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Mestrado em Estudos Literários, Culturais

e Interartes
LITERATURA PORTUGUESA,
LITERATURAS DE LÍNGUA
PORTUGUESA

Poderei dizer-vos que ela


ousa?: Poesia e Hibridismo
na obra de Ana Cristina
Cesar
Cristina Isabel Oliveira
Ramos

M
2017
Cristina Isabel Oliveira Ramos

Poderei dizer-vos que ela ousa?: Poesia e Hibridismo na obra de


Ana Cristina Cesar

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,


orientada pela Professora Doutora Joana Matos Frias

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

novembro de 2017
Poderei dizer-vos que ela ousa?: Poesia e Hibridismo na obra
de Ana Cristina Cesar

Cristina Isabel Oliveira Ramos

Dissertação realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes,


orientada pela Professora Doutora Joana Matos Frias

Membros do Júri

Professora Doutora Rosa Maria Martelo Fernandes Pereira


Faculdade Letras – Universidade do Porto

Professora Doutora Joana Matos Frias


Faculdade de Letras – Universidade do Porto

Professora Doutora Kelcilene Grácia-Rodrigues


Campus de Três Lagoas - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

Classificação obtida: 19 valores


À memória da minha tia.
Para a minha madrinha.
Sumário
Agradecimentos ............................................................................................................................ 8
Resumo ......................................................................................................................................... 9
Abstract ...................................................................................................................................... 10
Introdução .................................................................................................................................. 11
Capítulo 1. – O ato de escrever .................................................................................................. 24
1.1. A “linguagem-tatuagem” ...................................................................................... 24
1.2. Poesia e comunicação ........................................................................................... 33
Capítulo 2. – A detonação do discurso poético .......................................................................... 47
2.1. O texto híbrido ...................................................................................................... 47
2.2. (Des)limites do verso e da prosa .......................................................................... 55
2.3. Do fingimento à antropofagia ................................................................................. 69
Capítulo 3. – Os “raros ritmos curtos” ....................................................................................... 80
3.1. Da referência intermedial à ekphrasis musical ....................................................... 80
3.2. A pauta verbal: do “ritmo febril” ao “jazz do coração” .......................................... 90
Conclusão ................................................................................................................................. 107
Referências bibliográficas ........................................................................................................ 111

7
Agradecimentos

À Professora Doutora Joana Matos Frias, por me ter dado a conhecer a poesia de
Ana Cristina Cesar e pela orientação não só no decorrer da elaboração deste trabalho,
como também ao longo do meu percurso académico.
Ao Professor Doutor Francisco Topa e ao Professor Doutor Pedro Eiras, pelos
ensinamentos e pelas generosas palavras de incentivo e motivação, que me deram ânimo
para não perder o rumo.
Ao Tiago Sousa Garcia, por me ter cedido o seu trabalho ainda inédito.
À Biblioteca Central da Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
particularmente nas figuras de Laura Gil e Marlene Borges, pelo profissionalismo,
amabilidade e disponibilidade para auxiliar sempre que necessário.
À minha madrinha Manuela, por tudo o que me ensinou, pelo tempo sem medida,
pelo apoio, paciência infinita, força e dedicação constantes. Sem o seu sólido exemplo de
resiliência e coragem, este trabalho decerto não existiria. Todas as palavras que possa
dirigir-lhe nunca serão satisfatórias para agradecer a sua presença na minha vida e para
expressar o quanto a admiro e a prezo.
À Raquel, à Catarina, à Vanessa, à Ana, ao Rui e ao José João, por caminharem
comigo, pela partilha da vivência académica, com todas as lágrimas e sorrisos que ela
acarreta, por acreditarem nas minhas capacidades e me impedirem de desistir.
À Lilian e ao Joubert, que, mesmo com um oceano de distância, sempre me
incentivaram e escutaram.
À Matilde, pela partilha bibliográfica e pela troca de impressões e experiências.
À minha avó, pelo aconchego, e ao meu avô, pelo modelo de superação e de não
resignação às adversidades que representa.
Aos meus pais, por terem possibilitado que este percurso se concretizasse.

8
Resumo

Esta dissertação pretende encetar uma reflexão teórico-prática sobre algumas das
linhas orientadoras da estética compositiva de Ana Cristina Cesar.
Ao longo destas páginas, visa-se destacar o modo como a autora tirou partido da
paulatina porosidade de géneros literários, formas textuais e modos discursivos e, ainda,
do processo de dessacralização do verso rigorosamente medido, que parece dar lugar a
uma prosa abrupta e tensa, mas rítmica e melódica.
Este estudo procura identificar e discorrer sobre as potencialidades criadoras que
advêm da elaboração de uma poesia que se desvia dos trilhos da dos restantes poetas
marginais, que não só questiona os pressupostos do lirismo – na sua aceção clássica –,
como ainda desafia os limites linguístico-textuais, coloca a tónica na confissão lírica
possível e privilegia o relacionamento intermedial.

Palavras-chave: Ana Cristina Cesar, Poesia Marginal, Hibridismo, Intermedialidade

9
Abstract

This dissertation aims at starting a theoretical-practical reflection on some of the


guidelines of the compositional aesthetics of Ana Cristina Cesar.
In the course of these pages, it is intended to emphasize the way the author made
use of the steady permeability of the literary genres, textual forms and discursive modes
and, furthermore, of the demystification process of the rigorously measured verse, which
seems to give way to abrupt and tense, but also rhythmic and musical prose.
This study seeks to identify and discuss the creative potential that comes from
writing a type of poetry, which deviates from paths of other marginal poets, which not
only questions the assumptions of lyricism – in its classic meaning –, but it also challenges
the linguistic-textual limits, emphasizes the possible lyrical confession and privileges the
intermedial relationship.

Keywords: Ana Cristina Cesar, Marginal Poetry, Hybridity, Intermediality

10
Introdução
São livros e o luar contra a cultura.
Caetano Veloso

A poesia é feita contra todos.


Herberto Helder

A presente dissertação tem como principal objetivo equacionar e colocar em debate


a problemática do hibridismo e da consequente metamorfose de géneros discursivo-
textuais, bem como algumas das questões que com ela se relacionam, no âmbito da
poética da autora carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983). Uma perspetiva de estudo
desta índole, creio, induz não só a uma abordagem literária, mas requer, também, uma
contextualização, ainda que concisa, da Geração Mimeógrafo, no seio do monómio
ideológico-social brasileiro, da década de 70 do século XX.
Antes de partir para essa sumária explanação de caráter histórico-literário, começo
por referenciar o modo como esta pesquisa se encontra organizada. Este estudo está
estruturado tendo em conta uma metodologia argumentativa que pretende conduzir o
leitor, da direção de linhas orientadoras gerais da poesia marginal, para, depois, se
demorar em traços específicos da produção estética da autora de A Teus Pés.
O primeiro capítulo visará uma discussão acerca do modo como Ana Cristina Cesar
encara a própria criação poética (realce-se, desde já, que a autora é bastante autorreflexiva
relativamente à sua poesia e tem uma vasta produção crítica), dando prevalência à
linguagem que se afirma enquanto tatuagem e é, portanto, indelével e à faceta
comunicativa do signo artístico.
O segundo capítulo privilegiará a questão do hibridismo afeto aos textos poéticos
da autora de Correspondência Completa. Assim, numa primeira instância, apontarei o
movimento de crescente porosidade e fusão de formas poéticas e géneros líricos e textuais
como aspeto adjuvante do surgimento de poemas de caráter epistolar e diarístico, na
confluência da estética em debate. Ver-se-á, também, até que ponto lirismo, descritivismo
e narratividade são passíveis de ser diferenciados, nesta produção de pendor híbrido. O

11
último tópico que abordarei, neste contexto, permitirá refletir quer sobre a forma como
Ana Cristina Cesar, autora empírica, se evade do enunciado poético, fazendo-se valer pela
sua qualidade de autora textual (escusando, assim, as leituras de índole unicamente
biografista, até porque não deve olvidar-se que, tal como defendeu Marcos Siscar,
“[e]ntrar no poema é uma metamorfose. (...) Trata-se de uma produção de sentido, da
criação de uma nova realidade”1), quer sobre o processo intertextual assumido que a poeta
leva a cabo, em múltiplos poemas.
No capítulo final deste estudo, será proposta uma reflexão sobre uma tipologia de
hibridismo que não se detém apenas no texto lírico, por si só, mas que impele a pensá-lo
na sua relação com o universo musical. Darei destaque, portanto, a essa relação
intermedial e equacionarei o signo linguístico não só na sua dimensão material (visível
através da mancha gráfica da palavra poética), mas também na sua dimensão sonora,
rítmica. Pretendo, desse modo, explicitar a estreita proximidade existente entre o trabalho
estético de Ana Cristina Cesar e o universo do Jazz e do Blues, géneros musicais que
influenciaram a sua existência e, consequentemente, a sua poesia, de tal forma que vários
poemas se apresentam enquanto exemplos de um processo que se pode qualificar como
de ekphrasis musical.
Apresentadas as linhas orientadoras deste estudo, esboço, agora, uma
contextualização sumária quer do paradigma estético da Geração Mimeógrafo – onde se
enquadra a produção lírica da autora que ocupa estas páginas –, quer da conjuntura
sociopolítica brasileira da década de 702. A opção por este duplo enfoque em esferas
potencial e aparentemente algo distantes prende-se com o facto de julgar que, no caso
específico da poesia marginal brasileira (movimento assente num propósito de
aproximação à contracultura e na elaboração de objetos estéticos com uma forte pendor
de resiliência face ao sistema governativo vigente, naquele lapso temporal), torna-se
imperativo pensar a génese dessa vertente poética e artística não só enquanto resposta
provocatória aos preceitos castradores de um regime ditatorial, mas ainda como ímpeto

1
SISCAR, Marcos, Ana Cristina Cesar por Marcos Siscar, Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011, p. 15
2
Para uma perceção mais ampla de alguns acontecimentos marcantes da década de 60, que influenciaram
subsequentemente a de 70, cf. SCHWARZ, Roberto, “Cultura e Política: 1964-1969”, in As Ideias Fora do
Lugar: Ensaios Selecionados, São Paulo: Companhia das Letras, 2014, pp. 7-47.
12
estético moldado por esse mesmo regime. Ressalvo somente, neste âmbito e antes de me
prender a este segundo momento expositivo, que o enquadramento que farei não será, de
todo, exaustivo, quer por esse trabalho se encontrar já bastante desenvolvido por diversos
teóricos (note-se, por exemplo, a obra Impressões de Viagem3, de Heloisa Buarque de
Hollanda), quer devido aos constrangimentos espácio-temporais específicos de uma
dissertação.
Passe-se, então, à contextualização e a algumas interrogações que dela podem
decorrer. Convoco, inicialmente, a questão levantada por Glauco Mattoso, em O que é
Poesia Marginal – obra na qual se destaca a análise de vários aspetos que contribuíram
não só para a afirmação de uma nova linhagem de poetas (que se afirma através de
preceitos compositivos e temáticos específicos e que visou a perda descomprometida da
auréola, tendo em consideração a conceção de Charles Baudelaire4 e a sua conhecida
releitura por Walter Benjamin5), mas também para a institucionalização desse juvenil
labor poético. Assim, pode afirmar-se que esta geração estética preconizou uma rutura
não somente com os movimentos canónicos a ela anteriores, como ainda com o
funcionamento do mercado editorial. Seguindo o posicionamento exegético do
supracitado teórico, encontra-se a seguinte pergunta: “Poesia tem que ter estrela?”6.
Se se optar por tomar a interrogação colocada por este autor como grau zero de uma
reflexão mais aprofundada sobre o grupo desses “malditos marginais hereges”7 –
aludindo ao título de um artigo redigido por Ana Cristina Cesar para o extinto jornal Beijo
–, colocam-se outras interrogações, que dela advêm e que não se apresentam com um
nível inferior de complexidade, tais como: o que faz uma estética poética ser considerada
superior ou inferior, quando comparada com outras que com ela coabitam o sistema
literário? Do ponto de vista analítico, essa distinção parece não poder ser baseada somente

3
Cf. HOLLANDA, Heloisa Buarque de, Impressões de Viagem: CPC, Vanguarda e Desbunde (1960/70),
Rio de Janeiro: Aeroplano, 2004
4
BAUDELAIRE, Charles, “Perte d’Auréole”, in Petits Poèmes en Prose: Le Spleen de Paris, Paris:
Garnier-Flammarion, 1967, p. 155
5
Cf. BENJAMIN, Walter, Charles Baudelaire: A Lyric Poet in the Era of High Capitalism (trad. Harry
Zohn), London: Verso, 1997
6
MATTOSO, Glauco, O que é Poesia Marginal, São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 10
7
Cf. CESAR, Ana Cristina, “Malditos Marginais Hereges”, in Crítica e Tradução, São Paulo: Ática, 1999,
pp. 204-212.
13
na qualidade das escolhas linguísticas, ou até mesmo textuais de um autor, muito embora
as implique. Há que ter em conta, igualmente, as consequências do exercício da Crítica:
caso o crítico literário não se abstenha das suas conceções pré-estabelecidas, a sua própria
subjetividade afetará a caracterização do texto que se propõe abordar de modo científico.
Volte-se ao pilar que sustém a base temática deste estudo, a poesia marginal
brasileira. Destaco, numa instância inicial, que é na obra antológica 26 Poetas Hoje,
datada de 1975 e organizada por Heloisa Buarque de Hollanda, que uma pequena porção
dos trabalhos poéticos de alguns membros dessa geração (como é o caso de Ana Cristina
Cesar) se encontra coligida e assim também legitimada, pela primeira vez e em volume
único. Todavia, a noção de margem e, subsequentemente, de marginal não deixava de
transportar consigo o peso de uma conceção pejorativa, ligada à contracultura, e não
somente “desviante”, face a um paradigma literário impregnado de características
específicas de movimentos pujantes, como o modernismo ou o concretismo. A este
propósito, Chacal ironizou, em “– Alô, é o quampa?”, a transposição desse termo
proveniente das Ciências Sociais para o domínio poético. Senão, leia-se o seguinte trecho:
“a poesia é magistral. mas marginal pra mim é novidade. você que é bem informado, mi
diga: a poesia matou alguém, andou roubando, aplicou algum cheque frio, jogou alguma
bomba no senado?”8. Assim, julgo ser possível realçar a proximidade da perspetiva do
supranomeado autor com a seguinte premissa apontada por Jorge de Sena: “[n]em sempre
a definição clara de uma tendência foi o mais fecundo incentivo de um grupo literário”9.
De facto, no caso da geração destes jovens autores avessos à rigidez de sistema literário
e do próprio regime político, penso que essa clareza na definição dos seus propósitos não
era tão essencial quanto a necessidade de levar a cabo um projeto estético que ousasse e
se pautasse pela liberdade linguística e pelo investimento na maleabilidade formal do
verso.
Fixando esta linha de raciocínio, realço que Heloisa Buarque de Hollanda
mencionou, no posfácio à antologia a que anteriormente me referi, traços que revelam a
complexidade paradigmática da Geração Mimeógrafo (surgida num quadro de vazio

8
CHACAL, Belverede (1971-2007), São Paulo: Cosac Naify, 2007, pp. 293-294
9
SENA, Jorge de, “Ensaio de uma Tipologia Literária”, in Dialéticas Teóricas da Literatura, Lisboa:
Edições 70, 1977, p. 24
14
cultural), bem como as tensões com as quais esta lidava. Nas palavras da ensaísta, esta
era “uma poesia aparentemente light e bem-humorada, mas cujo tema principal era grave:
o ethos de uma geração traumatizada pelos limites impostos (…) através da censura”10
característica da ditadura militar que imperou no Brasil, desde 1964 até 1985.
Destarte, é essa mesma poesia aparentemente piadística, pouco elaborada, de
caráter oralizante, flutuante e de tom carnavalesco, que privilegiou o culto do choque e
do escândalo, que teóricos como Ítalo Moriconi, Silviano Santiago, Heloisa Buarque de
Hollanda ou Frederico Coelho tomam, de modo consensual, como uma produção, que,
muito embora num momento embrionário tendesse a ser homogeneizada e situada nas
margens da cultura elitista, acabou por afirmar-se não tanto como movimento, como
quanto “motivação”11, “‘surto’ poético”12 ou mesmo “poemão”13 (na mundividência do
poeta Cacaso), conquistando território próprio, um novo público e emergindo num
ambiente político-social conturbado. Atente-se, a este propósito, no que expôs Frederico
Coelho, que vem adjuvar o que acabo de referir: num “país que atravessava um período
marcado pelo excessivo controle político, poetas das mais variadas idades e origens
constituíram um espaço de atuação cujo ponto em comum foi a não adequação. Uma não
adequação ao seu tempo”14.
A opção claramente marcada pela recusa de modelos estéticos rigorosos e
inflexíveis, por parte dos autores daquela poesia que Heloisa Buarque de Hollanda cunhou
como “ruim, suja e sem qualidade”15, leva a considerar vários pontos de rutura não só
com a tradição literária antecessora, como ainda com o sistema político, como tenho vindo
a enfatizar. Convoquem-se, nesta perspetiva, as palavras de Octavio Paz, na sua obra Os

10
HOLLANDA, Heloisa Buarque de, “Posfácio”, in AA. VV., 26 Poetas Hoje (org. Heloisa Buarque de
Hollanda), Rio de Janeiro: Aeroplano, 2007, p. 257
11
Cf. COELHO, Frederico, “Quantas Margens Cabem em um Poema? – Poesia Marginal Ontem, Hoje e
Além”, in AA. VV., Poesia Marginal: Palavra e Livro (org. Eucanaã Ferraz), São Paulo: Instituto Moreira
Salles, 2013, p. 29
12
HOLLANDA, Heloisa Buarque de, “Duas Poéticas, Dois Momentos”, Relâmpago: Revista de Poesia,
Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava e Relógio de Água Editores. Nº 7 (Outubro 2000), p. 43
13
BRITO, António Carlos de, apud HOLLANDA, Heloisa Buarque de, “Posfácio”, in AA. VV., 26 Poetas
Hoje (org. Heloisa Buarque de Hollanda), op. cit., p. 261
14
COELHO, Frederico, art. cit., p. 19
15
HOLLANDA, Heloisa Buarque de, “Observações: Críticas ou Nostálgicas?”, Poesia Sempre [S.l.]:
Edições Biblioteca Nacional. Nº 8 (1997), [s.p.]. [Consult. 12 Abr. 2015] Disponível em:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/observacoes-criticas-ou-nostalgicas/
15
Filhos do Barro, que, muito embora proclamadas numa conjuntura que nada tem que ver
com a questão das peculiaridades da Geração Mimeógrafo, parecem profícuas e ajustáveis
a este âmbito: “revolução e poesia são tentativas de destruir este tempo de agora, o tempo
da história que é o tempo da desigualdade, para instaurar outro tempo”16. De facto, creio
que seria esse outro tempo, renovado, regenerado, não restritivo e igualitário, que estes
artistas pretendiam instaurar na sociedade brasileira de então.
Acrescentem-se à discussão duas outras posições teóricas que se complementam e
que contribuem para reforçar esta argumentação: a autora de Cenas de Abril sublinhou
que esta poética contém traços anticabralinos e antiformalistas bastante vincados e
Silviano Santiago, por seu turno, referiu que a “boa literatura pós-64 prefere se insinuar
como rachaduras em concreto, com voz baixa e divertida, em tom menor e coloquial”17.
Constata-se, portanto, que, numa tentativa de anular qualquer vestígio da influência de
outros autores nos seus textos, os poetas marginais pretenderam levar a cabo parricídios
poéticos e evadiram-se, até certo ponto, do academicismo (não obstante vários deles
possuírem formação universitária, como é o caso de Ana Cristina Cesar), elegendo uma
dicção lírica que aboliu a morosidade do limae labor horaciano e que se centrou na
“curtição”18 pura do texto, na fruição do exercício de criação lírica e no “desbunde”
distintivo de uma estética da jovialidade19, que olhou a poesia na sua dimensão de “liberté
libre”20, para empregar as palavras de Arthur Rimbaud.
Ecoam, assim, alguns traços da postura não estética (se observada pelos olhos do
cânone instituído), mas sim “desviante”, típica também dos artistas tropicalistas (que,

16
PAZ, Octavio, Os Filhos do Barro: Do Romantismo à Vanguarda (trad. Olga Savary), Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1984, p. 67
17
SANTIAGO, Silviano, “Poder e Alegria: A Literatura Brasileira Pós-64 – Reflexões”, in Nas Malhas da
Letra, Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 21
18
Na perspetiva de Silviano Santiago, o conceito de “curtição” tem que ver com os seguintes aspetos:
“sensibilidade de uma geração, sensação, estado de espírito”. Para o autor, esta noção pode ser equacionada,
também, como “conceito operacional”. Cf. SANTIAGO, Silviano, “Os Abutres”, in Uma Literatura nos
Trópicos: Ensaios sobre Dependência Cultural, Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 128
19
Cf. HOLLANDA, Heloisa Buarque de, “A Poesia Marginal” [Consult. 12 Abr. 2015] Disponível em:
http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/a-poesia-marginal
20
RIMBAUD, Arthur, Œuvres Complètes, Paris: Gallimard, 2007, p. 245
16
segundo Ana Cristina Cesar21 e Silviano Santiago22, terão estado na base deste sopro
lírico alternativo), entre os quais se encontram as figuras incontornáveis de Caetano
Veloso23 e de Gilberto Gil.
Para além dessa mudança de tom (influenciada, também, pela proximidade com a
estética da Geração Beat norte-americana), e de postura artística, a poesia da Geração
Mimeógrafo pautou-se ainda por características como a brevidade, a preferência pelo
fragmento, pelo panfleto e pelo epigrama. Assim, esta atitude diferencial face aos
movimentos literários precedentes simbolizou, a par da própria postura social, um novo
gesto de resistência ao regime ditatorial (inibidor de inúmeras liberdades, entre as quais
a liberdade de expressão artística e poética) e ao mecanismo censório, ou seja: essa erosão
dos signos linguísticos, a redução a um mínimo dizível, permitiu aos poetas levarem a
cabo o seu projeto de denúncia subtil das tensões políticas, sociais e económicas a que
estavam submetidos, funcionando como um ato catártico. Parece ter sido através dessa
“aventura / bruta / (em versos)”24 de evidenciação subtil, que os autores marginais
jogaram com a plasticidade dos limites estéticos e percecionais dos seus recetores.
Surgidos no seio de um regime opressivo e órfãos do elitismo exclusivista que se
havia instalado no campo cultural, estes poetas de conduta lírica e vivencial excêntrica e
performativa, frequentemente encontrados à porta de cinemas, teatros e outros espaços
públicos, a distribuir os seus pequenos livros (cuja técnica de produção acompanhavam
desde a raiz)25, potencializaram (re)aproximações não só entre público e autores26, como
entre poesia e vida quotidiana. A este respeito, Paulo Leminski salientou, no ensaio “O

21
Cf. CESAR, Ana Cristina, “Literatura Marginal e o Comportamento Desviante”, in Crítica e Tradução,
op. cit., pp. 213-214.
22
Cf. SANTIAGO, Silviano, “O Assassinato de Mallarmé”, in Uma Literatura nos Trópicos: Ensaios sobre
Dependência Cultural, op. cit., p. 193
23
Quando questionado por Augusto de Campos relativamente ao facto de o Tropicalismo poder ser um
movimento musical ou um comportamento vital, Caetano Veloso defende uma natureza dual para o
conceito e acrescenta que este pode ser considerado como “uma moda”. Refere, ainda, o seguinte: “Acho
bacana tomar isso que a gente está querendo fazer como Tropicalismo. Topar esse nome é andar um pouco
com ele”. Cf. CAMPOS, Augusto de, “Conversa com Caetano Veloso”, in Balanço da Bossa e Outras
Bossas, São Paulo: Perspetiva, 1974, p. 207
24
CESAR, Ana Cristina, Poética, São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 365
25
Bruta Aventura em Versos [Registo vídeo]. Direção de Letícia Simões. Brasil: Artezanato Eletrônico,
Matizar, 2011. (ca. 76 min), min. 11:16-11:42.
26
Cf. BRITO, Antonio Carlos de, apud CAMARGO, Maria Lucia de Barros, Atrás dos Olhos Pardos. Uma
Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar, Chapecó: Argos, 2003, p. 14
17
Boom da Poesia Fácil”, que, enquanto as vanguardas formalistas e a poesia engagée
adotaram uma atitude de pretensa mutação quer do mundo, quer do fazer poético, o
“alternativo poetar dos anos 70 não queria nada”27 (para os olhares mais desprevenidos e
desatentos) e, talvez por isso mesmo, pela ausência de regras compositivas intransigentes
e pelo ténue ocultamento de uma atitude francamente combativa, tenha conseguido
cativar e iniciar na poesia um outro tipo de público recetor (um público constituído por
“pivetes”, aludindo à conceção do supracitado poeta), repelido pela erudição. Por
conseguinte, depreende-se que inúmeras vozes, múltiplas influências não só estéticas,
como também musicais e sociais impulsionaram a consolidação do plano de matriz
revolucionária da poesia da Geração Mimeógrafo.
Esta sucinta discussão referente ao contexto político-social que propulsionou o
surgimento desta elocução poética poderia conduzir a uma tendência errónea de
homogeneização das características líricas e vivenciais e de agrupamento de todos os
membros desta pulsão estética num único compartimento, todavia (e esta é apenas mais
uma evidência da complexidade de trilhos de investigação no seio da poesia marginal
brasileira), o grupo não era tão homogéneo quanto podia aparentar, numa primeira
abordagem; senão atente-se no que sublinhou, a respeito de 26 Poetas Hoje, Joana Matos
Frias: as “divergências [estéticas entre os membros do suprarreferido grupo] eram apesar
de tudo visíveis a olho nu”28. Logo, seria falacioso continuar esta reflexão analítica se não
se fizesse esta ressalva e se tomasse criticamente esta geração como um todo padronizado,
sem se considerar os diversos rizomas poéticos que a compõem.
Após este breve sumário de alguns traços pertinentes para uma perceção
panorâmica da produção estética marginal, retiro o foco do grupo para colocá-lo sobre a
figura de Ana Cristina Cesar. As questões que pretendo colocar são as seguintes: tendo
em conta a argumentação desenvolvida, poder-se-á considerar a autora de Luvas de Pelica
uma poeta marginal, num sentido restrito? Ter-se-á submetido a uma experiência de
grupo, sem se diferenciar estética e socialmente dos demais elementos da sua geração?

27
LEMINSKI, Paulo, “O Boom da Poesia Fácil”, in Ensaios e Anseios Crípticos, São Paulo: Editora
UNICAMP, 2012, p. 61
28
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
483
18
A resposta parece evidenciar-se de modo claro. Desde criança, a vivência da autora
de Correspondência Completa revelou-se particular: recorde-se, a título de exemplo, a
publicação de poemas seus, redigidos ainda na infância, na revista Bem-Te-Vi29. Ana
Cristina Cesar cedo desvendou e perseguiu o seu destino: vários são os episódios que se
conhecem acerca da sua precoce avidez poética e que vão desde ditar poemas à mãe,
quando ainda não se encontrava em idade escolar, até ao mover inconsciente da mão,
como que mimetizando a escrita, onde quer que se encontrasse – na “sua poesia, este
caráter somático da escrita, espécie de action-writing, torna-se bem visível no ritmo
ofegante e nervoso do verso”30, assegurou Joana Matos Frias.
O seu percurso universitário deu continuidade à paixão de criança, e, após o término
do curso de Letras, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (no ano de
1975), e do mestrado em Comunicação, na Universidade Federal do Rio de Janeiro
(quatro anos mais tarde), Ana Cristina Cesar rumou a Inglaterra, com vista ao ingresso na
Universidade de Essex, onde obteve o título de Master of Arts, com a sua tradução
comentada do conto “Bliss”, de Katherine Mansfield, em 1980. A sua insaciável voragem
crítico-literária materializou-se, em livro e pela primeira vez, com o volume Literatura
não é Documento. Seguiram-se edições independentes limitadas de outros títulos, tais
como Cenas de Abril (de 1979), Correspondência Completa (um único poema de caráter
epistolar que constituiu todo o corpus do livro homónimo, datado de 1979) e, por fim,
Luvas de Pelica (surgido em 1980). Dois anos mais tarde, estes pequenos volumes foram
reunidos e, em conjunto com uma nova parcela de textos líricos, originaram a obra A Teus
Pés, que se tornou no seu único livro publicado por uma editora reconhecida: a
Brasiliense. O ano de 1983 assumiu-se como derradeiro para Ana Cristina Cesar, que
apenas cessou o seu exercício crítico e poético quando decidiu colocar termo à sua breve
existência. Desde esse momento até ao presente, os seus escritos têm vindo a ser coligidos
em várias obras póstumas e a sua poesia continua a ser alvo de atenção crítica.
Após esta sucinta incursão de pendor biobibliográfico, sublinho que a autora, não

29
Cf. CESAR, Ana Cristina, Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar (org. Eucanaã Ferraz), São
Paulo: Instituto Moreira Salles, 2016, pp. 147-149
30
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
488
19
obstante ter integrado o impulso poético marginal, empreendeu um trajeto algo paralelo
a ele, afastando-se do modus operandi ligeiro e carnavalesco31 adotado pelos restantes
membros da sua geração, e dando prevalência à polidez linguística e formal, envolvendo-
se, ativamente e a par da prática dos exercícios crítico e estético, nos cenários político e
cultural brasileiros e lutando em prol de causas estudantis (como a forte carga da teoria,
no âmbito de um curso de Letras), tal como enfatizou Joana Matos Frias, no ensaio
referido previamente. Neste contexto específico, a seguinte posição analítica de Ítalo
Moriconi corrobora o que acabo de realçar:

A crítica literária contemporânea é unânime em classificar o texto de Ana Cristina


como excêntrico em relação ao tipo de poesia que notabilizou a sua geração e que
passou para os manuais de literatura sob o rótulo de «poesia marginal». Seu
trabalho apresenta uma sofisticação distinta da dicção propositadamente
32
antiliterária e formalmente simples de poetas como Chacal.

