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ARTIGO ARTICLE
O percurso da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde
dos Homens (PNAISH), desde a sua formulação até sua
implementação nos serviços públicos locais de atenção à saúde
Abstract The scope of this article is to see how the Resumo O artigo tem como objetivo compreen-
Brazilian Comprehensive Healthcare Policy for der como a Política Nacional de Atenção Integral
Men (PNAISH) has been implemented in the à Saúde dos Homens (PNAISH) chega aos serviços
Unified Health System, from the standpoint of da Atenção Básica do Sistema Único de Saúde, a
health professionals. A case study, involving five partir do ponto de vista dos seus profissionais.
cases (each from a different macro region of Bra- Acompanhamos o caminho trilhado pela PNAISH
zil) conducted using ethnographic techniques of com um estudo, etnográfico, de cinco casos (de cada
data collection charted the progress of PNAISH Macro Região do país). A análise está ancorada no
implementation based on an anthropological ap- referencial da Antropologia e emprega a ideia de
proach using Lipsky’s idea of street-level bureau- street-level bureaucreacy, de Lipsky. A formulação
cracy. PNAISH is contextualized in historical da PNAISH é contextualizada em termos históri-
terms with national and international documents. cos e da produção de documentos internacionais e
Acknowledging the inevitable gap between the for- nacionais. Reconhecendo a distância entre formu-
mulation and the implementation of any policy, lação e implementação de qualquer política, bus-
an attempt is made to see how this gap has evolved camos compreender como tal distância foi se cons-
by analyzing the transition of PNAISH into city truindo, na tradução da PNAISH para Planos de
1
Programa de Pós- Action Plans (PAs). It was revealed that the im- Ação (PA) municipais. Observou-se desconheci-
Graduação em
Epidemiologia, plementing agents had little knowledge of PNAISH, mento dos agentes implementadores sobre a
Universidade Federal do of the local health care network for men, of the PNAISH, a rede local de atenção à saúde do ho-
Rio Grande do Sul. Rua techniques required to meet men’s specific needs mem, as técnicas para atender às especificidades
Ramiro Barcelos 2600/sala
406. 90035-003 Porto and of the concept of gender. It faced institutional dos homens e o conceito de gênero. A implementa-
Alegre RS. obstacles, such as lack of an organizational struc- ção esbarrou na ausência de condições institucio-
dea.leal@gmail.com ture, of a consolidated healthcare network – where nais, como uma estrutura organizacional, uma
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Departamento de
Medicina, Universidade the user receives services with different degrees of rede consolidada de atenção – em que o usuário
Federal de São Carlos complexity within the system – and resources in seja atendido por serviços com diferentes graus de
(UFSCar). general, especially human resources. complexidade dentro do sistema – e recursos em
3
Programa de Pós-
Graduação em Saúde da Key words Men’s health, Healthcare policy, Pub- geral, especialmente humanos.
Família - Mestrado lic healthcare policy, Anthropology, Qualitative Palavras-chave Saúde do homem, Política de
Profissional/RENASF, research, Brazil saúde, Políticas públicas de saúde, Antropologia,
Universidade Federal do
Rio Grande do Norte Pesquisa qualitativa, Brasil
(UFRN).
2608
Leal AF et al.
nem concluir com recomendações. Pretende-se É desta época o anúncio de uma política de
analisar a relação entre o que é preconizado na saúde voltada para homens, no Programa Mais
política e as práticas geradas (ou legitimadas) Saúde1. A PNAISH foi formulada em consonân-
em contextos particulares, por aqueles que são cia com a Política Nacional de Atenção Básica e
responsáveis por implementar a Política. com base em consensos construídos a partir de
uma discussão que envolveu, além do próprio
Da construção de um documento que MS, organizações da sociedade civil (associações
enuncia princípios e diretrizes da PNAISH médicas e movimentos sociais organizados), pes-
quisadores acadêmicos e representantes de con-
Historicamente, os formuladores e os executo- selhos de saúde (Conselho Nacional de Secretári-
res de políticas públicas são homens, que concebe- os de Saúde e o Conselho Nacional de Secretarias
ram políticas e programas que asseguraram, qua- Municipais de Saúde)17. O processo envolveu tam-
se sempre, privilégios de ordem simbólica e mate- bém uma consulta pública, aberta pelo MS, atra-
rial a homens – ou, pelo menos, a alguns grupos vés da Internet18. A inserção da ideia de saúde do
de homens. As discussões provocadas especialmente homem em uma política de saúde é menos im-
pelo movimento feminista nas últimas décadas portante aqui pelo seu conteúdo (pelo que se de-
implicaram a inclusão de gênero, enquanto catego- fine que ela é), do que pelo fato de ela ser capaz de
ria analítica, para avaliação de políticas públicas e, reunir e mobilizar um conjunto de atores sociais
enquanto estratégia política, para a formulação de – unindo especialistas, acadêmicos e ativistas –
políticas e programas, visando reduzir as desigual- mas também provocando divisões e críticas.
