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MARIA LÚCIA DURIGUETTO

SOCIEDADE CIVIL
E DEMOCRACIA
UM DEM TE NECESSÁRIO

^€ D ITO R fl
Conselho Editorial da
área de Serviço Social
Ademir Alves da Silva
Dilséa Adeodata Bonetti
Elaine Rossetti Behring
Maria Lúcia Carvalho da Silva
Maria Lúcia Silva Barroco

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Duriguetto, Maria Lúcia


Sociedade civil e democracia : um debate necessário / Maria
Lúcia Duriguetto. — São Paulo : Cortez, 2007.

Bibliografia.
ISBN 978-85-249-1292-4

1. Democracia 2. Sociedade civil I. Título.

07-4648 CDD-321.8

índices para catálogo sistemático:


1. Sociedade civil e democracia : Sociologia 321.8
9

Sumário

P refácio ................................................................................................................. 11

Introdução................................................................................................. 15

PARTE I
Temática da democracia na tradição liberal e marxista

CAPÍTULO 1 — Democracia e socialismo na tradição marxista.... 31


1.1 Democracia, capitalismo e liberalismo: encontros-
desencontros............................................................................ 31
1.1.1 Sociedade civil e democracia na teoria
liberal clássica............................................................... 34
1.2 Sociedade civil e democracia na tradição marxiana e
marxista.................................................................................... 37
1.2.1 Rousseau: democracia enquanto soberania popular . 38
1.2.2 Hegel: democracia como produto do "Estado"....... 44
1.2.3 Sociedade civil, democracia e revolução em Marx .. 48
1.2.4 Sociedade civil, democracia e revolução
em Gramsci................................................................... 53
1.2.5 Contra-hegemonia: construção democrática........... 68

CAPÍTULO 2 — Debate contemporâneo: sociedade civil,


democracia e esfera pública na tradição liberal.......................... 73
2.1 Modelo do elitismo competitivo........................................... 74
2.2 Crise e reestruturação do capital: a barbárie social............ 78
2.2.1 Lutas sociais das classes subalternas........................ 84
10 M. L. OURICUETTO

2.3 Receituário neoliberal para a democracia........................... 87


2.4 Democracia liberal pluralista ..*.............................................. 95
2.4.1 Defesa da democracia enquanto "regras do jogo":
formação de consensos de "direitos"........................ 101
2.5 Sociedade civil, esfera pública e democracia: Habermas e
seu "mundo da vida".............................................................. 107
2.5.1 Movimentos sociais, sociedade civil e esfera
pública: espaço da democracia.................................. 115
2.5.2 O modelo da democracia participativa.................... 124

PARTE II
Questão democrática na transição brasileira

CAPÍTULO 3 — Cenários brasileiros: redefinições da questão


democrática....................................................................................... 131
3.1 Relembrar é preciso................................................................. 131
3.2 Transição política: contribuição democrática?.................... 139
3.3 Movimento do social: para onde e para quê?...................... 149
3.3.1 A democracia como construção de uma contra-
hegemonia.................................................................... 152
3.3.2 A democracia como participação e justiça social.... 157
3.3.3 A democracia como renovação cultural................... 159
3.4 Novos movimentos spciais para onde?................................. 162

CAPÍTULO 4 — Propostas de democracia: Brasil anos 9 0 ............... 170


4.1 Ofensiva neoliberal e automização da sociedade civil....... 170
4.1.1 Descentralização e neoliberalismo: uma lógica
perversa........................................................................ 175
4.2 Democracia e cidadania: a favor ou contra a corrente?..... 186
4.2.1 Sociedade civil (convertida) em "esfera pública" e
democracia: a cidadania dos "espaços públicos".... 196

CONCLUSÕES — Afinal, qual é o valor universal da


democracia?...................................................................................... 217

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................ 229


H

Prefácio

Democracia e sociedade civil estão entre os conceitos mais


polissêmicos do pensamento social contemporâneo. É também com
diferentes sentidos e acepções que eles são utilizados nos órgãos de
imprensa. Toma-se assim necessário, quando hoje se fala de democra­
cia ou de sociedade civil, saber o que se quer precisamente conotar
com estas palavras. Este esclarecimento preliminar é assim um mo­
mento ineliminável da batalha das idéias que tem lugar em nosso
mundo contemporâneo. Como veremos, contribuir para este esclare­
cimento é um dos objetivos do livro que o leitor tem agora em mãos.
Tomemos o caso da palavra "democracia". Não existe hoje ne­
nhuma corrente de opinião significativa que não defenda a democra­
cia e não se afirme democrática. Mas nem sempre foi assim: até pelo
menos o início do século XX, o pensamento liberal combatia aberta­
mente a democracia, ou por considerá-la algo ineliminavelmente li­
gado ao passado (Montesquieu, Constant), ou por apontá-la como res­
ponsável pela emergência de uma "tirania da maioria" contrária à li­
berdade individual (Tocqueville, Stuart Mill). A partir de certo mo­
mento, que talvez possamos situar no período posterior à Revolução
de Outubro de 1917, o pensamento liberal resolveu adotar positiva­
mente o termo democracia, utilizando-o não só contra o nazifascismo,
sobretudo durante a Segunda Guerra, mas talvez sobretudo contra o
socialismo, apresentado como algo despótico e totalitário. Assim, de
termo essencialmente subversivo, democracia passou a fazer parte
também de um discurso conservador.
12 M. I. DURIGUETTO

Essa avaliação positiva da democracia pelo liberalismo, contudo,


se fez a partir de um drástico esvaziamento do conceito, que deixou
de ser sinônimo da afirmação de uma igualdade substantiva e da efe­
tiva soberania popular, como era o caso em Rousseau, para se tomar
apenas a afirmação de determinadas "regras do jogo" de natureza for­
mal. Emblemática desta nova posição é a obra de J. A. Schumpeter,
que — depois de afirmar, tal como Gaetano Mosca e Weber, que polí­
tica é sempre ação de minorias, de elites — criou escola ao defender,
nos anos 1930, a idéia de que democracia nada mais é do que um
regime político que garante a escolha entre elites através de eleições
periódicas.
Algo análogo ocorreu com a expressão "sociedade civil". Não se
trata aqui de examinar o uso deste termo nos contratualistas, em Hegel
ou em Marx, mas apenas de recordar o fato de que ele foi introduzido
no debate contemporâneo graças sobretudo à formulação que lhe foi
dada pelo marxista Antonio Gramsci. Neste notável pensador, socie­
dade civil é a esfera da vida social na qual os diferentes grupos e clas­
ses sociais se organizam para disputar hegemonia, ou seja, para inter­
ferir diretamente na correlação de forças que determina o conteúdo
do poder numa formação social concreta. Em poucas palavras, socie­
dade civil — enquanto momento constitutivo do Estado contemporâ­
neo — é para Gramsci e os gramscianos um terreno privilegiado da
luta de classes. ,
Progressivamente, contudo, à medida em que ganhavam força
as idéias neoliberais, foi-se adotando um conceito cada vez mais
asséptico de sociedade civil, que aparece agora como um suposto "ter­
ceiro setor" situado para além do Estado e do mercado. Em vez de
campo de luta e de conflito, a sociedade civil tomou-se o reino do
bem, do voluntariado e da filantropia, contraposto ao Estado conside­
rado como o reino do mal, da ineficiência e da coerção. É fácil ver
como essa nova formulação serve à proposta neoliberal e privatista de
desmonte do Estado, não sendo casual o seu emprego e valorização
nas recentes propostas de combate à desigualdade formuladas pelo
Banco Mundial.
O principal mérito deste belo livro de Maria Lúcia Duriguetto
consiste precisamente em propor um resgate das diferentes acepções
que democracia e sociedade civil assumem de acordo com o contexto
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '3

ideológico em que tais termos são utilizados. A este resgate é dedica­


da sobretudo a primeira parte do livro, na qual Maria Lúcia nos apre­
senta a evolução e o conteúdo que os dois termos adquirem nas tradi­
ções liberal e marxista, deixando bastante claro para o leitor que a
similaridade dos termos não deve ocultar a profunda diversidade
conteudística e conceituai dos mesmos nas duas diferentes e antagô­
nicas tradições. Surpreende o domínio que a jovem Maria Lúcia reve­
la possuir dos principais conceitos dos autores que expõe e analisa.
No caso da tradição marxista, a autora tem a lucidez de retratar a
gênese da estruturação destes conceitos em pensadores como Rousseau
0 Hegel, mostrando como a assimilação — crítica — dos principais
ensinamentos dos mesmos é parte ineliminável da estruturação da
teoria social de Marx e de Gramsci, aos quais são dedicados dois dos
mais instigantes subcapítulos deste livro. No que se refere à tradição
liberal, Maria Lúcia se dedica especificamente ao liberalismo do
século XX, momento no qual, como já observamos, o termo democra­
cia passa a assumir nesta tradição um caráter positivo. São aqui anali­
sados os principais autores das correntes elitistas e pluralistas, sobre­
tudo o norte-americano Robert Dahl, mas também a obra de Jürgen
Habermas, o qual — embora não seja estritamente um liberal — con­
tribuiu com suas reflexões para a criação de um conceito de democra­
cia e de sociedade civil alheios à tradição marxista e gramsciana.
A segunda parte do livro de Maria Lúcia é dedicado à exposição
do modo pelo qual os conceitos de democracia e sociedade civil apa­
recem no Brasil, constituindo um dos principais temas da batalha das
idéias que se inicia com a transição e chega até os dias de hoje, quan­
do parece se afirmar sem contrastes uma hegemonia neoliberal. Ela
nos mostra aqui, através da análise de alguns protagonistas do debate
teórico ocorrido neste período, como os autores tratados teoricamente
na primeira parte, sobretudo Gramsci e Habermas, se tomaram "bra­
sileiros", ou seja, passaram a fazer parte integrante das tentativas não
só de compreender e iluminar traços determinantes da sociedade bra­
sileira contemporânea, mas também de formular programas concre­
tos de intervenção e transformação da realidade.
Sem abandonar em nenhum momento o rigor da análise, Maria
Lúcia Duriguetto toma explicitamente partido. Ainda que nos apre­
sente com objetividade os autores que examina, ela não nos esconde
>4 M. I. DURIGUETTO

que suas reflexões se situam no âmbito da tradição marxista, em par­


ticular daquela ligada ao nome de Antonio Gramsci. Portanto, este
seu primeiro livro — que já nos revela uma pensadora madura — não
nos ajuda apenas a compreender a realidade, mas é também um estí­
mulo para transformá-la.

Rio de Janeiro, junho de 2006


C a rlo s N elso n C o u tin h o
15

Introdução

As reflexões contidas neste livro são produto de minha tese de


doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de
Janeiro em 2003.
A investigação apresentada analisa o debate teórico brasileiro
acerca das categorias sociedade civil e democracia e suas interconexões com
projetos societários desenvolvidos a partir do processo histórico iniciado com
a transição democrática. Neste campo temático maior, enfatizamos par­
ticularmente uma análise crítica do tratamento teórico das elaborações acerca
do processo de consolidação da democracia no Brasil que partem da perspecti­
va do fortalecimento da sociedade civil.
A definição dessas categorias, bem como a análise que fazemos
delas, partem dos pressupostos centrais do método de investigação
da teoria social marxiana. Tais pressupostos, erigidos sob algumas
categoriais-chave desta teoria, como é o caso da concepção de totali­
dade,1 constituem referências teórico-metodológicas básicas para o
tratamento do objeto.1

1. "Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade
como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos,
conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não
significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não consti­
tuem, ainda, a totalidade [...]. A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir
todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos do real; é a teoria da reali­
dade como totalidade concreta. [...] desta concepção da realidade decorrem certas conclu­
sões metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico
|6 M. L. DURICUETTO

Nessa perspectiva, o encaminhamento da investigação se pro­


cessa pela apreensão e compreensão das categorias acima apontadas
enquanto resultantes das múltiplas determinações gestadas e desen­
volvidas no processo de desenvolvimento do modo de produção ca­
pitalista. A especificidade daquelas categorias vai ser identificada nas
e pelas mediações que as constituem, uma vez que "cercar o objeto do
conhecimento através da compreensão das suas mediações e correla­
ções constitui a riqueza, a novidade e a propriedade da dialética mar­
xista para explicação do social." (Minayo, 1992: 64)
É a partir desses pressupostos que temos a pretensão de encami­
nhar a análise teõrico-crítica das produções sobre as categorias de aná­
lise escolhidas. Dessa forma, explicitamos que este estudo inscreve-se
na tipologia investigativa teórico-documental sobre essas categorias.
É na direção de procurar apreender a construção teórica e as perspecti­
vas prático-poltticas que implicam na formulação de projetos societários, que
as categorias de sociedade civil e democracia são analisadas num conjunto
significativo de produções acadêmicas. Justificamos a escolha da investi­
gação de tais categorias por elas estarem fortemente presentes nas ela­
borações teóricas, debates e nas prospecções e ações sócio-políticas
dos diferentes sujeitos, movimentos e organizações sociais presentes
na dinâmica da vida social brasileira, fundamentalmente a partir dos
finais da década de 1970.
No entanto, diferentes-usos dessas categorias encontram-se nas
definições e projetos prático-políticos: a esfera da sociedade civil é in­
terpretada como campo em que se desenvolve a luta pela construção
de projetos hegemônicos de classe; é pensada como esfera em que se
desenvolvem estratégias de convivência com o Estado e o mercado e é
usado para legitimar a desresponsabilização estatal no campo das
políticas públicas. Também é nela e a partir dela que são construídas
prospecções sócio-interventivas para a construção de um aparato es­
tatal democrático e de direito e é ainda em seu nome que se atacam
todas as interferências e regulamentações estatais.
Também a democracia está sendo amplamente enaltecida, sendo
considerada como o único sistema legítimo de governo. No entanto,

para estudo, descrição, compreensão, ilustração e avaliação de certas seções tematizadas do


real/' (Kosik, 1989: 35-6)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 17

seu significado e seus aspectos constitutivos encontram-se esvazia­


dos de conteúdos que a projetem para além de seus procedimentos
normativos. Particularmente, o trajeto da reflexão democrática do cam­
po progressista brasileiro produzido a partir do processo histórico ini­
ciado com a transição democrática apresenta, nos dias atuais, uma
rigorosa inflexão. Se no início desse processo existiam concepções nas
quais a democracia era entendida como um momento ineliminável
da luta pelo socialismo e de sua construção e organização, mais recen­
temente, o que temos, na grande parte das análises que investigare­
mos, é o abandono do socialismo enquanto meta estratégica do pro­
cesso de democratização, resignado a propostas de compatibilizar o
mercado com a justiça social. Assim, o que está hoje em disputa são os
parâmetros da democracia, seus participantes, instituições, processos,
agendas e campo de ação. Este trabalho tenta desenvolver uma inda­
gação que possa permitir avaliar tanto os referenciais teóricos quanto
as questões políticas que estão em jogo.
Na mesma direção caminha o uso do termo cidadania, cuja refe­
rência, cada vez mais crescente, é utilizada para ilustrar acontecimen­
tos diversos: experiências estaduais e municipais democrático-popu-
lares; ações sócio-educativas das ONGs; campanhas de solidariedade
tais como a Ação da Cidadania contra a Fome, como também práticas
de cunho "social" das empresas. O termo também é utilizado para
reforçar a importância das práticas filantrópicas do chamada "tercei­
ro setor" em sua versão neoliberal. Esses diferentes usos evidenciam
que a apropriação do conceito generalizou-se, com sentido e inten­
ções muito diferentes, o que coloca a necessidade também de rediscuti-
lo e clarificá-lo.
Este campo temático, portanto, manifesta problemas que preci­
sam ser identificados e superados. E isso é reforçado especialmente
quando percebemos uma protagonização, nas reflexões teóricas e nas
demandas prático-políticas entre os mais diferentes sujeitos sociais,
do discurso acerca da temática da democracia, da cidadania e das es­
tratégias de fortalecimento da sociedade civil para a nossa consolida­
ção democrática no decorrer da década de 1990. Conceitos como "par­
ticipação social", "esfera pública", "democracia participativa", "con­
trole social sobre o Estado", "realização de parcerias entre Estado e
sociedade civil" parecem hegemonizar as perspectivas da nossa con­
(8 M. I. DURICUETTO

solidação democrática. Todavia, tais conceitos só têm seus conteúdos


e significados explicitados quando pensados e examinados no qua­
dro mais amplo e complexo das relações entre Estado e sociedade ci­
vil. E é justamente aqui que se tem a generalização e a disputa de seus
significados, o que coloca, inicialmente, a necessidade de refazer al­
guns percursos sócio-políticos da conjuntura nacional, a partir da dé­
cada de 1970, que delimitaram a construção de conceitos e práticas
acerca da relação entre sociedade civil e "questão democrática".
Frente à constatação dos diferentes usos teóricos e prático-políti-
cos de que as categorias sociedade civil e democracia vêm sendo alvo,
impõe-se a necessidade de explicitar que significados se atribuem aos
conceitos que estão protagonizando os debates em tomo da "questão
democrática" na sociedade brasileira. Essas categorias vêm tendo uma
função analítica relevante como marco orientador fundamental para
a ação política, o que expressa a necessidade de uma remissão ao
movimento teórico maior que as sustentam. E esse movimento maior
é buscado e desenvolvido em dois níveis: no tratamento que a temáti­
ca da sociedade civil e da democracia tiveram em algumas produções
da tradição marxista e nas das Ciências Sociais; e no estudo crítico
sobre o desenvolvimento desses conceitos na experiência sócio-histó-
rica brasileira, com ênfase nas produções — que prospectivam pro­
cessos de consolidação democrática, pelo fortalecimento da socieda­
de civil — elaboradas a partir do contexto da nossa "redemocratiza-
ção". Esses dois movimentos analíticos estão profundamente inter-
relacionados e essa interrelação determina o cenário conceituai a que
este trabalho responde.
Alertamos para o fato de que a explicitação das elaborações acer­
ca das temáticas em tela não foram por nós utilizadas com igual peso
e igual medida. Longe disso. O que norteia teoricamente a perspectiva de
análise das categorias da sociedade civil e democracia nesta investigação é a
sua articulação com a formação de um projeto societário hegemônico das clas­
ses subalternas. É na busca da elucidação teórica e prático-política des­
se projeto emancipatório na tradição marxiana e marxista, bem como
na realização de uma análise crítica de sua ausência nas formulações
das Ciências Sociais, que são desenvolvidas e analisadas as formula­
ções teóricas contidas tanto na Primeira Parte deste estudo, quanto na
Segunda Parte, que aborda as produções brasileiras.
SOCIEDADE C IV Il E DEMOCRACIA 19

No capítulo 1, tecemos indicações e análises sobre fundamentos


e princípios buscados em autores do campo teórico marxista que tra­
taram do vínculo entre democracia e socialismo. Priorizamos autores
cujas elaborações oferecem importantes contribuições para se pensar
a democracia enquanto processo, cuja direção e finalidade se assentam
na organização e formação de uma vontade coletiva das classes subal­
ternas para a construção de seu projeto emancipatório. Nesse capítu­
lo, o fio teórico da exposição consiste fundamentalmente em demons­
trar o enriquecimento das determinações econômicas, sociais e políti-
co-culturais que a relação entre democracia e socialismo foi tendo ao
longo da evolução histórica dessa tradição e que se reflete nas produ­
ções dos autores analisados. As análises estão fundamentadas a partir
do campo teórico do marxista italiano Antônio Gramsci. Em Gramsci,
o centro da relação entre democracia e socialismo é a sociedade civil, e é
a partir dela que projeta a construção de um projeto hegemônico das
classes subalternas e da transição ao socialismo. Na sua concepção,
sociedade civil é o espaço em que são construídos e articulados proje­
tos de direção ético-política, onde se formam vontades coletivas, es­
paço em que se disputa o poder e a hegemonia.
Demarcado o campo teórico no qual se assenta o nosso entendi­
mento das categorias sociedade civil e democracia, focalizamos, no
capítulo seguinte, o trato dessas categorias na tradição liberal. Antes,
porém, explicitamos as determinações econômicas, políticas e sociais
que estão hoje no centro das problematizações acerca das categorias
sociedade civil e democracia. Nesse sentido, a "crise" do capital e dos
modelos conhecidos de Welfare State, a emergência de um novo pa­
drão de acumulação, de uma nova conformação do aparato estatal e
seus impactos nas ações sócio-interventivas das classes subalternas
são questões tematizadas no capítulo 2.
Particularmente no que tange à "questão democrática", esses di­
lemas contemporâneos são interpretados por tradições teóricas signi­
ficativas do pensamento liberal. Priorizamos as formulações de pen­
sadores pertencentes a essas tradições objetivando apreender, em suas
análises, definições, atribuições e relações estabelecidas entre as cate­
gorias de sociedade civil e democracia e os projetos societários
perspectivados. Iniciamos a discussão com a explicitação da teoria de­
mocrática elitista cujas formulações constituem o marco para a emer­
gência de uma concepção minimalista, procedimental e restrita de
20 M. L. DURIGUCTTO

democracia. É nesse veio teórico que o pensamento neoliberal — que


surge como resposta de enfrentamento à crise do capital — irá se nu­
trir para pensar a "questão democrática". Elucidamos o tratamento
neoliberal das categorias sociedade civil e democracia em autores que
se detiveram especificamente em apontar elementos para uma defini­
ção, acoplada no marco societal neoliberal, de democracia.
Em oposição a esses construtos minimalistas de democracia, res­
saltamos a tradição do pluralismo democrático, importante corrente do
pensamento liberal que, de maneira forte, influencia um conjunto sig­
nificativo e vasto de autores e produções sobre o entendimento dos
limites e potencialidades da democracia.
A terceira tradição teórica do pensamento liberal por nós anali­
sada é a que procura se situar como alternativa às duas tradições an­
teriores. A relação entre sociedade civil e democracia ganha um novo
tratamento com a ênfase no conceito de esfera pública. Esse conceito
tem sua relevância a partir da nova significação que a categoria socie­
dade civil passa a ganhar a partir dos acontecimentos históricos rela­
tivos à crise do Welfare State e do socialismo real, dos processos de
(re)democratização da América Latina e das temáticas e lutas levanta­
das pelos diferentes e diversos movimentos sociais pela ampliação
dos direitos de cidadania. Fundamentalmente, o que é destacado nes­
sa tradição são os processos de emergência e consolidação de uma
terceira esfera que se caracteriza por aglutinar espaços de participa­
ção e de organização social que sejam independentes e separados do
Estado e do mercado. Essa esfera é nominada de "pública", sendo a
forma na qual se reveste ou se transmuta o conceito de sociedade ci­
vil. Ou seja, é introduzida uma nova definição de sociedade civil e
democracia a partir do processo de construção de uma nova "esfera
pública".
Em sintonia com essas interpretações no que tange á necessida­
de de ampliação e fortalecimento da esfera pública, temos as elabora­
ções que se centram na ampliação da democracia política através da
implementação do "modelo participativo", que tem na construção de
novos construtos de expressão da opinião pública seus principais veios
de realização. A articulação entre democracia representativa com no­
vos canais de participação direta tem gestado uma nova concepção de
democracia, a de "democracia participativa".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 21

É com base no tratamento analítico da questão democrática ope­


rado pela tradição marxista e pela tradição liberal, tratados na Primei­
ra Parte, que se fundamenta nosso referencial teórico acerca das cate­
gorias sociedade civil e democracia. Na seqüência da exposição,
recuperamos o percurso do conceito dessas categorias no contexto
brasileiro, identificando pontos de confluência e coalisão com o cam­
po teórico exposto.
No capítulo 3, tecemos considerações sobre algumas das carac­
terísticas centrais que balizaram o processo da modernização capita­
lista brasileira e o tipo de relação que o Estado estabeleceu com as
organizações das classes subalternas. Pode se dizer, de início, que o
que caracteriza o nosso processo de modernização capitalista e a nos­
sa tradição político-cultural é a histórica ausência de democracia, que
resulta dos mecanismos de reformas "pelo alto", os quais alijaram as
classes subalternas dos processos de transformações econômicas, so­
ciais e políticas.
No entanto, assistimos a um clima favorável à ampliação da de­
mocracia a partir de 1945 (mas ainda extremamente limitado durante
o governo Dutra). Entretanto, a intensa mobilização social que se ex­
pressou no movimento sindical, nas ligas camponesas e numa ampla
reivindicação por "reformas de base" de cunho democrático, popular
e nacionalista foi truncada pela instauração do regime ditatorial. Re­
forçando e elevando a nível superior os traços autoritários dos pro­
cessos de exclusão das classes subalternas dos canais de decisão polí­
tica, o golpe de 64 monopolizou nas mãos dos seus tecnocratas a dis­
cussão e o encaminhamento das questões decisivas da vida pública,
deslegitimando e impedindo que as massas populares se organizas­
sem e reivindicassem direitos. Naquele contexto de ausência de ca­
nais de interlocução legítimos de negociação de interesses e conflitos
e, especialmente, a partir do início da crise do "milagre" brasileiro,
assistimos a uma reativação das classes subalternas em ações e orga­
nizações que passaram a dinamizar processos de mobilização de de­
fesa, conquista e ampliação de direitos civis, políticos e sociais.
É para expressar e revelar esse contexto do aparecimento de mo­
vimentos e organizações sócio-políticas que a categoria sociedade civil
foi empregada na dinâmica social brasileira. Dessa forma, o desenvol­
vimento dessa categoria está diretamente articulado com a emergên­
cia de iniciativas e manifestações sociais, que lutavam ou se posicio­
22 M. I. DURICUETTO

navam contra o regime autoritário. No entanto, esse não foi o único


significado atribuído ao conceito de sociedade civil. Foi neste novo
contexto que o próprio termo passou a ser objeto de significados dife­
renciados que expressariam projetos políticos em disputa. Projetos
esses que materializaram diferentes e antagônicas interpretações acerca
de como deveria ser a nossa "transição democrática" e a consolidação
da nossa democracia.
O centro da análise, no capítulo 3, é a elucidação dessas interpre­
tações, que são identificadas a partir do projeto de abertura dos milita­
res, do modelo vislumbrado pelos liberais-democráticos, que se des­
tacaram pela defesa da retomada da democracia, cujo significado cir­
cunscrevia-se ao espaço restrito da "engenharia política" — funciona­
mento das instituições públicas de representação e de governo (elei­
ções, império da lei, pluripartidarismo etc.), e pelos autores que se
centraram no processo de fortalecimento da sociedade civil como con­
dição fundante da democracia. Pautamo-nos aqui nas análises desen­
volvidas por Carlos Nelson Coutinho, Francisco Weffort e Marilena
Chaui por serem os autores cujas formulações teóricas balizaram o
campo temático acerca da "ampliação" e "consolidação" da democra­
cia a partir da valorização dos interesses populares presentes nas or­
ganizações da sociedade civil. Esse campo teórico, entretanto, não é
homogêneo, ao contrário, diferentes e antagônicas concepções de so­
ciedade civil e de democracia
*
são encontradas nas formulações des-
ses autores.
Em Coutinho, temos uma leitura de sociedade civil tal como a
concebe Gramsci, sendo nela e a partir dela que o autor estabelece o
vínculo entre democracia e socialismo. Um modelo de sociedade civil
e de democracia tal como postulado pelo pluralismo liberal é encon­
trado nas formulações de Weffort. E a idéia de uma sociedade civil
autônoma e independente como base para a edificação de uma demo­
cracia social e cultural é defendida por Chaui. Essas matrizes teóricas
constituem o núcleo para a análise dos desdobramentos, distancia­
mentos, contradições e fragilidades das formulações acerca das cate­
gorias sociedade civil e democracia produzidas pelo campo democrá­
tico brasileiro a partir da segunda metade dos anos da década de 1980.
Embora possamos encontrar diferentes leituras acerca do signi­
ficado do conceito de sociedade civil nos autores acima assinalados,
grande parte das produções acadêmicas e ações sócio-interventivas
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA J3

ilos movimentos e organizações que expressavam os interesses das


c lasses subalternas na primeira metade da década de 1980, concebiam
que as lutas políticas por direitos deveríam ser desenvolvidas num
crescente processo de negação da institucionalidade político-institu-
cional, particularmente a condensada no aparato estatal. Nessa dire­
ção, todas as expressões sócio-organizativas, políticas e culturais de­
senvolvidas no campo da sociedade civil passaram a ser enaltecidas
positivamente, pois eram entendidas e valorizadas pelas suas contra­
posições e enfrentamentos ao Estado. Esse tão celebrado momento
"positivo" da sociedade civil tinha, como substrato teórico-político,
uma imagem de sociedade civil como esfera de representação e defe­
sa homogênea dos interesses populares.
No entanto, no decorrer dos anos da década de 1980, assistimos
a uma inflexão nas ações e interpretações dos movimentos e organiza­
ções das classes subalternas desenvolvidas no campo da sociedade
civil e na sua relação com o Estado. Particularmente no período que
imediatamente precede a elaboração da Constituição de 1988, esse
"campo movimentalista" da sociedade civil passa a incorporar e a
valorizar a expansão dos canais institucionais do aparato estatal, em
suas diferentes instâncias, enquanto espaço estratégico de encaminha­
mento de suas demandas e reivindicações. A partir dessa inflexão,
um dos caminhos visualizados para a ampliação da democracia passa
a ser a reivindicação da criação de canais político-institucionais para
n participação dos cidadãos nos processos de discussão e negociação
de políticas públicas, como, por exemplo, os conselhos de direitos.
Em concomitância, também são valorizados a emergência e o
desenvolvimento de uma pluralidade e diversidade de ações, movi­
mentos e organizações no campo da sociedade civil voltados para
reivindicações de mudança dos valores culturais da sociedade, par­
ticularmente no que tange aos "direitos das minorias". Esses dois
vetores, o institucional e o extra-institucional, passam a ser vislum­
brados como os caminhos a serem perseguidos para alcançarmos a
nossa consolidação democrática. E esta consolidação está organica­
mente vinculada à redefinição da noção de cidadania e de seu refe­
rente central, a noção de direitos, que são exercitados nesses espaços
institucionais e extra-institucionais, conformando a criação de uma
esfera pública não-estatal que vem sendo incorporada como concepção
relativa às estratégias de fortalecimento da sociedade civil.
24 M. L. DURIGUETTO

Nesse percurso, uma primeira aproximação no campo das refle­


xões desenvolvidas por alguns autores acerca da temática da socieda­
de civil e da democracia na década de 1990 já possibilitou-nos perce­
ber que um dos esforços que se empenham em realizar está na supe­
ração da antinomia estatal-mercado, pela via da valorização da socie­
dade civil. São perspectivas que abrem possibilidades de identifica­
ção e análise dos "atores sociais" da sociedade civil — aqui
substantivados nos movimentos sociais, ONGs, "terceiro setor" —
como protagonistas principais dos processos de ampliação da demo­
cracia e da cidadania.
Tais movimentos e ações envolvidos nessa pluralidade e diversi­
dade de temáticas e de demandas muitas vezes apresentam elemen­
tos que escapam da lógica operacional e do controle estatal e mercan­
til, e por isso acabam dando força à idéia de que teria surgido uma
"terceira esfera", posicionada entre o Estado e o mercado, espaço do
exercício da autonomia e do livre associativismo dos cidadãos. E é
para expressar essa terceira esfera que o termo sociedade civil passa a
ser empregado e a ela seria transferida toda potência da ação demo­
crática, da luta por direitos e da busca do interesse público.
Chegamos, assim, a um dos eixos centrais de discussão teórica e
de proposta política do "campo democrático": as abordagens que apon­
tam para o papel central da auto-organização da sociedade civil como
constituição de uma "tercèíra via" (como esfera pública) entre o mer­
cado e o Estado. O desafio para uma efetiva democratização do Esta­
do e da sociedade estaria na construção de uma esfera pública para a
exposição, o debate e a negociação pública de interesses.
Nessa direção, estabelecemos a hipótese de que as formulações
teóricas do conceito de sociedade civil como esfera pública, utilizadas
para se pensar a democracia na contemporaneidade brasileira, ten­
dem a se aproximar de uma dada vertente teórica que se desenvolve a
partir da crise do Welfare State e do socialismo real, particularmente
materializada nas elaborações dos autores que conferem significativa
relevância ao fortalecimento de uma esfera pública para o fortaleci­
mento da democracia.
A intenção não é a de empreender uma análise empírica calcada
na visão de atores políticos específicos (novos movimentos sociais,
ONGs, "terceiro setor" etc.), mas uma discussão teórica centrada numa
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA

reflexão de caráter abrangente sobre a utilização do conceito de socie­


dade civil, como esfera pública, que abarca esses movimentos e orga­
nizações. É a partir desta constatação que apontamos a necessidade
de se examinar a discussão que se trava hoje no Brasil em relação à noção de
sociedade civil bem como retomar as definições que o termo recebeu a partir
ilo final dos anos 1970. Isso se justifica devido ao fato de que as diferen­
tes orientações teóricas e projetos políticos, que sustentaram e susten­
tam os vários desenhos dos rumos a serem seguidos pelo processo de
construção e consolidação democrática no Brasil, partiram e partem
iia valorização teórica e prático-política da sociedade civil. Por isso, é
fundamental voltar ao debate sobre esta categoria para resgatar os di­
ferentes "valores" que se imputam à democracia que se quer cons­
truir "universalmente".
O que esse processo de construção de diferentes perspectivas de
entendimento do fortalecimento da sociedade civil como estratégia
para a nossa consolidação democrática nos revela é que a democracia
se radicou como "um valor universal", mas também se universalizaram
diferentes concepções do que seria o seu "valor". Caminhando "pari
passu" com as expectativas da "democratização", também encontra­
mos concepções comuns e/ou diferenciadas acerca do termo cidada­
nia, cujo uso e abuso deixaram-no completamente sem sentido. E, fi­
nalmente, o próprio entendimento do que seria "o lado bom", ou seja,
do que seria a aplaudida sociedade civil também passou a ganhar no­
vos adjetivos e adereços conceituais como os de "esfera pública" ou
"espaço público".
Esses diferentes significados conceituais utilizados para a defi­
nição dessas categorias, que analisamos no capítulo 4, permitiram-
nos visualizar o quão complexo encontra-se o campo teórico-analítico
que aborda as propostas de fortalecimento da democracia no Brasil, o
que aponta para a necessidade de explicitação, aprofundamento e ou
revisão de seus conteúdos. Complexidade que se acentua ainda mais
quando verificamos que as perspectivas de "ampliação" da democra­
cia através da ocupação pela sociedade civil dos espaços públicos e
estatais visualizadas pelo campo democrático estão também sendo
incorporadas, embora de forma invertida, pelo receituário neoliberal.
Ou seja, as formulações acima assinaladas vêm caminhando na defe­
sa de um entendimento do conceito de sociedade civil do qual se apro­
priou o projeto neoliberal, uma vez que nas propostas neoliberais, a
26 M. I. DURIGUETTO

tese da autonomia da sociedade civil também se metamorfoseou numa


proposta de esfera pública não-estatal, para fazer as vezes do Estado.
Aqui, a "descentralização", a "participação cidadã", "as parcerias en­
tre Estado e sociedade civil" são discursos que acompanham as pro­
postas de desresponsabilização do Estado com as políticas sociais como
evidenciado através do projeto de "reforma" do Estado brasileiro im­
plementado na década de 1990.
Nele, por exemplo, as propostas de descentralização dos pro­
gramas e serviços sociais vêm se dando através das "parcerias", sub­
venções ou transferência de responsabilidades às instâncias locais,
ao mercado e à sociedade civil. Esta é identificada como espaço de
um "terceiro setor", situado além do Estado e do mercado, espaço
da solidariedade, do voluntariado, das ações sociais despolitizadas
e fragmentadas.
De acordo com o exposto, existe um campo de tensão nos usos dos
conceitos de sociedade civil, esfera pública, democracia, cidadania,
participação, público versus estatal, hoje tão amplamente utilizados
nas formulações teóricas que tematizam os caminhos prático-políti-
cos da ampliação e consolidação da democracia no Brasil. As deman­
das pela ampliação da participação da sociedade civil nos mecanis­
mos de gestão de discussão das políticas públicas podem estar orien­
tadas por pontos de vista distintos, dentro de um espectro que envol­
ve tanto aqueles que defendem a privatização dos serviços públicos
quanto os que lutam pela'expansão da esfera pública, das políticas
sociais e da maior responsabilização do Estado na sua implementa­
ção. Assim, dentre os conceitos expostos que norteiam os desenvolvi­
mentos analíticos do "campo democrático" brasileiro acerca das te­
máticas da sociedade civil, democracia e cidadania, o de "esfera pú­
blica não-estatal" é um conceito que assume conteúdos extremamen­
te diversos nos discursos e práticas de diferentes atores.
A generalização desse discurso coloca a urgência de conferir
maior qualificação a estes conceitos. Para compreender esses percur­
sos recentes e os presentes impasses, é essencial que voltemos ao de­
bate sobre sociedade civil, um dos conceitos mais citados e, ao mesmo
tempo, sem que cuidados maiores houvesse na precisão do seu senti­
do. Nessa perspectiva, refletimos sobre os diferentes significados e
papéis atribuídos à sociedade civil, procurando perceber como proje­
tos políticos opostos concebem esse termo e fazem uso prático dele.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA »7

Pensamos que o debate contemporâneo acerca do conceito de socie­


dade civil e de democracia nos setores progressistas da sociedade bra­
sileira tende a expressar uma fragilidade teórica com evidentes des­
dobramentos nas direções e/ou inserções prático-políticas.
Frente a esse contexto onde predominam diferentes visões e for­
mas práticas de sociedade civil, nosso interesse é resgatar uma correta
definição do estatuto teórico desta categoria. E essa definição é por
nós buscada na tradição marxista, particularmente gramsciana, a qual
tomaremos como parâmetro para dialogar e contrapor às versões
.1políticas, a-classistas e autonomistas do mesmo, atualmente tão em
moda. É também nessa direção que se impõe revitalizar aquelas cor­
rentes de pensamento surgidas nos finais da década de 1970, no con­
texto da redemocratização, cuja base teórica para se pensar a constru­
ção e conceber a democracia se assentam no universo daquela tradi­
ção. Ou seja, nas elaborações que resgatam o conceito gramsciano de
sociedade civil em sua dimensão fortemente política, como espaço de
luta pela hegemonia e pela conquista do poder político das classes
subalternas, condição para a existência de uma verdadeira democra­
cia, pensada enquanto processo de construção de um projeto societá­
rio hegemônico daquelas classes.
É nessa concepção de sociedade civil e de "democracia de mas­
sas" e dos fundamentos teóricos da tradição marxiana e marxista
que as determinam que se situa o vetor analítico fundamental deste
trabalho.
Nessa direção, este estudo pretende ser uma contribuição a uma
discussão necessária entre todos aqueles que defendem que, se diante
da contemporânea hegemonia neoliberal, a questão central é a defesa
da manutenção e ampliação dos direitos, também é verdade que se
faz necessário refundar a política e a democracia como seu espaço de
criação, universalização e de formação de um novo projeto societário
que se contraponha ao do capital.

A realização deste trabalho deve-se, em grande parte, à sustenta­


ção que tive nos incentivos, apoios e afetos a mim proporcionados.
Especialmente celebro e agradeço essa sustentação:
Ao Professor Carlos Nelson Coutinho, amigo-orientador. Sua obra
despertou-me os decisivos estímulos intelectuais para as minhas in-
28 M. L. DURICUETTO

quietações e para a necessidade de enfrentá-las. Esse trabalho é o pro­


duto desse enfrentamento. Agradeço a atenção especial dos professo­
res José Paulo Netto, Virgínia Maria Fontes, José Maria Gómez, Ignácio
Godinho Delgado, Elaine Behring e Carlos Montãno que, com suas
contribuições, enriqueceram este trabalho. Aos professores da Facul­
dade de Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora pelas
trocas profissionais e existenciais; aos alunos pela interlocução coti­
diana, estímulo fecundo para fazer da vida acadêmica algo apaixo-
nante e ao programa PICDT/CAPES, pela bolsa concedida.
Às amigas Andréa Teixeira, Ana Mourão, Badinha, Cristina
Paniago e Gabriela Icasuriaga, pela cumplicidade da vida. Meus ir­
mãos Fizinho, Tista, Lena e Marinho, pela certeza do amor.
Juliana de Castro Millen, pelo cotidiano de aprendizado, de en­
corajamento e de luz. Maria Inês e Clesson Millen, pelo acolhimento.
Denise Guamieri, pelas lições definitivas.
29

Parte I
Temática da democracia na
tradição liberal e marxista
Capítulo i

Democracia e socialismo na tradição marxista

i.i. Democracia, capitalismo e liberalismo: encontros-desencontros


A partir da década de 1980, com a derrocada do socialismo do
Leste Europeu e com a "crise" dos regimes de Welfare State, processa-
se em nível mundial uma reatualização dos valores da tradição libe­
ral, que tem, como um de seus suportes políticos-ideológicos, o resga­
te de uma falsa equação entre democracia, capitalismo e liberalismo. Essa
(falsa e ideológica) equação tem, como um de seus pilares centrais, a
defesa de que o fundamento central do liberalismo — a cidadania que
emana das garantias e prerrogativas dos direitos civis e das liberda­
des individuais — foi ou estaria sendo corroída, mutilada, debilitada
pela vigência de outros projetos societários. Como afirma Netto (1995:
91), a apologia desses direitos ganhou tal relevância que o legado do
liberalismo passou a confundir-se com a garantia da liberdade tout
court, o que acabou "[...] por reduzir liberdade(s) a liberalismo e a iden­
tificá-lo com democracia, numa clara falsificação histórica
Liberalismo nunca foi sinônimo de democracia. Como bem apon­
ta Quartim (1999), o objetivo da identificação das duas categorias é
erigir a democracia liberal em "pensamento único". Isto é, para anu­
lar a própria questão da democracia, mais exatamente, anular a de­
mocracia enquanto questão.
As vertentes teóricas do liberalismo clássico nunca defenderam
a incorporação e/ou ampliação de componentes democráticos em seus
3* M. I. OURIGUETTO

ordenamentos poHtico-institucionais.1 Ao contrário, as formas políti­


cas democráticas que tal ordenamento incorporou e/ou ampliou fo­
ram arduamente reivindicadas e conquistadas pelas massas popula­
res. São essas conquistas — universalização dos institutos político-
representativos — que são tomadas pela teoria liberal como sua for­
mulação e como limite máximo da democracia. Decorre daí a suges­
tão de que a democracia política tanto mais se alarga quanto mais se
universalizam os diTeitos e garantias cívico-individuais que se
corporificam na figura jurídico-política do cidadão.1
2 Ou seja

[...] em vez de captar [...] as determinações essenciais da democra­


cia tais como se objetivaram no movimento histórico, atribui-lhe as
características próprias à definição de liberalismo, isto é, atribui àquela
o significado deste e a este o significante daquela, chamando portan­
to de democrático o método liberal de distribuição do poder político.
(Quartim, 1999: 26)

Entretanto, se é a conquista de direitos cívico-individuais que


materializa a constituição de espaços sócio-políticos que possibilitam
a emergência de vontades coletivas em que se confrontam e se dispu­
tam perspectivas antagônicas de projetos societários,3 é somente com
o desvelamento dos pressupostos da figura jurídico-político do cida­
dão — base do caráter restritivo dos suportes teóricos e ideológicos
que circunscrevem a concçpção liberal de cidadania — que se pode
desmistificar a falsa equalização entre democracia e ordenamento
político de corte liberal e a afirmação de que o fundamento da demo­
cracia é a cidadania conceptualizada pela teoria liberal. No limite, como

1. Como afirma Macpherson (1978: 26-27): "[...] todas a$ teorias democráticas anterio­
res ao século XIX se enquadram melhor fora da tradição liberal".
2. Assim, a teoria liberal não se desenvolve como teoria política democrática. Recolhe
as demandas democráticas num arcabouço teórico-político que as repõe sobre um patamar
restritivo. Esse caráter restritivo tem seu fundamento na figura do "cidadão proprietário".
(Netto, 1990:14)
3. Como expõe Netto (1990: 76), "[...] o envolver da ordem capitalista abre a possibili­
dade objetiva da moderna democracia política, fundada na generalização do reconhecimen­
to social da igualdade jurídico-formal dos indivíduos e comportando a incorporação de
amplos segmentos sociais nos cenários da ação e da intervenção sociais. Dependendo da
capacidade de mobilização organizada destes segmentos — dependendo da sua prática po­
lítica, aquela possibilidade converte-se em realidade".
SOCIEDADE CIV IL E DEMOCRACIA 33

afirma Netto (1990:13-14), perde-se a noção de que "nos próprios pres­


supostos da figura jurídico-política do cidadão estão dadas as possi­
bilidades concretas para a liquidação da vida democrática".
Por outro lado, não há, necessariamente, incompatibilidade en­
tro democracia e capitalismo. Isso porque, conforme também aponta
Notto, o sistema capitalista tem produzido e pode conviver com dis­
tintos regimes políticos. No entanto, essa pluralidade de ordenamen­
tos políticos não é ilimitada, ela é antes condicionada pela compatibili­
dade desse(s) ordenamento(s) com a estrutura econômica capitalista.4
Dessa forma, a característica central dos ordenamentos políticos
engendrados no interior do sistema capitalista é a de perpetuar a ine-
liminável contradição presente na sua dinâmica:

[...] a contradição entre a crescente socialização da vida humana e


os restritos e restritivos modos de as massas humanas incorpora­
das neste processo aí intervirem decisivamente, posto que a sociali­
zação se dá nos limites de formações econômico-sociais cuja estru­
tura econômica mantém-se como tal apenas enquanto exclui das
instâncias de decisão as massas que a põem em funcionamento, que
a realizam historicamente (Netto, 1990: 75).

E é essa possibilidade que caracteriza o limite absoluto da demo­


cracia no capitalismo: a sua existência só é compatível com ordena­
mentos políticos democráticos restritos cuja restritividade impede a
transformação da igualdade formal em igualdade real (ou seja, igual­
dade em face da propriedade, posse e gestão dos meios de produção e
da participação sócio-política nas decisões societárias).5 Ou seja, apro­

4. No entanto, pondera Netto (1990: 72 e 74) que, para não cair em uma postura
"politicista" ou "economicista", a decisão a favor de um ou outro regime político não pode
ser vista com uma simples "função das variáveis econômicas: mas resultou sempre da me­
diação política [...] engendrada pela concorrência de múltiplas contradições, conflitos e lu­
tas de classes e grupos sociais, e seus agentes políticos, que se posicionavam diferentemente
em face daquelas variáveis". Assim, a democracia é aceita e promovida (formal e limitada­
mente) desde que permita a manutenção dos interesses hegemônicos do capital. No entan­
to, ela não existe independente das lutas das classes subalternas para sua ampliação.
5. A consolidação da universalização do ordenamento democrático tem sido, historica­
mente, uma demanda da prática das classes subalternas "para transformá-lo qualitativa­
mente através de rupturas ao longo de um processo onde ele será superado" e onde será
alcançada aquela "igualdade real". E, por sua vez, a progressiva consolidação de um orde­
J* M. L. DURICUETTO

fundar a democracia no capitalismo é aprofundar uma contradição


que o capitalismo não pode resolver. Seus princípios constitutivos são
irreconciliavelmente antagônicos. É o que veremos ao se discutir a
forma como os ordenamentos políticos perspectivados pelo liberalis­
mo6 conciliam-se com sua correspondente perspectiva de cidadania.

/././. Sociedade civil e democracia na teoria liberal clássica

Segundo Macpherson (1978,1979), a base teórica do Estado libe­


ral democrático e da moderna cidadania radica no princípio da igual­
dade de posse de direitos civis/individuais, articulado e relacionado
às teorias contratualistas do "direito natural" ou jusnaturalismo, e ao
processo de transição para o capitalismo.
É com esses fundamentos que a ordem política passa a ser
deduzida a partir de interpretações acerca da natureza humana. Rom­
pendo com as concepções de homem tanto da tradição judaico-cristã
— que o concebia como criatura divina inserido em uma comunidade
que se submete à vontade de Deus — quanto da tradição aristotélica
— que o concebia como animal político inserido em uma comunidade
voltada para a elaboração intersubjetiva da sociabilidade — o homem
passa a ser concebido como ser natural, racional e individualizado,
que age movido por paixões e interesses. Ou seja, passa a ser funda­
mentalmente concebido como sendo proprietário de si mesmo e de
suas capacidades, e eram essas "posses" que determinavam a sua li­
berdade e a realização de suas potencialidades.
É com base nessa "ontologia" que os jusnaturalistas vão edificar
a idéia de sociedade civil — uma sociedade caracterizada por relações

namento político democrático — na medida em que permite a redução da legitimidade das


respostas políticas "restritivas" (uma vez que tal progressividade é contraditória e confli­
tuosa com a dominação da classe burguesa), tende a fazer com que a classe dominante arti­
cule respostas restauradoras e/ou reacionárias. (Netto, 1990: 78-80)
6. O termo liberalismo possui, como observa Bobbio (2000: 686-705), em seu Dicionário
de Política, diferentes conotações, podendo indicar um partido ou movimento político, um
ordenamento político-institucional ou uma ideologia política voltada exatamente para a
realização desse ordenamento. Privilegiaremos este último significado. Deixaremos tam­
bém de lado o liberalismo enquanto doutrina econômica, o chamado liberismo, assim como
as possíveis conexões entre essa doutrina e o liberalismo político nos autores examinados.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 35

do troca entre indivíduos livres e iguais, proprietários de suas pró­


prias capacidades e do que adquiriríam mediante a prática dessas ca­
pacidades — e de sociedade política, uma esfera para a proteção dessa
propriedade e para a manutenção de um ordeiro relacionamento de
trocas (Macpherson, 1979: 15).
Habites, em sua obra Leviathan, foi um dos primeiros a defender
que o comportamento e os valores humanos são determinados pelos
cálculos dos prováveis efeitos e resultados que suas ações podem ter
para a satisfação de seus interesses. O poder é adquirido no mercado
o é definido pela capacidade individual de adquirir riqueza, reputa­
ção e de comandar e dominar os outros. Segundo Hobbes, os conflitos
de interesses, a luta pelo poder e a tendência natural dos indivíduos à
mútua destruição, competição e desconfiança igualam todos em inse­
gurança — os indivíduos estão em um "estado de natureza" —, o que
conduziría a um permanente "estado de guerra". Baseado nessa lógi­
ca, evidencia a necessidade de os homens estabelecerem um contrato
i*ntre si, que cria regras de convívio social e de subordinação política,
através do qual seus poderes e direitos seriam transferidos a um po­
der soberano, o Estado.7
As formulações hobbesianas marcam o início da preocupação
central no pensamento político liberal, que consiste na necessidade
de garantir um conjunto de liberdades individuais, que possibilitas­
sem a expressão da natureza humana, e na importância dada ao con­
senso na criação de um contrato social para regulamentar as relações
sócio-políticas. Não obstante, ao delegar ao Estado soberania absoluta
(o contrato não vincula o soberano a compromissos recíprocos com a
sociedade) e permanente, Hobbes não se preocupou em criar princi­
pies ou instituições para delimitar a ação estatal.
# liberal Locke, como Hobbes, também manifestou preocupa­
ção com a forma que a esfera política deveria assumir para garantir
a segurança, a paz e a liberdade da esfera privada. Também para ele,
os indivíduos encontram-se em um "estado de natureza" passível
de conflitos e de guerras, condição que os leva a instituir governos
para a conservação de seus "direitos naturais" — propriedade, vida

7. O contrato de Hobbes não funda um novo homem. O homem da "sociedade civil" é


o mesmo do estado de natureza: "o homem natural é o homem civilizado, apenas com a
restrição legal removida". (Macpherson, 1979: 40)
36 M. L. DURICUETTO

e liberdade.8O principal deles é o direito à propriedade e é a partir daí


que formula sua teoria de governo. Assim, a passagem do estado de
natureza à sociedade civil se faz para assegurar a propriedade, e a
finalidade de todo governo é a de conservá-la. Ou seja, a raiz do Estado
está na propriedade, ele existe para assegurá-la.
Diferentemente de Hobbes, Locke rejeitava a noção de um Esta­
do absoluto e proeminente em todas as esferas. A autoridade é con­
sensualmente entregue a um corpo legislativo e a um monarca, para
que criem e imponham leis visando a preservação e representação dos
interesses dos governados (propriedade e segurança pessoal). Caso
isso não aconteça, os governados podem dispensar a autoridade e a
própria forma existente de governo. Neste sentido, a participação po­
lítica é valorizada por ser instrumento que assegura a obtenção dos
fins privados individuais. Assim, a formação de uma "sociedade po­
lítica" não assinala a transferência dos direitos individuais para o Es­
tado. O poder político permanece nas mãos dos indivíduos, uma vez
que é transferido somente enquanto se cumprem seus interesses. A
soberania na sociedade civil, enquanto controle do poder político per­
tence, pois, ao cidadão [proprietário].9
As formulações de Locke constituíram as diretrizes fundamen­
tais do Estado liberal, inaugurando aquele que se firmaria como um
dos princípios e fundamentos centrais do liberalismo: "[...] o Estado
existe para proteger os direitos e liberdades dos cidadãos que, em úl-

8. Na obra Segundo tratado sobre o governo, Locke argumenta que os homens viviam em
estado de natureza, um estado de absoluta liberdade e igualdade para ordenar suas ações e
dispor de posses e pessoas como quisessem. Os homens tornavam-se proprietários à medi­
da que transformavam o "estado comum" da natureza através de seu trabalho, visando a
sua subsistência e satisfação. Assim, em Locke os homens passam a se apropriar da nature­
za pelo trabalho, tornando-se produtores de valores de troca, e desenvolvem-se desigual­
mente no próprio "estado de natureza". A complexificação das relações mercantis (surgi­
mento do dinheiro), comércio e indústria levaram à concentração da riqueza, tornando la­
tente a ameaça de conflitos, que seriam motivados pela propensão humana "natural" para a
acumulação. O temor da perda da liberdade e da propriedade faz com que os indivíduos
criem uma esfera política para conservá-las.
9. Como assinalou Macpherson, essa soberania está hipotecada aos que têm proprieda­
de, pois somente estes têm poder político. O Estado é fundado por eles para proteção de sua
propriedade e de si mesmos. Para Locke, os trabalhadores assalariados não têm uma condu­
ta racional, pois a essência desta está na aquisição da propriedade. São por isso seres igno­
rantes e inferiores, não podendo pensar ou agir politicamente: viviam e tinham de viver da
"mão para a boca". (Locke apud Macpherson (1979: 238-243)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 37

lima instância, são os melhores juizes de seus próprios interesses


»•t|uo deve "[...] ter sua esfera de ação restrita e sua prática limitada de
modo a garantir o máximo de liberdade possível a cada cidadão
(I lold, 1987: 49) Ou seja, a essência da democracia está nos direitos
individuais.
Mas, fundamentalmente, o resultado de suas formulações con­
sistiu na afirmação, em termos universais, de direitos e deveres que
linham um conteúdo de classe e que, portanto, eram desiguais.
(Macpherson, 1979: 262) Trata-se da defesa de que o status de cidadão
»•<i participação cívica — em suma, o estatuto da cidadania — depen­
de da condição proprietária. Como afirma Netto (1990: 18), esta é a
"|.»1 pedra de toque de Locke e de toda a tradição liberal e dela dima-
nam todas as insolúveis antinomias que impedem a esta tradição as­
sumir de modo não restritivo a problemática democrática".
É na busca de fundamentos teóricos, ideológicos, prático-políti-
cos e valorativos não-restritivos que nos detemos no tratamento que a
questão da democracia recebeu no pensamento social fundado na pers­
pectiva teórico-ideológica e política derivada de Marx, através da vin-
culação entre democracia e transição socialista.

