcos. Na ci- bem dimensionados, embora mínimos para a ocupação humana, mas
dade formal, esses marcos são muito claros, como, por exemplo, uma havia a preocupação de ventilação, luminosidade, ambiência, eixos e
avenida com canteiro central e palmeiras, uma determinada edificação todos os demais critérios formalistas arquitetônicos.
histórica, uma chaminé de uma indústria, uma via com calçamento de Quando surgiram as COHAB’s e INCOOP’s o sistema mudou. A par-
pedra irregular, dentre outros que são considerados fantásticos muitas tir de uma idéia simplista e minimalista arquitetônica, os conjuntos habi-
vezes pelos urbanistas. tacionais ocuparam-se com o mínimo dos mínimos no caráter arquitetô-
Mas, e na favela? E em uma comunidade carente? Esses marcos nico. A preocupação de constituição de fachada, de volumes, de cores,
também estão ali, também dão sua identidade ao local e também de- foi deixada de lado para dar lugar ao máximo de unidades possíveis por
vem ser preservados. Um exemplo, muito claro, é o campo de futebol hectare. As COHAB’s, geralmente em fitas, chegaram a ter mais de qua-
em uma comunidade carente. Mesmo sendo uma favela com inúmeros torze apartamentos por andar, em blocos geralmente mais horizontais
“barracos” ou semi-habitações amontoadas, sem terrenos, o campo de do que verticais, com quatro a oito andares. Os revestimentos ainda
futebol está ali presente. Está ali marcando um espaço, está ali dando a eram um pouco valorizados, com ambientes de medidas razoáveis para
identidade ao lugar, funcionando, inclusive, como referência de endere- a sobrevivência humana. Havia a maior valorização dos ambientes de
ço ou de localização. dormir, priorizando-os quanto às suas dimensões e diminuindo-se cada
Dessa maneira, a favela é um território e qualquer assentamento vez mais o tamanho das salas de estar e das cozinhas. Essa tendência se
habitacional informal/formal, autoproduzido ou loteado, deve ter suas inseriu também nos INCOOP’s.
características de territorialidade. Não é o que vem ocorrendo nos pro- Foram gerados inúmeros empreendimentos de INCOOP’s, diferen-
gramas habitacionais, em especial os do BNH, PAR e PMCMV. ciando-se das COHAB’s pelo seu critério mais simplista e minimalista
O BNH, a partir das COHAB’s e INCOOP’s, generalizou a tipologia a ainda, com circulações verticais geralmente abertas, sem corredores,
ser implantada em todas as cidades brasileiras: blocos de apartamen- com quatro apartamentos por andar, de diversos tamanhos atenden-
tos em fitas, geralmente com inúmeros blocos no mesmo condomínio, do diversas famílias, geralmente em formato de “H”. Dessa maneira, os
pouca ou nenhuma infraestrutura condominial, revestimentos simples INCOOP’s acabaram introduzindo o caráter de quanto menor a circula-
e mínimos (azulejos, por exemplo), nenhum trabalho social de inserção ção, menos gasto desnecessário, bem como que não é necessário o es-
da comunidade. Já o PAR e o PMCMV, embora com trabalho social, tudo da orientação solar, pois se terá apartamentos voltados para todas
mantiveram a tipologia básica proposta pelo BNH, com blocos de apar- as posições solares. Cada vez mais foi introduzido o caráter mercantil do
tamentos, uma maior infraestrutura condominial, revestimentos simples imóvel, não importando mais a luminosidade, os espaços de convívio,
e mínimos. Embora, em alguns casos isolados, tenha se produzido lote- mas sim a quantidade de apartamentos.
amentos de casas, a maior parte dos empreendimentos do BNH e do Com o PAR, embora com certa remodelação nos revestimentos (in-
PAR se consolidaram em apartamentos. Já no PMCMV, houve uma va- clusive pela época e novas tecnologias), os ambientes diminuíram-se ain-

1072 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1073
da mais, sendo possíveis de se colocar somente os móveis estritamente Todas essas modificações, quando não regradas e controladas, aca-
necessários, diminuindo-se a sala de estar e a cozinha a critérios míni- bam por modificando toda a estrutura básica de um loteamento ou a
mos de forma a obrigar as famílias a saírem de suas casas para terem fachada de uma edificação e, dessa maneira, os empreendimentos dis-
convívio social. Dessa maneira, viu-se necessária a criação de áreas de seminados por todo país acabam adquirindo características locais ou
convívio nos condomínios, para permitir que as famílias tivessem conví- regionais e acabam retornando a sua idéia de favela, sem regramento,
vio social visto que seus apartamentos tornaram-se muito pequenos. A sem padronagem de cores e estilos. Cada família, como já comentado,
tipologia adotada acabou se centrando, principalmente, em apartamen- tem sua necessidade e se adequar a essa necessidade conforma a iden-
tos de dois dormitórios, não importando o tamanho da família, mas sim tidade daquela família, portanto, é necessário que os projetos tentem
que a mesma teria sua casa e que se arranjasse dentro dela para dispor ao máximo criar identidades às unidades familiares.
seus ocupantes. A falta de identidade de cada empreendimento acaba por permitir a
Por último, mas não menos importante, o PMCMV permitiu a redução total despadronagem da obra e, com isso, tem se apontado o excessivo
ainda maior do tamanho das peças que compõem as habitações. Apresen- padrão de favela retornando a empreendimentos formalizados e estru-
tou duas tipologias básicas que acabaram sendo carimbadas em todas as turados juridicamente e urbanisticamente. Da mesma maneira, a falta
regiões do Brasil e assemelha-se quanto à disposição urbana em muito com do trabalho técnico-social contribui para esse movimento de retorno às
as COHAB’s e INCOOP’s e em formatação arquitetônica aos PAR’s. origens (busca de identidade), sem motivo retornando à configuração de
Analisando-se as exemplificadas tipologias de norte a sul do país, to- favela.
dos os programas habitacionais acabaram dando a mesma configuração Quando se refere à qualidade de vida, cada programa foi diminuin-
urbana e arquitetônica. Todos os programas habitacionais exemplifica- do os padrões mínimas de qualidade e conforto em seus projetos, culmi-
dos em Porto Alegre poderiam estar inseridos em São Paulo, Manaus, nando com o minimalismo total no PMCMV. O conforto, embora referido
Recife ou Curitiba, assim como existem já os empreendimentos. Existem geralmente como uma satisfação, um prazer de forma geral, refere-se,
COHAB’s em todo território brasileiro muito parecidos com o exemplo principalmente ao conforto térmico, acústico e lumínico. Ao estudar-se
apresentado. Existem projetos PAR na mesma característica e agora o conforto térmico de uma unidade habitacional construída nos moldes
têm existido muitos empreendimentos do PMCMV na mesma situação. do PMCMV, nota-se que há unidades dispostas para todas as posições
Então, esses projetos não estão caracterizando uma comunidade solares, forros de madeira em alguns cômodos e revestimentos cerâ-
em especial. Por exemplo, no sul do país, as famílias de origem mais micos por toda a habitação, além de disposição em forma de lâminas/
européia de todo o Brasil, tendem a se concentrar na cozinha. Nos em- blocos, impedindo a circulação da ventilação.
preendimentos apresentados, a cozinha é minúscula, tendo a metragem Mais uma vez, analisa-se que uma habitação com forro de madeira
quadrada mínima necessária para seus equipamentos. Além disso, no no nordeste será muito mais adequada termicamente do que a mesma
sul o frio é mais intenso e no nordeste menos intenso, mas as casas edificação no sul do país. Uma habitação situada no Norte com inten-
apresentam os mesmos revestimentos, as mesmas metragens e as mes- so índice pluviométrico será diferente de uma habitação localizada no
mas características de arquitetura. semi-árido nordestino. Um revestimento cerâmico no sudeste é termi-
Um exemplo de que a territorialidade e as características locais de- camente diferente do que no centro-oeste. A disposição em forma de
vem ser analisadas quando da concepção do projeto são os atuais lote- blocos, no Sul, permite uma ventilação diferente do que no semi-árido
amentos habitacionais favelizados. Tem se notado por todo o país que nordestino. Cada região do Brasil terá suas peculiaridades e as mesmas
alguns empreendimentos tanto de apartamentos como de residências devem ser apontadas no Programa de Necessidades e Condicionantes
têm sido modificados pela população, com acréscimo de um espaço quando da atividade projetual.
para guardar o automóvel, o fechamento de uma sacada, um espaço Acusticamente, ainda, tem-se notado que as habitações, principal-
maior de estar, o fechamento de uma lavanderia e sua inclusão na cozi- mente em formato de condomínios de edifícios têm pouco ou nenhum
nha, dentre diversas modificações que vêm surgindo. tratamento acústico. Ao adentrar um apartamento, todos os ruídos pro-

1074 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1075
venientes dos vizinhos laterais ou superiores acabam sendo ouvidos na ou mais populares, organizando desde o início a área de habitação de
edificação. As tubulações de água e esgoto também provocam ruídos e interesse social. Não há formas, em muitas situações de regularizar situ-
não possuem tratamento para minimização. ações pré-existentes, pois, urbanisticamente citando, em muitos casos
Por último, o conforto lumínico que é um dos pontos mais importan- a organização do sistema viário, de áreas para lazer, educação, saúde
tes tem a ver com a orientação solar das edificações. Muitas habitações, acabam ficando prejudicadas, necessitando, quase sempre, a elimina-
por exemplo, são voltadas para o Sul em seus ambientes de dormir, ção de algumas residências para a produção de uma cidade mais organi-
inexistindo incidência solar em todos os períodos do dia e do ano. A re- zada e integrada com a malha urbana regular da cidade. Então, quando
lação com o conforto térmico é muito intensa e, mais uma vez, em cada da regularização fundiária de uma favela pré-existente, muitas e muitas
região do Brasil a orientação deveria ser estudada. vezes, necessita-se eliminar residências que estão em leitos de futuras
Estudando o caso de Porto Alegre, a mesma teve uma maior difusão vias projetadas, abrir espaços de convivência no centro das cidades,
de apartamentos com as famosas COHAB’s e Cooperativas Habitacio- dentre muitos problemas jurídicos de regularização.
nais. Entretanto, ao longo do período de duração do Sistema BNH, os Então, a partir de 1997, viu-se que a legislação urbana do município
empreiteiros começaram a levar em consideração que era possível ga- não priorizava, ou sequer mencionava, a adoção de áreas que pudessem
nhar mais dinheiro se escolhessem terrenos mais periféricos, como nas ser destinadas para classes populares. Nessa intenção, foi proposta a
zonas Leste, Sul e Norte, afastando-se cada vez mais do Centro de Porto revisão do Plano Diretor municipal, elaborando-se o Plano Diretor de
Alegre. Nesse momento, passam a construir em grande quantidade ha- Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA-1999) no qual se grava-
bitações multifamiliares há grandes distâncias do Centro Comercial. ram áreas nas quais poderia haver a intervenção do Programa de Re-
A área dos terrenos também acaba se tornando fundamental na me- gularização Fundiária, denominando-as de Áreas Especiais de Interesse
dida em que se concentra uma grande quantidade de edifícios de tipo- Social (AEIS), equivalentes à atual denominação de ZEIS (Zonas Espe-
logia de Blocos, geralmente, com áreas de lazer no próprio condomínio, ciais de Interesse Sociais – Estatuto das Cidades).
que nasceram ou foram criadas após a conclusão do edifício. Então, não O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Porto
basta, simplesmente, ter-se o apartamento, é necessário área de lazer Alegre-PDDUA, Lei Municipal 434/99 apresenta em suas estratégias a
como quadras de esporte, salão de festas, estacionamento, dentre ou- questão habitacional de interesse social. Em especial no artigo 21, o
tras atividades. Então, com terrenos em torno dos dois hectares permite Plano Diretor especifica que a Estratégia de Produção da Cidade tem o
a instalação de 8 a 12 blocos de apartamentos, geralmente de pequena objetivo de promover o desenvolvimento da mesma através de ações e
estatura, com alvenaria portante, bem como a colocação de uma qua- instrumentos de ordenamento do território, com ações públicas e priva-
dra de esporte e um salão de festas, estruturas essas que se tornaram das para o estímulo ao desenvolvimento, bem como a implementação
indispensáveis na medida em que o distanciamento da infraestrutura da de política de habitação permitindo o acesso à terra pelas comunidades
cidade era imenso. A falta de praças públicas acaba trazendo para o pri- carentes, nível baixo e nível médio, incentivando a produção de habita-
vado, para o interior dos condomínios, a estrutura de lazer necessária. ções.
Exemplos disso são muito visíveis por toda a cidade de Porto Alegre O poder executivo de Porto Alegre ainda definiu que devem ser pre-
sendo que, atualmente, esses conjuntos habitacionais estão totalmente vistas as chamadas AEIS, com parcelas para promoção de regularização
inseridos na malha da cidade, pois eles próprios acabaram promovendo fundiária de reassentamentos informais com pouca ou nenhuma infra-
a urbanização das áreas. Para exemplificar, irá ser demonstrado e ana- estrutura instalada e não-habitabilidade das residências e as AEIS desti-
lisado o Condomínio Mal. Mesquita, na Rua Mal. Mesquita, no bairro nadas à produção de novos empreendimentos, sustentados na parceria
Teresópolis, em Porto Alegre/RS e o Condomínio da CORSAN, na Rua público-privada através de programas habitacionais, operações urba-
Buenos Aires, no bairro Jardim Botânico, em Porto Alegre/RS. nas consorciadas ou outros instrumentos jurídicos e urbanísticos para
É nítida que a irregularidade deve ser combatida desde o início, a organização da produção habitacional. Então, foi demarcado na área
através da produção de habitações para as classes menos favorecidas da cidade locais destinados à produção de HIS – Habitação de Interes-