A própria poeta, num dístico intitulado “A Lei do Grupo” (que pode operar como
chave de leitura do seu distanciamento face à restante constelação marginal), parece isolar
o seu itinerário poético do dos companheiros. Leia-se esse poema: “‘todos os meus
amigos / estão fazendo poemas-bobagens ou poemas-minuto’”33. “Todos”, mas não a
autora de A Teus Pés, que se empenhava na afirmação de um trilho que queria distante do
percurso “desviante”, do coletivo, e que tinha como diretriz a colocação da ênfase sobre
um “olhar estetizante”34 do verso.
Abro um pequeno parêntesis, embora mantenha esta linha argumentativa, e resgato
o conceito de “literatura menor”, forjado por Gilles Deleuze e Félix Guattari, conceito
esse que me parece profícuo para defender sustentadamente que a produção lírica de Ana

31
Não deixe de notar-se, a este propósito, que Mikhail Bakhtin define, concisamente, o conceito de
“carnaval” como “segunda vida do povo, baseada no princípio do riso”, isto é, a “sua vida festiva”. Julgo,
no quadro específico da Geração Mimeógrafo, que esta mesma atitude festiva e aparentemente
despreocupada adotada pelos artistas marginais, perante a arte e a própria vida, constituiu mais uma fonte
de resistência à opressão instituída, um ponto de fuga estético. Cf. BAKHTIN, Mikhail, A Cultura Popular
na Idade Média e no Renascimento: O Contexto de François Rabelais (trad. Yara Frateschi Vieira), São
Paulo: Editora Hucitec, 1987, p. 7
32
MORICONI, Ítalo, Ana Cristina Cesar: O Sangue de uma Poeta, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996,
p. 8
33
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 333
34
Idem, p. 68
20
Cristina Cesar nada tem que a diminua. Os dois teóricos apontaram três características-
base capazes de definir o que entenderam por “literatura menor”. Leia-se a sua
perspetivação: uma “literatura menor não pertence a uma língua menor, mas (...) à língua
que uma minoria constrói numa língua maior. A primeira característica é que a língua, de
qualquer modo, é afetada por um forte coeficiente de desterritorialização”35. De facto,
julgo que os poetas da Geração Mimeógrafo não só instauraram uma nova forma de
poetar, como ainda proporcionaram o surgimento de uma língua específica, dotada de
uma nova liberdade sintática e semântica, que é fruto de um projeto de desajuste não só
intelectual como territorial, que o grupo experienciou. Continue-se a leitura: a “segunda
característica das literaturas menores é que nelas tudo é político. (...) A terceira (...) é que
tudo toma um valor coletivo”36. Nesta confluência, creio ser possível afirmar que a
produção lírica da poeta, contrariamente à da maioria dos restantes elementos da sua
geração, parece somente não negar o primeiro traço distintivo apontado por Deleuze e
Guattari, uma vez que a sua poesia não apresenta um pendor de clara militância política
e a própria autora, como já sublinhei, desviou, a vários níveis, a sua estética do trilho
marginal.
Ana Cristina Cesar tinha a impaciência da escrita latente à sua própria experiência
de descontentamento existencial. Veja-se o que a autora de Luvas de Pelica desvelou,
neste âmbito: “Acho que estou ficando meio maluca, com síndrome de literato, só quero
saber de escrever e quando piso na rua me dá um arrepio”37. Para além desta intensa
proximidade com a escrita, que ora é tida como antídoto para o alívio da frustração
vivencial, ora se apresenta como veneno intensificador dessa mesma dolência, a poeta
assumiu que exercia “vampirismo” e “ladroagem” – termos por si forjados para designar
fenómenos de antropofagia estética – sobre fragmentos textuais de outros autores,
compunha, reescrevia até crer que o poema tinha atingido a perfeição possível. Nesta
confluência, o prazer estético parece não se limitar apenas ao recetor, abrangendo, em
alguns momentos e apesar da sua “ira embaladora contra a vida”38, Ana Cristina Cesar,

35
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix, “O que é uma Literatura Menor?”, in Kafka: Para uma Literatura
Menor (trad. Rafael Godinho), Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p. 38
36
Idem, pp. 39-40
37
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999, p. 60
38
Idem, p. 26
21
que chegou mesmo a escrever que era “engraçado estar participando ao vivo da ‘história
literária’”39. Nesta perspetiva e concordando com a mundividência de Ítalo Moriconi,
penso que a autora de Correspondência Completa se assume como “marginal por
convivência”40 e não tanto marginal na sua índole. De facto, a poeta movia-se nos mesmos
ambientes que os restantes autores marginais cariocas, não obstante trilhar um caminho
individual e alternativo ao percurso estético que se palmilhava coletivamente.
As influências da cultura e da literatura inglesas representam outro traço
característico da sua poesia e a desadequação face ao mundo (marca da genialidade, na
conceção pessoana41) que a rodeava envolvia-a na melancolia poética e existencial, de tal
forma que, como frisou Luciana di Leone, “os [seus] poemas (…) teriam mais densidade
e trabalho do ponto de vista estético”42 do que os daqueles que a acompanhavam em
contramão.
Ana Cristina Cesar adotou uma posição que parece postular a cosmovisão lírica que
se encontra no verso que encerra “Poética”, de Manuel Bandeira (com o qual, de resto, o
seu poema “33ª Poética” mantém uma relação intertextual43), a saber: “– Não quero mais
saber do lirismo que não é libertação”44. Na sua obra, como tenho tentado demonstrar, o
lirismo emancipa-se do peso e da rigidez de fórmulas compositivas de correntes literárias
antecedentes, o que proporciona uma maior independência da linguagem face às regras
sintáticas da língua. Ainda que não condicionada totalmente, essa essência lírica
apresenta-se subordinada às necessidades de um eu bastante expressivo (ora irónico, ora
dramático), cuja voz comanda não só a esfera da produção, mas também a da receção,
conduzindo o leitor até que este se perca no ténue limite que separa o verosímil do real.
Sucintamente, poder-se-á entender que a poética de Ana Cristina Cesar ganhou

39
Idem, p. 98
40
Cf. MORICONI, Ítalo, op. cit., p. 25
41
Note-se que Fernando Pessoa desvela essa sua conceção, no seguinte fragmento de “Heróstrato”: “A
essência do génio é a inadaptação ao ambiente”. Cf. PESSOA, Fernando, apud FERRARIA, Ana M., “O
Nascimento de um Autor”, Estranhar Pessoa, Lisboa: [S.n.]. Nº 3 (2016), p. 98 [Consult. 25 jul. 2017]
Disponível em:
https://static1.squarespace.com/static/51d2b64ae4b0a433e9c0c726/t/58ec8d2ebebafbc65d80ee9a/149189
7650948/Revista+Estranhar+Pessoa+n3.pdf
42
LEONE, Luciana María di, Ana C.: Tramas da Consagração, Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 62
43
Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 325
44
BANDEIRA, Manuel, Estrela da Vida Inteira, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p. 129
22
forma e força sob a alçada de um trabalho minucioso sobre os signos artístico e
linguístico, sobre a necessidade da emergência da “linguagem-tatuagem” (realçada por
Ítalo Moriconi45), que surge do e no corpo e o transcende, e sobre a própria estrutura
compositiva, possibilitando não somente o surgimento de textos poéticos em verso, como
ainda de registos que mesclam a forma poética com as matrizes dos géneros diarístico e
epistolar – o que se encontra na base da problemática do hibridismo e da subsequente
erosão dos limites teórico-práticos existentes entre prosa e verso, que, a seu tempo,
explorarei mais pormenorizadamente.
Assim, penso ser pertinente entender que a poesia “de Ana se desengaja da
militância ortodoxa para engajar-se numa política de linguagem não-autoritária”46, que
possibilita a fusão de formas e modos discursivos, num “exercício poético de pesquisa de
articulações da linguagem (…) não totalitárias, não totalizadoras, não vendedoras de
ilusões – sequer a ilusão do sentido”47, sentido esse para o qual a poeta apontou, mas
nunca chegou a esclarecer, deixando o leitor que procura dissecar os seus poemas e fazer
interpretações de matriz biográfica à deriva, conforme terei oportunidade de discutir.
O trabalho poético de Ana Cristina Cesar encontra-se, a meu ver, matizado pela
dicção cuidada e peculiar, pelo confessionalismo melancólico (in)tenso, mas fingido, pela
ambivalência da escrita tomada ora como refúgio catártico, ora como veneno, bem como
pela tensão dramática, pela ousadia e pela originalidade estilística, que a perpassam.

45
MORICONI, Ítalo, op. cit., p. 95
46
Idem, p. 50
47
Idem, ibidem
23
Capítulo 1. – O ato de escrever

1.1. A “linguagem-tatuagem”

Ana Cristina Cesar vinculou (como se de uma tatuagem se tratasse, segundo Ítalo
Moriconi48), a palavra – “essa matéria flexível e dócil por excelência, que faz parte
integrante do espírito, e é mais capaz que qualquer outra coisa de apreender os interesses
e movimentos espirituais sob o seu aspeto vivo”49, na conceção de Hegel – ao próprio
corpo. No seio da obra da poeta, esse mesmo corpo é encarado como veículo propiciador
do ato da escrita, que, conforme assinalou Henri Meschonnic, se trata de “une interaction
entre le corps et le langage, de ce qui reste du corps dans le langage écrit”50. Não deixe
de se apontar, no que concerne a esta posição interpretativa, que, por seu turno, também
o exercício da escrita permite o surgimento de um corpo textual. Sendo a autora de A Teus
Pés uma leitora de Roland Barthes51 e tendo lido a obra Fragmentos de um Discurso
Amoroso não me parece, de todo, acaso (até porque, tal como defendeu esse mesmo
crítico, “a linguagem nunca é inocente”52) que esta conceção linguística que está
intrinsecamente ligada aos corpos físico e poético se aproxime do seguinte postulado
barthesiano: a “linguagem é uma pele. Esfrego a minha linguagem contra o outro. É como
se tivesse palavras de dedos ou dedos na extremidade das minhas palavras”53.
A este propósito, porém progredindo um pouco, realço que foi a própria poeta que
desvelou, numa carta endereçada a Ana Candida Perez, que iria “escrever o que pinta[sse]
na ponta dos [s]eus dedos”54, denunciando, desde logo, uma postura compositiva que visa
uma correlação entre o domínio material do corpo e a palavra poética.

48
MORICONI, Ítalo, op. cit., p. 95
49
HEGEL, G. W. Friedrich, Estética (trad. Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino), Lisboa: Guimarães
Editores, 1993, p. 536
50
MESCHONNIC, Henri, “Le Sujet comme Récitatif ou le Continu du Langage”, in AA. VV., Modernités
8: Le Sujet Lyrique en Question (org. Dominique Rabaté, Joële de Sermet et Yves Vadé), Bordeaux: Presses
Universitaires, 1996, p. 16
51
Cf. CESAR, Ana Cristina, Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar (org. Eucanaã Ferraz), op.
cit., pp. 42-43
52
BARTHES, Roland, O Grau Zero da Escrita (trad. Maria Margarida Barahona), Lisboa: Edições 70,
1984, p. 22
53
BARTHES, Roland, Fragmentos de um Discurso Amoroso (trad. Isabel Pascoal), Lisboa: Edições 70,
2010, p. 96
54
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 240
24
Se se percorrer a totalidade da obra de Ana Cristina Cesar, verificar-se-á que o topos
da linguagem do/no corpo encontra-se plasmado não somente em múltiplas composições
líricas, como ainda em textos críticos e em epístolas de caráter pessoal, conforme tentarei
explicitar adiante. Não obstante, pretendo aqui focá-lo enquanto ponto mediador da
relação entre sujeito e texto – esse “tecido de significantes que constitui [uma
determinada] obra”55, aludindo à definição de Roland Barthes. Neste âmbito, não obstante
avançando um pouco nesta argumentação, não se descure o facto de Armando Freitas
Filho ter afiançado no breve texto de abertura de Correspondência Incompleta, que,
nessas missivas, “[Ana Cristina Cesar] se confessa, sim, mas faz (fala de) literatura o
tempo todo”56, o que corrobora o que acabo de frisar.
Destaquei, no ponto introdutório deste estudo, a essência desviante do percurso que
Ana Cristina Cesar privilegiou face à estética simples, de pendor instantaneísta e
despreocupado (baseado na fruição do desbunde), típica das poéticas dos demais
membros da Geração Mimeógrafo. Julgo, neste momento, ser possível afirmar que um
dos traços distintivos da produção lírica da poeta em destaque é, precisamente, o cuidado
e a atenção que a autora de Cenas de Abril dedicou às palavras das quais se compõe a sua
poesia, essa “arte da Linguagem”57, tal como a definiu Paul Valéry.
Ana Cristina Cesar optou por negar a tendência do culto do imediato, do fugaz, da
cedência ao impulso da comunicação linear e da fruição instintiva do enunciado poético,
preferindo deter-se no contínuo aperfeiçoamento dos seus versos, reescrevendo uns e
invalidando outros58, como revelou numa carta enviada a Cecília Londres, onde pode ler-
se: “Ai como sou minuciosa (...). [E]stou agora pondo em questão o meu texto.
Metalinguagem é dor de corno; é doença”59. A meu ver, foi essa mesma minúcia que
conduziu a poeta a uma disposição peculiar, que exponenciou o seu modo dicotómico de
encarar a poesia, que é referida ora como apaziguadora do seu estado de espírito, ora

55
BARTHES, Roland, Lição (trad. Ana Mafalda Leite), Lisboa: Edições 70, 1988, p. 18
56
FILHO, Armando Freitas, “Jogo de Cartas”, in CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op.
cit., p. 9
57
VALÉRY, Paul, Discurso sobre a Estética, Poesia e Pensamento Abstrato (trad. Pedro Schachtt Pereira),
Lisboa: Vega, 1995, p. 61
58
Cf. CESAR, Ana Cristina, Inconfissões: Fotobiografia de Ana Cristina Cesar (org. Eucanaã Ferraz), op.
cit., pp. 111, 116-117
59
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 117
25
como amplificadora da sua profunda melancolia, conforme se irá tentar provar adiante.
Ainda nesta corrente de pensamento, mas desenvolvendo-a um pouco, penso que,
se se percorrerem algumas reflexões levadas a cabo por teóricos que se ocuparam do
estudo da fala e da linguagem (pense-se em Julia Kristeva60, Gérard Genette61, Leonard
Bloomfield62 ou até mesmo Louis Hjelmslev63), constatar-se-á, rapidamente, que as
perspetivas desses mesmos autores, apesar de possuírem traços distintivos, são unânimes
em enfatizar que a funcionalidade inata da expressão verbal tem que ver com a génese
biológica humana e com a necessidade de o Homem comunicar e interagir em sociedade,
uma vez que “a linguagem é matéria do pensamento, é também o próprio elemento da
comunicação social. Não há sociedade sem linguagem, tal como não há sociedade sem
comunicação”64. Adicione-se a esta argumentação teórica a mundividência de Giorgio
Agamben, na sua obra Ideia da Prosa, onde, na secção “Ideia da Linguagem I”, pode ler-
se o seguinte: a “natureza e os animais são desde logo prisioneiros de uma língua, falam
e respondem a signos, mesmo quando se calam; só o homem consegue interromper, na
palavra, a língua infinita da natureza”65.
Abro um pequeno parêntesis para assinalar que, no contexto do presente estudo,
pretendo outorgar maior relevo à componente comunicativa da poesia, como tentarei
demonstrar no próximo subcapítulo.
Findo o aparte, retome-se a exposição e veja-se, a este propósito, a conceção de
Louis Hjelmslev:

Le langage est inséparable de l’homme et le suit dans tous ses agissements. Le


langage est l’instrument grâce auquel l’homme façonne sa pensée, ses sentiments,
ses émotions, ses efforts, sa volonté et ses actes, l’instrument grâce auquel il
influence et est influencé, l’ultime et le plus profond fondement de la société

60
Cf. KRISTEVA, Julia, História da Linguagem (trad. Maria Margarida Barahona), Lisboa: Edições 70,
1983
61
Cf. GENETTE, Gérard, Figures II, Paris: Seuil, 1969
62
Cf. BLOOMFIELD, Leonard, Language, New York: Henry Holt and Company, 1954
63
Cf. HJELMSLEV, Louis, Prolégomènes à une Théorie du Langage (trad. Una Canger), Paris: Minuit,
1967
64
KRISTEVA, Julia, op. cit., p. 18
65
AGAMBEN, Giorgio, “Ideia da Linguagem I”, in Ideia da Prosa (trad. João Barrento), Lisboa: Cotovia,
1999, p. 112
26
66
humaine .

Deste ponto de vista, migro para uma outra questão que com ele se relaciona e que
se prende com o isolamento conscientemente desejado, pela autora de Correspondência
Completa, dentro da sua geração poética, que, em si mesma, nada tem de homogénea,
como ressalvei antes: terá feito Ana Cristina Cesar uso de uma linguagem estética
específica (isto é, puramente técnica), ou a linguagem quotidiana, através do seu génio
lírico e de mecanismos peculiares, terá sido capaz de metamorfosear-se em linguagem
poética? No que concerne a esta problemática teórica, a minha conceção vai ao encontro
do que referiram Henri Meschonnic e Karlheinz Stierle: o crítico francês enfatizou que a
distinção entre a linguagem lírica e a quotidiana não é simples de definir67, enquanto o
autor alemão defendeu que o “poético não tem nenhuma linguagem própria. A
eventualidade do poético permanece associada à eventualidade da linguagem atualizada
no discurso”68, ou seja, o poeta, contrariamente ao que afirmara Platão, em Íon, deve deter
nas suas próprias mãos a capacidade criadora de transformar a linguagem vulgar em
linguagem estética, através da elaboração de determinados enunciados onde domine não
uma qualquer função da linguagem apontada por Jakobson, mas sim a função poética.
Essa mesma função, que, segundo Gerárd Genette, “est précisément (...) cet effort pour
motiver le langage”69, por colocar o signo linguístico em evidência.
Neste seguimento, menciono que Stierle, que dedicou parte da sua reflexão à
temática que acabo de realçar, assegurou que Paul Valéry foi o primeiro autor a
equacionar a noção de “linguagem poética”, na aceção de uma linguagem de pendor
técnico (portanto, algo específica) e, de certo modo, algo limitativa, também. Destarte, o
autor francês, citado pelo teórico alemão, considerou a linguagem poética como um
sistema depurado e graças ao qual o “criador de coisas belas”70 poderia produzir um
objeto estético que visasse não a comunicação quotidiana, utilitária e instintiva, mas sim

66
HJELMSLEV, Louis, “Recherche Linguistique et Théorie du Langage”, in op. cit., p. 9
67
Cf. MESCHONNIC, Henri, “La Critique du Rythme et le Discours sur la Poésie”, in Critique du Rythme:
Antropologie Historique du Langage, Lagrasse: Verdier, 1982, pp. 37-38
68
STIERLE, Karlheinz, Existe uma Linguagem Poética? seguido de Obra e Intertextualidade (trad. Rui
Mesquita), Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2008, p. 37
69
Cf. GENETTE, Gérard, “Langage Poétique, Poétique du Langage”, in op. cit., p. 145
70
WILDE, Oscar, “Prefácio”, in O Retrato de Dorian Gray, Lisboa: Relógio D’Água, 1998, p. 15
27
uma tipologia peculiar de comunicação: a comunicação literária, que, muito embora na
sua génese se reja pelo mesmo modelo esquemático da comunicação verbal, coloca a
tónica discursiva na função poética, até porque, segundo o autor cuja cosmovisão comecei
por sublinhar, o “sistema da linguagem [estética] é um sistema de possibilidades que
supera as necessidades comunicativas [características] da vida social”71. Nesta
confluência, assevero que a própria Ana Cristina Cesar afiançou, numa carta enviada a
Ana Candida Perez, que há “uma distância notável entre o uso da linguagem [poética] e
as intenções práticas”72.
Adiciono a esta mundividência o facto de que, contrariamente ao signo linguístico
teorizado por Ferdinand de Saussure, no seu Curso de Linguística Geral73, que acaba por
esgotar-se em si mesmo com o processo dialógico (pensado na aceção bakhtiniana do
conceito) das ações comunicativas quotidianas, o signo artístico projetado por Jan
Mukařovský74 é, para além de autorreferencial e autónomo, ilimitado na sua significação,
sendo atualizado por cada recetor individual, tal como salientou Karlheinz Stierle, citando
Paul Valéry75. Deste modo, pode depreender-se, que a “composição interior do signo
linguístico é, pois, completamente diferente na linguagem poética e na linguagem
falada”76, uma vez que se crê que a literatura – a “arte que apenas recorre ao simples
verbo”77 (para recorrer à terminologia aristotélica) – coloca a linguagem em evidência,
em vez de simplesmente a utilizar como veículo mediador da transmissão de uma dada
mensagem.
A este propósito, volto ao conceito de “linguagem-tatuagem”, que dá forma e corpo
à poesia de Ana Cristina Cesar, para apontar alguns aspetos de pendor quer discursivo,
quer estilístico, que me parecem pertinentes para o prosseguimento fundamentado deste

71
STIERLE, Karlheinz, op. cit., p. 29
72
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 220
73
Cf. SAUSSURE, Ferdinand de, Curso de Linguística Geral (trad. José Adragão), Lisboa: Dom Quixote,
1978, pp. 121-140
74
Cf. MUKAŘOVSKÝ, Jan, “A Arte como Facto Semiológico”, in Escritos sobre Estética e Semiótica da
Arte (trad. Manuel Ruas), Lisboa: Estampa, 1997, pp. 11-17
75
Cf. STIERLE, Karlheinz, op. cit., p. 22
76
MUKAŘOVSKÝ, Jan, “A Denominação Poética e a Função Estética da Língua”, in “Dois Estudos sobre
a Denominação Poética”, in op. cit., p. 179
77
ARISTÓTELES, Poética (trad. Eudoro de Sousa), Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2010, p.
104
28
estudo.
Atente-se no poema abaixo transcrito:

olho muito tempo o corpo de um poema


até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
78
nas gengivas

Este breve texto lírico, inserido originalmente em Cenas de Abril, possui um caráter
metatextual; isto é, explicita uma reflexão sobre traços poéticos formais e denota,
também, uma (pre)ocupação constante com a linguagem, ação esta que penso poder
aproximar da premissa horaciana que dá enfoque à importância de o artista criar os seus
objetos estéticos tendo por base o princípio do limae labor e a consequente elaboração de
poemas “aperfeiçoados com muito tempo”79. Assim, pode constatar-se, conforme
ressaltou Heloisa Buarque de Hollanda, no seu depoimento para o documentário Bruta
Aventura em Versos, que a poesia da autora carioca não é, de todo, concebida de modo
ligeiro e despretensioso80. Enfatizo que Ana Cristina Cesar, quando inquirida acerca dessa
mesma hipotética fluidez do seu trabalho poético, no testemunho por si dado no curso
“Literatura de Mulheres Brasil”, declarou que a sua poesia “[n]ão é nem racional nem
irracional. É muito construída, muito penosa (...), É rabiscar [rasurar, reescrever], tem
tudo”81.
Nesta confluência, é possível, de certo modo, apontar este poema como exemplo de
uma arte poética, isto é, como um texto que revela subtilmente uma presumível técnica
compositiva pela qual pode ter optado a poeta – “olho muito tempo o corpo de um poema
/ até perder de vista o que não seja corpo”, afirma-se nos dois versos iniciais. Esta é uma
leitura feita, não obstante, com algumas reservas, pois se por um lado não se deve omitir

78
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 19
79
HORÁCIO, Arte Poética (trad. R. M. Rosado Fernandes), Lisboa: Inquérito, 1984, p. 97
80
Bruta Aventura em Versos [Registo vídeo]. Direção de Letícia Simões. Brasil: Artezanato Eletrônico,
Matizar, 2011. (ca. 76 min), min. 16:02-16:41.
81
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no Brasil’”,
in Crítica e Tradução, op. cit., p. 271
29
que “[a] poesia é uma mentira, mora”82, por outro tem-se também o postulado da
subjetividade do eu (que se relaciona com o dado anterior, claro está), da voz que se faz
notar através do sujeito lírico. Neste contexto considere-se, como súmula argumentativa,
parte da teorização de Tiago Sousa Garcia:

[a] dificuldade acrescida que encontramos na literatura [neste caso concreto, na


poesia] reside no facto de o self83se manifestar apenas através da palavra; todo o
conhecimento que o leitor adquire do sujeito ficcional só pode ser obtido através
da perigosa enunciação. É uma perceção duas vezes subjetiva – porque se
transfere do sujeito ficcional para o sujeito leitor – e, como tal, perigosamente
84
incerta.

Finda esta ressalva teórica, regresse-se aos dois primeiros versos. Nesse segmento
poético, o eu lírico confidencia não se contentar com uma observação veloz da matéria
linguística – “olho muito tempo”, garante –, sem qualquer intuito para lá da contemplação
acrítica, visto que opta por levar a cabo um corte epistemológico distintivo e deter o seu
olhar no corpo físico (isto é, textual), do poema, que é, por sua vez e tendo por base um
nível de análise mais minucioso, construído através de palavras, de um conjunto de
significantes vincado numa página, visto que, como advertiu Julia Kristeva, a linguagem
não é somente uma sucessão de sons articulados, mas ainda uma rede de caracteres
escritos85. Assinale-se que a alusão à preferência pelo foco da atenção no corpo poemático
pode remeter, também, para uma estética da erosão da forma e da redução ao mínimo
dizível: aos significantes sem os quais o poema não poderia existir. Não deixo de
mencionar que, a este propósito, Marcos Siscar, aludindo a formulações de Paul Valéry e
Francis Ponge, resgatou para o seu comentário a este texto poético o conceito de
“depuração”. Neste quadro específico, essa noção remeteria precisamente para um
processo de libertação do poema de tudo o que não constituísse o seu corpo textual, da

82
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 148
83
Palavra que, para o autor, ao ser traduzida, perde parte da sua dimensão semântica, mas que, aqui, entendo
como equivalente a “sujeito”. Cf. GARCIA, Tiago Sousa, Para uma Poética da Nudez: Construção e
Exposição do Self em Sylvia Plath e Ana Cristina Cesar, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, 2010 (inédito), pp. 4-7
84
Idem, p. 23
85
Cf. KRISTEVA, Julia, op. cit., p. 17
30
vertente convencional da linguagem que tende a associar automaticamente significantes
a significados concretos86, o que vai também ao encontro do que afirmou Roland Barthes
no que concerne a esta questão: a poesia “pode perfeitamente renunciar aos signos
[supérfluos], pois traz em si a sua natureza, e não tem de assinalar exteriormente a sua
identidade”87, mas sim interiormente, através do domínio da função poética sobre as
funções práticas da linguagem.
Avançando um pouco nesta exposição, creio ser possível estabelecer uma relação
entre o poema em debate e um outro, também ele com um claro pendor metapoético e
reflexivo, que aponta para a problemática da preocupação com o labor poético. Leia-se
um trecho:

Eu penso
a face fraca do poema/ a metade na página
partida
Mas calo a face dura88

Assume-se notório, desde o início deste excerto, o contraste entre o modo como o
sujeito lírico se comporta perante as duas faces por si enumeradas, que compõem, então,
a totalidade do corpo do poema: por um lado, a “face fraca”, por outro a “face dura”.
Julgo que o recetor deste enunciado estético deverá pensar essas duas componentes não
em sentido restrito, mas no figurado. Desta forma e tendo em conta a linha de leitura
sugerida nas notas a este texto poético presentes no volume da coleção “Novas Seletas”
dedicado à poesia de Ana Cristina Cesar89, a “face fraca” corresponderia, por hipótese, à
estrutura física do poema fixado numa página (e, por analogia, ao corpo que se encontra
no poema transcrito anteriormente) que os significantes vão facultando, enquanto a “face
dura” aludiria à expressão lírica, que neste âmbito particular está, num nível analítico
superficial, silenciada – “mas calo”, admite o sujeito –, muito embora se manifeste na
reflexão patente no texto lírico.