1.2. Sociedade civil e democracia na tradição marxiana e marxista


A relação entre marxismo e alguns temas relativos à política, em
particular as elaborações teóricas acerca da relação entre Estado, so­
ciedade civil e democracia, é tratada por expoentes mais significati­
vos da tradição marxista, que ofereceram contribuições decisivas para
se pensar a democracia enquanto construção de um novo projeto he­
gemônico, que tem como sua base social construtiva aqueles que vi­
vem da venda da sua força de trabalho. A forma como esse entendi­
mento da democracia foi realizado pelos autores será aqui desenvol­
vida na perspectiva da "superação dialética". Essa implica a combi­
nação de elementos de conservação, eliminação e renovação de pres­
supostos teórico-metodológicos e ideopolíticos que o tratamento da
relação entre democracia e socialismo foi tendo na evolução histórica
dessa tradição. Dessa forma, o fio teórico da exposição consiste, fun­
damentalmente, em demonstrar o enriquecimento das determinações
econômicas, sociais, políticas e culturais que possibilitaram uma nova
compreensão da "questão democrática" no interior desta tradição.
38 M. I. DURIGUETTO

1.2.1. Rousseau: democracia enquanto soberania popular

Entre os pensadores políticos clássicos, Rousseau ocupa um lu­


gar à parte pelo considerável esforço teórico que despendeu na tenta­
tiva de pensar as relações entre Estado, sociedade civil e democracia,
a partir da idéia da soberania popular. Sua concepção dessas relações
é radicalmente oposta àquela defendida pelos contratualistas, em par­
ticular por Hobbes e Locke.
Para os contratualistas liberais, os indivíduos são orientados "na­
turalmente" pelos seus interesses singulares e egoístas, e a edificação
contratual da sociedade civil fundamenta-se na existência e na pre­
servação desses interesses. Ou seja, a sociedade civil representa, em
oposição ao estado de natureza, a sociedade regulada por algum tipo
de autoridade reconhecida, capaz de assegurar a liberdade, seguran­
ça e a preservação dos interesses privados. Em Rousseau, o privatismo
e o egoísmo não são atributos naturais e eternos dos indivíduos, mas
atitudes que podem ou não ser potencializadas pelo processo de so­
cialização. Aqui, a estipulação do contrato existe para preservar e po­
tencializar não uma sociabilidade baseada no individualismo, mas na
"vontade geral" e no interesse comum.
Como os jusnaturalistas, Rousseau, no seu Discurso sobre a Desi­
gualdade, toma como ponto de partida para análise as características
humanas, presentes num hipotético "estado de natureza". Não obs­
tante, o homem natural rousseauniano não é o homem isolado e auto-
centrado como é tratado ou concebido em Hobbes e Locke. Ele possui
como característica marcante a independência (a socialidade não se
inscreve na natureza humana original); conseqüentemente, não com­
pete (inexistência de uma "luta de todos contra todos"), sendo a pró­
pria conservação sua única preocupação (esse "instinto de conserva­
ção" não conduz necessariamente ao egoísmo).10

10. Como nos esclarece Coutinho (1996: 9), "[...] para Rousseau, portanto, o importante
é mostrar que esse indivíduo 'natural' não é de modo algum o lobo de seu semelhante [...] É
um ser que dispõe — diz-nos ele — de dois princípios anteriores à razão, um dos quais
interessa ao nosso bem-estar e à nossa conservação; e o outro que inspira uma repugnância
natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível'. Rousseau nos fala assim de um
instinto de conservação, através do qual o indivíduo se refere a si mesmo, mas também nos
fala de um sentimento que designa como 'piedade' ou 'compaixão'
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 39

A necessidade da cooperação e do trabalho social fundam o pro­


cesso de socialização, inscrevendo uma nova lógica nas relações hu­
manas, ancorada no pensamento racional, na linguagem, na consciên­
cia moral, na perda da independência material e na dependência ao
outro. As origens da "desigualdade social" são objetivamente tiradas
desse processo de socialização. A principal desigualdade deriva da
propriedade privada e da divisão do trabalho.
Sua visão da propriedade privada como a base da "sociedade
civil" corresponde ao desenvolvimento da sociedade mercantil então
em ascensão. Rousseau critica fortemente suas conseqüências para o
conjunto das relações humanas, particularmente a emergência das
"grandes desigualdades" de acesso à riqueza, rivalidade de interes­
ses e a concorrência, as quais tomam o egoísmo a motivação básica da
vida social.
Esse processo de socialização também é marcado pela legitima­
ção dessas relações individuais privatistas através da construção con-
Iratual de uma ordem política, apresentada como um instrumento que
garantirá a segurança e o interesse de todos, como descrito e defendi­
do nas formulações de Hobbes e Locke. Rousseau também denuncia
que, ao contrário de um governo que beneficia a todos, esse contrato,
ao objetivar primeiramente a defesa e proteção dos interesses priva­
dos individuais, acaba por privilegiar e garantir os interesses de pou­
cos, ou seja, apenas dos proprietários, ratificando, assim, a desigual­
dade e a dominação política dos "poderosos" sobre os "fracos".
É a partir da crítica a esse "pacto" e da procura de um novo redi­
mensionamento econômico e ético-político para as relações entre pú­
blico e privado que Rousseau escreve a obra Do Contrato Social. Se o
Discurso registrara a passagem da liberdade natural à servidão civil, o
Contrato buscará estabelecer em que condições a mesma transição pode
ser feita por um pacto legítimo, gerador de uma ordem social igualitá­
ria e de uma ordem política fundada de forma consciente e aceita vo­
luntariamente.
Com o intuito de apresentar o Contrato como indicação de uma
solução alternativa para as relações entre indivíduo, esfera pública e
democracia, nos deteremos em alguns traços essenciais da nova le­
gitimidade dessas relações, que é de "conteúdo" e não somente de
"procedimento".
40 M, L. DURIGUETTO

O primeiro pressuposto rousseauniano da ordem social legítima


diz respeito a uma distribuição mais eqüitativa da riqueza e da pro­
priedade. Por mais que denuncie a desigualdade da distribuição da
propriedade (a partir do ponto de vista histórico da degradação das
condições de vida do camponês e do artesão gerada pelo avanço do
capitalismo), Rousseau não propõe a sua eliminação ou socialização,
mas lhe parece suficiente a limitação do excesso e a garantia do acesso
de todos a ela ("todos devem ter alguma coisa, e ninguém deve ter
demais"). (Rousseau, 1973: 45)
A essa remodelação dos fundamentos econômico-sociais da so­
ciedade vincula-se, enquanto pressuposto e resultado, a construção
de um novo tipo de homem que seja capaz de orientar-se pelo interes­
se comum. É com base nos "conteúdos" dessa sociedade (de suas ba­
ses materiais para a igualdade) e desse indivíduo (voltado para o in­
teresse público) que é possível construir uma ordem política legítima.
O segundo pressuposto da ordem social legítima é o predomínio
do interesse comum na ação do Estado, assegurado pelas "regras do
jogo" da soberania popular. O construto do sistema político rousseau­
niano parte da necessidade da participação ativa individual no pro­
cesso político de tomada de decisões. São os indivíduos que devem
criar as leis que regulam suas vidas, e é na legitimidade do exercício
participativo do poder que reside sua concepção de liberdade, que
não é, como para os liberais, a capacidade do exercício e da satisfação
dos interesses individuais. Ao contrário, liberdade é aqui entendida
como um processo sócio-histórico de exercício da autonomia política
e da faculdade de aperfeiçoamento das relações humanas. (Rousseau,
1973: 19-20; 136-139; cap. 8-37)
Tal ordem política participativa constitui não apenas um arranjo
institucional de tomada de decisões coletivas, mas também um novo
tipo de sociedade, na qual os assuntos públicos são integrados aos
assuntos individuais. A dimensão subjetiva individual da experiência
participativa é enriquecida pela inter-relação entre o funcionamento
das decisões políticas e sua interação com as atitudes e valores indivi­
duais. Essa interação coloca a necessidade de que os indivíduos ultra­
passem as reivindicações de seus interesses imediatos e passem a se
interessar pelas questões globais que atingem a todos.
O processo participativo teria, nesse sentido, uma função educa­
tiva, pois os indivíduos aprenderíam a distinguir, mas também ve-
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 4>

riam a ligação entre os interesses públicos e privados. Esse processo


criaria uma relação de interdependência e cooperação e uma sensação
ile pertencimento à comunidade, pois cada cidadão dependería igual-
mente das decisões dos outros, estando, assim, "[...] em uma excessi­
va dependência da pólis (Rousseau, 1973, cap. 12: 69) Ele desen­
volvería e estimularia nos cidadãos as qualidades necessárias para a
intercambialidade das esferas individuais e coletivas, na construção
ila esfera pública e do sistema político. Este provirá de uma conven­
ção, baseada em relações morais e ações mútuas, que dará ao povo
íeição de corpo político, de uma sociedade consciente de sua unida-
tle, necessidades e aspirações. Há, assim, uma conexão substancial
entre o social e o político, ou seja, uma organização política que se
enraiza na organização social e não em indivíduos isolados.
Em Rousseau, o fundamento da ordem e da legitimidade sócio-
política (republicana ou democrática) repousa numa noção e num cri­
tério básico que é a "vontade geral". A expressão "vontade geral" é
entendida como o que traduz o que há de comum nas vontades indi­
viduais, ou seja, o substrato coletivo das consciências, e não a simples
concordância (numérica ou de maioria) das vontades particulares. O
que dá suporte à vontade geral é, pois, o interesse comum, e é com
base nesse interesse comum que a sociedade deve ser governada. O
termo interesse comum não é entendido como o "interesse de todos",
no sentido de uma soma dos interesses particulares, de um mero agre­
gado de desejos individuais (é essa "vontade de todos" que temos, no
limite, na tradição liberal), mas como o interesse de todos e de cada
um enquanto componentes do corpo coletivo." É através da constru­
ção da vontade geral, como condição subjetiva da soberania popular e
do contrato, que se constitui a conexão entre as esferas sociais, subje-1

11. Segundo Coutinho (1996: 23, 26-27), a distinção entre vontade geral e vontade de
todos é um claro ponto de discriminação entre o liberalismo e a democracia. O liberalismo
- em suas diferentes correntes —, ao considerar a sociedade como um agregado de interes­
ses individuais privados, vê apenas a possibilidade de uma eventual convergência de pon­
tos comuns que interessem, pelo menos, à maioria. Para a grande parte dos teóricos liberais,
essa convergência refere-se apenas às 'regras do jogo', ficando a definição dos conteúdos e
dos valores ao arbítrio individual (liberdade negativa). Para Rousseau, a democracia impli­
ca dois pressupostos que estão ligados mutualmente: distribuição mais igualitária da rique­
za e da propriedade e a gestação e o domínio de uma vontade geral — que pressupõe um
consenso tanto sobre conteúdos como sobre procedimentos.
*2 M. I, DURICUETTO

tivas e políticas, pois é ela que gera o povo como sujeito coletivo, e é
em direção a ela que ele encaminha suas ações.
Entretanto, como afirma Coutinho, as grandes soluções demo­
cráticas apresentadas por Rousseau também apresentam limitações e
ambigüidades, sobretudo no que se refere à determinação do modo
pelo qual se opera a construção da vontade geral. Ao reconhecer que a
"[..•! vontade particular tenderá, pela sua própria natureza, à parciali­
dade, enquanto a vontade geral tende para a igualdade[...]", Rousseau
acaba adotando uma posição idealista:

[...] vê o processo de elevação ao nível do interesse comum como


fruto de um movimento essencialmente ético, não como resultado
da tomada de consciência de interesses "objetivamente" comuns,
gerados no plano das relações sociais [...]. Esse idealismo moralizante
o leva, entre outras coisas, a contrapor de modo excessivamente
polarizado o público e o privado, o comum e o individual [...]
(Coutinho, 1996: 27).

A vontade geral é colocada como um freio e, no limite, como uma


repressão às ações sociais, políticas e econômicas das vontades parti­
culares. Para ser virtuoso, o cidadão tem que atuar contra seu interes­
se particular, havendo, assim, uma permanente vigilância ética em
tomo de suas ações, uma vez que não há separação entre o singular/
universal ou o público/privado. A vontade geral não significa, desse
modo, o desenvolvimento das potencialidades da vontade particular,
mas do dever moral de sua construção via contrato.
O fato de a vontade geral ser um conceito moral-jurídico abstrato
está na dicotomia que mantém entre o "citoyen" (formado pela vontade
geral) e o "bourgeois" (com suas ações egoístas e privatistas) superável
subjetiva mas não objetivamente. Na medida em que Rousseau não
transcende o horizonte da propriedade privada, conserva a base econô-
mico-social de reprodução do "bourgeois", mantém a conservação da
reprodução de suas vontades particulares, o que contrapõe e impede a
universalidade dos interesses que o "citoyen" deve manifestar na esfera
pública. Assim, como apontará Marx em A questão judaica, a vontade
particular burguesa acaba por dominar a vontade geral cidadã.12

12. Para Coutinho (1996: 29), essa divisão entre citoyen e bourgeois parece ser conse-
qüência do fato de Rousseau adotar o ângulo de visão do camponês e do artesão enraizados
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 43

Uma outra derivação da dicotomia particular/universal é a que


se refere aos limites na formação do processo participativo de tomada
cie decisões para a construção da vontade geral. Segundo Rousseau, a
situação ideal seria a que não contasse com a presença de grupos e
associações particulares organizadas, que acabariam se transforman­
do em vontades gerais desses grupos individuais, podendo mutilar o
conteúdo público da vontade geral. A multiplicidade e diversidade
de vontades particulares acabaria por impedir a emersão de um único
interesse e bem comum. Porém, se emergissem, deveriam ser nume­
rosas e equilibradas em força e em igualdade de participação política,
embora, nas suas formulações, não se analisem os arranjos sócio-ins-
litucionais que poderiam mediar a articulação das vontades plurais
eom a vontade universal.
A formação da vontade geral acaba sendo, assim, incompatível
com a manifestação da diversidade de subjetividades e de sua agluti­
nação em organizações sociais plurais. De acordo com Coutinho (1996:
28), essa posição leva a afirmar uma incompatibilidade entre demo­
cracia e pluralismo: Rousseau não nega a autonomia do privado, mas
vê a relação público/privado — "[...] despojada das mediações forne­
cidas pelos interesses particulares concretos (sobretudo os interesses
de classe) [...]" — como sendo de oposição. Uma vez que não propõe
o estabelecimento de mediações entre o singular/universal que leve à
formação da vontade geral com o pluralismo, só lhe resta, como meio
para chegarmos a saber qual é a vontade geral e para superar a dicoto­
mia público/privado, "[...] propor um apelo abstrato à consciência
moral [...], à 'voz interior' ou o 'diálogo consigo mesmo' [...]", e não
através do debate público.
Mesmo que no computo geral o pensamento rousseauniano evi­
dencie determinadas problemáticas que lhe conferem características
de imprecisão e limitação, isso não tira a particular importância de
Rousseau como um pensador que teve influência direta no desenvol­
vimento do contraponto das formulações da tradição marxiana e mar­
xista à tradição do pensamento liberal. Segundo Coutinho (1994:126 e
130; 1996: 29-30), a característica fundamental do pensamento de

no modo de produção mercantil simples. Mesmo priorizando o público em relação ao priva­


do, Rousseau não evita o anacronismo e a utopia de conservar esse modelo econômico-
social, impedindo-o de converter em modo de produção capitalista.
M. I . DURIGUETTO

Rousseau, assim como aquilo que marca sua posição democrática, é a


afirmação da incompatibilidade estrutural entre desigualdade e de­
mocracia, sendo só legítima uma sociedade fundada na vontade cole­
tiva, na construção de um sujeito coletivo que, com base no consenso
em relação ao interesse público, constrói um contrato sobre o qual se
estabelece a democracia, subordinando a ela os interesses privados.

1.2.2. Hegel: democracia como produto do *Estado"

O conceito de vontade geral ou universal, tal como foi formula­


do por Rousseau, e suas relações com a esfera da particularidade
ocupam uma posição central na filosofia política de Hegel. Esse pen­
sador, em aberta oposição à versão "abstrata" e "subjetivista" do con­
ceito em Rousseau, apresenta uma tentativa de conciliar a prioridade
do universal com a plena expansão do particular, o princípio da tota­
lidade com o da livre expansão da individualidade.
Nessa tentativa, o filósofo alemão, ao mesmo tempo em que aban­
dona importantes contribuições de Rousseau para o conceito de de­
mocracia — como o de soberania popular —, contribui para uma defi­
nição mais concreta do conceito de vontade geral. Esse recuo e avanço
se expressam quando Hegel se detém no surgimento ineliminável, no
mundo moderno, de um espaço de explicitação do "mundo da parti­
cularidade", que passou a chamar de "sociedade civil". A sociedade
moderna e suas articulações não podem mais ser caracterizadas por
uma unidade indivisa de relações comunitárias (como propunha
Rousseau no Contrato), mas por uma emancipação de princípios sub­
jetivos e particulares, que passam a constituir um "sistema das neces­
sidades" típico da liberdade burguesa.
E na sociedade civil que se desenvolvem as relações e atividades
econômicas, a reprodução social e suas regulamentações jurídico-admi-
nistrativas. Trata-se da esfera dos interesses e objetivos privados, eco-
nômico-corporativos e antagônicos entre si, das distinções dos indiví­
duos em associações, grupos e em posições e condições sociais desi­
guais. É a partir dessa esfera que Hegel busca a conciliação

[...] entre, por um lado, a liberdade individual (ou a autonomia do


sujeito), surgida na modernidade e transformada no principal valor
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA AS

do liberalismo, e, por outro, a reconstrução de uma ordem social


fundada na prioridade do público (do universal) sobre o privado
[...] (Coutinho, 1997: 3).

Ao afirmar a positividade da constituição da particularidade no


mundo moderno (ao contrário de Rousseau) e, ao mesmo tempo, a
necessidade de sua articulação e conciliação com a construção da von­
tade geral (idéia que converge com a daquele autor), Hegel busca arti­
cular essa particularidade com a prioridade do público sobre o priva­
do, uma superação dialética das vontades particulares na vontade
universal.13
Neste sentido, a vontade geral não é o resultado e não tem o fun­
damento no arbítrio subjetivo individual, mas se apóia numa base
objetiva de interesses. O processo de sua construção se efetivaria a
partir das interações individuais concretas e não com base em uma
moralidade subjetiva abstrata, como vimos em Rousseau. Os interes­
ses parciais seriam articulados em instâncias universalizadoras obje­
tivas que operariam na construção de uma "vida ética". É na constru­
ção desse campo de mediações que Hegel desenvolve a sua noção de
Estado. A esfera estatal seria o reino em que se expressaria a vontade
universal, que seria construída a partir das vontades particulares da
sociedade civil. Na ordem estatal, as diferenças sociais e os interesses
particulares seriam conservados e elevados a nível superior. Dessa
forma, ao contrário dos jusnaturalistas, a sociedade civil é vista como
esfera das relações econômicas, jurídicas e administrativas, não mais
opondo estado de natureza/estado civil pela conformação de um "con­
trato". O Estado, aqui, é a conservação/superação da sociedade civil.
(Bobbio, 1987: 28-29) E é na esfera da sociedade civil que a moral par­
ticular é transformada pela totalidade ética dos direitos e instituições
sociais (justiça, polícia, corporação).
Essa mediação entre público e privado, vontade singular e uni­
versal, encontra uma de suas principais concreções naquilo que Hegel
denomina de "corporações". Nelas, a filosofia política hegeliana tece

13, Para compreender a passagem de um nível para outro, é fundamental recorrer a um


conceito essencial da filosofia hegeliana: o de superação dialética, que significa, ao mesmo
tempo, negar algo, aproveitar o conteúdo válido daquilo que está sendo negado e elevá-lo a
um nível superior, permitindo, assim, articular no desenvolvimento (no "tornar-se") a con­
tinuidade e a ruptura.
46 M. I. OUWGUETTO

as relações do mundo privado civil com o mundo universal estatal.14


As corporações seriam o campo em que se constituiríam os atores co­
letivos, cujos interesses não são mais singulares e nem plenamente
universais, mas particulares.15 Por sua vez, a constituição das vonta­
des singulares e particulares é objetivamente potencializada (e não
reprimida ou eliminada) para se transformar em vontade universal
ou estatal. Desse modo, ao contrário de Rousseau, que condenava as
associações e instituições particulares e concretas, ao legitimar esse
campo de mediação de interesses (que expressam um primeiro grau
de universalização em face dos interesses singulares), Hegel acaba
também por legitimar a necessidade do pluralismo político-institu-
cional. É com essa mediação que os indivíduos singulares passam de
massa informe a sujeitos organizados em seus interesses, e é por meio
dela que os defendem.
Não obstante seu avanço em apontar o desenvolvimento da von­
tade geral, a partir de uma esfera concreta de mediações na sociedade
civil, e a justa percepção do anacronismo da proposta da democracia
direta rousseauniana, suas sugestões alternativas à construção da von­
tade geral acabam por abandonar elementos democráticos contidos
nas formulações de Rousseau.
Ao situar a esfera estatal como espaço de realização e manifesta­
ção da vontade geral, Hegel quer dizer que a construção desta também
se processa nessa esfera. Ou seja, as diferentes demandas advindas da

14. "Para Hegel, a sociedade civil é o 'sistema da atomística': embora cada qual busque
nela o seu interesse privado, a divisão do trabalho que assim se estabelece cria um 'sistema',
levando a que a satisfação dos carecimentos de cada indivíduo dependa do trabalho do
outro. Como o trabalho está dividido por ramos, cada ramo desenvolve interesses particula­
res próprios, o que o leva a constituir-se em corporação, a qual tem como objetivo defender
o interesse coletivo dos seus integrantes [...] é através das corporações (ou seja, de um sujei­
to coletivo) que a eticidade penetra na sociedade civil". (Coutinho, 1994:133)
15. Hegel define as relações entre as corporações e a sociedade civil, por um lado, e o
Estado, por outro, da seguinte maneira: 'a sociedade civil é o campo de luta do interesse
privado singular de todos contra todos; mas, do mesmo modo, tem aqui lugar o conflito
desse interesse privado com o interesse de grupos particulares, e, por outro lado, desses
dois tipos de interesse com os pontos de vista e ordenamentos mais elevados [universais ou
estatais]. O espírito corporativo, que se gera na legitimação dos interesses particulares, con­
verte-se em si mesmo no espírito do Estado, dado que é no Estado que encontra o meio de
alcançar seus fins particulares.' (Hegel apud Coutinho, 1997: 7). Dessa forma, a sociedade
civil é entendida como o campo de realizações parciais da universalidade, cuja completa
realização se opera na legislação pública estatal.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA A7

pluralidade sócio-organizativa da sociedade civil ("corporações") se­


riam atendidas quando compatíveis com o interesse comum. A defi­
nição do que seria esse interesse comum resultaria de uma tarefa ex­
clusiva dos membros da burocracia estatal. Assim, a existência efetiva
da vontade geral está em poder da "sabedoria" dos burocratas.
Dessa forma, Coutinho (1994:135-136; 1997: 9-11) afirma que, ao
combater o subjetivismo na construção da universalidade em
Kousseau, Hegel adota, por outro lado, um objetivismo que o leva a
abandonar a construção da vontade geral e do Estado como resultado
de uma deliberação contratual e consensual entre os indivíduos. A
eliminação das articulações das ações individuais no "pacto" contra-
tualista (com sua necessária dimensão consensual-intersubjetiva) tem
sua fundamentação na proposição de que a vontade geral (e, portan­
to, o Estado) não se constitui a partir desse pacto; ela é uma realidade
anterior e superior à sociedade civil e suas mônadas. Ao defender que
a esfera estatal integra todo o conjunto da esfera societal, a construção
da esfera pública fica subsumida às definições de uma totalidade es­
tabelecida de forma determinista, ao contrário de ser uma esfera con­
sensualmente fundada pelos indivíduos sociais.
Ao destituir das ações individuais e coletivas o papel da forma­
ção de um espaço público participativo e democrático, Hegel acaba
também desenvolvendo uma visão abstrata da construção da vonta­
de geral, uma vez que sua existência independe de seu reconhecimento
pelas vontades singulares individuais. Estas acabam, assim, não par­
ticipando racional e conscientemente de sua formação, o que nos leva
a entender que em Hegel há a defesa de um consenso passivo em
relação às normas, valores e decisões políticas ditados pela pretensa
vontade universal manifestada no Estado. Esse consenso passivo, ex­
presso no abandono da dimensão intersubjetiva e participativa da ação
humana, também é reforçado quando Hegel condena a idéia da sobe­
rania popular e do sufrágio universal, defendendo que os indivíduos
só devessem opinar e participar dos assuntos ligados a eles, imediata
e diretamente.
Apesar desse "espírito" antidemocrático, Hegel trouxe contribui­
ções decisivas para uma teoria moderna da democracia e que não po­
dem ser desconsideradas quando partimos do princípio (rousseau-
niano) de que a sua construção se fundamenta num espaço público
intersubjetivo e contratual.
*8 M. I. DURIGUETTO

1.2.3. Sociedade civil, democracia e revolução em Marx

É na crítica à construção especulativa do domínio do universal


sobre o particular que Marx desenvolve, em meados de 1843, a sua
crítica sobre a natureza do Estado moderno e de sua relação com a
sociedade civil, como foi definida na filosofia jurídico-política de
Hegel. Como vimos, a solução que Hegel oferece para as relações com­
petitivas da sociedade civil consiste em edificar o Estado e seu "bem
comum" para fundá-la legítima e racionalmente.
Marx propõe uma inversão da solução hegeliana. Nesta, o Esta­
do é mitificamente transformado no sujeito real que ordena, funda e
materializa a universalização dos interesses privatistas e particularis-
tas da sociedade civil. Marx denuncia que essa universalidade é abs­
trata, formal, pois expressa uma transposição especulativa da vida
concreta e real do bourgeois (e de seus interesses particulares) em citoyen
(e de seus abstratos interesses públicos universais). No sistema
hegeliano, as relações entre Estado e sociedade civil não resultam na
formulação de um efetivo interesse comum. São os interesses corpo­
rativos, ou seja, a superação do interesse singular pelo interesse parti­
cular, que são objetivamente defendidos como máxima universaliza­
ção. E, em vez de superar as divisões, nasce destas e as confirma.
É na crítica a essa inversão do universal pelo particular que Marx
desenvolve a sua visão do Estado. É a esfera da sociedade civil — que
define como a esfera da produção e da reprodução da vida material16
— que se fundamenta a natureza estatal, e não o contrário, como su­
punha Hegel. Ou seja, o Estado não funda a dinâmica da sociedade
civil, mas a expressa. (Marx, s.d.: 336-337) Compreender que a socie­
dade civil e suas relações sociais concretas é que fundam o Estado
implica defender que a eliminação do individualismo do bourgeois é
condição para a eliminação da existência abstrata do citoyen.
O entendimento do Estado a partir da compreensão da socieda­
de civil implica a centralidade da investigação dos processos históri-

16. Como afirmará posteriormente, "[...] a sociedade civil abrange todo o intercâmbio
material dos indivíduos [...] Abrange toda a vida comercial e industrial de uma dada fase
[...]" (Marx e Engels, 1993: 53). Assim, "[...) a anatomia da sociedade civil deve ser procura­
da na economia política". (Marx, 1977: 24) Ou seja, sociedade civil e estrutura econômica
são, para Marx, a mesma coisa; e o Estado é um produto desta, e não, como pensa Hegel,
uma esfera independente e com racionalidade própria.
‘■ OCIEDAOE CIVIL E DEMOCRACIA *9

ros da "gênese" de sua base material e sua determinação no desen­


volvimento dos interesses individuais particularistas e antagônicos.
Para isso, é fundamental fazer uma crítica à economia política e aos
seus representantes teóricos. É a partir dessa crítica que Marx supera
■is categorias especulativas hegelianas e as resgata numa teoria que
apreende a ontologia do ser social.
Em A questão judaica, trabalho publicado em 1844, Marx retoma a
divisão do homem em cidadão público e indivíduo privado, entre
universalidade e particularidade. Nessa obra, a polêmica não é mais
com Hegel, mas com a proposta de "emancipação política" rousseau-
niona e de seus discípulos jacobinos. O centro da discussão é a de­
núncia de um dualismo contraditório entre a universalidade dos va­
lores éticos do homem público e a conservação do seu particularismo
no âmbito privado, o que marca a formalidade e a abstração da forma­
ção de uma vontade geral como "emancipação política" (que é como
define os resultados da Revolução Francesa).

O Estado político perfeito é, pela sua própria essência, a vida gené­


rica do homem por oposição à sua vida material. Todas as premis­
sas dessa vida egoísta continuam a subsistir na sociedade civil, fora
da esfera do Estado, mas como propriedades da sociedade burgue­
sa. Onde o Estado político atingiu um real desenvolvimento, o ho­
mem não leva não só no pensamento, na consciência, mas também
na realidade, na vida, uma dupla existência celeste e terrestre: a
existência na comunidade política, onde se considera um ser geral,
e a existência na sociedade civil, onde trabalha como homem priva­
do, vendo os outros homens como simples meios, rebaixando-se a
si próprio ao nível do simples meio e tornando-se joguete de pode­
res estranhos (Marx, s.d.: 26).

Essa crítica da formulação da "emancipação política" ("igualda­


de de todos na formulação das leis") como formal e abstrata era evi­
denciada na própria prática política dos primeiros regimes liberais ditos
"democráticos",17 uma vez que permanecem intocadas as determina­

17. Na Europa do século XIX, a socialização da política e do poder se dava somente


para os proprietários (direito de votar e ser votados). Eram esses "cidadãos ativos" e seu
parlamento que controlavam, pelo menos formalmente, o executivo. Em nenhum país no
século XIX houve governos escolhidos pelo sufrágio masculino adulto, muito menos pelo
50 M. I. DURIGUETTO

ções estruturais e sociais da existência da sociedade civil e de seu


bourgeois: a propriedade privada e a reprodução da ação humana na
defesa dos interesses individuais. Para Marx, a defesa da supressão
dessa esfera é condição ineliminável para uma concreta "emancipa­
ção política", em que os chamados "direitos do homem" — num pro­
cesso de superação dialética — vão adquirindo determinações sociais,
políticas e econômicas que objetivamente possibilitem a realização de
uma efetiva "emancipação humana" (que só se efetiva na ruptura com
a propriedade privada).18
Os ideais de uma ordem político-econômica que compreende ci­
dadãos "livres e iguais", sufrágio universal e igualdade política eram
um importante passo, mas seu potencial "emancipador" era minado
pela desigualdade de classe e pelas consequentes restrições no âmbito
das escolhas dos cidadãos nas esferas sócio-políticas e econômicas. O
que Marx critica, aqui, são os limites e a inexistência de uma "demo­
cracia política" (representação dos interesses comuns da burguesia e
da apropriação, por parte desta classe, dos aparelhos de poder), não
seus pressupostos e valores.19 No entanto, as conquistas democráticas
formais não devem ser meta final das lutas dos trabalhadores, mas
estas devem ser impulsionadas até que se atinja a tomada do poder

sufrágio universal. "Poucos países europeus no século XIX (França em 1848, Alemanha em
1871) tinham franquia para adultos masculinos para a assembléia nacional, mas a assem­
bléia não tinha escolha ou controle do governo". (Macpherson, 1979:55) Um outro limite da
democracia política liberal clássica consiste em impedir o surgimento de organizações dos
trabalhadores para fazer valer seus direitos. A lei Le Chapelier decretada em 1791 por um dos
primeiros governos oriundos da Revolução Francesa é um exemplo dessa prática política
proibitiva.
18. Assim, segundo Guimarães (1998:253), a linha política nítida e coerente que preva­
lece nas obras de Marx é ,"[...] de um lado, a insuficiência dos direitos políticos liberais para
a emancipação plena do indivíduo que deveria se ver livre também dos constrangimentos
econômicos que o oprimiam e tolhiam o desenvolvimento integral de sua personalidade e,
de outro, a insuficiência da democracia representativa, a crítica radical ao estatismo e ao
burocratismo em favor de formas diretas de autogovemo e de controle social".
19. Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ao denunciar a construção da natureza
estatal hegeliana, Marx assume a defesa de uma concepção democrática radical nos termos
do Contrato Social rousseauniano. Isso evidencia, segundo Coutinho (1997:48), que "[...] Marx
não critica o modelo democrático de Rousseau por este ser democrático, mas sim por ser
utópico, ou seja, por não contemplar as condições materiais que tomam possível a efetiva
realização de uma ordem democrática". Este é, para Marx, o limite intransponível da teoria
democrática rousseauniana: a dualidade entre o indivíduo privado e o cidadão público.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 5i

político (a verdadeira "socialização" desta esfera) e, com ele, a erradi­


cação das relações capitalistas de produção (socialização dos meios
di* produção). Portanto, a construção da vontade geral é proposta a
partir da erradicação das bases materiais da sociedade civil e do
dualismo entre as esferas do público e do privado.
Essas determinações da divisão da sociedade civil em classes
sociais e da representação dos interesses de uma classe particular pelo
Estado são articuladas organicamente com uma teoria da revolução
por Marx e Engels, na redação do Manifesto do Partido Comunista em
1848. A articulação das teorias do Estado e da revolução expressa a
primeira formulação mais sistemática dos fundamentos de sua teoria
política, que foram objeto de investigação, a partir da obra de 1843.
Kca firmam, aqui, a dependência direta do Estado ao poder econômi­
co, social e político da burguesia. O Estado seria o "comitê executivo"
da classe dominante e suas formas institucionais monopolizadas pela
luirocracia se valeríam essencialmente da coerção ou da opressão para
exercer suas funções e o domínio de classe burguês.
A essas determinações reais e concretas da natureza estatal no
contexto histórico da elaboração do Manifesto correspondia uma con­
cepção de luta de classes entre burguesia e proletariado que assumiría
.1 forma de uma guerra civil. A transição ao comunismo implicaria
numa ruptura súbita e violenta com a ordem burguesa pela constitui­
ção do poder proletário.
Retomando a interlocução e a polêmica com a problemática da
democracia rousseauniana levantada em A questão judaica, os autores
do Manifesto reafirmam que a revolução do proletariado seria a verda­
deira afirmação e concreção do ideário democrático levantado pelas
revoluções burguesas do século XVII e XVIII, particularmente a fran­
cesa. A "emancipação política" não deveria ser eliminada, mas efeti­
vamente concretizada a partir da abolição das relações de proprieda­
de e de sua representação estatal. Os interesses universais do proleta­
riado emergiríam dessa ruptura, constituindo sua dominação com a
tomada do poder político: "[...] o primeiro passo na revolução operá­
ria é a passagem do proletariado a classe dominante, a conquista da
democracia pela luta". (Marx e Engels, 1998: 29)
Assim, na formulação de Marx e Engels, a revolução comunista
é a verdadeira realização da democracia, mas também a sua supera­
ção, chegando-se a afirmar: "desaparecidas no curso do desenvolví-
51 M. I. DURIGUETTO

mento as diferenças de classe e concentrada toda a produção nas mãos


dos indivíduos associados, o poder público perde seu caráter políti­
co". (Marx e Engels, 1998: 31) Em Marx, a política não se reduz ao
Estado, mas tem clareza que, na ordem burguesa, o núcleo do poder
político é o Estado, e por isso a revolução do proletariado requer a
dominação e a extinção do poder estatal.
Entretanto, os autores do Manifesto afirmam que é no campo da
política que devem ser travadas as lutas pela realização dos interesses
universais dos trabalhadores. A emancipação do proletariado seria obra
de sua própria ação política coletiva organizada. São as suas instân­
cias político-organizativas, como o partido, que desenvolveríam a
passagem da consciência de "classe em si" para a de "classe para si".20
Se as concepções de Estado, classe social e revolução, desenvol­
vidas em 1848, correspondiam às determinações econômicas e sócio-
políticas do processo de desenvolvimento histórico da época, com o
seu desenvolvimento, aquelas determinações vão sofrendo sucessi­
vas modificações, alterando os termos das problemáticas da teoria
política que fundaram. São particularmente as mudanças operadas
nas esferas da economia e da política, sobretudo a partir da segunda
metade do século XIX em diante, que irão alterar a configuração da
representação dos interesses no aparato estatal e as condições e estraté­
gias de manifestação da luta de classes e da possibilidade da revolução.
É nesse contexto quedemos o desenvolvimento crescente de or­
ganizações (sindicatos e partidos operários de massa que ampliam
enormemente a participação política das classes subalternas) e con­
quistas (como o sufrágio universal) no terreno da política. Por outro

20. Apesar de conceberem a revolução proletária como insurreição, Marx e Engels sem­
pre defenderam que a libertação do proletariado é fruto de suas lutas políticas cotidianas, e,
por isso, deveríam se organizar, "fazer política", pois é no campo dessas lutas que passa­
riam de uma existência factualmente dada à tomada de consciência de seu pertencimento
de classe e de sua emancipação. Marx já anuncia o campo dessa passagem pelas lutas polí­
ticas em 1847. "As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em
trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interes­
ses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si
mesma. Na luta [...] esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses
que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política".
(Marx, 1982: 159) Daí a importância político-organizativa que Marx e Engels atribuíam à
criação de sindicatos e partidos operários de massa.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 53

l.uio, há também uma permanente luta pela expansão de direitos so­


ciais, que vão sendo progressivamente conquistados,212impondo-se ao
listado a incorporação também de outros interesses de classe, o que
expressa a possibilidade de, ainda sob a dominação da ordem e do
listado capitalista, ter lugar a formulação de políticas que respondam
a demandas formuladas pelas classes subalternas.
Embora possamos encontrar indicações de inovações nos funda­
mentos da teoria política marxiana nas obras posteriores ao Manifes­
to-'1 e nas de outros teóricos da tradição marxista, o fato é que esses
lundamentos só sofreriam uma adequação sistemática a essas novas
de terminações sócio-políticas na elaboração teórica do italiano Anto-
mo Gramsci.

1.24. Sociedade civil, democracia e revolução em Gramsci


É com a percepção da "socialização da política", ou seja, do pro-
lagonismo político de amplas e crescentes organizações tanto dos tra­

21. Retomando a periodização clássica marshalliana, poderiamos dizer que a segunda


metade do século XIX e o século XX se caracterizam pela contínua expansão de direitos
políticos e sociais. As classes subalternas sempre estiveram na vanguarda da luta pela con­
quista e ampliação desses direitos liberais democráticos. No plano especificamente político,
ivnquistada a legalidade da organização sindical na Inglaterra (1824), multiplicam-se as or­
ganizações que serão catalizadas, entre 1838 e meados da década seguinte, pelo primeiro
movimento operário de massa, o movimento cartista. A luta pela extensão do sufrágio uni­
versal (e a fixação legal da jornada de trabalho) foram as principais bandeiras de luta desse
movimento. Foram as lutas pelo sufrágio, pela criação de sindicatos e a formação de parti­
dos políticos de massa (uma invenção das classes trabalhadoras, pois os partidos eram, no
início do liberalismo, simples "correntes de opinião" de grupos parlamentares) que criaram
as formas políticas democráticas que hoje coexistem (numa tensão entre integração e con­
tradição) com as formas institucionais liberais oriundas das revoluções burguesas. No pla­
no especificamente econômico e social basta lembrar que ao ser decretada a primeira medi­
da sobre limitação da jornada de trabalho na Inglaterra em 1864, Marx afirmou que essa
linha sido a primeira vitória da economia política da classe operária sobre a economia polí-
lica do capital. (Marx. "Manifesto de lançamento da Associação Internacional dos Trabalha­
dores" (1864); In: Marx e Engels, Textos, v. 3,319)
22. Em relação ao computo geral da obra marxiana, Coutinho (1994:81) chama a aten­
ção para o fato de que nela "estão certamente os elementos para a construção de uma teoria
da política, mas não há um tratamento sistematicamente elaborado dessa esfera do ser so­
cial, similar à teoria do modo de produção, tal como essa nos é apresentada, por exemplo,
cm O Capita!" .
54 M. L. DURIGUETTO

balhadores quanto do capital no cenário de aprofundamento da de­


mocracia no capitalismo desenvolvido, que Gramsci irá elaborar a es­
tratégia revolucionária de forma diversa à formulada por Marx e Engels
em 1848 e encaminhada por Lênin na Rússia em 1917.23
As novas determinações ocorridas na esfera social e político-es-
tatal de sua época histórica permitem a Gramsci visualizar uma com-
plexificação das relações de poder e de organização de interesses que
fazem emergir uma nova dimensão da vida social, a qual denomina
de sociedade civil. Essa esfera da superestrutura ideopolítica desig­
naria o espaço em que se manifesta a organização e representação ins­
titucional dos interesses dos diferentes grupos sociais, da elaboração
e/ou difusão dos valores, cultura e ideologias que tomam ou não cons­
cientes os conflitos e as contradições sociais.
O conceito de sociedade civil em Gramsci pertence, assim, ao momento
da superestrutura, diferente da formulação marxiana, que identifica
sociedade civil com infra-estrutura econômica. Não obstante, segun­
do Coutinho, a alteração efetuada por Gramsci não implica na nega­
ção da centralidade descoberta por Marx da base material como fator
ontológico primário da socialidade, como conclui equivocadamente
Norberto Bobbio. (1987:32) Bobbio, ao fazer uma leitura liberal do con­
ceito de sociedade civil em Gramsci, toma-o exclusivamente como
esfera da superestrutura, como se Gramsci conferisse à esfera econô­
mica um papel secundário. Para Gramsci, ao contrário, a produção e a
reprodução da vida material cdhtinuam a ser o fator ontologicamente primá­
rio na explicação da história. Mas o elemento essencial que determina a espe­
cificidade e a novidade do seu conceito de sociedade civil está na sua contri­
buição para o enriquecimento teórico-analítico do modo como a esfera econô­
mica determina a produção e reprodução da superestrutura no contexto his­
tórico em que se operou uma maior complexificação do Estado. Ou seja, a
sociedade civil expressa a articulação dos interesses das classes pela
inserção econômica, mas também pelas complexas mediações

23. Partindo de Marx e de Lênin, Gramsci eleva a conceito um conjunto de novas trans­
formações em curso em sua época histórica — consolidação do fascismo, economicismo
americano e a criação de novas formas de hegemonia por meio de uma complexificação das
superestruturas (Estado, cultura, direito, ideologia) e das democracias modernas (seja nos
institutos políticos representativos bem como nos movimentos e organizações da vida ci­
vil). É com essa nova e complexa configuração da vida social que Gramsci aponta a necessi­
dade da criação de novas estratégias de conquista do poder político. (Semeraro, 1999: 239).
'.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 55

itlvopolíticas e sócio-institucionais. (Coutinho (1992: 73) Assim, "o


conceito se refere, na realidade, ao problema do Estado: o conceito de
'sociedade civil' é o meio privilegiado através do qual Gramsci enri­
quece, com novas determinações, a teoria marxista do Estado".
(Coutinho, 2000a: 2)
A sociedade civil, como palco de um pluralismo de organismos
coletivos ditos "privados" (associações e organizações, sindicatos,
partidos, atividades culturais, meios de comunicação etc.), é a nova
configuração da dinâmica social, na qual se precisava repensar a polí­
tica e sua relação com as esferas da vida social e elaborar os novos
lermos da hegemonia.24 A dinâmica sócio-política e organizativa des­
sa esfera é incorporada ao seu conceito de Estado (o que lhe permite
visualizar a ampliação do fenômeno estatal).25 Incorporação que se
faz acompanhada pela conservação das determinações registradas por
Marx e Engels em 1848-1850 e, depois, por Lênin, acerca do momento
repressivo do poder de Estado.26 Gramsci denomina de "sociedade

24. Elabora, assim, um novo conceito de sociedade civil, diferenciando-o da tradição


jusnaturalista (sociedade civil não é a esfera das liberdades econômicas, dos contratos); não
está orientada em função do Estado (como queria Hegel), nem se reduz ao espaço exclusivo
ti tis relações econômicas e da hegemonia burguesa, tal como Marx a definira. Mas em Gramsci,
sociedade civil é a esfera em que as classes organizam e defendem seus interesses e dispu­
tam a hegemonia.
25. A função que a sociedade civil ocupa dentro do Estado é a de ser o espaço "onde se
decide a hegemonia, onde se confrontam os diversos projetos de sociedade, até prevalecer
ti m que estabeleça a direção geral na economia, na política e na cultura". (Semeraro, 1999: 76)
26. A natureza de classe do Estado e sua função de conservar os interesses particulares
dessa classe por meio da repressão são afirmações que não são eliminadas no construto
gramsciano, e sim repostas e desenvolvidas através da incorporação das novas determina­
ções da realidade do seu tempo. É importante lembrar que, em Marx, o primado das catego­
rias econômicas decorre do significado central que tem o trabalho como estrutura fundamen­
tal da objetivação social e das relações humanas. Não obstante, as relações econômicas e os
resultados de sua investigação não determinam e não podem ser simplesmente transferidos
mecanicamente para todo conjunto complexo das inter-relações sociais. O específico destas
tem que ser identificado em suas múltiplas mediações internas e externas e em suas interli­
gações estruturais fundamentais. Fiel ao método marxiano, as análises de Gramsci, por exem­
plo, em relação ao conteúdo de classe do poder de Estado revelam que, embora considere
que há uma correspondência entre o poder econômico e o político e que o Estado é a esfera
em que se efetiva a unificação e o exercício do domínio burguês, isto não basta para determi­
nar a totalidade de suas determinações. Se para Gramsci (2000a: 331) "[...1 Estado é todo o
complexo de atividades práticas e teóricas com as quais a classe dirigente não só justifica e
mantém seu domínio, mas consegue obter o consenso ativo dos governados
56 M. I. DURIGUETTO

política" o conjunto de aparelhos através dos quais a classe dominan­


te impõe coercitivamente a sua dominação (aparato policial e militar,
sistema judiciário e administrativo). Em conjunto, as duas esferas —
sociedade civil e sociedade política — formam o Estado da realidade
histórico-social analisada por Gramsci.27
A dinâmica que se processa no interior dessas esferas revela uma
distinção em relação à "função" que exercem na conservação ou trans­
formação das relações de poder entre as classes sociais, bem como no
que diz respeito à base sócio-institucional, na qual aquela função se
materializa. Enquanto na sociedade política as classes exercem seu
poder e sua dominação por uma ditadura através dos "aparelhos co­
ercitivos de Estado", na sociedade civil esse exercício do poder ocorre
por intermédio de uma relação de hegemonia que é construída pela
direção política e pelo consenso. Aqui, os grupos e classes sociais rea­
lizam a organização da representação de seus interesses e o encami­
nhamento de suas manifestações sócio-políticas através dos "apare­
lhos privados de hegemonia".28
A formação e difusão de um consenso que incorpora e reflete
interesses de classes exige que seus portadores sócio-institucionais

toma-se fundamental o entendimento do conjunto de mediações que conformam e esclare­


cem esse domínio e seu consentimento: como se governa e por que o governado obedece.
27. "[...] na noção geral de Estado entram elementos que devem ser remetidos à noção
de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer, de que Estado = sociedade política +
sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção)." Gramsci (2000a: 244) Ou seja, a
sociedade civil gramsciana faz parte do Estado (lato sensu) que por sua vez é permeado
pelos interesses e conflitos das classes sociais conformadas na estrutura econômica. "O Es­
tado, como diz Gramsci, é aquele que cria as condições de máximo desenvolvimento daque­
las classes. O papel de articulação institucional das ideologias e dos projetos classistas pas­
sa necessariamente pela sociedade civil que expressa o horizonte da racionalidade classista
e a proposta da ordem. Mais do que 'neutralidade', ela expressa a luta, os conflitos e arti­
cula, conflitiva e contraditoriamente, interesses estruturalmente desiguais." (Dias, 1994:128)
28. Essa organização da ação humana para a defesa de seus interesses em "aparelhos
privados de hegemonia" foi parcialmente retomada da formulação hegeliana do momento
"associativista" presente na esfera "atomística" da sociedade civil: "Gramsci, por um lado,
recolhe de Hegel (mas sobretudo de Marx) a idéia de que as vontades são concretamente
determinadas já no nível dos interesses materiais ou econômicos; elas experimentam, ade­
mais, um processo de universalização — de 'associacionismo' —, que leva à formação de
sujeitos coletivos [...], movidos por uma vontade que se universaliza, que tende a superar os
interesses meramente 'econômico-corporativos' e a orientar-se no sentido da consciência
'ético-política' [...]." (Coutinho, 1994: 138)
K IIDADE CIVIL E DEMOCRACIA S7

(tossiiom estrutura e legalidade próprias para, assim, assumirem sua


limção de construção de relações sociais de hegemonia. É essa certa
tiiilnnomia e independência material e funcional dos organismos so­
ciais "privados" em relação aos do "Estado-coerção" que marca o fun­
damento da sociedade civil e sua função mediadora entre a estrutura
econômica e o Estado em sentido estrito. São esses mecanismos con­
sensuais ou contratuais que tomam mais complexas as formas de es­
truturação das classes sociais e de sua relação com a política.29
É preciso enfatizar que a distinção funcional e institucional, as­
sim como a decorrente autonomia relativa da sociedade civil em rela-
ç.u> à sociedade política e vice-versa não implica na ruptura de suas
mter-relações e do momento unitário — "unidade na diversidade" —
t|uc as conformam na prática. (Gramsci, 2000b: 244) Em Gramsci, socie­
dade civil e sociedade política são distinções analíticas do conceito de
listado. De acordo com Dias (1994), a acentuação da forma privada das
instituições da sociedade civil não nega seu caráter estatal e classista.
A defesa da intercorrência das relações entre sociedade civil e
sociedade política evita os equívocos tanto das formulações liberais (a
sociedade civil é uma esfera separada do Estado e regulada, de forma
autônoma, pelo mercado e o Estado é identificado com governo, sen­
do uma estrutura puramente jurídico-coercitiva e guardiã do interes­
so geral),30 quanto do estatismo totalitário (todas as organizações e
manifestações da sociedade civil são centralizadas e dominadas pelo
aparato estatal, sendo o consenso obtido através da força).

29. Nesse sentido, segundo Coutinho (1994:139-140), pode-se dizer que Gramsci "[...]
introduziu a problemática do contrato no núcleo de sua teoria marxista do Estado e da po-
lílica. A hegemonia implica, em primeiro lugar, um contrato que é feito no próprio nível da
sociedade civil, gerando, em conseqüência, sujeitos coletivos (como sindicatos, partidos,
movimentos sociais etc.) que têm uma clara dimensão pública, 'estatal'; mas implica tam­
bém, por outro lado, um contrato entre governantes e governados, fundado no fato de que,
nessas sociedades 'ocidentais', a obrigação política se funda na aceitação consensual, por go­
vernantes e governados, de um mínimo de regras e de valores coletivamente partilhados".
30. Como afirma Dias (1994) a oposição sociedade civil (manifestação pura do priva­
do) e sociedade política (como o Estado), ou seja, como instância autônoma do real, é uma
formulação liberal. Aqui, a sociedade civil aparece como o conjunto das instituições priva­
das, como elemento que articula as individualidades, caracterizando-se por uma neutrali­
dade classista. No pensamento gramsciano (na esteira de Marx), a oposição pertinente que
se estabelece é entre as classes em presença e a forma estatal das classes (não entre público
i» privado).
58 M. L. DURICUETTO

Em Gramsci, o momento unificador dessas duas esferas — so­


ciedade política e sociedade civil — está presente na forma como o
grupo social realiza sua "supremacia", que se manifesta "como 'do­
mínio' e como 'direção intelectual e moral"'. Nessa direção, o Estado é
analisado como um conjunto de aparelhos através dos quais uma classe
exerce sua supremacia, "liquidando" ou dominando, inclusive com a
força armada, a classe adversária, e sendo dirigente dos grupos afins
e aliados. A predominância de uma relação de supremacia estatal mais
consensual e menos coercitiva, ou vice-versa, irá depender do grau de
autonomia relativa das esferas, da predominância no Estado dos apa­
relhos pertencentes a uma ou a outra, da socialização da política e da
correlação de forças entre as classes que disputam a hegemonia.
(Coutinho, 1994: 57) A delimitação das especificidades próprias da
esfera da sociedade civil e a ligação desta com a esfera econômica e
com a sociedade política constituem a base para a reformulação
gramsciana da estratégia revolucionária para os países capitalistas
avançados.
É com base nessas novas determinações que o pensador italiano
defende que a estratégia de choque frontal ao poder de Estado, que
denomina de "guerra de movimento", levada a cabo na revolução russa
de 1917, não pode ser aplicada às formações sociais "ocidentais". Es­
tas apresentam uma complexificação da ordem social que se expressa
na constituição de uma socialização da política em uma rede de orga­
nizações estruturadas e pluralistas que estabelecem uma relação ade­
quada entre sociedade civil e Estado, ao contrário das formações so­
ciais "orientais", em que há um predomínio do Estado-coerção (ou da
sociedade política) e a inexistência de uma sociedade civil forte e au­
tônoma. A partir dessas diferenciações sócio-históricas, Gramsci
explicita que a estratégia revolucionária ocidental deverá se concen­
trar na "guerra de posição",31 ou seja, em conquistas progressivas ou

31. Concordamos com Guimarães (1998: 265-6) na sua reflexão de que não há, nos tex­
tos gramscianos, nada que autorize a interpretação de que, nesta visão processual da revo­
lução, "[...] o momento catártico do salto qualidade, de ruptura, esteja negado". Segundo o
autor, o campo teórico de Gramsci combina "guerra de posição" e "guerra de movimento",
com esta última assumindo 'uma função mais tática na sociedade moderna'. "Assim, em
Gramsci, a concepção de revolução em sua dimensão de violência está radicalmente subor­
dinada a sua dimensão diretiva, expansiva, criativa [...]. Pois o processo de construção da
hegemonia como desconstituidor da vontade coletiva da ordem e formação de uma força de
•.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 59

"processuais" de espaços de direção político-ideológica e de forma­


ção de um consenso organizado e participativo no vasto campo da
sociedade civil.32 É através dessas ações que se formará uma "vontade
coletiva nacional-popular", que se expressará na ascensão de uma nova
classe (ou bloco de classes) ao poder político, explicitando a criação
de um novo "bloco histórico".33
A noção de hegemonia como "direção intelectual e moral" assu­
mo relevância central na estratégia da "guerra de posição". O conceito
se refere tanto ao processo em que uma classe toma-se dirigente quanto
á direção que uma classe no poder exerce sobre o conjunto da socieda­
de. A hegemonia expressa a direção e o consenso ideológico (de con­
cepção de mundo) que uma classe consegue obter dos grupos próxi­
mos e aliados.34
Constituir-se como classe hegemônica significa construir e orga­
nizar interesses comuns e "[...] tomar-se protagonista deis reivindica­
ções de outros estratos sociais [...] de modo a unir em tomo de si esses

coorção social e moral, intrinsecamente deprime o momento de pura força no processo de


Irnnsformação. Não há em Gramsci, concluindo, apenas uma negação moral da violência
mas a indicação da necessidade de sua superação civilizatória."
32. Para Gramsci (2002: 62-63), a obtenção da hegemonia "deve preceder a tomada do
poder, ou seja, a classe que se propõe uma transformação revolucionária da sociedade deve
ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (esta é uma das condições prin­
cipais para a própria conquista do poder); depois, quando exerce o poder e mesmo se o
mantém fortemente nas mãos, torna-se dominante mas deve continuar a ser também 'diri­
gente'." No entanto, a conquista da hegemonia do projeto das classes subalternas no âmbito
da sociedade civil, ainda que necessária, não implica sua completa realização política. E só
com a tomada do poder político que as classes subalternas atingem sua completa unificação
política, tornando-se o próprio Estado.
33.0 conceito de "bloco histórico" define uma ordem social em que a classe dominante
na esfera econômica detém também a dominação (sociedade política) e a hegemonia (socie­
dade civil) sobre o conjunto da sociedade. É, assim, um bloco econômico, político e cultural,
implicando uma relação de hegemonia entre governantes e governados, dirigentes e dirigi­
dos sob direção da classe hegemônica. (Buci-Glucksmann, 1980: 347-368)
34. A construção de uma nova hegemonia também implica considerar a possibilidade
do enfraquecimento do poder de direção e de formação do consenso da classe no poder. Isso
implica uma ruptura das classes subalternas com as ideologias tradicionais, criando o terre­
no para o confronto entre uma hegemonia em "crise" e uma outra que ainda não nasceu.
Nessas situações, tanto pode ocorrer a rearticulação do poder da classe dominante via coer-
ção e concessões, quanto a ampliação da ocupação de espaços de formação do consenso e de
direção pelas classes subalternas.
6o M. I. DURIGUETTO

estratos, realizando com eles uma aliança". (Gruppi, 1991: 59) A con­
quista progressiva de uma unidade político-ideológica — de uma di­
reção de classe — requer, assim, a busca do consenso dos grupos so­
ciais aliados, alargando e articulando seus interesses e necessidades
na busca da superação dos seus limites corporativos.35
Esse é o processo e o momento que Gramsci denomina de
"catarse", isto é , "[...] a passagem do momento meramente econômico
(ou egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elabora­
ção superior da estrutura em superestrutura na consciência dos ho­
mens". (Gramsci, 2001:53) É o próprio processo da passagem da cons­
ciência corporativa e particularista da "classe em si" para a consciên­
cia universal da "classe para si".36 A superação do interesse particular

35. Mas isso não significa que se deva perder a referência do projeto que determina a
direção do processo unificador. Nas palavras de Gramsci (2000a: 48): "O fato da hegemonia
pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos
grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compro­
misso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa, mas
também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essen­
cial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica,
não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no
núcleo decisivo da atividade econômica".
36. Gramsci (2000a: 41) destaca três momentos de avaliação do grau de homogeneida­
de, de organização e consciência ideo-política alcançado pelos vários grupos sociais: o pri­
meiro é o momento econômico-corpprativo, no qual o grupo profissional toma consciência
dos seus interesses e do dever de organizá-los, mas não desenvolveu ainda unidade com o
grupo social mais amplo; o segundo é o momento sindicalista, "em que se atinge a consciên­
cia da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no
campo meramente econômico. Neste momento se coloca a questão do Estado, mas apenas
no terreno da obtenção de uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já
que se reivindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de
modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes". O terceiro momento
é aquele em que se atinge a consciência de classe ou da fase hegemônica, "em que se adquire
a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e
futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem
tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é fase mais estritamente políti­
ca, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas comple­
xas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em 'partido', en­
tram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação
delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além
da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo
todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano
'universal', criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de
grupos subordinados".
•.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 6l

<• imediato de diferentes grupos sociais pela mediação de um movi­


mento "catártico" de formação de uma consciência ético-política
universalizadora é o que confere concretude à noção de hegemonia.
Nessa formulação do pensador italiano estão assentados os "fun­
damentos de uma teoria democrática da transição ao socialismo", sen­
do o conceito de hegemonia sua maior contribuição para a teoria da
democracia.37 Ou seja, na medida em que, para o pensador italiano, a
Iransição para o socialismo se efetivaria por meio de um processo pro­
gressivo de "democratização" e conquista de espaços políticos e de
participação popular crítica e organizada nos espaços da sociedade
eivil, pode-se dizer que há em Gramsci uma relação orgânica entre
hegemonia e democracia.