1076 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1077
se Social, conforme pode ser observada na figura 10 apresentada no habitacional mas não dando condições muito melhores de vida. Embora
PDDUA. possa parecer exagero, mas as famílias estão saindo de favelas para
Outros instrumentos foram sendo adotados na cidade de Porto Ale- entrarem e morarem em novas favelas, pois logo haverá alterações no
gre, sendo que um de fundamental importância foi o urbanizador so- projeto básico para que as edificações se adaptem às necessidades in-
cial. Esse instrumento que foi introduzido na regulação urbanística do dividuais de cada morador. Está se regularizando uma favela e não se
município (Lei Municipal 9.162/2003) consiste na concessão de bene- dando qualidade de vida para as populações.
fícios para loteadores para a promoção de loteamentos regulares que O PMCMV está se conduzindo para acabar conformando projetos
acabariam se tornando clandestinos com a legislação para a cidade que acabem por sucumbirem às necessidades comunitárias, sem qual-
consolidada. A flexibilização da legislação, modificando e permitindo a quer preocupação estética, conforto ou social. Os trabalhos técnico-
mudança do padrão/regramento urbanístico, permite, em conjunto com -sociais por melhores que sejam realizados acabam por esbarrando no
a agilização dos procedimentos de aprovação dos projetos e a diminui- caráter técnico pois os projetos apresentados são pobres de materiali-
ção dos custos, a produção de loteamentos regulares. Dessa maneira, o dade, de criatividade e de individualidade. Não está se produzindo mo-
urbanizador social pode oferecer lotes a preços mais baixos e compatí- radias de qualidade, mas sim moradias. Está se resolvendo um proble-
veis com a renda das classes populares para a produção de habitação ma e se gerando inúmeros novos, pois esses novos guetos residenciais
de interesse social própria ou a doação ao município para a produção, irão se conformar, indubitavelmente, em novas favelas.
tratando-se de um acerto em que os três lados têm vantagens: o lotea- Hoje, tudo parece maravilhoso, com uma produção bienal de 1 mi-
dor, o município e a sociedade. lhão de novas residências, mas, urbanisticamente, está havendo uma
Esses problemas não se tratam de exclusividade desse ou daquele quebra da malha da cidade, com grandes conglomerados de habitações
governo, mas são questões conjeturais na medida que todos os progra- sem qualidade arquitetônica. As grandes cidades estão se tornando
mas habitacionais de cunho federal (financiamento) acabaram por se grandes canteiros de obras em que os únicos privilegiados estão sendo
consolidarem em grandes empreendimentos dispostos nas cidades sem as construtoras, como ocorreu no passado.
uma concepção real da cultura da comunidade para que estão sendo Quem lucrou e está lucrando com esses programas são os gran-
projetados. A disposição em massa, “colando e copiando” projetos de des empreendedores que acabam produzindo moradias de qualidade
norte a sul do país não permite a valorização de cada família que está inferior, mas cobrando o preço tabelado pelos programas federais. Em
indo morar naquele local, não dando condições sociais para essas famí- vez de aproveitarem a vantagem da generalização tipológica e concebe-
lias de se integrarem e entenderem que terão uma nova habitação com rem novos projetos dotados de variedade e qualidade arquitetônica, as
infraestrutura e dignidade humana. construtoras estão focando somente no lucro, inferiorizando cada vez
Os projetos têm se espraiado sem qualquer análise técnica, avalian- mais a qualidade dos materiais, o tamanho dos ambientes e a qualidade
do-se somente o custo da implantação, da construção, do lote, da infraes- de vida.
trutura e não se importando com o mais importante que é a moralidade Portanto, há de se avaliar a necessidade cada vez maior de partici-
das famílias, as condições de bem-estar, de conforto, extrínsecas e intrín- pação dos Estados e Municípios na concepção de programas de produ-
secas. Cada família com sua história de vida mercê o devido respeito e a ção habitacional, obrigando-os e dando-lhes condições de cobrar me-
alternativa de escolha do que considera melhor para si e das necessidades lhorias nos projetos, identidade e qualidade de vida. Generalizar com
materiais da mesma e os projetos não permitem essa discussão. Tratam- uma cartilha nacional não é o caminho para a produção de qualidade,
-se de projetos congelados e imexíveis em que o que importa é resolver mas sim a individualização por regiões ou localidades. Cada Município
um problema: o déficit habitacional; não importando se está agradando a deve ser dotado de profissionais que possam exigir uma qualidade pro-
família ou integrando-a à nova comunidade que está se formando. jetual, bem como criarem marcos legais para cada região e, com isso,
O PMCMV está surgindo na mesma ideologia, permitindo sim o de- permitir projetar com a feição da comunidade que no empreendimento
senvolvimento das construtoras/empreendedores, reduzindo o déficit habitará.

1078 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1079
Delegar toda a responsabilidade ao governo federal não permitirá a BRASIL. Minha Casa, Minha Vida: 1 milhão de casas – Crédito, emprego,
melhoria e a qualificação social dos empreendimentos. Pelo contrário, benefícios e esperança para os brasileiros. Brasília: Ministério das Cidades,
irá simplesmente omitir o poder regional e local de seus direitos e de- 2009.
veres quanto à habitação/moradia. Os deveres são de todos os entes _____________. Minha Casa, Minha Vida. Manual do Beneficiário, Apresen-
federativos e com o motivo de permitir a regionalidade das normas ur- tação de Propostas. Brasília: Ministério das Cidades, 2009.
banísticas, dos instrumentos jurídicos, urbanísticos e legais, da definição _____________. Caderno I – PLANHAB: Contribuições dos Seminários Re-
de critérios de identididade local, dentre outros aspectos que estão sen- gionais – Plano Nacional de Habitação. Brasília: Ministério das Cidades,
do relevados a terceiro e quarto planos. 2007.
A aprovação de um projeto parte do poder local, das secretarias de CARDOSO, Adauto Lucio. Habitação social nas metrópoles brasileiras:
planejamento urbano municipais e, portanto, essas secretarias devem es- Uma avaliação das políticas habitacionais em Belém, Belo Horizonte,
tar preparadas e capacitadas para cobrarem soluções diversas, solicitarem Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX.
características locais, terem o conhecimento técnico dos problemas em ca- Porto Alegre: ANTAC, 2007.
ráter regional. Talvez, dessa maneira, não se verá o PMCMV sucumbindo FERREIRA, João Sette Whitaker. A cidade para poucos: breve história da
da mesma maneira que o BNH se fragmentou, financiando moradias de propriedade urbana no Brasil. Brasília: Comissão de Justiça e Paz/CNBB.
classe média e abandonando as famílias mais carentes, simplesmente por HAESBAERT, Rogério. Des-territorialização e identidade: a rede gaúcha no
um fator político-econômico. Se a estratégia permanecer a mesma, não se nordeste. Rio de Janeiro: EDUFF, 1997.
permitirá o déficit habitacional, mas sim um boom de consumismo e mais IBGE. Objetivos de Desenvolvimento do Milênio – Relatório nacional de
uma vez abandonando as classes populares menos favorecidas. acompanhamento. Brasília : Ipea, 2004.
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Juliane Altmann Berwig1
Loteamentos urbanos, sua evolução
Resumo: Em compreensão ao atual cenário urbanístico de
parcelamento do solo, faz-se fundamental realinhar median-
te o método histórico-crítico os processos históricos que es-
timularam a evolução legislativa aplicada aos loteamentos
urbanos. Neste liame, verificam-se as conseqüências nega-
tivas da carência da legislação que instigaram e traduziram
a necessidade de uma legislação mais abrangente, a fim de
evitar os problemas, urbanísticos, sociais e ambientais. Com
base nestes aspectos, ressalta-se a importância do Estatu-
to da Cidade, bem como discussão de qual será o provável
futuro da legislação a partir do Projeto de Lei 3057/2000.
Palavras-chave: urbanização; loteamentos; legislação; esta-
tuto da cidade.

1. Contexto histórico da evolução


dos Loteamentos no Brasil

Entende-se, ao parcelamento do solo urbano como “o processo de


urbanização de uma gleba, mediante sua divisão ou redivisão em parce-
las destinadas ao exercício das funções elementares urbanísticas.”2 Este
é o conceito atualmente empregado para a implementação dos lotea-
mentos urbanos, sobre o qual são balizadas as mais diversas legislações
que evolvem todo o contexto urbanístico que circunda está forma de
produção de assentamento.
Entretanto, importante fazer referência, que essa concepção de par-
celamento do solo urbano é fruto de diversas interferências políticas,
econômicas, legislativas associadas aos momentos históricos que pade-
cia o Brasil.
Para tanto, em nosso país, a evolução histórica legislativa dos lotea-
mentos urbanos teve como estopim a Revolução Industrial, que motivou
1 Especialista em Direito Ambiental Nacional e Internacional pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS. Graduada em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Advogada.
2 SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981. p.
378.

1082 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1083
diretamente a urbanização das principais cidades brasileiras, resultando no que os estudiosos da cidade chamam de segregação espacial”.6
num verdadeiro “congestionamento metropolitano”. Neste período, nota-se um constante crescimento dos loteamentos,
Em decorrência da Revolução Industrial, “as cidades passam a se isso em razão da necessidade de adaptar a propriedade à capacida-
organizar em função do mercado, gerando um tipo de estrutura urbana de econômica da classe operária, que se fixava, paulatinamente, nos
que não só operava uma reorganização do seu espaço interno”,3 mas grandes centros industrializados, os quais necessitavam de constante
também uma redefinição de todo o espaço circundante, atraindo para a aumento de sua mão-de-obra.7
cidade grandes populações. Com este intuito, desde logo, se define a forma de ocupação da
terra urbana: dividida em lotes geométricos, o que facilitava sua mensu-
Como conseqüência, mas antagônico ao desenvolvimento da in-
ração à atribuir seu preço pelo loteador.8
dústria, a cidade da época, por ser desprovida de infraestrutura, passa
Entretanto, estas formas de aquisição de propriedade, seja por
a produzir uma grave problemática urbana. Sua capacidade de alojar
meio de ocupação clandestina, seja, pela compra de lotes por meio de
o grande número de novos citadinos era muitas vezes menor do que contrato de promessa de compra e venda, geraram diversos problemas,
a demanda, ou seja, o crescimento da população era totalmente des- pois a infraestrutura da cidade (saneamento básico, transporte, segu-
proporcional ao crescimento do território. Por conta disso, a papel de rança entre outros), não abrangiam as periferias, em razão de seu cres-
imã exercido pela cidade, rótulo construído pela Revolução Industrial, cimento desordenado. Ademais, os contratos de promessa de compra
aumentou constantemente o número de propriedades clandestinas. e venda de lotes, em caso de inadimplência, traziam enormes prejuízos
O número reduzido de residências disponíveis e a alta procura es- aos adquirentes, os quais na existência da cláusula resolutiva expressa
timulam a especulação imobiliária e, assim, a elevação do preço co- perdiam todas as quantias já pagas.9
brado pelas propriedades legais. As classes operárias, sem condições Nesta época, a implementação dos loteamentos urbanos, não era
econômicas de custear suas próprias residências, ocupavam, por vezes, contemplada por uma legislação específica, ou seja, não havia uma de-
de forma autônoma, as periferias da cidade. Outras, que possuíam um terminação do procedimento legal a ser aplicado ao parcelamento da
mínimo poder aquisitivo, adquirem lotes oferecidos pelos loteadores gleba. Além disso, os direitos que deveriam assegurar tanto o compra-
mediante pagamento parcelado, instrumentalizados nos contratos de dor quanto o vendedor dos lotes, eram embaraçosos, o que resultava
promessa de compra e venda, que, na sua maioria, se encontravam em em grandes litígios e injustiças.
situação de irregularidade e clandestinidade.4 A fim de solucionar tais problemáticas, iniciou-se a fase de juridiciza-
ção dos loteamentos urbanos, em que houve apresentações de projetos
Explica Saule Júnior que esta é a:
de lei junto a Câmara dos Deputados, que visavam regular matéria em
exata forma de uso e ocupação do solo urbano que configura o terri-
razão dos danos que a circundavam.10 Dentre os projetos apresentados,
tório das cidades informais demonstra que esta situação nas cidades é o executivo transformou em lei o Dec. - Lei 58/1937.11
uma tendência crescente e principalmente não é transitória. Isso quer Assim, o primeiro diploma legislativo que regulou a matéria foi o Dec.
dizer que a ordem legal urbana tem que conter normas e instrumentos - Lei 58/1937.12 Entretanto, este regulava apenas as relações entre lo-
jurídicos voltados a regularizar e disciplinar o parcelamento, o uso e teador e os adquirentes dos lotes, sem conter pautas sancionatórias de
ocupação do solo urbano com base na forma real e consolidada destes ordem civil ou penal, o que ensejou a proliferação dos loteamentos clan-
assentamentos humanos, que são informais, porém são áreas de mora-
dia permanentes das populações que não tem renda, e nem acesso ao 6 ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 40.
crédito para obter uma moradia no mercado formal imobiliário.5 7 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis
6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 16.
Rolnik, neste sentido, manifesta que este fato é denominado de
8 ROLNIK, op. cit., p. 54.
“movimento de separação das classes sociais e funções no espaço urba-
9 RIZZARDO, op. cit., p. 16.
3 ROLNIK, Raquel. O que é cidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 30. 10 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis
4 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis 6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 16.
6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 15. 11 Ibidem.
5 SAULE JR., Nelson. Direito à cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São 12 BRASIL. Decreto-Lei. Nº 58/37, de 10 de dezembro de 1937. Disponível em: <http://www.
Paulo: Parma, 1999. p. 23. planalto.gov.br/ccIVIL_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del058.htm>. Acesso em: 24 jun. 2011.