86
SISCAR, Marcos, op. cit., p. 32
87
BARTHES, Roland, O Grau Zero da Escrita (trad. Maria Margarida Barahona), op. cit., p. 40
88
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 199
89
Cf. CESAR, Ana Cristina, Ana Cristina Cesar (org. Armando Freitas Filho), Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2004, p. 25
31
Após esta breve incursão para sustentar o papel de relevo que a autora de Cenas de
Abril atribui à componente material dos seus enunciados estéticos, volto a “olho muito
tempo o corpo de um poema” para ressalvar que, a meu ver, este é passível de ser
bipartido. A primeira secção que apresento é constituída pelos dois primeiros versos, já a
segunda circunscreve-se aos restantes. Para esta delimitação, tive em conta a presença,
tanto direta quanto indireta, de dois corpos distintos, no enunciado do poema, a saber: o
corpo do texto e o corpo do próprio sujeito (“e sentir separado dentre os dentes / um filete
de sangue / nas gengivas”, pode ler-se nos três versos finais). A este propósito, não deixo
de sublinhar, aludindo à posição interpretativa de Marcos Siscar, que o gesto
contemplativo patente no primeiro verso assume-se tão intenso que impele a um
deslocamento algo abrupto, concretizado no corte temático que se encontra na passagem
da primeira para a segunda secção que demarquei do campo da visão para o domínio da
sensação90.
Importa, neste momento, suspender a análise para acrescentar a esta perspetiva as
palavras de Deleuze e Guattari que, no meu ponto de vista, não só corroboram a posição
do crítico e poeta brasileiro, como ainda a complementam e recolocam a tónica na
linguagem: “[q]ualquer linguagem (...) implica sempre uma desterritorialização da boca,
da língua, dos dentes. A boca, a língua e os dentes desterritorializam-se ao consagrar-se
à articulação de sons”91. Assim, julgo ser possível assegurar que estes dois corpos acabam
por se fundir e conjugar, no seio do próprio poema, senão observe-se que é através do
sentido da visão que a matéria poética observada pelo sujeito é apreendida, para
ulteriormente se somatizar na sensação de sentir entre os dentes jorrar o “sangue / nas
gengivas”. Doravante, o corpo do poema não é apenas textual, mas também biológico,
físico, uma vez que é assimilado pelo sujeito do qual passa a ser parte integrante. Nesta
instância, não se debate somente “o corpo da linguagem nem a linguagem do corpo, mas
o corpo na linguagem como lugar entre a voz e o olhar”92, como salientou Roberto Zular
no seu ensaio “Sereia de Papel (Algumas Anotações sobre a Escrita e a Voz em Ana

90
Cf. SISCAR, Marcos, op. cit., p. 32
91
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix, “O que é uma Literatura Menor?”, in op. cit., pp. 44-45
92
ZULAR, Roberto, “Sereia de Papel (Algumas Anotações sobre a Escrita e a Voz em Ana Cristina Cesar)”,
in AA. VV., Sereia de Papel: Visões de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana
Bosi), Rio de Janeiro: EdUERJ, 2015, p. 101
32
Cristina Cesar)”. Neste contexto, recupero uma última vez o conceito de “linguagem-
tatuagem”, de Moriconi, e vinculo-o ao postulado barthesiano de que “a linguagem tem
prazer em tocar-se a si própria”93. Com esta aproximação de linhas de pensamento,
pretendo enfatizar que, após a leitura do poema (tomado, metonimicamente, por restrições
espácio-temporais, como representativo da restante produção lírica da poeta), torna-se
clara a existência de um desejo iminente de metamorfose do próprio corpo em fonte
estética, em linguagem.
Procurei, nesta secção, evidenciar a constante preocupação de Ana Cristina Cesar
com o ato de escrever, que “ocupa metade da [sua] prosa e metade da [sua] vida”94, bem
como a sua consequente incessável reflexão sobre a linguagem, que não se verifica só nos
seus textos poéticos, como também nas epístolas pessoais e nos ensaios críticos. A meu
ver, estes são dois dos traços distintivos que evidenciam que a poeta, muito embora tenha
pertencido ao círculo da Geração Marginal da década de 70, possui uma estética singular.
Poderei dizer-vos que ela ousa?95

1.2. Poesia e comunicação

A estreita ligação existente entre a poesia e o ato comunicativo verifica-se desde os


primórdios da história literária pois, como notou Hegel, esta forma de arte verbal
“começou no dia em que o homem sentiu a necessidade de se exprimir”96 e o trabalho
estético da autora de A Teus Pés está intimamente conectado a um desejo de comunicação
que ora se revela nos benefícios da possível catarse da pesarosa experiência quotidiana,
que abala o sujeito poético, ora se assume como adjuvante do taedium vitae, da “maladie
de l’âme”97 (aludindo à conceção de Jackie Pigeaud), que afeta a sua anima inquieta face
ao mundo exterior.
Se se atentar em alguns textos teóricos, constatar-se-á que a questão da melancolia
é transversal a várias formas de arte e a vários campos do saber e que é, lato sensu, tão

93
BARTHES, Roland, Fragmentos de um Discurso Amoroso (trad. Isabel Pascoal), op. cit., p. 96
94
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 350
95
Paráfrase de um excerto do poema “Atrás dos Olhos das Meninas Sérias”. Cf. Idem, p. 93
96
HEGEL, G. W. Friedrich, op. cit., p. 537
97
PIGEAUD, Jackie, La Maladie de l’Âme, Paris: Les Belles Lettres, 1989
33
antiga quanto o próprio ser humano. Não deixe de considerar-se que a secção XXX, 198
dos Problemas (atribuídos a Aristóteles) expõe uma preocupação não só com o fenómeno
das suas múltiplas expressões, bem como com as suas espécies e com os seus efeitos, nos
diversos tipos de homens: “Pour quelle raison tous ceux qui ont été des hommes
d’exception, en ce qui regarde la philosophie, la science de l’État, la poésie ou les arts
sont-ils manifestement mélancoliques (…)?”99, interrogou o autor.
Não pretendo, aqui, levar a cabo uma reconstituição teórica exaustiva deste conceito
semanticamente complexo pois, para além de uma tradição secular não poder ser
abrangida nos limites espácio-temporais de um subcapítulo de uma dissertação, esse
trabalho de descrição diacrónica conta já com obras incontornáveis a ela dedicadas, como
Saturne et la Mélancolie100, a título de exemplo.
Principio por referir que, ao folhear um qualquer dicionário, se encontra uma
explicação concisa da noção de “melancolia”, que conduz a sinónimos como “tristeza
aguda” ou “desgosto” e a uma breve explicação, que enfatiza a ligação do conceito à
medicina. Porém, serão estas sucintas linhas suficientemente produtivas, para se entender
um pouco melhor a complexidade do termo? Considerando as perspetivas de alguns
autores, direi que não.
Recorrendo à etimologia, atente-se no facto de o conceito apontar para um humor,
que em falta, no organismo, mas sobretudo em excesso, era prejudicial para o indivíduo
(como cria Hipócrates e como enfatizou Aristóteles, estabelecendo uma analogia entre os
efeitos do excesso de vinho, no corpo do Homem, e as consequências da presença de um
elevado teor de bílis negra101).
Focando-se nas várias hipóteses de interpretação do conceito, Fernando Pinto do
Amaral expôs uma dualidade de possibilidades interpretativas da noção de melancolia.
Por um lado, essa noção designa uma enfermidade bem definida, que remete para o
desequilíbrio dos quatros humores presentes no corpo humano, não obstante, por outro,
reporta para uma noção difusa, que tem que ver com um estado de espírito exteriorizado

98
Cf. ARISTÓTELES, L’Homme de Génie et la Mélancolie (trad. Jackie Pigeaud), Paris: Rivages, 1988
99
Idem, p. 81
100
Cf. KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Fritz, Saturne et la Mélancolie, Paris:
Gallimard, 1989
101
Cf. ARISTÓTELES, L’Homme de Génie et la Mélancolie (trad. Jackie Pigeaud), op. cit., p. 89
34
através de uma tristeza aguda, sem aparente causa. Esta segunda aceção do conceito pode
conduzir aos seguintes versos da lírica camoniana, que denunciam essa perspetiva de dor
sem motivo justificável; esse desconforto pode ser pensado como um “não sei quê, que
nasce não sei onde, / vem não sei como, e dói não sei porquê”102. Neste ponto, tomem-
se as palavras de Ana Cristina Cesar e veja-se que a poeta, descendente da linhagem
saturnina, apresentou dificuldades em concretizar esse pesaroso estado de espírito que a
abalava: “É como a vela que se apaga, / E a fumaça sobe e se atenua.”, “Para quê tanta
dor?”, pode ler-se em “Esvoaça… Esvoaça…”103.
O poema inicia com uma comparação que estabelece uma relação com o
incomunicável: é como, é semelhante a, parece-se com; não obstante estas tentativas de
aproximação ao real, mantém-se a impossibilidade de o sujeito poético se exprimir, de
forma assertiva, o que vai, a meu ver, ao encontro do seguinte postulado de Jan
Mukařovský: “a linguagem poética tem considerável semelhança exterior com a
linguagem emocional”.104
Filha de Saturno e influenciada pelas leis deste astro que lhe infligiu essa “força da
inteligência e da contemplação”105, Ana Cristina Cesar, num átimo, afirmava que estava
“com umas ganas horríveis de escrever”106 e, no instante subsequente, revelava a
necessidade de voltar aos seus “cadernos terapêuticos”, para purificar-se do pesar lírico,
pois, conforme enfatizou Ruben Darío, “La poesia / es la camisa férrea de mil puntas
cruentas / que llevo sobre el alma. Las espinas sangrientas / dejan caer las gotas de mi
melancolía”107. Para complementar esta cosmovisão, note-se que a poeta ressalvou,
também, numa carta endereçada a Cecilia Londres, que “a literatura dói”108. Volto um
pouco atrás para salientar que a autora de Luvas de Pelica refletiu sobre esses “cadernos

102
CAMÕES, Luís Vaz de, Obras Completas (pref. Hernâni Cidade), Lisboa: Sá da Costa, 1971, vol. I, p.
205
103
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 139
104
MUKAŘOVSKÝ, Jan, “A Denominação Poética e a Função Estética da Língua”, in “Dois Estudos sobre
a Denominação Poética”, in op. cit., p. 181
105
BENJAMIN, Walter, A Origem do Drama Trágico Alemão (trad. João Barrento), Lisboa: Assírio &
Alvim, 2004, p.155
106
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 62
107
DARÍO, Ruben, Antología Poética (sel. Auturo Torres Rioseco), Berkeley and Los Angeles: University
of California Press, 1949, p. 143
108
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 164
35
terapêuticos”, afirmando que teriam um caráter distinto do da poesia e propiciariam o
aparecimento da sua entidade empírica, no texto:

Preciso começar de novo o caderno terapêutico. (…) Um caderno terapêutico é


outra história. (…) É um papel que desistiu de dar recados. (...) Nele eu sou eu e
você é você mesmo. (…) Digo tudo com ais à vontade109.

A poeta oscila, como referi, entre estes dois polos de significação do ato comunicativo.
Retomo a breve contextualização da noção de “melancolia”. Se por um lado, nos
seres vulgares a ação da bílis negra em excesso podia constituir somente uma enfermidade
físico-psicológica (e que, de acordo com Robert Burton, por vezes, era difícil de distinguir
de outras doenças110), nos homens de excelência, a manifestação desse humor conferia-
lhes uma aptidão exaltada para a realização de diversas ações capazes de distinguir um
espírito criador grandiloquente dos comuns mortais111.
Com a progressão dos conhecimentos médico-científicos, os desequilíbrios que se
criam possuir uma qualquer relação com o humor melancólico, foram enquadrados no
âmbito da Psicologia Clínica e da Psicanálise (com autores como Freud112) e, mais uma
vez, a arduidade de definir concretamente o conceito levou a que ele fosse substituído, de
forma recorrente, por outras noções como “depressão” ou “neurose depressiva”.113
É numa esfera que faz comungar a melancolia com a pulsão comunicativa do signo
estético que tenciono situar a produção poética de Ana Cristina Cesar. A este propósito,
leia-se o poema “Fisionomia”:

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim

109
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 123
110
Cf. BURTON, Robert, Anatomia da Melancolia (Fragmentos) (trad. Salvato Telles de Menezes),
Lisboa: Quetzal, 2014, p. 16
111
Cf. ARISTÓTELES, L’Homme de Génie et la Mélancolie (trad. Jackie Pigeaud), op. cit., p. 95
112
Cf. FREUD, Sigmund, “Mourning and Melancholia”, in Collected Papers (trad. Joan Riviere), New
York: Basic Books, 1959, vol. IV, pp. 152-170.
113
Cf. AMARAL, Fernando Pinto do, “Na Órbita de Saturno: Um Ponto de Vista Sobre a Melancolia e as
suas Relações com Alguma Literatura”, in Na Órbita de Saturno, Lisboa: Hiena, 1992, p. 124
36
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
114
outra a dor que dói

A premissa inicial “Não é mentira” conduz, desde logo, não a um compromisso


com o real, mas sim à esfera da verosímil confissão da poeta; porém, as expectativas do
leitor que pretenda encontrar a autora empírica no poema saem defraudadas, devido à sua
incapacidade de comunicar verdadeiramente o sofrimento de que é vítima. Assim, o
poema alicerça-se sobre a incapacidade de elaborar uma enunciação precisa da dor que
contribui para a diminuição da força anímica do eu lírico e, algo paradoxalmente, sobre a
necessidade de o fazer. O próprio texto poético parece reescrever-se, de modo veloz, a
cada imagem mental que fornece, uma vez que, como frisou Viviana Bosi, a “urgência
[da reescrita voraz] transmite a impressão de que o poema é testemunho do ‘fogo do
final’”115.
Se “é outra / a dor que dói”, muito embora o sujeito poético não consiga exprimi-
la, parece estar constantemente a desafiar-se a fazê-lo e a corrigir o que vai revelando,
acrescentando novas metáforas: esse pesar “é um projeto / de passeio / em círculo”, mas
é também “um malogro / do objeto / em foco” e ainda “a intensidade / de luz / de tarde /
no jardim”. Desta forma, Ana Cristina Cesar demonstra que parece não haver unicidade
na dor do ego verbal, que se expressa emotivamente e tenta dar a ver (graças à
componente imagética do poema) e dar a ler o seu sofrimento. Este sujeito parece estar

114
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 230
115
BOSI, Viviana, “À Mercê do Impossível”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 427
37
“muito compenetrad[o] no seu pânico”116 e a escrita revela-se como o mais direto meio
para comunicar a angústia. A falta de coerência e coesão na comunicação do sofrimento,
essa dispersão do pesar em múltiplas imagens justapostas, porém desconexas entre si,
constituem, seguindo a teriozação de Gilles Deluze e Félix Guattari, algumas das “linhas
de fuga da linguagem”117. Neste âmbito, também o constante pensamento votado a essa
dolência impele o sujeito poético à sua constatação final que convoca o início do poema,
como que fechando o ciclo que começou a ser desenhado nos primeiros versos: “é outra
/ outra a dor que dói”. Desta forma, pode verificar-se que a linguagem do texto poético
não se esvazia de significação com uma leitura apenas; pelo contrário, “o poema não
morre de ter vivido: ele é feito expressamente para renascer das suas cinzas e para
infinitamente se tornar naquilo que sempre terá sido”.118
Talvez se possa relacionar a dor poética indizível e despoletada pela melancolia
criadora com dois outros pesares: um primeiro, que se materializaria no pathos decorrente
do pensamento e da reprodução mental da angústia (que, aqui, opera como “tatuagem”
do espírito do eu); e um segundo, que proviria da primeira razão possível, segundo George
Steiner119, para a “tristeza do pensamento”. De acordo com este autor, se se suspender o
mecanismo do pensamento e se se tentar escutá-lo, encontrar-se-ão, no seu cerne, dúvidas
e frustrações que, de seguida, aflorarão no consciente e que, nesta confluência,
contribuirão para exponenciar o tom melancólico. Referindo-se à impossibilidade de
decifrar, na totalidade, uma mente que não a nossa, o autor de As Lições dos Mestres
enfatizou que “a máscara é usada debaixo da pele”120, o que, no âmbito da obra poética
em debate, se prende com o fingimento e com a impressão de confessionalismo,
possibilitados pelo verosímil poético.
Não abandono “Fisionomia” sem sublinhar que penso que, neste poema, a
tonalidade melancólica vai adensando a sua expressão com a progressiva retificação do
que se vai enunciando como possível definição aproximada da dor que, a cada passo,

116
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 56
117
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix, “O que é uma Literatura Menor?”, in op. cit., p. 55
118
VALÉRY, Paul, Discurso sobre a Estética, Poesia e Pensamento Abstrato (trad. Pedro Schachtt
Pereira), op. cit., p. 79
119
Cf. STEINER, George, Dez Razões (Possíveis) para a Tristeza do Pensamento (trad. Ana Matoso),
Lisboa: Relógio D’Água, 2015, pp. 15-18
120
Idem, p. 25
38
parece sempre ser outra e outra, ainda. Penso ser essa intransmissibilidade pungente do
sofrimento abstrato a fonte principal para o potenciar da tensão dramática do eu, até
porque, como salientou George Steiner, “[p]ensar [a dor] é ficar aquém, é chegar a algum
lado ‘irrelevante’”121.
Destaco um outro poema, “Carta de Paris”, onde estão patentes mecanismos de
“vampirismo”, pois a poeta não imitou, mas furtou122 fragmentos do poema “Le
Cygne”123, de Charles Baudelaire, para os incorporar, por vezes telle quel, na sua extensa
composição, de tal forma que, como advertiu Maria Lucia de Barros Camargo, o
palimpsesto – essa “experiência sensual com o signo estrangeiro”124 – está presente, direta
ou indiretamente, na totalidade do corpo textual125. Destarte, encontram-se nesta “Carta”
(que segue não de um qualquer outro ponto do globo, mas sim de Paris, cidade-natal de
Baudelaire) claras marcas de processos de intertextualidade com fragmentos líricos do
autor francês.
Começo a reflexão sobre o poema partindo do próprio título – “Carta de Paris” –
título que acredito, tendo por base a teorização de Maria Lucia de Barros Camargo, impele
o leitor-recetor à perceção de que a poeta jogou com algumas implicações primeiras dos
géneros discursivos, como, no caso do género epistolar, o são a o registo de cariz intimista
(no contexto estético, idealizado) e a indicação do destinatário, do emissor e da datação
da missiva, dados que não se encontram nem no corpo textual nem fora dele.
Por outro lado, o título deste poema assume-se aqui enquanto tentativa desvelada
de verbalização do sofrimento do sujeito poético. Tendo ou não um recetor (destinatário)
definido, a carta oferece-se potencialmente a ser lida por uma outra entidade que não
apenas o seu remetente, incitando o diálogo e criando um espaço propício para um
eventual debate e para uma hipotética troca de impressões, posterior ao envio da missiva
(neste caso específico, para a partilha indireta, mas verbal, da dolência). Porém, à

121
Idem, p. 32
122
Cf. ELIOT, T. S., “Philip Massinger” in The Sacred Wood: Essays on Poetry and Criticism, New York:
Alfred A. Knopf, 1921, p. 114
123
Cf. BAUDELAIRE, Charles, Les Fleurs du Mal, Paris: Flammarion, 1991, pp. 130-132
124
SANTIAGO, Silviano, “O Entre-Lugar do Discurso Latino-Americano”, in Uma Literatura nos
Trópicos: Ensaios sobre Dependência Cultural, op. cit., p. 21
125
Cf. CAMARGO, Maria Lucia de Barros, Atrás dos Olhos Pardos. Uma Leitura da Poesia de Ana
Cristina Cesar, op. cit., p. 153
39
semelhança do que se constatou em “Fisionomia”, as diferentes formas de tentar expressar
verbalmente a dor experimentada pelo sujeito lírico das composições da autora de Cenas
de Abril contribuem para o adensar da tonalidade pesarosa.
Ana Cristina Cesar, neste poema, manteve a bipartição que se encontra em “Le
Cygne”, de Baudelaire, porém distanciou-se da matriz compositiva do poeta francês,
desde logo por abandonar um verso claramente demarcado. Leia-se um trecho da primeira
parte desse esboço de missiva:

Eu penso em você, minha filha. Aqui lágrimas fracas, dores mínimas (...), águas
mentirosas fecundando campos de melancolia,

(...) A velha Paris já terminou. As cidades mudam mas meu coração está perdido,
e é apenas em delírio que vejo

campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por


bandeiras, muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas; apenas em
126
delírio vejo

Atente-se num excerto do poema francês, que ecoa no excerto transcrito acima, e
observe-se como se tornam evidentes as semelhanças temáticas e linguísticas entre
ambos:

Andromaque, je pense à vous! Ce petit fleuve,


Pauvre et triste miroir où jadis resplendit
L'immense majesté de vos douleurs de veuve,
Ce Simoïs menteur qui par vos pleurs grandit,

A fécondé soudain ma mémoire fertile,


(…)

Je ne vois qu'en esprit tout ce camp de baraques,


Ces tas de chapiteaux ébauchés et de fûts,
Les herbes, les gros blocs verdis par l'eau des flaques,

126
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 194
40
127
Et, brillant aux carreaux, le bric-à-brac confus.

Constata-se, então, que a autora de Luvas de Pelica se afastou da matriz


compositiva baudelairiana, não apenas na questão da utilização do verso, como na não
convocação de nenhuma entidade que pudesse ser associada, à partida, a figuras
reconhecíveis para o seu texto poético (apenas se refere a “minha filha” e a “Charles”,
signos esvaziados para o leitor) e forjando imagens não tanto coincidentes, quanto
diversas das que Baudelaire expôs.
No início do texto da poeta, o discurso revela uma mescla entre narratividade,
descritivismo e lirismo. O sujeito poético começa por enumerar as formas sob as quais a
sua dor se evidencia: “lágrimas fracas, dores mínimas (…), águas mentirosas fecundando
campos de melancolia”, num ato expositivo que potencialmente aponta para o atingir da
catarse, através de um eventual sucesso da expressão do sofrimento, da angústia. De novo,
as primeiras imagens que visam a comunicação da dor vão sendo acompanhadas por
outras, o que indica que a “cada instante, atos do pensamento estão sujeitos a
intrusões”128. Nesta confluência, proponho que estas mesmas “intrusões” constituem
esforços para uma progressiva aproximação a uma forma o mais exata possível de
explicitação verbal da dolência e dos seus efeitos nocivos no sujeito.
Mencionando, ainda, o excerto supratranscrito, verifica-se que o recetor desse
enunciado toma contacto com o facto de a purificação, através da comunicação, das
emoções poéticas não se verificar, de todo: “As cidades mudam, mas meu coração está
perdido”. Este trecho evidencia um contraste entre a celeridade do progresso do mundo e
a imobilidade do eu, que se restringe à flânerie – “le mélancolique sent qu’il retarde dans
sa réponse au monde. Souvent il éprouve une entrave qui l’immobilise, face au spectacle
extérieur qui s’accélère vertigineusement”129, explicitou Starobinski.
Outro dos aspetos que me parece relevante destacar é a questão de o sujeito poético
assumir que, somente em delírio, pode conceber determinadas imagens, tais como:
“campos de batalha, museus abandonados, barricadas, avenida ocupada por bandeiras,

127
BAUDELAIRE, Charles, Les Fleurs du Mal, op. cit., p. 130
128
STEINER, George, op. cit., p. 20
129
Cf. STAROBINSKI, Jean, “Les Figures Penchées: «Le Cygne»”, in La Mélancolie au Miroir: Trois
Lectures de Baudelaire, [S.l.]: Julliard, 1989, p. 64
41
muros com a palavra, palavras de ordem desgarradas”. Se, por um lado, esse delírio se
relaciona com uma possível analepse profícua para resgatar uma Paris outrora já
contemplada e mimetizada poeticamente por Baudelaire, por outro, parece-me que o
delírio não tem que ver unicamente com um retrocesso no tempo cronológico, como ainda
se pode prender, de modo mais linear, com um estado indicativo de um eventual instante
alucinatório, precedente da loucura.
Progredindo um pouco na argumentação, saliento que Marsilio Ficino salvaguardou
que a loucura não deve ser, forçosamente, encarada como algo negativo, que conduz os
espíritos a um abismo sem retorno – “hay dos tipos de enajenación: una causada por las
enfermedades humanas y otra causada por la divindad. A la primera se llama insania y a
la segunda locura divina”130 – e prosseguiu a sua argumentação acrescentando que “la
locura, que tiende a lo superior, es divina como su propia definición indica. Existen, por
tanto, cuatro tipos de locura divina: la primera, la locura poética”131. Na minha perspetiva,
é precisamente esta “loucura poética” que assomou ao espírito criativo de Ana Cristina
Cesar e que se evidencia através da aceitação da alienação pontual do eu lírico, até porque,
segundo a autora, “poesia é um tipo de loucura qualquer. É uma linguagem que te pira
um pouco, que meio te tira do eixo”132.
Fazendo um novo apelo à contemplação mediada pelo furor que rapta o indivíduo,
possibilitando o resgate de quadros mentais do passado para o seu consciente, o sujeito
poético mescla o seu pensamento pesaroso relativo ao progresso de Paris, com imagens
de

Anaïs de capa negra bebendo como Henry no café, Jean à la garçonne cruzando
com Jean Paul nos Elysées, Gene dançando à meia luz com Leslie fazendo de
francesa, e Charles que flana e desespera e volta para casa com frio da manhã e
pensa na Força de trabalho que desperta,

na fuga da gaiola, na sede no deserto, na dor que toma conta, lama dura, pó,

130
FICINO, Marsilio, “Epítome al Íon de Platón o ‘De la Locura Poética’ – Dedicado al Magnánimo
Lorenzo de Médicis”, in Sobre el Furor Divino y Otros Textos, Barcelona: Anthropos, 1993, p. 31
131
Idem, p. 35
132
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 267
42
133
poeira, calor inesperado na cidade, garganta ressecada .

Neste excerto, o recetor do texto lírico é reenviado para o pensamento melancólico


de Charles, através do exercício rememorativo do eu poético. Já não se estabelece
contacto com um único sujeito pesaroso, como ainda e indiretamente se é conduzido até
personagens resgatadas pela memória desse eu, também elas detentoras de um caráter
melancólico. Charles, que, neste âmbito, pode aproximar-se da figura concreta de
Baudelaire, não se revela como alguém dotado de um espírito inabalável, capaz de
sobreviver entre as ruínas da “velha Paris”: este flanêur abate-se sobre os seus
pensamentos e apenas desespera, almejando a evasão da “dor que toma conta” e a “fuga
da gaiola” (essa mesma onde se encontrava enclausurado o cisne do poeta francês). Desta
forma, contata-se uma coexistência de vários tipos e intensidades de sentimentos
melancólicos, nesta “Carta”: a do sujeito poético introspetivo e reflexivo e a das
personagens que ele próprio vai apresentando, indiretamente, que vão contribuindo para
uma sobreposição de dores que adensam a tensão dramática vivida pelo eu lírico, que
contribui para o aumento da sua dificuldade de expressão.
Permanecendo no pensamento de Charles, realço que esta figura remete, por sua
vez, para outros seres dolentes, enlutados, face a diversas situações: “exilados com sede
que num instante esquecem que esqueceram e escapam do mito estranho e fatal da terra
amada”134. Estes exilados, recordados por Charles, que é, por seu turno, lembrado pelo
sujeito poético, inauguram um novo nível na cadeia energética do pesar, que vai sendo
transmitido de pensamento em pensamento.
Leia-se um outro excerto:

Paris muda! mas minha melancolia não se move. (...) tudo vira alegoria: minha
paixão pesa como pedra.
Diante da catedral vazia a dor de sempre me alimenta. Penso no meu Charles,
com seus gestos loucos (…), sem trégua, e penso em você,

minha filha viúva para sempre, prostituta, travesti (…) e penso em você,

133
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 194
134
Idem, ibidem
43
amante sedutora, mãe de todos nós perdidos em Paris (…) e penso enfim (…)
em alguém que perdeu o jogo para sempre, e para sempre procura as tetas da Dor
que amamenta a nossa fome e embala a orfandade esquecida (…)

e penso em Paris que enfim me rende, na bandeira branca desfraldada, navegantes


135
esquecidos numa balsa, cativos, vencidos, afogados... e em outros mais ainda!

Penso ser notória uma maior condensação de pensamentos interpenetrados, nesta


segunda parte do poema. A velocidade de imagens a irromper da memória aumenta,
porém o caráter das mesmas continua a revelar-se profundamente melancólico e o sujeito
lírico, meditativo, mantém-se túrgido de uma dolência que se assume inexprimível, na
sua génese e totalidade. Nesta confluência e relativamente ao abatimento do eu poético,
Walter Benjamin é esclarecedor, referindo que “aqueles que meditavam e iam mais fundo
viam-se na existência como num campo de ruínas preenchido por ações não concluídas e
inautênticas”136.
Nesta parte do poema retoma-se a problemática da mudança exterior, que se opõe
à imutabilidade do estado de sofrimento do eu lírico: Paris renovou-se, contudo a
melancolia do sujeito manteve-se inabalável, resistiu à passagem do tempo, o que lhe
imprime uma sobredosagem de dor (“a dor de sempre me alimenta”). Neste âmbito, já
não tem influência sobre o sujeito lírico somente o seu pesar, mas ainda o sofrimento das
figuras antropomórficas que são por si recordadas, através dos seus “chers souvenirs”137,
que lhe causam angústias várias e que “pesa[m] como pedra”. Deste modo, os atos de
pensar e de visualizar (tão explícitos através da expressão reiterada por vezes com
algumas variações – “eu penso”) revelam-se não potenciadores da purificação das
emoções, da libertação do sofrimento do sujeito poético, mas auxiliares do aumento da
tensão dramática do eu e do agravamento da tonalidade melancólica que pauta o seu
discurso. Neste contexto, assinalo que Walter Benjamin frisou que vale “a pena cair nessa
contemplação absorta, que mais não seja pelos significados que ela (…) permite decifrar
(…), mas a sua repetição sem fim estimula o desânimo vital do temperamento

135
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 195
136
BENJAMIN, Walter, A Origem do Drama Trágico Alemão (trad. João Barrento), op. cit., p. 146
137
Cf. BAUDELAIRE, Charles, Les Fleurs du Mal, op. cit., p. 131
44
melancólico”138. A respeito desse longo histórico de tentativas de comunicação de
pensamentos sobre vários sofrimentos convocados no poema baudelairiano, que são
transfigurados e transportados para “Carta de Paris”, Starobinski sublinhou que “[i]l ne
s’agit pas, en effet, d’un ‘Je pense’ isolé (…) à la façon du ‘Je pense’ cartésien. Tous les
‘Je pense’ du poème sont adressés à des êtres malheureux – eux-mêmes pensifs et
tourmentés”139.
O desfecho do poema proporciona uma dilatação do espetro da melancolia lírica do
discurso: “e penso (…) em outros mais ainda”, revela, por último, o sujeito poético. Desde
modo, é possível constatar o pathos do eu tendencialmente incomunicável. O texto
poético parece abrir-se à possibilidade de nele se encontrar a tentativa de transmitir toda
a angústia e tristeza de pensamento da humanidade adquirindo uma dimensão universal.
Resgato, agora, um outro fragmento poético de Ana Cristina Cesar que poderá
operar enquanto síntese de “Carta de Paris”: “Belo belo. Tenho tudo que fere”140. Não
deixe de notar-se, que neste fragmento, está patente uma relação intertextual com o poema
“Belo Belo”, de Manuel Bandeira141, do qual a poeta se apropriou, para depois o
transfigurar e o ter como seu – o que aponta para a dimensão da antropofagia, como mais
adiante se debaterá, com mais demora. No entanto, não deixo de mencionar que, a meu
ver, o excerto citado opera não tanto como paródia, como enquanto paráfrase desse
enunciado de Bandeira, pois visa uma estética da continuidade, não se desviando
totalmente da sua origem. Para suportar esta afirmação, tomo a conceção de Affonso
Romano de Sant’Anna que estabelece uma distinção entre os dois conceitos
supranomeados e que revela que a paródia tem que ver com uma total descontinuidade
entre o texto que serve de base a um outro, ao passo que a paráfrase assenta na
continuidade entre enunciados.142
Nos textos líricos discutidos, julgo que as sensações de dor experimentadas e
expressadas pelo sujeito, face ao seu pesar, se aproximam das emoções vividas, quando
em presença de um objeto que possa enquadrar-se na categoria estética do sublime. Quero

138
BENJAMIN, Walter, A Origem do Drama Trágico Alemão (trad. João Barrento), op. cit., p. 147
139
STAROBINSKI, Jean, “Les Figures Penchées: «Le Cygne»”, in op. cit., p. 76
140
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 36
141
Cf. BANDEIRA, Manuel, op. cit., pp. 180-181
142
SANT’ANNA, Affonso Romano de, Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo: Ática, 2003, p. 28
45
dizer, então, que ao “administra[r] a tristeza sabiamente”143, Ana Cristina Cesar abandona
o sujeito poético das suas composições à mercê dos efeitos da melancolia, que parece
escapar largamente ao seu domínio de controlo, que turva a sua capacidade percetiva e o
abala psicológica e fisicamente, imprimindo-lhe uma forte tensão interior que o conduz,
consequente e implicitamente, a uma experiência de terror ficcionado. Edmund Burke
sintetizou o que acabei de expor, ao advogar que

[t]endo considerado o terror como gerador duma tensão anormal e de certas


excitações violentas de nervos, depreende-se facilmente do que acabámos de
afirmar que tudo o que é propenso a produzir uma tensão dessa natureza
necessariamente dá origem a uma paixão semelhante ao terror e,
consequentemente, deverá ser uma fonte do sublime, mesmo que não esteja
144
ligado a nenhuma ideia de perigo .