Entre os muitos significados de democracia, parece-me que o mais


realista e concreto se possa deduzir em conexão com o conceito de
hegemonia. No sistema hegemônico, existe democracia entre o gru­
po dirigente e os grupos dirigidos na medida em que o desenvolvi­
mento da economia e, por conseguinte, da legislação que expressa
este desenvolvimento, favorecem a passagem molecular dos gru­
pos dirigidos para o grupo dirigente. (Gramsci, 2000a: 287)

Gramsci está convencido de que essa potencialidade radical da


democracia e a realização plena da dimensão contratual da política —

37. Seu conceito de hegemonia é também o principal ponto de articulação com as no­
ções de vontade geral e de contrato, desenvolvidas por Rousseau, e de pluralismo, desen­
volvida por Hegel. Tanto em Rousseau quanto em Gramsci, encontramos a idéia de que a
construção de uma nova relação entre governantes e governados pressupõe indubitavel­
mente a formação de um consenso ("vontade geral" no primeiro e "vontade coletiva nacio­
nal popular" no segundo) no qual se prioriza a formação do espaço de uma esfera pública
centrada no interesse coletivo sobre o privado. Assim, Gramsci retém da formulação rous-
seauniana a concepção da política e da esfera pública como instâncias de formação inter-
subjetiva da hegemonia e do contrato. Entretanto, em Gramsci, a produção de um contrato
do base ético-política universalizadora não se desenvolve com e através da repressão das
vontades particulares (como em Rousseau), mas por um processo em que a pluralidade e
diversidade dos interesses individuais são conservados e elevados a nível superior (como
em Hegel). E é precisamente a necessidade concreta e objetiva da construção consensual do
contrato e da hegemonia pelos sujeitos sociais que Gramsci supera tanto a sua construção
por uma moralidade abstrata (Rousseau) quanto por um "espírito" estatal (Hegel). É com a
absorção do Estado pelos elementos da sociedade civil que se expressa a erradicação da
relação entre governantes e governados em Gramsci. É aqui que a noção de democracia se
concretiza objetivamente. (Coutinho, 1994: 137-142)
62 M. I. DURIGUETTO

tanto na sociedade civil quanto na esfera do poder político — são in­


compatíveis com o capitalismo e com a permanência da divisão de
classe.
O desenvolvimento de uma consciência crítica em relação à con­
cepção hegemônica vigente e de uma ação política articulada e de pro­
postas superiores de sociedade como pressuposto subjetivo e objetivo
para a formação de um processo de catarse na direção da construção
de uma nova hegemonia das classes subalternas implica, necessaria­
mente, na transformação da sua bagagem ideocultural. Isso porque
Gramsci recolhe de Marx a idéia de que os homens fazem sua histó­
ria, mas não a fazem nas condições que escolheram, podendo suas
ações e atitudes muitas vezes serem determinadas por aquilo que lhes
escapa e que lhes é estranho. E é precisamente esse caráter histórico e
objetivo das relações sociais que determina que nem todas as esferas
da vida social são produto e resultado de uma relação consensual e
contratual entre os indivíduos sociais.
Não obstante, Gramsci defende a possibilidade de que mecanis­
mos consensuais e contratuais resultantes de ações sociais conscien­
tes e críticas podem cada vez mais ser criados, consolidados e desen­
volvidos, particularmente no campo da política. Gramsci insiste, aqui,
na idéia de que a constituição de uma hegemonia das classes subal­
ternas nas formações sociais em que as superestruturas apresentam
uma alta complexidade sócio-institucional e político-ideológica requer
uma intensa "preparação ideológica das massas", um "trabalho de crí­
tica, de penetração cultural, de permeação de idéias", de construção de
uma nova concepção de mundo ("reforma intelectual e moral").38

38. Insistência oposta às teses defendidas pelo marxismo vulgar que, ao atribuir um
primado automático e mecânico da base econômica nos processos sociais, acaba por anular
a função do sujeito, das expressões da vontade, de ação e de iniciativa política e intelectual,
induzindo ao fatalismo e à passividade. Tal como em Marx, também em Gramsci, o conjunto
das relações sociais de produção determina a práxis política não como um "determinismo
econômico" de sentido unívoco, mas como determinações que limitam e condicionam histo­
ricamente o campo de alternativas que se colocam à ação humana. Fiel a este aspecto deci­
sivo do pensamento marxiano, Gramsci se importará com os elementos de preparação das
condições ideológicas da práxis revolucionária, uma vez que, de acordo com o método dia­
lético, a vida social é um terreno dinâmico de alternativas, de luta de tendências, que são
resolvidas pela e na luta entre vontades coletivas. É nesta direção que acredita que não há
situação histórica que não possa ser mudada pela livre e consciente ação de homens organi-
UH.IIDADE CIVIL E DEMOCRACIA *3

Problematizada na interface com a economia e a política, a esfera


«lii cultura, enquanto espaço de preparação e elevação da consciência
critica das massas é, assim, para Gramsci, um fator decisivo no pro­
cesso de criação de uma nova sociabilidade. Nesse sentido, a hege­
monia como "direção intelectual e moral" incorpora uma dimensão
educativa na medida em que desencadeia um processo que aspira
construir sujeitos historicamente ativos que buscam formas para rom­
per com a submissão e subaltemidade, preparando-os para a partici­
pação na construção do consenso e para a superação da relação entre
governantes e governados. Assim, em Gramsci, a formação de uma
consciência crítica, assim como a participação ativa são os alicerces de
uma ação política que procura conquistar a hegemonia, uma vez que,
se não é a consciência que determina o ser social, é por meio desta que
os sujeitos sociais podem construir sua "eticidade" e sua própria his­
tória. A práxis política constitui, desse modo, o campo particular de
mediação e formação da cultura, do consenso e da construção de uma
nova hegemonia.39
A construção do consenso é, para Gramsci, a busca das aspira­
ções e das demandas que estão dispersas no largo arco das classes
subalternas; é saber direcioná-las em um programa e direção política
concretos e numa perspectiva universal. Significa saber convencer,
persuadir, ganhar adesão pelo envolvimento ativo, propositivo e não
pela manipulação e passividade. O consenso nasce da participação,
daí a importância fundamental que Gramsci atribui aos intelectuais, os
quais são criados a partir da inserção e da função de cada grupo social
na esfera da produção e do conjunto das relações sociais. São os inte­
lectuais "[...] que lhe dão homogeneidade e consciência da própria
função, não apenas no campo econômico, mas também no social e
político [...]". (Gramsci, 2000: 15) Intelectual, para Gramsci, é aquele

/.idos, mas que também este processo é pensado inseparadamente dos condicionamentos
sociais que os determinam (Gramsci, 2001: Caderno 11, § 12; cf. também Gruppi, 1991:119).
39. A complementaridade dos dois processos — cultural e econômico — de construção
do uma nova hegemonia é assim explicitado por Gramsci (2000b: 19): "Pode haver reforma
cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior
reforma econômica e uma modificação na posição social e no mundo econômico? É por isso
que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de
reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o
modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral."
«4 M. L. DURIGUETTO

que exerce uma função de organização, direção, educação, seja no ter­


reno da produção, seja no da cultura, da política, da administração. É o
organizador da função econômica da classe dominante e dominada, o
portador da função hegemônica, o elaborador e difusor das ideologias.40
O intelectual orgânico da burguesia é o portador de sua hegemo­
nia nas esferas da vida social: da organização da conquista do consen­
so "espontâneo" nas e através das instituições da sociedade civil à
organização da coerção na "sociedade política", "[...] que assegura 'le­
galmente' a disciplina dos grupos que não 'consentem', nem ativa nem
passivamente [...]". (Gramsci, 2000a: 21) Em oposição a essas funções,
cabe ao intelectual orgânico das classes subalternas articular em uni­
dade, em um projeto totalizador, suas aspirações particulares e'frag­
mentadas. Mas essa articulação não se efetiva pela imposição, mas
pela adesão crítica, ativa e consensual dos grupos sociais ao projeto
de classe que quer ser hegemônico. A tarefa fundamental dos intelec­
tuais consiste em estabelecer nexos nos caracteres difusos e dispersos
do "senso comum" das classes subalternas para uma elaboração su­
perior de sua visão de mundo, para uma construção ativa de sua pró­
pria história.41

40. Essa relação orgânica se dá tanto em relação ao proletariado quanto em relação à


burguesia: "[...] o caráter orgânico do intelectual depende da sua relação com a classe a que
pertence, bem como do lugar ocupado por ele nas organizações da sociedade econômica,
política e civil. A origem de classe de um intelectual pode ser diversa e até mesmo oposta à
classe a que está organicamente ligado. Um intelectual orgânico da classe trabalhadora pode
chegar a ser um intelectual orgânico da burguesia ou vice-versa/7 (Simionatto, 1995: 59)
41. Gramsci (2001:103-104), evidencia que os homens pensam segundo uma concepção
de mundo imposta e a ela obedecem passivamente. "O homem ativo de massa atua pratica­
mente, mas não tem uma clara consciência teórica desta sua ação, a qual, não obstante, é um
conhecimento do mundo na medida em que o transforma. Pode ocorrer, aliás, que sua cons­
ciência teórica esteja historicamente em contradição com o seu agir. É quase possível dizer
que ele tem duas consciências teóricas (ou uma consciência contraditória): uma, implícita
na sua ação, e que realmente o une a todos os seus colaboradores na transformação prática
da realidade; e outra, superficialmente explícita ou verbal, que ele herdou do passado e
acolheu sem crítica." É essa consciência que, assimilada mecanicamente do exterior, pode
provocar uma contradição entre o pensar e o agir, determinando uma ação e comportamen­
to passivo frente à realidade. A superação dessa passividade e subalternidade realiza-se
quando se desenvolve a consciência do significado do próprio operar, da efetiva posição de
classe e uma visão crítica da política e do poder esta tal."[...] É por isso que se deve chamar a
atenção para o fato de que o desenvolvimento político do conceito de hegemonia representa
— além do progresso político-prático — um grande progresso filosófico, já que implica e
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 65

A preparação ideológica e cultural exige uma "direção conscien­


te" para atingir eficácia histórica na construção de uma nova hegemo­
nia, "[...] ou seja, uma síntese político-intelectual que supere os ele­
mentos de corporativismo e transforme tais movimentos em algo ho­
mogêneo, universalizante, capaz de ação eficaz e duradoura". (Coutinho,
1989:106) Eis a tarefa central que cabe ao partido político: transformar
as massas em sujeitos ativos, organizados, e direcionar o conjunto de­
sagregado e espontâneo das ideologias a uma direção consciente.42
A concentração no desenvolvimento dos aspectos propriamente
políticos da teoria marxista permitiu a Gramsci indicar que é no terre­
no dessa esfera que se efetiva o momento da articulação entre subjeti­
vidade e objetividade. Em Gramsci, a esfera da política é a esfera dos
processos de superação de uma práxis de mera recepção passiva, ime­
diata e subalterna da vida social para uma forma de práxis ativa,
propositiva e que se orienta para a universalidade. Essa dinâmica de
superação e elevação da consciência e do agir político é também utili­
zada para expressar os processos que caracterizam a política em sua
acepção "restrita", isto é, como conjunto de práticas que se referem às
relações de poder entre governantes e governados.
Distingue, aqui, a "grande política" — que envolve ações as quais
intencionam modificar ou preservar a ordem social — da "pequena
política" — cujas ações são vinculadas a questões parciais e cotidia­
nas, como, por exemplo, regras de funcionamento da política (tanto
demandadas pelo poder político governamental quanto as demanda­
das pelas organizações da sociedade civil). (Gramsci, 2000a: 21) As­
sim, é no computo de uma complexa e progressiva passagem da cons­

supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do
real que superou o senso comum e tomou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda
restritos".
42. Para Gramsci (1971: 29), essa construção do consenso participativo, da vontade
coletiva a partir de uma "reforma intelectual e moral" cabe principalmente ao partido polí-
lico, que operaria a síntese política do consenso gestado na sociedade civil. Entretanto, pon­
dera: "O princípio segundo o qual o partido dirige a classe não deve ser interpretado de
íorma mecânica. Não se deve crer que o partido pode dirigir a classe operária impondo-se a
ela do exterior e de forma autoritária: isso não é mais verdadeiro para o período que precede
«i tomada do poder, do que para aquele que sucede [...] Nós afirmamos que a capacidade de
dirigir a classe não se deve ao fato de que o partido se proclame seu 'órgão revolucionário',
mas ao fato de que ele consiga efetivamente, enquanto partido de classe operária, permane­
cer em ligação com todas as suas camadas".
66 M. I. DURIGUETTO

ciência e da prática "egoístico-passional" para a "ético-política" (que


pode ser identificada com a passagem da "pequena" para a "grande"
política) que se constitui e que se pensa a esfera da política em Gramsci.
Entretanto, enquanto movimento "catártico", a política é um compo­
nente que atravessa ineliminavelmente as esferas do ser social, ao con­
trário de sua acepção "restrita", que é histórica e transitória.43
A partir da visão da política como momento de elevação ao uni­
versal, Gramsci (2000b: 17) vai discutir como se constroem as formas
intersubjetivas de interação social que possibilitam aquela elevação:
"[...] quando é possível dizer que existem as condições para que se
possa criar e se desenvolver uma vontade coletiva nacional-popular"?.
Os alicerces da política e de qualquer ação coletiva residem nos espa­
ços interativos de um tipo específico de práxis: aquela voltada para trans­
formar a ação do outro (práxis interativa). Atuar sobre a ação do outro
(ou dos outros) para a construção de uma nova hegemonia implica
conhecer as determinações que condicionam seu agir (determinações
econômico-objetivas) e ter capacidade de convencê-lo a agir na dire­
ção desejada. A base do conhecimento para o convencimento está na
apreensão das normas ou valores (concepção de mundo, linguagem,
senso comum etc.) que informam a práxis cultural e política do indi­
víduo ou sujeitos sociais (como se dão as formas de consciência e como
estas se relacionam e se manifestam com a práxis política) e também
nas normas e valores utilizados para o convencimento (que devem
ser dirigidos para a formação da vontade coletiva). Foi a esse tipo de
conhecimento que Gramsci denominou de ideologia. Ou seja, àquela
relação entre conhecimento e ação que é mobilizada para a partilha de
valores e ações comuns.44

43. "[...] Ela surge no tempo, já que só existe política [restrita] quando há governantes e
governados, dirigentes e dirigidos, uma divisão que — como Gramsci indica — tem sua
matriz última na divisão da sociedade em classes e [...] deverá desaparecer [...] na 'socieda­
de regulada' (comunista), ou seja, precisamente quando desaparecer a divisão da sociedade
em classes. Do mesmo modo como, nessa 'sociedade regulada', os organismos sociais deve­
rão absorver a economia (no sentido de subordinar suas leis espontâneas e aparentemente
naturais ao controle consciente e programado dos produtores associados), assim também —
pensa Gramsci — tais organismos deverão absorver o Estado, pois as funções desse 'corpo
separado' se dissolverão nas relações conscientes e consensuais que caracterizam a socieda­
de civil" (Coutinho, 1989: 55).
44. A ideologia é compreendida como "[...] o significado mais alto de uma concepção
do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em
SOCIEOAOE CIVIL E DEMOCRACIA 67

É no campo da ideologia que se opera a passagem dos interesses


grupais aos universais. Nesse sentido, a constituição de um sujeito
coletivo a partir da dinâmica da práxis "interativa" pressupõe, para
sua realização objetiva, "[...] que os atores compartilhem um conjunto
do noções, valores e crenças subjetivas igualmente comuns, ou, em
outras palavras, que sejam movidos por uma vontade coletiva
Outrossim, "[...] a luta pela hegemonia implica uma ação que, voltada
para a efetivação de um resultado objetivo no plano social, pressupõe
.1 construção de um universo inter-subjetivo de crenças e valores [...]"
para a construção do consenso. (Coutinho, 1989: 67)
A sociedade civil é o domínio da ideologia, é a esfera em que se
desenvolve a luta pela hegemonia. Uma práxis política ativa e de dis­
cussão crítica é a via que pode propiciar a passagem da fragmentação
à unicidade, de um modo de pensar desagregado a uma forma de
pensar crítica e coerente para a formação processual de uma "vontade
coletiva" genuinamente revolucionária. Sua construção está alicerça­
da na formação de uma hegemonia consensual que se gesta a partir
da pluralidade de valores sócio-culturais e espaços sócio-institucio-
nais que parametram a ação humana e a vida social. Mas, em Gramsci,
consenso, persuasão e diálogo devem caminhar, progressivamente,
para uma direção social: a construção de um novo projeto societário.
Como anteriormente exposto, a defesa da unificação dos interes­
ses em um projeto de classe universal não implica que Gramsci esteja
propondo uma homogeneização da pluralidade e das diferenças. Em
Gramsci, não há uma repressão ao interesse particular; ao contrário,
este é defendido na direção de sua potencialização e articulação ao
interesse geral.
Não obstante, não encontramos em suas formulações uma teoria
explícita e concreta de como se efetivariam as articulações da plurali­
dade e diversidade das organizações da sociedade civil na construção
da hegemonia e da democracia socialista. A concretização de uma ela­
boração propositiva acerca dessa lacuna (articulação entre democra-
cia/hegemonia e pluralismo) caberia aos herdeiros de Gramsci, em
particular a Togliatti e Ingrao.

todas as manifestações de vida individuais e coletivas" (Gramsci, 2001: 98-99). E é nesse


terreno que uma classe exerce a hegemonia sobre as demais.
66 M. L DURICUETTO

1.2.5. Contra-hegemonia: construção democrática

Nas formulações de Togliatti (1966, 1980), a construção da arti­


culação da pluralidade político-organizativa da sociedade civil seria
tecida nas relações entre os institutos representativos democráticos
tradicionais (parlamento, partidos etc.) e os novos e diversos institu­
tos organizativos de democracia da sociedade civil. A consolidação e
o aprofundamento da relação sócio-política e institucional desses or­
ganismos é a base da construção tanto do avanço "progressivo" do
processo de luta pelo socialismo quanto da sociedade socialista. O
terreno institucional da democracia política constitui, assim, a mate­
rialidade para a explicitação de uma superação gradual do capitalis­
mo através de reformas econômicas e políticas.45 E é justamente por
permitir essa construção que Togliatti concebe esse processo como
"democracia progressiva".46
Se, na formulação togliattiana, o conceito gramsciano da "guerra
de posições" ganha uma maior determinação no que diz respeito à
ampliação de novos espaços político-institucionais necessários para
se conquistar a hegemonia, também encontramos, nas formulações
de Pietro Ingrao, uma maior concreção dessa conquista pela sua arti­
culação com o pluralismo. Ou seja, dada a amplitude sócio-política
das organizações e demandas da sociedade civil, a construção da he­
gemonia e do consenso seria alcançada no interior e a partir desses
espaços plurais de poder e demandas. Essa seria a forma política con­
creta de encaminhar processos de unificação voltados para a constru­
ção da hegemonia nas condições de pluralismo.47
Nesse sentido, o desenvolvimento teórico-político da estratégia
gramsciana da "guerra de posição" aparece concretizado no aprofun-

45. A amplitude e a solidez das organizações políticas dos trabalhadores é que vão
definir se o processo de reformas é uma etapa da luta de classes pelo socialismo ou se se
trata de um "oportunismo reformista" que a extingue.
46. "Esta ultrapassa os limites do puro respeito às formas exteriores igualitárias e par­
lamentares, enfrenta na essência os problemas de organização da vida econômica e políti­
ca" (Togliatti, 1966: 116).
47. Nas palavras do autor: "Nós hoje falamos de hegemonia e pluralismo. Eu diria
mais precisamente: hegemonia da classe operária no pluralismo. É uma fórmula que não se
limita a indicar a direção da classe operária baseada no consenso; é uma fórmula que já
alude a uma precisa forma política e estatal do consenso." (Ingrao, 1980: 151-152)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 69

(.lamento "progressivo" da democracia política e na busca da unidade


das lutas políticas imediatas das diversas organizações das classes
subalternas na sociedade civil. Unidade que seria tecida através da
construção de alianças cada vez mais amplas com as camadas da clas­
se trabalhadora em tomo da defesa de suas reivindicações imediatas
e de profundas reformas econômicas e políticas. Na defesa dessa uni­
dade consensual e hegemônica está implícita uma nova concepção de
democracia e de seus institutos.
O impulso de democratização dos institutos políticos não provi­
rá de suas formas e regras, mas da organização e pressão política das
classes subalternas, e é do grau de sua consciência política e de classe,
de sua unidade e da eficácia de suas lutas, que depende a substantivi-
dade do conteúdo dos processos democráticos.48
A centralização da "guerra de posição" nos institutos de demo­
cracia política significa a luta pela criação, em todos os seus espaços,
de movimentos populares organizados, fortes, conscientes de seus
objetivos políticos e capazes de realizá-los através de ações e lutas
unitárias. Tal como em Gramsci, a instância articuladora dessa unida­
de é o partido político. Caberia ao partido a construção dessa media­
ção que seria tecida na superação das limitações das posições corpo­
rativas e setoriais da sociedade civil pela projeção unitária de sua ação
sócio-política a partir da síntese de suas problemáticas. É essa dinâ­
mica que possibilita que os partidos se tomem construtores de sínte­
ses gerais, bem como do exercício do controle, negociação e influência
dos movimentos de base na sua dinâmica interna. (Ingrao, 1980: 35;
128 e 224-225)
Assim, a "dialética democrática" a ser construída envolve a arti­
culação entre o elemento de imediatismo, de parcialidade das organi­
zações corporativas e o elemento político universal do partido. Mas
essa articulação não deve anular os momentos e as funções políticas
das elaborações das necessidades imediatas. Ao contrário, essas posi­

48. "[...] temos de sublinhar a existência desse nexo indissolúvel entre a luta democrá­
tica e a luta pelo socialismo, mas também demonstrar [...] que a democracia é algo real e
novo. Queremos que a vontade popular seja verdadeiramente determinante dos desenvol­
vimentos políticos, e penetre — transformando-o no próprio tecido da vida econômica, e,
portanto, de toda a sociedade civil [...]. É nossa ação para impulsionar a sociedade no senti­
do do socialismo que anima, dá conteúdo e eficiência à nossa luta pela democracia [...]."
(Togliatti, 1980: 190)
70 M. L DURICUETTO

ções corporativas devem ser expressas em redes de espaços democrá­


ticos de base e superadas por "sínteses unificadoras" de articulação e
desenvolvimento de uma vontade coletiva e política geral. Nesse sen­
tido, afirma Ingrao (1980:146-147) que "[...] democracia de base é vis­
ta como um componente condicionante da democracia representativa
[...] sem a qual a unificação política central [...] se toma tuna [...] me­
diação entre necessidades que permanecem corporativas".
Se encontramos em Togliatti e Ingrao uma maior concreção da
estratégia gramsciana da "guerra de posição" — articulação orgânica
das organizações plurais da sociedade civil e as instâncias de media­
ção representativas da democracia política —, também identificamos,
na formulação dos últimos trabalhos de Poulantzas (1985), uma con­
tribuição decisiva para pensar uma relação entre democracia e socia­
lismo.
Poulantzas, como Togliatti e Ingrao, acrescentou novas determi­
nações às formulações gramscianas, particularmente em relação à ca­
racterização das relações de poder na esfera política do Estado capita­
lista e à estratégia de transição ao socialismo. Sua elaboração parte da
concepção do caráter de classe do fenômeno estatal desenvolvida pela
tradição marxista, mas a esta acrescenta novas determinações que
põem em perspectiva um novo campo de lutas na "guerra de posi­
ção".49 Para ele, o Estado e suas instituições políticas são atravessados
e constituídos por contradiçpes internas que expressam as contradi­
ções entre as classes e suas frações.50 A esfera do poder estatal toma-

49. Segundo Carnoy (1988:129), "[...] a principal contribuição de Poulantzas ao debate


sobre o Estado capitalista é sua análise do Estado em relação à luta de classes. Sua obra se
concentra na natureza das classes sociais, no papel do Estado na formação e definição do
conflito de classes e no efeito desse conflito sobre o próprio Estado. A partir dessa análise,
descobrimos um Estado que se insere nas e se define pelas relações de classe [...] ao mesmo
tempo que é um fator de coesão e regulamentação do sistema social no qual funciona".
50. Segundo Poulantzas (1985: 30), "[...] uma teoria do Estado capitalista só pode ser
elaborada ao se relacionar este Estado com a história das lutas políticas dentro do capitalis­
mo". Afirma ainda: "[...] o Estado capitalista não deve ser considerado como uma entidade
intrínseca mas, como aliás é o caso do 'capital', como uma relação, mais exatamente como a
condensação material de uma relação de forças entre classes e frações de classe, tal como
essa se expressa, sempre de modo específico, no seio do Estado" (1985: 147). Entretanto,
esses processos não denotam uma realidade de espaços plurais de poder mas um processo
que expressa situações variáveis de luta de classes. Assim, para Alford e Friedland (1991:
246), Poulantzas "[...] considera 'relativamente autônomos' os aspectos democráticos e
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 71

se, assim, não tanto o lugar de organização e unificação do poder da


classe dominante, mas um espaço em que o poder político pode ser
contestado. O aparato estatal é também o terreno da correlação de for­
ças sócio-políticas na busca de posições de poder, no qual as classes
subalternas estão inseridas.
A concepção poulantziana do Estado capitalista como uma esfe­
ra em que se disputam, porém com hegemonia de uma classe, espaços de
poder institucionais, ideológicos e políticos é incorporada como es­
tratégia do processo de transição para o socialismo, o que vem impu­
tar uma nova determinação à formulação gramsciana da estratégia da
"guerra de posição". Ou seja, a definição gramsciana da luta pela he­
gemonia é formulada como um processo de disputas de posições de
poder a partir e nos espaços sócio-institucionais da sociedade civil. A
inovação que Poulantzas opera consiste em também inscrever essa
disputa no interior dos aparelhos do Estado, que Gramsci chamou de
"sociedade política". Ou seja, os interesses e projetos em disputa se
enfrentariam na sociedade civil e nos aparelhos estatais em sentido
estrito ("sociedade política" na linguagem gramsciana).51
Poulantzas também afirma a necessária articulação entre a am­
pliação e o aprofundamento dos institutos da democracia representa­
tiva e democracia participativa de base para uma transição democrá-

burocráticos do Estado, com um grau de autonomia circunscrito pelos requerimentos repro­


dutivos do capitalismo associados com a luta de classes-"
51. Segundo Camoy (1988: 160), Poulantzas "[...] faz com relação ao Estado o que
Gramsci fez com relação à sociedade civil: Poulantzas toma o conceito gramsciano da hege­
monia da classe dominante em toda a sua complexidade e penetração e o articula para o
Estado. O Estado toma-se, ele mesmo, uma arena de luta." Nas palavras de Poulantzas (1985:
297): "Tomar o poder de Estado significa que seja desenvolvida uma luta de massa tal que
modifique a relação de forças interna dos aparelhos de Estado que são, em si, o campo estra­
tégico de lutas políticas [...]. Esse longo processo de tomada de poder numa via democrática
para o socialismo constitui-se, no essencial, em desenvolver, fortalecer, coordenar e dirigir
os centros de resistência difusos de que as massas sempre dispõem no seio das redes esta­
tais, nelas criando e desenvolvendo outras, de tal maneira que esses centros se tomem, no
campo estratégico que é o Estado, os centros efetivos de poder real [...]. Modificar a relação
de forças interna ao Estado não significa reformas sucessivas numa contínua progressividade,
conquista peça por peça de uma maquinaria estatal ou simples ocupação de postos ou
cúpulas governamentais. Significa exatamente um movimento de rupturas reais, cujo ponto
culminante — e certamente haverá um — consiste no deslocamento da relação de forças em
favor das massas populares no campo estratégico do Estado". (Grifos do autor)
n M. L. DURIGUETTO

tica e processual ao socialismo.52 Estas formulações se assemelham às


que foram elaboradas por Togliatti e Ingrao.
Com o conjimto das elaborações que apresentamos, verificamos
que as concepções acerca da temática da democracia como constru­
ção de uma nova hegemonia revelou um processo contínuo de supe­
ração dialética de pressupostos e fundamentos teórico-políticos, vi­
sando a qualificar essa temática na direção de seu entendimento, como
processo de construção de um novo projeto hegemônico das classes
subalternas.
No entanto, se, na tradição acima exposta, a democracia é pensa­
da a partir das relações entre Estado e sociedade civil na busca da
construção de uma contra-hegemonia, a teoria da democracia desen­
volvida pelo "pensamento democrático", especialmente a partir da
segunda metade do século XX, sofreu e vem sofrendo substantivas
variações. Explicitaremos, a seguir, uma sistematização dessas leitu­
ras acerca da "questão democrática" presentes hoje no centro do de­
bate acadêmico e prático-político. Priorizaremos as produções teóri­
cas que conferem significativa relevância às estratégias da participa­
ção e do fortalecimento da sociedade civil para a constituição de uma
nova "esfera pública" consensual e democrática. Esclarecemos que o
que está em questão nesses desenvolvimentos analíticos é a qualifica­
ção atribuída à esfera da política e da democracia, enquanto espaço
de mediação dos processos jde interação social.

52. Aponta para a importância de se pensar uma concepção da "[...] transformação


radical do Estado articulando a ampliação e o aprofundamento das instituições da demo­
cracia representativa [...] com o desenvolvimento das formas de democracia direta na base e
a proliferação de focos autogestores [...]. (Poulantzas, 1985: 293)
73

Capítulo 2

Debate contemporâneo: sociedade civil,


democracia e esfera pública na tradição liberal

A segunda metade do século XIX e o século XX, retomando a


periodização clássica marshalliana, caracterizaram-se pela contínua
expansão de direitos políticos e sociais. Isso permite-nos evidenciar
que novas determinações e mediações econômicas e sócio-políticas
foram modificando a relação do Estado com as classes sociais. A cres­
cente presença de inúmeras organizações políticas, criadas na socie­
dade civil, e a ampliação das demandas, particularmente dos setores
populares, por direitos políticos e sociais, passam a ser mediadas por
uma crescente regulação jurídico-política estatal. Essa regulação é que
delimita a participação e os conflitos de interesses nos processos só-
cio-políticos, dando forma à institucionalidade democrática, inscrita
no modelo do Welfare State.
É a partir da configuração da institucionalidade democrática e
dos direitos de cidadania, como definiu Marshall, que foram sendo
edificados os veios analíticos que serviram para balizar e protagonizar
as discussões acerca da temática da democracia na contemporaneida-
de. O nosso empenho em compreender e explicar essas discussões
insere-se na explicitação de dois desses veios, cuja priorização se jus­
tifica pelo fato de eles se constituírem em parâmetros políticos e práti-
co-operativos, que tendem a ser hegemônicos no "pensamento demo­
crático" e no "pensamento conservador".
74 M. I. DURIGUETTO

Embora tenham se originado de.diferentes perspectivas ideológi­


cas e prático-políticas, esses veios, no entanto, partem de uma premissa
em comum: a constatação da crise do Estado welfariano e da dinâmica
da sua institucionalidade política democrática. Como subproduto des­
sa premissa, duas proposições emergem: a (re)descoberta do mercado
como instância central da regulação da vida social ou a (re)descoberta
da sociedade civil como esfera de vitalização de relações sociais de­
mocráticas.
A primeira saída tem suas raízes em uma concepção minimalista
de democracia, o chamado "modelo elitista". Esse modelo é uma cor­
rente da teoria da democracia, hegemônica no e a partir do pós-guer­
ra, que supõe a existência de uma contradição ineliminável entre a
governabilidade democrática e a participação política. O produto teó­
rico dessa tradição é o surgimento de uma teoria restrita da democra­
cia, o assim chamado "elitism o democrático". Inaugurada por
Schumpeter, essa tradição é a que se encontra reatualizada pelo neo-
liberalismo.
A segunda saída se desenvolve a partir da emergência de um
novo conceito que vem se constituindo na renovação mais importante
da teoria da democracia e que tem cumprido um papel central na re­
construção de uma concepção participativa de democracia: o conceito
de esfera pública. É no interior dessa tradição teórica, que associa de­
mocracia com esfera pública» participativa, que tem sido introduzido
um novo conceito de sociedade civil, a qual passa a ser tematizada
como espaço do exercício autônomo de novas relações sociais, criadas
fora das dinâmicas do Estado e do mercado.
Ocupando uma posição intermediária entre esses dois campos
teóricos da democracia no liberalismo contemporâneo, encontramos
a concepção pluralista da democracia, cujos fundamentos teóricos es­
senciais também buscaremos examinar.

2.1. Modelo do elitismo competitivo

A análise schumpeteriana acerca das relações entre indivíduo,


esfera pública e democracia é fortemente influenciada pela teoria de
Max Weber, especialmente por este caracterizar a complexidade da
SOCIEDAOE CIVIL E DEMOCRACIA 75

dinâmica da vida social moderna nos termos da sua "modernização",


o que o levou a expressar um novo modelo de democracia, o do
"elitismo competitivo".
Para Weber, a crescente racionalização da produção capitalista
— definida pela razão científica e tecnológica — e sua orientação para
a eficiência, provocaram a difusão de aparatos técnico-burocráticos
para o controle de funções especializadas nas esferas da vida social.
Por conseguinte, a extensão de atitudes calculistas e a "gaiola de fer­
ro" das regras e regulamentações burocráticas provocaram a substi­
tuição, no interior do Estado, da dimensão moral da política por um
aparato administrativo baseado na separação entre meios e fins, trans­
formando assim a democracia em uma forma de concentração do po­
der na mão de um corpo especializado de funcionários.
Entretanto, a constatação da inevitabilidade da restrição da li­
berdade individual pela expansão da racionalização e da burocratiza-
ção na dinâmica social não impediu Weber de destacar a possibilida­
de da emergência de "indivíduos criativos", "capitalistas empreende­
dores" e de "líderes políticos de ação inovadora e de "bom julgamen­
to". Esses adjetivos, segundo as elaborações weberianas, estão pre­
sentes somente em raros indivíduos. Por isso, salienta Bellamy (1994:
36) "[...] todo o seu esquema foi dedicado à busca de uma certa quali­
dade de liderança individual, em vez de difundir o poder e a capaci­
dade de agir livremente, na sociedade como um todo".
É na busca dessas lideranças que Weber se debruçou sobre o tema
da democracia, posto que considerava que as massas seriam incapa­
zes de iniciar, por iniciativa própria, uma ação política, que sempre
seria determinada por pequenos grupos. A participação política, como
a do ato do voto, não produz consciência política ou conduz as mas­
sas ao poder, mas revela apenas a identificação das massas com o
carisma pessoal de um líder político. Assim, de acordo com o esque­
ma weberiano, a legitimidade da autoridade política "carismática"
residiría no consentimento voluntário das massas, sem necessidade
do uso da força ou do poder da argumentação. Em outras palavras, a
base do consentimento não seria a autodeterminação racional indivi­
dual, mas a adesão quase irracional e emotiva ao carisma de um líder.
Isso porque, para o autor, as massas não têm conhecimento, compro­
misso e envolvimento com a política devido às poucas oportunidades
76 M. L. DURICUETTO

que a elas são reservadas de participar da vida política e institucional


burocratizada. Entretanto, embora explique a passividade das massas
como decorrência da pouca participação permitida pela organização
burocrática, explicita a ausência de uma compreensão e julgamento
dos agentes racionais para as questões públicas. (Held, 1987:143)
Dessa forma, a democracia se resumiría a um mecanismo de com­
petição entre líderes políticos eficientes pelo voto do eleitor. A princi­
pal virtude da luta eleitoral consistiría em que esta proporcionaria a
capacitação de líderes para administrar a política, sujeitando a buro­
cracia à sua vontade. Nessa direção, as instituições e os direitos de­
mocráticos eram, para Weber, considerados pragmaticamente, ou seja,
a partir de suas conseqüências para a seleção de líderes políticos efi­
cientes.
Uma outra questão cara a Weber é a constatação da existência de
uma pluralidade de valores na vida social. Os valores ético-morais e
políticos (como, por exemplo, concepções de direito e justiça) não eram
estruturas racionalmente objetivas, capazes de integrar as diversas
dimensões da vida humana, mas escolhas e compromissos subjetivos
individuais que seguem princípios e lógicas específicas, sendo fre-
qüentemente incompatíveis. Ou seja, só podem ser atingidos privada
e isoladamente pelo indivíduo na busca competitiva por seus interes­
ses. Seu objetivo era incorporar essa ética individualista e este princí­
pio pluralista a um sistema político de líderes responsáveis, que bus­
cassem uma mediação entre os conflitos originados dessas circuns­
tâncias. (Bellamy, 1994: 360-364)
É também em prol da defesa dessa "democracia da liderança" e
de relações sociais atomizadas e individualistas que se insere a contri­
buição de Schumpeter para a temática da democracia. Schumpeter,
como Weber, expõe sua completa rejeição à doutrina democrática que
defende que a definição das questões políticas, e a implementação de
suas decisões estaria a cargo de uma "vontade popular", que corres­
pondería ao interesse comum para o qual todos os indivíduos, pela
força da argumentação racional, se dirigiríam. Nas suas argumenta­
ções, afirma que as sociedades modernas, por serem econômica e cul­
turalmente diferenciadas, abrigam diversas necessidades, valores e
ações que raramente possibilitarão a unificação das vontades indivi­
duais num repertório comum. Nesse sentido, qualquer especulação
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 77

normativa acerca da natureza da sociedade e da vida política tinha


que ser substituída por uma definição nova, descritiva e realista do
sistema e da dinâmica política democrática.
Na realidade, o que se tem, segundo Schumpeter (1961:307-308),
são indivíduos interessados apenas nas questões que diretamente lhes
afetam a vida diária e que só agem na busca de seus próprios interes­
ses. Em conseqüência, questões relativas às temáticas políticas mais
amplas encontram-se tão remotas da vida da maioria das pessoas que,
quando estas se deparam com tais assuntos, "perdem completamente
a noção de realidade" e agem como se "se movessem num mundo de
ficção", resultando em uma participação política marcada por um re­
duzido senso de responsabilidade, ignorância, falta de julgamento e
impulsos irracionais. O cidadão médio analisa a política de "forma
infantil": "ele se toma novamente um primitivo". Essa debilidade tor­
na os indivíduos vulneráveis e suscetíveis à manipulabilidade dos
desejos e escolhas por grupos de interesses que podem modelar e até
criar a "vontade do povo". Nesse sentido, os cidadãos convivem nos
processos políticos com uma "vontade popular manufaturada".
(Schumpeter, 1961: 318-320) Conseqüentemente, sua não-participação
ativa na dinâmica da esfera política é uma contribuição positiva ao
funcionamento do sistema democrático.
O argumento de que o "povo" não tem opiniões definidas e ra­
cionais sobre as questões políticas e que não passa de um "produtor
de governos" é o fundamento sócio-político e cultural para a constru­
ção de sua visão estritamente procedimental de democracia, enten-
dendo-a como um método de revezamento das elites no poder.
(Schumpeter, 1961: 328) Defende, assim como Weber, que a prática
democrática deveria ser reduzida a um método de escolha, pelo povo,
daquele grupo no interior das elites que lhe pareça o mais capacitado
para governar (elites bem preparadas moral e intelectualmente, com
experiências e com uma vocação predestinada para a política). O elei­
tor deve entender que a ação política é responsabilidade de quem ele
elegeu: "o eleitorado normalmente não controla seus líderes políticos,
exceto pela recusa de reelegê-los". (Schumpeter, 1961: 331-332)
Como vimos, em Schumpeter e Weber inexiste qualquer vínculo
entre democracia e soberania popular e/ou democracia e bem comum,
uma vez que esses "pares" conflitavam radicalmente tanto com as for­
78 M. I. DURIGUETTO

mas complexas de administração do Estado moderno quanto com a


pluralidade de valores e de orientações individuais. Esse diagnóstico
da complexidade das sociedades modernas conduz suas elaborações
teóricas a um entendimento da democracia como processo de expres­
são de preferências e demandas individuais e grupais por meio do
voto. O objetivo do processo decisório democrático é possibilitar, a
indivíduos e grupos, decidir que líderes, regras e políticas melhor ser­
virão aos seus interesses.
Essa tradição teórica de se pensar a democracia em sua versão
"minimalista"1 foi incorporada pelos teóricos que realizam uma críti­
ca radical ao modelo do Welfare State. E está no cerne dessas críticas o
nascimento do chamado "neoliberalismo" ou "neoconservadorismo"
que, a partir dos anos 1970, protagoniza o pensamento dos chamados
"liberais realistas", na expressão de Bellamy, no que concerne à teoria
da democracia. Entretanto, antes de nos atermos especificamente à
questão da democracia no neoliberalismo, iremos tratar de revelar os
fundamentos centrais sobre os quais se edifica o ideário neoliberal.
Esses fundamentos encontram-se na emergência de um novo padrão
de acumulação que acompanha a "crise" dos projetos societários do
Welfare State e do chamado "socialismo real".

2.2. Crise e reestruturação do capital: a barbárie social


*
A passagem do século XIX para o século XX marca a transição do
estágio do capitalismo concorrencial para a sua fase monopólica. E é
nessa fase monopólica que a valorização do capital é enfrentada pela
consolidação de um novo padrão de acumulação e de um novo regi­
me de regulação social,*2 que passam a configurar a dinâmica econô­

1 .0 conceito de democracia no sentido "minimalista", como anteriormente defendido


por Weber e Schumpeter, diz assim respeito ao subsistema político-institucional, e não a um
padrão de organização ou a um ideal ético vigente em todas as esferas da vida social. A
democracia refere-se, por conseguinte, à instauração e à progressiva institucionalização dos
princípios e procedimentos que regulam a competição periódica entre forças políticas pelo
voto popular, com vistas à conquista de cargos públicos.
2. A organização monopólica dos mercados introduz na dinâmica da economia capita­
lista uma nova conformação: os preços das mercadorias e serviços produzidos pelos mono­
pólios tendem a crescer progressivamente; as taxas de lucro tendem a ser mais altas nos
setores monopolizados; a taxa de acumulação se eleva, acentuando a tendência descenden-
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 79

mica e sócio-política nos países centrais do segundo pós-guerra, com o


desenvolvimento dos modelos dos chamados Estados de Bem-Estar.
A estratégia fordista/keynesiana constitui os pilares centrais desse
novo regime de acumulação e regulação. O fordismo significou uma
nova forma de organização e gerenciamento da produção,3 articulada
a um novo tipo de regulação social operado pelo aparato estatal, que
passa a combinar um alto grau de intervenção no financiamento e na
regulação do crescimento econômico, voltado para a garantia dos
superlucros dos monopólios4 com a função de legitimação social via
incorporação das demandas sociais dos trabalhadores. Suas funções
econômicas são assim articuladas com suas novas funções políticas:
ou seja, o Estado, para legitimar-se "politicamente", passa também a
alargar sua base de sustentação sócio-política através da incorporação
de direitos políticos e sociais demandados pelo processo organizativo
e reivindicativo do conjunto dos trabalhadores.
Assim, se a regulação social operada pelo Estado na fase do capi­
talismo monopolista implica considerar a sua funcionalidade à valo­

te da taxa média de lucro; há excesso da capacidade produtiva e um déficit na demanda de


produtos (subconsumo); o investimento se concentra nos setores de maior concorrência.
(Netto, 1992:16-17) Essa nova dinâmica demanda novos mecanismos e funções ao aparato
estatal, que passa a instituir políticas de regulação econômica e social, de que são exemplo a
planificação econômica e a intervenção na relação capital e trabalho, por meio da política
salarial, fiscal, de crédito e das políticas públicas que, no conjunto, visavam ao aumento do
emprego, da renda e do consumo. Essa intervenção direta do Estado objetivava sustentar, ao
mesmo tempo, a acumulação e o consumo, subvencionando, assim, a expansão da acumula­
ção capitalista e da reprodução da força de trabalho, (cf. Harvey, 1992, parte II)
3 .0 binômio taylorismo-fordismo foi a expressão dominante do sistema produtivo que
vigorou a partir da segunda década do século XX, estruturando-se com base no trabalho
parcelar e fragmentado; na produção em massa de mercadorias; racionalização do tempo e
aumento do ritmo de trabalho; separação entre elaboração e execução das tarefas; mercado­
rias padronizadas e homogêneas; mercado de massa para consumir a produção em massa
etc. (cf. Harvey, 1992, parte II; Antunes, 1999)
4. A direção da intervenção estatal é voltada para a garantia das condições necessárias
à acumulação e à valorização dos monopólios através da incorporação de novas funções
econômicas, tais como: inserção como empresário nos setores básicos não-rentáveis (aque­
les que fornecem aos monopólios, a baixo custo, energia e matérias-primas); controle de
empresas em dificuldades; entrega, aos grupos monopolistas, de complexos construídos com
fundos públicos, encomendas/compras do Estado aos grupos monopolistas; subsídios, in­
vestimentos públicos em meios de transporte e infra-estrutura; gastos com investigação e
pesquisa etc. (Netto, 1992: 21-22)
80 M. I. DURIGUETTO

rização do capital, isso não significa que os regimes do Welfare State


tenham sido produtos exclusivos do novo padrão de acumulação. É
fundamental também entendê-los como produto de um processo per­
meado pelas demandas históricas dos trabalhadores por direitos so­
ciais e políticos. Especificamente no que tange às políticas e serviços
sociais, como afirma Netto, não se pode tomá-las como uma " 'decor­
rência natural' do Estado burguês capturado pelo monopólio. A vi­
gência deste apenas coloca a sua possibilidade — sua concretização
[...] é variável nomeadamente das lutas de classes". Nessa direção,
"[...] as políticas sociais decorrem fundamentalmente da capacidade
de mobilização e organização da classe operária e do conjunto dos
trabalhadores, a que o Estado, por vezes, responde com antecipações
estratégicas". (Netto, 1992: 29)
É fundamental que destaquemos què o Estado, tal como o apre­
sentamos, é um Estado da coerção e do consenso. Essa segunda deter­
minação do fenômeno estatal, o consenso, se materializa na adoção
da democracia representativa como sistema que irá conferir legitimi­
dade social ao Estado, pois permite a incorporação de direitos sociais
e políticos de cidadania. Entretanto, essa incorporação encontra limi­
tes: não oferecer risco para a manutenção do capitalismo e para a va­
lorização do capital.
O ciclo de expansão e vigência do Welfare State começou a dar
sinais de esgotamento no início da década de 1970.0 declínio do cres­
cimento econômico nos países capitalistas centrais, a queda das taxas
de lucro e o desemprego foram indícios da saturação daquele padrão
de acumulação, vindo a se manifestar em uma crise estrutural do capital.5
Segundo Antunes (1999: 29-31), os elementos constitutivos mais
essenciais dessa crise podem ser identificados: na queda da taxa de
lucro, que levou ao esgotamento do padrão de acumulação tayloris-
ta/fordista de produção — esgotamento decorrente da incapacidade

5. Trata-se, segundo a análise de Mandei (1990: 11-13), da emergência de uma crise


econômica que expressa o esgotamento da onda longa expansiva "identificada nos países
centrais a partir do II pós-guerra, em que se destacam avanços produtivos propiciados pela
revolução tecnológica que possibilitaram uma maior concentração de capitais; internacio­
nalização do capital e da produção por meio das empresas transnacionais; da mundializa-
ção do capital financeiro e da divisão internacional dos mercados e do trabalho quando,
então, se inicia uma nova 'onda longa recessiva', caracterizada por uma taxa de crescimento
médio inferior à alcançada nas décadas de 1950 e 1960".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA Si

do responder à retração do consumo, produto do desemprego estru­


tural que então se iniciava —, na hipertrofia do capital financeiro —
expressão da crise estrutural do capital e seu sistema de produção —
passando o capital financeiro a constituir-se em um campo prioritário
para a especulação, na nova fase do processo de internacionalização;6
na maior concentração de capitais graças às fusões entre as empresas
monopolistas e oligopolistas.
Como resposta à sua própria crise, e para tentar retomar o pata­
mar de acumulação anterior, iniciou-se uma ofensiva do capital e do
Estado contra o trabalho e os direitos sócio-políticos conquistados,7
o que se evidenciou no desenvolvimento de um novo padrão de
acumulação e no desenvolvimento de um novo projeto, conhecido
como projeto neoliberal.
Desenvolve-se, em oposição ao padrão fordista, um novo regime
de acumulação que Harvey (1992: 140) denomina como flexível,8 que