1084 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1085
destinos em todos os centros urbanos do país, o que era a maior preocu- segurança, inexistência de luz, água, esgoto, etc.”.23
pação, causando sérios prejuízos à ordem urbanística das cidades.13 Esta situação urbana, em virtude da norma legislativa, perdurou até
O Dec. 3.079/193814 veio regulamentar o Dec. - Lei 58/193715, em a edição do Dec. - Lei 271/196724, que dispôs sobre o loteamento ur-
razão de sua natureza jurídica, mas nenhuma inovação trouxe a matéria.16 bano e a responsabilidade do loteador, estabelecendo também regras
No ano de 1939, trouxeram algumas alterações, o Dec. e procedimentos por parte da administração pública local do município,
4.857/193917, denominado como Lei dos Registros Públicos, abordan- no que tange à fiscalização como ao policiamento das atividades dos
do normas sobre o registro dos loteamentos e contratos de promessa
loteamentos além de bifurcar a idéia de parcelamento do solo 25 em seu
de compra e venda, e o CPC/193918, nos seus arts. 345 e 346, que
art. 1º entre loteamento e desmembramento:
dispunha sobre a forma de impugnação dos registros de loteamento e
da execução dos contratos de promessa de compra e venda, através da Art. 1º - O loteamento urbano rege-se por este Decreto-lei.
adjudicação compulsória.19 § 1º - Considera-se loteamento urbano a subdivisão de área em lotes
Importa salientar, que mesmo com o Dec. 4.857/1939, e o destinados à edificação de qualquer natureza que não se enquadre no
CPC/1939 que trouxeram alterações voltadas para os contratos, por disposto no § 2º deste artigo.
quase 30 anos, ou seja, de 1938 (ano da edição do Dec. 3.079/1938) § 2º - Considera-se desmembramento a subdivisão de área urbana
até 1967 (ano da edição do Dec. - Lei 271/1967), os parcelamentos do em lotes para edificação na qual seja aproveitado o sistema viário
solo urbano e rural foram levados a efeito, sem nenhuma efetiva fiscali- oficial da cidade ou vila sem que se abram novas vias ou logradouros
zação pelo setor público. 20 Tal episódio se deu “por falta de uma autori- públicos e sem que se prolonguem ou se modifiquem os existentes.
zação legislativa que delimitasse atribuições mais eficazes e autorizasse § 3º - Considera-se zona urbana, para os fins deste Decreto-lei, a da
medidas enérgicas junto aqueles que fracionavam lotes de imóveis as edificação contínua das povoações, as partes adjacentes e as áreas
escusas das exigências mínimas à formação de núcleos habitacionais”.21 que a critério dos Municípios, possivelmente venham a ser ocupadas
por edificações contínuas dentro dos seguintes 10 (dez) anos.26
Sob este enfoque, se levarmos em conta que é exatamente no pe-
ríodo das décadas de 30 e de 70 que no Brasil se reluzem os maiores
efeitos da Revolução Industrial, fica claro compreender quais as conse- Assim, o Dec. - Lei 271/1967 procurava fortalecer o papel do
qüências no âmbito do parcelamento do solo e sua ocupação:22 “aglo- município, atribuindo-lhe o poder de fixar a destinação das áreas
meramento de favelas, cortiços, habitações sem a mínima salubridade e públicas, bem como, controlar a programação temporal dos lotea-
mentos.27 Além disso, em seu art. 3º equiparava o loteador ao in-
corporador, os compradores de lotes aos condomínios, e as obras
13 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. p.117. de infra-estrutura à construção da edificação. O que permitia a apli-
14 BRASIL. Decreto. Nº 3.079/1938, de 15 de setembro de 1938. Disponível em: <http://legis-
lacao.planalto.gov.br/legisla/legislacao.nsf/b2394d7e1ab9a970032569b9004e148d/f195bb0c8
cação analógica da Lei 4.591/196428, que rege o condomínio em
a276310032569fa005be6b9?OpenDocument>. Acesso em: 02 set. 2011. edificações na atualidade.29 Ainda “previa a regulamentação por meio
15 BRASIL. Decreto-Lei 58/37, de 10 de dezembro de 1937. Disponível em: <http://www.planal- de decreto do Poder Executivo e de normas que seriam baixadas pelo
to.gov.br/ccIVIL_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del058.htm>. Acesso em: 24 jun. 2011.
16 LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço 23 Ibidem, p. 188.
urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 186.
24 BRASIL. Decreto-Lei 271, de 28 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://www.planalto.
17 BRASIL. Decreto. Nº 4.857/1939, de 09 de novembro de 1939. Disponível em: <http://www. gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0271.htm > Acesso em: 24 jun. 2011.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D4857.htm >. Acesso em: 02 set. 2011.
25 LEAL, op. cit, p. 188.
18 BRASIL. Decreto-Lei. Nº 1.608/1939, de 18 de setembro de 1939. Disponível em: <http://
26 BRASIL. Decreto-Lei. Nº 271, de 28 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://www.planal-
www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.htm>. Acesso em: 02 set. 2011.
to.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0271.htm > Acesso em: 23 jan. 2010.
19 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis 27 SAULE JR., Nelson. Direito à cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 19. Paulo: Parma, 1999. p. 246.
20 LEAL, Rogério Gesta. Direito Urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço 28 BRASIL. Lei nº 6.015 de 31 de dezembro de 1973. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 186. br/CCIVIL/LEIS/L6015.htm>. Acesso em: 24 jun. 2009.
21 Ibidem. 29 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis
22 Ibidem, p. 187. 6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 21.

1086 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1087
BNH (Banco Nacional da Habitação), entretanto, esta regulamentação do que a lei veio com a tentativa de solucionar a questão dos loteamen-
nunca foi feita”.30 tos clandestinos causadores de “seriíssimos prejuízos aos adquirentes
Apesar dos municípios, neste momento, já serem detentores de po- de lotes e, especialmente, ao ordenamento urbanístico das cidades”,
deres suficientes para controlar o processo de urbanização de seus ter- a legislação veio, majoritariamente, contribuir de forma positiva para o
ritórios, a maioria não fazia o uso de tais poderes, abstendo-se de editar planejamento urbanístico das cidades.38
leis municipais sobre a matéria de parcelamento do solo urbano.31 Neste sentido, comenta Saule Júnior que:
Em paralelo, notou-se que gradativamente, a legislação passou a
imprimir na matéria do parcelamento do solo, a prioridade dos interes- as cidades informais caracterizadas pelas áreas onde se localizam as fa-
ses públicos sobre os interesses do setor privado. Exemplo disso é a velas, os loteamentos populares irregulares e clandestinos nas periferias
urbanas, nas áreas declaradas de proteção ambiental, as ocupações cole-
legislação que trata da expropriação, a qual não indeniza construções
tivas de área urbana, conjuntos habitacionais em condições precárias ou
irregulares, objetos de interesse da Fazenda Pública, tampouco, reco- abandonadas, os cortiços e habitações coletivas em condições precárias
nhece a área como lotes individualizados para fins de indenização.32 nas regiões centrais da cidade, são situações concretas que evidenciam a
Por fim, após mais de dois anos de tramitação no Congresso Nacio- necessidade de constituir uma política urbana contendo um novo marco
nal, em 20 de dezembro de 1979, é publicada atual Lei 6.766/1979, legal para as cidades com o objetivo de promover a integração sociais e
sobre o parcelamento do solo urbano33 que representou um avanço territorial da população que vive nestes assentamentos urbanos.39
no tratamento da matéria, estabelecendo exigências para assegurar a
compatibilidade do parcelamento com o interesse público. Posterior- Vale frisar, neste patamar, que o reconhecimento dos direitos ur-
mente, esta sofreu algumas modificações vindas das Leis 9.785/1999, banos é uma questão essencial para constituir as obrigações do Poder
10.932/2004 e 11.445/2007.34 Público. Dentre estas destaca-se a implementação de políticas sociais,
Importante observar que a Lei 6.766/1979, revoga quase que com- destinando recursos para a elaboração e execução de programas, com
pletamente o Dec. - Lei 271/1967,35 subsistindo este apenas, sobre a vista para a implementação da infra-estrutura e de equipamentos urba-
concessão de direito real de uso.36 nos. Do mesmo modo, a prestação destes serviços nas cidades infor-
A Lei 6.766/1979 é marcada como o primeiro momento em que mais, as quais apresentem alto grau de precariedade de qualidade de
a União editou normas urbanísticas gerais, fazendo uso de sua compe- vida urbanístico-ambiental.40
tência concorrente no campo do exercício do poder de polícia, o qual Outro aspecto relevante à implementação dos loteamentos, foi a
inclusive se proveio da própria Constituição. edição da CF/1988,41 que elevou o município à categoria de ente fede-
Há quem diga que a Lei 6.766/1979, em relação a dimensão urbanística rado, conforme determinações do art. 30, lhe atribuindo competência
“nada mais fez que incorporar os dispositivos já constantes das leis municipais específica para a ordenação do espaço urbano. Assim, verificou-se uma
mais avançadas, tornando-os obrigatórios para o conjunto dos Municípios”.37
Está opinião não é totalmente factível de exclusão, mas consideran- 38 MUKAI, loc. cit.
39 SAULE JR., Nelson. Direito à cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
30 SAULE JR., loc. cit. Paulo: Parma, 1999. p. 13.
31 Ibidem. 40 Ibidem, p. 48.
32 LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço 41 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Sena-
do Federal, 1988. Art. 30. Compete aos Municípios: I - legislar sobre assuntos de interesse local; II
urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 190.
- suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de
33 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas
6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 21. e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir distritos, observada a
legislação estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os
34 SAULE JR., Nelson. Direito à cidade. Trilhas legais para o direito às cidades sustentáveis. São
serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI -
Paulo: Parma, 1999. p. 246. manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil
35 BRASIL. Decreto-Lei. Nº 271, de 28 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://www.planal- e de ensino fundamental; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 53, de 2006) VII - prestar,
to.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0271.htm > Acesso em: 24 jun. 2009. com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da
população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamen-
36 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. p.117. to e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX - promover a proteção do
37 SAULE JR., loc. cit. patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual.

1088 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1089
verdadeira reformulação estrutural, onde as construções em área ur- zonas urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, as-
bana passaram a ser regidas, majoritariamente, pelas leis municipais, sim, definidas pelo plano diretor ou aprovadas por lei municipal”.43
sobretudo “pelo plano diretor do município, pelas leis de zoneamento e Salienta-se que em razão da área a ser loteada conduzir o prolonga-
pelos tradicionais Códigos de Obras e Edificações e de Posturas”, é claro mento da cidade, onde parcela da população se instalará as leis relati-
estes não podendo ser adversos à legislação constitucional. vas a esta forma de produção de habitação devem visar proteger tanto
O papel do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, foi fundamental, os ocupantes deste meio, quanto os futuros moradores, a fim de evitar
para a reestruturação deste cenário, pois instituiu a obrigatoriedade das os impactos e desastres ambientais, conferindo aos citadinos qualidade
cidades elaborarem seus Planos Diretores, conforme diretrizes estabele- de vida atual e futura. Para que isto se promova, é importante que o
cidas pelo art. 40 da lei. Dessa forma, os municípios passaram a repensar município tenha precaução e perícia na elaboração de suas leis, bem
toda a estrutura urbana de forma organizada e sistematizada, mapeando e como na expedição de suas licenças.44
segregando-a por atividades, as quais cita-se como exemplo: área destina- À estes ocupantes é fundamental lhes assegurar uma vida comunitária,
da a implementação de indústrias, a construção de residências, a expansão com toda infra-estrutura padronizada constante na cidade, atendendo, as-
do comércio, para a criação de parques de esporte e lazer, construção de sim, a todas as suas necessidades básicas.45 Define-se infra-estrutura bási-
escolas, universidades e hospitais, áreas de preservação ambiental, etc. ca as elencadas no § 5º do art. 2º, em redação da Lei 9.785/1999:
Nesse novo prisma, o desenvolvimento do complexo urbano pas-
sa, paulatinamente, a criar mecanismos para acautelar os problemas [...] consideram-se infra-estrutura básica os equipamentos urbanos de
urbanístico-ambientais, a fim de conjugar o progresso ao bem estar da escoamento das águas pluviais, iluminação pública, redes de esgoto
sociedade citadina. sanitário e abastecimento de água potável, e de energia elétrica públi-
Assim, o município passa a ser ordenador das normas para a imple- ca e domiciliar e as vias de circulação pavimentadas ou não.46
mentação dos loteamentos, pois conforme previsto no Estatuto da Cida-
de, cada município é livre para ordenar seu plano diretor, em anuência a Dessa forma, compete fundamentalmente à administração de cada
CF/1988. Entretanto, apesar da autonomia legislativa declinada aos mu- município, “através de políticas democráticas e instrumentos jurídicos
nicípios, estes não podem ultrapassar os limites estabelecidos na legisla- adequados, tomar as medidas necessárias para promover a gestão de
ção federal, ou seja, não tem o condão de minorar a proteção urbanístico- seu espaço, visando ao pleno desenvolvimento das funções sociais da
-ambiental limitada pelas legislações hierarquicamente superiores. cidade”,47 bem como para garantir a qualidade de vida desta. Neste
Por este motivo, é o plano diretor e zoneamento da cidade em que sentido, o urbanismo é inserido, pois atuante na urbanização mediante
se quer implementar o loteamento que, primeiramente, deve ser ob- estudos interdisciplinares, como observa Mukai:
servado, pois são com base nestes que se viabilizará ou não o início do
empreendimento, com a expedição das licenças.42 o sentido social do urbanismo moderno coloca-se como disciplina
Fica claro compreender que é a administração de cada município a interdisciplinar. Nele não mais pode o arquiteto sozinho se o pôr a
resolver seus problemas, porque convergem, na solução deles, conhe-
responsável para legislar sobre o parcelamento do solo, impondo penali-
cimentos especializados, econômicos, geográficos, estatísticos, jurídi-
dades, prazos e procedimentos para aprovação dos projetos, de acordo
cos, de engenharia sanitária, de biologia, de medicina e, sobretudo,
com a particularidade de cada região. políticos, no sentido de tomada de decisões prioritárias.48
Apesar das normas particulares de cada município, a condição bá-
sica para a implementação de um loteamento é que se situe em zonas
43 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis
urbanas, de expansão urbana ou de urbanização específica, conforme 6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 38.
determina o art. 3º da Lei 6.766/1979, em redação da lei 9.785/1999: 44 Ibidem.
“Somente será permitido o parcelamento do solo para fins urbanos em 45 Ibidem.
46 BRASIL. Lei Nº 9.785 de 29 de janeiro de 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/LEIS/L9785.htm >. Acesso em: 19 mar. 2010.
42 ALFONSIN, Betânia de Moraes, et al. Regularização da terra e moradia - O que é e como
implementar. São Paulo. Instituto Polis, 2002,. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secre- 47 LEAL, Rogério Gesta. Direito urbanístico: condições e possibilidades da constituição do espaço
tarias-nacionais/programas-urbanos/biblioteca/regularizacao-fundiaria/publicacoes-institucionais-1/ urbano. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 184.
guias-cartilhas-e-anuais/manual_regularizacao.pdf>. Acesso em: 23 jun. 2009. 48 MUKAI, Toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. São Paulo: Dialética, 2002. p. 17.