Assim, o “pessimismo racional”145, para o qual chamou a atenção Walter Benjamin,


bem como a impossibilidade de existência de uma “saída de vida”146 perseguem o sujeito
circunscrevendo-o a pensamentos dolorosos que este tenta (ainda que frustradamente)
expressar através da experiência poética, que medeia a comunicação com o recetor.

143
BELO, Ruy, Todos os Poemas, Porto: Assírio & Alvim, 2014, p. 162
144
BURKE, Edmund, Uma Investigação Filosófica Acerca da Origem das Nossas Ideias do Sublime e do
Belo (trad. Alexandra Abranches, Jaime Costa e Pedro Martins), Lisboa: Edições 70, 2013, p. 158
145
BENJAMIN, Walter, A Origem do Drama Trágico Alemão (trad. João Barrento), op. cit., p. 147
146
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 289
46
Capítulo 2. – A detonação do discurso poético

2.1. O texto híbrido

Encete-se, agora, uma sucinta discussão sobre outros aspetos diferenciadores da


poética de Ana Cristina Cesar, tais como a hibridação dos dois registos presentes na sua
obra – a prosa e o verso. Destaco, desde já, que o seu único livro publicado em vida
evidencia a porosidade genológica e o decorrente hibridismo temático-formal, visto ser
composto não somente por textos em verso, mas também por múltiplos fragmentos em
prosa, que mimetizam a estrutura de entradas de diário e de missivas íntimas, como
advertiu Annita Costa Malufe147.
Assim, julgo ser adequado organizar o pensamento não somente num único plano
reflexivo, pois as questões do hibridismo genológico e da consequente metamorfose de
géneros discursivos e de formas textuais transportam consigo quesitos distintos, como o
do formato adotado para uma qualquer enunciação lírica (isto é, o impacto que tem um
sujeito sobre um determinado texto, convocando a mundividência de Roman
Jakobson148), o da oposição verso/prosa e, ainda, o da relação estabelecida entre os vários
géneros literários não só com tipos textuais como com modos discursivos.
No momento inicial do debate, realço que Adrian Marino, no ensaio “Toward a
Definition of Literary Genres”149, ressalvou que os géneros literários têm uma existência
de matriz fragmentária, hierárquica e algo transitória, no que concerne à sua situação de
permanência na história literária. A meu ver, esta perspetiva possui um caráter algo vago
e pode ser complementada pelas seguintes palavras de Michelle Bloch: “[d]ans la seconde
partie du XIXe s., un phénomène nouveau se fait jour: le vers disparaît; les genres ne sont
mêmes plus ‘mélangés’, ils sont ignorés”150, ou seja, a época moderna trouxe consigo não

147
Cf. MALUFE, Annita Costa, “Estratégias para uma Escrita do Segredo”, in AA. VV., Sereia de Papel:
Visões de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., pp. 62-63
148
JAKOBSON, Roman, apud ARMANGAUD, Françoise, “Énonciation”, in AA.VV., Dictionnaire des
Genres et Notions Littéraires, Paris: Albin Michel, 1997, p. 244
149
CF. MARINO, Adrian, “Toward a Definition of Literary Genres”, in AA. VV., Theories of Literary
Genres (ed. Joseph P. Strelka), University Park and London: The Pennsylvania State University Press,
1978, p. 49
150
BLOCH, Michelle, “La Poésie”, in AA. VV., Littérature et Genres Littéraires, Paris: Librairie Larousse,
1978, p. 188
47
só a crise do sistema de divisão e classificação dos géneros, mas também a possibilidade
de transgressão e da sua constante mutação, até porque, como sublinhou Hegel, a
“natureza da poesia varia também com as épocas”151, coordena-se com a própria história
literária e a sua periodização. A este respeito, Dominique Combe frisou que foi apenas
com o surgimento e a instauração do romantismo que a poesia deixou de se confundir
com o verso e que a teorização crítica em volta dos géneros sofreu uma agitação. Dando
como exemplo a situação particular da prosa poética, o autor destaca ainda que foi graças
à obra Le Spleen de Paris, de Charles Baudelaire, que a separação definitiva entre as duas
entidades distintas acima citadas se consumou, preparando o percurso para a instituição
desse género híbrido entre os poetas simbolistas e os contemporâneos152 – o que me
parece ir ao encontro do que salientou Henri Meschonnic: “[l]a modernité occidentale
s’est tournée vers l’indistinction du vers et de la prose”.153
Nesta confluência e no âmbito específico da estética de Ana Cristina Cesar, a
análise de Maria Lucia de Barros Camargo, relativamente às questões que acabo de
levantar, assume-se esclarecedora. A ensaísta evidenciou que “não se trata aqui apenas
da ruptura dos gêneros da própria modernidade, especialmente aquela ocorrida entre
poesia e prosa, mas sim de indiferenciação (...), de desierarquização entre os gêneros”154,
o que, a meu ver, pode apontar para o facto de a poesia da autora carioca não se limitar a
expor uma tradição da descontinuidade e da negação dos preceitos da poética clássica.
Volto um pouco atrás e não deixo de salientar, adotando uma visão todavia mais
geral, que essa mesma desierarquização se concebeu de forma progressiva, paulatina e
pouco consensual, até porque as sucessivas tentativas para uma hipotética fixação de
traços concretos que adjuvassem a diferenciação de géneros literários e de tipos textuais
revelam a complexidade desta questão teórico-crítica, que ainda hoje suscita reflexões

151
HEGEL, G. W. Friedrich, op. cit., p. 539
152
Cf. COMBE, Dominique, Les Genres Littéraires, Paris, Hachette, 1992, p. 70
153
MESCHONNIC, Henri, “Non-vers, Non-prose”, in Critique du Rythme: Antropologie Historique du
Langage, op. cit., p. 458
154
CAMARGO, Maria Lucia de Barros, “Do Fim do Poema à Idéia da Prosa: Para Reler Ana Cristina
Cesar”, in AA. VV., Poéticas do Olhar e outras Leituras de Poesia (org. Celia Pedrosa e Maria Lucia de
Barros Camargo), Rio de Janeiro: 7Letras, 2006, p. 76
48
várias155. No que concerne a este aspeto, sublinhe-se que a teorização clássica,
nomeadamente a partir das considerações de Platão, Aristóteles e Horácio aclamou
sistemas de diferenciação genológica regidos por princípios valorativos e por alguns
preconceitos (recordo, a este propósito e a título de exemplo, a terminologia aristotélica
que estabeleceu uma cisão entre tipologias dissemelhantes de modos e de objetos de
imitação). Tais metodologias não parecem ser completamente funcionais, quando se
abordam as estéticas das eras moderna e contemporânea, uma vez que o conceito de
poesia tem vindo a assumir-se (de certo modo e tendo por base os variados processos de
fusão intermedial e as múltiplas reestruturações de sistemas de classificação) como
indefinível no seu estado “puro” – ou seja, como era pensado pelos autores clássicos –,
até porque “[t]udo pode ser matéria da poesia”156, para recorrer às palavras da poeta.
Na senda desta teorização, porém avançando um pouco, recordo a posição crítica
de Dominique Maingueneau que advertiu que, no âmbito dos estudos literários, os
parâmetros que tomam parte na classificação dos géneros são, na sua origem,
heterogéneos, pois designações como as de diálogo, poesia lírica, soneto ou elegia
caracterizam diversos aspetos inerentes aos textos157. A este propósito, considere-se que
Ana Cristina Cesar declarou, numa carta destinada a Ana Candida Perez, que fazia
“sentido [para si] essa literatura nervosa, (...) dispersa, flanante”.158
Leia-se, agora, um poema de caráter híbrido da poeta, que reflete o facto de a sua
escrita “na verdade coloca[r] em tensão/confronto permanente a lei ancestral do verso, de
um lado, e, de outro, a fúria disruptiva da coloquialidade, de oralidade”159:

18 de fevereiro

Me exercitei muito em escritos burocráticos, cartas de recomendação,


anteprojetos, consultas. O irremovível trabalho da redação técnica. Somente a

155
CF. SCHAEFFER, Jean-Marie, “Genres Littéraires”, in AA.VV., Dictionnaire des Genres et Notions
Littéraires, op. cit., pp. 339-343
156
CESAR, Ana Cristina, “Nove Bocas da Nova Musa”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 165.
157
Cf. MAINGUENEAU, Dominique, “Les Genres: Unité et Diversité, Positionnement et Investissement
Générique”, in AA. VV., Dictionnaire Raisonné de la Caducité des Genres Littéraires, Paris: Droz, 2014,
p. 18
158
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 263
159
MORICONI, Ítalo, “Nota do Editor”, in AA. VV., Sereia de Papel: Visões de Ana Cristina Cesar (org.
Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., p. 7
49
dicção nobre poderia a tais alturas consolar-me. Mas não o ritmo seco dos diários
160
que me exigem!

Não pretendo, neste momento, elaborar uma análise detalhada do texto, privilegio
antes o levantamento de algumas questões teóricas. Assim, uma das primeiras
interrogações que penso poder colocar tem que ver com a própria classificação tipológica
destes enunciados poéticos: serão eles, na sua génese, poemas em prosa ou prosa poética,
serão diário literário? Mantenho estas interrogações suspensas e assinalo que, numa carta
a Heloisa Buarque de Hollanda, referindo-se a um ensaio que redigiu sobre Caetano
Veloso, a poeta afiançou que “a poesia quer é virar prosa; o ensaio quer virar poesia”161,
o que remete para a progressiva dispersão da consistência das fronteiras genológicas,
como asseverou Dominique Combe no seguinte trecho:

Les catégories génériques contribuent donc à la perception des genres comme


leurs traits distinctifs, essentiels mais non exclusifs. Que le «poétique» soit
l’essence de la poésie ne signifie pas qu’un poème ne renferme pas, également,
162
du «dramatique», de l’ «épique» ou du «comique» .

Continuo a questionar e resgato a interrogação de Tzvetan Todorov: “suprimido o


verso, o que resta da poesia”163? Serão estes mesmos poemas mais narrativos ou
descritivos do que poéticos? Apresentarão diferenças notórias, no plano da enunciação,
face aos textos poéticos em verso? Proporcionarão ao leitor (graças à aproximação aos
registos epistolar e diarístico) um domínio pleno sobre uma hipotética confissão assumida
ou apenas o equivocam graças ao fingimento lírico? Abro um sucinto parêntesis para
realçar, nesta linha expositiva, que a própria poeta advogou que o ato da leitura não deve
ser orientado no sentido de decifrar o texto em si, pois a matéria poética “não esconde
uma verdade por trás ou uma via íntima por trás”164.

160
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 33
161
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 40
162
COMBE, Dominique, op. cit., pp. 20-21
163
TODOROV, Tzvetan, “A Poesia sem o Verso”, in Os Géneros do Discurso (trad. Ana Mafalda Leite),
Lisboa: Edições 70, 1981, p. 124
164
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 262
50
Terminado o aparte, são estes alguns dos aspetos que proponho debater, com
exemplos práticos e com mais detalhe, no próximo subcapítulo. Adianto, todavia, que se
corre o risco de cair num lapso ao empreender uma leitura superficial e linear desses
poemas híbridos da autora, pois a única certeza que se pode ter é a de que as barreiras
preestabelecidas entre géneros literários, formas textuais e modos discursivos são,
constantemente, quebradas – o que traz consequências, nos âmbitos da estrutura formal e
da peculiar sequenciação sígnica inerente aos textos165, dado que “a escrita é um jogo
ordenado de signos (...); desdobra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das
suas regras (...) é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito da escrita está
sempre a desaparecer.”166
Registe-se também que as fronteiras que distanciam o verosímil poético do mundo
real são ténues e encontram-se dissimuladas esteticamente, tal como se pode verificar nos
próximos versos: “Discursos detonam. / Não sou eu que estou ali / de roupa escura /
sorrindo ou fingindo / ouvir. / No entanto / também escrevi coisas assim, / para pessoas
que nem sei mais / quem são”167, lê-se em “O Homem Público N.º 1 (Antologia)”. Na
minha opinião, este é um trecho exemplificativo que aponta quer para o fingimento lírico,
quer para o ocultamento, ainda que velado, da autora empírica dos seus enunciados
poéticos. Não deixo de referir, desde já, que, tal como destacou Tiago Sousa Garcia, os
leitores que leem os poemas em busca da entidade empírica da poeta deparam-se com
algo diferente, pois com a transposição dessa entidade para o self literário da poeta
(utilizando a terminologia deste mesmo autor) dá-se um fenómeno de despersonalização,
que se funda na “subjugação [do seu sujeito] perante outros (...) presentes no texto. Ao
permitir a subjugação – ou ao recusar a subjugação falhando (...) a libertação –, o sujeito
está ativamente a negar o seu self em favor de outro”.168
Retomo a teorização da antiguidade clássica. Veja-se que, se se tiver em conta a
classificação aristotélica, apenas se verificará, aparentemente, a assunção do género
lírico, na obra em destaque (não deixo de referir que Ana Cristina Cesar jogou com esta

165
Cf. ADAM, Jean- Michel, Les Textes: Types et Prototypes, Paris: Nathan, 1992, p. 20
166
FOUCAULT, Michel, O que é um Autor?, Lisboa: Vega, 2012, p. 35
167
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 108
168
GARCIA, Tiago Sousa, op. cit., p. 34
51
questão em poemas como “Primeira Lição”169, que apresenta um caráter metapoético).
Aparentemente, dado que, após uma observação mais atenta, se verifica que esse género
não se apresenta em estado cristalino, visto ser percetível que a poesia desta autora
incorpora elementos constitutivos de outros géneros, como a tragédia ou a comédia: isto
é, pauta-se por instantes catárticos e pelo pathos do eu poético – traços que migram do
género trágico e que podem fundir-se com a linguagem lírica (tal como afirmou Emil
Staiger170 e como tentei demonstrar no capítulo anterior). Por outro lado, também a ironia
emerge, por vezes, numa subtil paródia de eventos quotidianos ou de versos furtados a
outros autores, que a poeta integrou, ora de forma mais subtil ora mais claramente, nos
seus poemas.
Neste âmbito contudo progredindo na argumentação, sublinho que a autora realçou,
numa carta endereçada a Cecilia Londres, que a “única solução que [via]: [era] uma forma
ainda híbrida”171 de expressão (neste quadro particular equacionada nos mesmos termos
de Wladimir Krysinsky: mistura, cruzamento172), o que remete para o seguinte postulado
de Henri Bonnet, que evidenciou as várias possibilidades da miscigenação literária:
“[o]ne can write novels in verse, as has been done quite often (…). One can also write
poems in prose or introduce in a work of prose essentially poetical passages”.173
Ainda que com interferências provenientes de vários planos (genológico, sintático,
semântico ou mesmo intertextual), creio ser possível comprovar que o lirismo não é posto
em causa, na obra de Ana Cristina Cesar, até porque “um ideal de ininterrupta existência
lírica, [é um] ideal não mais possível artisticamente”174, como propôs Emil Staiger. Neste
contexto, o supracitado axioma vai ao encontro das palavras de João Cabral de Melo Neto
(autor cuja estética foi veementemente negada pelos poetas marginais), que julgo serem
elucidativas, no seio da produção lírica da autora de A Teus Pés: o “autor de hoje (...) cria

169
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 18
170
Cf. STAIGER, Emil, Conceitos Fundamentais da Poética (trad. Celeste Galeão), Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1969, p. 120
171
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 186
172
Cf. KRYSINSKY, Wladimir, “Sur Quelques Généalogies et Formes de l’Hybridité dans la Littérature
du XIXe Siècle”, in AA. VV., Le Texte Hybride (coord. Dominique Budor et Walter Geerts), Paris: Presses
de la Sorbonne Nouvelle, 2004, p. 29
173
BONNET, Henri, “Dichotomy of Artistic Genres”, in AA. VV., Theories of Literary Genre (ed. Joseph
P. Strelka), op. cit., p. 5
174
STAIGER, Emil, op. cit., p. 29
52
sua (...) linguagem pessoal, ele cria as leis de sua composição. Do mesmo modo que ele
cria seu tipo de poema, ele cria seu conceito de poema, a partir daí, seu conceito de poesia,
de literatura, de arte”175.
Itero que na poética de Ana Cristina Cesar não é possível isolar perentoriamente a
presença de vários géneros literários, mais produtivo será atentar-se na forma como se
manifestam e articulam alguns elementos integrantes de outros géneros que não o lírico,
uma vez que, como salientou Mikhail Bakhtin, “quando passamos o estilo de um gênero
para outro, não nos limitamos a modificar a ressonância deste estilo graças à sua inserção
num gênero que não lhe é próprio, destruímos e renovamos o próprio gênero”176. A este
propósito, note-se a seguinte análise de Karl Viëtor relativa a esta problemática: “le
concept de ‘genre’ n’a pas un emploi aussi unifié qu’il le faudrait pour qu’on progresse
enfin sur ce terrain difficile”177, o que justifica que “[o]n ne peut tracer une fois pour
toutes le contour matériel de l’histoire des genres, parce qu’il s’agit là de quelque chose
de vivant qui se transforme”178 – perspetiva crítica esta que é partilhada por outros
teóricos como Alastair Fowler179 ou Jean-Marie Schaeffer180.
Realce-se a este respeito que os géneros literários podem influenciar ou ser
influenciados pelas formas e tipos textuais e pelos modos de discurso presentes num dado
enunciado: como se pôde conferir, a noção de “género” (enquanto organismo vivo, não
estático) tem vindo a sofrer alterações, graças à sua ambivalência e a um paulatino
aumento da sua porosidade181. Nas palavras de Celina Silva, a história do género na
literatura e na poética ocidentais expõe-se “quer como uma aceleração crescente do ritmo
das transformações genéricas no decurso dos séculos quer enquanto passagem do género

175
NETO, João Cabral de Melo, Poesia e Composição – A Inspiração e o Trabalho da Arte, Coimbra:
Angelus Novus, 2003, p. 7
176
BAKHTIN, Mikhail, Estética da Criação Verbal (trad. Maria Ermantina Pereira), São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 286
177
VIËTOR, Karl, “L’Histoire des Genres Littéraires”, in AA. VV., Théorie des Genres, Paris: Seuil, 1986,
p. 10
178
Idem, p. 34
179
Cf. FOWLER, Alastair, Kinds of Literature: An Introduction to the Theory of Genres and Modes,
Oxford: Clarendon Press, 1985
180
Cf. SCHAEFFER, Jean-Marie, Qu’est-ce qu’un Genre Littéraire?, Paris: Seuil, 1989
181
Cf. SCHAEFFER, Jean-Marie, “Les Genres Littéraires, D’Hier à Aujourd’Hui”, in AA. VV.,
L’Éclatement des Genres au XXe siècle (dir. Marc Dambre et Monique Gosselin-Noat), Paris: Presses
Universitaires de la Sorbonne, 2001, p. 18
53
concebido mais ou menos normativamente, à ‘generecidade’”182.
Retornando à poesia de Ana Cristina Cesar e não obstante a rápida impressão
relativa à forma textual, alcançada através da observação da mancha gráfica de um
determinado enunciado lírico, não se deve esquecer que essa determinação é bem mais
complexa e implica instrumentos operacionais que não se ficam pelo impacto gráfico
causado. Recordo que Aristóteles embora não coloque em debate a poesia lírica
(abolindo, assim, o problema concetual do pensamento platónico), sublinha que o verso,
por si só, não é suficiente para legitimar um qualquer texto enquanto poesia: “se alguém
compuser em verso um tratado de Medicina ou de Física, esse será vulgarmente chamado
‘poeta’; na verdade, porém, nada há de comum entre Homero e Empédocles, a não ser a
metrificação”183, pode ler-se em Poética. No que concerne à teoria aristotélica, Fernando
Pessoa salientou que como “todas as classificações bem pensadas, é esta útil e clara; como
todas as classificações, é falsa. Os géneros não se separam com tanta facilidade íntima”184.
Como complemento desta posição analítica, aludo a outras duas: por um lado, o autor
argentino Pedro Miguel Obligado ressalvou que a definição de poesia, enquanto forma de
arte que se vale da palavra para elaborar objetos estéticos, é algo imprecisa e engloba quer
a prosa quer o verso185; por outro lado, o formalista russo Roman Jakobson definiu poesia
enquanto um conjunto de signos linguísticos que, juntos, formam um determinado
enunciado onde impera a função poética da linguagem186. Tal significa que um texto
aparentemente em prosa pode ser considerado como poesia, se a função nele dominante
for a função estética (muito embora se verifique a presença das outras funções da
linguagem explicitadas pelo teórico suprarreferido a ela subordinadas), como tentarei
demonstrar.
Termino esta breve discussão apelando à ponderação de Alastair Fowler, por me

182
SILVA, Celina, “O Género Literário – Norma e Transgressão: Notas de Leitura em Poética e História
Literária”, in AA. VV., O Género Literário: Norma e Transgressão (ed. John Greenfield), München:
Martin Meidenbauer, 2006, p. 11
183
ARISTÓTELES, Poética (trad. Eudoro de Sousa), op. cit., p. 104
184
PESSOA, Fernando, “Notas Autobiográficas e de Autoagnose”, in Páginas Íntimas e de
Autointerpretação (pref. Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho), Lisboa: Ática, s.d., p. 106
185
Cf. OBLIGADO, Pedro Miguel, Qué es el Verso?, Buenos Aires: Columba, 1957, pp. 7-9
186
Cf. JAKOBSON, Roman, “Linguistique et Poétique”, in Essais de Linguistique Générale (trad. Nicolas
Ruwet), Paris: Editions Minuit, 1963, pp. 209-248.
54
parecer profícua e poder operar como síntese do que tenho tentado salientar:

the aims of genre systems should be conceived less ambitiously. (…) Genres are
better understood (…) through a study of their mutual relations which actually
affect writers and readers in a way that is not possible with locations on a chart.
Theses relations are partly diachronic or dynamic (formation, combination,
mixture), partly static (similarities, contrasts)187.

2.2. (Des)limites do verso e da prosa

Analisem-se, agora, dois textos híbridos da poeta, nos quais, assumindo uma
posição concordante com a mundividência de Annita Costa Malufe, saliento que se
constata a presença de uma “mistura de tons e formas, como se (...) tivéssemos pedaços
de cartas, fragmentos de diários, (...) de poemas (...) recortados e rearranjados. Uma forma
realmente híbrida”188.
Um dos poemas selecionados apresenta um caráter epistolar – Correspondência
Completa – e o outro assume um pendor diarístico – “Dia 16 de outubro de 1983”. Uma
das primeiras considerações que teço prende-se com o facto de estes poemas, quando
pensados em conjunto, evidenciarem semelhanças ao nível da metodologia compositiva
(que visa a fusão e a transfiguração de formas poéticas) e poderem impelir a uma leitura
que considera a progressão da dosagem e da tonalidade melancólicas e da tensão
dramática do eu, que oscila entre violência, mistério e delicadeza.
Antes de se dar início à análise, afigura-se relevante questionar o motivo da forte
afluência dessas formas híbridas nesta estética, onde subsiste a “essência do lírico”189,
sublinhada por Emil Staiger. A este propósito, Ana Cristina Cesar proveu uma resposta
hipotética: “na vivência pessoal de todo o mundo, diário e correspondência, diário e carta,
é o tipo de escrita mais imediato que a gente tem”190, o que possibilita uma materialização

187
FOWLER, Alastair, op. cit., p. 255
188
MALUFE, Annita Costa, “Estratégias para uma Escrita do Segredo”, in AA. VV., Sereia de Papel:
Visões de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., p. 64
189
STAIGER, Emil, op. cit., p. 186
190
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 256
55
mais célere do impulso da escrita, numa aceção aparentemente menos trabalhada formal
e linguisticamente do que a poesia, que implica considerações discursivas e
versificatórias. Como complemento desta explanação, tomem-se as seguintes palavras da
autora, que, na minha opinião, operam como síntese explicativa do seu programa
compositivo pessoal, não obstante a autora de Cenas de Abril as ter proferido como
súmula da escrita de Angela Melim:

entre um poema e outro, aprendi a ouvir uma prosa de voz íntima, que fala como
quem conversa intimamente com um interlocutor, que se apega às exclamações e
aos murmúrios de intimidade, e que pede emprestado da conversa a
despreocupação com a continuidade lógica e com a sintaxe rigorosa,
desobedecendo as regras de desenvolvimento expositivo, à mercê de toda a sorte
de interferências meio fora de controle, de associações meio súbitas, de
interrupções e parêntesis que quebram às vezes irremediavelmente as primeiras
seqüências.
191
(...) E uma história toda estilhaçada .
1

Aproximo-me de Correspondência Completa para tentar observar, de modo mais


prático, como alguns traços característicos do hibridismo de formas e géneros e da
metamorfose poético-estética se manifestam. Atente-se no início do poema epistolar:

My dear,
(…)
O dia foi laminha. (...). A vida parece laminha e a carreira é um narciso em flor.
O que escrevi em fevereiro é verdade mas vem junto drama de desocupado. Agora
fiquei ocupadíssima, ao sabor dos humores, natureza chique, disposição ambígua.
Depois que desliguei o telefone me arrependi de ter ligado, porque a emoção
esfriou com a voz real. Ao pedir a ligação, meu coração queimava. E quando a
gente falou era tão assim (...) tão sem estilo (como nas cartas). Você não acha que
192
a distância e a correspondência alimentam uma aura (...)?

191
CESAR, Ana Cristina, “Riocorrente depois de Eva e Adão...”, in Crítica e Tradução, op. cit., pp. 241-
242
192
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 47
56
No meu ponto de vista, o texto parece não levantar elevadas suspeitas quanto ao
género discursivo pelo qual optou a autora, uma vez que Ana Cristina Cesar deixou
transparecer uma informação de bordo essencial para uma reflexão mais cuidada sobre
esta carta-poema, que coloca o leitor à mercê de várias pistas fictícias (como a indicação
de ser uma segunda edição) e que constitui o corpus do “livreto minúsculo, em formato e
duração, de 1979”193: a estrutura formal do texto mimetiza a de uma missiva íntima. A
este respeito, note-se que Bakhtin “insiste sur l’extrême mobilité et sur la diversité des
répliques brèves, du dialogue quotidien, du récit familier, de la lettre, qu’il considère
comme des genres élémentaires du discours”194. Neste âmbito, a própria poeta colocou
algumas interrogações quanto à opção por este género textual: o “que acontece quando a
gente escreve carta? Que tipo de texto é a carta? Carta é o tipo de texto que você está
dirigindo a alguém. Você está escrevendo carta não é pelo prazer do texto, não é um
poema que você está produzindo”195, ressalvou, ainda.
Mais evidentemente do que sucede nos poemas em verso, a autora de Luvas de
Pelica evade-se do enunciado epistolar, metamorfoseando-se, ocultando-se na existência
textual de Júlia – entidade que assina a carta – e parece reclamar um interlocutor no
imediato (ainda que a presença desse tu se faça sentir indiretamente, no presente da
enunciação), pondo-o a par de diversos episódios quotidianos passados e interpelando-o,
recorrentemente, através de interrogações retóricas, que mesclam o quotidiano com o
lirismo: “My dear, (…) Você não acha que a distância e a correspondência alimentam
uma aura (um reflexo verde na lagoa no meio do bosque)?”.
Se se pensar no vocativo inicial, que opera como fórmula de saudação, em relação
com a disforia melancólica que pauta todo o poema, pode propor-se a hipótese de o léxico
de cariz intimista funcionar como adjuvante do adensamento da necessidade da partilha
despudorada da angústia mimetizada no texto poético. Se a “angústia é fala entupida”196,
a mudança de um registo epistolar de pendor meramente narrativo ou descritivo, para um

193
FILHO, Armando Freitas, “Ana Cristina Cruz Cesar, Ana Cristina Cesar, Ana Cristina C., Ana C., Ana”,
in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 9
194
ADAM, Jean-Michel, op. cit., p. 12
195
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 257
196
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 244
57
registo epistolar lírico, poderá constituir o ponto de fuga a esse bloqueio – “De repente
faço uma anticarta, antídoto do pathos”197. Indo mais além e aludindo à teoria bakhtiniana,
pode afiançar-se que o vocativo expõe o caráter dialógico da linguagem.
Voltando à fórmula de saudação, urge inquirir quem vem a ser o destinatário desta
missiva poética, com matizes narrativas e expositivas e que oscila entre a voracidade de
querer dizer e a impossibilidade real de o fazer. Silviano Santiago colocou esta mesma
questão, no seu ensaio “Singular e Anónimo”198. Indo ao encontro da sua análise, penso
que a identificação de um tu recetor se relaciona com uma ambivalência estratégica, isto
é, esse tu pode atingir uma dimensão universal e representar, por um lado, todo e qualquer
leitor que procure o texto e o complete com a sua leitura, e, por outro, pode ser um signo
esvaziado do seu significado e não visar, por isso, nenhuma entidade em particular. Assim
e conforme sublinhou Flora Süssekind a respeito das missivas pessoais, quando estas são
publicadas, o tom confessional íntimo é ampliado e a confissão torna-se passível de ser
partilhada com um público alargado199. Na senda desta posição crítica, atente-se nas
palavras de Alain Vialva, que, a meu ver, complementam o que acabo de salientar:

Dès qu’il a emploi littéraire de la lettre il s’instaure une situation de double


énonciation: un premier plan de l’énonciation réunit l’épistolier et son
destinataire, tandis qu’un second offre la globalité de leur échange au public. (…)
[L]e destinataire déclaré des lettres n’est qu’une figure médiatrice, un destinataire
relais pour faciliter l’accès auprès du public, on se trouve en présence,
généralement, d’œuvres vouées au débat d’idées. Le destinataire théorique peut,
à la limite, y être fictif et en représenter qu’un prétexte commode ; mais il peut
aussi bien être un destinataire initial véritable, auprès duquel l’auteur expose ses
200
opinions.