6. "A expansão e liberalização dos capitais financeiros, as novas técnicas de gerencia­


mento da força de trabalho, somadas à liberação comercial e às novas formas de domínio
técnico-científico, acentuaram o caráter centralizador, discriminador e destrutivo desse pro­
cesso, que tem como núcleo central os países capitalistas avançados, particularmente a sua
tríade composta pelos EUA e o Nafta, a Alemanha à frente da União Européia e o Japão/'
(Antunes, 1999: 32) E, com a centralização do capital, temos também a centralização do
poder político nas mãos da burguesia monopolista, particularmente a ligada ao capital fi­
nanceiro.
7 .0 que vem a demonstrar que a "[...] dinâmica crítica desta ordem alçou-se a um nível
no interior do qual a sua reprodução tende a requisitar, progressivamente, a eliminação das
garantias sociais e dos controles mínimos a que o capital foi obrigado naquele arranjo
Sinaliza que o arranjo sócio-político do Welfare State constitui uma possibilidade da ordem do
capital que, pela lógica intrínseca desta última, converte-se agora num limite que ela deve
franquear para reproduzir-se enquanto tal". (Netto, 1993: 70) (grifos do autor)
8. Os traços constitutivos mais gerais desse novo padrão de acumulação e suas diferen­
ças em relação ao fordismo podem ser assim sumariados: fundamenta-se num padrão pro­
dutivo organizacional e tecnologicamente avançado, resultado da introdução de técnicas
de gestão da força de trabalho própria da fase informacional; sustenta-se em produção va­
riada e heterogênea, visando a atender às demandas mais individualizadas do mercado,
diferenciando-se da produção em série e de massas do padrão fordista; desenvolve-se em
uma estrutura produtiva mais flexível, desconcentrada e terceirizada; fundamenta-se no
trabalho operário em equipe e no envolvimento pela "participação" — que, na verdade,
objetiva que a subjetividade do trabalhador esteja à disposição do capital —; no trabalho
polivalente, multifuncional — rompendo, assim, com o caráter parcelar típico do fordismo
—, combinado com uma estrutura produtiva mais horizontalizada, ao contrário da
verticalizada do padrão anterior. Essa horizontalidade estende-se às empresas subcontrata-
62 M. I. DURICUETTO

se materializa na reestruturação produtiva e se revela pela desregula-


mentação e flexibilização do processo produtivo, levando à precariza-
ção das condições de trabalho e emprego, ao combate à legislação tra­
balhista e à redução do poder sindical.
É no processo dessa reestruturação produtiva que o projeto neo-
liberal tem sua sustentação material. Nesse projeto ideológico e políti­
co, a crise passa a ser e vem sendo enfrentada com mecanismos que
operam uma contrapartida à política de regulação econômica estatal
inerente ao Welfare State. A reforma do Estado defendida pelo neolibera-
lismo materializa-se na implementação de políticas voltadas para a
retração (ideológica) da sua intervenção na regulação da economia9 e
dos gastos públicos com políticas sociais.
A reestruturação produtiva e o projeto neoliberal, enquanto respostas
do capital para enfrentar a sua crise, devem ser analisadas, entretanto, no
computo geral da crise do projeto social-democrata e do projeto socie­
tário presente nos países do chamado "socialismo real". É tendo em
mente o quadro histórico-universal de crise desses projetos societá­
rios que Netto entende que a crise da sociedade contemporânea é glo­
bal (por abarcar a totalidade de um período histórico), embora se ma­
terialize diferentemente segundo as particularidades econômicas e
sócio-políticas dos diferentes países e regiões. Particularidades em que
se destaca, sobretudo, a dos países que experenciaram regimes de
Welfare State e do chamado "socialismo real".10 É com o caráter históri­

das, às firmas terceirizadas, acarretando a expansão dos métodos e procedimentos para toda
a rede de fornecedores. Desse modo, flexibilização, terceirização, subcontratação, círculos
de controle de qualidade, just in time, gerência participativa, são levados para um espaço
ampliado do processo produtivo. A repercussão dessas mutações no mundo do trabalho são
materializadas na desregulamentação dos direitos do trabalho, no aumento da fragmenta­
ção no interior da classe trabalhadora, na precarização e terceirização da força de trabalho,
na destruição do sindicalismo de classe e sua conversão num sindicalismo de parceria, ou
mesmo em um "sindicalismo de empresa". (Antunes, 1999: 52-53)
9. Na verdade, como afirma Netto (1995:195), o que a grande burguesia monopolista e
a oligarquia financeira desejam e pretendem em face da crise contemporânea da ordem do
capital, "[...] é erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente de­
mocrático de controle do movimento do capital. O que desejam e pretendem não é 'reduzir
a intervenção do Estado', mas encontrar as condições ótimas (hoje só possível com o estrei­
tamento das instituições democráticas) para direcioná-la segundo seus interesses particula­
res de classe".
10. Em relação à crise do Estado de Bem-Estar, Netto (1993: 68) afirma que as suas
causalidades não devem ser buscadas nos aspectos "isolados" que expressam essa crise,
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 83

co-universal da crise desses dois projetos que os neoliberais vão tra­


balhar para a "formação de uma cultura política dessa 'nova ordem'
que exige a desqualificação do significado histórico dos projetos de
'democratização do capital' e da 'socialização da riqueza socialmente
produzida' como alternativas 'à ordem', e/ou 'na ordem' do capital".
(Mota, 1995: 93) A saída por eles apontada, no entanto, vai na direção
— dada pelas suas diretrizes econômicas e sócio-políticas — da re­
gressão social.11 Especificamente no que tange às estratégias ideológi­
cas e culturais desse ideário neoliberal sobre as formas de consciência
e organização das classes subalternas na sociedade civil como tam­
bém às respostas "contratendenciais" que essa classe vem ou não ofe­
recendo, é o que explicitaremos.1

mas sim entendida no conjunto articulado das determinações estruturais e sócio-políticas


que a conformam. Ou seja, para Netto, salvo em poucos estudos de cariz marxista, o proces­
so de exaurimento do Welfare State "[...] foi apreendido enquanto problemática de natureza
administrativa, como ilustração da necessidade de redirecionar políticas sociais, como fe­
nômeno de caráter financeiro ou tributário ou, mais geralmente, no quadro abstrato do es­
gotamento de padrões ideais de socialidade. Não é freqüente colocar-se de manifesto que a
crise do Welfare State explicita o fracasso do único ordenamento sócio-políticoque, na ordem
do capital, visou expressamente compatibilizar a dinâmica da acumulação e da valorização
capitalista com a garantia de direitos políticos e sociais mínimos". (Grifos do autor) Em
relação ao colapso do "socialismo real", Netto (1993: 67, 72) analisa que a raiz da sua com­
preensão reside na identificação, adotada por esse padrão societário, entre "[...] socializa­
ção com estatização, que colonizou a sociedade civil mediante a hipertrofia de Estado e
partidos fusionados, que intentou articular direitos sociais sobre a quase inexistência de
direitos civis e políticos". Netto explica que a crise do socialismo real tem uma "inequívoca
centralidade política" derivada da "[...] ausência de uma plena socialização do poder político
o que o leva a concluir que apenas com "l...] a implementação da democracia socialista,
capaz de socializar efetivamente o poder político [...]" articulada com a socialização da eco­
nomia - é que se toma possível a alternativa comunista. (Grifos do autor)
11. Como expõe Netto (1993: 73), o significado da crise destes projetos societários é
diverso: se a crise do Welfare State "[...] aponta para as exigências antidemocráticas imperati­
vamente postas pelo desenvolvimento atual da ordem do capital, a crise do socialismo real
demonstra que a viabilidade da superação da ordem do capital é função de uma radical
democratização da vida econômica, social e política — incompatíveis com os limites do movi­
mento do capital e com as restrições de uma ditadura exercida, ainda que em seu nome,
sobre os trabalhadores [...]". (Grifos do autor) A hegemonia contemporânea das exigências
antidemocráticas como mecanismos de contratendência à crise promovem um retrocesso ao
mutilar os direitos sociais, nos marcos da cidadania burguesa, conquistados pelas classes
subalternas. Para isso, a programática neoliberal opera uma "[...] desqualificação teórica,
política e histórica da existência de alternativas positivas à ordem capitalista e a negação de
qualquer mecanismo de controle sobre o movimento do capital, seja enquanto regulação
estatal, seja por meio de outros mecanismos democráticos de controle social, em favor da
regulação do mercado [...]". (Mota, 1995: 97)
84 M. L. DURIGUETTO

2.2.1. Lutas sociais das classes subalternas

[...] essa não é a primeira crise global (nem provavel­


mente a última) que atravessa o movimento operário
[...] Todas as vezes, a partir de seus próprios escom­
bros, o movimento operário se reconstruiu sob novas
formas, impondo um ríspido desmentido a todos aque­
les que o haviam enterrado prematuramente. Além dis­
so, como poderia ser de outro modo? Como imaginar
que as estruturas capitalistas de opressão possam se
manter, sob formas todo o tempo renovadas, sem que
elas façam nascer, entre suas principais vítimas, o de­
sejo de lhes oferecer resistência e a vontade de acabar
com elas por meio da luta e da organização coletivas?
(Bihr, 1998: 13)

Um outro elemento que emergiu em interação com os aspectos


constitutivos da crise capitalista foi o ressurgimento, nos anos 1960,
de ações de resistência e ofensividade dos trabalhadores, que iam desde
ações e formas individualizadas do absenteísmo até ações coletivas
visando à conquista do poder sobre o processo de trabalho (greves,
contestação da divisão hierárquica do trabalho, propostas de controle
autogestionárias, chegando-se à recusa do controle do capital e à de­
fesa do controle social da produção).12
Se a luta operária se expressou nessas ações combativas no espa­
ço produtivo fabril, não conseguiu, entretanto, converter-se num pro­
jeto societal hegemônico dos trabalhadores, contrário ao do capital.
Ou seja,

[...] "a contestação do poder do capital sobre o trabalho não se es­


tendeu ao poder fora do trabalho", não conseguindo articular-se
com os chamados novos movimentos sociais [...] então emergentes,
como os movimentos ecológicos, urbanos, antinucleares, feminis­
tas, dos homossexuais, entre tantos outros. Do mesmo modo, a
conflitualidade proletária emergente não conseguiu consolidar for­
mas de organização alternativas, capazes de se contrapor aos sindi­

12. Essa ofensiva era resultado de ações que freqüentemente ocorriam fora e mesmo
contra as organizações sindicais e os mecanismos de negociação políticos instituídos, fican­
do conhecidas como movimentos autônomos, (cf. Antunes, 1999: 40-43 e Bihr, 1998: 60-64)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 85

ca tos e aos partidos tradicionais. As práticas auto-organizativas aca­


baram por se limitar ao plano microcósmico da empresa ou dos
locais de trabalho, e não conseguiram criar mecanismos capazes de
lhes dar longevidade. (Antunes, 1999: 44)

Como nos esclarece Bihr (1998: 154), [...] "essa falta de articula­
rão exprimia as insuficiências radicais do movimento operário social-
democrata e das lutas do proletariado pós-guerra e, com isso, indica­
va simultaneamente os próprios limites dos 'novos movimentos sociais".
(grifos do autor)
Ou seja, se a conflitualidade proletária não ultrapassou, senão
raramente, os limites do quadro imediato da empresa, o mesmo ocor­
reu com a emergência dos "novos movimentos sociais". O duplo ca­
ráter de suas lutas — marcadas por temáticas, problemas e objetivos
específicos, situados fora da esfera imediata do trabalho e da produ­
ção, e por uma relação de indiferença com as formas organizacionais
clássicas de intermediação do movimento operário, que poderíam ter
garantido sua coordenação e convergência — acabou por imprimir
em suas lutas um caráter disperso e fragmentário.13
Essa fragmentação e desarticulação das lutas sociais potenciali­
zou-se a partir da década de 1970. Com o desenvolvimento do proces­
so de mudanças na esfera produtiva e na da reprodução social, o capi­

13. Analisando a linha de ação da chamada "nova esquerda" ou do "pós-marxismo" a


partir dos anos 1970, Harvey descreve que sua perspectiva ideo-política era a de livrar-se
das "algemas" da política da velha esquerda (particularmente em sua representação por
partidos comunistas e pelo marxismo "ortodoxo") e das instituições burocratizadas do ca­
pitalismo ocidental (Estado, universidades, sindicatos etc.), participando dos 'novos7movi­
mentos culturais e sociais (raça, gênero, ecologia etc.). Entretanto, continua Harvey, 7/ao fa­
zer este movimento, a nova esquerda tendia a abandonar a sua fé tanto no proletariado
como instrumento de mudança progressista como no materialismo histórico enquanto modo
de análise", sendo "[...] incapaz de conter sua própria queda em posições ideológicas que
eram fracas no confronto com a força recém-encontrada dos neoconservadores77. (1992:319-
320) Essa "nova esquerda" caracteriza-se, segundo Petras, (1999:17-23) pelas seguintes pos­
turas intelectuais e prático-políticas: defesa do fim das ideologias revolucionárias com o
'fracasso' do socialismo real; acusação de que o marxismo, ao enfatizar a determinação de
classe, acaba operando uma leitura reducionista dos processos organizativos e ideopolíti-
cos, propondo o abandono desta determinação pela ênfase em e nas identidades culturais
(gênero, etnia etc.); visão do Estado como uma esfera opositora à democracia e à liberdade,
propondo, como contratendência, o protagonismo da sociedade civil; preferência pelas lu­
tas localizadas e pela consolidação da democracia (nos marcos da ordem capitalista).
86 M. I. DURIGUETTO

tal necessitou criar novas formas de domínio sobre o trabalho, com­


patíveis com as necessidades requeridas por essas mudanças, o que
implicou a produção e socialização de novos padrões de comporta­
mento e de valores ético-políticos.
Ao lado da crescente complexificação da produção e do uso, re­
muneração e dispensa da força de trabalho (flexibilização, informali-
zação, subcontratação e desemprego), ocorreu uma também maior
complexificação das relações sociais, caracterizada por uma heteroge-
neização, uma composição segmentada e pulverizada dos trabalha­
dores, o que vem levando à tendência de redução do peso político e
dos impactos de suas lutas e organizações. (Antunes, 1999: 101 e ss.)
Dentre os efeitos deletérios dessa nova configuração do mundo do
trabalho sobre os processos sócio-políticos e culturais de formação de
um projeto coletivo de classe, sobressaiu o movimento de concentra­
ção e expansão do capital que criou conglomerados industriais, co­
merciais e financeiros, responsáveis pela formação de grandes corpo­
rações internacionais as quais imprimiram uma tendência de fracio-
namento da classe trabalhadora, pela via da divisão sócio-técnica do
trabalho. O resultado tem sido a fragmentação do mercado de traba­
lho em dois grandes grupos de trabalhadores: os do grande capital e
os demais trabalhadores excluídos do processo de emprego formal.
Essa fragmentação opera refrações na prática organizativa das
classes trabalhadoras e pode criar, especialmente em conjunturas de
crise, as bases para a institucionalização de formas corporativas de
organização, que possibilitam a constituição de um novo corporativis­
mo social (Mota, 1995) e a exclusão de um grande número de trabalha­
dores da representação sindical. Os trabalhadores tendem a estar mais
preocupados em manter individualmente seus direitos (especialmen­
te o emprego) do que em envolverem-se e se dedicarem a lutas políti-
co-organizativas (sindicatos, partidos). Por outro lado, a descrença nos
macroprojetos provoca expansão dos movimentos "culturalistas" (eco­
lógicos, gays, comunitários etc.) que se organizam em torno de de­
mandas e respostas geralmente pontuais e imediatas e que, por isso,
conseguem maior adesão, aceitação e visibilidade.
Sem desconsiderar a relativa importância dessas ações, o fato de
terem sua dimensão política reduzida aos limites de seus horizontes
imediatos de interesses retira delas a perspectiva de inserção no qua­
dro da realidade econômica, social e política maior e da luta de cias­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 87

ses. Inserção que possibilitaria a expansão de suas ações numa pro­


posta mais abrangente de relações societárias e de inserção na política
que encaminhasse processos democráticos fundadores, nos termos de
Gramsci, de uma consciência ético-política e de uma vontade política
emancipatória. Ao contrário dessa perspectiva, aquela "retirada" faz
com que tenham uma convivência com o sistema, ainda que limitada­
mente contraditória, mas compatível com sua manutenção.
No campo da reprodução, a defesa do neoliberalismo, como
ideário econômico e político, expressos nos princípios da autonomia
do mercado e da redução da regulação estatal na dinâmica da vida
social também vem provocando um debilitamento e uma fragmenta­
ção da consciência e da ação coletiva dos movimentos sociais das clas­
ses subalternas, que vinha comportando alternativas à ordem do ca­
pital. Tem-se, no plano ideológico, o "culto de um subjetivismo e de
um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacer­
bado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e so­
cial". (Antunes, 1999: 48) Essa ação ideológica e político-cultural é
materializada na forma como o receituário neoliberal incorpora a
"questão democrática" na sociedade civil.

2.3. Receituário neoliberal para a democracia

Particularmente em relação à "questão democrática", o que a


ofensiva neoliberal mundial advoga, é que a multiplicidade das de­
mandas acerca de serviços e gastos públicos inflacionou e sobrecarre­
gou o sistema político (Welfare State), levando à "ingovemabilidade"
e, assim, à crise do Estado e da política, expressa na paralisia de sua
capacidade decisória, crescimento das burocracias, congestionamen­
to do espaço da iniciativa privada, crescimento de lobbies etc.
As taxas de diminuição do crescimento econômico são credita­
das a fatores como: a elevada carga fiscal imposta pelas políticas
regulatórias sobre o capital; as pressões políticas dos sindicatos para
obter salários altos; os crescentes dispositivos de seguro social e de
seguro desemprego que provocaram desincentivo ao trabalho; a am­
pliação da intervenção estatal no campo social, a qual tem violado a
liberdade, a vida privada e a autonomia dos cidadãos, gerando um
número crescente de novas expectativas e aumentando demandas
86 M. L. DURIGUETTO

sobre serviços e gastos públicos. O conjunto dessas políticas econômi­


cas e sociais, para os neoliberais, tem conduzido a uma situação geral
de crise econômica e política, levando à ingovernabilidade.
Esses primeiros fundamentos da ofensiva neoliberal contra o
Welfare State aparecem nos textos de Hayek e de outros autores como
Friedman e Nozik. As propostas desses autores, particularmente de
Hayek, aparecem na contemporaneidade, sob a égide da hegemonia
neoliberal, como um receituário de adequação da regulação estatal à
nova lógica do processo produtivo.
A tese central defendida por Hayek, e também corroborada por
Friedman e Nozik, é a de que o "caminho" seguido pelos países cen­
trais no pós-guerra, marcado por uma grande intervenção do Estado
na vida social, representa um "caminho" para a "servidão", por dela
decorrer a limitação das liberdades individuais. A restauração do mer­
cado como instância mediadora cèntral na regulação das esferas da
vida social e a redução da intervenção do Estado na dinâmica da vida
social (no que tange à garantia de direitos sociais e políticos e a uma
máxima intervenção para a valorização do capital) constituem, em li­
nhas gerais, os fundamentos de um novo projeto social e a única alter­
nativa para a democracia.14
É a defesa da passagem do caráter "público" do Estado para a lógica
"privada" do mercado e da sociedade civil. Ou seja, a esfera da sociedade civil
— entendida, segundo o conceito liberal, como o que está fora da órbita do
Estado — é tomada como o espaço para se buscarem soluções para as questões
econômicas, políticas e sociais. Assim, ocorre uma transformação no
processo de legitimação do sistema capitalista: a "[...] contradição
acumulação-legitimação (marca do sistema capitalista) se coloca e se
resolve em termos diferentes daqueles do Estado do Bem-Estar". (Soa­
res, 2000: 73) O conflito, na contemporaneidade, é colocado e resolvi­
do num modelo neoconservador de sociedade civil, que passa a ser
defendido como um modelo equivalente ao mercado.
A sociedade civil é reatualizada como expressão dos interesses
particulares que têm no mercado a sua racionalidade. E essa raciona-

14. Hayek, F. O caminho da servidão; Friedman, M. Capitalismo e liberdade; Nozik, N. Anar­


quia, Estado e utopia (apud Held, 1987: 220-229); Merquior (1991:189-196; 208-210) e Bellamy
(1994: 388-395).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 89

Iidade do mercado clarifica também o campo de toda racionalidade


política. Ou seja, condições de governabilidade só tendem a ser alcan­
çadas com a reconstituição do mercado e dos valores que lhe são ine­
rentes, como a competição e o individualismo. É com uma sociabili­
dade competitiva e individualista e suas implicações na desagregação
de grupos organizados, desativando mecanismos de negociação de
interesses coletivos e eliminando direitos adquiridos, que teremos uma
sociedade civil que colabora para a governabilidade política.
Nesse sentido, as instituições políticas justificadas são as que
existem para proteger o exercício da liberdade, livre iniciativa, auto­
nomia e direitos individuais.15 Somente no mercado os indivíduos
podem julgar e conseguir o que desejam, bem como criar as oportuni­
dades e lutar pelos resultados buscados. Cada um, de acordo com sua
escolha, capacidade, aptidão e sorte, tem liberdade para aproveitar as
oportunidades oferecidas no mercado. As desigualdades sociais re­
sultam, então, da incapacidade individual ou da falta de esforço pes­
soal em aproveitar essas oportunidades.
Em relação direta com essa configuração da vida social, pautada
em relações sociais e mercantis com liberdade e na concorrência no
mercado como seu motor, tem-se a defesa da diminuição do nível de
intervenção do Estado na economia (devendo essa intervenção restrin­
gir-se à produção de serviços e insumos que não trazem rentabilidade
para o capital e à oferta de políticas sociais compensatórias16), bem como

15. Todo o construto teórico hayekiano é para elevar a liberdade como um valor supre­
mo da vida social. Assim, democracia, justiça social, bem comum, igualdade são, para ele,
instituições, atividades, concepções que obstruem a construção da liberdade. Nesse sentido,
qualquer intervenção estatal na dinâmica da vida social visando garantir padrões ou níveis
de justiça social vai de encontro com a liberdade econômica e, portanto, com a base desta,
ou seja, a liberdade individual (Hayek, 1985: 82-86).
16.0 que significa a não-criação de padrões de justiça social corporificados em políti­
cas sociais públicas, universais e não-contratualistas. Para Hayek, esse padrão redistributi-
vo de renda nada mais fez do que criar uma cultura imobilista e desestimuladora nos cida­
dãos, tirando-lhes a convicção de que nas suas ações livres e individuais estaria contida a
possibilidade de ascensão e de reconhecimento social. É com a manutenção das desigualda­
des sociais que se tem o incentivo para que os indivíduos se esforcem para atingir seu bem-
estar. Nas suas palavras: "[...] é importante que, na ordem de mercado, [...] os indivíduos
acreditem que seu bem-estar depende, em essência, de seus próprios esforços e decisões. De
fato, poucas coisas infundirão mais vigor e eficiência a uma pessoa que a crença de que a
consecução das metas por ela mesma fixadas depende sobretudo dela própria". (Hayek,
90 M. I. DURIGUETTO

a defesa de uma intervenção forte em prol da garantia de um marco


legal adequado para se criarem as condições propícias à expansão do
mercado, à abertura externa e à crescente valorização do capital. (Laurell,
1997:162-163) Esses ingredientes passaram a se constituir nas condicio-
nalidades para o crédito extemo impostas a partir de meados da década
de 1980 pelos organismos multilaterais, que consubstanciam o cumpri­
mento do programa de ajuste delineado no "Consenso de Washington".
Afinado com os argumentos dos neoliberais, Sartori considera
que os regimes do Welfare State ou "liberalismo social" significaram a
ampliação do componente democrático do liberalismo: "No sentido político
não existe uma diferença notável entre o Estado democrático e o Esta­
do liberal [...] Quando, por outro lado, falamos de democracia SQcial,
estamos falando do que é propriamente democracia, não do liberalis­
mo". (Sartori, 1994b: 169) Se, para Sartori, a democracia é um prolon­
gamento do liberalismo, a prática democrática levou geralmente a uma
forma de Estado nada "mínimo" no sentido do ideal do liberalismo
clássico. Assim, segundo o autor, pensar a democracia, na contempo-
raneidade, como um sistema político, é oportuno pelo fato de o Esta­
do democrático ter se tomado um Estado que faz tudo. É esse alarga­
mento do componente democrático do Estado que precisa ser limita­
do: "quanto mais exigimos da representação e quanto mais a sobre­
carregamos, tanto menos estreitamente os representantes ligam-se
àqueles que representam". (Sartori, 1994a: 88) Nesse sentido, defende
que "a democracia política enquanto método, ou enquanto procedi­
mento, deve preceder qualquer grande realização que possamos exi­
gir de uma democracia". (1994a: 29) Essa exigência, como visto, asse-
melha-se à proposta pelo modelo elitista schumpeteriano.
Com essa configuração, identificamos que existe a necessidade
de assegurar a governabilidade através de uma drástica seleção das
expectativas sociais. Liberar o sistema político de um "excesso de de­
mocracia" é a condição estrutural apresentada para a sobrevivência
mesma da democracia.17 E a sobrevivência da democracia refere-se à

1985: 93) Conforme Laurell (1995: 163) "[...] a crítica neoliberal ao Estado do Bem-Estar é
centrada em oposição àqueles elementos das políticas sociais que implicam desmercantili-
zação, solidariedade social e coletivismo".
17.0 que temos aqui é que a "[...] nova direita está preocupada em defender a causa do
'liberalismo' contra a 'democracia', limitando o uso democrático do poder do Estado". (Held,
1987: 220)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 91

sobrevivência do elenco de garantias e prerrogativas da tradição libe­


ral que Marshall denominou de "direitos civis" e que determinaria o
âmbito das liberdades individuais. A proposição central de que é a
liberdade econômica (mercado livre) que funda a liberdade civil e
política adquire sentido na fundação de um projeto societário global,
investindo sobre a estrutura social e a ordem político-institucional. A
proposta neoliberal centra-se na inteira despolitização das relações so­
ciais: "É precisamente o conteúdo político desta despolitização que
permitiu ao neoliberalismo converter-se em concepção ideal do pen­
samento antidemocrático contemporâneo". (Netto, 1995: 194-195)
Em profunda articulação com a apologia dos direitos civis como
único suporte para as ações e relações sociais está a apologia de uma
concepção restritiva da democracia política. Na opinião de Hayek, as
"pessoas" devem abandonar propensões ético-políticas para agir em
conjunto na busca de objetivos comuns. A manutenção de uma ordem
social susceptível de crescimento e de melhora não implica a busca de
qualquer solidariedade ou finalidades comuns, mas um respeito pe­
las "regras do jogo".18 E o entendimento do que venham a ser essas
"regras do jogo" para a concepção neoliberal da democracia política é
a reatualização dos postulados do elitismo democrático.
Em concordância com o método de eleição de elites de
Schumpeter, encontramos, em Sartori, a argumentação de que a qua­
lidade dos resultados da competição eleitoral depende da qualidade
da liderança. Nesse sentido, é necessário uma "teoria de referência de
elites": a democracia deve ser um processo seletivo de mérito. É este
processo que fornece o elo entre o método e suas conseqüências de­
mocráticas: "democracia é o subproduto de um método competitivo
de renovação de lideranças".19

18. Para Hayek (apud Merquior, 1991:194-195), "[...] exceto no que diz respeito a âmbi­
tos bem delimitados, não há necessidade de acordo quanto a objetivos: "não pomos em vi­
gor uma escala unitária de objetivos concretos escreveu ele, "[...] nem tentamos garan­
tir que alguma opinião particular sobre o que é mais e o que é menos importante governe
toda a sociedade [...]; aquilo de que necessitamos são antes regras do jogo do que valores e
objetivos partilhados".
19. Segundo Sartori (1994: 209-210; 227-228), "se [...] quisermos uma 'sociedade racio­
nar preconcebida e bem planejada, teremos de recorrer aos especialistas e confiar neles". E
acrescenta: "estamos indo na direção de menos poder do povo [...]. À medida que os meca­
nismos da vida social e econômica tornam-se mais e mais complexos [...] a opinião do espe­
92 M. L. DURICUETTO

Em consonância com a defesa da redução da política e da demo­


cracia a meros mecanismos de seleção de elites está também a defesa
da difusão de uma sociedade organizada multigrupalmente. Desse
modo, a democracia é concebida "[...] como um modelo de liderança
de minorias caracterizado pela multiplicidade de grupos de poder
entrecruzados e envolvidos em manobras de coalizão". (Sartori, 1994:
203) Essa visão de democracia e de poder é complementada quando
Sartori concorda com o argumento schumpeteriano de que a "redu­
ção da atividade mental" é a regra sempre que saímos do território
onde atuamos.20
Segundo Sartori, a competência e o controle cognitivo são pro­
cessos cada vez mais problemáticos à medida que a esfera da política
se complexifica e se expande. Neste sentido, defende que a participa­
ção só é um tomar parte significativo, autêntico e efetivo, em peque­
nos grupos ou "comitês" institucionalizados que funcionam num con­
texto decisório de questões interligadas e de negociação. (1994: 305)
Na visão de Zolo (1994) e Bellamy (1994), a questão central que
se coloca para a teoria liberal da democracia é a análise da eficácia e
da pertinência de suas instituições políticas frente a um contexto so­
cietário marcado pela complexidade de uma era "pós-industrial", com­
plexidade decorrente do impacto da revolução informacional. Essa
complexidade apresenta-se sob diversos aspectos: crescente introdu­
ção da tecnologia em vários setores da vida social, diversidade e espe­
cialização funcional, impreVisão e falta de controle das decisões to­
madas numa economia globalizada, proliferação de fontes de infor­
mação e persuasão etc. Esse quadro põe em questão, segundo os auto­
res citados, a preservação dos mecanismos procedimentais da demo­
cracia e de suas premissas da participação e soberania do "consumi­

cialista deve adquirir um peso muito maior que seu voto como eleitor [...] em nossos dias o
'poder da iniciativa' está muito mais com os trustes intelectuais e os tecno-especialistas".
20. Argumenta Sartori (1994:151) que "[...] as questões que entendemos realmente são
aquelas com as quais temos experiência pessoal e que as idéias que realmente dominamos
são aquelas que somos capazes de formular por conta própria". Também concorda com
Schumpeter que as "[...] decisões políticas raramente são geradas pelo povo soberano, são a
eles submetidas. E os processos de formação da opinião realmente não partem do povo,
passam por ele. Mesmo quando as correntes de opinião se materializam de fato, não pode­
mos dizer que o fator que as detona reside no povo como um todo. Ao exercer uma influên­
cia, o povo também é influenciado. Antes de querer algo, fazem muitas vezes com que o
queiram". (Sartori, 1994a: 172)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 93

dor político", uma vez que este vem tendo reduzida sua capacidade
para a ação e a escolha racional. Ou seja, o problema está na
implausibilidade de se continuar apostando que o fundamento da vida
democrática reside na autonomia, racionalidade e responsabilidade
moral do indivíduo.
Dessa forma, toma-se implausível a defesa das instituições da
democracia como produto do consenso reflexivo e de uma escolha
racional de agentes autônomos. Em seu lugar, as funções protetoras
da integração social são exercidas cada vez mais por uma rede de "go­
vernantes privados" — partidos e agentes corporativos autônomos.
Ao invés de se constituir numa esfera aberta à formação e participa­
ção das vontades populares, a democracia é vista como um instru­
mento de controle social e de um consenso não racional. Mas é princi­
palmente na configuração da dinâmica das relações individuais con­
temporâneas que esses autores evidenciam a completa inadequação
dos procedimentos democráticos para orquestrar a vida social e redu­
zir suas disparidades econômicas e sociais.
Segundo suas elaborações, o que conforma a subjetividade hu­
mana é a pluralidade e contingência de interesses e valores, que esti­
mulam a adoção de raciocínios específicos de acordo com os diferen­
tes contextos em que operam. O indivíduo parece guiar-se, cada vez
mais, pela busca dos seus interesses, não estando dispostos a partici­
par dos rituais de homologação e integração coletivas. Em conseqüên-
cia, inexiste um código ético capaz de integrar as nossas diferentes
subjetividades, pois estas se encontram divididas em uma multiplici­
dade de particularismos e interesses localizados em diferentes grupos
(profissionais, familiares, sexuais, étnicos, religiosos etc.), o que vem
impossibilitar a nossa capacidade de refletir e atuar como membros
de uma sociabilidade ético-política comum. Nesse sentido, a expres­
são política das preferências individuais é incapaz de conduzir a pro­
jetos coerentes, definidos e de longo prazo.
Se as condutas individuais estão cada vez mais desapegadas de
qualquer consensualismo político, a erosão, tanto da dimensão públi­
ca da vida social como do domínio da autonomia e da subjetividade
política individual, coloca a necessidade de que a dinâmica da esfera
política seja realizada justamente pela desestruturação da esfera pú­
blica e do isolamento e dispersão dos agentes políticos. Para Zolo (1994)
e Bellamy (1994) os regimes democráticos têm hoje que apresentar um
9* M. L. DURIGUETTO

sistema político limitado e uma esfera pública com domínios diferen­


ciados e autônomos. Os direitos individuais da liberdade civil formam as
instituições e os procedimentos através dos quais se origina a autono-
mização recíproca da esfera política e das outras esferas sociais. (Zolo,
1994: 226)
Nessa perspectiva, as relações entre sociedade civil e democracia,
para o elitismo neoliberal, são concebidas na direção do entendimento
em que a primeira é vista como lugar central da ocupação da expressão e
conciliação temporária da pluralidade de interesses organizados em pequenos
grupos. Procedimentos políticos — como leis e direitos — são conside­
rados como expressão dessa pluralidade, ou seja, emergem dos julga­
mentos individuais em condições particulares. Sendo assim, os direi­
tos têm um caráter ad hoc, pois refletem propósitos que são passíveis
de reformulação quando as circunstâncias ou as necessidades se alte­
ram. A função do sistema político democrático é refletir a diversidade
de valores e interesses conflitantes na sociedade e preservar a autono­
mia das diferentes esferas e níveis da vida social.
Nesta direção, a esfera pública é o palco em que o lugar central é
ocupado pelos procedimentos práticos que favoreçam a expressão e a
conciliação temporária da pluralidade de interesses. Esses procedi­
mentos — as leis, os direitos e os princípios distributivos — são consi­
derados como expressão dessa pluralidade para se chegar a um con­
senso racional acerca dos parâmetros de justiça social. A política deve
ser reduzida a suas funções de organização dos interesses particula­
res, mediação dos conflitos, garantia da ordem, segurança, estabilida­
de, confiança e proteção dos direitos civis. Como afirma Zolo (1994:
224-225), a "[...] a idéia da 'democracia representativa' sobre a base uni-
versalista de uma 'ética pública' [...] deve hoje considerar-se obsoleta".
Uma outra corrente teórica do liberalismo contemporâneo, que
desenvolve significativas reflexões acerca da relação entre sociedade
civil e democracia — embora abrigue em seu interior diferenças em
relação à maior ou menor perspectiva normativa da democracia ao
que tange à formação, pelos cidadãos, de uma idéia de justiça e soli­
dariedade — situa-se num espectro ideológico e político que está em
contradição com a dos neoliberais.
Para uma melhor sistematização do campo teórico da democra­
cia no liberalismo contemporâneo, iremos utilizar a demarcação reali­
zada por Bellamy. (1994: 385) Segundo este autor, as teorias contem­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 95

porâneas do liberalismo fundamentam-se em duas posições divergen­


tes: a dos neoliberais ou "liberais neutralistas" ou "realistas" (que, como
vimos, são partidários da idéia de que se deve considerar, com impar­
cialidade, a multiplicidade de valores e projetos individuais existen­
tes, uma vez que não existe qualquer consenso moral e racional na
definição da ordem social) e a dos "liberais éticos" ou "comunitaristas"
(que defendem que a estabilidade e o consenso social apóiam-se em
uma concepção compartilhada de valores e normas expressas nas re­
gras do jogo democrático e na constituição de direitos). O que vai de­
marcar o campo de oposição desses liberalismos é a afirmação ou ne­
gação do campo da política e da democracia como espaço de forma­
ção de consensos dos grupos de interesse. (Bellamy, 1994: 385)
Entretanto, se, por um lado, essa delimitação do campo teórico
da democracia liberal operada por Bellamy é importante, por outro
lado, ela exclui três correntes do debate liberal contemporâneo que
vêm se constituindo em um importante campo teórico para se pensar
as relações entre sociedade civil e democracia:21 as formulações dos
liberais pluralistas, particularmente as de Robert Dahl; a teorização
habermasiana, que concebe a democracia como um processo discur­
sivo que se desenvolve no âmbito de uma "esfera pública democráti­
ca"; e a dos teóricos da "democracia participativa".
Essas três correntes, bem como a dos liberais "éticos", constitui­
rão, agora, objeto de nossa exposição.

2.4. Democracia liberal pluralista


Na teoria elitista, como exposto, a ação política dos indivíduos é
retratada em conexão direta com a eleição de líderes, conferindo pou­
ca atenção à organização coletiva de seus interesses via formação de

21. No entanto, se a atmosfera político-ideológica que cobre hoje a mesma velha pala­
vra — liberal — é marcada por diferentes teorizações, como diz Merquior: "a hora pertence
aos liberalismos", as argumentações acerca da relação indivíduo, esfera pública e democra­
cia parecem indicar que o véu do neoconservadorismo é o que hoje domina a teoria política
liberal. Essa hegemonia no campo da teoria expressa e revela a "crise global" das proposi­
ções e práticas dos dois projetos societários que, cada uma a seu modo, procuraram soluções
alternativas positivas para as contradições próprias à ordem do capital: a crise do Estado de
bem-estar e a crise do chamado "socialismo real", como visto.
96 M. t. OURIGUETTO

grupos, entidades, sindicatos etc. É precisamente esta esfera dos "gru­


pos de interesse" e da dedicação competitiva à satisfação de interes­
ses que os teóricos democráticos pluralistas vão explorar como sendo
a expressão central da democracia. A análise da dinâmica da "política
de grupos" oferecida por Dahl e pelos pluralistas em geral, ao ressaltar
e explorar as muitas formas de interação, competição e conflito inscri­
tos na sociedade e no Estado, corrigiram, de forma significativa, a ên­
fase unilateral dada à "política de elite" encontrada em Schumpeter.
Ao explorar as interconexões entre a competição eleitoral e as ativida­
des de grupos de interesse organizados, afirmaram a pouca possibili­
dade de líderes políticos agirem independentemente das demandas e
pressões sociais. (Held, 1987)
Segundo as formulações de Dahl, a existência da democracia é
definida pelo reconhecimento empírico de um conjunto de condições
necessárias para sua caracterização e maximização. Define, no seu
Prefácio à Teoria Democrática (1956 [1989]), e em Poliarquia, obra publi­
cada um ano depois (1957 [1997]), que o requisito mínimo para a exis­
tência de um regime democrático é aquele que permite aos cidadãos
terem oportunidades de formular preferências, expressá-las através
da ação individual e coletiva e de tê-las igualmente consideradas nas
políticas governamentais. Esse requisito exige regras mínimas para que
possa ser operacionalizado: liberdade de organização e de expressão,
eleições livres e limpas, sufrágio, direito de concorrer aos cargos eletivos,
isonomia eleitoral, pluralisfho de fontes de informação e igualdade
na obtenção de informações acerca dos projetos políticos em disputa.
Segundo Dahl, essas instituições e seus enunciados caracterizam
direitos e processos efetivos. Conseqüentemente, podem servir como
critério para decidir e classificar diferentes graus de democratização
dentro dos e entre os países. O objetivo do autor é identificar condi­
ções necessárias e suficientes para que existam "poliarquias", ou seja,
um sistema político em que essas condições existam em nível relati­
vamente alto e investigar as condições que favorecem ou dificultam o
seu estabelecimento. À semelhança de Schumpeter, encontramos em
Dahl a explicitação de que o controle social dos governantes pelos
governados pode ser mantido por intermédio de eleição regular e pela
competição entre partidos, grupos e indivíduos pelo voto do eleitor.
Se, por um lado, as instituições poliárquicas são consideradas
como necessárias para a instauração mais plena possível do processo
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 97

democrático, por outro, não são consideradas como maximizadoras


da igualdade política e da soberania popular, visto que nunca ou rara­
mente atingem uma perfeita operacionalização. Variáveis tais como
grau de interesse, capacidade, acesso, status sócio-econômico, identi­
ficações étnicas e religiosas provocam variações na participação dos
indivíduos nas decisões políticas. É mínimo o número dos que exer­
cem o controle sobre as alternativas apresentadas ao debate político e
grande o hiato de informações das elites políticas em relação aos "ci­
dadãos comuns". O autor assinala que, na maioria das sociedades (ex­
cluindo ativistas e dirigentes políticos), grande parte dos cidadãos
apresenta uma cultura política rudimentar e apática.
Contudo, segundo Dahl, quase todos os grupos têm alguma van­
tagem que pode ser utilizada no processo democrático. A participação
política dos cidadãos e dos grupos sociais desenvolve-se com base em
diferentes classes de recursos, que estão "dispersos desigualmente".
Uma vez que grupos diferenciados têm acesso a diferentes tipos de
recursos, a influência de qualquer grupo em particular irá, em geral,
variar entre uma questão e outra.
Nessa perspectiva, continua Dahl, o poder é situacional e se mede
pela influência das ações de indivíduos e grupos nos resultados de
tomada de decisões em situações políticas conflitivas específicas. O
poder não é hierárquico, e sim disputado de forma competitiva entre
grupos de diferentes interesses estruturados ao redor de variáveis eco­
nômicas, religiosas, étnicas etc. Ademais, os indivíduos tendem a di­
versificar seus interesses, alterando suas preocupações e formas só-
cio-organizativas.
O autor evidencia que num contexto de interesses e recursos di­
versificados, é pouco provável o aparecimento e a organização de
maiorias persistentes. Assim, a maior parte da política é determinada
pela ação de minorias relativamente pequenas e ativas. (Dahl, 1989:
130) O processo democrático é, nesse sentido, assegurado pela exis­
tência de múltiplos grupos ou múltiplas minorias. Sendo assim, a mi­
noria dos politicamente ativos quase sempre decide no sistema
poliárquico. (1989:131) A poliarquia expressa, assim, uma situação de
competição aberta pelo voto entre os grupos de interesse pelas prefe­
rências dos eleitores. E afirma: "[...] este será sempre um sistema rela­
tivamente eficiente para promover e reforçar concordâncias, encora­
jar moderação e manter a paz social". (1989: 146)
98 M. L. DURIGUCTTO

Nas formulações de Dahl, fica evidente o reconhecimento de que


as possibilidades de um país desenvolver e manter a estabilidade das
instituições poliárquicas estão garantidas pela confiabilidade nas idéias
e práticas democráticas (na autoridade e eficácia do governo, confian­
ça nos políticos e no processo democrático). A participação política não
institucionalizada — manifestações, rebeliões — é tida como forma des­
viada de conduta política, o que leva à necessidade de criação ou adapta­
ção dos canais institucionais às demandas dos grupos para que seja
absorvida no consenso pela via da institucionalização de suas ações.22
Expostas as argumentações de Dahl acerca do significado e ca­
racterização dos regimes democráticos, trataremos de explicitar os
fundamentos conceituais que abarcam a "cosmovisão" pluralista. Para
tanto, tomaremos como referências os balanços e argumentos de Alford
e Friedland (1991) e Smith (1997). Embora essas análises não mencio­
nem com precisão os textos dos autores pluralistas nos quais se ba­
seiam, expõem conceitos e supostos gerais das relações entre socieda­
de civil, Estado e democracia defendidos e sustentados pela tradição
teórica em tela.
As teorias pluralistas rechaçam a idéia do Estado como uma insti­
tuição coercitiva e monolítica. Designações tais como "comunidade
política", "sistema político" são utilizadas para se referir ao aparato es­
tatal, sugerindo uma conformação aberta e acessível aos recursos de
poder, um espaço neutro para agregar preferências e promover "bens
coletivos". Por conseguinte, a noção de Estado refere-se a um conjun­
to de instituições que respondem, através de múltiplos programas e
organismos, às demandas políticas de grupos de interesses diversifi­
cados. Seu papel é agir como juiz e árbitro dos diferentes interesses de
grupos, para regular os conflitos e promover o bem estar coletivo.23

22. Para Dahl, protesto e violência são manifestações que ocorrem quando há lacunas
entre expectativas/demandas e respostas/oportunidades concretas. Tais manifestações en­
contram suas raízes na derrubada dos valores e normas de "controle social" que conformam
graus de pertencimento e sociabilidade individual, gerando descrença no desenvolvimento
econômico, na responsabilidade política dos líderes e nos valores da sociabilidade primária.
Os indivíduos se tornam "anômicos" pela perda da auto-referência em relação ao outro, das
regras sociais que governam suas condutas e da legitimidade da capacidade governativa.
(1993: 317)
23. A esfera estatal e a esfera econômica são, assim, consideradas relações institucio­
nais diferenciadas. A esfera política é uma conseqüência dos procedimentos competitivos
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 99

Tanto na sociedade civil quanto no Estado, existem múltiplos


centros de poder e difusão do controle, autoridade e influência de in­
divíduos, grupos e associações. Desse modo, a elaboração de políticas
estatais é um processo de conflito e negociação constante entre inte­
resses de grupos sociais opostos. Conseqüentemente, o governo é vis­
to como um lugar de conflito, intercâmbio e mediação entre diferentes
grupos em que nenhum interesse, por si só, domina. Como a pressão
das "facções" é intensa, as lideranças políticas devem desenvolver
programas orientados para os interesses amplos da sociedade e res­
ponder às legítimas preferências do consenso político.
O aspecto democrático do Estado é considerado a partir dos di­
reitos e oportunidades de participação política que este pode propor­
cionar. Democracia existe quando se tem garantia de que os grupos
de pressão podem expressar suas demandas. O Estado é aberto e in­
fluenciado por formas múltiplas de participação no âmbito individual
(opinião pública, voto e protesto) e coletivo (movimentos sociais, par­
tidos, sindicatos etc.). Nesse "caldo político-cultural", a dispersão de
recursos (riqueza, informação, acesso a organizações), "postos estra­
tégicos" e "posições de negociação" possibilita aos indivíduos e gru­
pos sociais uma igualdade de direitos e oportunidades que se concre­
tiza pela sua autonomia em competir e/ou negociar seus próprios in­
teresses. Estes surgem, se fortalecem e desaparecem como resultado
dos valores e preferências dos indivíduos, refletindo a suposição de
que questões, grupos de interesses, partidos políticos e candidatos são
opções circunstanciais.
Conseqüentemente, essa presença, no cenário político, de dife­
rentes filiações dos indivíduos a grupos latentes e potenciais, produ­
zirá uma dinâmica social de conflitos mais complexos e menos inten­
sos, gerando uma competição social mais fragmentada e menos dra­
mática. Essa configuração fragmentária e diversificada da ação coleti­
va também implica em dinâmicas políticas alternadas de apatia e par­
ticipação. Em relação a essa questão, os pluralistas defendem a teoria
de que a redução da participação política ativa, conservando-a em
potencial, impede, por um lado, que os líderes políticos não represen­

lie interesses nas "regras do jogo". Mesmo que os interesses econômicos dos grupos influen-
los coincidam com os do Estado, este é visto como uma organização independente que faz
políticas para responder à pressão de inúmeros grupos.
100 M. L. DURICUETTO

tem interesses e demandas dos grupos e, por outro, a confiança neles


impede a necessidade de participação. Uma alta participação política
pode revelar a instabilidade de um regime, indicando incoerências en­
tre os valores dos grupos de interesses e seus representantes políticos.
Nesse âmbito, os pluralistas reconhecem a possibilidade da exis­
tência de tensão entre consenso e participação, que pode se eviden­
ciar quando o processo de institucionalização cresce em menor ritmo
que o da participação. Desse modo, são condições para um funciona­
mento "equilibrado" do Estado democrático uma participação políti­
ca moderada e uma institucionalização política forte. A positividade
da participação popular se evidencia nas oportunidades para a mobi­
lidade individual através da agregação de identidades e interesses
comuns e da regularização das relações intergrupais. A estabilidade
das instituições democráticas requer a capacidade do governo para
fomentar a ampliação de organizações que vão incorporar esses no­
vos grupos e canalizar sua participação em procedimentos democrá­
ticos legítimos, socializando suas lideranças nas "regras do jogo".
Expostos os desenvolvimentos teórico-políticos que os autores
nos quais nos detivemos tomam como os parâmetros da análise plu­
ralista, podemos, então, concluir que a teoria democrática pluralista
deposita a funcionalidade da dinâmica democrática na racionalidade
e autonomia intelectual e moral dos votantes individuais e na existên­
cia da sociedade civil como uma arena constituída pela organização
de diversos grupos de interesses, que adquirem influência sobre o sis­
tema político por meio da articulação de suas demandas particulares,
que são agregadas junto aos mecanismos institucionais de represen­
tação, influindo, assim, na tomada de decisões políticas.
A esfera pública cumpre, para os pluralistas, um papel funcional
de atuação — ao lado dos canais de representação política tradicio­
nais — como sistema intermediário, cuja função sócio-política consis­
te na absorção e no processamento dos interesses dos grupos parti­
culares, bem como na transmissão das opiniões públicas que resul­
tam deste processamento tanto para os cidadãos quanto para o siste­
ma político.
A sociedade civil e a esfera pública são, dessa forma, pensadas como
esferas da vida social em que se desenvolvem e em que se organizam
demandas, opiniões e valores de grupos que defendem seus interes­
ses específicos e privados. Nessa direção, como afirma corretamente
SOCICDAOCCIVIL COLMOCRACIA 101

C.raziano (1994:17) "[...) o que está por detrás da justificação normati­


va da democracia são as condições que propiciam a auto-realização
individual". Na mesma direção, afirma Avritzer (1996: 118) "[...] as­
sim, a identidade coletiva gestada é uma identidade de grupo, exata­
mente como os problemas abordados são os que se incluem na agen­
da política de cada grupo — e nada além disso".
É esta incapacidade ou limite em tematizar a dimensão normati­
va da democracia enquanto valor coletivo compartilhado por indiví­
duos capazes de estabelecer formas comuns de ação que será enfren­
tada pela teoria habermasiana da esfera pública participativa. Antes,
porém, de tratarm os dos construtos teóricos haberm asianos,
explicitaremos o pensamento de Norberto Bobbio por avançar em re­
lação à teoria pluralista no que tange ao entendimento de uma maior
necessidade de democratizar os espaços sócio-institucionais para a
prática da democracia, bem como por apostar na possibilidade de uma
construção, pelos sujeitos sociais, de uma visão de "interesses comuns".

2 .4./. Defesa da democracia enquanto “regras do jogo": formação de


consensos de “direitos”

Nos liberalismos modernos, existe uma vertente que apresenta


uma tentativa de restaurar, numa síntese "liberal-democrática", a lin­
guagem dos direitos sociais ao elenco de liberdades civis e direitos
políticos da tradição liberal. As mediações políticas e sociais para ela­
boração consensual desse novo "contrato" social são as estabelecidas
pelo pluralismo dahlsiano. Ou seja, é no campo de mediações do pro­
cesso democrático e de suas "regras do jogo" que a diversidade dos
interesses dos indivíduos e de seus grupos pode construir uma "ética
pública" que regulamente a vida social. Dentre os defensores desta
perspectiva "neocontratualista", destacam-se as formulações do ita­
liano Norberto Bobbio.
Para Bobbio, a formação de contratos de justiça social e de novos
direitos seria materializada através da extensão do processo democrá­
tico de tomada de decisões para várias áreas da vida social. A busca
de novos espaços democráticos é combinada com argumentações rea­
listas acerca dos obstáculos colocados para o funcionamento da de­
mocracia e de suas "promessas não cumpridas". Segundo o autor, a
102 M. L. DURIGUETTO

democracia está em crise em decorrência do contraste que se estabele­


ceu entre os ideais democráticos e a "democracia real", entre "o que
foi prometido e o que foi realizado". (Bobbio, 1989: 22-36) O autor
relaciona alguns obstáculos à democracia: a soberania popular tem
sido privada de vigor pelo crescimento e difusão das burocracias pú­
blicas devido ao excesso de demandas sociais; a emergência de uma
sociedade pluralista resultou na substituição dos indivíduos como
agentes principais da vida política por grupos de interesses; a cres­
cente complexificação da vida social coloca a necessidade de soluções
técnicas só acessíveis a especialistas; os instrumentos de comunicação
de massa e o uso intensivo da propaganda política têm promovido
conformismo e apatia política; a predominância de interesses corpo­
rativos tem hipertrofiado a dinâmica representativa; a soberania das
decisões democráticas está restrita a áreas que não envolvem decisões
da esfera econômica; o fracasso da democracia em eliminar o "poder
invisível".
Entretanto, Bobbio não coloca o problema da revisão ou da re­
construção da teoria democrática. Continua defendendo que se deve
seguir crendo nos ideais e valores que subjazem aos procedimentos
democráticos e que, historicamente, lhes deram origem. Objetiva jus­
tificar a democracia realmente existente sobre a base de seu "conteú­
do mínimo", o mesmo definido por Dahl para a existência de
poliarquias democráticas.
O autor constata, assim, a existência, no debate atual, de um cer­
to consenso sobre o que se denomina de definição mínima da demo­
cracia: a democracia entendida como um conjunto de regras do jogo.
Segundo Bobbio (1987b: 16), aceitar a democracia significa aceitar e
defender o pluralismo e os conflitos dos grupos de interesse e consi­
derar o Estado como um grupo a mais, cujo papel é o de mediar os
conflitos, de constituir-se em árbitro deles. Nesse sentido, a democra­
cia é a democracia das "regras do jogo", do bom funcionamento das
instituições e das garantias do "Estado de direito", e é com essa defi­
nição mínima (jurídico-institucional) que apresenta a democracia
moderna como natural prolongamento do liberalismo.24 (Bobbio, 1988)

24. Segundo Merquior (1991: 216), Bobbio reafirmou a ligação entre o liberalismo e a
democracia e é o contratualista "[...] que mais se aproxima de combinar uma busca da justi­
ça e um gosto pela igualdade com um firme senso de estruturas institucionais, tipos de
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 103

Continuando com suas elaborações, esclarece que o processo de


alargamento da democracia na sociedade contemporânea não ocorre
apenas através da integração da democracia representativa com a de­
mocracia direta, mas também através da expansão dos espaços, ca­
nais e instituições — diferentes das tradicionalmente políticas — que
permitem a participação dos indivíduos na defesa de seus interesses.
Bobbio defende uma maior "democratização" das democracias exis­
tentes em três níveis: formas de democracia direta; formas alternati­
vas de representação e possibilidade de ampliar o espaço da demo­
cracia do Estado para a sociedade civil. Nessa perspectiva, é que des­
taca os processos sócio-organizativos que possibilitaram a expansão
da democracia através do alargamento da concepção dos direitos —
da defesa dos primeiros direitos de "liberdade negativa" atribuídos
ao homem genérico e abstrato — para direitos que abarcam a multipli­
cidade e especificidade das demandas dos grupos sociais concretos
(menor, mulher, minorias raciais, deficiente etc.) (Bobbio, 1992:216-217)
Com este conjunto de referências, reiteramos que a esfera públi­
ca é concebida pelos "éticos" como palco da "democracia liberal", em
que se presume ou procura-se criar um consenso moral baseado nos
"direitos democráticos" acerca das deliberações a serem tomadas.
Vêem na discussão e na persuasão racional um caminho para se che­
gar, se não a um consenso político geral, ao menos ao acordo moral
sobre a seleção de necessidades, estabelecimento de valores comuns e
de direitos universais de justiça.
As elaborações teóricas da tradição liberal expostas permitiram-
nos verificar que existem significativas divergências de ênfase quanto
aos aspectos positivos da política e do processo democrático como
campos de mediação para a formação e organização dos grupos de
interesses e de consensos. Essas divergências foram sistematizadas a
partir de duas correntes de pensamento da democracia liberal: a ela­
boração da teoria elitista e seus rebatimentos e reatualizações nas for­
mulações teóricas da "ofensiva neoliberal"; a tradição do pluralismo
democrático e a plausibilidade de suas determinações "procedimen­
tais" na formulação do "liberalismo" ético.

regime, e seu respectivo valor, empiricamente avaliados E finaliza: "É porque com-
preende inteiramente isso que Bobbio afirma que 'toda democracia genuína é necessaria­
mente uma democracia liberal'".
104 M. I. DURICUETTO