1090 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1091
Assim, uma das funções dos municípios à implementação dos lotea- autonomia municipal e da participação popular nas políticas públicas, a
mentos urbanos, conforme Lei 6.766/1979, art. 1º, é estabelecer normas sociedade vai paulatinamente se moldando as eminentes alterações.50
complementares relativas a este empreendimento, adequando o previsto Com isso percebe-se que estamos num momento em que a configu-
na lei de loteamentos, às peculiaridades regionais e locais. ração espacial da urbanização torna-se cada vez mais complexa, ainda
Ocorre que as atividades do município não se restringem à aprova- que persistam antigos padrões de desigualdade, observa-se também
ção da implementação do loteamento, pois este também deve ser efeti- uma dispersão espacial dos assentamentos, o que aumenta significati-
vamente atuante na fiscalização de todas as fases do empreendimento, vamente a porção do território comprometida com a urbanização.51
prezando pelos direitos dos adquirentes, bem estar da sociedade, pre- Este projeto, portanto, tem por objetivo de fazer uma revisão da Lei
servação do meio ambiente, tudo, conforme dispõe seu ordenamento. 6.766/1979 visando adaptá-la aos novos tempos, após a aprovação do
É imperioso que cabe ao município não só editar as normas e regula- Estatuto da Cidade, que trouxe diversas alterações ao regime jurídico
mentações, como segui-las e, inclusive, exercitar seu poder de polícia para das cidades. Uma das situações motivadoras deste projeto é a existên-
assegurar que o parcelamento do solo respeite as disposições legais. cia dos chamados condomínios fechados, que vem se proliferando pelo
Embora a diretriz do loteamento esteja traçada na Lei 6.766/1979, país, que atualmente estão proibidos pela legislação. Haja vista possuí-
não ficam afastados outros diplomas, haja vista presentes nesta, apenas rem acesso controlado, em que as ruas e as praças públicas não são pú-
requisitos mínimos. Em ocorrendo, na implantação do loteamento, a degra- blicas, não estando abertas ao conjunto dos moradores. Tal modificação
dação da cobertura florestal, necessidade há de se acionar outros diplomas significa a privatização de áreas públicas, que segundo muitos urbanis-
legais, condizentes a preservação ambiental e a sustentabilidade.49 tas consideram uma alteração legislativa negativa, que transformará os
Além da aprovação junto a prefeitura municipal para a implementação espaços da cidade, em espaços fechados, reduzindo a mobilidade das
do loteamento, este ainda necessita atender inúmeras exigências, sofrendo pessoas e a utilização destas áreas privativas.52
de forma direta e indireta fiscalização dos órgãos da administração pública, Pois bem, é um projeto significante, pois apesar de todos os requisi-
tais quais como: o IBAMA, a FEPAM e o Ministério Público. Assim, caso o tos a serem preenchidos e altos custos para parcelamento do solo urba-
loteador não respeite e nem atenda as exigências legislativas, resultando no, o loteamento ainda é a principal forma de se fazer cidades no Brasil
em um loteamento irregular, ou de forma ainda mais grave, em um lote- hoje. Desta maneira, dependendo do que for definido neste projeto,
amento clandestino, poderá ser alvo de multas e ações judiciais, em vista poderá se produzir um espaço urbano completamente diferente para os
das infrações cometidas e contra o meio ambiente e a população. cidadãos.53 Talvez um dos motivos do prolongado tempo que o proje-
Assim, a implementação de um loteamento não possui como algu- to esta tramitando seja em decorrência, principalmente, que transferir
mas atividades legislação específica que não necessite de complemen- para a legislação os loteamentos fechados possa resultar em inúmeras
tação, bem pelo contrário, o empreendimento até sua finalização é com- alterações na forma de organização da cidade.
posto por um conjunto de normas que devem ser respeitadas.
Para melhor compreensão faz-se cogente, o seguinte quadro com-
Com proposta semelhante, a respeito das legislações inerentes a im-
parativo, entre a atual lei de parcelamento do solo Lei 6.766/1979 e
plementação dos loteamentos urbanos, atualmente, tramita na Câmara
as alterações que traz o projeto de Lei 3057/2000, com os seguintes
Federal, o projeto de Lei 3057/2000, que trata do parcelamento do solo
ponto controvertidos:54
e da regularização fundiária em área urbana, com intuito de instituir uma
lei ampla sobre a questão, e que traz inúmeras alterações, tanto ao Direi-
50 COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal de parcelamen-
to Registral e Notarial, quanto mais ao Direito Ambiental e Urbanístico. to do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000. Revista Magister de Direito Ambien-
A proposta deste projeto é a edição de uma nova Lei de Responsa- tal e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, 2009. Bimestral, p.114.

bilidade Territorial, que surge em outro momento da nossa história, em 51 Ibidem.


52 ROLNIK, Raquel. Revisão da lei do parcelamento do solo está pronta para ser votada. Dispo-
decorrência de um conjunto de transformações políticas e sociais, com nível em:<http://raquelrolnik.wordpress.com/2009/08/27/revisao-da-lei-do-parcelamento-do-solo-
destaque a busca da consolidação da democracia, da construção da -esta-pronta-para-ser-votada-e-pode-redefinir-o-espaco-urbano>. Acesso em: 09 maio 2009.
53 Ibidem.
49 RIZZARDO, Arnaldo. Promessa de compra e venda: e parcelamento do solo urbano: Leis 54 COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal de parcelamen-
6.766/79 e 9.785/99. 6. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 41. to do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000. Revista Magister de Direito Ambien-

1092 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1093
Lei Federal
Projeto de Lei 3057/2000 - Lotes
6.766/1979
Área mínima = 125m²
- Loteamento; * Nos parcelamentos integra-
- Desmembramento; - Lotes
dos à edificação área mínima
- Condomínio urbanístico; Área mínima = 125m²
= 100m².
- Loteamento com acesso con- Testada mínima = 5m
1. Modalidades - Loteamento; * Nas ZEIS1 para municípios
trolado; com Gestão Plena2 permite
de Parcelamento. - Desmembramento;
- Parcelamento integrado a edi- área mínima < 100m².
ficação;
- Parcelamento de pequeno
- Contrapartidas
porte. - Contrapartidas
Município pode exigir
Além da reserva de faixa non
reserva de faixa non ea-
eadificandi, o município com
dificandi destinada a
Gestão Plena pode exigir em
equipamentos de abas-
lei:
tecimento de água, ser-
a)outorga onerosa para implan-
viços de esgotos, energia
tação de parcelamento;
elétrica, coletas de águas
2. Requisitos b)doação de área ou recursos
pluviais, rede telefônica e
Urbanísticos. para habitação popular;
gás canalizado.

- Áreas institucionais
Reserva mínima de 15% da
área total.
(+) área para infra-estrutura
básica e complementar.
- Áreas institucionais
(-) sistema viário (excluídas as
Destinada ao sistema vi-
vias)
ário para faixas de domí-
* Nas ZEIS para municípios
nio, espaços livres de uso
com Gestão Plena, permite <
público e equipamentos
percentual.
urbanos e comunitários.
* Dispensadas no caso de par-
celamento de pequeno porte.
* Em condomínio, devem ser
externas ao perímetro ou subs-
tituídas por doação para o fun-
do municipal de habitação.

tal e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, 2009. Bimestral. p.103.

1094 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1095
- APP – admite a intervenção - Infra-estrutura básica
ou supressão por utilidade pú- São os equipamentos urbanos
blica, interesse social ou baixo de:
- APP – admite supressão impacto ambiental (para se a) abastecimento de água po-
de vegetação com auto- transposta por sistema viário, - Infra-estrutura básica tável
rização do Poder Execu- usada implantação e manuten- São os equipamentos ur- b) disposição adequada de es-
tivo Federal quando for ção de sistema de drenagem banos de: goto;
necessária à execução de ou atividade de utilidade pú- a) escoamento das águas c) distribuição de energia elé-
obras, planos, atividades blica). pluviais; trica;
ou projetos de utilidade * Os parcelamentos em área b) iluminação publica; d) sistema de manejo de águas
pública ou interesse so- consolidada com a APP degra- c) esgotamento sanitário; pluviais;
cial. dada podem utilizá-la como d) abastecimento de água - Infra-estrutura complementar:
área de lazer (5% de imperme- potável; a) iluminação pública;
3. Requisitos Ambien-
abilização e 15% de ajardina- e) energia elétrica publica b) pavimentação;
tais.
mento). e domiciliar – vias de cir- c) redes de telefonia, fibra ótica
culação. e outras redes de comunicação
-EIA-RIMA
-EIA-RIMA3 e de gás;
Obrigatório:
Obrigatório: d) outros elementos não con-
a) para empreendimento maio-
a) para projetos urbanísti- templados na infra-estrutura
res que 1 milhão de m²;
cos maiores que 1 milhão básica.
b) para empreendimentos de
de m² (100 hectares);
significativos impacto ambien- - Estado
b) em hipóteses definidas
tal, segundo a autoridade licen- - Estado * Apenas Licença Ambiental:
na legislação estadual ou
ciadora. * Aprovação: a) nos parcelamentos em muni-
municipal.
a) localizados em área de cípios sem Gestão Plena;
interesse especial (prote- b) área superior a 1 milhão de
- Legislação Ambiental – parce- ção aos mananciais ou ao m².
- Legislação Ambiental –
lamentos devem observar leis e patrimônio cultural, histó- c) localizado em mais de um
não há referência.
planos de manejo. rico, paisagístico e arque- município;
ológico); d) com vegetação secundário
b) localizado em área li- em estagio médio e avançado
- Empreendedor
mítrofe do município, ou de regeneração do bioma da
a)Demarcação dos lotes e uni-
que pertença a mais de Mata Atlântica;
dades autônomas, áreas desti-
um município; e) cujo impacto ambiental direi-
nadas a uso publico e APPs;
c) área superior a 1 mi- to ultrapasse os limites territo-
- Empreendedor b)Implantação do sistema vi-
5. Competência lhão de m². riais de um ou mais municípios;
Infra-estrutura básica: ário; da infra-estrutura básica
no Licenciamento * Anuência Prévia: f) cuja implantação coloque em
constituída pelos equipa- (exceto sistemas individuais
a) da autoridade metro- risco a sobrevivência da espé-
mentos urbanos de es- de disposição de esgoto); da
politana. cie da fauna ou da flora silves-
coamento das águas plu- infra-estrutura complementar
tre ameaçada de extinção.
viais, iluminação publica, exigida por lei das edificações
4. Responsabilidades
esgotamento sanitário, no caso do parcelamento in- - Município
abastecimento de água tegrado à edificação; e a recu- * Fixação de Diretrizes: em
potável, energia elétrica peração das APPs definidas na - Município
qualquer situação
publica e domiciliar e vias licença urbanística e ambiental * Fixação de Diretrizes e
* Emissão de Licença urbanísti-
de circulação. integrada; Aprovação: nos casos em
ca e ambiental integrada:
c)Manutenção da infra-estrutu- que a competência não
a) nos municípios sem Gestão
ra básica e complementar e das for estadual nem da auto-
Plena: com licença ambiental
áreas destinadas a uso publico ridade metropolitana do
estadual;
ate a expedição da licença final Município.
b) nos municípios com Gestão
ou instituição de condomínio. Plena: em qualquer situação.

1096 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1097
- Proposta de classificação dos De forma geral, as novidades da proposta da Lei de Responsabi-
6. Municípios com
Municípios quando a sua ges- lidade Territorial, evidenciam uma maior centralização da função dos
- sem previsão. tão das questões urbanísticas
Gestão Plena municípios no parcelamento solo, exigindo a manutenção de quadros
e ambientais implicadas no
parcelamento do solo. capacitados no nível local, a fim de consagrar uma política sólida em
prol dos direitos coletivos.56 Por outro lado, as mudanças implantadas
- Faculta a autorização - Para novos parcelamentos
dos loteamentos e des- * aplicação do instrumento de neste projeto, resultarão em verdadeiras mutações do espaço urbano,
membramentos não-au- intervenção, que autoriza o mu- tanto positivas quanto negativas.
torizados ou executados nicípio a assumir parcelamento
sem observância do ato executado em desacordo com
7. Regularização de aprovação, diferente o projeto aprovado.
Fundiária do parcelamento irregular - Para os parcelamento irregu- 3. CONCLUSÃO
(aprovado, mas executa- lares já existentes
do em desacordo com a * aplicação das normas de Re-
A explosão demográfica combinada a falta de infraestrutura urbana
legislação ou não registra- gularização Fundiária contidas na
do) e o clandestino (não proposta e ainda na lei municipal e a inexistência de uma legislação atuante fez emergir em série diversos
aprovado). que deve disciplinar a matéria. problemas urbanístico-ambientais, dentre eles os loteamentos clandes-
Fonte: COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal de tinos e irregulares, que por sua vez descontextualizados urbanisticamen-
parcelamento do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000. Revista Magis- te, resultaram numa cadeia de danos sociais, ambientais e urbanísticos.
ter de Direito Ambiental e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, 2009. Bimestral. p.103. De sobremaneira, ainda que houvesse alterações legais à regulari-
zação das habitações, nesta época, não havia uma compreensão de que
Em resumo, a proposta da Lei de Responsabilidade Territorial, traz dentro do contexto urbano paira um universo muito além das estrutu-
as seguintes inovações: rais físicas, há interferências das mais diversas áreas, com abrangência
interdisciplinar. Este é o sentido social do urbanismo da era moderna.
– a regulamentação referente à regularização fundiária sustentável,
Está ótica somente foi revertida com o advento da Lei Nº
que pressupõe a urbanização prévia do assentamento;
6.766/1979, tornando claras as exigências e regras entre o loteador e
– novas modalidades de parcelamento, entre estes o parcelamento
integrado à edificação, o condomínio urbanístico e, nas disposições o adquirente dos lotes. A partir daí passamos a ter uma solução parcial
finais, a controvertida legitimação do loteamento fechado; da problemática dos loteamentos urbanos. O grande problema ainda
– o licenciamento urbanístico e ambiental integrado, visando dar mais estava na sistematização do crescimento do complexo urbano o qual
racionalidade e integração ao processo de licenciamento do parcela- reflete seus efeitos tanto na esfera social quanto ambiental.
mento, mas que requer maior detalhada para ser auto-aplicável; Dessa forma, a CF/1988 trazendo forte em si a questão da função so-
– a introdução de duas categorias de responsabilidade dos municí- cial da propriedade e a elevação dos municípios a entes federados fez bro-
pios a partir da noção de gestão plena; tar uma nova visão sobre as cidades. Com o Estatuto da Cidade, Lei Nº
– a inovadora, porém potencialmente problemática, adoção da noção
10.257/2001 foi possível dar o primeiro impulso e, assim, concretizar a
de compensação já amplamente adotada na legislação ambiental;
– a introdução da figura da intervenção do município no processo de aplicação e criação de sistemas organizacionais de crescimento em cada
parcelamento do solo em desconformidade com a regulamentação; cidade brasileira. Além disso, despertou-se nas administrações municipais
– a controvertida regulamentação das formas e circunstancias de ocu- (das cidades mais desenvolvidas) a importância da consolidação de um Pla-
pação das APPs – Áreas de Preservação Permanentes; no Diretor e de um Zoneamento territorial, pois sendo a cidade um sistema
– a garantia dos direitos do comprador, associando princípios de pro- interligado, em que cada atividade produz reações positivas e negativas nas
teção do consumidor aos de direitos do cidadão.55 demais, é preciso uma ação preventiva as contínuas conseqüências.
55 COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal de parcelamen- 56 COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal de parcelamen-
to do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000. Revista Magister de Direito Ambien- to do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000. Revista Magister de Direito Ambien-
tal e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, 2009. Bimestral. p.114. tal e Urbanístico, Porto Alegre: Magister, 2009. Bimestral. p.115.