Numa outra aceção, essa entidade pode apresentar-se específica para o enunciador,
mas ser totalmente desconhecida para o leitor, que, muito embora possa sentir-se

197
Idem, p. 61
198
Cf. SANTIAGO, Silviano, “Singular e Anónimo”, in Nas Malhas da Letra, op. cit., p. 61
199
Cf. SÜSSEKIND, Flora, apud CAMARGO, Maria Lucia de Barros, Atrás dos Olhos Pardos. Uma
Leitura da Poesia de Ana Cristina Cesar, op. cit., p. 223
200
VIALVA, Alain, “Littérature Épistolaire”, in AA. VV., Dictionnaire des Genres et Notions Littéraires,
op. cit., pp. 434-435
58
convocado para participar ativamente na “audição” da confidência inerente à sequência
descritiva de episódios rotineiros, ficará sempre na hesitação de um (re)conhecimento
dessa hipotética identidade empírica, que se revela real somente dentro do próprio
enunciado comunicativo. Se se tomar esta mundividência, o leitor assume uma posição
de voyeur, perante o poema.
Sumariamente, o leitor ideal que Ana Cristina procura é aquele que não deve ater-
se a preconceitos formais e genológicos, nem tão pouco a um desejo incontornável de
compreensão. Silviano Santiago enfatizou que a “morte de todo e qualquer poema se
encontra na esclerose otimista (...) da sua compreensão”.201 Se estes poemas de caráter
heterogéneo são de mais ou menos difícil compreensão é algo arbitrário, pois a poeta não
visa um protótipo de leitor “autoritário” (nas palavras do último ensaísta citado), que
busque esmiuçar exaustivamente as várias esferas de significação que sustentam o texto
poético e para as quais alertou Heloisa Buarque de Hollanda202, prefere antes que ele se
deixe conduzir pelo prazer do texto (para usar a conceção barthesiana) muito embora ele
se mescle com o pathos. Desta forma, a poeta, metamorfoseada no punho de Júlia, parece
afirmar que não necessita de um leitor que busque referências extratextuais para justificar
o enunciado lírico (pois perder-se-á), mas que aceite o discurso poético enquanto tal.
Em Correspondência Completa a voz merencória do eu abre um parêntesis no
registo de tom confessional e narrativo, para desencadear uma concisa reflexão que tem
que ver com os dois tipos de leitor que acompanham a sua voragem literária:

Fica difícil fazer literatura tendo Gil como leitor. Ele lê para desvendar mistérios
e faz perguntas capciosas, pensando que cada verso oculta sintomas, segredos
biográficos. Não perdoa o hermetismo. Não se confessa os próprios sentimentos
203
Já Mary me lê toda como literatura pura, e não entende as referências diretas.

Fragmentos como este evidenciam a heterogeneidade sequencial do enunciado


poético e demonstram a presença de marcas de dois tipos de sequências textuais, a saber:
o narrativo e o argumentativo. No que concerne a este aspeto, recorde-se que a poeta

201
SANTIAGO, Silviano, “Singular e Anónimo”, in Nas Malhas da Letra, op. cit., p. 64
202
Cf. Bruta Aventura em Versos [Registo vídeo]. Direção de Letícia Simões. Brasil: Artezanato Eletrônico,
Matizar, 2011. (ca. 76 min), min. 30:52-32:01
203
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 50
59
admitiu, relativamente à correspondência, que esta tipologia textual lhe permitia “dizer
melhor, mais limpo, mais completo, MAIS OUSADO ao escrever”204, o que, a meu ver,
não coloca em causa o fingimento que alimenta o género lírico, antes contribui para o
consolidar.
Para além desse traço, atente-se no facto de que, ao servir-se de dois nomes próprios
– “Gil” e “Mary” –, a poeta parece almejar a evidenciação de que a carta-poema abre
hipóteses à colocação em cena de uma polifonia indireta, pois as vozes de Gil e Mary
assumem-se passivas na enunciação, quando comparadas à de Júlia. Assim, se se ler na
íntegra Correspondência Completa, entender-se-á que, mais do que simples estratégias
de verosimilhança, estas duas personagens revelam-se detentoras de uma linha narrativa
própria e granjeiam uma sustentação segura da exposição poética.
Avançando um pouco, constata-se que a quebrar o ritmo lento e melancólico patente
no enunciado encontra-se a seguinte passagem:

Só hoje durante a visita de Cris é que me dei conta que batizei a cachorra com o
nome dela. Tive discreto repuxo de embaraço quando gritei com Cris que me
enlameava o tapete. Cris fugiu mas Cris não percebeu (julgando-se talvez
homenageada?). Gil por sua vez leu como sempre nos meus lábios e eclatou de
205
riso típico umidificante.

Verifica-se, portanto e mantendo a questão da convocação de entidades textuais


humanas, que a presença da figura de Gil, neste breve episódio narrativo de tom irónico,
contribui para uma legitimação do verosímil e para a aproximação entre o real e a sua
máscara, na conceção de Tzvetan Todorov206. Asseverando que o real é inenarrável, no
âmbito poético, e optando pela sua transmutação, Ana Cristina Cesar aproximou-se da
seguinte premissa aristotélica, contrariando qualquer leitor que faça uma leitura de matriz
autobiográfica ou confessional: de “preferir às coisas possíveis mas incríveis são as
impossíveis mas críveis”207, até porque conforme assegura Décio Pignatari todo o “poema

204
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 184
205
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 48
206
Cf. TODOROV, Tzvetan, “Introdução ao Verosímil”, in Poética da Prosa (trad. Maria de Santa Cruz),
Lisboa: Edições 70, 1979, pp. 95-102.
207
ARISTÓTELES, Poética (trad. Eudoro de Sousa), op. cit., p.142
60
autêntico é uma aventura – uma aventura planificada. Um poema não quer dizer isto nem
aquilo, mas diz-se a si próprio”208. Recorde-se, neste enquadramento, que Henri
Meschonnic salientou que os textos líricos transformam209 ao invés de representarem
fidedignamente.
Regresse-se ao fragmento poético supratranscrito: nele encontra-se explícita uma
rejeição de paradigmas de leitura quer demasiado desmistificadores, quer demasiado
superficiais – o que pode estar relacionado com o facto de a poesia de Ana Cristina Cesar
ser polifónica e dialogar criativamente com outros autores e outros versos que a eles
rouba, para incorporar nos seus poemas, como se verá.
Retomo a figura de Gil, para levantar algumas questões: será ele um leitor austero,
ávido de dissecar o texto? Concordo que sim. Gil busca a explicação no que fica aquém
do dizível, na entrelinha, procura o outro, não se encontra a si próprio, no texto. A poeta
respondeu-lhe: “quando você escreve, tem sempre uma história que não pode ser contada,
a história da nossa intimidade, a nossa história pessoal”210. Desta forma, o leitor é
confrontado com a incapacidade da existência de uma verdade na poesia; o que se
encontra é antes uma verdade poética, portanto, ficcional. A arquitetura compositiva
híbrida da missiva lírica visa o aglomerar do tom confessional, do coloquialismo e de
temáticas da vida mundana, num texto único e projeta a ideia da confissão ao ouvido do
leitor, ironizada em versos, como: “a chave, a origem da literatura / o ‘inconfessável’
toma forma, deseja tomar forma, vira forma // mas acontece que este é também o meu
sintoma, ‘não / [conseguir falar’”211.
Ao defraudar as expectativas do leitor que tenta encontrar no poema a vivência
íntima da poeta, a autora de Luvas de Pelica parece apontar para o método de leitura
adotado pelos new critics, ou seja: o emprego da técnica de close-reading, que visa a
eliminação de todas as impurezas extratextuais, dado que, como advogou Annita Costa
Malufe, “o que importa na poesia de Ana C. não [é] a confissão em si (...) O que se propõe

208
PIGNATARI, Décio, “Depoimento”, in AA. VV., Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e
Manifestos (1950-1960), São Paulo: Brasiliense, 1965, p. 7
209
Cf. MESCHONNIC, Henri, “Manifeste pour un Parti du Rythme”, in Célébration de la Poésie, Paris:
Verdier, 2001, [s.p.]. [Consult. 10 fev. 2017] Disponível em: http://www.berlol.net/mescho2.htm
210
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 262
211
Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 237
61
é (...) a vivência dessa atmosfera de segredo”212. Assim, atente-te também no que
defendeu Roland Barthes: o “autor nunca é nada mais para além daquele que escreve, tal
como eu não é senão aquele que diz eu: a linguagem conhece um ‘sujeito’, não uma
‘pessoa’”.213
Para além destes aspetos de caráter teórico, programático e estilístico, torna-se
notória a comunhão e a convergência de várias sequências de instantes cronológicos e de
tipos de discurso (direto, indireto, e mesmo indireto livre), que criam estratos de análise
diferenciados. Deste modo, o enunciado contém marcas da manifestação expressiva da
primeira pessoa (pronomes, deíticos) que se encontram intercaladas com alusões a outras
pessoas (segunda do singular, segunda e terceira do plural), que matizam a descrição de
ações (como o momento em que Júlia afirma, em tom bem humorado e referindo-se a Gil
que esse apresenta “levezas de fetinho. É maternal, põe fraldas”214).
Em algumas passagens, torna-se visível uma característica que Ítalo Moriconi
também sublinhou: o facto de o leitor ser confrontado com a incorporação inesperada de
fragmentos de conversa, de recortes de diálogos, no meio do discurso, que provocam uma
fratura não só na coerência discursiva, como também na sintaxe e na semântica:

Não fui totalmente sincera.


Recebi outro cartão postal de Londres. Agora diz apenas: “What are men for?”.
Sem data.
Não consigo dizer não. Você consegue?
E a somatização, melhorou?
Insisto no sumário que você abandonou ao deus-dará: 1. bondade que humilha;
215
2. necessidade versus prazer; 3. filhinho; 4. prioridades; 5. what are men for.

Neste trecho, torna-se evidente a predileção por uma escrita fragmentária e as


imagens sucedem-se, num ritmo veloz, uma vez que “o artifício que irá transformar a
carta (...) em literatura passa necessariamente pelo corte da fluência, pela adoção de uma

212
Cf. MALUFE, Annita Costa, “Estratégias para uma Escrita do Segredo”, in AA. VV., Sereia de Papel:
Visões de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., pp. 56-57
213
BARTHES, Roland, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua (trad. António Gonçalves), Lisboa:
Edições 70, 1987, p. 51
214
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 48
215
Idem, p. 49
62
nova sintaxe criada a partir do trabalho com o corte”216. Júlia não mobiliza espaço para
que possa ouvir respostas e, pensadas em conjunto, as suas interrogações retóricas e as
restantes frases declarativas que constituem este excerto parecem algo desconexas. A este
respeito, Jean-Michel Adam afirmou que “[l]a séquence, unité constituante du texte, est
constituée de paquets de propositions (les macro-propositions), elles-mêmes constituées
de n propositions”217 e lança uma ressalva: “[l]a cohérence n’est pas une propriété
linguistique des énoncés, mais le produit d’une activité interprétative”218, daí a
importância do exercício levado a cabo pelo leitor, pois, o que aqui se visa esteticamente
é “a desorganização anárquica do universo”219, que pode constituir uma armadilha para o
recetor do texto.
Verifica-se, igualmente, um entrecruzamento de estilhaços de conversas, Júlia
representa várias posições num diálogo feito a uma única voz, diretamente: ora é
enunciadora, ora é enunciatária. Estes fragmentos “não podem existir isoladamente, (…)
são apenas ondas da corrente lírica”220, como propôs Emil Staiger. Indo ao encontro da
posição de Ítalo Moriconi, destaco, neste contexto, que “do ponto de vista da linguagem,
a poesia contemporânea nutre-se, atrita-se e faz experimentações com a prosa da fala”221,
como se pode atestar no trecho poético supratranscrito.
Nos momentos que precedem o final do poema epistolar, o sujeito poético volta-se,
momentânea e claramente, para e sobre si mesmo, numa atitude de introspeção narcísica.
Doravante, o que a aparente prosa de matriz lírica perde em fulgor anímico, ganha em
tensão dramática. O ritmo poético oscila entre velocidade e quase estatismo, para dar
lugar à assumida melancolia e ao pathos do eu lírico, que “[p]ressupõe sempre uma
resistência – choque brusco ou simples apatia – que tenta romper com ímpeto”222. Júlia
lamenta-se, através de atos elocutórios expressivos: “A melancólica sou eu, insisto,

216
MALUFE, Annita Costa, “Estratégias para uma Escrita do Segredo”, in AA. VV., Sereia de Papel:
Visões de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., p. 77
217
ADAM, Jean-Michel, op. cit., p. 29
218
Idem, p. 22
219
BERNARD, Suzanne, apud TODOROV, Tzvetan, “A Poesia sem o Verso”, in Os Géneros do Discurso
(trad. Ana Mafalda Leite), op. cit., p. 124
220
STAIGER, Emil, op. cit., p. 42
221
MORICONI, Ítalo, “Nota do Editor”, in AA. VV., Sereia de Papel: Visões de Ana Cristina Cesar (org.
Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., p. 8
222
STAIGER, Emil, op. cit., p. 122
63
embora você desaprove sempre, sempre”223, “Não estou conseguindo explicar minha
ternura, minha ternura entende?”224, o que remete para um incumprimento da função
comunicativa da linguagem e compromete a possibilidade da catarse do sujeito.
Antes de se abandonar Correspondência Completa, note-se que não obstante este
poema ser, até certo ponto, metatextual, o leitor manter-se-á com interrogações em aberto:
porquê o jogo com a confissão poética possível e o desafio ao verso? Porquê a
dessacralização do verso rigorosamente medido? Porquê uma prosa lírica de cores
quotidianas? De novo, Ana Cristina Cesar furta-se a respostas objetivas, apenas revela
que “escrever cartas é mais misterioso do que se pensa”225 e fornece diretrizes de leitura,
aponta possíveis caminhos, mas não garante que o recetor não se perca devido a algum
hermetismo dos textos líricos.
Sinteticamente, poder-se-á realçar que “Ana Cristina enformou essas tensões entre
expressividade e rigor em micro-enredos, ficções biográficas e numa poesia-em-vozes,
de ritmo e foco intencionalmente deambulatórios”226. Assumidamente leitora de
Baudelaire, penso que a autora de Cenas de Abril lançou, com os seus poemas híbridos,
a mesma questão que o poeta francês e aplicou-a na sua metodologia criadora: “Quel est
celui de nous qui n’a pas (…) rêve le miracle d’une prose poétique, musicale, sans rythme
et sans rime, assez souple et assez heurtée pour s’adapter aux mouvements lyriques de
l’âme (…) aux soubresauts de la conscience?”227
Atente-se, agora e mais brevemente, em algumas questões metapoéticas ligadas ao
poema diarístico (que ganham, nas composições híbridas, uma maior área de discussão)
e leia-se o seguinte excerto:

Primeira noite decente. (…)


Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está sol, quem
escreve deixa um testemunho. (…) Joguei fora algumas coisas já escritas porque

223
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 48
224
Idem, p. 50
225
CESAR, Ana Cristina, “O Poeta é um Fingidor”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 202
226
SÜSSEKIND, Flora, “Hagiografias”, in AA. VV., Cuerpo, Experiencia y Subjetividades. Literatura
Brasileña Contemporânea, Rosario: Beatriz Viterbo, 2007, p. 47 [Consult. 12 Abr. 2015] Disponível em:
http://www.academia.edu/10397263/hagiografias
227
BAUDELAIRE, Charles, “A Arsène Houssaye”, in Petits Poèmes en Prose: Le Spleen de Paris, op. cit.,
pp. 31-32
64
não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora. Acredite se
puder. (…) Chega desse lero, Poesia virá quando puder. Por enquanto, Filho, é
isso aí apenas. (…) Lembra que o diário era alimento cotidiano? Que importa a
má fama depois que estamos mortos? Importa tanto que abri a lata de lixo: quero
de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você
sim. Da cama do hospital. A lesma quando passa deixa um rastro prateado.
228
Leiam se forem capazes.

Começo por recordar que Roland Barthes advertiu que o diário íntimo (essa
“[f]orma sem norma”229), enquanto género, foi abordado criticamente por Maurice
Blanchot – autor que, nas palavras do teórico francês, tomou o registo diarístico como
“modo angustiado de retardar a solidão fatal da escrita”230. Julgo ser precisamente esta a
perspetiva adotada pela poeta que chegou a salientar que existia “o diário, onde (...) podia
escrever [as suas] verdades (...) e havia a poesia, que era uma outra coisa (...). Até que
começaram a se aproximar os dois”231, de tal modo que pôde voltar “para o diário íntimo
[metamorfizado esteticamente], onde peg[ou] pé, localista, memorialista”232.
No poema de pendor diarístico supratranscrito, a narração e a descrição
concentram-se nas ânsias e nos temores do eu, o que aponta para a mescla da forma do
diário com o género lírico, e, consequentemente, para a seguinte formulação pessoana:
“[t]oda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. (...) [T]odas as coisas
oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é
incoerência e mutação”233. O interlocutor é enviado para um plano segundo de relevância,
visto que as urgências expressiva e descritiva do sujeito lírico acabam por suplantá-lo e a
tonalidade pesarosa do enunciador é colocada em destaque. A este propósito, concordo
com a perspetiva hegeliana de que a poesia lírica,

228
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 309
229
Idem, p. 149
230
BARTHES, Roland, Crítica e Verdade (trad. Madalena da Cruz Ferreira), Lisboa: Edições 70, 2007, p.
47
231
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 270
232
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 266
233
PESSOA, Fernando, “Notas Autobiográficas e de Autoagnose”, in Páginas Íntimas e de
Autointerpretação (pref. Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho), op. cit., p. 18
65
em alguns dos seus géneros, recorre também a uma representação minuciosa, quer
se limite a narrar, quer exprima sentimentos e considerações, quer observe, numa
progressão mais ou menos calma, uma unidade mais estrita, quer, enfim, sujeita
a paixões tumultuosas, exprima de maneira desordenada, representações e
sentimentos sem unidade aparente.234

Contrariamente ao que se verificou no poema citado antes, não se encontra um


vocativo inicial que convoque um tu recetor, alvo da confidência verosímil, todavia este
é solicitado de modo disperso ao longo de todo o texto poético – “Escrevo para você sim”,
admite o sujeito lírico. Talvez o esclarecimento quanto a esta opção poética surja se se
tiverem em conta as palavras da autora:

do ponto de vista de como nasce um texto, você, quando está escrevendo, o impulso
básico de você é mobilizar alguém, mas você não sabe direito quem é esse alguém.
235
Se você escreve uma carta, sabe. Se escreve um diário, você sabe menos .

Na senda desta posição crítica, recorde-se, também, que Ana Cristina Cesar acrescentou
que, ainda assim, quando se escreve sob o signo do diário, está a substituir-se “um
confidente (…). Então você vai escrever (…) para suprir esse interlocutor que está te
faltando”236. Mais uma vez, o que se coloca em causa não é a existência de um interlocutor
real, físico, mas antes a necessidade da escrita contínua como a vida. Pode forjar-se o
recetor, o ouvido confidente, não pode sobreviver-se sem a pílula da escrita, tomada aqui
em duas perspetivas condensadas: a da anestesia e a da eutanásia, pois, se por um lado
“quem escreve deixa testemunho” e se afasta da lei do esquecimento, por outro a decisão
pelo melhor testemunho a deixar não é simples e parece implicar doses de hesitação que
podem ser letais (“não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora”).
O eu lírico encara, então, a inevitabilidade da finitude humana e planeia a sua morte,
preocupando-se com o testemunho que pretende deixar, através da sua escrita, apesar de
isso parecer não o satisfazer: “Que importa a má fama depois que estamos mortos?”. A

234
HEGEL, G. W. Friedrich, op. cit., p. 544
235
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 258
236
Idem, p. 257
66
resposta é dada por si mesmo: “Importa tanto que abri a lata do lixo: quero outro
testemunho”, o que evidencia, seguindo a mundividência de Tiago Sousa Garcia, o
“desejo de reconstrução do self. (...) O self de Ana Cristina Cesar procura a eternidade na
memória (...) ‘Leiam se forem capazes’ (...) de me fazer eterna, é o que este texto parece
gritar”237, não obstante o facto de “le sujet d’énonciation, cessant d’être un sujet pratique,
tend à être un Je lyrique; le poème pieux n’a alors plus de fonction dans un contexte de
réalité”238, como defendeu Käte Hamburger.
Outro dos traços pertinentes, neste quadro, é a ideia de antropomorfização da
poesia, sugerida pelo uso da maiúscula inicial: “Poesia virá quando puder”; porém, a
espera contribui para o aumento da epifania dramática do sujeito poético, que se aproxima
do precipício da angústia e é, de novo, entregue ao seu pesar melancólico que parece não
cessar.
Não obstante, o facto de o enunciado evidenciar a presença de várias personagens
passivas, figurantes, para além da do sujeito lírico, possibilita também uma visão
prismática de dois espaços distintos, através do recurso a advérbios com valor locativo:
indiretamente, acede-se ao ambiente que transgride os limites do quarto de hospital onde
o eu poético se encontra e onde coloca a visão do recetor – “Lá fora está sol”. Por outro
lado, é “Da cama do hospital” que o eu lírico comunica com o universo exterior. Estes
são, na minha opinião, fragmentos poéticos que aludem ao binómio vida/morte, que se
define, a par da própria questão da concretização da escrita, como um dos alicerces
temáticos do texto poético. Coloco a tónica nesse mesmo binómio, para realçar a evasão
à intimidade, ainda que esta seja sugerida ao recetor dos textos. Torna-se talvez mais
difícil, neste poema e para um leitor com uma perceção pouco desenvolvida e automática,
a separação entre realidade e verosimilhança. Veja-se porquê: o poema apresenta a data
de “16 de outubro de 1983” e um recetor atento saberá que a poeta faleceu nesse mesmo
ano, treze dias depois. Para além disso, não só o caráter metatextual do poema aponta
para um eu poético que partilha a experiência da escrita e as suas problemáticas com Ana
Cristina Cesar, como ainda o registo diarístico faz soar a voz segredada típica da

237
GARCIA, Tiago Sousa, op. cit., p. 64
238
HAMBURGER, Käte, Logique des Genres Littéraires (pref. Gérard Genette), Paris: Seuil, 1986, p. 213
67
confissão.
Não obstante o discurso narcísico e o registo diarístico, talvez ainda mais propício
à intimidade do que o epistolar, a poeta furta-se, mais uma vez, a confissões plenas e
verdadeiras preferindo entregar-se às normas do “diário não diário” pleno de
inconfissões239. Sobre os seus poemas diarísticos, a autora de A Teus Pés referiu o
seguinte: “[a]qui não é um diário mesmo, de verdade, não é meu diário. Aqui é fingido,
inventado, certo? Não são realmente fatos da minha vida. É uma construção. (…) [Até
porque] a intimidade… não é comunicável literariamente”240. De novo, o pathos do leitor
acompanha o sofrimento do sujeito textual.
Não obstante o afastamento recorrente face a leituras biografistas, dos diários
ficcionados tão necessários à existência estética do eu quanto os “cadernos terapêuticos”
extraem-se moléculas de vida. Não as da melancólica experiência do sujeito poético, tão
pouco as da vida empírica da poeta, mas as da vida da própria poesia. Herberto Helder,
neste contexto, parece indicar uma perspetiva interpretativa possível: “o poema vitaliza a
vida, se a toca nalguns pontos. / O poema gera uma vida nesses pontos tocados / (…) Mas
tudo isto reproduz (...) uma montagem”.241
Realço, por último, a questão que a poeta colocou a Cecilia Londres: “Será que isso
funciona como literatura [ou, mais especificamente, poesia]? (...) A lit. parece ser um
lugar de dizer COM OUSADIA que eu não teria na ‘vida real’”242. Tendo em conta os
aspetos que procurei enfatizar, penso ser evidente uma resposta afirmativa. Há, na poesia
de Ana Cristina Cesar, uma presença recorrente de textos líricos em prosa, que
evidenciam um género de matriz híbrida, quer pela sua estrutura formal, quer pela sua
temática e o exercício de infração dos limites genológicos, formais e da plasticidade
sintática e semântica permite interrogar os objetivos e as funções do recurso ao
hibridismo. A este respeito, termino este subcapítulo sustentando o meu ponto de vista na
posição de Piotr Salwa243, com quem concordo: o hibridismo, neste âmbito particular,

239
Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 149
240
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 259
241
HELDER, Herberto, Photomaton & Vox, Porto: Porto Editora, 2015, p. 139
242
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 186
243
Cf. SALWA, Piotr, “Umberto Eco: Texte Hybride, Narration, Rhizomatique, Ironie”, in AA. VV., Le
Texte Hybride (coord. Dominique Budor et Walter Geerts), op. cit., p. 55
68
pode desvelar não apenas o gosto pela transgressão e pela renovação de formais
tradicionais, bem como um jogo com a austeridade poética e social do regime ditatorial
vigente ainda na década de 70, no Brasil, e a própria personalidade estética diferenciadora
da poeta.

2.3. Do fingimento à antropofagia

Conforme procurei demonstrar anteriormente, a “proesia” (adotando a noção de


Haroldo de Campos244) de Ana Cristina Cesar é pautada por diversas técnicas
compositivas de entre as quais se destacam mais facilmente a mimetização de fragmentos
dialógicos e de episódios mundanos, onde a narração de eventos quotidianos toma relevo,
e o recurso a um registo de matriz coloquial e algo oralizante. Estes traços adjuvam a
potenciação da intenção de real que os poemas pretendem visar, que se correlaciona, ainda
que por contraposição, com o topos do fingimento poético, que remete para a estética
pessoana. Nos textos híbridos da poeta, julgo que esse impulso de simulação é levado ao
seu limite máximo, o que não invalida, de todo, que nos poemas onde o verso se encontra
delineado este efeito não esteja também presente.
Faço um breve aparte, para realçar que não me deterei longamente nessa questão
per se, por já a ter abordado antes e por optar mencioná-la como estágio de um processo
de cisão e crise identitárias que pode conduzir, a meu ver, não só à fragmentação do
sujeito como ainda à antropofagia textual.
Veja-se o poema “Soneto”, que, mais do que implicar e adotar ativamente o
mecanismo do fingimento, expõe uma reflexão sobre ele:

Pergunto aqui se sou louca


Quem quem saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar

244
CAMPOS, Haroldo de, apud MORICONI, Ítalo, “Nota do Editor”, in AA. VV., Sereia de Papel: Visões
de Ana Cristina Cesar (org. Álvaro Faleiros, Roberto Zular e Viviana Bosi), op. cit., p. 7
69
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores


Quem é a loura donzela
Que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém


É um fenômeno mor
245
Ou é um lapso sutil?

Considere-se o facto de o poema ser construído com base em interrogações de


índole retórica (ora claramente indicadas, ora indiretas) relativas ao próprio sujeito, que
se assume como a figura central do texto poético. Tal facto pode evidenciar, de novo, a
ânsia de interlocução por parte do eu lírico e, por consequência, o “impulso de mobilizar
alguém ainda que esse ‘alguém’ não tenha uma génese específica e definida”246. Arrisco
afirmar que, aqui, importa mais a hipotética existência dessa figura, do que a sua
concretude.
Para além desta peculiaridade, o poema encontra-se perpassado pela questão da
dissimulação lírica e pode acometer os preconceitos automatizados do recetor, dado que,
como frisou Marcos Siscar, a “poesia de Ana C. é provocante ao decepcionar ou
interromper uma expectativa”247 interpretativa linear. Assim, o eu lírico parece recuperar,
desde o início, a questão da dificuldade que um qualquer leitor desinformado terá em
identificá-lo: “Pergunto aqui se sou louca / Quem quem saberá dizer / (...) ainda mais se
sou eu”, pode ler-se na primeira quadra. A iteração propositada do pronome interrogativo
parece-me contribuir para enfatizar a impossibilidade de reconhecer a poeta, enquanto
entidade empírica, no enunciado estético, uma vez que, como defendeu T. S. Eliot, o
“mundo de um grande (...) [autor] é um mundo em que o criador está presente em toda a

245
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 151
246
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 258
247
SISCAR, Marcos, op. cit., p. 25
70
parte, e em toda a parte oculto”248. Esta conceção pode, também, conduzir ao postulado
barthesiano da “morte do autor”, pois não deve deixar de considerar-se que o exercício
da escrita é “destruição de toda a voz, de toda a origem. A escrita é esse neutro, esse
compósito, esse oblíquo para onde foge o nosso sujeito, o preto-e-branco aonde vem
perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve249. Assim,
a partir do momento em que, hipoteticamente, o autor empírico se transfere para o seu
texto, a escrita literária filtra a sua existência enquanto tal e metamorfoseia-o em autor
textual apenas, criando uma barreira exegética entre o emissor e o recetor da mensagem
poética.
Mantendo-me nesta linha de raciocínio, não obstante avançando um pouco e
aludindo à terminologia adotada por T. S. Eliot no ensaio “As Três Vozes da Poesia”,
note-se que, neste poema, apenas se pode encontrar a terceira voz da poesia, a saber: a
“voz do poeta quando ele procura criar uma personagem dramática falando em verso;
quando ele diz, não aquilo que pessoalmente nos diria, mas aquilo que lhe é possível dizer
dentro dos limites de uma personagem imaginária”250. A este propósito, recorde-se que
Ana Cristina Cesar, num tom bem humorado, afiança que “quando você lê um texto, você
pode cair que nem um patinho também”251 – constata-se, de novo, a fragilidade dos
conceitos de verdade e de confissão íntima, no domínio lírico.
Muito embora o primeiro verso da segunda quadra apresente uma conexão com o
último da primeira estrofe, devido ao encavalgamento, os restantes três versos, mais do
que contribuírem para a comunicação e explicitação das hesitações do sujeito poético,
evidenciam a relação antropofágica que o soneto de Ana Cristina Cesar mantém com
“Autopsicografia” 252, de Fernando Pessoa, o que comprova que um enunciado textual
não é um objeto individual e isolado, mas sim um “tecido de citações, saídas dos mil focos

248
ELIOT, T. S., “As três vozes da poesia”, in Ensaios de Doutrina Crítica (trad. Francisco de Melo
Mosrer), Lisboa: Guimarães Editores, 1997, p. 118
249
BARTHES, Roland, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua (trad. António Gonçalves), op. cit., p.
49
250
ELIOT, T. S., “As três vozes da poesia”, in Ensaios de Doutrina Crítica (trad. Francisco de Melo
Mosrer), op. cit., p. 97
251
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 263
252
PESSOA, Fernando, Poesia de Fernando Pessoa (sel. Adolfo Casais Monteiro), Lisboa: Presença, 2006,
p. 80
71
da cultura”253, pois todos “os textos se situam num universo preexistente de textos, seja
essa a sua intenção ou não”254, conforme salientaram Roland Barthes e Karlheinz Stierle,
respetivamente.
Sublinho, desde já, que a antropofagia praticada pela poeta nem sempre é notada,
de forma explícita, nos textos líricos, o que contribui para assegurar a complexidade da
sua produção estética. Mais do que um trabalho de citação, denunciado através da
colocação de aspas, Ana Cristina Cesar parece dar, também, um papel de relevo às
incorporações diretas sem qualquer indicação gráfica, às paráfrases, alusões e
reformulações de trechos que rouba, sem qualquer temor, aos autores que leu e que a
influenciaram, de algum modo. Neste contexto, recordem-se as palavras de Antoine
Compagnon que sublinhou que “[é]crire, car c’est toujours récrire, ne diffère pas de citer.
La citation, grâce à la confusion métonymique à laquelle elle préside, est lecture et
écriture”255.
Preservando esta linha de pensamento, a conceção de Marjorie Perloff parece poder
complementar a cosmovisão do último autor referido: para a ensaísta, fenómenos como
os de apropriação, citação, cópia e reprodução revelaram-se mecanismos profícuos para
a criação artística, ao longo de várias décadas256, apesar de contribuírem para o dissipar
da aura das obras que são alvo desses processos de mimetização257. Veja-se, ainda que,
num outro ensaio, a supracitada autora realça a mundividência de Haroldo de Campos,
que, a meu ver, vai ao encontro da do crítico francês que destaquei; para o autor brasileiro,
escrever, nos nossos dias, tem que ver cada vez mais com o processo de reescrita258, pois
nenhum texto é composto a partir do zero.
Abro um outro parêntesis para debater um pouco o conceito de antropofagia que se