dades entre homens e mulheres. Ainda que tenha contado com a participação
Dois acordos internacionais de reconhecida de diferentes grupos sociais e com um mecanis-
importância assinalam explicitamente a necessi- mo de consulta pública, a PNAISH recebeu críti-
dade de se enfocar os homens em suas especifici- cas, por não incorporar as discussões de gêne-
dades através de políticas públicas: a Conferência ro19, por “vitimizar” um homem que deve ser
Internacional sobre População e Desenvolvimen- sujeito de uma política específica porque precisa
to (Cairo, 1994), e a IV Conferência Mundial so- ser protegido de si mesmo4,19, por representar
bre a Mulher (Pequim, 1995). Nos documentos mais um passo no processo de “medicalização”
ratificados no Cairo e em Pequim, discute-se a do corpo masculino4 e por estar demasiadamen-
saúde e os direitos sexuais e reprodutivos, numa te focada na próstata20. A proposta encontrou
perspectiva de defesa promoção da igualdade de ainda algumas limitações quanto à sua aceita-
gênero, reconhecendo-se explicitamente que as ção: por ocasião do seu lançamento, por exem-
relações de poder entre homens e mulheres são plo, observou-se que nem mulheres transexuais
desiguais. São lançadas as bases para um consen- nem travestis desejam que suas especificidades
so internacional de que os homens devem ser en- sejam incluídas ou tratadas pela PNAISH21.
volvidos, sendo chamados a participarem e se res-
ponsabilizarem em termos de conduta sexual e de A elaboração de planos de ação
decisões reprodutivas – visando, inclusive, o mai- nos municípios
or “empoderamento” das mulheres.
O gender mainstreaming (trazer gênero à frente Uma vez produzido o documento que expli-
dos debates) implicou, na prática, na associação cita os princípios e as diretrizes da PNAISH, faz-
de políticas “de gênero” a programas estabeleci- se necessário traduzi-los em ações, o que não é
dos por mulheres para mulheres13. Na primeira tarefa fácil, em se tratando de uma política for-
década do século XXI, ganha força a discussão de mulada no âmbito federal para todo território
que homens devem ser pensados não como cate- nacional, que supõe relações entre as três esferas
goria humana, mas como uma categoria generi- de governo. O PN5 contém processos institucio-
ficada, que envolve relações desiguais de poder, nais que constituem tanto uma estrutura de in-
não só entre homens e mulheres, mas entre os centivos quanto uma organização do tempo na
próprios homens. Ganha força, assim, uma dis- forma de um cronograma, visando à produção
cussão da abordagem relacional de gênero, que local de processos de planejamento de ações. Os
não enfoque exclusivamente mulheres; são exem- Estados, o Distrito Federal e 26 Municípios ela-
plares nesse sentido as publicações de relatórios e boraram PA próprios para receber recursos fi-
livros por organismos de cooperação internacio- nanceiros da União.
nal, agências do sistema das Nações Unidas e a Os PA dos 26 municípios selecionados como
Organização Mundial de Saúde14-16. Pilotos foram analisados, partindo-se do supos-
2611
exame, são encaminhados. Os problemas relaci- gião, práticas sexuais – implica o não reconheci-
onados às doenças crônicas, como hipertensão e mento de que grupos diferentes de homens têm
diabetes, são em sua maioria solucionados na acesso (e controle) também diferenciado a re-
própria unidade de saúde, que dispõe de profis- cursos e exercem diferentes relações de poder.