1098 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1099
Nestes termos, a questão ambiental tem um inter-relacionamento BRASIL. Decreto-Lei. Nº 4.857/1939, de 09 de novembro de 1939. Disponível
com o desenvolvimento urbano, pois eficazes diretrizes urbanísticas em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1930-1949/D4857.htm >.
para implementação adequada de empreendimentos é que evitarão os Acesso em: 02 set. 2011.
BRASIL. Decreto-Lei. Nº 1.608/1939, de 18 de setembro de 1939. Disponível
impactos e danos ambientais. Está se falando, assim, em interesses di- em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del1608.
fusos, em que não há como identificar os sujeitos afetados pelas ativida- htm>. Acesso em: 02 set. 2011.
des. Todos os citadinos são usuários do mesmo espaço territorial sem BRASIL. Decreto-Lei 271, de 28 de fevereiro de 1967. Disponível em: <http://
possível distinção. www.planalto.gov.br/ccivil/Decreto-Lei/Del0271.htm > Acesso em: 24 jun. 2011.
Para tanto, é preciso que para a constituição de um Plano Dire- BRASIL. Lei Nº 11.445, de 05 de janeiro de 2007. Disponível em: <http://
tor e um Zoneamento Urbano seja constituída pela administração uma www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/lei/l11445.htm>. Aces-
so em: 14 abr. 2010.
visão interdisciplinar de toda a cidade, atendendo aos mais diversas BRASIL. Resolução do CONAMA nº 86 de 23 de janeiro de 1986. Disponível
disciplinas, tais como: ambientais, geográficas, engenharias, sanitárias, em: <http://www.cetesb.sp.gov.br/licenciamentoo/legislacao/federal/resoluco-
pavimentárias, política, econômica, estatístico, jurídico, social, cultural, es/1986_Res_CONAMA_1_86.pdf>. Acesso em: 20 mar. 2011.
histórica, medicinal, etc. COSTA, Heloísa Soares de Moura; PRIETO, Élisson Cesar. Revisão da lei federal
Portanto, é imprescindível que o Projeto de Lei 3057/2000 seja de parcelamento do solo: um debate sobre o substitutivo ao PL 3.057/2000.
analisado com uma lupa, pois em se tratando de uma das legislações Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, Porto Alegre: Magister,
2009. Bimestral.
responsáveis pela expansão da cidade é preciso se voltar ao passado, a COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Direito ambiental das cidades: questões
fim de se precaucionar as seqüelas produzidas pelas impensadas legis- teórico-metodológicas. In. COUTINHO, Ronaldo; ROCCO, Rogério (Orgs.). O di-
lações, que resultaram em danos transtemporais. reito ambiental das cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.
FERNANDES, Jéferson Nogueira. O direito fundamental ao desenvolvimento
sustentável. Revista de Direito Ambiental, Porto Alegre: Revista dos Tribunais,
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1100 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1101
Direito à moradia digna e educação e a violência atinge todo o conjunto de habitantes que vive na malha
urbana e de forma mais perversa os moradores das periferias e áreas
emancipadora. O paradigma da Rede de risco. Portanto, é necessário que se busque novas formas de gestão
de sustentabilidade da Vila Chocolatão das políticas habitacionais das cidades, pois o modelo atual não tem
sido eficiente e tem gerado efeitos danosos para toda a população. As-
sim, as soluções para estes problemas não devem se limitar apenas ao
Vânia Gonçalves de Souza1
déficit habitacional stricto sensu e à construção de novas moradias. Al-
Denise Souza Costa2
ternativas de políticas públicas integradas, visando o desenvolvimento
Resumo: As cidades concentram mais de 50% da popula-
humano, a emancipação das populações mais vulneráveis e a sustenta-
ção mundial, no Brasil, mais de 84,5% da população habita bilidade dos complexos habitacionais devem ser pensadas, estudadas
em área urbana. Esta ocupação está ocorrendo sem plane- e aplicadas.
jamento, de forma precária, gerando graves problemas so- Neste sentido, há necessidade da elaboração de programas ou polí-
ciais, econômicos e ambientais. O presente estudo tem por ticas públicas3 de habitação mais eficientes4 e eficazes com a finalidade
objetivo abordar o direito à moradia digna, lançando um de planejar a ocupação da cidade, reduzir o déficit habitacional e impedir
novo olhar às habitações de interesse social. Sendo assim,
analisa os desafios para a efetividade do direito fundamen-
que a exclusão sócioespacial continue a ser produzida. O planejamento
tal à habitação e propõem a aplicação de uma nova tec- da política habitacional deve ser aplicado de forma integrada, pois de-
nologia social de inclusão sócioespacial das camadas mais pende de soluções de vários setores: como infraestrutura, saneamento,
vulneráveis da população por meio de um programa educa- saúde, educação, emprego e geração de renda. As maiores dificuldades
cional emancipatório, visando o desenvolvimento humano e em relação à ocupação justa e equilibrada do solo urbano está em solu-
o resgate da dignidade da pessoa humana. Neste sentido, cionar o déficit habitacional das camadas mais vulneráveis das cidades.
apresenta-se o projeto de reassentamento da Vila Chocola-
tão em Porto Alegre, onde está sendo implantada a rede de
O problema é complexo e deve ser pensado de forma multidisciplinar,
sustentabilidade desta comunidade por meio da utilização trabalhando as questões urbanas e humanas, visando a concretização
dos conceitos e métodos da governança solidária local e do do direito à moradia digna.
UN Global Compact Cities Programme das Nações Unidas.
Palavras chaves: Moradia digna, educação emancipatória,
governança, desenvolvimento humano. O direito à moradia no Estado Constitucional

O Estado Constitucional contemporâneo5 tem um caráter partici-


Introdução pativo, assumindo a primordial responsabilidade de ser o instrumento
para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária. Nesse con-
A utilização do solo urbano sem planejamento e a má gestão pú- texto, são fundamentos basilares do Estado Democrático de Direito6 os
blica das cidades desencadeia um série de problemas cada vez mais
complexos e de soluções onerosas.  A mobilidade urbana desordena-
da, as enchentes, os desmoronamentos, a poluição dos recursos hí- 3 BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 47.
dricos, a poluição do ar, a impermeabilização da superfície do solo,
4 BINENBOJM, Gustavo. Temas de Direito Administrativo e Constitucional. Rio de Janeiro:
o desmatamento, o congestionamento, a reincidência de epidemias Renovar, 2008, p. 346. [...] a eficiência administrativa encerra um vetor para a ação administrativa,
devendo ser entendida como a busca da otimização da gestão com vistas à consecução dos melho-
1 graduada em Estudos Sociais pela PUCRS, consultora da UNESCO/SMGL, coordenadora da res resultados com os menores custos possíveis.
Rede de Sustentabilidade da Nova Vila Chocolatão de Porto Alegre 5 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 41.
2 advogada, consultora da UNESCO/SMGL, especialista em Direito do Estado e Mestre em Direito 6 MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio
Público pela PUCRS, Coordenadora do programa de redução gradativa de VTAs VTHs de Porto Alegre Fabris, 2001, p. 55.

1102 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1103
valores da “cidadania”, da “dignidade da pessoa humana”7 e da “justiça de muitas áreas de preservação ambiental para dar espaço à moradias
social”. Estes objetivos estabelecidos na ordem constitucional serão re- precárias e ocupações irregulares, colocando em risco a vida de seus
alizados pelo Estado com ampla participação da sociedade, a qual lhes moradores. Os problemas habitacionais das áreas urbanas brasileiras
dá real legitimidade. A ordem econômica e social da atual Constituição são: o déficit habitacional13, a inadequação de moradias e a segregação
Federal estabelece a realização  do desenvolvimento e da justiça social, da população residente em assentamentos precários. Os programas de
com base na função social da propriedade8.  regularização fundiária, urbanização dos assentamentos e os reassen-
Neste cenário, onde o homem migrou do status de súdito para cida- tamentos ainda precisam ser aperfeiçoados. Sendo assim, não bastam
dão , por certo, a concretização dos direitos fundamentais básicos não
9
apenas soluções materiais, como novos espaços de moradia, é neces-
pode mais ser postergados e nem negligenciados. O desenvolvimento sário que se estabeleçam programas de capacitação e de emancipação,
econômico deve trazer consigo a distribuição das riquezas e não a exclu- preparando as comunidades para essa mudança, além de disponibilizar
são. Neste contexto, a educação passa a ser um meio de emancipação o acesso aos serviços básicos (saúde, educação, iluminação, água e es-
intelectual dos indivíduos, sendo capaz de habilitá-los à participação goto).
política livre e consciente.10
A visão contemporânea, mais adequada, de desenvolvimento não Direito fundamental à habitação
se reduz a crescimento econômico, deve estar associada a diminuição
das desigualdades sociais e ao uso consciente do meio ambiente. Sem A Carta Magna de 1988 inovou ao colocar o Município como ente
o equilíbrio do tripé social, ambiental e econômico não se pode falar autônomo da federação, uma solução realista, tendo em vista que a vida
em desenvolvimento sustentável11. As consequências deste desequilí- acontece nas cidades. A partir de 2008, pela primeira vez na história, a
brio tem gerado graves problemas sociais, econômicos, urbanísticos e maior parte da população mundial passou a viver em áreas urbanas. No
ambientais nas metrópoles afetando diretamente a qualidade de vida Brasil, 84,5% da população já vive nesta área14. Portanto, os problemas
de todos seus habitantes. As múltiplas transformações da sociedade, e as soluções estão cada vez mais concentrados nas cidades, que estão
juntamente com uma acelerada urbanização, modificaram os modos de se tornando o centro das decisões políticas. Neste processo de descen-
utilização do espaço urbano, social e economicamente. Um dos efeitos tralização das políticas, se estabelece uma redefinição de competências,
colaterais desta desordem, é a exclusão territorial, que é a imagem da passando a ser atribuição dos Estados e Municípios a gestão dos pro-
desigualdade, a condenação da cidade como um todo a um urbanismo gramas sociais, e dentre eles o de habitação, seja por iniciativa própria,
de risco12. A ocupação indevida do solo urbano resulta na degradação seja por adesão a algum programa proposto por outro nível de governo,
seja por imposição Constitucional15.
7 SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na Constituição Federal de O direito à habitação foi elevado a um direito humano na Conferên-
1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 43.” cia Hábitat II, em Istambul, em 1996, constituído como garantia do di-
8 A função social da propriedade pode ser entendida como a prevalência do interesse comum reito e acesso a terra, habitação, infra-estrutura e aos recursos existen-
sobre o direito individual de propriedade, como o uso socialmente justo do espaço urbano para que
os cidadãos se apropriem do território, democratizando seus espaços de poder, de produção e de cul- tes na cidade, vinculada aos demais direitos sociais. O direto a moradia,
tura, dentro de parâmetros de justiça social e da criação de condições ambientalmente sustentáveis. a partir da Constituição de 1988, passou a ser reconhecido como um
9 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 76. A aborda- direito fundamental social.
gem desse momento histórico referida por Bobbio conclui que o “Estado de Direito é o Estado dos
cidadãos”. 13 Brasil em desenvolvimento. Estado, Planejamento e políticas Públicas/ Instituto de Pes-
10 COSTA, Denise Souza. A omissão da administração pública para a concretização do direi- quisa Econômica Aplicada – Brasília: IPEA, 2009. vol. 2. p. 406.
to fundamental à educação. Revista do Curso de Direito da FSG, Caxias do Sul, ano 4, n. 8, p. 79, 14 (Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noti-
jul./dez. 2010. cia=1766. Acesso em 16 abrl 2011)
11 COSTA, Denise Souza. Direito Fundamental à educação, democracia e desenvolvimento 15 NALIN, Nilene Maria. Os significados da moradia: um recorte a partir dos processos de
sustetável. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011, p. 114. reassentamento em Porto Alegre. Dissertação de mestrado. p. 24. Disponível em: <http://
12 CYMBALISTA, Renato (Org.). Instrumentos urbanos contra a exclusão social. São Paulo: PÓLIS, verum.pucrs.br:80/F/GMN1QV5NFY7VFCJKEESMJVDFD9Q5JBVFKK3LBBD5RP2L3XKDQG29198
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1104 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1105
A política urbana contida no capitulo II da Constituição Federal de há áreas “legais”, regularizadas e que oferecem bens e serviços aos
1988 contempla um conjunto de princípios, como a função social da seus moradores; e as “ilegais” ou irregulares, sem regularização fun-
propriedade, a gestão democrática da cidade e o direito à cidade e à diária, sem infra-estrutura, que não oferecem os serviços básicos aos
cidadania. Estabelece ainda, instrumentos jurídicos e urbanísticos a se- seus moradores, resultando em uma exclusão sócioespacial, em cida-
rem aplicados e respeitados, nas três esferas de governo, tendo como des partidas.
objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções da cidade e ga- O que se tem observado até o presente, é que os projetos habi-
rantir o bem-estar de seus habitantes. tacionais em comunidades em situação de extrema pobreza, ao invés
O Estatuto da Cidade se consagra, com base na Constituição de de incluir, terminam por excluir. Muitas vezes, as comunidades são re-
1988, vindo instrumentalizar os municípios, no seu papel constitucional assentadas em locais distantes e sem infraestrutura. Mesmo quando
de principal executor da política de desenvolvimento urbano, para que ocorre o assentamento, problemas de desemprego, drogas, prostituição
fosse ampliado: o acesso à terra formal e urbanizada, a proteção de permanecem, uma vez que a solução se restringiu a parte material, que
mananciais, o controle da ocupação de áreas com riscos geotécnicos e é a nova moradia. As demais dimensões do problema não são traba-
de inundação. lhadas, como a capacitação daquela população para utilizar e usufruir
Porém, o déficit habitacional e a exclusão sócioespacial existentes dos bens e serviços do novo espaço. Assim, apenas construir uma nova
no Brasil, demonstram que esse direito não está sendo concretizado
moradia não soluciona o problema, uma vez que as pessoas não estão
conforme as diretrizes constitucionais. As estatísticas divulgadas pelo
preparadas a essa nova realidade Ao desfrutarem dos direitos, devem
IBGE, apontam os números relativos à carência habitacional no Brasil,
estar preparados a assumirem os deveres deles decorrentes. Neste as-
das quais 6,3 milhões de famílias estão nas áreas urbanas e 1,7 milhões
pecto, é mister um projeto de desenvolvimento humano e de educa-
nas áreas rurais. Contraditoriamente, no Brasil, mais de 5 milhões de
ção emancipadora, para que, ao passarem a residir na nova morada,
domicílios estão vazios ou fechados, mas pertencem a segmentos com
tenham autonomia para fazê-lo. É necessário criar condições para que
maior poder aquisitivo.
estas pessoas consigam subsistir de maneira digna, prepará-las para se
Segunda dados do IPEA, a maior carência habitacional está concen-
adaptarem a uma nova vida com oportunidade reais de geração de ren-
trada na classes sociais de baixa renda. A degradação do déficit habita-
cional por faixa de renda confirma que a população com renda de até da.
três salários mínimos é a que mais sofre com este problema, pois 89,4%
do déficit (4,6 milhões de domicílios) esta concentrada nesta faixa de Governança solidária local
renda, a qual tem sido, historicamente, a menos favorecida pelas políti-
cas habitacionais16.  Uma vez que as sociedades estão em constante transformação, a
Outra característica do processo de urbanização no Brasil foi sua complexidade do mundo globalizado está exigindo novas formas de
concentração, ou seja, a grande maioria da população que vive em manifestação do fenômeno jurídico. Um novo modelo de Estado se de-
áreas urbanas estão concentradas em 11 das maiores regiões metro- senha, um Estado solidário, cooperativo ou comunitário, no qual a Ad-
politanas do país. A falta de planejamento da ocupação do espaço ministração Pública tem a titularidade da elaboração e execução das
urbano gerou a concentração de grande parte dessa população em políticas públicas, com a participação ativa de toda a sociedade, na bus-
áreas de risco, áreas públicas e irregulares, causando degradação am- ca da justiça social.
biental e a favelização das cidades17. Esta, ficou fragmentada, ou seja: A busca de novos modelos de Estado, capazes de resolver ou atenu-
ar a crise de governabilidade que a sociedade contemporânea enfrenta,
16 Brasil em desenvolvimento. Estado, Planejamento e políticas Públicas/ Instituto de Pesquisa conduz ao direcionamento dos procedimentos clássicos de governo. Um
Econômica Aplicada – Brasília: IPEA, 2009. vol. 2. p. 407.
desses modelos que vem se desenvolvendo em algumas administrações
17 MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativa para a crise urbana, 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2002,
p. 14. Segunda a autora houve um crescimento urbano muito forte, com uma concentração muito gran- públicas é a gestão compartilhada, isto é, a governança.
de, o que gerou cidades gigantescas com baixo nível de governabilidade e muitos problemas.