253
BARTHES, Roland, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua (trad. António Gonçalves), op. cit., p.
52
254
STIERLE, Karlheinz, op. cit., p. 41
255
COMPAGNON, Antoine, La Seconde Main ou le Travail de la Citation, Paris: Seuil, 1979, p. 34
256
Cf. PERLOFF, Marjorie, “Unoriginal Genius: an Introduction”, in Unoriginal Genius: Poetry by Other
Means in the New Century, Chicago: The University of Chicago Press, 2010, p. 23
257
Para uma abordagem mais abrangente desta questão, cf. BENJAMIN, Walter, “A Obra de Arte na Era
da sua Reprodutibilidade Técnica”, in Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política (int. T.W. Adorno),
Lisboa: Relógio D’Água, 2012, pp. 58-95.
258
Cf. CAMPOS, Haroldo de, apud PERLOFF, Marjorie, “From Avant-Garde to Digital: The Legacy of
Brazilian Concret Poetry”, in Unoriginal Genius: Poetry by Other Means in the New Century, op. cit., p.
69
72
encontra metaforicamente ligado à poesia. Aponte-se que Maria Candida Ferreira de
Almeida enfatizou que, tratando de uma temática como esta, torna-se pertinente
considerar a duplicidade que determinados críticos têm por inerente à supranomeada
noção: alguns consideram o termo “canibalismo” como equivalente da ação de se
alimentar de carne humana, enquanto outros empregam a noção de “antropofagia”,
quando pretendem referir-se à componente ritualística dessa mesma ação.259
Na esfera socioideológica indígena, os ritos canibais implicavam a crença na
possibilidade da incorporação dos atributos dos inimigos capturados em combate, através
da deglutição dos seus corpos260 – aspetos que foram registados aquando do movimento
de colonização do país, por ocidentais, que, por não terem essa cultura, estranharam a
forma de vida dos índios261 e tentaram impor-lhes a sua. No meu ponto de vista e adotando
as palavras de Silviano Santiago, desta forma a América acabou por transformar-se em
“cópia, simulacro que se quer[ia] mais e mais semelhante ao original, quando sua
originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua origem,
apagada completamente pelos conquistadores”262. Nesta confluência o autor foi mais
longe e apontou que o maior dos contributos que a América Latina cedeu à cultura
ocidental proveio da aniquilação das noções de “unidade” e de “pureza”, noções essas
que perderam não somente a sua significação exata, como o seu peso, o seu sinal de
superioridade cultural, aquando da afirmação gradual do trabalho de contaminação dos
latino-americanos263. Deste modo e reafirmando a posição de Maria Candida Ferreira de
Almeida, o canibal é tido como sujeito regenerador, social e coletivo264. Tal análise
aproxima-se, a meu ver, da seguinte premissa de Caetano Veloso: a “antropofagia, vista

259
Cf. ALMEIDA, Maria Candida Ferreira de, “Só a antropofagia nos une”, in AA. VV., Cultura, Política
y Sociedad. Perspectivas Latino-Americanas, Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciencias
Sociales, 2005, p. 90 [Consult. 15 Mai. 2017] Disponível em:
http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/gt/20100912053709/cultura.pdf
260
Cf. KLANG, Helena, Antropofagia Digital: A Questão Autoral no Tempo do Compartilhamento, Rio
de Janeiro: UERJ, 2011. Dissertação de Mestrado, pp. 19-27
261
Cf. CAMINHA, Pero Vaz de, “Carta de Pero Vaz de Caminha”, in AA. VV., As Viagens dos
Descobrimentos (pref. José Manuel Garcia), Lisboa: Presença, 1983, pp. 239-263.
262
SANTIAGO, Silviano, “O Entre-Lugar do Discurso Latino-Americano”, in Uma Literatura nos
Trópicos: Ensaios sobre Dependência Cultural, op. cit., p. 14
263
Cf. Idem, p. 16
264
Cf. ALMEIDA, Maria Candida Ferreira de, art. cit., p. 84
73
em seus termos precisos, é um modo de radicalizar a exigência de identidade (e de
excelência na fatura) não um drible da questão”265.
Avançando um pouco, atente-se no facto de o conceito de antropofagia ter escapado
a um “circunscrito significado no campo da etnologia ou da antropologia cultural de raízes
históricas, tendo sido [também] importante o seu significado especificamente verbal ou
textual”266, como demonstrou Joana Matos Frias. Graças nomeadamente aos trabalhos de
Oswald de Andrade, a noção de antropofagia tornou-se mais porosa, plástica e,
consequentemente, adaptável ao panorama literário, concretamente nos parâmetros que
respeitam ao fenómeno intertextual (tão caro à produção estética de Ana Cristina Cesar,
que afirmou que cada “texto poético está entremeado com outros textos poéticos. Ele não
está sozinho. É uma rede sem fim”267). O autor de Serafim Ponte Grande, ao

cunhar o conceito de antropofagia como estratégia para a discussão da cultura e


do poder, formulou uma audaz abstração da realidade, propondo a “reabilitação
do primitivo” no homem civilizado, dando ênfase ao mau selvagem, devorador
da cultura alheia transformando-a em própria, desestruturando oposições
dicotômicas como colonizador/colonizado, civilizado/bárbaro,
268
natureza/tecnologia.

Com esta perspetiva de reinterpretação não pejorativa da antropofagia e de


valorização do “mau selvagem” enquanto ser regenerador e criativo, Oswald de Andrade
sublinhou, no Manifesto Antropófago, que só “a Antropofagia nos une (...) [pois só lhe]
interessa o que não é [seu]. Lei do Homem. Lei do Antropófago”269 – preceito este que,
quando aplicado à literatura, visa o destaque dado pelo autor à intertextualidade e, no seu
caso peculiar, aos processos parodísticos de fragmentos de obras que, recorrentemente,

265
VELOSO, Caetano, “Antropofagia”, in Verdade Tropical, Vila Nova de Famalicão: Quasi, 2003, p. 201
266
FRIAS, Joana Matos, “Vamos Comer Oswald?: Processos de Devoração na Poesia Brasileira
Contemporânea”, in AA. VV., Estudos de Literatura Brasileira em Portugal: Travessias, Santa Maria da
Feira: Afrontamento, 2017, p. 103
267
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 267
268
ALMEIDA, Maria Candida Ferreira de, art. cit., p. 84
269
ANDRADE, Oswald de, “Manifesto Antropófago”, in A Utopia Antropofágica, São Paulo: Globo, 1990,
p. 47
74
desconstruía para, de seguida, construir com eles algo novo270, até porque a sua proposta
preconizava a transmutação do “tabu” em “totem”, isto é, o estabelecimento da
modernidade no desafio constante da tradição, segundo Ida Alves271.
Sobre o mesmo Manifesto, não deixo de frisar a análise de Haroldo de Campos: o
povo brasileiro deveria “assimilar sob [a sua] espécie (...) a experiência estrangeira e
reinventá-la em termos [seus], com qualidades locais ineludíveis”272, fornecendo-lhe
traços nacionais que a transmutassem e lhe proporcionassem uma cor local. Num outro
ensaio, o autor reafirmou a sua cosmovisão acrescentando que a antropofagia “oswaldiana
(...) é o pensamento da devoração crítica do legado cultural e universal, elaborado não a
partir da perspetiva submissa e reconciliada do ‘bom selvagem’ (...), mas segundo o ponto
de vista desabusado do ‘mau selvagem’”273. Nesta linha crítica, junto a esta reflexão as
palavras de Raúl Antelo, que me parecem pertinentes para a consolidação da visão da
antropofagia enquanto conceito criativo e criador, capaz de propiciar o surgimento da
novidade que se quer exaltada: a “antropofagia não devora corpos; ela produz corpos.
Quem devora carne é o canibalismo”274.
Reposicionando a noção no domínio poético, penso ser precisamente esta a posição
de Ana Cristina Cesar, quando recorre aos fenómenos que cunhou como “vampirismo” e
“ladroagem”, para elaborar os seus textos poéticos. No que concerne a este aspeto, não
deixe de resgatar-se a análise de Julia Kristeva que creio completar e sustentar o que
acabo de destacar: “[t]he notion of intertextuality replaces that of intersubjectivity, and
poetic language is read as at least double”275.

270
Veja-se, a título de exemplo, o modo como se manifesta esse processo criativo na obra Pau-Brasil. Cf.
ANDRADE, Oswald de, Pau-Brasil, São Paulo: Globo, 1991
271
ALVES, Ida, “A Poesia de Waly Salomão: Antropofagia, Hibridismo e Polifonia”, Todas as Musas, São
Paulo: Editora Todas as Musas. Nº 01 (Jun-Dez 2015) p. 17 [Consult. 19 Mai. 2017] Disponível em:
http://www.todasasmusas.org/13Ida_Alves.pdf
272
CAMPOS, Haroldo de, apud VELOSO, Caetano, op. cit., p. 200
273
CAMPOS, Haroldo de, “Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira”, in
Metalinguagem e Outras Metas, São Paulo: Perspetiva, 2006, p. 234
274
ANTELO, Raúl, apud FRIAS, Joana Matos, “Vamos Comer Oswald?: Processos de Devoração na
Poesia Brasileira Contemporânea”, in AA. VV., Estudos de Literatura Brasileira em Portugal: Travessias,
op. cit., p. 104
275
KRISTEVA, Julia, apud ALLEN, Graham, Intertextuality, London and New York: Routledge, 2000, p.
41
75
Retornando ao poema em destaque, contudo não perdendo este enquadramento, não
se descure o facto de a própria poeta ter admitido, aludindo à teorização pessoana do
fingimento poético, que a "limpidez da sinceridade nos engana, como engana a superfície
tranquila do eu”276, que, no seu caso específico bem como no do autor de Mensagem,
“[f]inge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”277.
Na senda desta argumentação, note-se que, muito embora o nome de Fernando
Pessoa não conste no índice onomástico elaborado pela poeta carioca, sabe-se que esta
era sua leitora e o pensamento pessoano influenciou-a de tal forma que Ana Cristina Cesar
assumiu esse estreito contacto, em alguns dos seus poemas, ora evidentemente, ora de
modo mais subtil: recorde-se o dístico “a gente sempre acha que é / Fernando Pessoa”278,
que impele a uma tipologia, no mínimo, dupla de leitura: por um lado, verifica-se a
hipótese de o sujeito poético se identificar com a estética criadora pessoana, de tal forma
que a devora para a tomar como sua e a parafrasear (nutrindo-se “das tetas dos poetas
pensados no [s]eu seio”279), todavia, por outro, assoma a possibilidade de o eu lírico estar
a referir-se à alteridade inerente à multiplicidade de entidades autorais que integram a
obra de Fernando Pessoa. A este propósito, recuperem-se as palavras de Heloisa Buarque
de Hollanda para destacar que Ana Cristina Cesar, enquanto autora empírica, assumia e
encenava várias personagens280 – a própria aponta para este mesmo impulso teatral em
versos como “amo em ti os outros rostos”281. Assim e ainda que esta multiplicidade do
ego se materialize mais visivelmente na vida quotidiana do que na existência estética, é
clara a afetação pessoana, até porque como defendeu Harold Bloom, ser influenciado por
algum autor é ser-se, também, ensinado por ele, é apreender noções e metodologias
estéticas através de uma relação indireta, porque mediada pela literatura, mas próxima282.
Esta conexão com Pessoa não se limita, de todo, à apropriação e reinterpretação do

276
CESAR, Ana Cristina, “O Poeta é um Fingidor”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 202
277
PESSOA, Fernando, Poesia de Fernando Pessoa (sel. Adolfo Casais Monteiro), op. cit., p. 80
278
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 243
279
Idem, p. 206
280
Cf. Bruta Aventura em Versos [Registo vídeo]. Direção de Letícia Simões. Brasil: Artezanato Eletrônico,
Matizar, 2011. (ca. 76 min), min. 48:24-49:01
281
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 271
282
Cf. BLOOM, Harold, “Literary Love”, in The Anatomy of Influence: Literature as a Way of Life, New
Haven: Yale University Press, 2011, p. 10
76
conceito de fingimento inerente ao soneto e ao dístico mencionados. No poema “Final de
uma Ode” (que, logo através do seu título, deixa entrever o jogo genológico estabelecido
pela poeta), o sujeito poético alude à problemática da heteronímia, que, neste quadro
concreto, pode constituir um foco de salvação para o eu melancólico e pode, também,
adjuvar o aumento da sua melancolia. No trilho desta afirmação, não obstante indo um
pouco mais além, esse sujeito fragmentário parece reclamar para si a mesma
particularidade que Walt Whitman realçou: “Do I contradict myself? / Very well then I
contradict myself. / (I am large, I contain multitudes.)283. Para além deste aspeto, esse
desejo de “ser outros” pode conduzir à problemática da antropofagia, pois tem a
agregação de fragmentos de outros corpos como hipótese para a instituição de uma nova
identidade do eu lírico dolente.
Leia-se um excerto do poema:

ai que outra dor súbita, ai que estranheza e que lusitano torpor me atira de braços
abertos sobre as ripas do cais ou do palco ou do quartinho. Quisera dividir o corpo
284
em heterônimos – medito aqui no chão, imóvel tóxico do tempo.

Julgo ser notório o facto de a poeta desejar, também ela, através do sujeito lírico,
distribuir-se por várias entidades, como se, parafraseando Sá de Miranda, consigo se
tivesse desavindo e fosse, por isso mesmo, posta em perigo285. Neste contexto, atente-se
que na incontornável carta relativa à origem dos seus heterónimos286, Fernando Pessoa
referiu que essa génese tinha que ver, profundamente, com a doença que o afetava:
“Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo de histeria
que existe em mim. Não sei se sou histérico, se sou (…) um histero-neurasténico”287 e
destacou, ainda, que “[s]eja como for, a origem mental dos [s]eus heterónimos est[ava]

283
WHITMAN, Walt, Song of Myself (trad. José Agostinho Baptista), Lisboa: Assírio & Alvim, 2003, p.
146
284
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 21
285
Cf. MIRANDA, Francisco Sá de, Obras Completas, Lisboa: Sá da Costa, 1960, p. 8
286
Para uma reflexão mais abrangente acerca desta missiva pessoana, cf. URIBE, Jorge, “Autoria, Evolução
e Sentido: Apontamentos para uma releitura da ‘Carta sobre a Génese dos Heterónimos’”, Estranhar
Pessoa, Lisboa: [S.n.]. Nº 3 (2016), pp. 23-44. [Consult. 25 jul. 2017] Disponível em:
https://static1.squarespace.com/static/51d2b64ae4b0a433e9c0c726/t/58ec8d2ebebafbc65d80ee9a/149189
7650948/Revista+Estranhar+Pessoa+n3.pdf
287
PESSOA, Fernando, “Carta de Fernando Pessoa sobre a Génese dos Heterónimos”, in Poesia de
Fernando Pessoa (sel. Adolfo Casais Monteiro), op. cit., pp. 205-206
77
na [sua] tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação”288.
Creio ser esta mesma tendência que está na base do desejo da divisão do corpo do eu
poético de “Final de uma Ode”. Não se descure, a este respeito, a conceção de melancolia
enquanto enfermidade, que contribui para o estreitar da ligação da mundividência patente
no poema com a perspetiva exposta pelo poeta português. A propósito desta dispersão do
eu, recorde-se que Tiago Sousa Garcia enfatizou que as referências a

Fernando Pessoa (...) e (...) a Álvaro de Campos (...), fazem de ‘Final de uma ode’
um poema que busca a libertação do self de si próprio através da multiplicação do
ser; o sujeito busca a divisão heteronímica, mas essa divisão falhou289,

pois a melancolia do sujeito não se dissipa, prevalecendo o estatismo do eu – “medito


aqui no chão, imóvel tóxico do tempo”.
Retomo a segunda estrofe do soneto para realçar que, muito embora se verifiquem
marcas do palimpsesto, o trabalho intertextual esboçado pela poeta não se prende tanto
com a paródia assumida ou com o processo criativo dos poemas-piada de Oswald de
Andrade, mas sim com a paráfrase, adotando a conceção de Affonso Romano de
Sant’Anna, muito embora esses dois conceitos se apresentem em tensão. Isto é, o soneto
da autora de A Teus Pés não instaura uma rutura contundente que gera uma
descontinuidade com “Autopsicografia”, privilegia antes uma continuidade, ainda que
transmutada graças à antropofagia textual e à consequente paráfrase que daí advém. No
trecho “E finjo fingir que finjo / Adorar o fingimento / Fingindo que sou fingida” ainda
é, de certo modo, reconhecível facilmente o poema que operou enquanto alicerce.
No que concerne ao mecanismo da paráfrase, o supracitado autor frisa que este se
faz notar quando “o deslocamento é mínimo e ocorre uma técnica de citação e
transcriação direta”290, como penso acontecer no poema em análise. Outro dos traços que
pode contribuir para a exclusão da hipótese de este ser um trabalho poético de matriz
parodística tem que ver com a preservação da métrica: tal como no terceto pessoano,
também o soneto de Ana Cristina Cesar se constrói com base em redondilhas maiores –

288
Idem, p. 206
289
GARCIA, Tiago Sousa, op. cit., p. 59
290
SANT’ANNA, Affonso Romano de, op. cit., p. 24
78
métrica que aponta para o registo popular e que pode remeter para a ligação que a poeta
pretendia estabelecer com o seu interlocutor, ainda que esta se baseasse num jogo de
ocultamento e de ficção.
Volto um pouco atrás para realçar que a “paráfrase, repousando sobre o idêntico e
o semelhante (...) [oculta-se] atrás de algo já estabelecido, de um velho paradigma”291,
conforme recordou Affonso Romano de Sant’Anna e como penso ser observável quando
se analisa criticamente o soneto.
As duas últimas estrofes do poema retomam a questão do fingimento poético e da
decorrente evasão da autora empírica que se encobre no enunciado, porém a interrogação
final suspende qualquer possibilidade que restasse de identificação da poeta, uma vez que
a perspetiva poética da autora de Correspondência Completa vai, a meu ver, ao encontro
do seguinte postulado de Rimbaud: “Je est un autre”292, ou seja, não é, de todo, “o autor,
que nos [entrega] a sua confidência”293, mas sim uma personalidade fictícia por ele
elaborada.
Com o seu impulso intertextual criador, Ana Cristina Cesar comprova que, para si,
“a antropofagia é um modo de ser poeta (...). Nada se estabelece, nada se apresenta
intocável, nada se conforma”294, tudo é fusão e experimentação estética.

291
Idem, pp. 27-28
292
RIMBAUD, Arthur, “Rimbaud à Georges Izambard – Charleville, [13] mai 1871”, in Œuvres
Complètes, op. cit., p. 249
293
BARTHES, Roland, “A Morte do Autor”, in O Rumor da Língua (trad. António Gonçalves), op. cit., p.
50
294
ALVES, Ida, art. cit., p. 29
79
Capítulo 3. – Os “raros ritmos curtos”

3.1. Da referência intermedial à ekphrasis musical

O estudo da relação entre poesia e música não constitui um ramo de investigação


recente e obscuro: a história literária tem evidenciado a existência de um amplo diálogo
estabelecido entre estas duas formas artísticas distintas, embora próximas na sua
génese295. “[P]oésie et musique étaient indissolubles, ne faisaient même qu’un aux
premiers âges de l’humanité”296, apontou A. I. Trannoy. Porém, Aristóteles salientou uma
divergência estruturante entre as diversas formas de arte: “tal como há os que imitam
muitas coisas, exprimindo-se com cores e figuras (...) [as restantes formas artísticas]
imitam com o ritmo, a linguagem e a harmonia, usando estes elementos separada ou
conjuntamente.”297
Nesta perspetiva, recorde-se, agora, o posicionamento crítico de Étienne Souriau,
que defendeu que não se pode pensar em imitação, num sentido restrito, entre objetos
provenientes de sistemas estéticos diferentes. Na sua conceção, torna-se mais produtivo
colocar em destaque conceitos como os de comparatismo e correspondência, não
deixando, todavia, de realçar o seu interesse pela transformação (inerente ao âmbito da
mimese) que ocorre aquando da tentativa de transposição de um objeto artístico
pertencente a um sistema estético para outro. No caso específico da relação intermedial
que pretendo abordar neste ponto teórico, Souriau afiançou que “la musique et le poème
(...) se correspondent, non par calque l’une sur l’autre, mais comme faisant écho à un
même univers que l’une et l’autre posent”.298 Pense-se, como exemplo, na poesia lírica
greco-latina, que visava a declamação poética levada a cabo por um aedo, que seria
acompanhada pela melodia da lira, ou, no âmbito ibérico, na lírica trovadoresca galego-
portuguesa, que recorria a composições musicais, de forma idêntica. Não se olvide,

295
Como exemplo teórico, considere-se a perspetiva de Siglind Bruhn. Cf. BRUHN, Siglind, “Literature
and Painting as Music, or like Music”, in Musical Ekphrasis: Composers Responding to Poetry and
Painting, Hillsdale: Pendragon Press, 2000, pp. 82-83
296
TRANNOY, A. I., “La Musique des Vers”, in La Musique des Vers, Paris: Librairie Delagrave, 1929,
p. 27
297
ARISTÓTELES, Poética (trad. Eudoro de Sousa), op. cit., p. 103
298
SOURIAU, Étienne, “Musique et Littérature comme Arts Complémentaires”, in La Correspondance
des Arts: Éléments d’Esthétique Comparée, Paris: Flammarion, 1969, p. 165
80
também, a pronúncia da língua latina, que se regia por um mecanismo de oposição
quantitativa de sílabas breves e longas, o que imprimia um ritmo peculiar a cada palavra.
A este propósito, Manuel Pedro Ferreira enfatizou que “a poesia nasce cantada; num
primeiro momento, é uma criação mais vocal que literária, em sentido estrito”299 e
acrescentou que “a poesia é música não só como melodia, quando a tenha, mas também
como palavra modulada no tempo, ou seja, como ritmo”300, pois, como alertou A. I.
Trannoy, o ritmo é um elemento essencial quer no âmbito musical, quer no poético e tem
que ver precisamente com uma sequenciação de tempos fortes que se intercalam com
tempos fracos e pausas301.
Assim, esta relação intermedial assume-se tão antiga quanto o pensamento estético
humano, visto que, como sublinhou Hegel, “ambas utilizam o mesmo elemento sensível,
quer dizer o som”302, muito embora o façam de modos diversos: a “diferença entre o
emprego musical e o emprego poético dos sons consiste em que a música, em vez de se
servir do som para formar palavras, faz do próprio som o seu elemento e trata-o como a
um fim”303, a priori. Deste modo, o valor do som enquanto unidade estrutural mínima
numa composição musical difere do valor do som como elemento base do plano acústico
da linguagem verbal. Nesta perspetiva, também Gastão Cruz sublinhou que a “dinâmica
do som é imperativa e condiciona o sentido, ou, mais exatamente, aquilo que criado o
texto, não poderá ser subtraído à fluidez unificadora do todo”304. Então, tanto na
linguagem quotidiana quanto na estética, esses dois componentes sígnicos operam
conjuntamente, num sistema de correlação, pois, citando as palavras de Roman Jakobson,
“[l]a poésie (…) [est] une province où le lien entre son et sens de latent, devient patent,
et se manifeste de la manière la plus palpable et la plus intense”305.
Junte-se à discussão o ponto de vista de Émile Benveniste, que complementa o que

299
FERREIRA, Manuel Pedro, “A Conjunção de Música e Poesia na Península Ibérica, da Idade Média ao
Renascimento”, in AA. VV., Concerto das Artes, Porto: Campo das Letras, 2007, p. 430
300
Idem, ibidem
301
Cf. TRANNOY, A. I., “Le Rythme”, in op. cit., p. 53
302
HEGEL, G. W. Friedrich, op. cit., p. 497
303
Idem, p. 498
304
CRUZ, Gastão, “Música de Som e Sentido”, Relâmpago: Revista de Poesia, Lisboa: Fundação Luís
Miguel Nava e Relógio D’Água Editores. Nº 19 (2006), p. 139
305
JAKOBSON, Roman, “Linguistique et Poétique”, in Essais de Linguistique Générale (trad. Nicolas
Ruwet), op. cit., p. 241
81
acabo de destacar: “[l]e signifiant n’est pas seulement une suite donnée de sons
qu’exigerait la nature parlée, vocale, de la langue, il est la forme sonore qui conditionne
et détermine le signifié, l’aspect formel de l’entité dite signe”306. Porém, de entre as duas
tipologias de linguagem ressaltadas, a linguagem poética é aquela que explora e testa, de
modo mais profundo e com propósitos sensíveis, as possibilidades sonoras e semânticas
das palavras, visto que aquilo que caracteriza o poema é “a sua necessária dependência
da palavra tanto como [a] sua luta para transcendê-la”307.
É no quadro desta longa relação interartística que pretendo demonstrar que a
produção poética de Ana Cristina Cesar (que se demarca “com nitidez da sua geração
abatida, combatida e combativa”308, como apontou Joana Matos Frias) é pautada e
influenciada por diversas referências a múltiplos intérpretes, compositores e até mesmo
géneros musicais, bem como quais os mecanismos selecionados para a criação estética e
quais as consequências que daqui advêm para duas esferas fundamentais: a da produção
poética e a da sua receção. O corpus de poemas selecionado para esta discussão remete
para o universo do Blues e do Jazz (géneros marcados pela entoação de temáticas
inerentes ao quotidiano e ao momento presente e pela sua matriz compositiva baseada na
improvisação309), muito embora as sugestões musicais fornecidas pela poeta extravasem
o universo destes estilos musicais, se se ler integralmente a sua obra.
Antes de partir para a análise do primeiro texto poético, parece-me pertinente
elaborar uma breve nota relativa aos dois estilos musicais supranomeados. Tomás Borba
e Fernando Lopes Graça definiram o Jazz enquanto “[d]esignação genérica de um tipo de
música popular de procedência (…) negro americana, que teve larga popularidade em
todo o mundo nos anos que se seguiram à primeira guerra mundial”310. Já o Blues, envolto
no pesar melódico, temático e performativo, é tido enquanto “curta composição

306
BENVENISTE, Émile, “La Forme et le Sens dans le Langage”, in Problèmes de Linguistique Générale,
Paris: Gallimard, 1974, p. 220
307
PAZ, Octavio, “A Consagração do Instante”, in Signos em Rotação (trad. Sebastião Uchoa Leite), São
Paulo: Perspetiva, 1976, p. 52
308
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
490
309
Para uma mais abordagem mais ampla da génese e afirmação deste género musical, cf. HARRIS, Rex,
Jazz, Lisboa: Ulisseia, 1952
310
BORBA, Tomás, GRAÇA, Fernando Lopes, “Jazz”, in Dicionário de Música, Lisboa: Cosmos, 1958,
vol. II, p. 43
82
tipicamente negra e na qual se exprime toda a nostalgia sofredora da raça escrava”311,
tendo por base os Spirituals negros. Robert Switzer aludiu à natureza polissémica deste
conceito (com uma vertente que aponta para o campo da melancolia que a palavra “blue”
transporta em si), não deixando de apelar à vertente musical: “[t]he blues is a feeling –
something out there, that can come upon you, that can come ‘falling down like rain’. The
blues is also music, striking for its simplicity, its power and its pervasiveness”312.
Graças ao estabelecimento e miscigenação dos negros em solo americano e à
resistência das suas tradições e da cultura nativas, o Jazz – essa “musique de pauvres gens,
et des plus misérables et discrédités d’entre eux”313 – começou a afirmar-se em várias
regiões, como Nova Orleães, Chicago ou Nova Iorque, nas últimas décadas do século
XIX. Enquanto este género musical prima pela predominância de uma peculiar
sincopação do ritmo não linear (ragtime), por uma batida característica, pela quase não
distinção entre criação e interpretação (que advém dos solos improvisados pelos
instrumentistas negros, peritos em diversificar os ataques das notas, no momento ideal,
em inflexões ou até mesmo vibratos específicos), pelo fragmentarismo ou até pela
polifonia inesperada314, o Blues parece contrastar, em parte, com o êxtase típico destas
estratégias rítmicas e composicionais assentes na explosão de sopros melódicos
provenientes dos diversos instrumentos integrantes das jazz-bands, que marcavam
presença nos mais variados clubes americanos, na viragem do século XIX para o século
XX. Este género que, na cosmovisão de Francis Newton, “n’est ny un style, ny une phase
du jazz, mais le support permanent de tous ses styles. Non pas le jazz dans sa totalité,
mais son âme”315, privilegia um ritmo desacelerado, a preferência pela utilização da blue
note, proporcionando a colocação da tónica não só na melodia, como ainda (e talvez mais
profundamente) na voz do intérprete e na mensagem de pendor quotidiano, individual e
melancólico que este entoa, revelando uma faceta tipicamente expressionista, de caráter

311
Idem, p. 44
312
SWITZER, Robert, “Signifying the Blues”, Alif: Journal of Comparative Poetics, [S.l.]: The Lyrical
Phenomenon. Nº 21 (2001), p. 25 [Consult. 19 Mai. 2016] Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/1350022?seq=1 - page_scan_tab_contents
313
NEWTON, Francis, Une Sociologie du Jazz, Paris: Flammarion, 1966, p. 200
314
Cf. BORBA, Tomás, GRAÇA, Fernando Lopes, “Jazz”, in op. cit., p. 44
315
NEWTON, Francis, op. cit., p. 88
83
testemunhal, deste género musical, marcada pelo “impulso lírico”316 de que falou Robert
Switzer.
Após este apontamento concernente aos dois géneros musicais em destaque, leia-
se “Este Livro”, que tomo como uma possível arte poética programática:

Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É


prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade
que você seduz, charmeur volante, pela pista, a toda. Enfie a
carapuça.
E cante.
Puro açúcar branco e blue.317

Começo por sublinhar que, como observou Alice Sant’Anna318, o poema tal qual o
transcrevi apresenta-se numa forma elítica. Na versão integrada em A Teus Pés, a poeta
optou por suprimir duas passagens que figuravam numa versão anterior e onde se
encontravam explícitas várias citações de partes da letra da canção intitulada “I Can’t
Give You Anything but My Love”, de Dorothy Fields e Jimmy McHugh, gravada por
múltiplos intérpretes de Jazz e de Blues como Billie Holiday ou Louis Armstrong.
Reduzindo a forma poética a um mínimo estruturante essencial, creio que a poeta
não só alarga o espetro referencial do poema que, doravante, não aponta unicamente para
uma peça musical, mas sim para o universo jazzístico na sua potencial totalidade, como
ainda clama a atenção para o signo textual e complexifica a tarefa de reconhecimento de
referências musicais, por parte do recetor; este, sem qualquer diretiva específica
fornecida, terá de, tendo por base uma “experiência individual e privada”319 (análoga à
que sustenta o processo de audição crítica da poeta), conseguir deduzir através não só da
natureza da mensagem e do ritmo sincopado, abrupto, que perpassa a composição poética,
como ainda da vertente acústica do poema a sua ligação ao universo musical.