sionais e insumos. Já as demandas de saúde que Diferenças entre homens se traduzem também
requerem exames diagnósticos, consultas com em desigualdades que fazem com que grupos dis-
especialistas ou a realização de procedimentos tintos tenham condições desiguais de acesso a
cirúrgicos, necessitam ser encaminhadas para bens e serviços de saúde. A homogeneidade pres-
outros serviços de nível secundário ou terciário. suposta na categoria genérica de “homens” difi-
O grande problema é que estes serviços já possu- culta o reconhecimento de desigualdades entre
em alta demanda reprimida e costumam levar estes em contextos diversos, e o consequente pla-
um certo tempo, o que vai de encontro às expec- nejamento de ações especialmente para aqueles
tativas masculinas de rapidez e resolubilidade. que se encontram em contextos de marginaliza-
Os entrevistados acreditam que o longo tempo ção e/ou exclusão social, como migrantes, refu-
de espera também agrava o problema do absen- giados ou prisioneiros, entre outros. O reconhe-
teísmo. Os gestores pontuam como dificuldade cimento da diversidade deve ser atrelado à consi-
para implementação da PNAISH a ausência de deração de que ações externas ao setor saúde in-
ofertas de exames de média complexidade – ten- fluenciam e determinam as condições de saúde
do sido mencionado principalmente o de biopsia de diferentes grupos sociais, e à consequente in-
prostática. A precariedade da rede para os enca- clusão no planejamento de ações intersetoriais.
minhamentos e os critérios adotados para os Deve-se ter em conta que o contexto local em
agendamentos são identificados como a princi- que a PNAISH se implementa, através de práti-
pal dificuldade no atendimento da população cas cotidianas particulares, em um território de-
masculina; a dificuldade na resolubilidade dos limitado, a presença do Estado pode muito bem
problemas de saúde dos homens teria impacto ser um tanto quanto fluida e contraditória – para
direto sobre a credibilidade do trabalho do pro- além do setor saúde, ela se materializa, por exem-
fissional e da unidade de saúde. plo, nas ações policiais, na presença de escolas ou
de tribunais. Como observamos, os PA e os ges-
tores não mapearam a realidade onde a política
Considerações finais seria implementada, tampouco se acionou o
mapeamento territorial das equipes de ESF, im-
Buscamos compreender como a PNAISH chega plicando no desconhecimento de serviços, enti-
aos serviços de saúde; para tanto, trilhamos o dades e organizações, públicas ou da sociedade
caminho percorrido por esta política, desde a sua civil, que poderiam atuar em parceria com o se-
formulação, no âmbito federal, até sua execução tor saúde.
local, nos municípios, entendendo a implemen- Reconhecendo que sempre haverá uma dis-
tação como uma cadeia de relações entre aqueles tância entre a formulação e a implementação de
que formulam a política e aquelas que a imple- qualquer política ou programa, buscamos com-
mentam6. Buscamos a perspectiva das pessoas preender como tal distância foi se construindo.
que trabalharam diretamente na implementação Demonstramos que, nos cinco casos estudados,
nestes locais, reconhecendo que os implementa- um primeiro ponto importante é que a maioria
dores estão situados em posições diferentes, que dos agentes implementadores de fato não conhece
vão desde os gestores até os profissionais que a política6. Uma vez que desconhecem a PNAISH,
atendem diretamente a população nos serviços operam com seus próprios objetivos e referênci-
de saúde. Os implementadores tomam decisões as para a implementação, e suas próprias priori-
cotidianamente e são também nesse sentido fa- dades como referência de atuação. Desta forma,
zedores da política. em algumas localidades houve ênfase em abor-
Os gestores e os profissionais de saúde têm dagens na integralidade do cuidado para a saúde
suas próprias ideias e representações sobre os do homem, enquanto em outras foram feitos
homens (e sobre ações ofertadas a esta popula- esforços no sentido de ampliar a realização de
ção). Nas narrativas e nas entrevistas os homens exames de câncer de próstata.
são representados como um grupo bastante ho- Aquilo que dificilmente pode ser visto vai se
mogêneo. O não reconhecimento da diversidade invisibilisando: é o caso da informação relativa
de homens – em termos de faixa etária, ciclo de ao sexo do usuário da Atenção Básica, relatado
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Colaboradores
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