Como exposto, as implicações prático-societárias que essas tra­


dições desencadeiam demarcam diferentes perspectivas para se pen­
sar as relações entre os indivíduos, a política e a democracia. Sintetizo
que essas implicações divergem fundamentalmente no que tange à
necessidade ou não da regulação sócio-política da ordem capitalista.
No entanto, as argumentações apresentadas para se discutir a regula­
ção ou a desregulamentação são feitas a partir de um denominador
comum: a defesa da não-superação dessa ordem. É esse denominador
comum que equaliza o limite de ambas. A seguir, evidenciarei algu­
mas argumentações que levam a esse limite.
É próprio do pensamento liberal autonomizar e secdonar a so­
ciedade entre as esferas do Estado e do mercado. Dessa forma, as ati­
vidades econômicas são vistas como "naturais", fruto da ação de in­
divíduos livres no mercado. Este, assim, teria uma suposta dinâmica
própria e autônoma, enquanto que os processos político-institucio-
nais ocorridos no interior do Estado são conceitualizados na ótica da
"democracia formal", das "regras do jogo", como esfera exclusiva-
mente pública, portanto, "deseconomizados".
Nessa direção, o Estado é convertido em guardião dos interesses
sociais, sendo a noção de público a sua característica fundante, e, em
contraposição, tudo que a ele se exterioriza, ou seja, o não-estatal (mer­
cado e sociedade civil) é dominado pela lógica do privado. Público e
privado são tidos, assim, como esferas autônomas.
De acordo com as formulações dos pluralistas liberais, o proces­
so democrático refere-se à existência de igualdade de oportunidades
de acesso dos grupos de interesse aos canais de influência sobre os
governantes e à possibilidade da formação, por meio das "regras do
jogo", de consensos plurais na esfera pública. Por conseguinte, a fun­
ção da participação, segundo essa tradição, é de proteção dos indiví­
duos contra as decisões arbitrárias dos líderes eleitos, assim como a
de proteção de seus interesses privados ou de grupo.
Essa tradição descreve o funcionamento da democracia e o que
ela deveria ser, segundo os ideais e métodos dos sistemas democráti­
cos existentes. A define como um conjunto de práticas e instituições
perpassadas por mecanismos que garantem eleições periódicas (insti­
tucionalização do conflito) e políticas de grupos de pressão (partici­
pação política). Há a recusa de se engajar em qualquer empreendí-
SOCIEDADE C IV Il E DEMOCRACIA 105

mento coletivo que ultrapasse o microcosmo das relações de convi­


vência e associativas.
Já para os "liberais éticos" o espaço das instituições democráti­
cas e das "regras do jogo" bem como o da esfera pública não deve ser
visto somente para a organização e defesa de interesses de grupos, tal
como querem os pluralistas, mas também como possibilidade para a
construção de uma "ética pública" de consensos de direitos. No en­
tanto, a formação desses consensos não se inscreve na direção de uma
interação intersubjetiva voltada para a formação de sujeitos coletivos
e de projetos hegemônicos. Esses consensos formam-se no contexto
da diversidade, uma vez que partem do princípio de que a sociabili­
dade não passa de um processo de interminável amálgama e dissolu­
ção de miríades de grupos.
Sendo assim, as sugestões sobre o desenvolvimento ativo e qua­
litativo da participação dos cidadãos na vida pública tomam-se difícies
de serem exploradas dentro dos termos de referência dessa tradição.
Podemos evidenciar, por exemplo, que as formulações de Bobbio es­
tão fundamentalmente centradas na preocupação em defender as pos­
sibilidades de alargamento da democracia pelo incremento e expan­
são de seus canais político-institucionais do que "em apontar os ca­
minhos que mobilizam para a participação social e a politização das
massas". Ou seja, "sem se preocupar com a natureza, os conteúdos e
as finalidades das forças sociais em questão" e "como se bastasse o
simples registro da multiplicidade de associações para definir uma
sociedade democrática". (Semeraro, 1999: 208-212)
Frente ao exposto, podemos afirmar que o ponto de discrimina­
ção entre a concepção pluralista e dos "liberais éticos" e a concepção
de democracia desenvolvida nos marcos da tradição marxista, parti­
cularmente gramsciana — explicitada no Capítulo 1 — se dá no con­
ceito de hegemonia. Para as primeiras, democracia é sinônimo de plu­
ralismo, de defesa do interesse de todos, o que permite que as deman­
das populares só sejam atendidas após a sua conciliação com as de
outros setores e de sua compatibilização com os interesses da repro­
dução do capital. De acordo com a segunda, democracia é sinônimo
de defesa do "interesse comum", de construção de hegemonia no plu­
ralismo, da formação de consensos no interior e a partir dos interesses
de classe, visando à constituição de uma vontade coletiva emancipa-
tória que coloque no horizonte das lutas políticas dos trabalhadores a
io6 M. L. DURICUETTO

erradicação das formas de produção ,e reprodução das relações sociais


capitalistas.
Nas formulações teóricas e prospectivas prático-políticas da de­
mocracia formulada pelos elitistas e pelos "liberais realistas" encon­
tramos a mais radical separação entre as esferas do público e do pri­
vado. Estes incorporam a definição dos primeiros, de que a democra­
cia não passa de um método para selecionar elites, e a ela acrescentam
a idéia de que a própria dinâmica social deve ser protagonizada pela
organização de grupos pequenos de elites "racionais" em busca de
seus interesses. A legitimidade desses interesses não estaria dada pe­
las "regras do jogo" democrático, mas pelas regras do mercado. A ex­
pressão econômica desse projeto é a apologia da privatização, o em­
penho em atribuir ao mercado — e não à esfera pública — a tarefa de
dar solução aos conflitos de interesses e às demandas sociais. Aqui, os
direitos sociais e coletivos não são firmados pelas regras do jogo de­
mocrático, mas são transformados em responsabilidades individuais.
Em decorrência, a defesa da estruturação de um sistema que
imputa ao mercado a capacidade de regulação da vida social implica
uma disseminação de valores que tendem, no limite, a levar ao pró­
prio fim não a democracia liberal (enquanto forma de governo), mas o
processo democrático. De lugar de discussões, conflitos e consensos,
a esfera pública transforma-se em palco do descrédito e da apatia,
valores que são reforçados pelos processos em curso de intensa frag­
mentação da sociedade civiP(traduzida na explosão de identidades
definidas em termos de gênero, religiosas, étnicas etc.) e pelo enfra­
quecimento dos componentes de identidade e organizações coletivas
vinculadas ao mundo do trabalho, decorrente do efeito combinado da
reestruturação produtiva e da implementação das (contra) reformas
neoliberais. Assim, o reforço mútuo do livre mercado e da democracia
liberal tende a fortalecer a consolidação de uma democracia minima­
lista, não uma esfera pública e um processo democrático ampliado.
(Gómez, 1998)
É com o objetivo de criar uma teoria da democracia alternativa à
dos "liberais realistas" (expoentes ideológicos do neoliberalismo), dos
pluralistas e dos "éticos ou comunitaristas", que é introduzida uma
nova conceituação da relação entre sociedade civil e democracia, que
tem, na defesa da construção de uma esfera pública democrática, o
seu fulcro central.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 107

2.5. Sociedade civil, esfera pública e democracia: Habermas e seu


"mundo da vida"

Habermas dedica suas elaborações ao entendimento da demo­


cracia enquanto procedimento jurídico-institucional e enquanto for­
ma de convivência crítico-argumentativa, abrindo, assim, uma nova
via para a análise da democracia.
O ponto de partida de Habermas para analisar a temática da de­
mocracia é semelhante à problemática levantada por Weber e
Schumpeter, qual seja, a do crescimento do aparato burocrático-admi-
nistrativo no interior do Estado e a impossibilidade de formação de
uma concepção de sociedade em tomo de procedimentos e pressupo­
sições que levem à formação de uma "vontade geral", de um "bem
comum". Mas, em Habermas, esta problemática recebe uma resposta
fundamentalmente distinta da que é oferecida pelos elitistas.
Quanto à teoria pluralista da democracia, Habermas (1997:59-60)
analisa que esta "[...] insere-se no modelo do liberalismo através de
uma simples substituição: o lugar dos cidadãos e de seus interesses
individuais é ocupado por organizações e interesses organizados[...]".
Seu enfoque difere em vários aspectos-chave dos seguidos pelos plu­
ralistas como, por exemplo, a não-aceitação de que a "cultura cívica"
mais adequada para as sociedades modernas é a que se baseia na vida
privada civil e na apatia política e de que o Estado tenha suas funções e
decisões políticas geridas e operacionalizadas pelas demandas dos di­
ferentes grupos de interesses existentes na vida social.25
Em Habermas, o desenvolvimento do conceito de esfera pública
demarca uma nova matriz no interior da teoria da democracia, uma
vez que traz inovações em relação aos pressupostos teóricos e prático-
políticos do elitismo e do pluralismo. Sua preocupação central é a de
criar uma nova perspectiva para a ampliação de arenas sociais partici­
pativas e solidárias face à constatação da diminuição de espaços so-
cietais para a prática democrática ao longo do século XX. Tal diminui­
ção é decorrente da expansão da influência das estruturas econômi­
cas e burocrático-administrativas em relação às formas de livre inte­
ração comunicativa de indivíduos e grupos. É a partir da necessidade

25. Para Habermas (1997:61), a sua teoria coloca o problema das condições nas quais o
Estado pode ao menos desenvolver uma sensibilidade em relação a esses interesses.
108 M. L. DURlOUtTTO

de restaurar nas sociedades modernas contemporâneas a sociabilida­


de, espontaneidade e solidariedade que ele introduz um novo concei­
to para se pensar a prática democrática.
Em seus principais construtos teóricos, o autor alemão se propõe
analisar os processos que levaram à crise da sociedade capitalista (par­
ticularmente nos países que experienciaram regimes do Estado do bem-
estar) e do "socialismo real" no que propunham de inovação, criação
e desenvolvimento de uma vida social mais democrática, participati­
va e igualitária. E é por constatar a falência dessas propostas que ele
introduz um novo conceito de democracia, para interpretar as socie­
dades contemporâneas e para apontar os caminhos da construção de
relações humanas mais associativas e discursivas, que permitam que
a alteridade se transforme em comunicabilidade.
Em Mudança estrutural da esfera pública (1984) Habermas desen­
volve os fundamentos dessa via alternativa para a prática da demo­
cracia a partir da introdução do conceito de esfera pública.
A emergência de uma nova esfera pública, segundo Habermas,
está vinculada aos processos históricos das transformações na estru­
tura econômica, social e política que levaram à constituição da socie­
dade burguesa. A progressiva constituição de relações entre os ho­
mens que, além da estrita esfera do Estado, vieram se formando em
tomo do mercado e da livre iniciativa, possibilitaram a emergência de
"comunicações discursivas" açerca dos interesses dos indivíduos pri­
vados e de suas demandas eift relação ao poder político da autoridade
estatal. Essas demandas se circunscreviam aos dispositivos jurídicos-
administrativos relativos à regulamentação da atividade material e
da propriedade privada. É nesse espaço social de interação comunica­
tiva e discursiva, inerente à burguesia, que identifica a formação de
uma nova esfera, cuja função é atuar como sistema intermediário en­
tre os interesses privados presentes na sociedade civil e o poder polí­
tico estatal.
A perspectiva de entendimento da esfera da política aberta por
Habermas, ao destacar o fenômeno histórico da publicização e do de­
bate público acerca das decisões da autoridade estatal relativas ao or­
denamento da esfera material, expressa um rompimento com a con­
cepção marxiana sobre a natureza da política. Em Habermas a forma­
ção de uma "nova" esfera pública é analisada como desvinculada de
qualquer expressão direta dos interesses classistas.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 109

Para Habermas (1990: 105), a universalização da política, que


Marx supôs ilusória em A questão judaica, ao sustentar a separação entre
o individualismo na esfera da produção (burguês) e o universalismo
na esfera da política (cidadão), toma-se real pela constituição de uma
esfera pública em que os interesses materiais foram "suspensos", dan­
do lugar à interação social fundada numa dimensão prático-moral em
que cada indivíduo passa a considerar o outro enquanto um igual.
Esse reconhecimento se baseia nos direitos civis e políticos, que impli­
cam no direito de participar de uma comunidade livre de debate, dis­
cussão e opinião.26
É essa esfera da vida social em que esses dois complexos de di­
reitos são reconhecidos e exercitados que Habermas denomina de "es­
fera pública" e é nela que a idéia do exercício democrático se assenta.
Ou seja, é no desenvolvimento desses processos de interação, comu­
nicação e de debate que se localiza a dimensão política do exercício
democrático. Para ele, a democracia supõe uma dimensão comunicati­
va e interativa, na qual os atores sociais participam de um debate críti-
co-racional acerca da organização normativa e política da sociedade.
Nos seus trabalhos posteriores, destaca a emergência, na Euro­
pa, dos chamados "novos movimentos sociais" como exemplo de uma

26. Apesar de supor como "ilusória" a separação operada por Marx entre "bourgeois” e
“citoyeri', o entendimento da constituição da esfera pública em Habermas é o de construção
de uma esfera pública burguesa. Seu modelo de esfera pública deriva de alguns contextos
institucionais específicos que deram origem à revolução burguesa — debate científico, par­
lamentos modernos e tribunais — mas que tiveram uma programática política e "discursi­
va" elitista e exclusivista, uma vez que só homens, brancos e proprietários dela faziam par­
te. Assim, a esfera pública analisada por Habermas é burguesa (são os proprietários); e libe­
ral (uma vez que se materializa por meio de direitos civis que asseguram a autonomia desta
esfera, servindo como limite para o alcance do poder de Estado). No que se refere ao sistema
político, as relações de debate e publicização acerca da regulação da vida mercantil ocorri­
das no espaço da "esfera pública burguesa" passam a exercer uma influência direta nos
processos de decisão política com a organização e consolidação do Estado de Direito liberal-
burguês e com a criação de mecanismos político-institucionais, como o sistema parlamen­
tar. Assim, as demandas advindas da esfera pública burguesa passam a ser institucionaliza­
das e legalizadas pelo sistema de direito privado que garante a livre iniciativa, o laissez-faire,
a liberdade das relações de troca mercantis e a livre concorrência. Dessa forma, o que o
sistema político expressa são os interesses comuns dos proprietários privados e é essa con­
dição de proprietário que permite a eles assumirem a condição de cidadãos políticos ativos.
Assim, os interesses de classe da burguesia adquirem uma aparência de universalidade. Como
se vê, a "ilusão" não está em Marx!
110 M. t. DURIGUETTO

ação social que emerge caracterizada por esses insumos comunicati­


vos. A relevância dessas ações é por ele analisada a partir de uma di­
visão da sociedade em três subsistemas relativamente autonomizados:
o econômico, o político-administrativo e o sócio-cultural. Defende esta
divisão para justificar a separação da esfera da produção dos funda­
mentos do sistema político e do sistema sócio-cultural. E é neste últi­
mo que recai a ênfase de Habermas, ou seja, nos fundamentos e nas
potencialidades do agir comunicativo e na "regulação consensual dos
conflitos".
Mas é em Teoria da ação comunicativa (1987) que Habermas apro­
funda sua análise da separação da sociedade em diferentes sistemas.
Sustenta que, nas sociedades modernas, ocorreu um processo de dife­
renciação das estruturas da racionalidade, que acabou por gerar dois
sistemas: a racionalidade instrumental — inerente às ações que se de­
senvolvem nas esferas da economia e da administração pública, em
que os indivíduos se orientam estrategicamente pela busca do lucro e
do poder político —,e a racionalidade comunicativa, que trata do cam­
po da interação social que permite que as pessoas se relacionem atra­
vés da intemalização das regras e das normas existentes na socieda­
de, delas participando pela expressão de seus sentimentos e vivên­
cias. Denominado por Habermas de "mundo da vida", é nesse campo
que se processa a defesa e a reação dos indivíduos frente à burocrati-
zação e à mercantilização, buscando formas de solidariedade e de coe­
são social.27
É com o reconhecimento da existência desses dois sistemas dis­
tintos de sociabilidade que Habermas analisa o fenômeno da burocra-
tização da esfera estatal, cujo fortalecimento reduziría a autonomia

27. Para Habermas, (1997: 75) o mundo da vida representa uma caixa de ressonância
para a tematização e o tratamento de problemas que envolvem a sociedade como um todo.
De acordo com Arato e Cohen (2000: 493), o mundo da vida em Habermas apresenta " [...]
três componentes estruturais — cultura, sociedade e personalidade. Na medida em que os
atores se entendem mutuamente e estão de acordo sobre sua situação, compartem uma tra­
dição cultural e, ao coordenarem sua ação por meio de normas reconhecidas intersubjetiva-
mente, atuam como membros de um grupo social solidário. Quando os indivíduos crescem
dentro de uma tradição cultural e participam da vida de grupo, internalizam as orientações
de valor, e desenvolvem identidades individuais e sociais. A reprodução desse ciclo ocorre
por meio da comunicação. Isso implica processos reprodutivos de transmissão cultural, in­
tegração social e socialização".
SOCIEDADE CIVIL E OEMOCRACIA UI

dos indivíduos. Mas, para Habermas, esse fenômeno, diferentemente


do suposto por Weber, não absolutiza as formas de manifestação da
política moderna e, conseqüentemente, da democracia. Estas encon­
tram, nas estruturas associativas e comunicativas da esfera pública, o
espaço para sua expansão e desenvolvimento de forma autônoma,
visando cada vez mais a reprodução da solidariedade social.
Desvencilha, assim, o aumento da complexidade dos aparatos
administrativos da impossibilidade da prática de ações interativas e
solidárias na vida social. Isso porque Habermas opera uma distinção
entre Estado e esfera pública, o que o possibilita introduzir um nível
adicional para a participação política. Como afirma Avritzer (1999:32),
ao nível da esfera pública, a racionalidade do processo participativo
não leva à constituição imediata de propostas administrativas, mas
conduz apenas a um processo democrático de discussão. Assim, sua
teoria pretende operar no espaço que se gera entre uma administração
estatal e um processo de formação da opinião pública que tem duas
características: a sua informalidade, na medida em que, para ele, ape­
nas o sistema político pode agir; e a sua capacidade de gerar fluxos
comunicativos que deixem claro a origem comunicativa das formas
administrativas de utilização do poder político.
No que se refere à problemática decorrente da relação entre de­
mocracia e bem comum, Habermas concorda com a impossibilidade
de formação de uma noção unificada e substantiva do que venha a ser
o "bem comum", mas constata a existência de um princípio de igual­
dade na prática democrática que está presente nas regras do discurso,
ou seja, a avaliação da prática democrática está na "[...] qualidade do
processo de argumentação através do qual um indivíduo reconhece o
outro enquanto igual na utilização da linguagem. Conseqüentemen­
te, a validade da democracia está ligada ao ato argumentativo". Esse
critério de avaliação da igualdade da prática democrática entre os in­
divíduos permite a Habermas definir a democracia "[...] como o pro­
cesso de institucionalização dos procedimentos e das condições de
comunicação, processo esse capaz de procedimentalizar a soberania
popular". (Avritzer, 1999:122-123) Ou seja, a democracia é entendida
enquanto um sistema de regras práticas mais adequadas para a orga­
nização de um processo de livre comunicação. Dessa forma, "[...] o
bem comum estaria ligado às regras utilizadas pelos participantes da
prática da democracia", (Avritzer, 1996:19, 21-22) ou seja, na criação
112 M. L. DURICUETTO

de espaços públicos de realização dos procedimentos argumentativos


de formação da opinião.28
A canalização dos fluxos comunicativos gerados no "mundo da
vida" para a esfera pública cabe ao conjunto de associações voluntá­
rias desvinculadas do mercado e do Estado, a que Habermas (1997:
22) denomina de sociedade civil. A sociedade civil — como "base social
de esferas públicas autônomas", pois se distingue "[...] tanto do siste­
ma econômico como da administração pública" — compõe-se, assim,
de diferentes movimentos, associações e organizações voluntárias "[...]
especializadas na geração e propagação de convicções, em descobrir
temas de relevância para o conjunto da sociedade, em interpretar va­
lores, produzir bons fundamentos, desqualificar outros". (Habermas,
1990:110) O papel dessa base social que compõe a sociedade civil é o
de captar "[...] os ecos dos problemas sociais que ressoam nas esferas
privadas, condensá-los e transmiti-los, a seguir, para a esfera pública
política". (Habermas,1997: 99) Dessa compreensão da dinâmica social
é que pode resultar "[...] um deslocamento de pesos nas relações entre
dinheiro, poder administrativo e solidariedade, a partir das quais as
sociedades modernas satisfazem suas necessidades de integração e
regulação [...]". (Habermas,1997: 22)
Na conferência "A Nova Intransparência — a Crise do Estado do
Bem-Estar Social e o Esgotamento das Energias Utópicas" (1997),
Habermas relaciona o arsenal teórico por ele desenvolvido nas obras
anteriormente explicitadas para "ressuscitar" a dimensão pública da
vida social frente às experiências prático-políticas das sociedades ca­
pitalistas avançadas, que desenvolveram as experiências do Estado
de Bem-Estar Social.29 Habermas desenvolve a idéia de que tais expe­

28. "De acordo com a concepção habermasiana de esfera pública, o bem comum pode
ser formal e ser pensado em termos da capacidade dos diferentes atores sociais para publicizar
sua luta contra formas privadas de dominação [...], construindo identidades em público, e
estabelecendo novas formas de solidariedade Essa publicidade leva a uma ruptura
adicional com a tradição do elitismo, por essa tradição abandonar idéias de autodetermina­
ção, participação, processos discursivos de formação da vontade política entre iguais, entre
outras. Para Habermas, todos os atores sociais são igualmente capazes de dominar a lingua­
gem, de argumentar publicamente e de submeter a autoridade pública à crítica. (Avritzer,
1999: 32).
29. Na obra Mudança estrutural da esfera pública, Habermas analisou os condicionantes
de formação do Estado Social. Ao abordar a passagem do Estado de Direito liberal para o
Estado social (versão germânica do Welfare State), o autor destaca o surgimento de uma
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 113

riências possibilitaram aos grupos sociais a obtenção de um padrão


de segurança e de justiça social mediante o fato de o status do trabalho
remunerado ser normalizado pelos direitos de participação política e
pelos direitos na partilha social. Entretanto, a face negativa desse "re-
formismo" foi a expansão da intervenção estatal sobre os modos e
meios de vida da população, através de procedimentos jurídico-ad-
ministrativos de implementação dos programas sociais que levaram à
burocratização, vigilância e controle da vida diária. Também possibi­
litou a absorção das instâncias de representação política — particular­
mente os partidos — pelo aparelho estatal. Desse modo, para Habermas
(1990:106), "[...] a outra face de um Estado social mais ou menos bem
sucedido é aquela democracia de massas que toma traços de um pro­
cesso de legitimação orientado administrativamente". Ou seja, no con­
texto do Welfare State, os sistemas autonomizados da economia e da
política acabaram por colonizar a dinâmica associativa e comunicati­
va das relações intersubjetivas processadas no "mundo da vida".
Sendo assim, a alternativa proposta por Habermas é a de subs­
tituir a "utopia do trabalho" pela da racionalidade comunicativa,
único meio que visualiza como capaz para afirmar os valores da so­
lidariedade contra o poder e o dinheiro.30 Na perspectiva de uma

"esfera social repolitizada", cuja base social, ao contrário de pessoas privadas e proprietá­
rias, é agora formada por grupos organizados e instituições político-organizativas que pas­
sam a assumir a mediação entre sociedade civil e Estado. Essa mudança dos sujeitos sociais
da esfera pública deve-se à progressiva visibilidade das contradições de classe e de suas
organizações na defesa de seus respectivos interesses. As demandas pelo reconhecimento
desses interesses na esfera pública pressionam o Estado que, para legitimar-se ante a socie­
dade, passa a intervir cada vez mais sobre os mecanismos reguladores da vida econômica e
social. Dessa forma, Estado e sociedade interpenetram-se e surge uma "esfera de relações
semipúblicas", protagonizada pelos partidos políticos, sindicatos e Estado, que buscam ga­
rantir a representação dos seus interesses na esfera pública. Mas é particularmente nessa
conferência que Habermas desenvolveu sua crítica à crescente burocratização do Estado
Social como limite para a garantia de níveis crescentes de justiça social e para a conforma­
ção de uma esfera pública democrática.
30. A crítica à "utopia de uma sociedade do trabalho" será aqui desenvolvida por
Habermas apoiando-se em grande medida nas análises de Offe. Habermas (1997:105) afir­
ma que "[...] chegou ao fim uma determinada utopia que, no passado, cristalizou-se em
torno do potencial de uma sociedade do trabalho". E conclui: "as condições da vida emanci­
pada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma reviravolta nas condi­
ções de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo [alienado] em auto-
atividade [...]". (1997: 107) Ou seja, o que ele propõe é a substituição da centralidade da
emancipação humana pela erradicação do trabalho alienado por uma nova centralidade
•14 M. I. DURIGUETTO

teoria da democracia, não se propõe que a saída para a excessiva


ingerência estatal na vida social seja o retorno ou a valorização ex­
trema dos valores individuais e da lógica mercantil, como propõe o
receituário neoliberal, mas que as esferas de influência do dinheiro,
poder e solidariedade teriam que ser repostas em um novo equilí­
brio através da formação de uma vontade política democrática no
âmbito da esfera pública. Esta é descrita, aqui, por Habermas (1997:
92 e 94), como uma rede adequada para a comunicação de conteú­
dos, tomadas de posição e opiniões, em que as informações e argu­
mentos são elaborados na forma de opiniões focalizadas, a ponto de
se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específi­
cos. Focalização e temáticas específicas são assim tomadas como exem­
plos de manifestação de práticas democráticas no âmbito da esfera
pública, práticas que Habermas identifica como presentes nos discur­
sos e ações dos chamados "novos movimentos sociais"31 presentes no
"mundo da vida".
Seria a argumentação pública sobre a impossibilidade de efe­
tivar direitos para certos grupos, dadas suas desvantagens estrutu­
rais, que funda a legitimidade e a necessidade da criação de políti­
cas públicas específicas capazes de superar essa situação de infe­
rioridade.
Focalização, temáticas específicas, lutas das minorias, defesa de
direitos específicos singulari^am a saída vislumbrada por Habermas
para a criação de uma nova esfera pública democrática e participati­
va. E essa saída ganha uma maior precisão prático-operativa com a
introdução de um novo conceito de sociedade civil, que, embora já
esteja presente em Habermas, ganha, nas formulações de Jean L. Cohen
e Andrew Arato, uma maior precisão conceituai e política.

emancipadora que emerge da esfera comunicacional e discursiva. Uma brilhante análise


criticando — com base no pensamento marxista de Lukács — a crítica de Habermas ao para­
digma do trabalho é desenvolvida por Antunes. (1999, cap. VIII)
31. Entre os movimentos sociais a que se refere como novos estão os feministas, ecoló­
gicos, pacifistas, de minorias, antinucleares e os de iniciativa cidadã. Segundo Habermas
(1997:113) "[...] nesta arena [mundo da vida] não se luta diretamente por dinheiro ou poder,
mas por definições. Trata-se da integridade e da autonomia de estilos de vida, como, por
exemplo, a defesa de subculturas tradicionalmente estabelecidas ou a transformação da gra­
mática de formas de vida legadas. Exemplos de um oferecem os movimentos regionais e, de
outro, os movimentos feministas ou ecologistas".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 115

2.5.1. Movimentos sociais, sociedade civil e esfera pública: espaço da


democracia

As formulações acerca do conceito de esfera pública operadas


por Habermas estão teórica e praticamente ligadas à redescoberta
e/ou recuperação do conceito de sociedade civil no debate acadêmico
a partir da década de 1970. Esse "renascimento" conceituai está dire­
tamente associado à emergência dos chamados "novos movimentos
sociais" e às suas demandas democratizantes relacionadas a aconteci­
mentos históricos diversos: a crise do socialismo real, que veio a refle­
tir a resistência à onipresença do Estado, e as reivindicações por direi­
tos civis e políticos; a crise do Welfare State no âmbito das sociedades
liberal-democráticas européias e as críticas imputadas a este padrão
de regulação social, por ter transformado os cidadãos em sujeitos so­
ciais passivos e destituídos de meios efetivos de influência sobre os
processos políticos devido à burocratização estatal; e, por fim, a resis­
tência contra os regimes autoritários no contexto dos processos de
(re)democratização da América Latina. Arato (1995:19) atribui o "no­
tável ressurgimento desse conceito" às estratégias que "se baseavam
na organização autônoma da sociedade e na reconstrução dos laços
sociais fora do Estado autoritário e a conceituação de uma esfera pú­
blica independente e separada de todas as formas de comunicação
oficial, controladas pelo Estado ou pelos partidos".
É importante assinalar que, ao lado da recuperação do conceito de
sociedade civil, o surgimento desses "novos movimentos sociais" nos
países ocidentais — ecológicos, antinucleares e pacifistas, urbanos, fe­
ministas etc — e das temáticas e lutas por eles levantados —, a questão
da cidadania e seu conjunto de direitos passaram a também ganhar no­
vas dimensões, ampliando as referências a ela imputadas por Marshall.
Marshall define a cidadania moderna como um conjunto de nor­
mas e procedimentos reguladores de direitos e deveres, que são atri­
buídos e garantidos a todos os indivíduos pertencentes a uma socie­
dade nacional. Esse aparato regulatório institui jurídica e simbolica­
mente uma "igualdade básica" (o status de cidadania) que se articula
com as desigualdades sócio-econômicas32 e se afirma sobre estas. Afir­

32. "[...] a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a
igualdade de cidadania seja reconhecida". (Marshall 1967: 62)
Il6 M. I. DURICUETTO

ma Marshall que a incorporação e ampliação dos direitos de cidada­


nia33 pela ação estatal reduz a influência da "sociedade de mercado"
na produção da desigualdade excessiva ao mesmo tempo que possi­
bilita racionalizar e delimitar os conflitos de interesses das classes so­
ciais nos processos sócio-políticos.
A tese da "igualdade de status" ou a cidadania de Marshall é
assim perspectivada para a estabilização e legitimação da sociedade
capitalista, vindo a expressar o chamado "pacto sócio-político do pós-
guerra" que compatibilizou as condições de existência da acumula­
ção capitalista com procedimentos políticos democráticos e um Esta­
do liberal provedor de direitos sociais.
Os argumentos de Marshall são compartilhados pela grande
maioria dos intelectuais liberais-democratas contemporâneos e pelas
novas teorizações de cidadania presentes no debate pós-marshalliano.
Estas, no entanto, acrescentam novas prospecções normativas ao con­
ceito e aos direitos de cidadania, tendo as dimensões civis (liberdades
civis) e políticas (participação sócio-política) adquirido importância
renovada. Nessas teorizações, destaca-se a necessidade de comple­
mentar ou substituir a aceitação passiva dos direitos de cidadania (pas­
sividade e depedência promovidas pelas instituições do Estado do
Bem-estar) pelo exercício ativo das responsabilidades cidadãs ("dese­
jo de participar do processo político com o propósito de promover o
bem público", "disposição a auto-limitar-se em seus reclamos econô­
micos") e incorporar o crescênte pluralismo social e cultural das so­
ciedades modernas ("capacidade de tolerar e trabalhar com a diferen­
ça") (Kymlicka e Norman, 1997: 6, 9).

33. Os argumentos de Marshall se apoiam no desenvolvimento da sociedade inglesa


desde o século XVII para afirmar que, a partir de uma igual distribuição de "direitos civis"
a todos os indivíduos, novos direitos "políticos" e "sociais" seriam a ele incorporados como
uma consequência lógica, uma vez que "já estaria implícito nos princípios da igualdade
básica dos 'direitos civis'". Os direitos de cidadania são, então, classificados em civis, polí­
ticos e sociais e assim definidos: "O elemento civil é composto dos direitos necessários à
liberdade individual — liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o
direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. [...] Por elemento
político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como mem­
bro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de
tal organismo. [...] O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo
de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança so­
cial e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na socie­
dade" (Marshall, 1967: 63-64).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 117

Em relação aos direitos civis, defende-se que a conexão da cida­


dania com a questão das classes e do modo de produção capitalista —
como presente na tradição marxista — conduz a uma concepção res­
trita da cidadania. Ressalta-se que qualquer discussão sobre cidada­
nia deve dar conta das distintas lutas que empreendem os grupos,
movimentos e classes contra tipos específicos de discriminação, estra-
tificação social e opressão política (Zolo 1997:104 e Held, 1999: 215).
Com essas ponderações, temos, então, uma concepção ampliada
da cidadania que tende a vê-la como um fenômeno associado aos
movimentos sociais, à solidariedade e à sociedade civil: as iniciativas
dos movimentos sociais devem estar orientadas pela busca de novos
valores e ações prático-políticas, visando à ampliação da esfera públi­
ca — garantia de uma participação plural, em que seja contemplada a
diversidade cultural com as respectivas subjetividades (étnicas, de
gênero etc.) — e que permita combinar democracia direta com demo­
cracia representativa; solidariedade, que é definida pelo princípio de
responsabilidade individual e coletiva com o social e o bem comum; e
a sociedade civil, que composta por organizações e ações voluntárias,
igrejas, famílias, associações étnicas, cooperativas, grupos de prote­
ção ao meio ambiente etc, possibilitam o aprendizado das virtudes do
compromisso mútuo.
Como dissemos anteriormente, a ampliação das dimensões e con­
teúdos dos direitos de cidadania veio acompanhada da recuperação
do conceito de sociedade civil na busca de apontar possibilidades teó­
ricas e prático-políticas para a emersão de uma vida social mais parti­
cipativa e justa. Trataremos agora de explicitar e analisar os novos
conteúdos e prospectivas incorporados à tão propalada sociedade ci­
vil a partir das formulações de Cohen e Arato (2000).
Enquanto forma de análise dos processos de democratização das
sociedades contemporâneas, a recuperação do conceito de sociedade
civil em Cohen e Arato (2000: 22-92) está baseada na tentativa de for­
mular parâmetros teóricos e estratégias prático-políticas comuns para
as democracias liberais estabelecidas, que contemplem a organização
autônoma da sociedade, a qual se materializa na concepção de uma
esfera pública independente e separada de toda forma de comunica­
ção estatal e mercantil. É no interior dessa esfera e do seu vínculo com
formas de organização liberal-representativas e participativo-demo-
cráticas que passam a se localizar as novas estratégias de democrati­
n8 M. I. DURICUtTTO

zação. Sendo assim, o que essa nova teoria da sociedade civil reivin­
dica é a identificação da democratização com a existência de uma ter­
ceira esfera, que teria, como característica central, a interatividade e o
livre associativismo.
Tal como em Habermas, a sociedade civil é também aqui
conceitualizada como uma esfera da interação social que se distingue
tanto do Estado como da economia: "usando um modelo de três par­
tes — a economia, a sociedade civil e o Estado — eliminamos a cone­
xão que existe quase por definição entre a economia capitalista e a
sociedade civil moderna". (Cohen e Arato, 2000: 456)
Prosseguem introduzindo uma distinção entre as organizações
que operam no interior da sociedade civil das presentes no mercado
(organizações de produção e distribuição) e no Estado (organizações
e partidos políticos e parlamento). Para Arato e Cohen (2000: 9), em
confluência com Habermas, os atores da sociedade política e econô­
mica visam à participação direta no poder estatal e na produção eco­
nômica, os quais procuram controlar e manejar. Enquanto que o "pa­
pel político da sociedade civil, por sua vez, não está relacionado dire­
tamente com o controle ou a conquista do poder, mas com a geração
de influência mediante a atividade das associações democráticas e a
discussão não restrita na esfera pública cultural".
Partem da distinção operada por Habermas entre "sistema" e
"mundo da vida", definindo este último como sendo a esfera na qual
os membros de um grupo social, em suas relações cotidianas, desen­
volveríam processos comunicativos e interações intersubjetivas com
significados e conteúdos comuns. Mas, para Arato e Cohen (2000:483),
esta esfera requer a criação de instituições cujo objetivo se inscreve na
preservação dessa dinâmica associativa de formação de identidades e
solidariedades. E é essa dimensão institucional do "mundo da vida" que
corresponde ao conceito de sociedade civil nos autores em tela. Assim, a ino­
vação que introduzem na conceitualização habermasiana de socieda­
de civil está no seu entendimento enquanto arena especializada na
institucionalização, organização e reprodução das tradições, solida­
riedades e identidades do "mundo da vida". Dessa forma, a socieda­
de civil é "[...] a estrutura institucional de um mundo da vida moder­
no estabilizado pelos direitos fundamentais". (2000: 493)
Nesse sentido, demarca-se uma diferença entre sociedade civil,
sociedade política e sociedade econômica. Esta estaria baseada em formas
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 119

de propriedade e em associações puramente econômicas. A sociedade


política se restringiria à dimensão propriamente institucional dos
mecanismos da democracia política, tais como o sufrágio e a repre­
sentação partidária, enquanto a sociedade civil estaria fundada nos
direitos de comunicação e associação. A sociedade econômica e a so­
ciedade política estariam regidas pela lógica do dinheiro e do poder,
enquanto que a ação comunicativa é que fundamenta a categoria da
sociedade civil. (cf. Avritzer, 1994)
E, tal como em Habermas, a dimensão política da sociedade civil
restringe-se a multiplicar os espaços de socialização e de comunicação
no interior do "mundo da vida", dentro dos quais os agentes podem
debater coletivamente temas de interesse comum, atuar em concerto,
afirmar novos direitos e exercer influência sobre a sociedade política.
Nessa direção, concebem a sociedade civil "[...] ao redor de uma noção
de movimentos democratizadores autolimitados que procuram [...] vol­
tar a criar as formas igualitárias de solidariedade sem obstaculizar a
auto-regulação econômica".34 (Arato e Cohen, 2000: 36-37)
Seguindo os passos de Habermas, inserem a perspectiva analíti­
ca e prático-política dos movimentos sociais contemporâneos dentro
da definição que imputam ao conceito de sociedade civil: "[...] afir­
mamos que nossa teoria reconstruída da sociedade civil é indispensá­
vel para entender adequadamente a lógica, o que está em jogo e as
potencialidades dos movimentos sociais contemporâneos". (2000:556)
Para os autores, o entendimento de Habermas acerca da poten­
cialidade política dos movimentos sociais carece de um déficit insti­
tucional, pois confere a eles somente um papel defensivo contra a co­
lonização do "mundo da vida". São, assim, anti-institucionais, defen­
sivos e particularistas. Na visão destes autores, os novos movimentos
sociais devem perseguir objetivos "ofensivos" e "defensivos". Atra­
vés de uma ofensiva, lançam temas de relevância para toda a socieda­

34. Como afirma Costa (1995: 59), Arato e Cohen "[...] conceitualizam, assim, o espaço
da sociedade civil como um 'terceiro setor' dotado de autonomia e auto-organização em
relação ao Estado e ao mercado. A esfera 'civil' é o lugar em que se potencializa a expansão
da democracia, através da formação de uma pluralidade de movimentos auto-organizados,
que favorecem a participação interativa e a formação de uma esfera pública na qual as ações
do Estado e do mercado são limitadas e/ou influenciadas pela sociabilidade associativa".
Dessa maneira, procura-se assegurar, de forma procedimental, que a força sócio-integrativa
da solidariedade contrabalance o dinheiro e o poder.
120 M. I. DUR1GUETT0

de, definem problemas, trazem contribuições para sua solução, mobi­


lizam bons argumentos, a fim de produzir uma atmosfera consensual
e exercer influência e pressão no discurso e nos atores da sociedade
política — parlamentos, tribunais e governos. Ao passo que defensi­
vamente tentam preservar normas culturais, redefinir modos de in­
terpretação, forma e conteúdo dos discursos de valores e visões de
mundo, solidificar identidades individuais e coletivas. (2000:588,592)
O êxito dos movimentos sociais ao nível da sociedade civil deve, as­
sim, ser concebido em termos da democratização dos valores, normas
e instituições. Quando ultrapassam esses objetivos ofensivos e defen­
sivos para atuar direiamente sobre os subsistemas da administração
estatal e da economia de mercado podem vir a reproduzir as estrutu­
ras organizativas determinadas pelo poder e dinheiro. (2000: 620-621)
O que podemos perceber com a explicitação dos elementos teóri­
cos desenvolvidos no campo das reflexões de Habermas e Cohen e
Arato — autores que tematizam acerca dos elementos constitutivos
de uma esfera pública participativa — é que um dos esforços que se
empenham em realizar está na superação da antinomia estatal-merca-
do, pela revalorização da sociedade civil. Chegamos, assim, a um dos
eixos centrais de discussão teórica e de proposta política do "campo
democrático" contemporâneo: as abordagens que apontam para o papel
central da auto-organização da sociedade civü, msando à constituição de uma
"terceira via" (como esfera pública) entre o mercado e o Estado. Vou agora
reter alguns dos principais elementos críticos relativos a essas propos­
tas defendidas por Habermas e Cohen e Arato.
A centralidade da divisão da sociedade na dualidade de dois sis­
temas de relações sodais — os sistemas econômico epolüico e o comuni­
cativo — demarcam a ruptura destes autores com a perspectiva marx-
lukacsiana da centralidade do trabalho como categoria ontológica fun-
dante da sociabilidade35 e, portanto, das mediações e interconexões

35. A recuperação da construção lukacsiana é imprescindível para a compreensão críti­


ca do construto habermasiano. Ao separar as esferas do trabalho das de interação social,
Habermas produz, como decorrência, uma prospecção de emancipação humana circunscri­
ta na ordem do capital. Comecemos pelo entendimento do pensador húngaro acerca da cen­
tralidade do trabalho como categoria ontológica fundante do ser social, que resgato através
da síntese realizada por Antunes. Segundo o autor (1999:146),"[...] Lukács fala em posições
teleológicas primárias, que remetem diretamente ao trabalho e à interação com a natureza, e
em posições teleológicas secundárias (como a arte, a literatura, a religião, a filosofia, a práxis
SOCIEDADE C IV Il E DEMOCRACIA ■ 21

que essa categoria mantém com os outros complexos da vida social —


como a cultura, a ideologia e a política.
A perda de referência da determinação do trabalho como ele­
mento fundante da sociabilidade e também da sua emancipação, faz
com que apostem no fortalecimento de relações associativas que têm,
na comunicação e no discurso travados no "mundo da vida", a mate­
rialização de um projeto emancipador. Acordos e consensos travados
no "mundo da vida", no entanto, não erradicariam o sistema mercan­
til e político estatal, mas delimitariam limites para que estes não colo­
nizassem o livre agir comunicativo.
Nessa direção, a disjunção operada entre os níveis — mundo da
vida/esfera da interação, sistema/espaço em que se estruturam as
esferas do trabalho, da economia e do poder — levou tanto Habermas
quanto Cohen e Arato a concluirem que a orientação política da esfera
pública tem que respeitar o modo característico de operação dos ou­
tros sistemas, ou seja, não deve visar à superação e à ruptura com o
Estado (burocracia) e o mercado (lucro), mas buscar a sua moderação,
ou seja, "compatibilizá-los" com a lógica da comunicação intersubje-
tiva e solidária do "mundo da vida". (Avritzer, 1999: 39)30 Nessa dire­

política etc.) mais complexificadas e desenvolvidas que as anteriores, porque supõem a interação
entre seres sociais, como práxis interativa e intersubjetiva, mas que se constituem como complexos
que ocorrem a partir do trabalho em sua forma primeira. São secundárias, portanto, não quanto à
sua importância, uma vez que a esfera da intersubjetividade é decisiva e dotada de maior
complexidade nas formações societais contemporâneas, mas são secundárias tão-somente em
seu sentido ontológico-genético. Mas entre elas não é possível estabelecer uma disjunção bi­
nária e dualista: ao contrário, para Lukács, entre o trabalho (categoria fundante) e as formas
superiores de interação, a práxis interativa, existem nexos indissolúveis, por maior que sejam
as distâncias, os prolongamentos e as complexificações existentes entre essas esferas do ser
social". (Grifos do autor) Assim, "[...] se o trabalho tem o sentido de momento predominan­
te, a linguagem e a sociabilidade, complexos fundamentais do ser social, estão intimamente
relacionados a ele, e como momentos da práxis social esses complexos não podem ser sepa­
rados e colocados em disjunção. Quando Habermas transcende e transfere a subjetividade e
o momento da intersubjetividade para o mundo da vida, como universo diferenciado e se­
parado dos sistemas, o liame ontologicamente indissolúvel se rompe na sua construção ana­
lítica". (Antunes, 1999:157)
36. Para Habermas (1990:111), "[...] o poder comunicativo é exercido no modo do assé­
dio. Ele atua sobre as premissas dos processos decisórios do sistema administrativo sem
intenção de conquista [...]". E, segundo Cohen e Arato (2000:35),"[...] se bem que a democra­
tização total do Estado e da economia não pode ser seu objetivo, a própria sociedade civil é
um importante terreno da democratização, da construção de instituições democráticas
122 M. L. DURICUEnO

ção, as inferências propositivas que apontam para uma vida sem do­
minação e democrática estariam na proliferação de fluxos comunica­
tivos em arenas públicas. Em outras palavras, as condições para se
levar uma vida emancipada radicam na potenciação da ação comuni­
cativa visando a criação de consensos na esfera pública, deixando o
poder político estatal e o econômico imutáveis.
Assim, é notória a ruptura deles com a proposta de organização
política própria ao pensamento marxista, particularmente gramsciano,
uma vez que a dimensão política dos movimentos e organizações das
classes subalternas presentes na sociedade civil não teriam seu pleno
desenvolvimento com a superação do conflito decorrente da organi­
zação contraditória da produção material mas sim nos processos de
formação de identidade, produção de solidariedade e argumentação
moral.*37 Ou seja, a relação contraditória dos interesses entre capital e
trabalho é substituída pelas relações consensuais criadas pelas argu­
mentações discursivas desenvolvidas no "mundo da vida". Há, as­
sim, um ataque à noção marxista de classe social e a substituição da
contradição capital/trabalho por temáticas sociais mais específicas
materializadas nas ações pontuais e focalizadas dos movimentos so­
ciais organizados no âmbito do "mundo da vida". Estas, em lugar da
luta de classes, é que passam a ser defendidas como desencadeadoras
das mudanças na sociedade.
Nessa dimensão, concordamos com Petras quando responde que
o marxismo, sem excluir a importância das divisões raciais, de gêne­

E ratificam: "Nossa estrutura permite um terceiro enfoque, que não busca corrigir a pene­
tração econômica ou estatal da sociedade mediante uma utilização maior ou menor destes
mecanismos orientadores. De fato, a tarefa é garantir a autonomia do Estado e da economia
modernos, ao mesmo tempo que se protege simultâneamente a sociedade civil da penetra­
ção e funcionalização destrutivas dos imperativos destas duas esferas [...]" (2000: 44).
37. Nas palavras de Habermas (1997: 105-106): "[...] isso faz com que os movimentos
democráticos oriundos da sociedade civil renunciem às aspirações de uma sociedade auto-
organizada em sua totalidade, aspirações que estavam na base das idéias marxistas da re­
volução social. Diretamente, a sociedade só pode transformar-se a si mesma; porém ela pode
influir indiretamente na autotransformação do sistema político constituído como um Esta­
do de direito. Quanto ao mais, ela também pode influenciar a programação desse sistema.
Porém ela não assume o lugar de um macro-sujeito superdimensionado, dotado de caracte­
rísticas filosófico-históricas, destinado a controlar a sociedade em seu todo, agindo legiti­
mamente em seu lugar. Além disso, o poder comunicativo, introduzido para fins de planeja­
mento da sociedade, não gera formas de vida emancipadas.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 123

ro, étnicas, dentro das classes, enfatiza "o sistema social mais amplo,
gerador de tais diferenças"; concluindo que

[...] o essencialismo da política da identidade isola os grupos tor­


nando-os rivais e incapazes de transcender o universo político e
econômico que define e confina pobres, operários, camponeses e
empregados. A política de classe é o terreno onde se pode confron­
tar a "política de identidade" e transformar as instituições que sus­
tentam as classes e outras desigualdades. (Petras, 1999: 24)

Um outro ponto a destacar é que a separação analítica operada


por Habermas e Cohen e Arato em suas análises da sociedade como
dividida em subsistemas relativamente autonomizados — e que cons­
titui o eixo de sua crítica a Marx e Lukács — também leva ao rompi­
mento com a perspectiva de análise da realidade enquanto totalidade
que articula infra-estrutura e superestrutura. Com essa segmentação,
a contradição entre capital e trabalho passa também a inexistir, e, em
seu lugar, a contradição passa a ser entre colonização do dinheiro e do
poder sobre o consenso gestado no agir comunicacional.
Ou seja, a dinâmica presente no "mundo da vida" — em que
operam os processos das relações sociais, das práticas culturais,
intersubjetivas e dialógicas — é tida como absolutamente autonomi-
zada e independente da esfera produtiva, das relações de classe e da
contradição capital e trabalho delas decorrente. Habermas, Cohen e
Arato acabam, assim, desconsiderando os fundamentos ontológicos
que determinam as relações sociais, deseconomizando-as e despoliti-
zando-as. Nesse esquema, a contradição central entre capital e traba­
lho desaparece, uma vez que retira das relações sociais suas dimen­
sões econômicas e políticas. Assim, o que essas reflexões perdem com
a ruptura com o marxismo é "a noção da centralidade da dominação
do capital e suas conexões com as várias esferas da sociedade, da po­
lítica e da cultura". (Guimarães, 1998: 243)
Particularmente no que se refere às reflexões de Gramsci,
enfatizamos que a distinção singular operada pelo marxista italiano
entre sociedade civil e sociedade política, percebendo-as como situa­
das na superestrutura, é interpretada por Cohen e Arato como uma
suposta setorialização entre sociedade civil, sociedade política e es­
trutura econômica. Atribuem, assim, a Gramsci, uma setorialização
tripartite, com cada uma dessas esferas exercendo sua autonomia, o
121. M. L. DURIGUETTO

que acaba caracterizando a sociedade civil como uma esfera não-esta-


tal.38 Ao contrário dessa visão equivocada, para Gramsci, Estado (so­
ciedade política) e sociedade civil formam um "par conceituai" que
marca uma "unidade na diversidade". Ou seja, a diversidade mate­
rial e funcional das duas esferas não nega o seu momento unitário.
Parte, assim, de uma visão de totalidade da vida social, particulari-
zando, nessa totalidade, dois complexos: a esfera estatal (que integra
sociedade civil e sociedade política) e a estrutura econômica.
Fiel à tradição marxiana, a sociedade civil em Gramsci tem um
caráter radicalmente classista: a sociedade civil é uma esfera do Esta­
do e é "saturada" pela contradição capital e trabalho conformada na
estrutura econômica. É essa conformação que também leva para o
Estado. Assim, sociedade civil em Gramsci supõe a articulação com
projetos hegemônicos das classes.
A defesa da necessidade da criação de espaços públicos voltados
para a vitalização da vida social, especialmente para a ampliação dos
processos decisórios da democracia política, é encontrada nas refle­
xões dos chamados teóricos da democracia participativa. O universo
teórico-analítico e as prospecções participativas deste modelo serão
agora evidenciadas.

2.5.2. 0 modelo da democracia participativa

As elaborações teóricas dos autores do chamado modelo da demo­


cracia participativa indicam-nos concepções que revelam e defendem a
necessidade de uma participação mais efetiva dos sujeitos sociais nas
diferentes instâncias políticas de discussão dos assuntos públicos. Esse
modelo, como o da esfera pública participativa anteriormente eluci­
dado, opõe-se tanto à perspectiva pluralista de democracia, quanto,
sobretudo, à concepção minimalista proposta pelo neoliberalismo.
(Held, 1987: 293-318) O modelo em tela defende que modificações nas

38. "O afastamento mais decisivo de Gramsci, tanto de Hegel como de Marx, é sua
opção muito original por uma estrutura conceituai tripartida"; "Gramsci chegou a concen­
trar-se no problema da sociedade civil como independente do desenvolvimento econômico
e do poder do Estado"; "Dentro da estrutura do materialismo histórico marxista clássico,
Gramsci simplesmente buscou afirmar a independência e inclusive a primazia da superes-
trutura". (Arato e Cohen, 2000:174-176)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 115

regras e procedimentos institucionais podem imprimir uma nova di­


nâmica democrática ao sistema político. E essa ênfase acaba por reve­
lar uma análise da sociedade civil separada das relações mercantis,
mas acoplada ao aparato estatal. Ou seja, a dinâmica democrática es­
taria absolutamente centrada na influência que os sujeitos coletivos
presentes na sociedade civil pudessem exercer, em termos de deman­
das e controle, sobre o aparato estatal. Como referência a esse modelo,
tomaremos três autores considerados clássicos representantes da es­
cola participacionista: P.Bachrach, C. Pateman e C. B. Macpherson.
As formulações teóricas destes três pensadores, acerca de um
modelo alternativo de democracia, tiveram como impulso e justifica­
tiva a emergência de diversas mobilizações e movimentos contestató-
rios, nas décadas de 1960 e 1970: estudantis, manifestações pacifistas,
movimento feminista, ecológico etc. (Held, 1987: 229-240) Esses auto­
res "participacionistas" intencionavam contribuir para uma maior
consistência teórica às propostas de uma sociedade mais democrática
advindas desses movimentos, bem como conferir um maior grau de
sistematicidade às suas demandas e construir um modelo de demo­
cracia que pudesse se opor ao modelo elitista proveniente dos setores
conservadores. (Vitullo, 1999)
Partindo de idéias inspiradas em Rousseau e de uma justaposi­
ção de alguns fundamentos da tradição marxista e da tradição demo-
crática-liberal, os teóricos desse modelo, guardadas suas diferenças
adjetivas, defendem que, se a complexidade da vida social impossibi­
lita o envolvimento de todos os cidadãos nas questões públicas, deve-
se lutar pela extensão da esfera da participação nas instituições repre­
sentativas nacionais e locais para um maior desenvolvimento das ati­
tudes e práticas sócio-políticas dos indivíduos.
Esse desenvolvimento ocorreria por meio do processo da partici­
pação; eles acreditam que esse processo, colocado em prática, desper­
taria nos indivíduos maiores graus de interesse e compromisso com
os problemas coletivos e com os assuntos governamentais. Nesse sen­
tido, a prática da participação é visualizada como um elemento fun­
damental para o desenvolvimento dos indivíduos e para a tomada de
consciência dos seus interesses.
C. Pateman argumenta sobre a importância do desenvolvimento
de práticas participativas em nível local, como no cotidiano das in­
126 M. I. DUWGUÍTTO

dústrias, escolas e comunidades, posto que é nesse âmbito "[...] que se


cumpre o verdadeiro efeito educativo da participação pois as
"[...] questões tratadas afetam diretamente o indivíduo e sua vida co­
tidiana". É essa proximidade que faz com que os indivíduos tendam a
se interessar mais pelas questões locais do que pelas questões nacio­
nais, limitando sua participação nessas últimas à escolha de represen­
tantes,39 explicitando que "[...] é por meio da participação a nível local
que o indivíduo 'aprende a democracia'". (Pateman, 1992: 46)
O problema central, para Macpherson (1978: 102), não é o modo
como uma democracia participativa deve atuar, mas como atingi-la,
ou seja: "[...] que obstáculos têm de ser removidos, isto é, que mudan­
ças em nossa atual sociedade e na atual ideologia serão requisitos ou
co-requisitos para chegarmos a uma democracia participativa". O au­
tor aponta, em primeiro lugar, a necessidade de que os indivíduos
transformem uma concepção de vida pautada em interesses egoístas
e consumistas numa consciência e numa ação voltadas para o desen­
volvimento de suas potencialidades individuais e coletivas. O segun­
do pré-requisito é uma significativa redução das desigualdades só-
cio-econômicas, uma vez que os indivíduos são impedidos de partici­
par ativamente da vida política por falta de recursos e oportunidades.
A saída, para o autor, estaria na adoção de uma perspectiva pela
qual esses requisitos seriam paulatina e reciprocamente atingidos.
Argumenta que as contradições estruturais do capitalismo geram, por
si só, uma nova consciência social e essa, por sua vez, seria propulso­
ra de uma pressão maior e mais qualitativa contra as formas de gestão
capitalista de bens de "consumo" produzindo, dessa forma, os "no­
vos movimentos sociais" que impulsionariam a expansão de mais
participação política, o que, de sua parte, acarretaria a expansão da
consciência social e assim por diante.
A completa realização da democracia e o exercício pleno das ca­
pacidades e potencialidades humanas se efetivariam quando essas

39. O desinteresse dos indivíduos pelas grandes questões nacionais também é corrobo­
rado por Bachrach (1973: 138, 145 e 158), o que o faz deduzir que as principais decisões
político-governamentais devem ser tomadas e adotadas por uma pequena minoria. Tam­
bém Macpherson (1978: 101), referindo-se ao mecanismo de iniciativa popular, diz que se
poderia formular questões sobre assuntos simples, que esse mecanismo não poderia ser uti­
lizado para formular questões sobre os grandes problemas de política social ou econômica
em geral. Entendimentos que, como vimos, nada diferem dos argumentos elitistas.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA i*7

mudanças progressivas atingissem uma significativa diminuição das


desigualdades sociais e econômicas, o que consagraria à democracia
participativa o título de democracia liberal: "na medida em que preva­
lecesse um forte senso do alto valor dos direitos iguais ao autodesen-
volvimento, a democracia participativa estaria na melhor tradição da
democracia liberal". (Macpherson, 1978: 116)
Expostas, em linhas gerais, as elaborações teóricas do modelo de
"democracia participativa", faremos agora um pequeno balanço críti­
co de seus fundamentos teórico-políticos.
Podemos verificar, que, nesse modelo, existe explícita ausência
de uma análise da sociedade civil como permeada pelo conflito de
classes e da propriedade privada dos meios de produção",40 o que faz
com que os crescentes processos de participação nos canais institucio­
nais convertam-se na renúncia da superação do sistema capitalista.
Também a aceitação resignada da inevitabilidade da restrição das prin­
cipais decisões políticas nacionais aos "experts" em nada difere, como
vimos, dos argumentos elitistas. E essa aposta política na participa­
ção, uma vez que se limita ao âmbito local ou às questões mais próxi­
mas da vida dos indivíduos, tende a criar não um movimento de catarse,
nos termos gramscianos, mas o recrudescimento de interesses particula­
res e corporativos, que objetivam democratizar, também em termos
gramscianos, apenas a "pequena política" e não a "grande política".
Se as formulações desse modelo argumentam sobre o fato de que
devia haver espaços institucionais para uma considerável participa­
ção dos cidadãos nas decisões governamentais, também se fizeram
acompanhar de um conteúdo e significado que sobrevalorizam as fun­
ções e finalidades desses espaços. Trata-se da defesa de espaços insti­
tucionais participativos plurais, não da formação de uma nova hege­
monia, de um novo projeto de classe hegemônico. Ao enfatizarem a
necessidade de procedimentos democráticos na estrutura organiza­
cional da democracia política do aparato estatal, esses autores estão
apostando que a problemática da desigualdade social pode ser
especificada e resolvida, pelo fluxo e refluxo da negociação e dos re­
sultados do processo democrático.