1106 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1107
Este termo teve origem na iniciativa privada como Corporate Go- Neste modelo de gestão compartilhada, cabe ao poder público es-
vernance.18 Fazendo-se uma transposição do conceito de governança timular a participação cidadã, o protagonismo social e o fortalecimento
para a Administração Pública, pode-se entendê-la como uma forma do terceiro setor, com a finalidade de criar uma cultura de correspon-
mais consensual de trato da coisa pública, segundo uma ideia de sub- sabilidade na elaboração das escolhas coletivas que servirão de base
sidiariedade, à luz dos princípios básicos (sem prejuízo de outros), das políticas públicas. Este novo modo de governo busca resgatar a le-
de senso de justiça (referido usualmente como fairness), de confor- gitimidade e dar credibilidade às ações do governo, por meio da cele-
midade no cumprimento das normas regulatórias (designado mais bração de compromissos entre os segmentos envolvidos nas atividades
comumente pela expressão compliance), transparência (citado como priorizadas pela própria comunidade. As ações devem ser conduzidas
discloure), de prestação pública de contas (havido pela expressão de forma compartilhada entre todos os atores da sociedade e do poder
accountability).19 público, visando ao consenso pela absorção dos conflitos, na tentati-
A governança pode se manifestar em plano mundial global gover- va da erradicação dos antagonismos. Esta forma de gestão se opera
nance20 e em nível local, “implica, portanto, não somente uma elimina- com mais eficiência no plano interno dos Estados, no governo das cida-
ção do muro entre público e privado, mas também, entre os diferentes des que, segundo Chevalier, tende a tornar-se o produto de iniciativas,
níveis (internacional, regional, nacional, local) de ação coletiva (multi le- adotadas por estes múltiplos atores, que são as autoridades locais, as
vel governance)”. O modelo de governança, no plano interno, coloca grandes empresas públicas e privadas, os grupos de interesses, as as-
como ponto fundamental a participação de múltiplos atores que passam sociações, as administrações setoriais, as ONGs, entre outros.22 “Pensar
a ter acesso e a influenciar mais diretamente nos processos decisórios. globalmente e agir localmente” é a chave para esta concepção de ges-
A partir do momento em que a Administração Pública começa a discutir tão pública, desta forma a distância entre governo e cidadão se reduz,
com eles em pé de igualdade, estes passam a ser verdadeiros parceiros tornando-se possível organizar e coordenar a atuação dos entes públi-
de um processo de elaboração coletiva. cos e privados, dando, assim, legitimidade às ações da Administração
Trata-se de um conjunto formal e informal de regras, papéis e re- Pública, com o objetivo de concretizar, de forma mais eficiente, as ne-
lações que definam e regulem as práticas sociais dos atores estatais e cessidades de cada grupo social, conforme as escolhas coletivas.
não estatais em assuntos internos. Segundo Chevalier, “a governança Nesse contexto, a educação passa a ter um papel imprescindível
parece ser imposta pelo novo contexto em que a ação do Estado se para viabilizar este novo modo de governo, devendo ser uma educação
manifesta”.21 Esta ação se direciona na busca de soluções consensuais, emancipadora. A educação formal deve buscar desenvolver nas pes-
resultantes do acordo de diferentes pessoas com interesses comuns. soas a capacidade de aprender a aprender e não apenas enfatizar a
Nesse caso, as decisões de políticas públicas não são determinadas transferência de conhecimentos. Esta deve desenvolver uma educação
pelas elites políticas no poder, mas partem de decisões coletivas que para o desenvolvimento pessoal e sustentável. A educação para a cida-
são tomadas nas comunidades, nas cidades. Cabe asseverar que esses dania, proposta por Bobbio, por sua vez, deve investir no cidadão para
procedimentos de governança vêm se juntar às técnicas clássicas do potencializar nele a capacidade de exigir os seus direitos e assumir os
governo, fazendo uma adaptação destas ao novo contexto social. seus deveres diante da sociedade, reascendendo a adesão aos valores
comuns que sustentam a existência da comunidade política.
18 CASADO FILHO, Napoleão. Governança corporativa: análise jurídica dos seus efeitos. São Pau- Esta liberdade intelectual está diretamente ligada à educação, ao
lo: Malheiros, 2010. p. 41. empoderamento, referido por Paulo Freire.23 Este empoderamento im-
19 CALDAS, Roberto Correia da Silva Gomes. Parcerias público-privadas: garantias inovadoras da
Lei Federal nº 11.079/2004: prevalência do regime jurídico dos denominados contratos adminis-
plica a conquista, o avanço e a superação por parte daquele que se
trativos e das concessões de serviços públicos. 2008. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade empodera (sujeito ativo do processo). Em outras palavras, é o processo
Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
20 Canotilho, José Joaquim Gomes. Existe um direito constitucional da regulação? Revista do 22 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizon-
Advogado, São Paulo, ano XXIII, n. 73, p. 109-110, nov. 2003. te: Fórum, 2008. p. 276.
21 CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizon- 23 FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São
te: Fórum, 2008. p. 274. Paulo: Paz e Terra, 1992. p. 24.

1108 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1109
pelo qual o indivíduo adquire autonomia para realizar, por si, as mudan- da Prefeitura, a governança solidária local28 é um “estilo de governo do
ças necessárias ao seu crescimento e desenvolvimento pessoal e social qual todos podem fazer parte: O Estado (em qualquer âmbito munici-
em uma determinada comunidade. pal, estadual e federal) e a sociedade civil (empresas, organizações do
Esta ação mais ativa dos múltiplos atores sociais, econômicos, po- terceiro setor e, principalmente, os cidadãos)”.29 Coloca-se como ponto
líticos e públicos nos processos decisórios e na elaboração das esco- fundamental a participação democrática dos cidadãos, por meio do for-
lhas coletivas se inscreve na lógica da democracia participativa e abre talecimento da cidadania em rede, com o objetivo de promover o desen-
a ação pública aos cidadãos, aos grupos, às comunidades. A parti- volvimento das pessoas e da comunidade. Neste caso, as decisões de
cipação dos cidadãos se manifesta por meio do fortalecimento das políticas públicas não são determinadas pelas elites políticas no poder,
redes democráticas que se estruturam, em função de diferentes tipos mas partem de decisões coletivas que são tomadas nas comunidades.
de questões e se desenvolvem ao redor dos centros de decisões, com O conceito de governança é utilizado tendo como princípio a transversa-
o objetivo de compor os diversos interesses sociais. Nesse sentido, “as lidade e a parceria que se estabelece entre o governo municipal, todos
escolhas serão o resultado de negociações e compromissos, levando os demais níveis de governo da federação, segundo e terceiro setor e a
em conta os pontos de vista das partes envolvidas,”24 uma vez estabe- comunidade, modelo que necessita da ação pró-ativa do cidadão. Sobre
lecido o acordo, cada parte renuncia a fazer prevalecer a sua posição e o este conceito Cezar Busatto diz:
se compromete com o pacto estabelecido. Sendo assim, a democracia
participativa decorre do exercício da cidadania, que deve ser baseado Governança  Solidária Local significa, portanto, relações democráti-
na autonomia e na liberdade do indivíduo, tornando-o capaz de fazer cas de cooperação na base da sociedade, ou seja, no lugar onde as
as suas próprias escolhas. pessoas moram, estabelecem suas  relações familiares e de vizinhan-
Esta transformação se manifesta ao lado da “horizontalização da ça, suas relações com o espaço em seu entorno, gerando um sentido
estrutura piramidal do Estado moderno, por meio da territorialização de pertencimento, de conexão com o mundo a sua volta.30
dos órgãos que o compõem, aproximando-os das comunidades locais e
constituindo com elas novas arquiteturas públicas de co-responsabilida- Cabe ao governo estimular a participação cidadã, o protagonismo
de e co-gestão  do desenvolvimento local.25” social, o sentimento de pertencimento, o fortalecimento do terceiro se-
Em Porto Alegre, temos um bom exemplo de aplicação do princí- tor, com a finalidade de existir uma corresponsabilidade na gestão das
pio da boa administração pública26 por meio do programa de “gover- políticas públicas.31
nança solidária local,”27 implantado em 2005. Segundo documentos
28 BUSATTO, Cezar. Governança Solidária Local: por uma democracia para o sécculo XXI. Em
Olhares sobre a experiência de Governança. Org. Jandira Filó, Augusto de Franco. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2008, p. 118. Para o autor, Governança Solidaria Local é uma nova arquitetura política,
24 CHEVALLIER, op. cit., p. 274. do Estado e da democracia, constituída a partir da base da sociedade e do cotidiano dos cidadãos,
25 BUSATTO, Cezar. Governança Solidária Local: por uma democracia para o sécculo XXI. Em condizente com  a nova sociedade do conhecimento, capaz de produzir harmonia e sustentabilida-
Olhares sobre a experiência de Governança. Org. Jandira Filó, Augusto de Franco. Porto Alegre: de numa etapa crucial da história da humanidade em que o poder conflitivo e desestabilizador  dos
EDIPUCRS, 2008, p. 117. Conforme assevera o autor, neste contexto impõe-se um novo paradigma fluxos de riqueza e de poder e da exacerbação dos particularismos de todo o tipo constituem-se em
democrático, em que a busca da convergência, do consenso, da unidade na diversidade, da coo- ameaça sem precedentes à vida do planeta.
peração – e não da disputa, do conflito, da vitória de uns e a derrota de outros, da conquista de 29 PORTO ALEGRE. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov.br/observatorio/default.php?
hegemonia – seja a tônica predominante. Essas necessárias transformações políticas passam a ser p_secao=66>. Acesso em: 07 fev. 2010.
não mais uma questão  de preferência, mas de sobrevivência no atual estágio de desenvolvimento 30 BUSATTO, Cezar. A essência da Governança Local. Em Olhares sobre a experiência de Gover-
que alcançamos. nança. Org. Jandira Filó, Augusto de Franco. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008, p. 16.
26 FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à boa Administra- 31 BUSATTO, op. cit., p.17. O autor esclarece que “implantar governanças  solidárias locais é promo-
ção Pública. São Paulo: Malheiros, 2007, p.63. ver a  tecelagem de redes sociais de pessoas e grupos que , com base na pluralidade e no diálogo,
27 Por este modelo inovador de gestão pública, Porto Alegre foi escolhida a participar da Expo 2010 estabelecem relações de confiança e cooperação, constroem suas visões de futuro, desenvolvem sua
em Shanghai, cujo tema é “Melhor Cidade, Melhor Vida”. Por meio do programa especial da gover- capacidade de sonhar por um mundo melhor e planejam como alcançá-lo, definindo ações prioriza-
nança solidária local, Porto Alegre mostrou ao mundo um modelo de administração pública que une das no tempo e compartilhando responsabilidades pela sua realização. Assim, Governança Solidária
gestão e democracia participativa (PORTO ALEGRE. Disponível em: <http://www2.portoalegre.rs.gov. Local é um novo padrão de produção de bens públicos e de promoção de desenvolvimento, a partir
br/cs/default.php?reg=115250&p_secao=3&di=2009-10-01>. Acesso em: 20 fev. 2010). do protagonismo e do comprometimento de todos os autores individuais e coletivos.”