316
SWITZER, Robert, art. cit., p. 25
317
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 96
318
Cf. SANT’ANNA, Alice, “Meios de Transporte”, [S.l.]: Instituto Moreira Salles. Nº 23 ½, (2016) [s.p.]
[Consult. 1 Jul. 2016] Disponível em: http://www.revistaserrote.com.br/2016/06/meios-de-transporte-por-
alice-santanna
319
VASCONCELOS, Vasco André Ribeiro de, Música, Fatalmente: Referências Musicais na Poesia de
Manuel de Freitas, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2010. Dissertação de Mestrado,
p. 59
84
Julgo ser evidente que a autora de Correspondência Completa optou pela fuga da
criação de um texto lírico que tivesse como matriz uma mera descrição ou uma
enumeração de quaisquer procedimentos técnicos do Jazz, preferindo aplicar os seus
conhecimentos enquanto ouvinte, como processo de escrita. Numa carta datada de 24 de
maio de 1977, a própria declarou que “[o]uvindo música nunca [se] concentr[a] só na
música, começ[a] a pensar”320 – o que denota a potencialidade de um cruzamento
produtivo entre a fruição auditiva da melodia e a posterior criação poético-estética.
A forte influência de noções compositivas do Jazz e do Blues é notória, se se atentar
na eleição de pontuação pouco exuberante, maioritariamente marcada pelo recurso à
utilização de pontos finais e de vírgulas, que opera como marcador do ritmo que a autora
imprimiu ao seu verso longo, fluido, porém de modo sequencial entrecortado, e que
auxilia o recetor a executar as pausas necessárias, dentro de cada compasso verbal. Neste
contexto, realce-se que, como equacionou Henri Meschonnic, o ritmo parece estar
sucessivamente a significar uma coisa e o seu contrário, isto é, a cadência do verso e a
sua rutura321. O poema sustenta-se, então, não apenas sob o programa estético que expõe
verbalmente, como também sobre a sua batida peculiar, proporcionando ao leitor a
experiência do acesso à musicalidade jazzística, através da palavra poética, disposta em
“orações curtas, lacunares, [que provocam] um efeito de aceleração no texto”322, dado
que na sua “dimension linguistique, le rythme est un régulateur perceptif, qui peut jouer
un rôle unique dans l’activité de contrainte du sens”323.
Os ouvidos de Ana Cristina Cesar, graças à sua convivência regular com a música
e ao seu envolvimento estético com ela, encontravam-se túrgidos de ritmos (como a
própria notou em “Três Cartas a Navarro”324), pelo que a transposição das modalidades
rítmicas para o exercício da escrita era, segundo a poeta, uma forma de obediência para

320
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 254
321
Cf. MESCHONNIC, Henri, “Rythme”, in AA.VV., Dictionnaire des Genres et Notions Littéraires, op.
cit., p. 703
322
MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, Campinas: [s.
n.], 2008. Tese de Doutoramento, p. 93 [Consult. 14 Jun. 2016] Disponível em:
http://repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/270291
323
BORDAS, Éric, “Le Rythme de la Prose”, Semen: Revue de Sémio-Linguistique des Textes et Discours,
[S.l.]: Presses universitaires de Franche-Comté. Nº 16 (2003), p. 3 [Consult. 25 Mai. 2017] Disponível em:
https://semen.revues.org/2660
324
Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 316
85
que os seus “tímpanos exaustos”325 deixassem o sujeito poético (sob o qual se resguardava
a sua entidade autoral) reproduzir o compasso sincopado, elítico que apreenderam
aquando da audição da “batida bop de Charlie Parker, Dizzy Gillespie e Thelonius Monk,
músicos que Ana ouvia com frequência”326, como sublinhou Joana Matos Frias e como a
poeta desvelou, também, nas suas missivas pessoais. Nesta confluência, recorde-se que
Henri Meschonnic relacionou o ritmo com a personalidade enunciadora de um
determinado discurso e advogou precisamente que “si le rythme est une organisation du
sens dans le discours, le rythme est (…) une organisation ou configuration du sujet dans
son discours”327, o que vai ao encontro do seguinte postulado de Éric Bordas: “[l]e rythme
découvre le sens de l’énoncé, et, partant, la trace du sujet de/dans cet énoncé”328.
As recorrentes frases curtas, assertivas, delimitadas pelos pontos finais e
entrecortadas por vírgulas – “Meu filho. Não é automatismo. Juro. É jazz do coração. É /
prosa que dá prêmio. Um tea for two total, tilintar de verdade / que você seduz, charmeur
volante, pela pista, a toda” – parecem equivaler a frações, compassos heterogéneos quer
na duração quer na acústica, que, juntos, criam a harmonia possível do poema, através da
formação de frases iminentemente musicais, no final das quais se dá a inspiração
necessária com vista ao recuperar do fôlego para o prosseguimento da leitura ou para
antever o processo da improvisação de um novo fragmento poético, fragmento esse que,
conforme frisou Annita Costa Malufe, tenderia “a efetuar um ritmo truncado”329, não
quebrando, apesar dessa descontinuidade que lhe é intrínseca, a coesão do objeto estético
(uma vez que, neste âmbito, o fragmento é um elemento edificante).
Faço um pequeno aparte para notar que esta metodologia parece estar na base de
um processo que se pode qualificar como écfrase musical. Realço, desde já, que não tomo
neste âmbito a definição de écfrase enquanto representação verbal de uma representação
visual, citada por James Heffernan (em Museum of Words330), ou a proposição de

325
Idem, p. 317
326
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
489
327
MESCHONNIC, Henri, “Rythme, Sens, Sujet”, in Critique du Rythme: Antropologie Historique du
Langage, op. cit., p. 71
328
BORDAS, Éric, art. cit., p. 2
329
MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p. 94
330
Cf. HEFFERNAN, James, Museum of Words: The Poetics of Ekphrasis from Homer to Ashbery,
86
Hermógenes desvelada por João Adolfo Hansen – “[écfrase:] técnica de produzir
enunciados que têm enargeia, presenteando a coisa quase como se o ouvido a visse em
detalhe”331 –, mas sim uma conceção mais lata deste processo representativo. Laura Eidt
sublinhou a possibilidade de a écfrase se poder observar em artes tão distintas como o
cinema ou a música332, pelo que, seguindo esta linha de raciocínio e aplicando-a ao poema
de Ana Cristina Cesar, creio que o mecanismo ecfrástico nele presente não se rege tanto
por uma tentativa de representação rígida e puramente material da melodia jazzística,
quanto por uma recriação lírica e portanto metamórfica dessa sonoridade. Tome-se,
também e como referência, a explanação de Siglind Bruhn: “[m]usical ekphrasis usally
relates (…) to the form and style of representation in which this content was cast in its
primary medium”333.
Volto atrás, neste contexto, para salientar que a própria poeta revelou “só
[conseguir] raros ritmos curtos, entrecortados, pontos e vírgulas a cada esquina”334. Nesta
perspetiva, as palavras de Joana Matos Frias vão ao encontro do que acabo de frisar:

[O] compósito assente no sopro garantiu-lhe acima de tudo o contraponto


necessário ao seu verso longo quase prosa, permitindo-lhe exprimir-se de modo
fragmentário e descontínuo, com versos sincopados de ritmo abrupto e
desconfortável, criando a elocução telegráfica de “raros ritmos curtos” com que
deu corpo poemático a esse mesmo fragmentário sentimento do mundo que
335
assolou toda a sua geração.

Mantendo-me nesta linha de raciocínio, faço um pequeno desvio, para evidenciar


como esta técnica de seccionar quer a possível fluidez rítmica, quer a sintaxe dos versos
se aproxima da premissa da paragem, enquanto técnica cinematográfica, evidenciada por

Chicago: University of Chicago Press, 2004


331
Cf. HANSEN, João Adolfo, “Categorias Epidíticas da Ekphrasis”, USP, São Paulo: [S.n.]. Nº 71 (2006),
p. 85
332
Cf. EIDT, Laura, “Toward a Definition of Ekphrasis in Literature and Film”, in Writing and Filming the
Painting: Ekhprasis in Literature and Film, Amesterdão: Rodopi, 2008, pp.16-18
333
BRUHN, Siglind, “Musical Ekphrasis Versus Program Music”, in op. cit., p. 29
334
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 95
335
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
489
87
Giorgio Agamben, no seu ensaio “Difference and Repetition: on Guy Debord’s Films”336.
Nesse texto, o teórico italiano afiançou que “stoppage shows us that cinema is closer to
poetry than to prose”337, como que demonstrando, desde logo, que a paragem constitui
um ponto de contacto entre o universo lírico e o cosmos cinematográfico. De facto, a
estrutura do verso acarreta um corte visível a olho nu, uma paragem entre um fragmento
verbal e um outro que lhe sucede. Agamben vai mais longe na sua argumentação e, neste
sentido, complementa uma designação intuitiva do conceito exposto, afirmando que
proporcionar uma “paragem” à palavra implica colocá-la à margem do significado, para
a dar a ver enquanto tal: “[t]o bring the word to a stop is to pull it out of the flux of
meaning, to exhibit it as such”338. Transportando esta perspetiva teórica para o âmbito da
análise do poema em debate, julgo que esse corte, essa “paragem”, não é notório apenas
no que concerne ao ritmo poético, mas também no que respeita à própria significação,
que Ana Cristina Cesar parece querer desautomatizar e recriar, usufruindo da plasticidade
da linguagem estética. Nesta confluência, mais do que tentar extrair significados das
diversas imagens estéticas presentes no enunciado, o recetor do texto deverá entendê-las
enquanto tal: imagens, até porque, conforme frisou Octavio Paz, a “imagem não é meio;
sustentada em si mesma, ela é seu sentido”339.
Fechado este parêntesis, atente-se, ainda, no jogo paradoxal instaurado, pelo eu
lírico, entre a renúncia aparente e inicial do “automatismo”, da liberdade compositiva,
da(s) possibilidade(s) interpretativa(s) de um enunciado descontínuo e as subsequentes
opções da poeta por justaposições sequenciadas de imagens poéticas distintas, que aludem
não só ao processo de escrita automática, preconizado pelos integrantes do movimento
surrealista, enquanto princípio estruturante da composição estética, como também
constituem apontamentos técnicos inspirados nas características compositivas do Jazz,
até porque, conforme evidenciou Henri Meschonnic, “[o]n ne touche pas au langage sans

336
AGAMBEN, Giorgio, “Difference and Repetition: on Guy Debord’s Films”, in AA. VV., Guy Debord
and the Situationist International: Texts and Documents, Massachusetts: MIT Press, 2002, pp. 313-319.
[Consult. 14 Jun. 2016] Disponível em:
https://1000littlehammers.files.wordpress.com/2010/02/mcdonough_guy_debord_the_situationist.pdf
337
Idem, p. 317
338
Idem, ibidem
339
PAZ, Octavio, “A Imagem”, in Signos em Rotação (trad. Sebastião Uchoa Leite), op. cit., p. 48
88
toucher (...) à sa visualité”340. Através desta dicotomia apurada, Ana Cristina Cesar
reclama para o seu poema um leitor atento, capaz de se debruçar sobre o texto e de o
visualizar enquanto enunciado que espelha, através do mecanismo ecfrástico, a aplicação
de técnicas de composição musical associadas a uma metodologia de escrita peculiar, pois
“[e]kphrasis (...) does not render exactly what the eyes see [leia-se, neste contexto, ‘o que
os ouvidos ouvem’], but takes the inspiration provided by the creator of the primary work
of art and spins off new thoughts or old mental or emotional connections”341.
Outro contraste que me parece pertinente destacar tem que ver com um eventual
pacto com o real que o texto poético pretende estabelecer, desde o seu título, através do
uso do determinante demonstrativo “Este”, que promove uma comunhão do espaço com
o momento presente. Ou seja: o poema não refere a génese de um qualquer livro de poesia,
mas sim daquele que o leitor tem em seu poder, no momento da leitura.
Outro dos aspetos que pode remeter o recetor do texto poético para uma tentativa
de vínculo com a verdade é a utilização assertiva da forma verbal “Juro” dirigida a uma
eventual pergunta do recetor do texto, e da sua implícita negação, seguidamente, através
da fórmula “Enfie a / carapuça”, isto é: aceite o verosímil “[e] cante” ao invés de
questionar, de tentar quebrar a elipse. Deste modo, o leitor que busque uma descrição
clara da experiência empírica de Ana Cristina Cesar, enquanto ouvinte de Jazz e Blues,
verá as suas expectativas serem defraudadas pelo trabalho estético da autora, ou seja,
prefere-se a écfrase poética dos géneros musicais, em detrimento de uma narrativa lírica
sequencial, centrada no fenómeno da fruição melódica. Assim, o real imutável – captado
através da audição crítica – é metamorfoseado no texto poético, pelo sujeito enunciador,
pois, tendo em conta a perspetiva de Octavio Paz, “a realidade poética (…) não pode
aspirar à verdade. O poema não diz o que é e sim o que poderia ser”.342
No verso final do texto poético, verifica-se uma aproximação entre o Jazz e o Blues:
afinal esse “jazz do coração”, essa pulsação rítmica do poema parece identificar-se com
o “[p]uro açúcar branco e blue”. Esta última imagem metafórica aponta para um breve

340
MESCHONNIC, Henri, “Visualité, Asocialité”, in Critique du Rythme: Antropologie Historique du
Langage, op. cit., p. 318
341
BRUHN, Siglind, “Association”, in op. cit., p. 578
342
PAZ, Octavio, “A Imagem”, in Signos em Rotação (trad. Sebastião Uchoa Leite), op. cit., p. 38
89
registo final de pendor melancólico e, portanto, não tão explosivo. Este desfecho pode
operar como preparação para as próximas incursões em textos poéticos que convocam o
universo do Blues, pois se, tal como destacou Langston Hughes, “Jazz is a heartbeat – its
heartbeat is yours”343, no caso específico da estética de Ana Cristina Cesar, esse beat
jazzístico não poderia deixar de ser pautado pela execução de blue notes poéticas, surgidas
através do processo de metamorfose lírica e ecfrástica de técnicas musicais. Deste modo
e nas palavras de Joana Matos Frias, a audição crítica de música proporcionou “o tom
exato para a execução da blue note que repassa toda a (…) obra [da poeta], e que compõe
esse ‘jazz do coração’ que os blues lhe haviam revelado”344, até porque “[l]e chant
poétique serait un cri modulé, accompli par la forme: venu du corps, issu du plan intime,
il ne s'évanouit pas dans l'espace de la profération pure, mais articule sur la page le monde
entier du langage”345, como asseverou Jean-Michel Maulpoix.
Recordem-se, por último, as palavras de Haroldo de Campos, que, a meu ver,
podem atuar enquanto síntese do que tentei sublinhar, neste subcapítulo: os poemas da
autora de A Teus Pés impelem, então, a “uma leitura partitural do texto, mostrando que,
nesse sentido, num sentido de imanência estrutural, a poesia (...) pode ser entendida como
música (...). Basta ter ouvidos livres para ouvir ‘estruturas’”346, isto é, reconhecer o
emprego da écfrase musical possível.

3.2. A pauta verbal: do “ritmo febril” ao “jazz do coração”


Após uma primeira abordagem da relação de proximidade que a poesia de Ana
Cristina Cesar mantém com os dois géneros musicais já referidos e da discussão sobre a
hipotética proposta de arte poética contida em “Este Livro”, avanço para a abordagem de
outras questões. Leia-se o poema “Um Beijo”, cuja estrutura é, metaforicamente, passível

343
HUGHES, Langston, apud DUFFY, Susan, The Political Plays of Langston Hughes, United States of
America: Southern Illinois University Press, 2000, p. 15
344
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
489
345
MAULPOIX, Jean-Michel, “Exclamation et Développement”, Littérature, [S.l.]: Larrouse. Nº 72
(1988), p. 60 [Consult. 15 abr. 2017] Disponível em: http://www.persee.fr/doc/litt_0047-
4800_1988_num_72_4_1466
346
CAMPOS, Haroldo de, “Poesia e Música”, in Metalinguagem e Outras Metas, op. cit., p. 284
90
de ser identificada com a de uma pauta verbal:

Um Beijo

que tivesse um blue.


isto é
imitasse feliz
a delicadeza, a sua,
assim como um tropeço
que mergulha surdamente
no reino expresso
do prazer
Espio sem um ai
as evoluções do teu confronto
à minha sombra
desde a escolha
debruçada no menu;
um peixe grelhado
um namorado
uma água
sem gás
de decolagem:
leitor ensurdecido
talvez embevecido
“ao sucesso”
diria meu censor
“à escuta”
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue
feliz
indagando só
“what's new”
uma questão

91
matriz
desenhada a giz
entre um beijo
e a renúncia intuída
347
de outro beijo.

Diferentemente do que se verificou no poema anterior, a “prosa que dá prêmio”


esvai-se neste texto constituído por versos não tão longos quanto os do anterior. (No que
concerne a este aspeto, tenha-se em conta a posição de Henri Meschonnic: “La
typographie n’y est pas une forme. Mais le rythme de sa spécificité”348.) Também a
pontuação é mais escassa e dispersa, obrigando, assim, a um redobrado esforço por parte
do recetor, para encontrar o ritmo adequado ao enunciado, que, de novo, apela à batida
paulatina característica dos blues, transposta para o poema – a este propósito, recorde-se
que, segundo Siglind Bruhn, “[i]n ekphrastic transposition, a poet recreates not only the
contents but also (…) pertinent aspects of the form in which the primary work of art was
cast”349. Neste contexto, recuperem-se as palavras de Patrícia Lino sobre a prosa de Julio
Cortázar, por me parecer fazerem todo o sentido, no âmbito da poética de que me ocupo:
“para cada texto, um ritmo diferente, pelo que a pontuação varia, distribui-se, cresce de
modo diferente. Às vezes desaparece, e [somos nós], leitor[es], quem deve deduzir a
aceleração, abrandar, suster a respiração, e parar. Tal e qual como numa peça”350 musical.
A este propósito, atente-se na posição crítica de Étienne Souriau, que complementa a
perspetiva que destaquei: “[l]a différence ici entre la poésie et la musique est que la
musique dispose au besoin (surtout pour les nuances) de précises indications écrites
impératives (…), que la poésie n’a pas”.351
É, portanto, esse ritmo que o leitor deverá perseguir e demarcar, apoiado em
escassos apontamentos de pontuação, que travam a leitura num único sopro e a

347
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., pp. 259-260
348
MESCHONNIC, Henri, “Vers une Prose du Poème”, in Critique du Rythme: Antropologie Historique
du Langage, op. cit., p. 334
349
BRUHN, Siglind, “Variations of Ekphrastic Stance”, in op. cit., p. 575
350
LINO, Patrícia, “It me Right Between the Eyes: Julio Cortázar e o Jazz”, Cadernos de Literatura
Comparada, Porto: Instituto de Literatura Comparada Margarida Llosa. Nº 32 (2015), p. 164 [Consult. 25
Mai. 2016] Disponível em: http://ilc-cadernos.com/index.php/cadernos/article/viewFile/255/237
351
SOURIAU, Étienne, “De la Musique du Vers”, in op. cit., p. 188
92
reposicionam no universo da estrutura rítmica lenta, da melodia pesarosa dos blues. Nesta
confluência, constata-se que “os ritmos (…) nascem das próprias palavras, da nossa
própria voz”352, até porque como afirmou Octavio Paz, “[a]quello que dicen las palabras
del poeta ya está diciéndolo el ritmo en que se apoyan esas palabras”353.
Porém, neste poema, nem só a fluência pausada do discurso poético, proporcionada
pelo fenómeno da paragem contribui para a aproximação deste género musical ao texto
poético. A própria temática, de um (des)encontro amoroso denuncia o conhecimento, por
parte de Ana Cristina Cesar, das problemáticas exploradas pelos intérpretes de blues.
Assim, note-se que, na sua forma mais primitiva e tendo em conta a perspetiva de Rex
Harris, este estilo musical tinha que ver com “os atos de viver, dormir, comer, amar (…),
temperados dos habituais matizes humanos (…) e tantos outros condicionamentos”354.
Nesta linha de raciocínio, sublinho o pendor descritivo, até mesmo algo narrativo, e
emocional deste poema, face ao caráter fragmentário, vincado por um ritmo abrupto, livre
e desconfortável, do anterior. “Um Beijo” inicia com a enunciação, graficamente
demarcada, do desejo da realização de uma experiência – “Um beijo // que tivesse um
blue”.
À semelhança do que acontece nas letras de variadas composições musicais de
Blues – desde logo, a canção “What’s New?” –, o eu lírico expõe no seu enunciado o
anseio de uma aproximação física entre si e um “tu” implicado, pois, como salientou
Émile Benveniste, “[l]e langage est pour l’homme un moyen, en fait le seul moyen
d’atteindre l’autre homme, de lui transmettre et de recevoir de lui un message”355. Não
obstante, para o sujeito poético esse contacto não pode deixar de integrar uma
componente melancólica de comprazimento com o seu próprio sofrimento, causado pelo
“tropeço / que mergulha surdamente / no reino expresso do prazer”. Neste quadro, Robert
Switzer realçou ainda que “it is part of the captivating mystery of the blues experience
that it feels good to sing the blues and to listen; that one is feeling bad, but somehow is
feeling good about it”356.

352
FERRO, António, A Idade do Jazz-Band, Lisboa: Portugália, 1922, p. 48
353
PAZ, Octavio, “El Ritmo”, in El Arco y la Lira, Madrid: Fondo de Cultura Económica, 1956, p. 58
354
HARRIS, Rex, op. cit., p. 39
355
BENVENISTE, Émile, “Structure de la Langue et Structure de la Société”, in op. cit., p. 91
356
SWITZER, Rober, art. cit., p. 25
93
Regresse-se ao poema e veja-se que, de seguida, a narração levada a cabo pelo
sujeito lírico parece ser intercetada por um sopro poético que contém a descrição de uma
nova ação: “Espio sem um ai / as evoluções do teu confronto à minha sombra / desde a
escolha debruçada no menu”. Saliento que esta é a primeira vez que surge no poema uma
evidência de que o discurso poético é enunciado na primeira pessoa. Esta mesma
referência coloca em destaque o sujeito da enunciação. Alertando para esta questão, Émile
Benveniste frisou que “[l]’acte individuel par lequel on utilise la langue introduit d’abord
le locuteur comme paramètre dans les conditions nécessaires à l’énonciation”357 e
acrescentou que “[a]vant l’énonciation, la langue est effectuée en une instance de
discours, qui émane d’un locuteur, forme sonore qui atteint un auditeur et qui suscite une
autre énonciation en retour”.358
Adiciono à discussão sobre a referência à primeira pessoa, que esta parece ainda
instituir, até certo ponto, uma estratégia de legitimação do enunciado através do forjar de
pacto com a verdade, como que advertindo o leitor para o facto de o sujeito poético estar
a narrar algo que viveu, de facto. Neste âmbito, Ana Cristina Cesar esclareceu que na
“literatura (…) não existe essa verdade”359. Desta forma, penso que o recetor do poema
não deve esquecer que já Aristóteles explicitara que muito embora o poeta possa recorrer
a factos reais para a composição estética, estes deixam de ser verdadeiros, a partir do
momento em que integram um texto literário: “ainda que lhe aconteça fazer uso de
sucessos reais, (…) nada impede que algumas das coisas, que realmente acontecem,
sejam, por natureza, verosímeis e possíveis e (…) venha a ser o poeta o autor delas”.360
Avanço um pouco: note-se que, de novo, é notória a introdução do quotidiano na
poesia (procedimento comum entre os poetas da Geração Mimeógrafo), que, como tenho
procurado evidenciar, é também um elemento de referência nas letras das canções
pertencentes aos géneros musicais em debate.
Logo após essa sequência de imagens poéticas, o recetor depara-se com a
enumeração sincopada e algo inusitada dos elementos que fariam parte de um menu

357
BENVENISTE, Émile, “L’Appareil Formel de l’Énonciation”, in op. cit., p. 81
358
Idem, p. 82
359
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 273
360
ARISTÓTELES, Poética (trad. Eudoro de Sousa), op. cit., p. 116
94
escolhido pelo eu lírico: “um peixe grelhado / um namorado / uma água / sem gás / de
decolagem”. Os vários elementos deste elenco imagético parecem contrastar entre si, o
que proporciona ao recetor, uma vez mais, uma impressão de improviso, de fragmentação,
tal como experiencia um ouvinte de blues.
Neste contexto e indo ao encontro da perspetiva explicitada por Annita Costa
Malufe, constata-se que o uso do entrecruzamento discursivo, do recorte e da elipse
constituem metodologias “de subtração que extrapola[m] a mera retirada de uma palavra.
Na verdade, é como se frases inteiras tivessem sido retiradas”361 e faltasse, assim, um elo
sintático e semântico entre os versos. Todavia, creio ser este mesmo corte abrupto da
sintaxe, numa tentativa de extremar as possibilidades linguísticas, que impele à
impossibilidade de cessar a leitura, antes do último verso do poema. Desta forma, o corte
não opera tanto como uma rutura com o enunciado, quanto como uma continuidade do
seu desenvolvimento rítmico e semântico. Referi-me à continuidade e parece-me
pertinente regressar não só à perspetiva da supranomeada autora, como também ao ensaio
de Giorgio Agamben já citado. No meu ponto de vista, a estrutura do poema parece ser
conservada através do fenómeno de montagem, tal como ele é concebido no cinema362.
Neste âmbito, Annita Costa Malufe advertiu que a justaposição de imagens poéticas, ao
longo do poema, se assemelha a uma “enumeração de fotogramas na qual o poema vinha
se desenvolvendo, criando um ‘fio condutor’ entre esses flashes”363, o que vem ao
encontro do que frisei. Assim e valendo-me das palavras de Herberto Helder, penso que
“cada imagem [poética] é a chave de outra imagem – e abrem-se umas às outras, as
imagens”364, não colocando em causa, a coerência e a coesão do enunciado estético, mas
imprimindo-lhe, antes, um beat lento e uma sintaxe complexa e particular.
Volte-se atrás: não declarando de modo evidente, para o recetor dos seus textos, a
intrínseca relação da sua poesia com o universo musical, a autora de A Teus Pés parece
reclamar um leitor não “ensurdecido / [nem] talvez embevecido”, empenhado em dissecar
totalmente os enunciados, em ver para lá da entrelinha (até porque, para a poeta, “não

361
MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p. 85
362
Cf. AGAMBEN, Giorgio, “Difference and Repetition: on Guy Debord’s Film”, in op. cit., p. 317
363
Cf. MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p.
183
364
HELDER, Herberto, Photomaton & Vox, op. cit., p. 57
95
existe entrelinha. (...) Existe a linha mesmo, o verso mesmo.”365), mas sim um leitor capaz
de captar as várias sugestões musicais bem como as suas repercussões no poema,
sugeridas ora implicitamente, através de fenómenos como a alusão, ora explicitamente,
através da citação, por exemplo, no seu enunciado. É esse mesmo recetor competente que
deverá entender a subtil sequência polifónica de discursos cruzados, enquanto mais uma
nota de contacto ecfrástico entre o Jazz, o Blues e o trabalho estético da poeta: “‘ao
sucesso’ / diria meu censor / ‘à escuta’ / diria meu amor / sempre em blue / mas era um
blue / feliz”. Neste contexto, o recurso a sinais gráficos como as aspas contribui para o
aumento da produtividade desse processo percetivo, que parece quebrar as expectativas
melódicas do leitor e abalar a fluência do ritmo pausado, melancólico, dos versos curtos
anteriores, como que instaurando um novo andamento no poema, não deixando, porém,
de realçar o labor consciente e preciso da poeta sobre o enunciado estético. Leia-se o que
a mesma considerou, numa das suas missivas: “nunca (…) escrevi tão fluente e
366
espontâneo, as coordenações, porém, além de espontâneas são conscientes” , o que
corrobora o que afirmei.
Talvez o momento em que um recetor hesitante, no que concerne à influência da
música na poética em questão, deixe de manifestar essa incerteza seja o da leitura do verso
“‘what’s new’”. Um leitor que tenha um contacto mais alargado com a poesia de Ana
Cristina Cesar deverá entender o uso das aspas como uma desvelada pista deixada pela
poeta. Esse verso expõe, portanto, um “enxerto” (que a par da subtração, da elipse,
constitui uma outra estratégia de “ataque” ao significado, na conceção de Annita Costa
Malufe367) de parte da letra da canção homónima, interpretada por Billie Holiday.
Não pretendo fazer uma interpretação de pendor biografista da inclusão da
supracitada citação num poema polifónico, com um ritmo lento, fluente, mas pausado,
profundamente próximo quer no conteúdo quer na forma de expressão, das premissas
compositivas do Blues, porém, uma aproximação da vivência conturbada e angustiante
da poeta, à da cantora (já que ambas manifestavam um desajuste face à própria vida)

365
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 262
366
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 104
367
Cf. MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p.
83
96
parece ser produtiva. Ambas afetadas pela melancolia natural, que lhes desvelou o
estatuto de génio, nas suas áreas, Ana Cristina Cesar e Billie Holiday aproximam-se,
julgo, não só no que respeita à música, que uma escuta e outra interpreta, como ainda no
que respeita a uma incapacidade de evasão dos sentimentos angustiantes, (relativamente
a um mundo que não as satisfazia a vários níveis), que a voz da cantora norte-americana
explicita, de forma única para a poeta.
Atente-se no que a própria refere acerca da sua experiência ao ouvir Billie Holiday:

Teve um tempo que eu botava Billie Holiday, melancólica, miando, sempre tem
um homem distante, ou um triste retorno, e ficava não “pensando” (...); escurece
muito de repente, olho pro céu com medo vago – estou de novo no chão, Holiday,
What’s new, how is the world treating you, e sinto de novo a nostalgia de brincar
de nostalgia, brincar de eterna apaixonada pelo objeto ausente. I still love you
368
so.