40. Em relação à propriedade privada dos meios de produção, Pateman (1992:143) diz:
"[...] pouco se disse a respeito da propriedade da indústria em um sistema participativo,
uma vez que isso nos afastaria muito de nosso tema principal".
128 M. L. DURIGUETTO

Assim, a teoria da democracia participativa repousa no conceito


de participação como um fim em si mesmo. Os expoentes desse mo­
delo não propõem uma nova teoria da democracia, e sim uma ênfase
nova (ou renovada) na participação. E, fundamentalmente, a partici­
pação não é situada no interior de um contexto de uma reforma inte­
lectual e moral para construção de uma vontade coletiva hegemôni­
ca,41 como encontramos nas produções gramscianas.
É com base na análise do movimento dialético de renovação teó­
rica da questão democrática operado por Gramsci, Togliatti, Ingrao e
Poulantzas (a partir das elaborações de Rousseau, Hegel e de Marx) e
do privilegiamento de algumas linhas do debate contemporâneo da
teoria da democracia na tradição liberal e da nova forma de entendi­
mento operada pelos autores "democráticos", que fundamentamos
nosso referencial teórico acerca das categorias de sociedade civil e
democracia. Com base nessas formulações procuraremos analisar as
produções teóricas brasileiras acerca dessas categorias, tendo como
marco temporal a "abertura política", buscando identificar influên­
cias, distanciamentos e coalisões. Ressaltamos que o debate do elitismo
democrático foi também priorizado, porque esta corrente tem direta
influência nas formulações que os teóricos neoliberais realizam acer­
ca da "questão democrática" que, como percebemos, tendem na con-
temporaneidade a hegemonizar a dinâmica sócio-política brasileira.
A seguir apresentamos as linhas teóricas do debate brasileiro que
assumimos como orientadof para a discussão da dinâmica democrá­
tica desencadeada pela presença de sujeitos coletivos na sociedade
civil brasileira, que constitui a centralidade da nossa investigação.

41. "[...] o compromisso ativo a favor da democracia participativa [...] em lugar de con­
siderar as pessoas e seus interesses como algo dado, persegue um processo de discussão,
transformação e mudança. Ele não quer dizer que a democracia participativa pressuponha
necessariamente a convergência em alguma Vontade geral' (Phillips, 1996: 87)
Parte II
Questão democrática
na transição brasileira
131

Capítulo III

Cenários brasileiros: redefinições


da questão democrática

3.1. Relembrar é preciso...


Um resgate sumário e esquemático do processo histórico das re­
lações entre Estado e sociedade no Brasil constitui o nosso objetivo
neste item. Procuramos destacar, particularmente, o padrão de inter­
venção estatal na consolidação da modernização capitalista e seus re-
batimentos de intervenção na configuração da sociedade civil e da
nossa institucionalidade democrática. Posteriormente, iremos expli­
citar as diferentes e antagônicas posições teóricas acerca do que se
entende e defende como o caminho para se construir e consolidar a
democracia no Brasil.
É a partir da chamada Revolução de 30 que temos, no Brasil, a
concretização das determinações econômicas e sócio-políticas que, ao
se revelarem por mediações sócio-institucionais, configurariam a or­
dem capitalista no país.
Nossa modernidade econômica e política foi gestada a partir da
relação ruptura/conservação com os elementos da velha ordem, ten­
do o Estado como o baluarte de sua emergência e desenvolvimento. O
Estado assumiu atuar como protagonista no papel de construção da
industrialização, bem como no conjunto das condições sócio-institu­
cionais que parametraram suas relações com a sociedade.
•32 M. I. DURIGUETTO

Na nossa formação social, o processo de desenvolvimento ca­


pitalista pode, assim, ser compreendido e caracterizado pela presen­
ça de dois traços típicos: nossa modernização não eliminou de for­
ma "revolucionária" as relações sociais herdadas do passado. O que
ocorreu foi o redimensionamento e a readequação dessas relações,
enquanto fator de acumulação e desenvolvimento. O outro traço ex­
pressou-se no plano imediatamente político, por meio da recorrente
exclusão da participação popular nos processos de decisão política.
Tomando, então, a convergência desses dois traços, podemos eviden­
ciar que os mesmos caracterizam a nossa modernização capitalista como
conservadora.*
Referenciando-nos a Florestan Fernandes (1975: 210), identifica­
mos que ele considera como problema central da "consolidação con­
servadora" da dominação burguesa no Brasil o

[...] como preservar as condições extremamente favoráveis de acu­


mulação originária, herdadas da colônia e do período neocolonial,
e como engendrar, ao lado delas, condições propriamente moder­
nas de acumulação de capital (ligadas à expansão interna do capita­
lismo comercial e, em seguida, do capitalismo industrial). Aí se fun­
diram o 'velho' e o 'novo', a antiga aristocracia comercial com seus
desdobramentos no 'mundo dos negócios' e as elites dos imigran-1

1. Coutinho utiliza os conceitos de "via prussiana" formulado por Lênin e o de "revo­


lução passiva" formulado por Gramsci para caracterizar os processos de modernização eco-
nômico-social ocorridos na nossa história. O autor apropria-se do conceito de "via prussiana",
tal como Lênin o formula, para caracterizar o modo pelo qual a "passagem" para o capita­
lismo no Brasil operou e adequou a estrutura e a modernização agrária às suas necessida­
des. O conceito de "revolução passiva", como é formulado por Gramsci, é utilizado para
determinar processos sociais e políticos de 'transformação pelo alto'. Em termos gramscianos,
uma revolução passiva expressa a presença de dois momentos: reação das classes dominan­
tes à possibilidade de uma transformação efetiva de "baixo para cima", reação que acaba
por "restaurar" o equilíbrio precedente, ao mesmo tempo em que "renova" suas práticas
sociais, antecipando-se a ou incorporando e controlando "por cima" certas demandas po­
pulares com o que aumenta seu poder de controle e cooptação. Exemplo típico deste fenô­
meno de renovação é a legislação trabalhista brasileira, reivindicada ao longo das lutas so­
ciais das duas primeiras décadas do século XX, que foi implantada junto com a imposição
de dispositivos legais, que vinculavam os sindicatos ao aparelho estatal, anulando, assim,
sua autonomia. Para a especificação e análise da relação entre os conceitos de "via prussiana"
e "revolução passiva" como critério de interpretação do processo de transição do Brasil à
modernidade capitalista (cf. Coutinho, 1989: 119-136).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 33

tes com seus descendentes, prevalecendo, no conjunto, a lógica da


dominação burguesa dos grupos oligárquicos dominantes [...].

Essa lógica se voltava tanto para a economia quanto para a polí­


tica: a burguesia reagiu de maneira predominantemente reacionária e
conservadora, ao impedir que os setores populares conquistassem es­
paço político. Podemos mencionar como exemplos significativos o tra­
tamento dispensado às greves operárias na década de 1910, em São
Paulo, configurando-as "questão de polícia"; ou, quase meio século
depois, a repressão às aspirações democráticas desses setores. Assim,
o espaço político era inacessível para os que não fossem concordantes
com as posições de dominação econômica, social e política. Conclui
Florestan (1975: 212): "[...] isso faz com que a 'democracia burguesa’,
nessa situação, seja de fato uma 'democracia restrita', aberta e funcio­
nal só para os que têm acesso à dominação burguesa".
No período inicial em que o país foi governado por Getúlio
Vargas, ou seja, entre 1930 e 1945 e, particularmente, com o estabeleci­
mento do chamado Estado Novo, em 1937, ganhou impulso a passa­
gem de uma economia primária agro-exportadora pára o processo de
aceleração industrial. No entanto, essa passagem não resultou de uma
ação política e econômica autônoma de uma burguesia industrial, mas
essencialmente, da forte e permanente ação estatal.2

[...] o velho sistema oligárquico de dominação acabará derrotado


mas não será substituído por um regime democrático, e sim por
uma articulação elitista administrada por um Estado que submete­
rá a sociedade a si, dedicando-se à montagem de um complexo
mecanismo de controle político e social das massas emergentes [...].
(Nogueira, 1998: 37)

2. Florestan Fernandes (1975: 204) afirma que, ao contrário de outras burguesias que
forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para
arranjos mais específicos, "[...] a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unifica­
ção no plano político, antes de se converter a dominação sócio-econômica Ou seja, a
nossa burguesia não assumiu o papel de "paladina da civilização,,. Nessa direção, completa
Nogueira (1987: 4): "[...] A transição brasileira para o capitalismo se fez assim longe de qual­
quer veleidade jacobina ou liberal-democrática. Não conheceu a emergência de uma bur­
guesia revolucionária em condições de se pôr como representante do Interesse geral', nem
foi o resultado de movimentos populares radicais, capazes de empolgar a sociedade e de­
mocratizar o poder".
I3A M. L. DURICUETTO

Acompanhando a industrialização "pelo alto", o regime autori­


tário estado-novista regulamentou, em traços corporativistas, as suas
relações com as classes sociais.3 Esse formato institucional corporati­
vo consagrou uma modalidade de interpenetração entre o público e
privado que acabaria por restringir as possibilidades de instauração e
aprofundamento de uma ordem democrática no país, uma vez que
implicou a integração das organizações patronais e sindicais a uma
estrutura vertical hierárquica e centralizada, tendo no ápice organiza­
ções de cúpula diretamente ligadas ao Estado. (Diniz, 1997: 21) A in­
serção das elites industriais e da classe operária nesse arranjo corpo­
rativo ocorreu por meio de formas marcadamente contrastantes: para
os primeiros, a representação de interesses foi posta em prática pelos
sindicatos de base corporativa, pelas associações paralelas que fun­
cionavam às margens do sistema oficial e, também, pela abertura de
canais de acesso para a representação dos seus interesses no âmbito
do próprio aparelho de Estado, com a criação de órgãos consultivos
para a definição de diretrizes gerais de política econômica e de políti­
cas setoriais;4 em contraste, os trabalhadores foram marginalizados
dos centros decisórios responsáveis pela política econômica e priva­
dos de autonomia pela inserção em estruturas corporativas subordi­
nadas ao Estado.5

3. No dizer de Nogueira (1998: J57), a democracia liberal será descartada em benefício


de uma prevalência categórica do Estado e de uma institucionalidade corporativa e autori­
tária, dissociada do ideário liberal e capitaneada por um Estado intervencionista, sendo
erradicados os organismos de representação política, como os partidos, eleições e a edifica­
ção de um sistema institucional que controlava os sindicatos. A arquitetura do novo sistema
teria de apoiar-se em dois requisitos básicos: fortalecimento do poder presidencial — que
envolvería a expansão do aparelho burocrático e, fundamentalmente, a mobilização delibe­
rada da devoção à sua pessoa e a necessidade de regular o limite do conflito, ou seja, regular
o ritmo e o limite da ampliação da arena político-participativa. Sob esse aspecto, o fulcro da
construção da "democracia" getulista foi o sistema corporativista de representação sindi­
cal, posteriormente sistematizado na CLT (cf. também Lamounier, 1995: 3-104).
4. O que se consagrou, assim, foi a representação corporativa de interesses industriais
emergentes no aparelho de Estado limitada a áreas específicas da política econômica. Através
de incentivos fiscais, crédito subsidiado, proteção tarifária, investimentos em infra-estrutu­
ra (transporte, comunicação, energia) a regulação estatal garantia o processo de acumula­
ção, substituindo importações e ampliando o parque industrial instalado. (Diniz, 1997: 22)
5. A inserção da classe trabalhadora no sistema corporativo ocorreu pelo controle e
pela cooptação de sua participação política por meio do atrelamento dos sindicatos ao Mi­
nistério do Trabalho (cf. Diniz e Boschi, 1991:17-19; Diniz, 1997: 29).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA •35

Nessa direção, como afirma Diniz (1997: 21), o intervencionismo


estatal no processo de modernização capitalista que conduziu à in­
dustrialização se fez, paralelamente, com o fortalecimento dos meca­
nismos de centralização política do Estado, num sistema fechado
bipartite e excludente.
Essa estrutura político-institucional de intermediação de interes­
ses revela uma específica característica da relação do Estado com as
agências da sociedade civil, que expressam os interesses das classes subal­
ternas, relação que vai na direção, segundo análise de Netto (1991:19),
não de sobrepor a ou impedir seu desenvolvimento, mas "[...] antes,
consiste em que ele [Estado] [...] tem conseguido atuar com um vetor
de desestruturação, seja pela incorporação desfiguradora, seja pela
repressão [...]" servindo, assim, "[...] de eficiente instrumento contra a
emersão, na sociedade civil, de agências portadoras de vontades cole­
tivas e projetos societários alternativos".
O novo regime que emergiu com a queda da ditadura getulista
tampouco serviu como momento de reafirmação das forças organiza-
tivas populares da sociedade civil como expressões autônomas nos
processos políticos decisórios. Ao contrário, o processo de "redemo-
cratização", plasmado pelo Governo Dutra (1946-1950), continuou, e
até intensificou, a repressão aos sindicatos, o Partido Comunista do
Brasil — PCB —, legalizado em 1945, foi novamente posto na ilegali­
dade, o sistema legislativo teve seu poder de influência nos processos
decisórios reduzido e os partidos políticos não construíram um posi­
cionamento mais autônomo em relação ao Estado.
É com a bandeira da ideologia desenvolvimentista6 e do aparato
institucional corporativo que foram encobertas as relações entre Esta-
do-sociedade na década de 1950. Particularmente no Governo
Kubitschek, e, posteriormente, com a ditadura militar, temos uma sen­
sível inflexão e um profundo avanço no nosso processo de desenvol­
vimento econômico e, em particular, da industrialização. O Estado
manteve seu papel ativo na regulação da economia, mas propiciando
uma intensa e crescente abertura ao ingresso de capitais estrangeiros,
passando, assim, da criação das condições que buscavam promover um

6. A ideologia do "desenvolvimentismo" foi gerada com o enriquecimento da burgue­


sia industrial, ideologia que identificava os interesses específicos desta classe com os da
sociedade como um todo.
136 M. L. DURIGUETTO

desenvolvimento capitalista relativamente autônomo e nacional (como


nos dois governos Vargas) para um de tipo dependente-associado.
Esse padrão de desenvolvimento dependente-associado e a pre­
sença de um Estado corporativo e centralizador que, juntos, constituí­
ram a nossa modernidade, íoram substantivamente contestados no
período que imediatamente precedeu o golpe de 1964.
O campo democrático e popular, sustentado na emersão de am­
plas camadas de trabalhadores urbanos e rurais sob a bandeira das
reformas de base, colocava em questão aqueles dois traços que caracte­
rizam a nossa formação social: o capitalismo sem reformas e a exclusão
das massas dos níveis de decisão. Segundo Netto (1991: 23), se as ações
desse campo democrático não colocavam em xeque, imediatamente,
a ordem burguesa, as requisições contra a exploração imperialis­
ta e latifundista, acrescidas das reivindicações de participação cívico-
política ampliada, apontavam para uma ampla reestruturação do pa­
drão de desenvolvimento econômico e uma profunda democratiza­
ção da sociedade e do Estado Nessa direção, continuando com
as elaborações de Netto, encontramos contribuições que reforçam a
lucidez na interpretação do cenário das lutas sociais:

[...] a possibilidade concreta de o processo das lutas sociais alçar-se


a um patamar tal que, por força da nova dinâmica social e política
desencadeada, um 'novo bloco de forças político-sociais' poderia
engendrar-se e soldar-se, assumindo e redimensionando o Estado
na construção de uma 'nova hegemonia' e na implementação de
políticas democráticas e populares nos planos econômico e social.
(Netto, 1991: 23)

A autocracia burguesa, na expressão de Florestan, instalada com


o golpe de 64, resultou na derrota dessa alternativa de desenvolvi­
mento econômico-social e político, reproduzindo e readequando aque­
le padrão de desenvolvimento econômico que vinha se efetivando às
novas condições internas e externas. Esse resultado contribuiu para a
afirmação de uma nova integração, mais dependente, aos interesses
imperialistas,7 bem como na implementação de ações sócio-políticas

7. As balizas desse modelo de desenvolvimento econômico-social adotado no Brasil


pelos governos militares, conduzidas segundo os interesses do grande capital monopolista,
reforçaram o desenvolvimento dependente e associado e a integração subordinada do
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 137

antidemocráticas, que implicaram em reverter o processo de democra­


tização que estava em curso antes de 1964. Com esse redirecionamento,
os sujeitos e organizações políticas comprometidas com projetos na-
cional-populares e democráticos foram privados de qualquer meca­
nismo de mobilização, organização e representação. (Netto, 1991: 17)
A legitimidade da implantação desse modelo de desenvolvimento
econômico, social e político não se radicou nos mecanismos da repre­
sentação e da expressão política dos interesses sociais, mas é desloca­
da para o plano da "eficácia", do "crescimento", do "milagre econô­
mico" promovidos pelo regime.8
É com a crise do "milagre econômico", nos primeiros anos da
década de 1970, que se "[...] inscrevem as determinações que, pela
mediação da resistência democrática e pela ação do movimento po­
pular [...]", desembocarão na crise do regime. É essa mediação que
confere ao processo eleitoral de 1974 um caráter "plebiscitário" em
relação ao regime,9 forçando seus mentores a criar estratégias de aber­

Brasil à ordem capitalista internacional. Desse modo, a reprodução ampliada do desenvol­


vimento dependente e associado veio consolidar o processo de concentração e de centrali­
zação do capital, que vinha se efetivando nas mãos dos grandes grupos monopolistas, ins­
taurando uma estrutura econômico-social marcada pela "[...] internalização e a territoriali-
zação do imperialismo; uma concentração tal da propriedade e da renda que engendrou
uma oligarquia financeira; um padrão de industrialização na retaguarda tecnológica e
vocacionado para fomentar e atender demandas enormemente elitizadas no mercado inter­
no e direcionado desde e para o exterior; a constituição de uma estrutura de classes forte­
mente polarizada, apesar de muito complexa; um processo de pauperização relativa prati­
camente sem precedentes [...]; a acentuação vigorosa da concentração geopolítica das rique­
zas sociais, aprofundando brutais desigualdades regionais [...]" (Netto, 1991:32). Indicado­
res quantitativos das transformações econômicas, sociais e políticas operadas na realidade
brasileira sob a ditadura, encontram-se em Sorj, B. e Tavares de Almeida (1984).
8. Os anos do "milagre econômico" (1968-1973) marcaram um período de enorme ex­
pansão do capitalismo brasileiro. O Brasil havia escolhido, nesse período, implementar uma
estratégia de crescimento baseada no endividamento externo, contraído junto ao sistema
financeiro privado internacional. A crise do "milagre" — expressão particular de um movi­
mento mais geral de recessão do capitalismo internacional — foi enfrentada pelo regime com
a busca de condições que possibilitassem a manutenção do ritmo de crescimento que vinha
alcançando. Para fazê-lo, aumentou o endividamento externo, contraindo empréstimos com
juros flutuantes — isto é, que variam conforme a alteração no mercado internacional. Com a
alta violenta da taxa internacional de juros em 1979 estavam criados os condicionantes econô­
micos que terminariam por fazer da próxima década uma "década perdida". (Sader, 1990)
9. Nessas eleições a oposição obteve seu primeiro sucesso eleitoral, conseguindo, nas
eleições legislativas, mais votos, em termos absolutos, que o partido do governo.
138 M. L. DURIGUETTO

tura "lenta e gradual" e, no final da década, um "projeto de auto-re-


forma", iniciativas que visavam, no feeu conjunto,

[...] à recomposição de um bloco sócio-político para assegurar a ins­


titucionalização duradoura do sistema de relações econômico-so-
ciais e políticas estruturado a serviço dos monopólios Seu obje­
tivo axial, assentado numa "iniciativa da liberalização controlada e
limitada", consistia em "instaurar no país a superestrutura política
que considera adequada: uma combinação estável de formas parla­
mentares limitadas com mecanismos decisórios ditatoriais". (Netto:
1991: 41)

Ou seja, uma tentativa prolongada e gradual da institucionaliza­


ção da vida política sob controle do regime militar. O objetivo era atin­
gir a "normalização institucional", que significava liberalizar o regime
não para superar a ordem autoritária, mas para institucionalizá-la.101
Esse projeto, no entanto, encontra seus marcos obstaculizantes
no processo de acúmulo de forças da resistência democrática e — fun­
damental e paradoxalmente — no próprio processo de desenvolvi­
mento capitalista. A acelerada modernização capitalista do período
ditatorial transformou o Brasil num país urbano-industrial complexo
e diferenciado, o que criou os pressupostos objetivos para a promoção
da dinamização da organização de interesses em uma numerosa e di­
versificada vida associativa. O mais representativo exemplo dessa pro­
gressiva "movimentação do social" está na reinserção da classe ope­
rária na cena política e na ação do movimento popular. É esse fato
novo que obriga a autocracia burguesa a combinar medidas repressi­
vas com concessões e atos de negociação, culminando, assim, na sua
crise. (Netto, 1991: 42-43)
Evidencia-se que a nossa chamada "transição democrática"11 foi,
assim, fruto da combinação de pressões dos de "baixo" e de opera­
ções transformistas "pelo alto".

10. O caminho é um lento, gradual e arbitrário processo de democratização no país,


baseado em um calendário formulado pelo governo, envolvendo eleições, habeas-corpus, fim
da censura prévia, anistia, eleições para prefeitos e governadores. A ampliação, por exem­
plo, dos direitos eleitorais, ocorreu de forma descontínua, limitada para que as mudanças
não escapassem do controle dos dirigentes (cf. Velasco, 1984).
11. Adotamos a explicação sobre o período de transição democrática definido por Sader
(1990: 8), como "[...] ao processo de saída do regime ditatorial para um regime de direito,
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 139

O projeto e o processo de abertura traziam e expressavam lógi­


cas distintas e contraditórias. O primeiro, orientado pelo seu cará­
ter defensivo, inibidor; o segundo, ofensivo, emergente. No limite,
a progressão continuada dos dois movimentos — do projeto e do
processo — apontava para a negação da concepção de auto-refor-
ma embutida no projeto, com a sua superação pelo processo de aber­
tura. Pois o triunfo da auto-reforma dependia do controle e da admi­
nistração política sobre as forças políticas e sociais que sustenta­
vam o processo de abertura. (Vianna, 1986: 227)

Nessa direção, afirma Nogueira (1998: 110):

A transição seria sempre marcada por uma pressão democrática que


crescia sem conseguir se completar; sua lógica foi nitidamente
ciclotímica e jamais deixou de estar determinada pela tensão entre
um excludente projeto oficial de auto-reforma e um processo políti­
co orientado em sentido popular-democrático.

Essa tensão entre projeto e processo pode ser materializada nas


diferentes concepções teóricas acerca das temáticas da democracia e da
sociedade civil, que passaram a tornar-se palavras-chave, especialmen­
te após o sucesso eleitoral do MDB em 1974. Trataremos, a seguir, de
explicitar os entendimentos dessas temáticas pelos defensores do pro­
jeto e pelas elaborações teóricas de intelectuais, que tiveram um peso
ponderável na oposição, mas cuja programática foi a de propor o de­
senvolvimento de uma sociedade civil cujo horizonte máximo seria
controlar o Estado, obviamente, dentro da ordem capitalista.

3.2. Transição política: contribuição democrática?

Na nossa transição política, a concepção de democracia que pre­


valeceu, e que foi a hegemônica, foi a de uma transição democrática a
ser construída "pelo alto", ou seja, um projeto liberal-conservador, que
não nega a legitimidade da demanda em favor de um "Estado de di­

baseado na institucionalidade jurídica e no sistema parlamentar". Essa transição, para o


autor, está inserida no processo iniciado com o golpe militar de 1964, já que ela significa a
passagem do regime instalado por aquele movimento para outro, que se pretendia de "cará­
ter democrático".
140 M. L DURIGUETTO

reito", ou seja, o "restabelecimento do império da lei", mas que quer


concentrar nas mãos dos "de cima" o controle dos "programas de aber­
tura". A reivindicação do "Estado de direito" era acompanhada pela
reivindicação de uma "democracia sem conflitos" e do restabeleci­
mento do Estado como órgão político capaz de assegurar a coesão da
sociedade e a ordem política. Incluir-se-ia aqui o projeto de "distensão
lenta, gradual e segura" de Golbery e Geisel. (cf. Cardoso, 1985; Weffort,
1985; Coutinho, 1991)
Uma postura liberal-democrática também pode ser visualizada nas
análises que sublinharam que a democracia política — nos seus me­
canismos representativos e competitivo-partidários e de delegação de
poderes — necessitava ser restabelecida. Ou seja, a defesa da demo­
cracia, ou a sua justificação, restringe-se à sua dimensão enquanto
regime político. Apoiamo-nos em Fontes (1993: 7) para destacarmos
que a defesa da retomada dos procedimentos democráticos de resolu­
ção dos conflitos sociais levou alguns intelectuais brasileiros a assina­
lar, para os militares, as vantagens da democracia para o próprio siste­
ma. Os dois textos fundadores dessa defesa foram a conferência reali­
zada, no Senado, por Wanderley Guilherme dos Santos e o artigo de
Fernando Henrique Cardoso intitulado "A Questão da Democracia"
(1975).
O primeiro indicava que a estratégia política a ser utilizada para
a liberalização do regime deveria caracterizar-se por uma "descom-
pressão gradual", ou seja, era^preciso evitar que as reformas no regi­
me fossem operacionalizadas por modelos globais, deveríam ao con­
trário, ser efetivadas de forma fragmentada e parcelar. Nenhuma área
deveria ser liberada sem que antes o poder tivesse sido provido de
meios para exercer coação específica sobre possíveis abusos e disse­
minação da confiança e da legitimidade das ações políticas pela per­
suasão, que é obtida por decisões, discussões e escolhas feitas por ato­
res relevantes. A liberalização democrática, entendida enquanto "es­
tabilidade institucional", seria, assim, comandada pelo "alto", feita e
controlada pelo Estado.
Segundo as formulações de Cardoso, o regime político implanta­
do em 1964 teria concentrado poderes políticos e econômicos nas mãos
de técnicos, que se teriam transformado em uma "burguesia de Esta­
do". A base da formação dessa "burguesia de Estado" adviría da arti­
culação de interesses entre os setores burocráticos das empresas esta­
SOCIEOADE CIVIL E DEMOCRACIA Hi

tais com setores do capital monopolista nacional e estrangeiro, resul­


tando na constituição de um novo segmento das classes dominantes
formado pelos altos executivos dessas empresas estatais, que busca­
vam disputar espaços de poder político e econômico com o segmento
burguês privado. Estes espaços seriam conquistados, no entendimen­
to de Cardoso, através do contínuo e crescente expansionismo estatal,
o qual, para o autor, se expressaria, politicamente, no "autoritarismo",
em contraste com o "antiestatismo" — politicamente liberal — defen­
dido pelos setores privados. Nesse sentido, o sistema político brasilei­
ro podería ser representado pela imagem de "anéis" que se cruzariam
entre as estruturas burocráticas pública e privada. Ou seja, os interes­
ses de setores da sociedade civil expressavam-se no Estado pela "me­
diação das organizações burocráticas".12
É com a identificação da formação de uma "burguesia de Esta­
do" como base social do "autoritarismo" que Cardoso estabelece a
relação entre democracia e capitalismo. Para o autor, o grau de complexi­
dade do desenvolvimento econômico atingido no país necessitava,
para sua ainda maior e contínua expansão, do restabelecimento da
democracia, entendida por ele como o restabelecimento do Estado de
direito e seu funcionamento conforme os cânones da divisão dos pode­
res, como abertura de espaços de organização e exposição dos proble­
mas dos grupos sociais e como liberdade de ação das leis do mercado.
Mas, sobretudo, a democracia seria o regime mais adequado à
expansão do capitalismo por facilitar os fluxos de informação para o
mercado e por possibilitar, através da organização e explicitação de
interesses, a contínua formação de elites capazes de assumir a lideran­
ça política. Nesse sentido, a democracia derivaria da generalização das
relações capitalistas e das necessidades de expansão do mercado, cons­
trangidas por formas políticas enrijecidas. (Fontes, 1996: 5-10)

12. Uma correta crítica dessa visão "maniqueísta" da intervenção estatal na economia
oferecida por Cardoso é desenvolvida por Coutinho. Para o autor, o aumento da interven­
ção do Estado na economia não pode ser compreendido como resultante de uma política
fundada nos interesses de uma fração de classe, tal como defende Cardoso, mas decorre do
ingresso do Brasil na etapa do capitalismo monopolista de Estado. A passagem para essa nova
etapa do capitalismo depende da integração desse setor estatal com o setor monopolista
privado, que se efetiva em dois níveis: o setor econômico do Estado deve se articular com os
monopólios privados para a ampliação da taxa de lucro e de acumulação monopolista; o
capital monopolista deve assumir uma função hegemônica no bloco de poder que controla
o Estado. (Coutinho, 1980: 5-135)
Ii,2 M. L. DURICUETTO

Nessa direção, a sociedade civil é interpretada como o espaço de liberda­


de sócio-organizativa dos múltiplos interesses existentes na sociedade, espa­
ço em que estariam assentadas as possibilidades do exercício do controle sobre
as decisões estatais e suas políticas públicas (Silva, 1997: 47). Essa aposta
na viabilidade sócio-política da sociedade civil na ação de colocar li­
mites ao poder estatal tem, como parâmetro, uma crítica à histórica
vigência, na tradição brasileira, de uma concepção de valorização do
Estado e de uma correspondente desconfiança em relação à sociedade
em termos da sua incapacidade de efetuar ações e movimentos dentro
da "ordem" e do "progresso".
Dessa forma, em contraposição a uma ordem social controlada
pelo "alto", tem-se a defesa de uma ordem social "pluralista", funda­
da na pressão dos interesses organizados de grupos ou classes sociais
mediados pela intervenção de partidos políticos. É no desenvolvimento
dessa dinâmica que estaria assentada a perspectiva das relações entre
sociedade civil, Estado e democracia.
Importa, aqui, destacar que essa perspectiva de democracia, origi­
nária da ação da sociedade civil pluralisticamente organizada, restrin­
gia-se à pressão pela incorporação de suas demandas no aparato esta­
tal. A sociedade civil teria a sua centralidade política em tomo da rei­
vindicação feita ao Estado, colocando "concretamente alternativas".13
Ou seja, o que se propunha era que as ações políticas das organi­
zações da sociedade civil— na sua indiferencialidade — deviam emer­
gir a partir dos problemas concretos da população e deviam se nortear
pela reivindicação de suas soluções. Nessa perspectiva teórica e práti-
co-política, o máximo que se propunha para as organizações da socie­
dade civil era a defesa do estabelecimento de canais de negociação com o
Estado e não uma luta contra o Estado, mesmo que estivesse presente uma
forma extremamente centralizadora, autoritária e excludente.
Nessa direção, a perspectiva de democracia defendida por Car­
doso limitara-se ao campo democrático-liberal, ou seja, sua atenção
concentra-se na possibilidade de institucionalização de um sistema
político que viabilizasse a organização dos interesses sociais na socie­

13. "O importante [...] é pensar menos quais são as políticas adequadas para o Estado,
e procurar definir os objetivos e as políticas para cada agência social, para cada grupo, para
cada problema [...] e qual o limite de solução que o regime e a ordem dada impõem a eles;
como, portanto, reivindicar (Cardoso apud Silva, 1997:48)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA ■ A3

dade civil e da abertura de canais para sua expressão e incorporação


no aparato estatal.14A luta contra a ditadura militar resumia-se à luta
da sociedade civil contra uma burocracia autoritária, reinante no Es­
tado. Sociedade civil é concebida como a esfera em que se teria que ter
o máximo de liberdade de ação política e econômica: entenda-se li­
berdade de mercado. Mercado livre e democracia política, eis o hori­
zonte máximo vislumbrado para a nossa transição e consolidação
democrática.
Essa perspectiva acerca da defesa da democracia, enquanto regi­
me político que possibilitaria o restabelecimento de uma relação mais
equilibrada entre Estado e a rede pluralista das organizações da socie­
dade civil, vai na direção de tornar pragmático e restritivo o pensa­
mento político oposicionista acerca da "questão democrática". Fun­
damentalmente, esse caráter restritivo da defesa da democracia rom­
pe com qualquer perspectiva revolucionária e essa conceituação de
sociedade civil — como esfera organizativa dos interesses plurais —
implica a exclusão de seu caráter classista. Dessa forma, a luta de cias-
ses é excluída de dentro da conceituação de sociedade civil
Nesse sentido, no dizer de Fontes (1993: 8),

[...] a democracia reaparecería no cenário intelectual com algumas


características paradoxais. Ela seria o regime mais adequado ao ca­
pitalismo; ela seria capaz de assegurar a melhor forma de domina­
ção, pois dispensava os custos adicionais incorridos pela ditadura;
ela poderia ser instaurada pelo grupo já no poder. Em termos de

14. A defesa da centralidade do restabelecimento da democracia política enquanto re­


gime que possibilitaria a reabertura dos canais de negociação entre Estado e sociedade civil
é confirmada pela maneira com que Cardoso secundariza e desprivilegia, em suas análises,
a importância do papel dos movimentos sociais — ou seja, as ações e organizações das classes
subalternas da sociedade civil — na construção e alargamento da democracia política. Em suas
palavras: ao invés de denunciar e somar força no plano político, [os movimentos so­
ciais] recuam para o plano da luta imediata no círculo do cotidiano e abominam, quando
não vituperam, a política (e os políticos) [...]. [Suas ações apontam para] o reconhecimento
tácito de que no aqui e no agora a fragmentação de interesses e de propósitos é de tal monta
que tudo que não seja imediato e imediatamente popular aparece como abstrato ou mistifi-
cação". (Cardoso apud Silva, 1997:58) Embora Cardoso parta de uma percepção correta acerca
do problemático caráter "autonomista" e basista na forma de considerar a política por esses
movimentos (questão que tratarei adiante), apóia-se nisso como meio de se recusar a pensar
a questão democrática com base nas organizações populares.
l KK M. L. DURICUETTO

uma reflexão temporal, essa análise do processo político abria uma


perspectiva de continuidade: a proposição de um retorno à demo­
cracia excluía propostas de ruptura ou de modificações bruscas.

Podemos encontrar nas análises de Lamounier (1995:20-21) uma


adesão explícita a essa concepção liberal de democracia. O autor de­
fende que os elementos que devem balizar a nossa "consolidação de­
mocrática" são a "[...] institucionalização do subsistema representati­
vo, isto é, dos mecanismos referentes à competição eleitoral", e a "des-
concentração sócio-econômica", ou seja, o " [...] acesso de massas an­
tes excluídas a bens de consumo e a serviços — que Marshall subli­
nhou em seu conceito de 'cidadania social'". A redução das desigual­
dades sociais é defendida por reduzir a incidência de conflitos que
venham a exigir repressão, permitindo sua canalização para a arena
política, e por aumentar, entre as pessoas que hajam alcançado razoá­
veis índices de escolarização, a predisposição a aceitar e a valorizar o
"jogo" democrático como um fim em si mesmo.
Lamounier aponta, como aspecto decisivo para o desenvolvimen­
to e consolidação da democracia, a presença crescente da complexida­
de da estrutura sócio-econômica (mercado) e do conjunto de organi­
zações da sociedade civil. Para o autor,"[...] a grande indagação histó­
rica sobre se a democracia seria possível sem o correspondente desen­
volvimento de uma economia de mercado foi respondida de maneira
negativa pela experiência deste século". E conclui que é com e na "[...]
complexidade da estrutura sócio-econômica que reside a resistência
das democracias representativas ao arbítrio e, ao mesmo tempo, sua
capacidade de evitar o adensamento dos conflitos sob a forma de an­
tagonismos frontais e crises suscetíveis de provocar a ruptura da or­
dem institucional". Nessa direção, a existência de uma correlação po­
sitiva entre a diversidade das elites e o fortalecimento da democracia
é por ele defendida para a viabilidade da definição schumpeteriana da
democracia como competição entre forças organizadas pelo assenti­
mento popular. (Lamounier, 1995: 20-22 — grifo meu)
O autor evidencia a existência de uma tensão inevitável entre os
conceitos de democracia e equidade social: "Não há dúvida de que a
democracia — quero dizer, o subsistema político-institucional a que
denomino democracia — opera sob condições extremamente adver­
sas em sociedades marcadas por altos índices de pobreza e forte desi­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA >AS

gualdade de renda" (1995: 104). Mas argumenta que as tentativas de


superar essa tensão por meio dos conceitos de 'democracia social' ou
'substantiva' serviram apenas para ampliar de maneira insustentável
o alcance do conceito de democracia: "[...] imaginando enriquecê-lo,
o que fazem os que assim o utilizam é minar a idéia, esta sim funda­
mental, de que eleições livres, liberdade de imprensa e liberdades in­
dividuais e civis, são a condição necessária e suficiente da legitimida­
de do poder em regimes democráticos" (1995:104).
Democracia, na acepção de Lamounier, é, assim, um subsistema
político, e não um padrão global de organização social. Para o autor,
na relação entre democracia e eqüidade, a suspeita de um "politicismo"
ou "institucionalismo" que se costuma ver na conceituação da demo­
cracia como um subsistema político é diluída ao se apontar que o for­
talecimento do subsistema representativo sem avanços no sentido da
desconcentração econômica elitiza em excesso a agenda da competi­
ção político-eleitoral, tomando a democracia anêmica e instável. Des­
se modo, a "desconcentração sócio-econômica" é defendida por ele
não pelos seus rebatimentos na melhoria das condições de vida das
classes subalternas, mas pelos seus desdobramentos positivos no or­
denamento da competição político-eleitoral, que se desenvolverá so­
bre uma sociedade "sem conflitos".
Essas duas correntes teóricas expostas (a liberal-conservadora e
a liberal-democrática), desenvolvidas a partir da tensão entre processo
e projeto, é que vão balizar a nossa transição política no plano prático-
político. A frente opositora que terminou sendo vitoriosa baseou sua
ação política em um "programa democratizante no plano político-ins-
titucional mas conservador no plano do Estado" e por uma concepção
estreita dos problemas que afetavam o Brasil — descaracterização do
regime militar enquanto hegemonizado pelos interesses dos setores
hegemônicos do grande capital monopolista e financeiro e da crise
social em que repousou a expansão econômica.15

15. Ou seja, embora tenha-se restituído o aparato político-institucional que caracteriza


a constituição de um Estado de Direito, do ponto de vista macroeconômico, o "modelo eco­
nômico da ditadura" (benefício ao grande capital) permanece. Assim é importante aqui re­
lembrar que regime político não se identifica sumariamente com o Estado: "o regime políti­
co é a forma de manifestação do Estado". (Mathias e Salama apud Netto, 1991:33) Em Petras,
a distinção entre Estado e regime político é assim definida: o primeiro refere-se a institui­
ções de certa permanência estrutural, enquanto o segundo caracteriza o governo, sendo a
u.6 M. I. DURIGUETTO

Apesar da heterogeneidade ideológica dos setores que compu­


nham a chamada "Aliança Democrática", sobressaiam, como pontos
consensuais para a agenda política da transição para a democracia, a
reinstitucionalização democrática, o crescimento econômico, o con­
trole da inflação e o chamado resgate da "dívida social" — tematizada
nos termos de se enfrentar o problema da pobreza e da desigualdade
social, resultantes do padrão de relação Estado — sociedade desen­
volvido sob o autoritarismo.16
Entretanto, o país ingressava na década de 1980 e no seu proces­
so de "transição" democrática com uma expansão fantástica de seu
endividamento externo provocado pela elevação das taxas de juros
no mercado internacional, o que acabou por caracterizar esta década
como uma "década perdida" do ponto de vista econômico.
O impacto da política econômica adotado pelos militares é par­
ticularmente sentido na abertura da década em tela com a chegada da
crise da dívida, em virtude de sua multiplicação provocada pela ele­
vação das taxas de juros e, também, da dívida interna, pelo déficit do
orçamento de governo, sobre o qual pesava também a própria dívida
externa.17 O aumento do endividamento externo durante os governos
militares tomou o país mais vulnerável às injunções do sistema inter­

gestão e/ou administração de um determinado período. Ou seja, "[...] o Estado fornece os


parâmetros — a estrutura a longo prazo, a grande escala — nos quais operam, como variá­
veis, as políticas e estruturas do Regime Dessa forma, o regime político "[...] insere-se
dentro dos parâmetros do Estado: seu poder e suas instituições operam dentro desse marco
de classe preestabelecido". (Petras apud Montano, 2002: 137-138)
16. As políticas sociais revestiram-se, aqui, de um caráter salvacionista — expresso no
slogan adotado pelo primeiro governo da Nova República, o "tudo pelo social". O diagnós­
tico era de que a "dívida social" do país resultava do padrão vigente — "burocrático-auto-
ritário" — de políticas públicas, caracterizado por burocratização excessiva, centralização
decisória, caráter privatista — excludente e permeabilidade aos interesses empresariais
(cf. Melo, 1993).
17. De acordo com Soares (2000: 35-36), "em uma perspectiva histórico-estrutural, a
expressão interna da crise dos anos 80 no Brasil se dá no chamado esgotamento do Estado
desenvolvimentista, cujo padrão se baseava no tripé Estado — capital estrangeiro — capital
nacional [...]. O principal elemento dessa [...] [crise] é a crise financeira do Estado, decorren­
te de um processo crescente de endividamento externo e interno. Esse processo leva à perda
do controle da moeda e de suas finanças por parte do Estado, debilitando também sua ação
estruturante, não apenas pela forte redução do gasto e dos investimentos públicos, mas tam­
bém pela completa ausência de políticas de desenvolvimento".
SOCIEDADE C lV IIE DEMOCRACIA H7

nacional e à imposição das políticas de ajuste.'8 No final de 1982 te­


mos a montagem de um pacote emergencial de assistência financeira
ao país, envolvendo empréstimos provenientes do FMI e dos maiores
bancos privados norte-americanos. A partir daí, a política econômica
brasileira passa a depender diretamente do endosso moral do FMI, ao
qual se apresentou, em fevereiro de 1983, um programa de estabilida­
de. O Brasil acabou não conseguindo cumprir as primeiras metas de
desempenho econômico acertadas com o Fundo, o que redundou na
não-liberação das parcelas de crédito. Em conseqüência, os bancos
também interromperam a liberação dos recursos. Iniciou-se, então, um
período de desgastantes negociações entre autoridades econômicas
brasileiras, banqueiros internacionais e representantes de agências fi­
nanceiras multilaterais.1819 A redução do gasto público interno imposto
era obviamente inconsistente com o avanço do processo de redemo-
cratização, que aumentava a ressonância das demandas por descom-
pressão salarial e aumento dos gastos governamentais. A segunda
metade da década será especialmente marcada pelo fracasso dos su­
cessivos planos de estabilização e o aprofundamento da crise econô­
mica, desemprego, inflação e desgaste dos salários.

18. Nessa direção, segundo análise de Diniz (2000:70), podemos perceber que a década
de 1980 vai representar um distinto momento no processo de adaptação do país à nova
ordem mundial. Afirma que, nesta década as condições internacionais tomaram-se restriti­
vas; observa-se uma ruptura em relação à década anterior, marcada pela amplitude dos
recursos financeiros e por altos níveis de crescimento, em escala mundial. A crise dos anos
1980 se fez acompanhar de uma inversão dessas tendências, com o declínio das taxas de
crescimento e dos fluxos financeiros, restringindo-se drasticamente a disponibilidade de
recursos sob a forma de empréstimos ou investimentos.
19. Segundo Soares (2000: 23), "[...] o 'receituário' do ajuste imposto pelos organismos
multilaterais de financiamento também sofre mudanças. Na década de 1980, o ajuste da
economia, com 'saneamento' das contas públicas e corte de salários, gastos e investimentos,
era para gerar enormes saldos na balança comercial para o pagamento da dívida externa. Já
na década de 1990 muda a fórmula: mantendo-se o corte nos gastos públicos e salários, em
vez de produzir saldos comerciais a ordem era importar muito (sob o argumento de que
com isso se aumentaria nossa competitividade), passando a pagar o rombo das contas exter­
nas com os crescentes fluxos de capital externo que entravam nos países em busca do lucro
fácil com títulos públicos e privados, fruto das privatizações e da especulação organizadas
e colocadas à disposição pelos Estados Nacionais". No entanto, o Brasil foi, na década de
1980, o país sul-americano a oferecer maior resistência às políticas voltadas para o ajuste
estrutural preconizado pelo receituário neoliberal ascendente na Europa ocidental e nos
Estados Unidos. Tais ajustes ainda não são, aqui, encarados como objeto de uma política
deliberada do governo, e só ganharam densidade na transição dos anos 1990.
146 M. L. DURIGUETTO

A transição política brasileira se realizava, dessa maneira, condi­


cionada por uma forte tutela econômica que limitava os pontos da­
quela agenda, especialmente o do resgate da "dívida social". Assim, a
premência da crise econômica colocou em segundo plano os demais
itens, transformando a agenda da Nova República em uma ficção. O
chamado "resgate da dívida social" perde espaço para a primazia dos
planos de estabilidade econômica e de controle da inflação, persistin­
do a ênfase no primado da racionalidade técnica das políticas e do
estilo tecnocrático de gestão da economia. Reforça-se o binômio mer-
cado-democracia, na suposição de que o primeiro, livre, seria capaz
de gerar riqueza e produzir justiça social. (Diniz, 1997)
Desse modo, a perspectiva de democracia hegemônica na nossa
transição é a de um projeto que se esgota na vigência de mecanismos
político-institucionais que compõem a democracia política e que ape­
nas estão voltados para a criação de melhores condições que assegu­
rem a governabilidade, a eficácia administrativa e a eficiência na apli­
cação de recursos.
As implicações teóricas e político-ideológicas do triunfo de uma
concepção minimalista da democracia, reduzindo-a, tal como propõe
Schumpeter, a uma questão de método, de "engenharia institucional",
implica a suposição de que a efetividade democrática está aprioristi-
camente garantida, independente das suas condições concretas de
existência. Ou seja, essa visão procedimental da democracia implica a
secundarização e, no limite, a ruptura com qualquer associação, arti­
culação, vinculação com os valores, interesses, aspirações e reivindi­
cações advindas da luta dos sujeitos sociais das classes subalternas
presentes na sociedade civil. Ou seja, esse caminho direcionava a nossa
transição para um franco descompasso com as expectativas e demandas
advindas do revigoramento das organizações das classes subalternas na dinâ­
mica da vida social brasileira.
Percebemos que essa análise revela que a nossa "transição para a
democracia" não significou, para além de um projeto que se esgota na
normalização e vigência das instituições que corporificam a democra­
cia política, uma efetiva ampliação e universalização dos direitos so­
ciais de cidadania, tão demandados pelos sujeitos e pelas organiza­
ções das classes subalternas. Com isso, a democracia passa a ser per­
cebida, por esses sujeitos e suas organizações, como meramente
adjetiva, reduzindo-se à defesa da existência das "regras do jogo" de
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 149

padrões de convivência democrática. Isso gera a difusão de uma des­


crença generalizada na ação política e nas instituições20 — especial­
mente nas pertencentes à esfera governamental e ao sistema de repre­
sentação — que se prolongará na década seguinte, (Diniz, 1997:107) e
que acabou por ser funcional às propostas de uma consolidação mais
efetiva dessa democracia minimalista.
O que queremos aqui assinalar é que esse descrédito vem repor
e potencializar aquela tensão entre projeto e processo que tem acompa­
nhado os caminhos tomados pela consolidação democrática no Bra­
sil. E é nos sujeitos, movimentos, organizações e projetos ideopolíti-
cos que compõem o enredo deste processo que agora nos detemos. É
nesse enredo, protagonizado pela "movimentação do social" gestada
pela e na reinserção ativa dos setores populares na sociedade civil no
final dos anos 1970, e revelada de modo mais pleno durante e depois
do processo de transição, que emergiram outros caminhos para o nos­
so processo de democratização. Em outras palavras, o ressurgimento
das organizações, da ação política e das reivindicações das classes
subalternas na sociedade civil vem recolocar em outros termos a cha­
mada questão democrática.

3.3. Movimento do social: para onde e para quê?

Como exposto, a partir da crise do "milagre econômico" brasilei­


ro, especialmente no final da década de 1970, assistimos a uma reati­
vação dos movimentos sociais, de base operária e popular, em múlti­
plas e diferentes formas de organização e de expressão de conteúdos
reivindicativos. Uma pluralidade de movimentos sociais de diversos
matizes multiplicaram-se por todo o país, constituindo uma vasta teia
de organizações que passaram a dinamizar processos de mobilização
de defesa, conquista e ampliação de direitos civis, políticos e sociais
— estes referindo-se ao trabalho, à moradia, saúde, educação etc. — e
também trouxeram para o debate público um leque de temas e ques­
tões relativas à discriminação de gênero, raça e etnia, ecologia e meio
ambiente, violência e direitos humanos. Tais organizações, reivindi­

20. Em pesquisa realizada no início da década de 1990, Santos (1993: 97) evidencia
considerável recusa, pela população, em participar e em acreditar nas instituições políticas,
partidárias e associativas.
150 M. L. DURICUETTO

cações e demandas pela consolidação de novos direitos passam a cons­


tituir o enredo da tão propalada descoberta ou redescoberta da socie­
dade civil, enredo que é enlaçado por uma referência fundamental: a
luta pela cidadania.
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), clubes de mães, pasto­
rais populares das igrejas, movimentos populares reivindicatórios por
serviços de infra-estrutura, creches, saúde e contra a carestia, quebra-
quebras nos trens e ônibus em São Paulo e Rio de Janeiro, movimento
feminista, movimento negro, o "novo sindicalismo" que emerge do
cotidiano dos grupos de oposição sindical, são fortes exemplos dessa
ampla mobilização e organização popular.21 Tais movimentos promo­
veram ações diversas, merecendo destaque as mobilizações promovi­
das pelos metalúrgicos do ABC — que, mesmo constrangidos pela
legislação ditatorial, organizaram greves massivas entre 1978 e 1980,
reivindicando, dentre outras demandas, aumentos salariais e organiza­
ção sindical independente da tutela estatal22 — e, especialmente, o mo­
vimento de massa em favor das "diretas já", a partir de janeiro de 1984.23
É para expressar e revelar esse processo da emergência de movi­
mentos e organizações sócio-políticas dos setores populares, que a
categoria sociedade civil também foi empregada na dinâmica social bra­
sileira a partir da segunda metade da década de 1970. E é a partir da
protagonização dos projetos dos sujeitos que a compõem que a dis­
cussão sobre democracia toma novo rumo, desenvolve-se com novos
conteúdos. Aqui, a questão democrática é deslocada das iniciativas ex­
clusivas dos setores autocrático-burgueses e liberais, sendo pensada,
em conseqüência, em contraposição àqueles dois projetos expostos: o
projeto que intencionava autoreformar o regime ditatorial, por meio
de um lento projeto de liberalização política sob seu controle, em que
a democracia seria o resultado de escolhas políticas realizadas "pelo
alto", e o formulado por intelectuais liberais-democráticos que viam

21. Uma análise de alguns desses movimentos pode ser encontrada em 0'Donnell e
Reis (1988). Especificamente acerca do "novo sindicalismo" consultar Antunes (1988).
22. É preciso destacar que é principalmente a partir do surgimento deste "novo sindi­
calismo" que os "projetos" se convertem num "processo" de democratização.
23. Este movimento se desenvolveu em tomo da votação da emenda Dante de Olivei­
ra, que transformava em diretas as eleições para presidente da República e necessitava da
maioria de 2/3 do Congresso para sua aprovação. A emenda foi votada em abril de 1984 e
não conseguiu essa maioria qualificada.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '5'

na consolidação das liberdades econômicas e políticas a materializa­


ção definitiva da democracia.
Em oposição a essas duas posturas, nesse novo campo teórico e
político-ideológico, a democracia é problematizada e perspectivada a
partir da apreensão da sociedade civil como esfera de vitalização e
renovação da política e como lugar da emergência de iniciativas e
manifestações sociais que lutavam ou se posicionavam contra o regi­
me autoritário. Entretanto, esse denominador teórico e político-ideo­
lógico comum acabou por imprimir uma função mais propriamente
político-estratégica que analítico-teórica ao conceito de sociedade civil
(Costa, 1997:13). E é precisamente a ênfase nessa função político-estra­
tégica da sociedade civil que produzirá, no interior desse campo teóri­
co democrático, uma diferença radical nas acepções do que se entende e se
defende por sociedade civil e, consequentemente, que projeto de democracia
deveria ser construído a partir deste entendimento.
Fundamentalmente, o que queremos enfatizar é que, se na aber­
tura da década de 1980, assistíamos a uma proliferação de diferentes’
ações sócio-políticas coletivas das classes subalternas, também tive­
ram lugar diferentes leituras acerca do significado, papel e potencialidade
destas ações na luta pela democracia.
Tais diferenças serão por nós evidenciadas nas elaborações reali­
zadas, nesse período, por Carlos Nelson Coutinho, Marilena Chaui e
Francisco Weffort.24 Esses autores apresentam, como premissa teórica
comum nas suas análises acerca do processo de transição, a concor­

24. As elaborações de Coutinho e Weffort foram por nós selecionadas por serem eles,
na época, dois dos proponentes mais importantes da temática da democracia na esquerda
intelectual brasileira. Entretanto, a importância das elaborações destes autores em termos
de qualificação, aprofundamento e densidade teórica é radicalmente diferenciada. O livro
de Weffort — Por que Democracia — é fraco nesses adjetivos, embora tenha sido usado como
referência fundamental no debate político e intelectual para se pensar a questão da demo­
cracia naquele período da nossa transição. Quanto a Coutinho, seu texto "A Democracia
como Valor Universal" é um dos mais ricos e expressivos dentro do debate político e intelec­
tual do processo de renovação da esquerda brasileira no que tange à necessidade de uma
reavaliação da "questão democrática" e de uma nova atitude em face do vínculo entre
democracia e socialismo. A justificativa da análise da elaboração de Chaui encontra-se no
fato de ela ser recorrentemente referenciada num conjunto expressivo de produções teóri­
cas que a tomam como ponto de partida para se entender a temática da sociedade civil e
da democracia a partir da mediação dos movimentos sociais na primeira metade da déca­
da de 1980.
15» M. L. DURIGUETTO

dância a respeito do fato de que a democracia política liberal é o ponto


de partida para o processo de democratização. (Figueiredo e Cheibub,
1992) E é justamente o que entendem como sendo esse processo de de­
mocratização que determina diferenças radicais em suas análises. E es­
sas radicais diferenças assentam-se, fundamentalmente, na forma como
conceituam teórica e politicamente a categoria sociedade civil. Ou seja, se
nas formulações desses autores destacam-se avaliações e proposições
que têm, na base material e política da sociedade civil, o requisito para
se pensar a democracia na perspectiva da ultrapassagem de sua no­
ção estrita à igualdade jurídico-formal, é justamente a forma como
conceituam a esfera da sociedade civil que descortinara suas diferen­
tes e antagônicas prospecções acerca do conteúdo da democracia.