1110 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1111
Exemplo paradigmático da Rede de Em Porto Alegre, a Vila Chocolatão exemplifica essa problemáti-
sustentabilidade da Vila Chocolatão ca social e faz parte de uma experiência piloto de implementação do
projeto “Rede para a sustentabilidade da Vila Chocolatão”. Este visa a
De forma inovadora, o município de Porto Alegre, com a parceria da emancipação desta comunidade para que o reassentamento não se tor-
UNESCO e a Secretaria de Governança Solidária Local, desenvolve uma ne mais um exemplo de exclusão e sim uma oportunidade de mudança
ferramenta social que visa a sustentabilidade das habitações de interes- de uma cultura perversa, a dos catadores de lixo que sobrevivem dos
se social. Por meio da formação de uma rede democrática conciliatória, “restos” da cidade legal. A maioria dos moradores da comunidade vi-
objetiva-se a emancipação e a inclusão socioespacial da comunidade vem na informalidade, sua renda resulta da coleta de resíduos sólidos
que ocupará o núcleo habitacional popular. Esta rede conta com a par- e por terem se estabelecido no centro da cidade de Porto Alegre, eles
ticipação de entes públicos e privados e o protagonismo dos moradores têm facilidade de acesso aos resíduos. Com a mudança, o projeto visa
da comunidade, objetivando a sua emancipação e a sustentabilidade do viabilizar fontes de geração de emprego e renda para que os moradores
projeto habitacional.  subsistam de forma digna, tornando o empreendimento sustentável.
O projeto prioriza o desenvolvimento humano da comunidade, Localizada, desde 1987, em um terreno da União ao lado da Recei-
tendo como objetivo sua inclusão sócioespacial sustentável. Seu maior ta Federal e do Tribunal Regional Federal da 4º Região, no município de
diferencial é a formação desta rede de governança (comunidade, equi- Porto Alegre,  a Vila Chocolatão não difere do contexto global de fave-
pamentos públicos, terceiro setor, empresários, estudantes) com a fi- lização. Em 2007, eram 164 famílias que ocupavam a área. Em função
nalidade de desenvolver ações preventivas, preparando os moradores da noticia do reassentamento houve um adensamento da área,  200
para a realocação, além de garantir  os serviços básicos ainda no local famílias ocupavam este local com moradias  extremamente precária,
“irregular”. sem acesso aos serviços básicos. A maioria  tem renda inferior a dois
O exercício da cidadania em rede dá inicio ao processo, onde vão salários mínimos, pouca escolaridade e vivem do trabalho informal. A
sendo desenvolvidas ações de valorização de capacidades, estímulo ao vulnerabilidade social desta comunidade é extrema,  com históricos de
empreendedorismo, opções de geração de trabalho e renda, visando a dependência química, violência doméstica e exposição de crianças à
integração social, a emancipação política, o comprometimento cidadão toda espécie de riscos e a locais insalubres.
e o sentido de pertencimento da comunidade. Neste caminho, o proje- Fruto de uma demanda histórica da Cidade que mobilizou diversos
to original vai sendo redesenhado, conforme as peculiaridades de cada órgãos públicos das três esferas de governo e a sociedade civil orga-
grupo social. Ações vão sendo construídas a partir das necessidades dos nizada, a Vila Chocolatão foi reassentada em maio de 2011. É nesse
moradores e da sensibilidade e expertise dos agentes de governança. contexto, que a Prefeitura de Porto Alegre por meio do Programa de
Muitos paradigmas são rompidos e a ponderação se torna o melhor Governança Solidária Local,  baseado na transversalidade do governo
instrumento para solucionar problemas aparentemente insolúveis. Com Municipal e da cooperação de diversos seguimentos da sociedade nos
comprometimento e empenho os agentes envolvidos encontram solu- programas e projetos do governo, implantou o Projeto de emancipação
ções, adaptam legislações, formam pactos, agem para impedir que a da Vila Chocolatão. 
violação da dignidade da pessoa humana e o desrespeito aos direitos Forma-se uma rede de governança de apoio à comunidade, prepa-
fundamentais e ao mínimo existencial, daquela comunidade, perdure. rando-a a nova realidade. Com estas ações, procura-se evitar que es-
Inicia-se assim um processo de empoderamento por parte de toda a tes incorram no chamado refluxo, abandonando e vendendo as casas
rede, o que gera um comprometimento de cada parte com suas ativida- e voltem às ruas ou a moradias irregulares. A formação de uma rede
des. Assim, os moradores percebem que além de direitos, têm deveres democrática conciliatória vai construir com esta comunidade uma visão
e passam a assumir responsabilidades diante das conquistas de cada de futuro, preparando-a previamente para sua efetiva sustentabilidade
etapa. Há uma capacitação prévia da comunidade para usufruir das van- na futura morada, através de um processo participativo. Cada agente
tagens materiais e imateriais do futuro complexo habitacional. da rede:comunidade, parceiros privados e do terceiro setor, agentes

1112 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1113
públicos de todos os níveis de governo, sociedade civil, voluntários e garantir a sustentabilidade das famílias. Participam da rede diversos
secretarias municipais devem atuar de forma horizontal e trabalhar  na órgãos governamentais, privados e do terceiro setor. A agente de go-
transversalidade e aplicar seus programas de forma integrada com o vernança, ligada a Secretaria de Governança Solidária Local é a anima-
mesmo objetivo de desenvolvimento humano e emancipação. dora desta rede e é quem faz a interlocução entre todos os parceiros. É
Este é um processo de permanente construção, tendo a agente de responsável por fomentar o capital social e contribuir para conciliar os
governança da Secretaria Municipal de Governança Solidária Local o interesses, compor os conflitos e buscar solucionar os problemas com
papel de animadora da rede, responsável em manter e estimular as o apoio da comunidade. A ação de governança busca, portanto, com-
ações que vão se tornando necessárias. Cabe aos agentes públicos e plementar a ação de reassentamento e oportunizar àquela comunidade
parceiros envolvidos na rede se integrarem com os moradores e conhe- a possibilidade de ter concretizados seus direitos fundamentais sociais
cerem as necessidades e peculiaridades daquela comunidade. A partir básicos, bem como lhes dar instrumentos para sua sustentabilidade.
desta etapa começam a estabelecer as ações prioritárias a serem apli- Foi com a força desta Rede de governança que quebramos para-
cadas. Cada ação deve contar com o protagonismo das lideranças locais digmas, e assim conseguimos possibilitar mesmo no local invadido a
e dos moradores com o apoio dos agentes públicos e parceiros, que vão construção dos equipamentos provisórios, com objetivo de dar um mí-
conduzindo o processo até que a própria comunidade se empodere do nimo de dignidade e capacitar a comunidade antes do reassentamento.
mesmo. No caso citado, a emancipação gerou o empoderamento da Assim foram construídos os banheiros comunitários, a biblioteca provi-
comunidade ao projeto. A rede passou a ser movida pelas lideranças sória que possibilitou a parceria com a Ong Cirandar e Instituto C&A , o
que se fortaleceram durante este processo. A solução das demandas Galpão e a Sede da Associação.
passou a ser buscada em conjunto pelos participantes da rede. Agentes A transversalidade foi muito importante durante todo o processo.
públicos de todos os níveis de governo, poder judiciário, representantes Trabalhar desta forma garantiu as “trocas” das equipes da Prefeitura de
da sociedade civil, representantes de ONGs, estudantes, comunidade e diversas secretarias, que antes não integravam suas ações. Começaram
lideranças vão “tecendo” a rede a partir das demandas que vão surgin- a cruzar informações e a atuar em parceria o que surtiu um resultado
do. Depois do reassentamento a rede de governança permanece com O extremamente positivo. Outro fato inovador, neste aspecto, foram as
grande desafio que é conseguir que esta comunidade além de ter um lu- reuniões das equipes que atuavam no local que a comunidade vivia,
gar digno para morar, consiga se sustentar proporcionando a verdadeira com as equipes do local que esta comunidade se mudaria.
inclusão social almejada. Este é o objetivo do direito à moradia digna. Romper o círculo da exclusão de uma comunidade que sobrevive
O objetivo do projeto de Sustentabilidade da Vila Chocolatão é o dos restos da cidade legal é desafiador, pois estaremos promovendo a
desenvolvimento humano e a educação emancipadora da comunidade. quebra de uma cultura perversa, a qual este grupo social se adaptava
Capacitar previamente os moradores do assentamento ou do reassen- para sobreviver.
tamento. Preparar a comunidade a nova realidade na futura moradia, A Sede da Associação dos Moradores da Vila Chocolatão foi constru-
resgatando a sua dignidade humana. Garantir o direito aos serviços ída em mutirão. Assim, foi plantada a semente da Rede para a Sustenta-
básicos, ensinar a assumirem as responsabilidades oriundas de todos bilidade da Vila Chocolatão.  Foi vital para o Projeto que as reuniões de
os melhoramentos adquiridos. Reduzir o índice de refluxo e reduzir a Rede acontecessem na comunidade, desta maneira esta se legitimou.
inadimplência dos permissionários e concessionários. Apoiar a comu- Os moradores passaram a participar e se emponderaram do projeto.
nidade e buscar novos projetos e ações para garantir a emancipação, Assim, os atores públicos e privados envolvidos tiveram condições de
a verdadeira inclusão sócioespacial e a sustentabilidade do complexo conhecer e discutir a realidade e os problemas com a comunidade no
habitacional. local em que estes ocorriam. 
A Formação da “Rede para a Sustentabilidade da Vila Chocolatão” Em parceria com a associação de moradores, CEEE, TRF 4ª região,
foi o grande marco para implantar o projeto. Pois, a administração mu- Ministério Público e Câmara Municipal, foi instalada energia elétrica na
nicipal percebeu que  não basta construir um conjunto habitacional sem antiga comunidade, a fim de minimizar os problemas recorrentes de in-

1114 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1115
cêndios. Para viabilizar esta ação, foi utilizada a lei do circo que autoriza Moradores da Vila Chocolatão, e a Associação de Catadores e Recicla-
instalação provisória de energia em áreas públicas. A comunidade assi- dores da Vila Chocolatão, o Ministério Público Federal e Advocacia Geral
nou um termo de compromisso que estava ciente de que este serviço só da União . Este termo tem como objetivo a preservação das garantias de
ficaria disponível até a desocupação da área. moradia digna e demais direitos fundamentais da comunidade pela rede
A construção de um galpão provisório de triagem foi fundamen- de governança, esta formada para viabilizar a realocação dos morado-
tal para a capacitação prévia em geração de renda do grupo que formou res de maneira conciliatória.
a associação de catadores. Firmou-se uma parceria, para capacitação A partir deste projeto inovador, a Prefeitura de Porto Alegre foi con-
dos catadores, com o Instituto VONPAR/ ONG CAMP, antes do reassen- vidada para ser membro do “UN Global Compact Cities Programme”32,
tamento, com o objetivo de qualifica-los como triadores. O objetivo foi que visa mostrar como as cidades do mundo estão resolvendo, de forma
prepará-los para trabalharem de forma cooperativa na UT ( unidade de criativa, antigos problemas. O programa UN Global Compact Cities Pro-
Triagem) que a SOLUÇÃO USIMINAS doou para o reassentamento, o gramme tem como objetivo constituir modelos de ação que diferenciem
que viabilizou o convênio com o DMLU para a entrega dos resíduos da a gestão pública no mundo inteiro. Entre as várias subdivisões do Pro-
coleta seletiva no local e assinatura do termo de cooperação com repas- grama, Porto Alegre foi inscrita para apresentar modelo em habitação
se financeiro para cobertura de despesas operacionais. de interesse social sustentável. O escolhido, foi o projeto de reassenta-
Foram realizadas eleições para escolha do nome do futuro comple- mento da Vila do Chocolatão. O motivo da constituição do Cities Pro-
xo habitacional, para desenvolver, na comunidade, o sentimento de per- gramme é verificar a potencialidade de se realizar ações de gestão públi-
tencimento, como parte do processo de transferência, o nome escolhido ca que estejam de acordo com a UN Global Compact Cities (projeto das
foi “Residencial Nova Chocolatão”. Esta, contribuiu instrumentalmente Nações Unidas que apresenta a necessidade de interação entre as esfe-
em ações que direcionam para a conquista da autonomia cidadã.  ras pública e privada para a realização do desenvolvimento). O projeto
O maior desafio da rede para sustentabilidade da Vila Chocolatão, é que a cidade inscreve deve apresentar a interação entre governo, em-
dar continuidade às ações desenvolvidas e possibilitar ações que resul- presas, academia e organizações sociais. As decisões do projeto devem
tem na sustentabilidade do novo loteamento e  garantir a continuidade ser tomadas em conjunto pelos parceiros, prezando por uma divisão de
dos projetos. competências que preserve o engajamento e comprometimento de to-
O importante equipamento de geração de emprego e renda foi do- dos pela solução do problema identificado. A aproximação dos modelos
ado através da parceria firmada com a SOLUÇÕES USIMINAS. A qual do Projeto de Governança Solidária Local é significativa e demonstra a
construiu e equipou a Unidade de Triagem de lixo que serve de espaço semelhança de diferentes formas de participação democrática (o mode-
para a associação dos catadores da Vila Chocolatão. Foi assinado con- lo do Cities Programme é oriundo da cidade de Melbourne – Austrália,
vênio com o DMLU para entrega do lixo seletivo à cooperativa e um que sedia o Programa).  O diferencial do tratamento deste reassenta-
auxílio financeiro para cobertura de despesas operacionais. Foi doado, mento, passa pela formação da rede de governança, identificada como
por parte das Varas criminais do TRF 4a região, um veículo para fazer a a inovação desta ação. Conclui-se, através destes estudos, que não são
comercialização dos materiais reciclados pela cooperativa dos catado- possíveis reassentamentos sustentáveis sem que se faça uma capacita-
res. ção prévia e se desenvolva um projeto de educação emancipadora.
Com o empenho da Rede de Sustentabilidade, o projeto arquitetô-
nico original, foi mudado e foram adequados quatro comércios pleitea-
dos pois existiam no local invadido. Conseguimos viabilizar locais para a Considerações finais
Sede da Associação, para a biblioteca comunitária e o Tele centro.
Pela primeira vez no RS, em casos de reassentamentos, decorrente Resultado da falta de planejamento urbano, do agravamento das
de negociações iniciadas na rede de governança, foi assinado um termo desigualdades sociais e da omissão do Estado nas principais cidades do
de compromisso entre o Município de Porto Alegre; a Associação dos
32 Disponível em: www.citiesprogramme.org/ Acesso em dez. 2010.