A voz “melancólica, miando” da intérprete norte-americana que se faz ouvir entre


o “recorte de ritmos”369, parece ser, simultaneamente, antídoto e veneno doseado, para a
angústia de Ana Cristina Cesar.
Faço um parêntesis, neste âmbito, pois creio poder aproximar a passagem
supracitada às seguintes palavras de Bernardo Soares: “Um hálito de música ou de sonho,
qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar”370. Julgo ser
este “hálito de música” pesarosa (com uma batida rítmica desacelerada, pautada
pontualmente por explosões sonoras, que se assemelham a gritos de sofrimento, na voz
de Billie Holiday), que adensa a dor da poeta, que a faz comprazer-se com ela, quase
sentindo algo, quando “brinc[a] de eterna apaixonada pelo objeto ausente”, e que
proporciona a sensação de conseguir “[parar] de repente o Pensamento”371, ainda que
momentaneamente. Destarte, a cantora não representaria para a poeta tanto um “anjo /
que extermina / a dor”372, quanto um anjo que canta e exponencia a dor amorosa, que é

368
CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 223
369
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 306
370
SOARES, Bernardo, Livro do Desassossego (ed. Richard Zenith), Porto: Assírio & Alvim, 2015, p. 56
371
LIMA, Ângelo de, Poesias Completas (org. Fernando Guimarães), Porto: Inova, 1971, p. 47
372
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 101
97
visada quer no poema, quer na letra da canção. Aliás, penso que a questão central para
esta abordagem “is the singer, not the song”373.
Vários críticos são unânimes em declarar a singularidade do modo de expressão e
do “grão da voz” (usando a expressão de Roland Barthes374) de Billie Holiday, que “deixa
transparecer a dor desmesurada, resultando num timbre que não é próprio de uma voz
(…) angelical, mas sim de uma voz mais próxima, humana”375. Neste contexto, José
Duarte afirmou, no prefácio à edição portuguesa da biografia da cantora, que se verifica,
nas suas interpretações, a existência de “um fraseado pessoalíssimo onde as palavras são
deslocadas impecavelmente do tempo dito certo. Tema que Billie escolhesse, ficava
cantado para sempre, esgotado”376. Creio ser esta mesma perceção da cantora que a autora
de Luvas de Pelica possuía, até porque como destacou Vasco Vasconcelos, no universo
dos blues, a proximidade entre músicos e ouvintes é notória377.
Num dos seus textos críticos, a poeta assume uma relação próxima, quase física,
com a poesia do autor de Leaves of Grass: “como se ler Whitman significasse tornar-se
amante de Whitman”378. A meu ver, é uma relação deste caráter a que norteia a sua ligação
à voz de Billie Holiday, como se ouvi-la significasse que eram tão próximas que podia
roubar-lhe as linhas líricas e melódicas, para as incorporar nos seus textos poéticos,
através de fenómenos que evidenciam a sua declarada antropofagia lírica.
Fixando-me nesta linha de pensamento, não deixo de notar que no poema “Índice
Onomástico”379, texto onde se encontram reunidos e organizados os nomes de várias
entidades que inspiraram e influenciaram o trabalho estético de Ana Cristina Cesar, a
identificação de Billie Holiday marca presença, alertando o leitor para a possibilidade de
existirem fenómenos de apropriação estética sobre os quais me debrucei e que acontecem
não apenas na poesia, mas também na sua correspondência pessoal.
Em “Um Beijo”, a opção pela citação do fragmento entoado pela intérprete norte-

373
SWITZER, Robert, art. cit., p. 48
374
BARTHES, Roland, O Grão da Voz (trad. Teresa Meneses e Alexandre Melo), Lisboa: Edições 70, 1982
375
VASCONCELOS, Vasco André Ribeiro de, op. cit., p. 89
376
DUARTE, José, “Rotação Errada”, in HOLIDAY, Billie, Lady Sings the Blues (pref. José Duarte),
Lisboa: Antígona, 1992, p. 8
377
VASCONCELOS, Vasco André Ribeiro de, op. cit., p. 61
378
CESAR, Ana Cristina, “O Rosto, o Corpo, a Voz”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 251
379
Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 124
98
americana opera não apenas enquanto “som estranho / [que] é um alerta”380 para o leitor,
(como que instigando-o a “aguça[r] o ouvido”381 e a ouvir, de facto, a pulsação do poema,
bem como a sua polifonia decorrente da manifestação de trechos discursivos que se
entrecruzam), mas ainda como “questão matriz”, esboçada subtilmente, como sugestão
performativa direta de audição musical, através da qual muitos aspetos rítmicos, técnicos
e prosódicos do poema se esclarecem.
Não posso terminar o comentário a este texto poético sem frisar a opção por um
leque lexical reduzido. Assim, constata-se, em múltiplas passagens, a iteração de vários
vocábulos, o que pode denotar a aproximação a uma das premissas formais dos blues: a
repetição de versos, expressões e frases melódicas (que operariam de forma idêntica à de
um refrão), que visavam não só sustentar a improvisação levada a cabo pelo intérprete,
tal como referiu Francis Newton382, como também a constante chamada de atenção para
o conteúdo da mensagem que se entoa, para além da sua sonoridade. A este propósito,
Jean-Michel Maulpoix afiançou que “[l]es répétitions de sonorités et de mots cernent ainsi
l'espace à l'intérieur duquel s'élance l'exclamation”383, que “est en outre caractéristique de
ce réveil ou cette renaissance du langage à quoi le lyrisme est attaché”384. Junto à
discussão a mundividência de Annita Costa Malufe, que refletiu sobre este mesmo
processo de repetição na poesia de Marcos Siscar e que, creio, pode ser aplicada a este
traço específico do poema da autora carioca. Para a ensaísta, esse constante retomar dos
elementos iterados faz com que o

elemento repetido ganhe a função semelhante à de um refrão ou um estribilho:


ele começa a valer por si. Ou seja, ele já não está colocado apenas com vista a
designar, manifestar ou significar algo, mas ele como que se descola do texto e
385
ganha uma certa autonomia material.

Leia-se, agora, um trecho de outro texto poético:

380
Idem, p. 411
381
Idem, p. 291
382
Cf. NEWTON, Francis, op. cit., p. 88
383
MAULPOIX, Jean-Michel, art. cit., p. 56
384
Idem, p. 57
385
MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p. 123
99
Escapa pela extremidade.
(...)
Vem de imediato, possível.
Daí do campo se percebe com
mais precisão, Agá?
Mesmo se não te escrevo uma
resposta da cidade. Cais
do porto. Arranhacéu
ondulando no óleo da água. (...)
(...)
Moonlight serenade.
Pequena tremura da mão.
Travo de tresnoite.
386
Em que papel de seda posso pernoitar?

Começo por realçar que, dos três textos abordados neste capítulo, este é, sem
dúvida, aquele que possui uma maior diversidade a nível de pontuação, introduzindo não
só os dois pontos, como o ponto de interrogação, utilizado em questões retóricas, tais
como “mais precisão, Agá?” e “Em que papel de seda posso pernoitar?”, que impelem,
no momento da leitura, seja ela em voz alta ou não, à assunção de uma prosódia distinta
daquela que caracteriza uma frase afirmativa, a título de exemplo. Assim, a linha
melódica do poema é intercetada por sopros fónicos de entoação peculiar, que implica
uma progressão sonora, um crescendo, atingindo o clímax no momento final da frase até
porque, tal como salientou Roman Jakobson, na “língua poética, em que o signo assume
um valor autónomo, este simbolismo fonético (…) cria uma espécie de acompanhamento
de significado”387.
Ainda no que concerne à pontuação, não deixo de apontar que a sua existência na
maioria dos versos contribui para a estratégia de sincopação do ritmo da leitura e para o
seu abrandamento, como que apelando ao recetor para atentar não só no significado do

386
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 295
387
JAKOBSON, Roman, Seis Lições sobre o Som e o Sentido (trad. Luís Miguel Cintra), Lisboa: Moraes
Editores, 1977, p. 88
100
poema que é, de resto e indo ao encontro da perspetiva de Anita Costa Malufe, não
parafraseável em prosa crítica388, como ainda nos significantes, na componente acústica.
A este propósito, resgato a mundividência da autora supracitada, que revelou, discorrendo
sobre um trecho da autoria de Samuel Beckett, que “[a] significação é corroída por dentro
(…) e o texto mais soa que significa”389. Neste contexto específico, note-se que o texto
da autora de Luvas de Pelica oferece uma grande resistência ao impulso da paráfrase
manifestado pelo seu recetor, afastando-se de uma narratividade linear e preferindo a
erosão da forma e do sentido – o que impele à colocação da tónica nas vertentes rítmica
e melódica do texto. Ana Cristina Cesar força o leitor a desautomatizar as suas perceções
primeiras e a demorar-se na leitura, para que possa ouvir os vários sopros fónicos distintos
que compõem o poema e não aceda, unicamente, ao patamar do significado. Roman
Jakobson alertou para esta questão da importância da perceção sonora da palavra,
reiterando que “[n]ão existe na língua significado sem significante nem significante sem
significado”390 e, aludindo ao ponto de vista de Saussure, referiu que é “‘na cadeia da
palavra ouvida (…)’, ‘que nos apercebemos imediatamente se um som permanece ou não
igual a si mesmo (…)’”.391
Ressaltei, anteriormente, a diversidade dos sinais de pontuação que pautam o
poema. A poeta introduz apenas parcas interrogações retóricas explícitas ao longo do seu
texto poético. Não obstante, essa escassez de questões colocadas no texto parece operar
como contraponto das questões colocadas pelo texto, que se assumem desde o primeiro
verso – “Escapa pela extremidade”. Quem escapa?, o que escapa?, por que motivo o faz?
são exemplos de interrogações que o recetor do poema pode levantar. A eventual procura
de resposta(s) no poema revela-se infrutífera: a autora não responde, através do eu lírico,
no segundo verso nem nos restantes, antes introduz e justapõe novos fragmentos
discursivos, impulsos líricos aparentemente desconexos, como pode constatar-se ao ler o
seguinte excerto: “Pequena tremura da mão. / Travo de tresnoite. / Em que papel de seda

388
Cf. MALUFE, Annita Costa, Poéticas da Imanência: Ana Cristina Cesar e Marcos Siscar, op. cit., p.
138
389
Idem, p. 239
390
JAKOBSON, Roman, Seis Lições sobre o Som e o Sentido (trad. Luís Miguel Cintra), op. cit., p. 80
391
SAUSSURE, Ferdinand de, apud JAKOBSON, Roman, Seis Lições sobre o Som e o Sentido (trad. Luís
Miguel Cintra), op. cit., p. 80
101
posso pernoitar?”. Deste modo, o enunciado poético parece revelar a sua estrutura
polifónica, que pode ser notada, creio, em duas das leituras possíveis do poema: uma
primeira em que os versos seriam tomados como um entrecruzamento de fragmentos
discursivos provenientes de diversos enunciadores e fixados por Ana Cristina Cesar no
poema, e uma segunda em que a composição se alicerçaria num esquema de pergunta-
resposta, de conversa a duas vozes com o recetor, sendo que não é o texto quem questiona,
mas sim o seu recetor, até porque, como referiu Octavio Paz, a “linguagem [quotidiana]
indica, representa; o poema não explica nem representa: apresenta”392. É essa preferência
pela exposição em detrimento da explicação, esse golpe numa eventual perceção direta
do significado que penso revelar-se mais incisivo neste poema do que nos anteriores. A
este respeito, não deixem de notar-se as palavras da poeta: na “literatura, sempre haverá
uma coisa que escapa”393 e, no âmbito específico do seu trabalho estético, essa partícula
parece escapar também pelo facto de esta ser “uma poesia que se lanceta (…) toda cheia
de arestas, (…) angulosa, [que] não tem (…) um desenvolvimento coerente, linear. (…)
[T]oda quebrada mesmo. (…) [F]ragmentária”394.
Avançando um pouco, não se olvide que esse aparente caráter parcelar não tem só
que ver com o conteúdo, mas também está patente no próprio corpo textual, senão atente-
se em passagens como “resposta da cidade. Cais / do porto. Arranhacéu / ondulando no
óleo da água”, onde a quebra do verso, implica também uma quebra sintática que só se
sanará com a leitura do(s) verso(s) seguinte(s), através do recurso ao enjambement. A
identificação desta técnica parece-me ser um elemento produtivo para que se possa
defender uma aproximação desta composição poética de Ana Cristina Cesar às premissas
da experimentação e do improviso, características do Jazz e do Blues. Jacques Lavaca,
frisou, no seu ensaio “The Theatricality of the Blues”, que “[t]he blueman’s poetry is oral,
expressed lyrically and often improvised. A few poets consider themselves the heirs of
the blue poets”395.

392
PAZ, Octavio, “A Imagem”, in Signos em Rotação (trad. Sebastião Uchoa Leite), op. cit., p. 50
393
CESAR, Ana Cristina, “Depoimento de Ana Cristina Cesar no Curso ‘Literatura de Mulheres no
Brasil’”, in Crítica e Tradução, op. cit., p. 260
394
Idem, p. 261
395
LACAVA, Jacques D., “The Theatricality of the Blues”, Black Music Research Journal, [S.l.]: Center
for Black Music Research – Columbia College Chicago and University of Illinois Press. Vol. 12, nº 1
102
A poeta não se declarou, de forma precisa, enquanto herdeira direta dos princípios
compositivos dos dois estilos musicais em destaque, que influenciaram as suas criações
estéticas, porém revela quer na correspondência pessoal, quer em alguns poemas, a
estreita relação que mantinha com a música, que a acompanhava em momentos tão
quotidianos como a preparação de uma refeição396 ou a leitura de um jornal (“Desço e
boto Gershwin e fico lendo o golpe na Bolívia no jornal”397).
Para além da aproximação formal da técnica da escrita poética à metodologia e às
premissas da criação melódica, tal como em “Um Beijo”, também este texto lírico contém
uma referência musical, porém mais oculta do que aquela que impele a leitura para o
universo do Blues e, mais especificamente, para o domínio vocal de Billie Holiday.
Contrariamente ao que se verificou no poema anterior, aqui a sugestão musical não
surge destacada pelo uso das aspas: constitui, à semelhança do que se constatou em “Um
Beijo”, um único verso, porém não se recorre ao uso da citação, mas sim ao da alusão –
“Moonlight Serenade.” –, o que eleva a um grau superior a complexidade do fenómeno
de antropofagia estética, pois como evidenciou Helena Klang, a “fome do antropófago
seria saciada pela incorporação da diferença”398, isto é, pela integração mais ou menos
velada de fragmentos roubados a diversos autores e universos artísticos. Desta forma, Ana
Cristina Cesar propõe que o leitor seja capaz de reconstituir a referência musical, sem
qualquer pista clara da sua parte, até porque o surgimento de expressões ou vocábulos em
língua inglesa é recorrente na sua poesia e não denuncia, necessariamente, que o verso
constitua uma sugestão de uma peça musical.
Se, no poema anterior, as aspas poderiam contribuir para o reconhecimento
potencialmente automático da referência musical pelo recetor do texto poético, em
“Escapa pela extremidade”, a maior subtileza da sugestão pode fazer com que um recetor
de superfície leia o verso que é constituído por ela, apenas como mais uma imagem
poética, que se segue a tantas outras. Não obstante, um leitor que tenha algum contacto
com o trabalho poético de Ana Cristina Cesar depreenderá que não será, de todo, acaso a

(1992), p. 137 [Consult. 19 mai. 2016] Disponível em: http://www.jstor.org/stable/779286?seq=1 -


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396
Cf. CESAR, Ana Cristina, Correspondência Incompleta, op. cit., p. 167
397
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 69
398
KLANG, Helena, op. cit., p. 23
103
existência desse verso, até porque, tal como defendeu Octavio Paz, “[e]n el fondo de todo
fenómeno verbal hay un ritmo. Las palabras se juntan y separan atendiendo a ciertos
principios rítmicos”399. Não se descure, também, que a poesia, esse “fenómeno verbal”,
expõe a linguagem na sua função estética. Referindo-se precisamente a este aspeto,
Roman Jakoson adverte que a comunicação pela palavra, tenha ou não uma motivação
estética, é estabelecida tendo em conta dois processos – o seletivo e o combinatório: “[l]a
sélection est produite sur la base de l’équivalence, de la similarité et de la dissimilarité,
de la synonymie et de l’antonymie, tandis que la combinaison, la construction de la
séquence, repose sur la contigüité”400, o que pode conduzir à perceção de que o acaso, na
linguagem estética (neste quadro específico, mas também na linguagem vulgar), não se
verifica e que o poeta é, em si, consciente do seu trabalho, ao contrário do que preconiza
a teorização platónica patente em Íon, que imputa essa consciência às musas. Para além
deste aspeto, recorde-se que “[l]a fonction poétique [a função dominante num texto
literário] projette le principe d’équivalence de l’axe de la sélection sur l’axe de la
combinaison”.401
Volto um pouco atrás: de facto, o verso composto em língua inglesa trata-se de uma
referência ao título de uma composição musical, da autoria de Glenn Miller, jazzista cujas
composições se enquadram num dos subgéneros do Jazz, o Swing, “caracterizado por uma
maior volubilidade instrumental, por uma maior simplicidade rítmica e por uma
improvisação menos inventiva”402. Se, depois de se ler o poema, se ouvir a peça, vários
dos aspetos que parecem poder contribuir para o afastamento do texto poético, face à
música, começam a esgarçar-se e a fusão intermedial revela-se, de novo.
Creio que um dos pontos de contacto mais facilmente reconhecível entre o texto
poético da autora carioca e a peça que este convoca é a polifonia inerente a ambos os
objetos estéticos. Senão veja-se: a melodia da peça de Miller estrutura-se com base na
harmonização sonora alicerçada não apenas na melodia proveniente de um único
instrumento, mas na conjugação de várias tonalidades melódicas exploradas por

399
PAZ, Octavio, “El Ritmo”, in El Arco y la Lira, op. cit., p. 53
400
JAKOBSON, Roman, “Linguistique et Poétique”, in Essais de Linguistique Générale (trad. Nicolas
Ruwet), op. cit., p. 220
401
Idem, ibidem
402
BORBA, Tomás, GRAÇA, Fernando Lopes, “Jazz”, in op. cit., p. 46
104
instrumentos de diferentes famílias, o que, a meu ver, projeta uma aproximação ao objeto
poético vincadamente interdiscursivo de que me tenho vindo a ocupar.
Avançando um pouco mas mantendo-me no âmbito desta clarividente comunhão
de tons verbais e musicais, não deixo de referir que, desde o início da peça é estabelecido
um contraponto entre dois trechos melódicos que surgem iterados, de forma recorrente,
como que apelando à técnica de criação poética que procura uma oposição entre causa e
efeito ou entre pergunta e resposta – metodologia esta que sublinho enquanto estrutural
para a elaboração deste poema.
Diferentemente do que se verificou acontecer na canção interpretada por Billie
Holiday e no poema “Um Beijo”, o tom pesaroso de denúncia da dor é esbatido no texto
em debate e o ritmo poético apresenta-se marcadamente segmentado, abrupto, algo
vertiginoso e desconfortável, graças à colagem de fragmentos discursivo-imagéticos, que,
com o avançar da leitura, se assumem progressivamente enquanto estilhaços de conversas
entrecruzadas. A este propósito, Alice Sant’Anna salientou que

Ana tomou para si a arte da conversa, seja nos poemas, nas cartas, nos diários
íntimos, no tom de segredo ao pé do ouvido. A intenção aqui é embaralhar ficção
e confissão, interpelando diretamente “você”, o leitor. A conversa é múltipla: em
403
muitas camadas.

Junto à discussão a perspetiva da própria poeta que realçou, num outro texto
poético, que terá existido um poema que saía “recolhendo os restos das conversas, / das
senhoras, / ‘para que nada se perca / ou se esqueça’, / proverbial”404. Não penso que em
“Escapa pela extremidade” Ana Cristina Cesar queira tanto um memorial contra o
esquecimento, quanto uma evidenciação da incorporação do quotidiano na poesia, através
do tom coloquial de matriz oralizante que pauta o texto lírico e que aponta, também, para
a sua relação inequívoca com as premissas que regem quer o Jazz, quer o Blues. Assim,
creio que mais do que uma possível e profícua explicitação da convergência de um
processo de escrita poética com uma metodologia específica da criação de uma melodia
jazzística, a presença da referência musical neste poema visa não só a sugestão desse

403
SANT’ANNA, Alice, art. cit.
404
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 235
105
aproximar intermedial como pode ainda funcionar como sugestão de banda sonora, capaz
de acompanhar a leitura do texto poético. Se assim for, o seu recetor metamorfoseará o
poema na própria letra da peça de Glenn Miller e experimentará uma postura performativa
próxima à dos próprios instrumentistas, através do ato de leitura, durante o qual entenderá
mais claramente que cada “frase, cada proposição, cada grupo de palavras tem a sua
própria significação (…) [que] pode ser muito geral, muito fragmentária e implícita”405.
Pretendi, com esta discussão final, alargar o espetro da reflexão que me propus
desenvolver e demonstrar que os processos de hibridismo presentes na poesia de Ana
Cristina Cesar não se restringem ao domínio literário, abarcando, também, outros
universos artísticos e, muito particularmente, o musical. Tendo esta premissa por base,
julgo que se torna evidente que a autora desenvolveu um trabalho metódico e cuidado
sobre a linguagem poética, explorando e testando, até ao limite, as possibilidades
semânticas e sintáticas das palavras, bem como as suas capacidades sonoras, enquanto
signos linguísticos dotados de uma componente acústica, e, portanto, de algum modo
melódica e rítmica. Nesta confluência, a sonoridade jazzística acaba por se transfigurar,
migrando para o sistema estético da poesia, e por estruturar, nesse contexto, uma partitura
verbal, que entendo como a totalidade dos corpos poemáticos.
Valendo-me das palavras de Bernardo Soares, penso que as metodologias de
composição intermedial adotadas pela autora proporcionam o surgimento de uma estética
que se constrói tendo por base “um som [musical] que se faz outro som [poético]”406.

405
JAKOBSON, Roman, Seis Lições sobre o Som e o Sentido (trad. Luís Miguel Cintra), op. cit., p. 54
406
SOARES, Bernardo, op. cit., p. 244
106
Conclusão
Para travar de vez em palavra e meia o signo completo
Ana Cristina Cesar

Com esta dissertação, procurei evidenciar e sublinhar a diferenciação entre as


atitudes estética e existencial de Ana Cristina Cesar face às dos restantes poetas que com
ela constituíram o grupo da Geração Mimeógrafo, tentando demonstrar que a poeta
“reencetou e levou fundo o gesto existencial e poético definidor do moderno como
proposta de transformação da vida e desautomatização dos jogos convencionais da
linguagem e da sociabilidade”407.
Julgo tornar-se, agora, mais notório que a sua singularidade lírica proporcionou o
descerramento de um espaço onde a sua “voz borbulhante”408 se faz ouvir. A este
propósito, recorde-se o que escreveu Herberto Helder em “(desenho)”: o “ponto não é
estabelecer um sistema de referências, instituir leis, consumar um mecanismo. Digo que
o ponto é propiciar o aparecimento de um espaço”409. Ora, este mesmo espaço que Ana
Cristina Cesar privilegiou opera não só enquanto área propícia à criação estética como
também enquanto zona de ficção onde o recetor do seu trabalho lírico metamorfoseia as
emoções reais em fragmentos de sentimento verosímil, acompanhando, assim, o sujeito
patente nos poemas. Seguindo esta posição crítica, tentei também explanar, com
exemplos práticos, algumas características relativas à distinção entre a linguagem
quotidiana, utilitária e esgotável num qualquer ato de fala, e a “linguagem-tatuagem” que
se quer lírica – dominada pela função estética – e, portanto, inesgotável no seu próprio
corpo (isto é, na sua materialidade sígnica) e autotélica.
Pretendi, de igual modo, demonstrar a estreita relação entre poesia e comunicação
e, tendo em conta o corpus poético sobre o qual se atentou nesse segmento reflexivo,
penso ser possível e profícua uma leitura combinada de duas premissas de Ana Cristina
Cesar e de Jacques Derrida. A poeta, não obstante o seu posicionamento dialético face à

407
MORICONI, Ítalo, op. cit., p. 9
408
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 393
409
HELDER, Herberto, Photomaton & Vox, op. cit., p. 79
107
escrita, que tomou ora como purgante catártico do seu desalento (quando “as palavras
escorrem como líquidos / lubrificando passagens ressentidas”410), ora como dose
reforçada de veneno dolente (quando simula não voltar “às letras, que doem como uma
catástrofe”411), referiu que os “poemas são para nós uma ferida”412. Por seu turno, o
teórico francês vai mais além e parece complementar esta linha de raciocínio, enfatizando
que não “há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida, mas
que não abra ferida também”413, o que adjuva esse sofrimento criativo e criador do qual
surge a poesia que, mais do que qualquer outra (pre)ocupação de Ana Cristina Cesar, não
podia aguardar.
No segundo capítulo, elenquei e analisei algumas das múltiplas implicações
relativas ao hibridismo inerente à palavra poética. Tentei evidenciar que essa fusão de
fronteiras de vários tipos se relaciona com conceitos como os de plasticidade, economia
discursiva e, metaforicamente, com o de antropofagia.
Desautomatizando as perceções e os preconceitos dos recetores dos seus textos,
Ana Cristina Cesar resplandece na constelação marginal. Detentora de uma perícia
linguística ímpar, de um trabalho poético traçado a bisturi e no seio de uma poesia de
largo espectro discursivo-compositivo, com os seus poemas de caráter híbrido (quer a
nível formal, quer a nível temático), a poeta parece ter seguido o postulado do
encerramento do “ciclo histórico do verso (unidade / rítimico-formal”414 dos concretistas
e ousou forçar as margens poéticas, formulando novas possibilidades combinatórias
inerentes à genologia e à metodologia da criação estética. Dessa forma, deixou que a
narratividade e o descritivismo se mesclassem com o ritmo lírico, ora descompassado
pela disforia, ora sôfrego pela tensão trágico-dramática (que nunca abandona os seus
textos) experimentada pelo sujeito poético, pois, como asseverou Emil Staiger,

410
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 198
411
Idem, p. 37
412
Idem, p. 271
413
DERRIDA, Jacques, Che cos’è la Poesia? (trad. Osvaldo Silvestre), Coimbra: Angelus Novus, 2003, p.
9
414
CAMPOS, Augusto de, CAMPOS, Haroldo de, PIGNATARI, Décio, “Plano-Piloto para Poesia
Concreta”, in AA. VV., Teoria da Poesia Concreta: Textos Críticos e Manifestos (1950-1960), São Paulo:
Brasiliense, 1965, p. 156
108
toda obra poética participa em maior ou menor escala de todos os gêneros e
apenas em função de sua maior ou menor participação, designamo-la lírica, épica
ou dramática. Essa afirmativa fundamenta-se na própria essência de
linguagem415.

Por fim, sugeri uma abordagem intermedial de dois universos artísticos distintos,
que se tocam, continuamente: a poesia e a música. Um dos meus propósitos analíticos foi
colocar em evidência o facto de que, muito embora não possa escrever-se música com
elementos verbais e fazer poesia apenas com significantes avulsos, várias das técnicas
rítmicas e melódicas pertencentes ao cosmos musical podem ser introduzidas, ainda que
adaptadas, num outro sistema estético, beneficiando de uma progressiva porosidade
medial416.
Fixando esta conjuntura crítica, destaco que, como frisou Roman Jakobson, em
“virtude das leis neuropsicológicas da sinestesia, as oposições fónicas podem chegar a
evocar relações com sensações musicais”417. Assim, Ana Cristina Cesar impele o leitor a
apreender cada um dos seus fragmentos poéticos como “hésitation[s] prolongée[s] entre
le son et le sens”418, hesitações essas que colocam em evidência as suas blue notes
poéticas, a musicalidade peculiar dos seus versos, bem como o beat característico dos
dois estilos musicais salientados anteriormente, que a “[m]enina loira, com o azul do mar
e da melancolia no olhar”419 importou para a sua poesia. Destarte, a autora de A Teus Pés
parece reclamar, num gesto performativo, um recetor que seja capaz continuar o seu
projeto de observar “muito tempo o corpo de um poema / até perder de vista o que não
seja corpo”420 (para retomar o primeiro poema transcrito) não tanto numa perspetiva de
esquecer o que não seja palpável, significado, quanto numa tentativa de experiência de
comprazimento com a audição, também, do texto poético, até porque “[l]e verse est sans

415
STAIGER, Emil, op. cit., p. 190
416
Cf. SOURIAU, Étienne, “Musique et Littérature comme Arts Complémentaires”, in op. cit., p. 183
417
JAKOBSON, Roman, Seis Lições sobre o Som e o Sentido (trad. Luís Miguel Cintra), op. cit., p. 87
418
VALÉRY, Paul, Œuvres, Paris: Gallimard, 1960, vol. II, p. 673
419
FRIAS, Joana Matos, “Um Verso que Tivesse um Blue”, in CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
490
420
CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p. 19
109
doute toujours d’abord une figure phonique récurrente”421.
Ao ler a poesia de Ana Cristina Cesar, verifica-se que esta é “música inquieta,
inconjunta, impura, / isso: essa música”422, que a autora escutava e cujas premissas
compositivas aplicou enquanto processo de escrita, convidando o leitor a fruir dela,
também.
Termino realçando que, como é inevitável, várias outras linhas de investigação
ficam por delinear e esgotar, na certeza de que, muito embora Ana Cristina Cesar tenha
abandonado a pauta prematuramente, ainda hoje a faz.
Aqui, e convocando as palavras da poeta, procurei mais trocar de mão e começar a
ordenar o caos423 do que fornecer respostas exaustivas às questões levantadas que, em si,
são fontes inesgotáveis de reflexão.
A história não está, ainda, completa.424

421
JAKOBSON, Roman, “Linguistique et Poétique”, in Essais de Linguistique Générale (trad. Nicolas
Ruwet), op. cit., p. 233
422
HELDER, Herberto, Ofício Cantante, Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, p. 603
423
Paráfrase de um excerto poético de Ana Cristina Cesar. Cf. CESAR, Ana Cristina, Poética, op. cit., p.
91
424
Paráfrase de um excerto poético de Ana Cristina Cesar. Cf. idem, p. 303
110
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Filmografia

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