3.3.1 A democracia como construção de uma contra-hegemonia

O artigo "Democracia como valor universal" (1979)25 denota a


influência direta que a tradição marxiana e marxista (e, nesta, as for­
mulações teóricas de Gramsci, Togliatti e Ingrao), vem trazendo à pro­
dução de Coutinho, na análise que faz da questão democrática no Bra­
sil. O autor parte de três pressupostos teórico-políticos da democracia
— seu vínculo com o socialismo; sua importância como único cami­
nho para erradicar o caráter autoritário e elitista que assinalou nossa
evolução política, econômita e cultural; seu caráter estratégico indis­
pensável para a criação dos pressupostos necessários para um avanço
do Brasil no rumo do socialismo. (Coutinho, 1980: 21)
Coutinho avalia o quadro sócio-político brasileiro da transição
democrática para ressaltar que a tarefa prioritária do conjunto das for­
ças populares é a "luta pela conquista de um regime de liberdades
político-formais que ponha definitivamente termo ao regime de exce­
ção" (1980: 21) e, com isso, construa a democracia enquanto regime
político que assegure as liberdades fundamentais.
Essa tarefa prioritária justifica-se, para Coutinho, pela necessi­
dade de reverter a histórica tendência de nossas transformações polí­

25. Originalmente publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira, esse texto
foi publicado em seguida no livro A democracia como valor universal, 1980. Citarei o livro por
ser mais acessível.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '53

ticas e econômicas de serem sempre processadas no quadro de uma


"revolução passiva" e de uma "via prussiana", que geraram uma de­
bilidade histórica da institucionalidade democrática em nosso país.
Nessa direção, a construção e consolidação de um regime de demo­
cracia política representaria a superação das nossas tendências elitistas,
particularmente acentuadas no regime autoritário, e aparecería tam­
bém como pressuposto — que deverá ser reposto e conservado e ao
mesmo tempo aprofundado — para um avanço do Brasil no rumo do
socialismo.26 (1980: 34)
Assim, para Coutinho (1980: 21), as tarefas que se colocavam ao
conjunto das forças populares brasileiras não podiam ser identifica­

26. Segundo Coutinho (1980:24), as objetivações que formam a democracia moderna/


tais como "[...] a pluralidade de sujeitos políticos, a autonomia dos movimentos de massa e
dos organismos da sociedade civil em relação ao Estado, a liberdade de organização [...]"
são conquistas democráticas que nasceram tanto com a sociedade burguesa quanto com as
reivindicações e lutas populares pela socialização da participação política. A presença des­
sas liberdades democráticas na dinâmica da vida social"[...] tomam-se valor na medida em
que contribuíram, e continuam a contribuir, para explicitar os componentes essenciais con­
tidos no ser genérico do homem social. E tomam-se valor universal na medida em que são
capazes de promover essa explicitação em formações econômico-sociais diferentes, ou seja,
tanto no capitalismo quanto no socialismo".
O artigo de Coutinho teve uma resposta crítica na análise de Genro Filho (1979:198).
Em linhas gerais, sua análise apresenta uma crítica à programática prático-política defendi­
da por Coutinho e à associação por ele estabelecida entre democracia e socialismo. Segundo
Genro Filho, não se pode limitar as tarefas da luta operária pelos critérios do liberalismo:
Estado de Direito, eleições livres, liberdades sindicais etc. Entretanto, como vimos, Coutinho
não limita a sua visão do processo de transição apenas ao restabelecimento das liberdades
democráticas. Esse constitui, na continuidade do seu pensamento, em pressupostos a partir
dos quais se possa desenvolver a organização política das classes subalternas na direção da
construção de um novo projeto societário. Também, para Genro Filho (1979:200), o modo de
Coutinho conceber a relação entre socialismo e democracia deixou de ser marxista pois "[...]
ao invés de privilegiar a ruptura da democracia burguesa em relação ao socialismo — em
função da mudança radical de seu conteúdo — Coutinho privilegia a continuidade". Entre­
tanto, se há em Coutinho o reconhecimento de que a democracia política constitui uma con­
quista social que transcende os horizontes de classes, essa valorização, no entanto, não con­
siste na instauração abstrata de um novo valor, mas se assenta na sua funcionalidade no
interior do processo revolucionário. Para Coutinho (1980: 25), mesmo do ponto de vista
político-institucional, a democracia socialista não pode ser vista como uma simples conti­
nuação da democracia liberal. Impulsionando as profundas transformações econômicas o
sociais (gradativa abolição da propriedade privada dos meios de produção e da diferencia­
ção em classes), o processo de democratização poderá e deverá alcançar novos patamares
no socialismo.
is * M. I. DURIGUETTO

das com a luta imediata pelo socialismo,27 mas sim "com um combate
árduo e provavelmente longo pela criação dos pressupostos políticos,
econômicos e ideológicos que tornarão possível o estabelecimento e a
consolidação do socialismo em nosso país".28
Aponta, como um dos pressupostos, a criação de novos institu­
tos políticos democráticos de representação direta dos interesses das
classes subalternas e sua permanente articulação com alguns institu­
tos já presentes, como os parlamentos (1980: 25).

27. Ao afirmar o vínculo indissolúvel entre democracia e socialismo, Coutinho (1980:


24-25) demarca uma posição de crítica tanto à chamada "cultura golpista" quanto à deno­
minada "visão taticista ou instrumental" da democracia presentes no debate político é inte­
lectual da esquerda brasileira da época. Para o autor, na etapa em que se encontrava a nossa
"transição democrática", a luta pela democracia política não podia ser desprezada pelos
sujeitos sociais e pelas forças políticas de esquerda por concebê-la a partir de uma visão
"instrumental", ou seja, a partir de uma falsa e mecânica identificação entre democracia polí­
tica e dominação burguesa. Por outro lado, afirma que o ingresso do Brasil na etapa do capita­
lismo monopolista de Estado provocou uma maior complexificação da nossa estrutura econô­
mica e sócio-política e a conseqüente emergência de novas organizações e sujeitos políticos,
"[...] impondo o abandono do 'golpismo', com a conseqüente compreensão do valor estraté­
gico da democracia política na luta pela transformação socialista do Brasil". (Coutinho, 1980:
15) E completa: "Esse caminho deverá ser democrático no preciso sentido de que somente
com a conquista, conservação e aprofundamento da democracia política será possível agre­
gar o bloco social necessário para empreender — sem o risco de retrocessos autoritários —
as transformações estruturais que levarão progressivamente o Brasil ao socialismo" (1980:
15). Nessa direção, afirma: "[...] a democracia política não é um simples princípio tático: é
um valor estratégico permanente, na medida em que é condição tanto para a conquista quanto
para a consolidação e aprofundamento dessa nova sociedade" (1980: 24-25). Um entendi­
mento similar dessa compreensão da relação entre democracia e socialismo formulada por
Coutinho pode ser evidenciado na formulação de Netto (1990: 82-95) ao operar a distinção
— recuperada de Cerroni — entre "democracia-método" e "democracia-condição social": a
primeira, sendo o conjunto de mecanismos institucionais que permitem as liberdades indi­
viduais, sendo, nos seus quadros, (ou seja, da democracia política) que se toma possível a
organização político-social das classes e grupos sociais interessados na liquidação da estru­
tura política capitalista; a segunda é a democracia entendida como um ordenamento socie­
tário que possibilita a igualdade de todos de intervir efetivamente nas decisões que afetam
a gestão da vida social. É a conquista da "democracia-condição social" que organiza um
ordenamento sócio-político que inaugura um novo projeto societário. A democracia-méto­
do surge, assim, como um pressuposto que viabiliza a organização do proletariado para a
tomada do poder, a partir do qual a classe operária pode transformar a estrutura econômica
de forma a criar as condições da democracia condição-social.
28. Consolidação que requer, tal como afirmara Marx, "a supressão da apropriação
privada dos frutos do trabalho coletivo e dos mecanismos de dominação política da socie­
dade". (Coutinho, 1980: 29)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 155

Ampliando essas reflexões, Coutinho trata da criação desses no­


vos institutos de democracia direta como possibilidade concreta aber­
ta pela emergência e ampliação das organizações dos vários sujeitos
coletivos no cenário sócio-político nacional nos finais dos anos 1970.
O autor concebe esses "novos institutos democráticos" como fazendo
parte do que Gramsci chamou de sociedade civil, e é por meio de uma
articulação entre esses organismos populares de democracia de base
e os "tradicionais" de representação indireta (como os parlamentos),
que se possibilitará que esses últimos adquiram uma nova função
— a de se tornarem o local de uma síntese política dos vários sujei­
tos coletivos, mediação indispensável para superar a mera defesa
corporativa de seus interesses grupais e particularistas. Para a efeti­
vação desse processo de unificação, insiste também, seguindo a pis­
ta de Ingrao, no papel decisivo de mediação política e de formulação
de uma "síntese geral" a ser desempenhado pelos partidos demo­
cráticos de massa (em particular os da classe operária), "[...] cujos
programas de renovação social só se tornarão hegemônicos se assu­
mirem todas as reivindicações democráticas dos movimentos especí­
ficos e encaminharem corretamente — a nível global — sua solução
política". (1980: 3Ó)29
É essa permanente articulação entre democracia representativa e
democracia de base direta (articulação que concretiza o conceito
togliattiano de "democracia progressiva") que possibilitaria, segundo
Coutinho, a projeção permanente das classes subalternas no Estado,
transformando-o. É este processo que permitiría aprofundar a demo­
cracia política no sentido da construção de uma democracia de massas,
realização mais ampla do valor universal30 da democracia. Nas suas pala­
vras (1980: 29):

29. Coutinho ressalta, assim, como um passo decisivo no sentido de criar os pressupos­
tos para o aprofundamento e generalização do processo de renovação democrática no país,
a necessidade de "[...] ampliar a organização dos vários sujeitos coletivos, e, ao mesmo tem­
po, respeitadas sua autonomia e diversidade, lutar pela unificação dos mesmos num pode­
roso bloco democrático e nacional-popular. [...] [É] este processo que possibilita abrir cami­
nho para a transição ao socialismo" (1980: 36).
30. Para Coutinho (1980: 29), é por meio dessas objetivações institucionais — articula­
ção entre os organismos populares de democracia de base e os "tradicionais" de representa­
ção indireta (como os parlamentos), que permitem a mais ampla realização do valor univer­
sal da democracia.
156 M. L. DURIGUETTO

É minha convicção que a democracia de massas que deve servir de


superestrutura à transição para — e à construção de — uma socie­
dade socialista, tem de surgir dessa articulação entre as formas de
representação tradicionais e os organismos de democracia direta.
Essa articulação deve promover a síntese dos vários sujeitos políti­
cos empenhados na transformação social, uma síntese que — res­
peitada a autonomia e os pluralismos dos movimentos de base —
seja a portadora da hegemonia dos trabalhadores, cujo núcleo é a
classe operária, sobre o governo da sociedade como um todo.31

Nessa direção, Coutinho delimita o ponto de discriminação en­


tre a concepção marxista e a concepção liberal da democracia. Esta
última reconhece e reforça a pluralidade de interesses existentes na
sociedade, a atomização dos sujeitos individuais e a centralidade do
mercado na regulação dos seus interesses. É só essa livre regulação
que permite concretizar a democracia. Já na concepção marxista, par­
ticularmente gramsciana, pensar a democracia é pensar a construção
de uma nova hegemonia, de uma unidade política, um consenso ma­
joritário — tal como Gramsci chamou de vontade coletiva — a partir da
pluralidade dos interesses e das organizações dos sujeitos populares:
"[...] a democracia de massas funda sua especificidade na articulação
do pluralismo com a hegemonia, na luta pela unidade na diversidade dos
sujeitos políticos coletivos autônomos". (Coutinho, 1980: 31) (grifos
do autor)
Nessa direção, consolidar e ampliar o processo de renovação
democrática a partir das organizações populares impõe às forças pro­
gressistas do Brasil, "[...] enquanto método de sua batalha política —
a opção pelo que Gramsci chamou de 'guerra de posição'", ou seja,
"progressiva obtenção de posições no seio da sociedade civil como
base para novos avanços, que gradativamente tomarão realista a ques­
tão da conquista democrática do poder de Estado pelas classes traba­
lhadoras [...]". (1980: 37)

31. Ou seja, "[...] a democracia socialista é, assim, uma democracia pluralista de mas­
sas; mas um democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos traba­
lhadores, representados através da pluralidade de seus organismos de massa e sob a direção
política do(s) partido(s) de vanguarda da classe operária [...]". (Coutinho, 1980: 31) (grifo do
autor)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 157

Como exposto, os pressupostos teóricos e ideopolíticos sobre os


quais se assentam as formulações de Coutinho acerca das categorias
sociedade civil e democracia, para pensar os desafios da nossa transi­
ção democrática, estão radicados nas contribuições de Gramsci, Ingrao
e Togliatti. Particularmente em Gramsci, a caracterização da socieda­
de civil como uma esfera em que se luta por projetos societários dis­
tintos, como o terreno em que se disputam interesses de classe, a cate­
goria da hegemonia é utilizada para retraduzir, em termos de uma
sociedade civil organizada pelos valores ético-políticos das classes
subalternas, a noção de democracia. Dessa forma, no construto teóri­
co do marxista italiano, sociedade civil, Estado, economia, classes so­
ciais, hegemonia e revolução são categorias organicamente articula­
das. E é essa a perspectiva teórica e prático-política incorporada por
Coutinho para problematizar a nossa questão democrática. Ou seja,
em sua formulação, a compreensão dos novos processos políticos que
estavam então tomando forma e os desafios políticos que representa­
vam, é problematizada na direção da necessária ampliação e univer­
salização da democracia rumo à ruptura com a ordem burguesa. É
com a associação entre sociedade civil, hegemonia e democracia e com
a afirmação de um vínculo indissolúvel entre democracia e socialis­
mo que Coutinho enfrenta a problemática da democracia na realidade
brasileira da abertura da década de 1980.

3.3.2. A democracia como participação e justiça social

Uma alternativa de avaliação sobre as possibilidades de amplia­


ção da democracia a partir das mobilizações e organizações populares
na sociedade civil foi formulada por Weffort. Suas análises acerca da
questão democrática em Por que democracia? (1984) evidenciam que o
perfil da transição democrática brasileira se fez pelo "alto", limitan­
do-se a uma disputa entre os grupos dominantes e as elites que os
representam, o que fez o Brasil caminhar para a democracia sob uma
hegemonia liberal e conservadora. Para Weffort (1984: 25), esse cará­
ter "conservador" da transição democrática brasileira resultou dos
nossos processos sócio-históricos, processos em que "[...] a política
jamais se tomou democrática. Uma história que mal conseguiu cons­
tituir um espaço público onde a atividade política pudesse se diferen­
ciar das atividades privadas dessas mesmas classes dominantes".
158 M. I. DURICUtTTO

Para o autor, a nossa transição expressou um conceito de demo­


cracia segundo o qual esta é apenas um instrumento para atingir e
utilizar o poder. Ou seja, a democracia é apenas definida pelos seus
atributos enquanto regime político: império da lei, liberdade de orga­
nização para competir no jogo democrático, sufrágio etc.
No entanto, evidencia que, embora a iniciativa da transição seja
feita pelo "alto", também é verdade que sua continuidade e o seu
avanço progressivo não teriam sido possíveis sem as pressões nasci­
das da sociedade civil. Conclui ser essa a novidade histórica deste
momento da política brasileira, ou seja, a descoberta do valor da de­
mocracia é inseparável da descoberta da sociedade civil como espaço
para a política.
E é com o protagonismo da sociedade civil, na ocupação e dire­
ção de espaços participativos na dinâmica político-institucional, que
o autor vislumbra a possibilidade da emergência de uma verdadeira
democracia. É nessa perspectiva que faz a relação entre democracia,
reformas e revolução:

[...] A diferença, quando se fala de reformas no âmbito de uma re­


volução, é a participação do povo na direção do processo. Ou seja, a
diferença é a democracia. Se é disso que se trata quando se mencio­
nam as reformas no âmbito da revolução, com mais razão ainda
quando se fala da possibilidade da transformação da sociedade atra­
vés da democracia. A diferença é a participação popular nas mu­
danças. Significa lutar pára criar no âmbito da democracia, mesmo
que em caráter parcial, os processos de participação que são típicos
de uma revolução. Ou seja, para quem quer realmente mudar a so­
ciedade, o caminho é mais participação, ou seja, mais democracia.
(Weffort, 1984: 113)

Na sua perspectiva, "o sentido da revolução no Brasil é o de criar


a democracia" (1984: 118) e o sentido revolucionário da democracia
está na "predominância de mecanismos da representação direta sobre
os de representação". Ou seja, "representação e participação direta são
duas formas de participação popular que aprimoram a democracia e
a capacitam para constituir-se como espaço de transformação da so­
ciedade". (1984: 120, 129)
No texto "Incertezas da Transição na América Latina", Weffort
(1985a) defende a junção entre o caráter formal da democracia (sua
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '59

dimensão político-institucional) e o seu "conteúdo substantivo", en­


tendendo por este a "formação de uma vontade coletiva nacional e
popular", que deveria se concentrar na adesão a dois valores básicos:
reivindicação de maior liberdade política e defesa da justiça social.
A relação entre democracia e revolução é substituída, aqui, pela
relação entre democracia e justiça social, que estaria sedimentada nos
processos de "socialização da política": abertura dos espaços institu­
cionais político-democráticos para o acolhimento e o processamento
das demandas sociais e dos conflitos que delas resultam. A relação
entre democracia e justiça social dependería da natureza das regras
do jogo — que permitiríam ou não a incorporação das demandas po­
pulares — e da organização dos interessados em vê-las atendidas.
Nesse sentido, o "processo de democratização" dependería da am­
pliação da participação da sociedade civil nas decisões do Estado.

3.3.3. A democracia como renovação cultural

A proposição de formas de ampliação da democracia a partir dos


de "baixo" também foi objeto de análise de Chaui. Em "A questão de­
mocrática", texto produzido em 1978,32 a autora parte de dois modelos
de democracia política liberal — o modelo elitista schumpeteriano e o
de democracia participativa de Macpherson — para caracterizar os di­
ferentes perfis institucionais que a democracia liberal pode assumir.
Chaui (1990: 110) destaca que a democracia schumpeteriana é
um método para escolher e autorizar governos a partir de grupos e
partidos políticos em competição, sendo a política nada mais do que
uma esfera sob domínio das elites. Já o modelo de Macpherson se
apoiaria na ampliação da ocupação do espaço público pela sociedade
civil. Para a autora, o pressuposto peculiar à concepção liberal materia­
lizada nos dois modelos é o de "tomar a democracia estritamente como
um sistema político, que repousa sobre os postulados institucionais que
se seguem, tidos, então, como condições sociais da democracia".
Evidencia, aqui, o caráter limitado desses modelos, uma vez que
a democracia aparece reduzida à sua dimensão estritamente político-

32. Este texto foi apresentado em congresso da CLACSO na Costa Rica em 1978. Utili­
zei a versão contida no livro Cultura e Democracia, 1990.
i6o M. L. DURIOUETTO

institucional, a um regime político, a um processo que se manifesta


apenas no processo eleitoral e em seu caráter representativo. Ao con­
trário dessa visão "minimalista", a autora defende que a democracia
deve ser percebida como a própria forma de existência da vida social.
Nesse sentido, as condições sociais da democracia seriam "menos
precondições para a democracia, seriam menos condições dadas para
haver democracia, e seriam muito mais a expressão de uma sociedade
democrática através de suas próprias instituições". (Chaui, 1990:142)
Defende a igualdade sócio-econômica — conseguida através da
transformação das relações de classe e do sistema de produção— como
condição social primeira da democracia. E, no plano da prática políti­
ca, os processos sócio-organizativos, que aponta como necessários para
a ampliação da democracia e para a conseqüente criação de suas "con­
dições sociais", estão localizados nos movimentos sociais, que proli­
feram na sociedade brasileira no final da década de 1970 e na abertura
da década de 1980. Esses movimentos são tidos, pela autora, como
um contrapoder popular e democrático em busca de expressão políti­
ca. Buscam, segundo Chaui (1990: 186), "a crítica das estruturas de
poder e das alienações por elas acarretadas em todos os níveis e cam­
pos da atividade social".
Essa leitura e compreensão da emergência e do desenvolvimen­
to dos "novos" movimentos sociais têm suas determinações na desco­
berta do cotidiano enquanto palco de luta contra a dominação
ideopolítica e econômica. Tais movimentos priorizam, segundo a au­
tora, a organização autônoma da população ao redor de reivindica­
ções que são dirigidas ao Estado, sem entretanto, intermediação de
partidos políticos e representantes eleitos. Mas também reconhece
que não só centralizam suas reivindicações no âmbito do Estado, ao
contrário, também dão lugar ao surgimento de espaços e práticas
sócio-políticas de contestação imediata e cotidiana de cada relação
de dominação.
É nesse processo que enfatiza a criação de identidades em torno
da esfera do cotidiano, considerando os movimentos como produto­
res de um novo relacionamento sociocultural, de práticas democráti­
cas e participativas, ressaltando a comunidade, a amizade e a solida­
riedade. Chaui, introduz, assim, uma ligação orgânica entre essa cul­
tura produzida e vivenciada pelos movimentos e a democracia. Esta
toma-se expressão externa da "cultura do povo".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 161

O campo de lutas seria, assim, o da realidade cotidiana fragmen­


tada e plural, que se traduziría na valorização da especificidade socio-
cultural das ações sociais na esfera do singular e do microscópico. As­
sim, o potencial transformador dos movimentos sociais estaria no
âmbito sociocultural. As identidades plurais gestadas no cotidiano são,
desse modo, vistas como possibilitadoras da criação de uma "socie­
dade alternativa" através da renovação dos padrões socioculturais,
penetrando na microestrutura da sociedade, "[...] pois a construção
do socialismo significa apenas [...] que em cada momento da prática
social e política a pergunta seja: qual a prática que, aqui e agora, tem
como alvo a construção do socialismo? (Chaui, 1990: 185-186)
Podemos perceber, frente à exposição dessas três formulações
teóricas, a existência de diferentes significados e papéis atribuídos à
sociedade civil e aos sujeitos históricos responsáveis pela consolida­
ção e ampliação do processo de democratização bem como ao próprio
entendimento do que seja democracia. Essa constatação vem revelar
que não se constituiu, no período da nossa transição política, uma
visão teórica homogênea da sociedade civil no campo teórico em tela.
Ao contrário, as diferenças analíticas evidenciadas nas formulações
explicitadas dão corpo a três desenhos de democracia e de projetos políticos
Cjue as sustentam.
Tem-se, de um lado, um modelo de democracia de massas, em que
o restabelecimento do Estado de direito é visto apenas como ponto de
partida para o processo de democratização. Ao partir de uma linha
marxista de interpretação do conceito de sociedade civil fundamenta­
da em uma concepção gramsciana, tem-se uma concepção de demo­
cracia còmo sinônimo de defesa do "interesse comum", de constru­
ção de hegemonia no pluralismo, da formação de consensos no inte­
rior e a partir dos interesses das classes subalternas presentes na so­
ciedade civil e abertos ao avanço para o socialismo. Esta é a perspecti­
va teórica e prático-política incorporada e desenvolvida por Coutinho.
Na perspectiva de Weffort, é na predominância da participação e
da direção sócio-política da sociedade civil (tomada como um todo
homogêneo), nos espaços institucionais democráticos que está a pos­
sibilidade da emergência da verdadeira democracia e de uma (supos­
ta) revolução. Em outras palavras, o significado desse par categorial,
para o autor, é definido pela ampliação da participação da sociedade
(62 M. I. DURICUETTO

civil nas decisões estatais na ordem capitalista. Ou seja, sua análise


não defende a formação de um projeto societário contra-hegemônico.
E, por fim, tem-se o desenho da democracia formulado por Chaui
enquanto versão da autonomia dos movimentos sociais presentes na
sociedade civil. Nesse modelo, o fundamental é a organização autô­
noma das reivindicações coletivas, que devem ser exigidas da autori­
dade pública sem intermediação das representações políticas — parti­
dos e representantes eleitos. É destacada a heterogeneidade das ações
coletivas quanto a seus objetivos e formas organizativas que, agluti­
nadas sob o conceito de identidades plurais, criadas em tomo da esfe­
ra do cotidiano, renovam padrões socioculturais. O campo de lutas
seria o da realidade cotidiana fragmentada e plural, e o sujeito do pro­
cesso político passa a ser uma "comunidade de convivência".
Se as diferenças quanto ao entendimento do significado e da re­
lação entre sociedade civil e democracia podem ser aqui evidenciadas, a
segunda metade dos anos 1980 e os anos 1990 revelaram, de forma
ainda mais acentuada, o desenvolvimento de novas concepções, o que
tomou esse campo temático ainda mais complexo. Antes de analisar
essas novas configurações teóricas e os novos direcionamentos práti-
co-políticos que estas configurações apontam para as ações políticas
das classes subalternas, é necessária uma breve explicitação das for­
mas de luta e perspectivas ideo-políticas acerca da construção da de­
mocracia pelos movimentos e organizações que representam e defen­
dem os interesses dessas classes na sociedade civil.

34. Novos movimentos sociais para onde?

A trajetória histórica dos movimentos sociais das classes subal­


ternas na sociedade civil brasileira passou a ter sua reconfiguração
em termos conceituais fundamentalmente no final da década de 1970,
em torno da noção de "ação coletiva", que se referia a um conjunto de
práticas e representações de atores constituídos por mobilizações de­
finidas em tempos e espaços específicos. Tal conceptualização abar­
cou diferentes abordagens e entendimentos acerca das trajetórias e do
significado desses movimentos para o redirecionamento da relação
Estado-sociedade civil no Brasil. Os debates, análises e produções pro­
curaram enfrentar o significado de quem são esses atores, como se
SOCIEDADE CIVIl E DEMOCRACIA 163

pode qualificá-los de sujeitos políticos e qual a contribuição deles no


âmbito da construção e da consolidação democrática.33
Podemos constatar um conjunto de idéias básicas que construí­
ram o conceito dos movimentos sociais dentro da literatura das ciên­
cias sociais. O termo "novos movimentos sociais" passou a ser usado,
pela maior parte do campo teórico do debate brasileiro, para referir-se
ao aparecimento de atores sociais que não referenciavam suas ações
sócio-políticas às estruturas institucionais de poder e ao sistema polí­
tico em geral. (cf. Sader, 1988 e Cardoso, 1994)
As produções acadêmicas e a prática dos atores que participa­
ram diretamente desse processo apresentavam, como substrato teóri­
co comum, uma perspectiva opositiva na relação entre sociedade ci­
vil, mediada pelos movimentos sociais das classes subalternas, e Es­
tado, estabelecendo uma relação quase que inevitável entre Estado —
regime autoritário/sociedade civil — movimentos sociais. A relação
entre Estado e sociedade civil era vista de forma antagônica, em que
uma das partes sempre acabaria sendo capturada pela outra. (Cardo­
so, 1983: 368-382) A predominância do enfoque na interação opositiva
(cooptação ou destruição) acabou por limitar as análises teóricas de­
senvolvidas à dinâmica interna dos movimentos, em que foram sau­
dados como formas heróicas de resistência à ditadura, enfatizando-se
seu voluntarismo, seu caráter inovador e transformador, sua autono­
mia e espontaneidade face ao Estado e partidos políticos, e sua ênfase
nos mecanismos de democracia direta. No computo geral, todas as
expressões da sociedade civil passaram a ser vistas de uma forma po­
sitiva, pois eram entendidas como tudo aquilo que se contrapunha ao
Estado, o lado negativo. "De costas para o Estado, de frente para a
sociedade civil", eis a saída vislumbrada para o fortalecimento da
democracia e da cidadania.
Nesse contexto "da luta contra a ditadura, 'sociedade civil' tor­
nou-se sinônimo de tudo o que se contrapunha ao Estado ditatorial"
— "civil" significava o contrário de "militar", e, portanto, o Estado

33. Um reexame crítico das principais polêmicas teórico-políticas que envolveram a


trajetória dos chamados "novos movimentos sociais" na realidade brasileira, particularmente
no que concerne ao significado da emergência e dos desdobramentos de suas ações para o
nosso processo de democratização foi o objeto de investigação de minha dissertação de
mestrado. (Duriguetto, 1996)
164 M. L. DURIGUETTO

(militarizado) era contraposto à sociedade civil (espaço dos movimen­


tos populares e da luta antiditatorial) Coutinho (2000:17).
Essa valorização e apologia teórica e prático-política da socieda­
de civil, considerada um ator homogêneo e unitário, é produzida so­
bretudo porque feita a partir da contraposição dicotômica e maniqueís-
ta da sociedade civil ao Estado. Ao mesmo tempo vai se pensar a cida­
dania desvinculada do papel do Estado, como se pudesse haver cida­
dania exercida no espaço exclusivo da sociedade civil. Como pode­
mos perceber, essa visão positiva da sociedade civil como esfera de
ação e representação homogênea dos interesses populares, portanto
a-classista, é inteiramente compatível com a leitura que dela faz Chaui
no texto analisado anteriormente. Sua apreensão como locus de reali­
zação da cidadania, da convivência democrática, da aversão à institu-
cionalidade revela uma leitura que apenas valoriza as lutas travadas
no espaço da sociedade civil. Pensa-se, assim, na construção da de­
mocracia no âmbito da sociedade civil, não valorizando a sua luta no
âmbito estatal.
Em termos teóricos, a definição da sociedade civil como terreno
necessário da luta política pela formação de uma contra-hegemonia
não implica o entendimento da existência de dois pólos que se contra­
põem, mas, precisamente, revela que a construção da uma nova hege­
monia implica a sua construção tanto na sociedade civil quanto no
Estado (a continuidade entre Estado e sociedade civil é tratada no con­
ceito gramsciano de Estado ampliado). No mesmo sentido, definir a
sociedade civil como arena e alvo da luta política pela hegemonia sig­
nifica necessariamente reconhecer sua natureza classista e contraditó­
ria e recusar sua mistificação como pólo bom contra um pólo mau.
O conceito de hegemonia gramsciano, trabalhado por Coutinho,
para analisar o processo de democratização brasileiro, possibilitou,
assim, uma nova forma de conceber as relações entre Estado e socie­
dade civil e contribuiu também para um entendimento mais profícuo
do desafio teórico-político colocado para a esquerda pela emergência
dos movimentos sociais e de suas pluralidades de valores e interes­
ses. Ou seja, a noção de hegemonia foi a base a partir da qual o autor
tratou o surgimento dos movimentos sociais, o que lhe permitiu não
cair no reducionismo da "cultura do povo" e nem no pluralismo de-
mocrático-liberal.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA ■ 6$

A segunda metade da década de 1980 se destaca como marco


para as mudanças ocorridas na configuração teórico-analítica e prá-
tico-política dos movimentos sociais e na relação destes com o Esta­
do. Assistimos, nessa década, à articulação desses movimentos em
federações municipais, estaduais e nacionais e em entidades repre­
sentativas.
Como momento de inflexão, que marcou essa nova fase institu­
cional da participação popular, temos o processo de elaboração da
Constituição Federal de 1988 — CF/88. Neste, o amplo movimento da
"participação popular na Constituinte", que elaborou emendas popu­
lares à Constituição e coletou subscrições em todo o país, revelou uma
sistematização das demandas populares — antes reveladas por ações
"diretas e de rua" — em propostas políticas elaboradas e levadas aos
canais institucionais.
A revalorização da dimensão institucional também passou a ser
a preocupação da intelectualidade acadêmica, que voltou suas refle­
xões para as experiências de gestão pública com as novas modalida­
des de "administração popular democrática", ao lado de reflexões que
buscaram apreender as relações entre os movimentos populares e as
políticas sociais.34
A dimensão institucional passou a ganhar um peso teórico-ana-
lítico e prático-operativo relevante nos contornos internos da dinâmi­
ca dos movimentos e nas suas formas de manifestação em relação às
agências públicas, (cf. Ribeiro, 1990) A expansão dos canais institucio­
nais de participação e consolidação de direitos passou a ser comu-
mente evidenciada como o eixo da luta dos sujeitos coletivos pela
ampliação da democracia e da cidadania.35

34. Evidenciou-se que a consideração dos movimentos sociais como novos atores polí­
ticos, autênticos, portadores de uma força transformadora, çairia em descrédito se não se
valorizasse a necessidade de se conhecerem suas diferenças, sua eficácia sócio-política, e a
novidade de seu papel mediador entre a sociedade civil e o Estado. Seria importante tam­
bém sublinhar o caráter das políticas sociais públicas como elemento de aglutinação e tam­
bém de segregação da ação reivindicativa popular (cf. Cardoso, 1983).
35. A demanda pela criação de novos fóruns de participação da sociedade civil no âmbito
das políticas públicas é fruto, assim, da luta de diferentes movimentos coletivos que se or­
ganizaram no processo constituinte: movimentos sociais, sindical, pastorais sociais e ONGs,
partidos políticos de esquerda, setores acadêmicos e entidades profissionais, como a OAB, a
ABI e a SBPC.
166 M. L. DURIGUETTO

Com esse intento, chegou-se à CF/88, que ampliaria os direitos


de cidadania e introduziría novas modalidades de gestão e organiza­
ção nas áreas sociais através da garantia da participação da sociedade
civil na formulação das políticas e no controle das ações públicas em
diferentes níveis. Essa nova lógica de gestão aparece associada à valo­
rização da descentralização político-administrativa e do poder local,
que passam a constituir um verdadeiro consenso analítico e prático-
político.
A valorização da esfera local reconfigurou e redimensionou o
seu próprio entendimento. De espaço por excelência das relações
coronelísticas e clientelísticas de poder, o local passa a ter uma ima­
gem ancorada na "positividade". O poder local, nesta perspectiva mais
otimista, passou a ser portador de possibilidades de realização da de­
mocracia, da participação e do exercício da cidadania ativa.36
A avaliação das estratégias a serem utilizadas para a ampliação
dos processos democráticos tem apontado para a valorização da so­
ciedade civil, enfocando sua capacidade de mobilização, organiza­
ção e de intermediação de interesses. Um dos caminhos apontados
vincula-se à possibilidade de superar os limites da democracia repre­
sentativa, através da criação de institutos políticos participativos, que
poderíam operar, por um lado, o rompimento com a tradição patrimo-
nialista da gestão do Estado e, por outro, o acesso clientelístico aos
recursos públicos, propiciando a participação dos cidadãos organiza­
dos, integrando espaços de discussão e negociação.
Dentre os mecanismos institucionais de participação social con­
quistados, destacam-se os Conselhos de Direitos — órgãos paritários
de representação governamental e não-governamental, responsáveis
pela fiscalização das políticas públicas em nível da União, Estados e
Municípios. Os conselhos são entendidos como espaços institucionais
de tipo novo, os quais podem viabilizar a participação institucional
das associações da sociedade civil. Defende-se que sua implementa­
ção poderá contribuir para a continuidade do processo de criação de
uma cultura democrática, baseada na participação e no controle da
coisa pública, podendo significar alteração substantiva no modo de

36. Essa mudança da imagem do "local" é evidenciada nos crescentes estudos de expe­
riências de gestões municipais progressistas no sentido de viabilizarem mudanças políticas,
econômicas, sociais e culturais (cf. Lesbaupin [org.J, 1996).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 167

gerir a sociedade e contribuir para o processo organizativo dos setores


populares. O objetivo agora é penetrar na institucionalização estatal
para inscrever conquistas e direitos e interferir na própria definição e
gestão das políticas sociais.
No entanto, os anos 1990 também foram palco de análises que
dão ênfase ao "refluxo" e da "crise" dos movimentos. Esse "refluxo"
foi interpretado por leituras diversas: umas enfatizaram que as de­
mandas das ações coletivas pela construção de canais institucionais
de participação junto ao Estado provocaram um abandono de "su­
postos" ideais revolucionários e uma adesão a uma perspectiva refor­
mista; outras apontaram para o diálogo com as agências públicas, no
seu novo modo de gerenciar as políticas sociais, visto como mecanis­
mo de cooptação ou reminiscência da velha estratégia do regime po­
pulista, com isso, os princípios democratizantes, que marcaram as lu­
tas nas décadas de 1970 e 1980, poderíam ser subsumidos ao cliente-
lismo, corrupção e burocratismo. Também são apontados como deter­
minantes para a chamada "crise dos movimentos sociais" fatores ex­
ternos — crise econômica, desemprego — e internos — dependência e
institucionalização das ações dos movimentos pelos trabalhos das as-
sessorias e das ONGs. (cf. Cardoso, 1994; Doimo, 1995; Dossiê, 1998/
1999)
Diferindo dessas avaliações, Dagnino (1994: 72) afirma que a
chamada "crise" dos movimentos decorre muito mais de uma mistifi­
cação do seu caráter inovador, espontâneo e autônomo e dos signifi­
cados previamente atribuídos às suas ações, mistificação ligada a uma
concepção de sujeito pré-determinado como vocacionado para a trans­
formação revolucionária. Pondera que a inovação, espontaneidade e
autonomia de suas formas organizativas devem ser entendidas não
como recusa de qualquer relação com a política institucional e com a
ausência de influências, mas de um tipo determinado de relação, ca­
racterizado pela subordinação, tutela, paternalismo, clientelismo a que
estiveram subordinados historicamente. E quanto às expectativas teó­
ricas e prático-políticas imputadas aos movimentos, a que mais se
destaca pela sua frustração é a espera de uma unidade dos movimen­
tos para a emergência de uma atitude revolucionária, que não ocorre.
Nessa direção, a chamada "crise" das ações coletivas é também
tematizada como um momento de inflexão da ação coletiva, no qual
redefiniram-se suas ações prático-políticas face ao novo contexto da
166 M. L. DURICUETTO

institucionalidade democrática. Nessas redefinições teóricas, estraté­


gicas e políticas, parece consensual a constatação de que o que está
em "refluxo" não são os movimentos, mas suas expressões públicas
de massa e reivindicativas mais tradicionais. Identifica-se o abando­
no de atitudes de confronto e de reivindicação de itens específicos
pela valorização de condutas institucionais pragmáticas e propositivas,
na busca de diálogo, negociação, parcerias com o Estado e busca de
formas alternativas de participação no sistema de representação de
interesses.
Esse breve resgate da trajetória analítica e prático-política da re­
lação entre Estado e sociedade civil — mediada pelos seus movimen­
tos sociais — traz questões de fundo que imprimem direções e desdo­
bramentos acerca do que se visualiza como sendo o caminho a ser
seguido para um efetivo processo de democratização da sociedade
brasileira.
Primeiramente, esse processo foi vislumbrado nas apostas de
autonomização da sociedade civil e na desqualifícação do Estado, ten­
do-se os movimentos sociais como únicos sujeitos e espaços de reno­
vação social e de exercício de uma autêntica cidadania. Posteriormen­
te, a ampliação da democracia passou a radicar na defesa da abertura
de canais institucionais públicos de discussão das políticas sociais e
de sua ocupação pelas organizações da sociedade civil que represen­
tam os interesses das classes subalternas.
Passa-se a ter, como foco de convergência, a defesa de que uma
nova estratégia para a democratização estaria na criação e ocupação,
pela sociedade civil, de novos espaços públicos de debate, negociação
e deliberação. Nesses espaços, não monopolizados ou controlados pelo
Estado, se buscaria reformular a noção de interesse público, bem como
o papel e as responsabilidades estatais.
No entanto, esse movimento e essa concepção também fornece­
ram espaço para o avanço de um discurso que, usando o mesmo ar­
gumento da necessária redefinição das relações entre o Estado e a so­
ciedade, passa também em investir na participação social da socieda­
de civil. Esta participação é visualizada e implementada, a partir dos
finais dos anos 1980, pelo projeto neoliberal em ascensão, não na dire­
ção do controle social na gestão e implementação das políticas sociais,
mas na direção de transferir para a esfera da sociedade civil,
transmutada em esfera pública mo-estatal, o enfrentamento das desigual-
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 169

dades sociais. A ideologia neoliberal recupera e metamorfoseia a vi­


são maniqueísta entre Estado e sociedade civil, tão presente nas análi­
ses e ações prático-políticas dos movimente» sociais no início dos anos
1980, para desqualificar, "satanizar" e minimizar tudo que é estatal
(mesmo agora tratando-se de um Estado democrático e tendo-se um
aparato jurídico-constitucional garantidor de direitos sociais).
Assim, antes de analisarmos os fundamentos teóricos nos quais
se baseiam as formulações desenvolvidas pelo "campo democrático"
brasileiro, a partir da segunda metade dos anos 1980, acerca das (no­
vas) relações entre sociedade civil e democracia, consideramos im­
prescindível situar as determinações econômicas, sociais, políticas e
culturais que fundamentam a hegemonização do projeto neoliberal.
170

Capítulo 4

Propostas de democracia: Brasil anos 90

4.1. Ofensiva neoliberal e automizaçáo da sociedade civil

O cenário brasileiro da década de 1980 foi marcado, como expos­


to, por um processo de democratização política e de ampliação das
lutas por direitos sociais, que se desenvolveu em concomitância com
uma grande "crise" expressa pela recessão econômica, desemprego e
agravamento da deteriorização das condições de vida da maioria da
população.
Especificamente, no que tange às lutas das diversas organiza­
ções e movimentos da sociedade civil que representavam os interes­
ses populares, podemos destacar que o momento que representou o
coroamento jurídico-político de suas demandas pela redução da "dí­
vida social" e pela ampliação dos direitos sociais foi a promulgação
da CF/88. Os fundamentos desta foram destacados por Netto (1999:
77), que considera que

[...] o essencial da Constituição de 88 apontava para a construção —


pela primeira vez assim posta na história brasileira — de uma espé­
cie de Estado de Bem-Estar social: não é por acaso que, no texto
constitucional, de forma inédita em nossa lei máxima, consagram-
se, explicitamente, como tais e para além de direitos civis e políti­
cos, os direitos sociais (coroamento, como se sabe, da cidadania
moderna). Com isto, colocava-se o arcabouço jurídico-político para
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 171

implantar, na sociedade brasileira, uma política social compatível


com as exigências de justiça social, eqüidade e universalidade.

No entanto, os fundamentos constitucionais relativos à criação


de mecanismos político-democráticos de controle social e de regula­
ção da dinâmica capitalista deram-se em concomitância a uma con­
juntura de crise econômica que se relaciona a um movimento mais
geral, enquanto macrodeterminação, de dois processos situados no
contexto de "crise" e de rearranjo global do capitalismo, no sentido de
se passar para um novo padrão de acumulação:1 as mudanças no
mundo do trabalho e as mudanças na intervenção do Estado — emer­
gência do neoliberalismo — elementos inerentes à globalização ope­
rada sob o comando do grande capital.
No Brasil, esses processos só ganharam densidade no decorrer
da década de 1990. Na seqüência dessa década, foram implementa­
das as chamadas medidas de ajuste estrutural preconizadas pelo Con­
senso de Washington,12 em correspondência com o aprofundamento
dos processos de globalização. Foi com o governo Collor (fevereiro de
1990 a setembro de 1992) que se operou uma drástica redução da agen­
da pública, de acordo com as diretrizes neoliberais. A nova agenda
política de ajuste passou a ser dominada por temas como refluxo do
Estado e primazia do mercado através das políticas de abertura co­
mercial e financeira ao capital internacional, desregulamentação e pri­
vatização, redução dos fundos públicos para o financiamento das po­
líticas sociais, enfim, uma agenda que só podia ser conduzida contra
as conquistas de 1988.
Assim,

[...] em oposição ao 'pacto social' que deu lugar à Constituição de


88, consolidou-se, nos anos 1990, um amplo consenso liberal (filiado
ao Consenso de Washington) favorável à implementação do pro­
grama de estabilização, ajuste e reformas institucionais, apoiado e
promovido pelos governos nacionais e pelas agências financeiras

1. Como visto no capítulo 2, dois regimes de acumulação marcaram o capitalismo mo­


nopolista no século XX: o "fordista-keynesiano" e o "flexível".
2. Denominação dada a um plano de medidas de ajustamento das economias periféri­
cas, chancelado pelo FMI, BM, BIRD e pelo governo norte-americano em reunião ocorrida
em Washington, 1989. Cf. Fiori (1995: 231-245)
>7* M. I. DURIGUETTO

internacionais: programa de privatizações; redução de tarifas alfan­


degárias para importação; liberalização dos preços; redução de isen­
ções fiscais, subsídios e linhas de crédito, corte dos gastos públicos.
(Tavares e Fiori, 1993:153)

O primeiro e segundo governos do presidente Fernando Henri­


que Cardoso — FHC (1995-1998 e 1998-2002) continuou e aprofundou
a im plem entação de um "m odelo de desenvolvim ento" que
inviabilizou a criação das bases de sustentação econômico-fínanceira
para a construção de uma função estatal voltada para gerir e opera-
cionalizar amplas responsabilidades sociais.3
Se os fundamentos da inviabilização da construção de um "tar­
dio" pacto social no Brasil radicam na implementação do "receituá-
rio" neoliberal, essa implementação, no entanto, vem sendo tematizada
pelo capital e pelo governo, como a única saída para a "crise" brasilei­
ra. Como assinala Mota (1995:164), essa "crise" vem sendo enfocada
através de "uma visão socializadora", cujo objetivo é ganhar o con­
sentimento dos trabalhadores acerca de novos valores políticos, so­
ciais e éticos, que legitimem as mudanças requeridas pelo processo de rees­
truturação produtiva e o desmonte de mecanismos de proteção social. O prin­
cipal instrumento desta "cultura política da crise" é a gestação de
movimentos de "vontade corporativa", ou seja, que os trabalhadores
lutem apenas pela defesa dos seus interesses particulares e imediatos.
Isso implica a desqualificação de seus movimentos político-organizati-
vos, que podem vir a formar uma "vontade coletiva hegemônica".4

3. Como sustenta Netto (1999: 78-79), as possibilidades de levar à prática o essencial da


Constituição de 1988 equivalia, no plano econômico, à redução das taxas de explora­
ção e, no piano político, à construção de mecanismos democráticos de controle social
Daí que a burguesia e o governo FHC procuraram desqualificá-la em dois planos: "[...] pla­
no jurídico, dando forma a uma reforma/revisão constitucional que acabou por retirar da
Carta elementos fundamentais [...] e, substancialmente, no plano prático, dando curso a um
modelo de desenvolvimento que subtraiu as bases de sustentação econômico-financeiras
para uma eventual implementação daquela alternativa".
4. Desse modo, de acordo com Mota ( 1 9 9 5 : 1 9 1 ) a partir de 1989, há paulatinamen-
te um deslocamento de natureza ideológica na ofensiva do capital e na posição dos traba­
lhadores que passam a privilegiar a conjuntura de crise econômica, em detrimento do em­
bate em tomo de projetos societais. Aí reside, objetivamente, o campo da formação da cultura
da crise que, sob a direção da burguesia, pode desqualificar as demandas dos trabalhadores
Segundo a autora, "esse deslocamento [...] redireciona o conteúdo das suas reivindica-
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA •73

Para as finalidades da nossa investigação, apresentamos, em


linhas gerais, como o desenvolvimento desses dois processos — mu­
danças no mundo do trabalho e ofensiva neoliberal — vem contri­
buindo para obstruir as possibilidades da ampliação da democracia
no Brasil.
A redefinição das relações de trabalho produzida pelo processo
de reestruturação produtiva, expressa através da variedade e flexibili­
zação das formas ocupacionais (de contrato e de situação de trabalho)
e seus efeitos na ocorrência do desemprego, vem desencadeando de­
sigualdades e destituição de direitos, que tendem a conformar cres­
cente segmentação entre trabalhadores qualificados — mais valori­
zados e preservados em seus empregos — e uma grande maioria
"desqualificada" em relação às habilidades exigidas, encaminhan­
do-a para o trânsito entre desemprego e ocupações temporárias e
instáveis.5
Essa heterogeneidade ocupacional significa a ampliação crescente
das desigualdades e disparidades salariais, que são transpostas nas
diferenciações de acesso a bens materiais de consumo, configurando
formas distintas de sociabilidade, demarcando o "universo da pobre­
za" e aquele dos inseridos nos circuitos do mercado.
A flexibilização das normas contratuais (ou seja, das regras que
regem a contratação, o uso, a remuneração e a dispensa da força de
trabalho) expressa, também, a segmentação da organização sócio-po-
lítica (representação e negociação) em seu interior, em que milhares
de trabalhadores são postos numa situação de excludência no que

ções para o campo das ideologias práticas, marcadas pelas suas necessidades imediatas.
Nesse sentido, os trabalhadores terminam por reduzir as suas propostas ao campo da preser­
vação das conquistas ou, tão-somente, das possibilidades postas pela conjuntura da crise".
5 .0 agravamento das condições de trabalho expresso na informalização, achatamento
salarial e o aumento crescente do desemprego — cuja dimensão supera qualquer outra mar­
ca histórica já vista no Brasil — foram as marcas das "modernas" políticas implantadas pós-
Plano Real. Segundo Soares (2000), o que a liberalização indiscriminada das importações
trouxe foi o desmantelamento de segmentos econômicos e a conseqüente elevação de índi­
ces de desemprego, uma vez que a reação das empresas, dada a menor competitividade
frente aos concorrentes externos, foi a implementação de medidas de terceirização, raciona­
lização da produção (importação de máquinas e equipamentos e redução de custos, sobre­
tudo mão-de-obra). Uma exposição de dados que revelam as desastrosas conseqüências eco­
nômicas e, sobretudo, sociais do processo do "ajuste brasileiro" pode ser encontrada em
Behring (2003); Praga, Revista de Estudos Marxistas (1998); Lesbaupin (1999) e Soares (2000).
17* M. L. DURICUETTO

concerne a medidas que favoreçam a formulação de direitos relacio­


nados às suas necessidades e interesses.
Assim, as mudanças no mundo do trabalho vêm conformando
sociabilidades, formas de organização e representação política na di­
reção da fragmentação, despolitização e multiplicação de demandas
de grupos de interesse corporativamente posicionados, ou seja, cada
vez mais fechados em si mesmos.6
Essas diferenciações e segmentações dos padrões de organização
do processo produtivo desdobram-se nos dilemas atuais do desmante­
lamento das políticas sociais públicas. No dizer de Borón (1995: 78), o
"discurso satanizador do público", profetizado pelas receitas neolibe-
rais, fizeram-se acompanhar, pela atribuição às organizações da socieda­
de civil, do papel de agentes do bem-estar social, mediante práticas
voluntárias, filantrópicas e caritativas. (Soares, 2000: 79-80)
Nessa perspectiva, a sociedade civil é transformada em meio, em ins­
trumento para a operacionalização da atual estratégia do projeto neoliberal
de desresponsabilização do Estado e do capital com as respostas à "questão
social", particularmente no que se refere às políticas sociais. E essa estraté­
gia do fortalecimento da lógica da "sociedade civil" revela-se e vem
sendo consolidada na proposta de reforma do Estado, especialmente nas
estratégias de descentralização.