1116 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1117
mundo, a favelização se dá com o acúmulo de população em áreas irre- direitos sociais básicos à população reassentada. O desafio será garan-
gulares, áreas de risco que são ocupadas com baixo ou nenhum custo, tir a sustentabilidade do complexo habitacional e de seus moradores.
geralmente em áreas de periferia das cidades. Para mitigar o problema,
disseminaram-se políticas de regularização fundiária e urbanização das
áreas ocupadas ou deslocamento das populações em áreas públicas ou referências
de alto risco. O reassentamento é uma dessas ferramentas de que se
utilizam os governos como forma de solucionar a ocupação desorde- ARÉNILLA, Luis; GOSSOT, Bernard; ROLLAND, Marie-Claire; ROUSSEL, Marie-
nada e este déficit habitacional. Para que esta ferramenta atinja seus -Pierre. Dicionário de pedagogia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.
objetivos, é preciso fazer uma política habitacional emancipadora que BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
resulte em inclusão sócioespacial, garantido o direito a uma moradia BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
digna, bem como fazer um planejamento sustentável do espaço urbano.  BINENBOJM, Gustavo. Temas de Direito Administrativo e Constitucional.
Historicamente, os projetos de reassentamentos incorrem em diver- Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
sos problemas que se repetem ao longo dos governos tais como, o re- BUCCI, Maria Paula Dallari. Políticas Públicas: reflexões sobre o conceito jurí-
fluxo, o abandono e a depredação das moradias, as “vendas de chaves” dico. São Paulo: Saraiva, 2006.
e a inadimplência das famílias reassentadas. Ocorre que até o presente, BUSATTO, Cezar. Governança Solidária Local: por uma democracia para o séc-
a maioria das políticas públicas de alocação urbana se limitavam a so- culo XXI. Em Olhares sobre a experiência de Governança. Org. Jandira Filó,
lucionar apenas os problemas de moradia, construindo condomínios re- Augusto de Franco. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
sidenciais populares padrão, sem um estudo prévio da realidade social BUSATTO, Cezar. A essência da Governança Local. Em Olhares sobre a ex-
e das peculiaridades de cada comunidade. Buscando mitigar estes pro- periência de Governança. Org. Jandira Filó, Augusto de Franco. Porto Alegre:
blemas, desenvolveu-se uma ferramenta social denominada “rede para EDIPUCRS, 2008.
a emancipação e sustentabilidade de comunidades assentadas e reas- CALDAS, Roberto Correia da Silva Gomes. Parcerias público-privadas: garan-
sentadas.” Para tanto, forma-se uma rede de governança, cujo objetivo tias inovadoras da Lei Federal nº 11.079/2004: prevalência do regime jurídico
é promover o desenvolvimento humano destas comunidade, por meio dos denominados contratos administrativos e das concessões de serviços pú-
de uma capacitação prévia e educação emancipadora  nas diversas áre- blicos. 2008. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
as (educação, saúde e trabalho entre outras). São Paulo, 2008.
Num planejamento de regularização fundiária, reassentamento ou Canotilho, José Joaquim Gomes. Existe um direito constitucional da regula-
assentamentos, é fundamental que se inclua um programa de desen- ção?. Revista do Advogado, São Paulo, ano XXIII, n. 73, p. 109-110, nov. 2003.
volvimento humano, com capacitações e acompanhamento dessas co- CASADO FILHO, Napoleão. Governança corporativa: análise jurídica dos seus
munidades. A educação passa a ser uma exigência, mas não apenas a efeitos. São Paulo: Malheiros, 2010. CHEVALLIER, Jacques. O Estado pós-
educação formal, garantindo o acesso a todas as crianças aos estabe- -moderno. Tradução de Marçal Justen Filho. Belo Horizonte: Fórum, 2008.
lecimentos de ensino. Devem ser implantados programas de educação COSTA, Denise Souza. A omissão da administração pública para a concre-
inclusiva. Preparando e capacitando as comunidades para viver num tização do direito fundamental à educação. Revista do Curso de Direito da
ambiente limpo, saneado, com luz, água, enfim, com os mínimos exis- FSG, Caxias do Sul, ano 4, n. 8, p. 79, jul./dez. 2010.
tências que lhes resgatam a dignidade humana. Essa educação inclusiva COSTA, Denise Souza. Direito Fundamental à educação, democracia e de-
deve promover a autonomia e a emancipação dessa população para senvolvimento sustetável. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.
que ela seja capaz de usufruir os direitos e assumir as responsabilidades CYMBALISTA, Renato (Org.). Instrumentos urbanos contra a exclusão social.
dessa nova posição social. São Paulo: PÓLIS, n.29, 1997.
O caso paradigmático apresentado aplicou esta ferramenta social e FREITAS, Juarez. Discricionariedade administrativa e o direito fundamental à
até o presente garantiu a efetividade do direito à moradia digna e dos boa Administração Pública. São Paulo: Malheiros, 2007.

1118 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1119
FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do
oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Programação
IPEA. Brasil em desenvolvimento. Estado, Planejamento e políticas Pú-
blicas/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Brasília: IPEA, 2009. 5 de outubro, quarta-feira
vol. 2.
MALISKA, Marcos Augusto. O direito à educação e a Constituição. Porto 18h - Inscrições e retirada de material
Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativa para a crise urbana, 2 ed. 19h - Solenidade de Abertura
Petrópolis: Vozes, 2002, p. 14. Prefeito de Porto Alegre, José Fortunati
NALIN, Nilene Maria. Os significados da moradia: um recorte a partir dos Presidente da OAB/RS, Claudio Lamachia
processos de reassentamento em Porto Alegre. Dissertação de mestra- Presidente da FMP, Mauro Luís Silva de Souza
do. p. 24. Disponível em: <http://verum.pucrs.br:80/F/GMN1QV5NFY7VFCJK Diretor da Faculdade de Direito da FMP, Anizio Pires Gavião Filho
EESMJVDFD9Q5JBVFKK3LBBD5RP2L3XKDQG29198?func=find>. Procurador-Geral do Município de Porto Alegre,
SARLET, Ingo. Dignidade da pessoa humana e Direitos fundamentais na João Batista Linck Figueira
Constituição Federal de 1988. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, Diretora da ESDM, Vanêsca Buzelato Prestes
2008.
19h45min - Conferência de Abertura

A Nova Ordem Jurídico-Urbanística no Brasil - Retrospectiva Histórica.


Conferencista: Edésio Fernandes - Doutor em Direito (Ph.D., Warwick Universi-
ty). Professor universitário associado no Institute of Housing and Urban Studies
em Rotterdam (Holanda) e no Development Planning Unit/DPU da University
College London (Inglaterra).
Coordenação: Maren Taborda - Procuradora do Município de Porto Alegre.
Professora da FMP. Coordenadora do CEDIM/PGM. Mestre e Doutora em Direi-
to Público pela UFRGS.

20h30min - LANÇAMENTO DOS ANAIS DO CONGRESSO

6 de outubro, quinta-feira

9h - Painel - Diretrizes da Política Urbana, Instrumentos


e Direitos Difusos no Estatuto da Cidade.

Coordenação: Betânia de Moraes Alfonsin


Professora da PUCRS e Professora da FMP.

1120 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1121
Painelistas: 2. Gestão Democrática e Direito ao Planejamento Urbano
Palestra introdutória: Cezar Busatto - Secretário de Coordenação Política e
Operações Urbanas Consorciadas: Limites e Potencialidades Governança Local do Município de Porto Alegre.
Mariana Fix - Mestre em Sociologia pela USP e Doutoranda pelo Instituto de Coordenador: Jayme Weingartner Neto - Doutor pela PUCRS na área de Ins-
Economia da UNICAMP. Professora do Departamento de Design das Faculda- tituições do Direito do Estado. Coordenador da Faculdade de Direito da FMP.
des de Campinas e Membro do LABHAB da USP. Arquiteta urbanista.
Promotor de Justiça. Coordenador do Gabinete de Articulação e Gestão Inte-
grada do MPRS.
Gestão Democrática das Cidades
Nelson Saule Júnior - Doutor em Direito pela PUCSP. Professor de Direito do
curso de graduação e pós-graduação da PUCSP. Presidente do IBDU - Instituto 3. Regularização Fundiária e Políticas Habitacionais
Brasileiro de Direito Urbanístico. Coordenador da Revista Magister Direito Am- Palestra introdutória: Cândida Saibert - Especialista em Direito Público Mu-
biental e Urbano. nicipal pela PUCRS. Procuradora do Município de Porto Alegre. Procura­dora-
Chefe da Procuradoria de Assistência e Regularização Fundiária.
Ordem Urbanística e Cidade Sustentável Coordenadora: Jusara Bratz - Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela
Vanêsca Buzelato Prestes - Mestre em Direito pela PUCRS. Procuradora do Mu- UFRGS. Assessora para Assuntos Jurídicos do Município de Porto Alegre. Chefe
nicípio de Porto Alegre. Corregedora-Geral da Procuradoria-Geral do Município do Serviço Jurídico do DMLU.
de Porto Alegre. Diretora da ESDM.
4. Política Urbana, Mudanças Climáticas e Código Florestal
Direito ao Planejamento Urbano
Palestra introdutória: Gustavo Trindade - Advogado. Diretor do Instituto O
João Rovati - Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Pa-
ris-8. Professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura Direito por um Planeta Verde.
da UFRGS. Professor do Programa de Pós-Gra­duação em Planejamento Urbano Coordenador: Heron Nunes Estrella - Especialista em Direito Municipal. Procu-
e Regional (PROPUR/UFRGS), integrando a linha de pesquisa “Cidade, Cultura rador do Município de Porto Alegre.
e Política”.
5. Plano Diretor e Instrumentos de Política Urbana
Outorga Onerosa do Direito de Construir e Produção da Cidade Palestra introdutória: Maria Etelvina Bergamaschi Guimaraens - Mestre em
Marco Túlio Kalil Ferreyro - Economista pela UFRGS. Consultor Econômico da Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. Professora titular do Fundação
MTKF Consultoria Econômica. Economista do SINDUSCON/RS - Sindicato da Escola Superior de Direito Municipal. Assessora Jurídica da Prefeitura Munici-
Indústria da Construção Civil no Rio Grande do Sul.
pal de Porto Alegre.
Coordenadora: Josiane Superti Brasil Camejo - Coordenadora do Caourb -
11h - Debates
Centro de Apoio Operacional da Ordem Urbanística e Questão Fundiárias do
12h - Almoço Ministério Público RS.

14h - Oficinas temáticas e apresentação de trabalhos 17h30min - COFFEE-BREAK

Temas: 17h30min - Sessão de Autógrafos

1. A Ordem Jurídico-Urbanística e os Megaeventos Esportivos 18h - Palestra


Palestra introdutória: Urbano Schmitt - Secretário de Gestão e Acompanha-
mento Estratégico do Município de Porto Alegre.
Avanços e Obstáculos para a Implementação do Estatuto da Cidade
Coordenadora: Angélica Celeste Mirinha - Presidente do COMATHAB - Conse-
Palestrante: José Roberto Bassul Campos - Mestre em Planejamento Urbano
lho Municipal de Acesso à Terra e à Habitação de Porto Alegre.

1122 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1123
pela UNB. Arquiteto e Urbanista. Foi Presidente do Instituto de Arquitetos do 14h - Oficinas temáticas e apresentação de trabalhos
Brasil (1988-1991). Assessor do Senado Federal.
Coordenação: Marcelo Kruell Milano do Canto - Procurador-Geral Adjunto do Temas
Município de Porto Alegre. 1. Tutela do Direito à Paisagem Urbana, Patrimônio Histórico,
Arquitetônico e Cultural.
Palestra introdutória: Ana Maria Moreira Marchesan - Mestre em Direito
7 de outubro, sexta-feira pela Universidade Federal de Santa Catarina. Promotora de Justiça da Defesa
do Meio Ambiente do Ministério Público do RS.
9h - Painel Coordenadora: Ana Luísa Soares de Carvalho - Mestre em Planejamento Ur-
Balanço de Experiências Institucionais de Implementação bano. Procuradora do Município de Porto Alegre. Supervisora Acadêmica da
do Estatuto da Cidade ESDM.
Coordenação: Elaine Adelina Pagani - Presidente da CEDUPU -Comissão Espe-
cial de Direito Urbanístico e Planejamento Urbano da OAB/RS. 2. O Judiciário Diante da Nova Ordem Jurídico-Urbanística.
Palestra introdutória: Luciano de Faria Brasil - Promotor de Justiça do MPRS.
Painelistas 1.º Promotor da Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urba-
nística de Porto Alegre.
Formas de Financiamento das Cidades Coordenadora: Simone Somensi - Especialista em Direito Municipal. Procura-
Cíntia Fernandes - Especialista em Direito Tributário e Processual. Professora do dora do Município de Porto Alegre. Procuradora-Geral Adjunta do Município de
Lincoln institute of land Policy. Procuradora do Município de Curitiba. Porto Alegre.

O Direito Registral, a Nova Ordem Jurídico-Urbanística e a Lei 3. A Gestão Urbano-Ambiental na Nova Ordem Jurídico-Urbanística.
11.977/09 (Programa Minha Casa, Minha Vida) Palestra introdutória: Annelise Steigleder - Mestre em Direito Ambiental pela
João Pedro Lamana Paiva - Titular dos Registros Públicos e Tabelionato de Pro- Universidade Federal do Paraná. Supervisora da Fundação Escola Superior do
testo de Títulos da Comarca de Sapucaia do Sul/RS. Registrador e tabelião de Ministério Público do RS. Promotora de Justiça do MPRS.
protesto. Tem experiência em Direito, com ênfase em Direito Registral e Nota- Coordenadora: Bethania Regina Pederneiras Flach - Especialista em Direito
rial. Municipal. Procuradora do Município de Porto Alegre.

O Judiciário diante do Estatuto da Cidade 4. Planejamento Urbano e Projetos de Revitalização -


Zenildo Bodnar - Professor do Mestrado na Universidade do Vale do Itajaí. Pro- Palestra introdutória: Glenio Vianna Bohrer - Arquiteto do Gabinete Plane-
fessor da Escola Superior da Magistratura Federal no Paraná e em Santa Cata- jamento Estratégico de Porto Alegre. Coordenador do Projeto Viva o Centro.
rina. Juiz Federal da Vara Ambiental de Florianópolis/SC. Gerente do Projeto Cidade Integrada.
Coordenadora: Cristiane da Costa Nery - Especialista em Direito Municipal
Regularização Fundiária e Novos Instrumentos da Lei 11.977/09 pela UFRGS. Procuradora do Município de Porto Alegre. Procuradora-Geral Ad-
Rosane Tierno - Advogada. Secretária Executiva do IBDU - Instituto Brasileiro de junta do Município de Porto Alegre. Vice-Presidente da ANPM. Conselheira da
Direito Urbanístico. Consultora Jurídica de Regularização Fundiária da Secreta- OAB/RS.
ria de Habitação e Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de Osasco.
17h30min - COFFEE-BREAK
11h - Debates 17h30min - Apresentação dos pôsteres
12h - Almoço

1124 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade - 1125
10
18h30min - Conferência de Encerramento Congresso Comemorativo aos
Perspectivas e Desafios para a Consolidação da Nova Ordem Jurídi­co-
10 anos do Estatuto da Cidade
Urbanística no Brasil II Congresso de Direito Urbano-Ambiental
Conferencista: Ministro Antônio Herman Benjamin (STJ)
Coordenação: João Batista Linck Figueira
Procurador-Geral do Município de Porto Alegre

Realização:

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1126 - Congresso Comemorativo aos 10 Anos do Estatuto da Cidade

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