6. A compatibilidade entre certas características da reestruturação produtiva e da ideo­


logia neoliberal com a lógica corporativa vem sedimentar, ainda mais, a histórica herança
desse sistema de intermediação de interesses presente ao longo do nosso processo de indus­
trialização. Se a abertura desse sistema à participação da classe trabalhadora resultou de
um processo de conquista e de afirmação de sua autonomia organizacional, a sua inserção
nesse sistema, no contexto dessas novas determinações, não é mais a da incorporação dos
sindicatos ao aparelho de Estado, mas agora implica na limitação da sua participação àque­
les setores mais fortes e já organizados. Essas determinações apontam para a tendência de
uma expansão de um corporativismo societal — com cada categoria de trabalhadores utilizan­
do-se de todos os expedientes para garantir exclusivamente os seus interesses de classe nas
arenas decisórias relativas a esse interesse — que pode caminhar no sentido da consolidação
de um corporativismo setorial: limitação dessa participação aos setores de classe mais organi­
zados, cujos ganhos vão diferenciar mais ainda os interesses, diminuindo a probabilidade
de se chegar a uma pauta comum de interesse da classe como um todo. Como exemplo,
temos a experiência, em 1991, das câmaras setoriais, que constituíram instâncias de aplica­
ção setorial dos novos parâmetros da política industrial — competitividade, liberalização
econômica e abertura comercial — e do acordo automobilístico, em que a redução da carga
fiscal foi conjugada com a manutenção do emprego, (cf. Costa, 1994; Mota, 1995; Diniz, 1997)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA *75

4.1.1. Descentralização e neoliberalismo: uma lógica perversa

O debate sobre as estratégias de reforma do Estado toma corpo já


na década de 1980 e tem, no discurso da descentralização, o seu prin­
cípio ordenador. Reduzida à sua agenda mais essencial, os termos do
debate sobre a descentralização, desenvolveram-se a partir de uma
significativa convergência de opiniões, na qual correntes à direita e
à esquerda deram lugar de destaque à descentralização como ins­
trumento necessário de democratização nos processos de reforma
do Estado.
O que subjaz à defesa desse instrumento é a visão concordante
quanto à necessidade de modernizar o Estado através da crítica a al­
guns de seus elementos nucleares, quais sejam: centralização admi­
nistrativa — promovida para se ajustar às práticas e instituições de­
senvolvidas pelo regime ditatorial — o que acabou retirando da dinâ­
mica estatal eficiência e capacidade gerencial; ineficiência da máqui­
na estatal, manifesta especialmente nas atividades de prestação de
serviços e gestão; o problema da privatização do Estado, patente na
constituição de burocracias e empresas estatais fortemente vulnerá­
veis à pressão e aos interesses particularistas de grandes grupos eco­
nômicos; e a inexistência de controle democrático sobre o Estado. (No­
gueira, 1998: 147-150)

Em outras palavras, a partir de perspectivas políticas distintas, pro­


duziu-se um grande consenso em torno da descentralização. Pas­
sou-se a supor que, por definição, formas descentralizadas de presta­
ção de serviços públicos seriam mais democráticas e que, além dis­
to, fortaleceríam e consolidariam a democracia. Igualmente tal con­
senso supunha que formas descentralizadas de prestação de servi­
ços públicos seriam mais eficientes e que, portanto, elevariam os
níveis reais de bem-estar da população. Portanto, reformas do Esta­
do nesta direção seriam desejáveis, dado que viabilizariam a con­
cretização de ideais progressistas, tais como eqüidade, justiça so­
cial, redução do clientelismo e aumento do controle social sobre o
Estado. (Arretche, 1997: 128)

Entretanto, é nos anos 1990 que esse instrumento revela a sua


verdadeira finalidade prático-política: a descentralização e a moder­
nização estatal passam a constituir mecanismos político-institucionais
176 M. L. DURIGUETTO

enquadrados na perspectiva neoliberal que vêm expressar o desmon­


te do Estado através da redução de sua atividade regulatória e produ­
tiva e seu corte privatizante. As atividades e setores essenciais da área
social são os mais atingidos pela onda privatista do Estado, tidos como
responsáveis pelo déficit público e pelo "excessivo" gasto estatal e onde
mais se constata a sua ineficiência e corrupção.7
É importante assinalar que a retórica neoliberal presente nas pro­
postas de reforma estatal vem explorar a insatisfação e desconfiança
existentes na sociedade brasileira com respeito ao conjunto das insti­
tuições e das ações públicas, ajudando a desvalorizá-las junto à socie­
dade. Na verdade, o que essas diretrizes de descentralização refor­
çam é a ampliação da lógica mercantil no campo dos direitos sociais
conquistados na Carta de 1988. E essas diretrizes vão começar a ser
materializadas nos processos que envolvem uma reforma geral do Esta­
do, orientada segundo os postulados do Consenso de Washington. Uma
das diretrizes centrais dessa reforma é a que se operacionaliza no
âmbito das relações entre Estado, sociedade civil e políticas sociais.
A proposta desta reforma — denominada de reforma adminis­
trativa — surgiu no âmbito do Ministério da Administração Federal e
Reforma do Estado (MARE) sob a gestão do ministro Bresser Pereira.
Essa reforma começou a ser implementada por meio de um "Plano
Diretor" redigido no primeiro semestre de 1995, em que se destaca a
defesa do chamado modelo gerencial. Tal modelo, em linhas gerais, ob­
jetiva dotar o aparelho estatal de mais "governança" e de mecanismos
político-institucionais mais eficientes para executar suas funções. O
conceito de "governança" é aqui utilizado para referir-se à incapaci­
dade financeira e administrativa do Estado brasileiro de concretizar
suas decisões. Essa dupla incapacidade é, segundo Bresser, extrema­
mente acentuada pelos preceitos contidos na Carta de 1988. Refere-se
às conquistas sociais contidas na Constituição como "retrocesso buro­
crático" (Bresser Pereira, 1998: 163), podendo, tais conquistas, se im­
plementadas, perpetuar e agravar nossa histórica herança de uma re­
lação Estado/sociedade marcada pelo clientelismo, patrimonialismo

7. Dessa forma, demandas pela descentralização tanto podem estar orientadas por pers­
pectivas econômicas e ideopolíticas de defesa da minimização da capacidade regulatória
do Estado no âmbito da gestão e operacionalização de políticas sociais quanto por aquelas
que defendem a expansão e qualificação da responsabilidade pública estatal neste âmbito.
SOCIEDADE CIVIl E DEMOCRACIA 177

e pela burocracia. Dotar o Estado de amplas responsabilidades sociais


também implica no agravamento da crise fiscal do Estado que, para
Bresser, é a principal responsável pela crise da década de 1980.8
É, então, a partir desse "diagnóstico," que aponta a (suposta) raiz
dos nossos males, que a estratégia da descentralização é implementa­
da. Essa estratégia, aqui, refere-se tanto ao processo administrativo —
transferência da responsabilidade das decisões, funções e ações fede­
rais para as instâncias municipais — sendo sinônimo de eficiência e
redução de custos, quanto ao de descentralização na área social, em
que se destacam as proposições relativas à transferência de responsa­
bilidades e funções estatais que podem ser simultaneamente realiza­
das, geridas e executadas pelo Estado, por organizações públicas não-
estatais e por organizações privadas.
Esse tipo de descentralização é tido como ideal para os chama­
dos "serviços não-exclusivos do Estado",9 e pretende a absorção des­
ses serviços pelas chamadas "organizações sociais", definidas como
"entidades públicas não-estatais".10 (Bresser Pereira, 1998a: 237, 246)
O emprego da negativa "não-estatal" é para defini-las como uma ter­
ceira forma de propriedade, a "pública não-estatal", ao lado da pro­
priedade privada e da estatal. O termo é utilizado para destacar a cons­
trução de uma dimensão "pública" que não seja exclusiva do Estado e

8. Ou seja, a noção de direitos sociais é desvinculada dos parâmetros da justiça e da


igualdade, passando a ser associados a custos e ônus que obstam a modernização da econo­
mia, ou então a privilégios corporativos que precisam ser superados. Assim, como afirma
Oliveira (1998: 216), "[...] os significados dos direitos e conquistas civilizatórias, plasmados
em direitos sociais, trabalhistas e políticos são transformados em obstáculos ao desenvolvi­
mento econômico, e mais, são transformados em fatores causais da miséria, pobreza, exclu­
são e ausência de cidadania".
9. No caso das atividades não-exclusivas de Estado, a proposta é que a forma de pro­
priedade dominante seja a pública não-estatal: "O fato de ser pública não-estatal, por sua
vez, implica a necessidade de a atividade ser controlada de forma mista pelo mercado e
pelo Estado. O controle do Estado, entretanto, deve ser necessariamente antecedido e com­
plementado pelo controle social direto, derivado do poder dos conselhos de administração
constituídos pela sociedade. E o controle de mercado se materializa na cobrança dos servi­
ços. Dessa forma, a sociedade atesta permanentemente a validade dos serviços prestados,
ao mesmo tempo em que se estabelece um sistema de parceria ou de cogestão entre o Estado
e a sociedade civil". (Bresser Pererira, 1998a: 263)
10. A definição de "serviços não-exclusivos do Estado" implica que tais serviços po­
dem ser realizados por instituições não-estatais, consideradas prestadoras de serviços ao
Estado, celebrando com ele "contratos de gestão", "parcerias".
78 m . i. d u m g u etto

também para romper com o entendimento da identificação da esfera


privada como esfera marcadamente mercantil. É com essas organiza­
ções que surge, como figura legal, o chamado "terceiro setor".
Esses dois vetores descentralizantes nas estratégias neoliberais
— o administrativo e o da área social —, objetivam, na verdade, a
minimização da ação pública estatal no que tange aos serviços e políti­
cas sociais — especialmente às políticas que compõem o campo da Se­
guridade Social — e sua transferência para a sociedade civil (conver­
tida em "terceiro setor") e o mercado.
A descentralização administrativa no que tange aos serviços so­
ciais é aqui concebida como um modo de aumentar a eficiência e a
eficácia do gasto, já que aproxima problemas e gestão." No entanto,
para se atingir as condições ideais de "governança", essa estratégia
tem-se caracterizado pela delegação de serviços — transferência da
responsabilidade sobre sua oferta para os níveis estaduais e locais sem,
entretanto, ser acompanhada pelo repasse de recursos financeiros.
Sendo assim, a descentralização no campo das políticas e serviços so­
ciais para as esferas estaduais e locais vem sendo realizada apenas no
nível do gerenciamento — administração, por essas esferas, dos par­
cos recursos financeiros e da execução dos serviços, ao mesmo tempo
que concentra na esfera federal o controle financeiro dos recursos e o
controle político das decisões. Dessa forma, como afirma Soares (2000:
83), o que se tem é um "processo de descentralização destrutiva" por
desenvolver, por um lado, "o desmonte de políticas sociais existentes
— sobretudo aquelas de âmbito nacional — sem deixar nada em subs­
tituição",112 e, por outro lado, por delegar "aos municípios as compe­

11. Segundo Arretche (1997: 128), "[...] passou-se a associar centralização a práticas
não democráticas de decisão, à ausência de transparência de decisões, à impossibilidade de
controle sobre as ações de governo e à ineficácia das políticas públicas. As expectativas
postas sobre a descentralização e a visão negativa das formas centralizadas de gestão impli­
cariam, como conseqüência, a necessária redução do escopo de atuação das instâncias cen­
trais de governo".
12. De acordo com Arretche (1997:145): "a transição para um outro tipo de Estado, no
sentido de que o governo federal venha a desempenhar novas funções, relacionadas à coor­
denação, regulamentação e fiscalização de funções descentralizadas [...] supõe necessaria­
mente que o centro do sistema (a União) seja administrativa e institucionalmente forte. Por­
tanto, antes que um esvaziamento das funções dos níveis centrais de governo, o sucesso da
descentralização supõe [...] um reordenamento expansivo das agências do governo central
[...] reordenamento este que implica um governo central fortalecido". Ou seja, supõe forta­
SOCIEDADE CIV Il E DEMOCRACIA '79

tências sem os recursos correspondentes e/ou necessários". Na mes­


ma direção, afirma Laurell (1997: 167), que a descentralização neoli-
beral tem por objetivo introduzir mecanismos gerenciais e incentivar
os processos de privatização, deixando em nível local a decisão a res­
peito de como financiar, administrar e produzir os serviços".
A privatização dos serviços e políticas sociais constitui uma es­
tratégia que, de modo geral, acompanha esses processos de descen­
tralização administrativa e financeira. A privatização vem sendo rea­
lizada tanto em relação à transferência da oferta desses serviços para
a sociedade civil quanto pelo mercado. O primeiro vetor privatizante
é a transferência da produção e/ou distribuição dos serviços sociais
para as "instituições públicas não-estatais" que compõem o chamado
campo do "terceiro setor":13 associações de filantropia, grupos e orga­
nizações comunitárias, ONGs, trabalho voluntário, organizações fi­
lantrópicas tradicionais e suas formas modernas, aí incluindo a cha­
mada filantropia empresarial.14

lecimento de suas capacidades administrativas e institucionais na condução e regulação de


políticas setoriais implementadas pelos governos subnacionais.
13. Exemplo de ações privatizantes de serviços e políticas sociais e sua alocação na
sociedade civil é a programática presente no programa "Comunidade Solidária", que reti­
rou a política de assistência social do campo dos direitos, da universalidade dos acessos e
da responsabilidade estatal em sua oferta, tal como prevê a Lei Orgânica da Assistência
Social (LOAS) para programas de "combate a pobreza" através de ações focalizadas e sele­
tivas nos municípios mais pobres do país. Assim, o que restaria de público-estatal no âmbito
da política de assistência seria operado por programas que direcionam o atendimento se­
gundo ações focalizadas a públicos seletivamente escolhidos pela sua maior necessidade e
urgência. Na medida em que amplos setores da população ficarão excluídos desses servi­
ços, pois não preenchem os requisitos máximos de pobreza e também não têm condições de
acesso aos serviços privados, transfere-se às "instituições não-estatais" a iniciativa de assis­
ti-los. Com esse quadro, como assinala Yazbek (1998: 53), as políticas sociais "[...] deverão
acentuar seus traços de improvisão e inoperância, seu funcionamento ambíguo na perspectiva
de acomodação de interesses e sua impotência na universalização do acesso aos serviços
sociais dela derivados. Permanecerão casuísticas, fragmentadas, sem regras estáveis, ope­
rando em redes públicas obsoletas e deterioradas. Seu perfil, historicamente marcado pelo
assistencialismo, corre o risco de uma exacerbação acompanhada de uma regressão de di­
reitos sociais".
14. O crescimento das iniciativas empresariais para a oferta de projetos sociais pode
ser atestado pela criação do Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), em 1991.
Como nos esclarece Raichelis (1998: 77), trata-se agora não "[...] apenas da filantropia tradi­
cional, mas da filantropia do grande capital, que moderniza seu discurso e suas práticas,
incorpora pautas que buscam homogeneizar o discurso dos diferentes segmentos da socie­
l8o M. L. DURICUETTO

O segundo vetor de privatização é a mercantilização total ou par­


cial dos serviços sociais. Estes, enquanto lucrativos, passam a ser
mercantilizados, e sua principal conseqüência tem sido a introdução
de uma dualidade discriminatória: serviços melhores para quem pode
pagar e de pior qualidade para quem demanda o acesso gratuito. Isso
vem provocando, crescentemente, um padrão de cidadania segmen­
tado, definido pelos usuários dos precários serviços públicos e das
práticas "renovadas" de filantropia pública e/ou privada e por aque­
les que têm acesso aos serviços fornecidos pelo mercado, pois soube­
ram provar suas capacidades e potencialidades.
Dessa forma, os processos de descentralização administrativa e
financeira e de privatização no campo das políticas sociais relaciona-
se com a desregulamentação do papel do Estado,15 uma vez que este
passa a concentrar a oferta de políticas sociais sob o critério da seleti­
vidade e do focalismo e a transferir a responsabilidade de sua oferta
universalizante para o campo do terceiro setor (leia-se sociedade ci­
vil). Comparece, aqui, com grande força, o discurso da solidariedade,
da participação comunitária, do estímulo a iniciativas privadas (mer­
cantis e não-mercantis) nas ações sociais, do voluntarismo e do
apoliticismo.
Nessa direção, a sociedade civil é instrumentalizada pelo Estado
e pelo capital para torná-la uma esfera de representação indiferenciada e
homogênea de interesses. Procura-se encobrir seu caráter classista pelo
manto da solidariedade e, com isso, despolitizar os conflitos sociais.
Toma a frente uma dinâmica associativa restrita nos limites da parti­
cularidade de grupos sociais diversos, cuja dimensão política é redu­
zida à responsabilidade moral, sendo a linguagem dos direitos substi­
tuída pelo discurso humanitário da filantropia e da solidariedade
(Telles, 1998: 113-114).

dade, redefinindo o papel socializador do capital e ampliando suas ações para fora da em­
presa como 'parceiros' na implementação de políticas sociais". Surge, assim, a figura da
"empresa cidadã".
15. Entretanto, como afirma Netto (1999: 86-87), "[...] o projeto político da grande bur­
guesia brasileira não exclui a vigência de políticas sociais, o que exclui é uma articulação de
políticas sociais públicas, cujo formato tenha como suposto um Estado que ponha limites
político-democráticos à lógica do capital [...] que tenha por eixo uma função democrático-
reguladora em face do mercado".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 101

Não obstante, essa face solidária imputada pelo Estado e pelo


capital às organizações, movimentos e ações que compõem a socieda­
de civil ou "terceiro setor", isso não significa que se tenha deixado de
lado o permanente trabalho ideológico de conceber e de reforçar a
dinâmica das relações sociais cimentada em valores individualistas e
particularistas. Sendo assim, àquela lógica solidária da sociedade ci­
vil, sobrepõe-se uma concepção hegemônica de valores que orientam
a reestruturação do capital e as transformações do Estado. E nessa
concepção hegemônica, a sociedade civil é vista como esfera em que
os indivíduos buscam a expressão e a realização de seus interesses
particulares. É, portanto, o reino do mercado, sendo este o motor da
regulação das relações sociais e de toda racionalidade política possí­
vel. Ou seja, a política passa a ser tratada e pensada a partir de crité­
rios de "custo-benefício", "eficiência" e "racionalidade econômica",
condição sem a qual o mercado não pode realizar plenamente suas
supostas virtudes civilizadoras.
Esse caldo cultural mercantil no qual a política é pensada e legi­
timada tende a expressar uma sociabilidade que revigora práticas po­
líticas e sócio-culturais individualistas, competitivas e corporativas.
Tais práticas podem, progressivamente, acentuar a despotitização, que
se expressaria na deslegitimação da política e no afastamento dos in­
divíduos das arenas de discussão pública. A tendência é de termos,
então, a atrofia da política, da representação e dos canais institucio­
nais enquanto espaçe» de mediação da construção de um interesse
coletivo capaz de viabilizar a defesa de direitos. (Nogueira, 1998:282)
Como afirma Gómez (1995: 9):

[...] os governos radicalmente comprometidos com as reformas pró-


mercado [...] empenham-se em enfraquecer e tornar ineficazes as
oposições partidárias e sindicais e o próprio jogo das instituições
democráticas em benefício do mais puro decisionismo autoritário e
estilo tecnocrático de governo. Desse modo, o processo democráti­
co fica reduzido ao ritual eleitoral, decreto-leis e explosões frag­
mentadas de protesto; a participação declina e o debate político
desaparece; o Estado diminui e a política-espetáculo se entroniza
pela mão dos meios de comunicação como mais uma prática de
consumo simbólico; os partidos políticos, sindicatos e organizações
sociais representativas enfrentam a alternativa do consentimento
passivo [...]; a corrupção e a falta de responsabilidade no manejo
i8j M. L. DURIOUETTO

dos assuntos públicos vão juntas com a degradação da cultura cí­


vica e dos laços de solidariedade no próprio seio da sociedade
civil, contribuindo assim para reforçar uma cidadania extrema­
mente passiva.

Um outro fato a destacar é a privatização e mercantilização dos


direitos. Ou seja, se a noção dos direitos é substituída pela da solidarie­
dade, pela concessão e pelo voluntarismo presentes nas organizações e
ações do "terceiro setor", ela é, antes, no projeto neoliberal, substituí­
da pela de recursos, sendo a cidadania cada vez mais equiparada à
integração individual ao mercado. Assim, os direitos são deslocados
da luta política, das ações coletivas organizadas das classes subalter­
nas, e passam a transformar-se em assunto privado individual, con­
vertidos em "bens" ou "serviços" adquiríveis no mercado. O correlato
disso é uma acentuada "des-cidadanização" de grandes setores so­
ciais, vítimas do predomínio de critérios econômicos em esferas que
deveríam ser estruturadas em função de categorias de justiça e igual­
dade (Borón, 1999: 9-11, 28). Há, assim, como afirma Oliveira (1998:
216), "[...] uma espécie de sociabilidade da apartação, da segregação,
do confinamento; sobre ela, reforçando-a, as políticas empreendidas
aumentam-lhe o alcance, a legitimam, e, suprema ironia, a metamor-
foseiam em modernidade".
Mas a celebração retórica da sociedade civil — entendida como
"terceiro setor", esfera das ações sociais solidárias, harmônicas, de
auto-ajuda e de ajuda-mútua — não é uma apropriação exclusiva do
projeto neoliberal. Está também presente nos discursos e ações práti-
co-sociais de segmentos intelectuais e organizativos que se colocam
como defensores dos interesses populares.
Queremos chamar, aqui, atenção espedalmente para as formula­
ções teóricas e ações prático-políticas que buscam afirmar-se como
"terceira via" alternativa de sociabilidade, tanto em relação ao merca­
do quanto ao Estado. Nessas definições, a concepção de sociedade
civil é também utilizada para se referir à emergência de um "terceiro
setor", esfera em que se teria uma representação homogênea dos inte­
resses populares. Assim, no debate acerca da sociedade civil transfor­
mada em "terceiro setor", pode-se constatar a presença de duas ten­
dências teórico-políticas: "uma tendência regressiva" (inspirada nos
princípios liberais e neoliberais, em que a defesa do mercado como
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '63

esfera reguladora das relações sociais é a tônica central) e uma de "(su­


posta) intenção progressista" (que concebe a sociedade civil — o ter­
ceiro setor— como espaço privilegiado de interação social). (Montano,
2002: 59) O termo surgiu, nessa segunda tendência, para oferecer uma
alternativa teórica e prático-política à dicotomia, de inspiração liberal,
que identifica a esfera estatal como esfera pública e o mercado como
esfera privada. Essa dicotomia é resolvida com o surgimento concei­
tuai de uma outra esfera — o chamado "terceiro setor" — que atuaria
como espaço de interseção no desempenho de funções públicas a par­
tir de espaços/iniciativas privadas, articulando, assim, o público e o
privado. Construída a partir de um recorte da sociedade em esferas
isoladas e autônomas, a esfera ocupada pelo chamado "terceiro setor"
refere-se — em contraposição ao Estado (tido como primeiro setor) e
ao mercado (segundo setor) — à sociedade civil.
Essa noção de sociedade civil como espaço da representação ho­
mogênea dos interesses populares é uma reapropriação daquela no­
ção de sociedade civil hegemônica nos discursos e nas ações prático-
políticas dos movimentos sociais da segunda metade da década de
1970 e início da década seguinte. Todas as apostas feitas na sociedade
civil como espaço de ampliação da democracia a partir dos seus mo­
vimentos sociais são aqui recuperadas. Sociedade civil — convertida
em "terceiro setor" — passa a representar o espaço de tudo que não é
Estado (como pensada anteriormente), mas também tudo que não é
mercado. Como afirma um dos defensores desse entendimento, a so­
ciedade civil, agora, formaria "um terceiro setor [...] composto de or­
ganizações sem fins lucrativos, criadas e mantidas pela ênfase na par­
ticipação voluntária, num âmbito não-govemamental, dando conti­
nuidade às práticas tradicionais da caridade, da filantropia e do
mecenato" [...]. (Fernandes, 2000: 27)
A heterogeneidade e diversidade das ações e formas de organi­
zação situados nesse campo do "terceiro setor" — ONGs, institui­
ções filantrópicas, trabalho voluntário e a filantropia empresarial —,
que vêm atuando no desenvolvimento de projetos sócio-educativos,
defesa dos direitos de grupos específicos, prestação de serviços so­
ciais ou na assessoria a organizações populares de defesa de direi­
tos, passam a ser vistos como protagonistas do processo de consolidação
da democracia. E a solidariedade é apontada como saída para suprir a
18 4 M. L. DURIGUETTO

ausência estatal no campo da ação social e como caminho para se


atingir a cidadania.16
Nesse contexto, a reapropriação do conceito de sociedade civil,
hegemônico no debate teórico e nas ações prático-políticas no Brasil,
na segunda metade dos anos de 1970 e primeira metade dos anos de
1980, traz sérias conseqüências. Segundo Coutinho (2000:13), naque­
la conjuntura, o uso do conceito de sociedade civil tinha característi­
cas diferentes do uso que hoje se dá ao mesmo conceito. Naquele con­
texto de luta contra a ditadura, a oposição Estado/sociedade civil ser­
via para demarcar o espaço "civil" como espaço dos movimentos po­
pulares e da luta antiditatorial, contra o espaço do Estado militarizado.
Dessa forma, naquele contexto, a oposição feórico-prática (embora
equivocada) das esferas do Estado e da sociedade civil tinha funda­
mento histórico concreto. O objetivo das forças progressistas era for­
talecer a sociedade civil para enfraquecer, diminuir e erradicar o Esta­
do ditatorial.
Já no construto teórico das concepções do "terceiro setor", o des­
locamento operado daquela oposição Estado/sociedade civil é clara­
mente funcional ao projeto e à ideologia neoliberais. Fortalecer a so­
ciedade civil significa enfraquecer e diminuir as responsabilidades
sociais do Estado (particularmente a partir das conquistas sociais na
Carta de 1988).17Ou seja, sociedade civil — entendida como "terceiro
setor" — toma-se, aqui, um'termo apropriado e ressignificado para
ser funcional ao ptojeto neoliberal na sua nova modalidade de trato
da questão social.

16. Como afirma (Pinheiro, 1994: 6-7), a distinção dessa esfera em relação ao Estado e
ao mercado "[...] obriga o retomo aos valores de uma vida ética e da solidariedade social no
momento em que o mercado se toma um elemento irreversível".
17. Essa tendência também pode ser constatada no que tange aos recursos financeiros
destinados às ONGs pelas agências internacionais. Os financiamentos recentes para ONGs
concedidos por agências filantrópicas européias e norte-americanas, hem como por agên­
cias multilaterais comovo Banco Mundial, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi­
mento — PNUD/BID — e Comissão Econômica para América Latina e Caribe — CEPAL —
sugere um deslocamento de bens e serviços de natureza pública para o setor privado —
associações filantrópicas, ONGs e organizações comunitárias — ao qual caberia a produção
e distribuição de bens e serviços. Há, assim, o compromisso crescente com projetos voltados
para fortalecer a "sociedade civil" e promover a "participação dos cidadãos", (cf. Schild,
2000: 157; Simionatto e Nogueira, 2001)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 105

Nessa direção, as organizações, atividades e ações sociais que


fazem parte desse "terceiro setor" — para além dos seus eventuais
objetivos manifestos — devem ser criticamente interpretadas, como
analisa Montano (2002: 184), "[...] como ações que expressam funções a
partir de valores. Ou seja, as ações desenvolvidas por organizações da
sociedade civil, que assumem as funções de respostas às demandas
sociais [...], a partir dos valores de solidariedade local, auto-ajuda e
ajuda-mútua Assim, o "terceiro setor" deve ser entendido como
uma "alteração de um padrão de resposta social à "questão social" [...] com
a desresponsabilização do Estado, a desoneração do capital e a auto-
responsabilização do cidadão e da comunidade local para esta função
típica do modelo neoliberal ou funcional a ele (Montano, 2002:185)
(grifos do autor).
Deve-se operar, então, uma radical distinção entre o termo socie­
dade civil (pensada enquanto "terceiro setor") e a categoria de socie­
dade civil (na acepção gramsciana adotada neste estudo): se o primei­
ro concebe a sociedade como dividida em esferas setorializadas e au-
tonomizadas, no segundo a categoria da sociedade civil é inserida na
totalidade social; enquanto as organizações do chamado "terceiro se­
tor" são caracterizadas por serem não-estatais e não-mercantis, ho­
mogêneas e sem contradições de classe, as da sociedade civil
gramsciana expressam tanto os interesses da classe dominante na es­
fera econômica e seus desdobramentos na lógica estatal quanto os das
classes subalternas; se as organizações do "terceiro setor" revestem-se
de valores solidários, altruístas e, portanto, a-classistas e a-políticos, o
conjunto de organizações da sociedade civil é definido por Gramsci
como sendo marcado por concepções e atividades políticas de deter­
minações classistas. E, por fim, se o objetivo ideopolítico das organi­
zações do "terceiro setor" é construir o "bem comum" a partir de uma
negociação harmônica entre cidadãos independentemente de seus in­
teresses de classe — sem questionar, assim, os fundamentos do siste­
ma capitalista — os da sociedade civil do marxista italiano é o de lutar
pela manutenção da hegemonia dos fundamentos deste sistema ou
da construção de uma contra-hegemonia que se materializará na for­
mação de um novo projeto societário.
A partir das considerações feitas acima podemos, então, concluir
que a apropriação e ressignificação da celebração retórica da socieda­
de civil e sua expressão como "terceiro setor", tanto pelos "(supostos)
|86 M. L. OURICUEnO

setores progressistas" quanto pelo projeto neoliberal, coincidem em


aspectos substantivos nas suas considerações. A principal decorrên­
cia dessa semelhança é a funcionalidade da dinâmica prático-política
das organizações desse "terceiro setor" em relação às diretrizes da rees­
truturação do capital e do Estado no sentido de reforçar, cada vez mais,
a lógica corporativa no sistema de representação de interesses e a lógi­
ca da solidariedade e da concessão no que tange aos direitos.
É na direção da denúncia dessa concepção minimalista do Esta­
do e da democracia, do encolhimento dos espaços e instituições pú­
blicas e da defesa da ampliação das práticas de representação, interlo-
cução e negociação política para a criação, reconhecimento, garantia e
consolidação de direitos, que se desenvolve um outro universo teóri­
co a partir do final da década de 1980. A partir desta década, houve
uma significativa ampliação do debate teórico acerca das categorias
sociedade civil e democracia e da relação entre elas, entretanto, essa
ampliação não veio sem estar acompanhada de significativas fragili-
dades e imprecisões.
Antes de nos deter nesse debate, retomaremos as análises reali­
zadas por Coutinho e Weffort acerca destas categorias no período em
tela,18 buscando apreender suas atualizadas e/ou reatualizadas con­
tribuições acerca do que entendem e defendem como sendo o cami­
nho a ser seguido para se atingir a universalidade democrática.

4.2. Democracia e cidadania: a favor ou contra a corrente?


As produções de Coutinho acerca da "questão democrática" ca­
minham no sentido de retomar e aprofundar as análises que desen­
volveu no ensaio de 1979. Em Contra a corrente. Ensaios sobre democra­
cia e socialismo19 (2000), o autor faz uma correção em relação ao ensaio
de 1979 no que tange ao entendimento da "democracia como valor
universal". Afirma, que um melhor entendimento do valor universal
da democracia estaria em concebê-la enquanto um processo de demo­

18. Não encontramos nenhuma produção teórica de Chaui que retratasse as categorias
sociedade civil e democracia no período em tela.
19. Coletânea que reúne textos escritos entre 1989 e 1999 e que retomam os temas trata­
dos em Democracia como Valor Universal.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 187

cratização direcionado para a construção de transformações nas esfe­


ras políticas e econômicas que apontem para a construção de um novo
projeto societário.20 Nessa direção, a radicalidade do caráter universal
da democracia não estaria exclusivamente na sua constituição enquan­
to aparato político-institucional, mas antes, e sobretudo, nas orienta­
ções ideopolíticas que as classes subalternas — organizadas no seio
da sociedade civil — imprimem para a construção da hegemonia de
seu projeto de classe. E são estas orientações que substantivariam os meca­
nismos políticos-institucionais democráticos. Esses, assim, seriam a materia­
lização dos processos de democratização contidos naquela construção.
Ao longo dos anos da década de 1990, esse entendimento da
"questão democrática" assumido pelo autor pode ser evidenciado nos
seguintes textos: "Democracia e socialismo no Brasil de hoje"; "De­
mocracia e socialismo: questões de princípio"; "Notas sobre cidada­
nia e modernidade".21 Agrupados na coletânea acima mencionada,
esses textos serão aqui abordados, conjuntamente, uma vez que o tra­
tamento analítico oferecido pelo autor acerca das categorias socieda­

20. Para Coutinho (2000: 129), o título que nominava seu artigo "Democracia como
valor universal" devia ser mudado para "democratização como valor universal", uma vez
que, para o autor, [...] democracia deve ser entendida não como algo que se esgota em deter­
minada configuração institucional, mas sim como um processo, "[...] porque a democracia é
necessariamente alguma coisa que se aprofunda e que combina indissoluvelmente reformas
políticas com reformas econômicas e sociais". Embora o entendimento dessa dinâmica seja
melhor traduzido por democratização, pensamos que, no artigo de 1979, Coutinho já explicita
com clareza e radicalidade a diferença entre o "valor universal da democracia" e o limite da
democracia política. Ou seja, naquele texto já aparece explícita a noção de que identificar
democratização e democracia política conduz a um processo de restrição da democratiza­
ção. Quartim, em artigo recente, critica a (suposta) reafirmação realizada por Coutinho em
Contra a corrente acerca da universalidade da questão democrática, particularmente da de­
mocracia política liberal. Segundo Quartim, o que Coutinho faz "[...] para afirmar a necessi­
dade de democracia no socialismo" é "proclamá-la um valor universal, como se o paradig­
ma das instituições políticas de toda a humanidade se encontrasse na democracia burguesa
ou seja, Quartim entende que, para Coutinho, "[...] o valor universal da democracia já
estaria historicamente configurado nas instituições políticas dos países liberais". (2001:10)
Ora, se o valor da democracia fosse, para Coutinho, o presente nas instituições políticas
liberais, o autor estaria identificando democracia política com democratização. E isso é abso­
lutamente negado tanto no artigo de 1979 quanto no livro em tela.
21. Textos publicados respectivamente em: VAa. A democracia como proposta, 1991; De­
mocracia e Socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro, 1992; e VAa. Praia Vermelha:
estudos de política e teoria social, 1997.
188 M. L. DURIGUETTO

de civil e democracia é neles explicitado a partir dos mesmos funda­


mentos téorico-políticos.
Coutinho retoma o conceito de sociedade civil tal como Gramsci
o formulara para afirmar que é nessa esfera e por meio dela que se
efetiva a formação dos sujeitos políticos coletivos. Tal formação rela­
ciona-se com os processos de socialização das forças produtivas, que
provoca a emergência de múltiplos interesses organizados na esfera
pública, tomando a "obtenção do consenso" um recurso decisivo da
ação política. (Coutinho, 2000: 28)
Reafirma que as novas determinações do fenômeno estatal — tal
como revelaram Gramsci e Poulantzas — colocam a necessidade de
um novo conceito de revolução: o centro da luta está na "guerra de
posição" travada no âmbito da sociedade civil e, a partir dela, no pró­
prio seio do Estado. O produto da "guerra de posição" seria a supres­
são da apropriação privada dos meios de produção e da apropriação
privatista do poder, ou seja, a realização do que Marx chamou de "au-
togovemo dos produtores associados" (Coutinho, 2000: 29).
O processo de alcance desse "autogovemo" por meio e através
da estratégia da "guerra de posição" tem na busca do consenso — de
uma "síntese entre predomínio da vontade geral e a conservação do
pluralismo" — o seu norte ideopolítico. Coutinho recorre novamente
a Gramsci para afirmar que a busca desse consenso, ou seja, dessa
construção hegemônica, implica a necessária elevação dos interesses
específicos das classes subalternas (econômico-corporativos) ao inte­
resse ético-político ou universal (progressiva convergência das vonta­
des particulares para uma vontade coletiva). Entretanto tal elevação
precisa ocorrer mediante uma negociação que não pressupõe a elimi­
nação ou repressão dos interesses particulares (Coutinho, 2000: 31).
Tal como afirma no artigo de 1979, e novamente recorrendo às
formulações de Togliatti e Ingrao, a articulação institucional entre he­
gemonia e pluralismo se efetivaria pela integração entre institutos de
democracia de base e os de representação, que abertos à pressão po­
pular, poderíam expressar a síntese política das demandas dos vários
sujeitos coletivos, "tomando-se assim a instância institucional decisi­
va da expressão da hegemonia" (Coutinho, 2000: 33).
Reafirma também ser o conceito de hegemonia o ponto principal
que demarca a diferença entre a concepção liberal e a marxista da de­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 189

mocracia, uma vez que, para os liberais, democracia é sinônimo de


pluralismo. Nesse sentido, para Coutinho, "democracia de massas" é
sinônimo de defesa do "interesse comum", de construção de hegemo­
nia no pluralismo, da formação de consensos no interior e a partir dos
interesses de classe. Tal processo abre a possibilidade para uma políti­
ca de reformas de estrutura, que conduza gradualmente à superação
do capitalismo, o que requer que sua execução seja controlada pelos
sujeitos coletivos interessados em sua realização. É a direção da supe­
ração do capitalismo que "dará a pauta para a hierarquização das re­
formas, para a definição dos atores (e das alianças) que podem executá-
las É este o processo que cria o movimento de um "reformismo
revolucionário": "um reformismo que tem como objetivo explícito
aprofundar a democracia e superar o capitalismo"; (Coutinho, 2000:
46-47) ou seja, um processo de democratização que consiste em fo­
mentar, por meio de um conjunto de reformas, a transformação social
revolucionária do capitalismo. E completa: "esse reformismo radical é
o novo nome de revolução". (Coutinho, 1992: 46)
Em "Notas sobre cidadania e modernidade", Coutinho (2000:50)
agrega o tema da cidadania à reflexão teórica sobre democracia. Parte
da definição de democracia como "sinônimo de soberania popular",
ou seja "presença efetiva das condições sociais e institucionais que
possibilitam ao conjunto dos cidadãos a participação ativa na forma­
ção do governo e, em conseqüência, no controle da vida social".
E essa noção de democracia é estendida ao seu conceito de cida­
dania, definido como [...] a capacidade conquistada [...] por todos os
indivíduos de se apropriarem dos bens socialmente criados, de atua­
lizarem todas as potencialidades de realização humana abertas pela
vida social em cada contexto historicamente determinado. (Coutinho,
2000: 50)
Nessa direção, Coutinho afirma que "a universalização da cida­
dania é, em última instância, incompatível com a existência de uma
sociedade de classes. Ou, em outras palavras: a divisão da sociedade
em classes constitui limite intransponível à afirmação conseqüente da
democracia". E conclui: "só uma sociedade sem classes — uma socie­
dade socialista — pode realizar o ideal da plena cidadania, ou, o que é
o mesmo, o ideal da soberania popular e, como tal, da democracia".
(2000:67-68) Sendo assim, para o autor, democracia, cidadania e sobe­
rania popular são conceitos equivalentes.
190 M. L. OURICUtTTO

Os projetos societários presentes na dinâmica da vida política


brasileira contemporânea ou desde o fim da ditadura são identifica­
dos pelo autor em Democracia e socialismo no Brasil de hoje. Afirma a
existência de dois modelos de estruturação do poder e de representa­
ção de interesses no cenário nacional: o "modelo liberal — corporati­
vo" e o de "democracia de massas". A predominância do primeiro,
como resultado negativo da nossa "transição fraca", vem expressar o
projeto ideo-político neoliberal das classes dominantes, que busca atri­
buir ao mercado a tarefa de regular conflitos de interesses e de satisfa­
zer as demandas sociais. Segundo Coutinho, seus pressupostos políti-
co-institucionais são uma sociedade civil que se auto-organize
corporativamente bem como a sua transformação num "terceiro se­
tor", esfera situada para além do Estado e do mercado, regida por
uma lógica "solidarista" e "filantrópica" para a qual seria transferida
a responsabilidade na gestão e implementação das políticas sociais.
(Coutinho, 2000: 98) É para essa chamada "esfera pública não-estatal"
(ONGs, entidades assistenciais e filantrópicas etc.) que se manifesta a
tentativa de "despolitizar" a sociedade civil. É nessa direção, segundo
o autor, que as classes dominantes vêm tentando obter consenso para
o seu modelo de representação de interesses "liberal-corporativo", ou
seja, através do enfraquecimento das instâncias globalizadoras da
política e do estímulo às formas de representação corporativas e
setoriais das classes subalternas na sociedade civil.
Segundo Coutinho, o pfojeto hegemônico alternativo a este é o
da "democracia de massas" que busca, a partir da articulação do "plu­
ralismo de interesses", a construção de amplos consensos majoritá­
rios "[...] por meio da gestação de um espaço público em que se com­
binem hegemonia e pluralismo [...]". É a partir desse consenso majori­
tário que podem ser implementadas profundas reformas estruturais
cujo resultado pode abrir caminho para a progressiva construção do
socialismo. (Coutinho, 2000: 100-101)
Aqui, os pressupostos político-institucionais são a proliferação
da participação política organizada das classes subalternas na socie­
dade civil via movimentos sociais, sindicalismo combativo e a media­
ção de instâncias globalizadoras da política, como os partidos. Dessa
forma, permanecendo fiel ao entendimento gramsciano, sociedade
civil, aqui, nada tem a ver com "terceiro setor", ou seja, com uma
esfera situada para além do Estado e do mercado, esfera de relações
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 191

a-classistas e a-políticas. Ao contrário, sociedade civil "[...] faz parte do


Estado em sentido amplo, já que nela têm lugar evidentes relações de poder"
e é sobretudo uma "esfera da luta de classes". (Coutinho, 2000: 170-171)
(grifos nossos)
Coutinho afirma que, no artigo de 1979, ele não sugeria à
esquerda que optasse entre democracia e socialismo ou, que identifi­
casse democracia com liberalismo". Para o autor, tal opção e identifi­
cação é a que se encontra nas tentativas teóricas contemporâneas do
campo progressista no sentido de compatibilizar capitalismo e justiça so­
cial. Nesse sentido, afirma que seus textos continuam situando-se con­
tra a corrente, posto que mantêm a defesa de que se "[...] sem democra­
cia não há socialismo, tampouco há democracia plena e consolidada
sem socialismo, ou seja, sem a superação da sociedade de classes, fun­
dada na exploração e na alienação". (2000:13) Assim, "[...] 0 valor uni­
versal da democracia só se realizará plenamente no socialismo". (2000: 13)
(grifos nossos)
Em direção contrária à tomada por Coutinho, o tratamento das
categorias sociedade civil, democracia e cidadania oferecido por
Weffort na conjuntura da década de 1990 caracteriza-se pela absoluta
consonância com os postulados da democracia pluralista liberal e da
cidadania, tal como definida nos termos marshalianos. Em Qual demo­
cracia? (1992), o autor assume com clareza uma posição já presente,
ainda que não de forma explícita na obra anteriormente analisada,
Por que democracia (1984), de defender a relação entre restauração e
consolidação da democracia política e a conquista da cidadania nos
termos de Marshall.
Incorpora, na sua definição de democracia política, a concepção
dahlsiana de "poliarquia"22 e as duas dimensões que o teórico ameri­
cano defende como necessárias para a "democratização da poliarquia":
grau de institucionalização das "regras do jogo" e participação da

22. Como exposto no capítulo 2, Dahl defende que o requisito mínimo fundamental
para a existência de um regime democrático é que os cidadãos tenham oportunidades de
formularem suas preferências, expressando-as através da ação individual e coletiva, e de tê-
las igualmente consideradas nas políticas governamentais. Esse requisito exige regras míni­
mas para que possa ser operacionalizado, quais sejam: liberdade de organização e de ex­
pressão; eleições livres e limpas; sufrágio; direito de concorrer aos cargos eletivos; isonomia
eleitoral; pluralismo de fontes de informação e igual obtenção de informações sobre as alter­
nativas apresentadas.
19* M. I. DURIGUETTO

população no sistema político (capacidade de influenciar o governo e


suas políticas). Para Weffort (1992: 33), o regime político só se tomará
mais democrático na medida que aumentarem a organização e parti­
cipação popular. Segundo ele, "trata-se [...] de promover um aumento
da capacidade de organização democrática entre a população em ge­
ral e, particularmente, entre os segmentos mais pobres". Aliado a isso,
aponta ser também fundamental "[...] lutar por uma eqüidade social
no interior do quadro institucional vigente". E conclui: "[...] esta é a
direção a ser seguida na luta pela cidadania, a fim de alcançarmos
uma nova inter-relação entre democracia política e democracia social".
Nessa perspectiva, aponta como critérios para a efetivação da
democracia a defesa das "regras do jogo", ou seja, regras institucio­
nais que edificam a democracia política — eleições livres e periódi­
cas, direitos e liberdades individuais etc. — bem como a garantia de
algum nível de "igualdade social" entre os indivíduos que os possibi­
lite a concretamente ascenderem em "igualdade política". No entan­
to, a igualdade que defende não é, como ele próprio afirma, a "igual­
dade de poder e riqueza", "mas a igualdade dos indivíduos enquanto
tais". Ou seja, seu conceito de igualdade social refere-se às "condições
sociais mínimas" garantidas pelo desenvolvimento dos direitos con­
substanciados na cidadania marshalliana. Com estes pressupostos teó­
ricos da democracia política e da cidadania social liberal, Weffort con­
cebe que o "processo de democratização" está radicado na "amplia­
ção da participação da sociedade nas decisões do Estado". Weffort
(1992: 101)
Para o autor, não é possível a construção e consolidação da de­
mocracia sem o mercado, liberdade política sem liberdade econômica
(Weffort, 1992:146). Sendo assim, segundo ele, a defesa de uma pers­
pectiva "socialista democrática" não deve significar a "utopia da im­
possível supressão das diferenças entre dirigentes e dirigidos, mas um
enorme esforço no sentido do desenvolvimento da democracia políti­
ca e das instituições da sociedade civil" no sentido da busca da am­
pliação de sua participação nos canais de decisão das políticas esta­
tais. (1992: 51) O que é destacado, nesse marco teórico em que assenta
suas reflexões, é a institucionalização de um sistema político que pos­
sibilite a organização das demandas dos diferentes grupos de interes­
se existentes na sociedade civil e sua expressão e incorporação no apa­
rato estatal.
SOCIEDAOt CIVIL E DEMOCRACIA •93

Como podemos perceber, este texto de Weffort revela, em relação


à sua produção da década de 1980, apontamentos mais precisos de
sua proposta democrática na direção do modelo da democracia plura­
lista e da cidadania liberal.
0'Donnell é um outro autor que também vem tematizando a
questão democrática no Brasil dos anos 90 no rumo dos marcos teóri­
cos em tela.23 No entanto, suas elaborações estão voltadas para eluci­
dar as "insuficiências democráticas" contidas e postas na nossa insti-
tucionalidade política. Nessa direção 0'Donnell (1996; 1998) desen­
volve considerações que apontam limites às análises que definem a
"consolidação democrática" somente a partir da "institucionalização
da democracia política" e da "desconcentração sócio-econômica" (en­
tendida como "condições sociais mínimas"), tal como está presente
em Weffort. Para 0'Donnell (1996:10), as interpretações que definem
o processo de "consolidação democrática" somente baseada nos dois
critérios descritos acima tendem a ter uma visão "minimalista" desse
processo. Isso por tais interpretações centrarem-se, primeiro, na ne­
cessidade de realização de um alto grau de institucionalização demo­
crática e na presença de uma estreita relação entre comportamento e
normas formais, para depois passar a ter relevância, em suas prospec-
ções, questões tais como desempenho das instituições políticas, a ques­
tão de como e em que medida os governos respondem às expectativas
dos cidadãos e a estes prestam contas, e de em que medida o império
da lei se estende pelo território e pelos diferentes estratos ou classes
sociais.
Nesse sentido, revela que concentrar esforços analíticos em ins­
tituições formais impede que se reconheça um outro padrão de con­
duta institucional, que, embora informal e às vezes oculto, modela e
influencia muitas instituições poliárquicas, como o clientelismo e, de
forma mais geral, o particularismo (nepotismo, corrupção, "favores e
jeitinhos").
Para o autor, essas formas de conduta expressam, na sua totali­
dade, ações e mecanismos políticos antagônicos aos requisitos uni-

23. A incorporação das análises desenvolvidas por 0'Donnell (2000), justifica-se devi­
do à sua significativa produção acerca das características do processo de transição política
brasileira e do desenvolvimento de interpretações acerca dos déficits contemporâneos da
democracia na realidade nacional.
19* M. L. OURICUETTO

versalistas de interesse público exigidos das ações dos governantes


que desempenham funções públicas. A distinção entre interesse pú­
blico e interesse privado acaba sendo dissolvida na pouca transparên­
cia das práticas e condutas políticas nos processos de prestação de
contas, de representação e de elaboração de políticas. Nesse sentido, o
conjunto dessas práticas expressa uma configuração democrática em
afinidade com "[...] concepções e práticas delegativas, e não represen­
tativas, de autoridade política [...]". (0'Donnell, 1996: 28)
Afirma que, no caso de um país como o Brasil, o arranjo institu­
cional de direitos e garantias de legalidade democrática tem pouca
efetividade. Segundo o autor, as análises do funcionamento da demo­
cracia brasileira, desde 1985, apontam a persistência de um comporta­
mento não democrático das elites políticas, que continuam seguindo
estratégias "patrimonialistas e corporativistas". Assinala, assim, uma
"crise" estatal em três dimensões: do Estado, enquanto um conjunto
de burocracias capaz de cumprir suas obrigações; da efetividade de
sua lei; e da plausibilidade da afirmação de que os órgãos do Estado
normalmente orientam suas decisões segundo alguma concepção de
bem público. (0'Donnell, 1991; 1993)24
Um outro componente da crise do Estado está relacionado ao
déficit de accountability (mecanismos de cobrança e de prestação de
contas), constatação também corroborada por Diniz (2000: 46) ao afir­
mar a inexistência de instrumentos garantidores da responsabilização
pública dos governantes diante da sociedade e das demais instância
de poder.
Segundo a autora, o que temos é a institucionalização do estilo
tecnocrático de gestão, caracterizado pela expansão das prerrogativas

24. Na mesma direção, afirma Santos (1992: 97) que a lacuna deixada por essa destitui­
ção manifesta-se no mundo social que circunda a precária estabilidade das instituições de­
mocráticas. Em pesquisa realizada, o autor evidencia uma profunda recusa de participação
e de confiabilidade, pela população, nas instituições políticas, partidárias e associativas.
Define como "híbrido institucional" o padrão democrático brasileiro, pois se assenta sobre a
existência de uma cidadania não poliárquica — alienada eleitoralmente e refratária a políti­
cos, convivendo em interações de mercado com parcela poliárquica da cidadania. E chama
atenção, tal como 0'Donnell, para a insuficiência da cobertura legal e jurídica do Estado, o
que reforça a desconfiança nas instituições e nos poderes constituídos. Dessa forma, conclui
que temos uma democracia peculiar, em que prevalece a ausência de direitos e a falta de
acesso à ordem legal, o que leva à busca de soluções privadas para problemas de ordem
pública e reduz, se não inviabiliza, o exercício da cidadania.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 195

legislativas do executivo, via decretos-leis e medidas provisórias; pela


concentração do processo decisório na alta tecnocracia governamen­
tal; pelo alto grau de insularidade burocrática; e pelo esvaziamento
do poder governativo do congresso. Desperdícios, malversação de re­
cursos públicos, fraudes, abuso de poder, nepotismo, tráfico de in­
fluência, enriquecimento ilícito, vazamento de informações privile­
giadas, sonegação fiscal, tomaram-se práticas generalizadas e rotinei­
ras (2000: 44).
0'Donnell afirma que também temos tido uma construção de
baixa intensidade em termos de direitos civis. Define como "legalida­
de truncada" as condições democráticas de garantia de direitos políti­
cos, que não conseguem, por sua vez, fazer vigorar a lei e garantir os
direitos civis e a justiça, subtraídos por discursos paralelos de poder
que obliteram a dimensão pública da cidadania.
Defende, assim, que pensar na "democraticidade" do regime
político implicaria em pensar na presença da vigência de um Estado
de Direito com leis públicas transparentes e universais em relação a
três aspectos: liberdades e garantias políticas, direitos civis e redes de
responsabilidade e accountability. (0'Donnell, 1998: 50)
Assim, a democracia deixaria de ser só um regime político para
também ser uma forma de interação entre Estado e sociedade regida
pelos pressupostos da cidadania civil e política. Enfatiza que, "[...]
sem resvalar para 0 erro de identificar democracia com igualdade ou bem-
estar substantivos", as teorias da democratização devem reconhecer e
investigar, nas realidades concretas e específicas, a efetiva coexistên­
cia da cidadania política com a civil. Argumenta que, quando con­
quistados e exercidos, os direitos civis e políticos fornecem uma base
valiosa para lutar por outros, mais específicos e substantivos.
(0'Donnell, 1998: 54-55) (grifos nossos).
Expostos os elementos centrais das contribuições de 0'Donnell,
referentes aos aspectos que aponta como necessários ao processo de
concretização da democracia, podemos perceber que ganham relevân­
cia, na visão do autor, questões relativas ao déficit de execução do
Estado no que tange à efetiva operacionalidade dos direitos políticos
e civis.
É a democracia enquanto sistema e institucionalidade política
que constitui objeto de suas problematizações, e é neste aspecto que
I?6 M. L. DURICUETTO

procura contribuir para o seu desenvolvimento. Ou seja, com o esta­


belecimento das liberdades e garantias políticas e civis e uma rede
eficiente de mecanismos de "prestação de contas" estariam postos os
alicerces para uma relação verdadeiramente democrática entre Estado
e sociedade. É a partir desses alicerces que perspectiva a conquista de
direitos pelos grupos e organizações que compõem a sociedade civil.
Com isto, suas formulações acerca das relações entre sociedade
civil e democracia se desenvolvem no campo teórico do pluralismo
liberal — plena efetividade das regras do jogo e de um Estado de di­
reito verdadeiramente constituído — e da abertura de canais de nego­
ciação no âmbito estatal com as organizações e grupos de interesses
presentes na dinâmica sócio-política da sociedade civil.
A essas interpretações teóricas acerca da nossa "questão demo­
crática" produzidas na década de 1990 vêm juntar-se novas reflexões
que guardam estreita correlação com a conjuntura sócio-política bra­
sileira de ampliação dos canais institucionais de participação das or­
ganizações da sociedade civil nos espaços de discussões das políticas
públicas— possibilidade aberta concretamente pela Carta de 1988 com
a criação legal dos "conselhos de direitos". É com a constatação práti-
co-política dessa nova relação sócio-institucional entre Estado e socie­
dade civil e da dinâmica "conselhista e participativa" que essas novas
experiências engendram, que alguns autores passam a se dedicar à
revisão dos conceitos de sociedade civil e democracia e da relação
destes com o conceito de cidadania.

4.2.1. Sociedade civil (convertida) em "esfera pública" e democracia: a


cidadania dos "espaços públicos"

Depois de uma fase de intensa produção acadêmica acerca das


especificidades teórico-ideológicas e prático-políticas das experiências
das organizações e dos movimentos sociais — desenvolvidos e/ou
em desenvolvimento — das classes subalternas na sociedade civil bra­
sileira na década de 1980, os anos da década seguinte abriram-se para
a reflexão dos temas que essas experiências suscitaram, especialmen-
te aqueles vinculados às questões relativas à relação entre as organi­
zações e os movimentos sociais com as concepções de democracia e
cidadania.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA <97

A questão central que emerge do conjunto dessas formulações é


que a construção de uma ordem democrática não podería se limitar
ao restabelecimento da livre competição política, mas deveria envol­
ver também transformações substantivas nas práticas de governo em
sua interação com as organizações e movimentos populares. E, para
conseguir essas transformações, a temática da descentralização, como
visto anteriormente, passou a tornar-se um consenso, pois possibilita­
ria a promoção de novas formas de participação das organizações e
dos movimentos populares nos espaços de definição das políticas
públicas, o que contribuiría para publicizá-las e democratizá-las.
Ao lado da temática da descentralização nos canais político-ins-
titucionais, os debates e produções teóricas apontaram para a relação
entre democracia e justiça social e mantiveram-se concentrados na bus­
ca de formas mais apropriadas de mecanismos político-institucionais
que pudessem assegurar a incorporação de demandas populares por
direitos sociais. Os debates, assim, passaram a abarcar, com maior
ênfase, questões relativas à ampliação da democracia política em conco­
mitância com a discussão da cidadania. Ou seja, a luta pela conquista e
ampliação de direitos sociais pelas ações prático-políticas das organizações e
movimentos que representam os interesses dos setores populares é vista como
o caminho para a consolidação da democracia. Nessa direção, o debate teóri-
co-prático sobre a cidadania vai aparecer associado à discussão sobre as pers­
pectivas da consolidação democrática no Brasil. E a base "material" de po-
tencialização da cidadania e da democracia será o espaço da sociedade civil,
tematizada como "esfera pública não-estatal".
A seguir, explicitaremos algumas das interpretações mais signi­
ficativas presentes no debate brasileiro, desenvolvidas a partir da se­
gunda metade da década de 1980, acerca dessa relação entre socieda­
de civil (transmutada em esfera pública), democracia e cidadania.
Na avaliação de Dagnino (2000), a contribuição das experiências
associativas e dos movimentos sociais ao processo de construção e
consolidação democrática está na sua inserção nos novos espaços ins­
titucionais de participação, formulação e representação de interesses
abertos a partir da Constituição de 1988. Nessa direção, mecanismos
de democracia participativa podem ser evidenciados nos processos de
representação e intermediação de interesses, especialmente nas "ges­
tões público-administrativas democrático-populares", através da me­
diação de novos canais institucionais que, segundo a autora, vêm pro­
•98 M. I. DURIGUETTO

piciando a construção de novos mecanismos de controle social sobre


o Estado no que tange às políticas sociais públicas.
No entanto, se, para a autora, os movimentos sociais impulsio­
naram e estão impulsionando o Brasil para a progressiva construção
de um modelo político de democracia participativa, pondera que tam­
bém se deve avaliar a importância desses movimentos para a expan­
são e aprofundamento da democracia pensada enquanto "enraizamen­
to social" de uma cultura democrática, ou seja, pela contribuição des­
tes movimentos no questionamento e na mudança progressiva das
práticas sociais e culturais autoritárias presentes na sociedade brasi­
leira, que ditam lugares fixos para seus cidadãos com base em crité­
rios econômicos, raciais e de gênero. Para a autora, o traço distintivo
da contribuição das ações dos movimentos populares é mais do que a
democratização do regime político, é a democratização da sociedade
no que tange às práticas culturais encarnadas em relações sociais de
exclusão (Dagnino, 2000: 80-81), forjando assim uma concepção de
democracia que "transcende o nível institucional formal e se debruça
sobre o conjunto das relações sociais permeadas pelo autoritarismo
social". A consideração dessa dimensão vem implicar, segundo a au­
tora, numa "[...] redefinição daquilo que é normalmente visto como
no terreno da política e das relações de poder a serem transforma­
das". (2000: 104-105)
Os questionamentos e mudanças relativos a essa dimensão
adviram e advêm, reconhece Dagnino, das práticas sociais dos movi­
mentos sociais urbanos, ao lado do movimento de mulheres, de lésbi­
cas e homossexuais, negros, ecológico, de direitos humanos e outros,
na medida em que construíram e/ou levaram — e que vêm construin­
do e levando — ao espaço público novos temas e questões antes consi­
derados como de âmbito privado e individual, para serem confronta­
das na sua dimensão coletiva e pública. Essas questões abrangem te­
mas tais como a exclusão social, as relações étnicas ou de gênero (vio­
lência contra a mulher, racismo, assédio sexual), direitos da criança e
adolescente, discriminação aos portadores de deficiência e aos homos­
sexuais etc., que passaram a constituir objetos de políticas públicas.
Esses variados e múltiplos interesses e temáticas vêm sendo or­
ganizados e debatidos por diferentes movimentos, ONGs, entidades
sindicais, profissionais e acadêmicas, entidades assistenciais ou filan­
trópicas, assessorias, partidos, igreja, mídia, setores governamentais
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA •99

etc, por meio de novas formas de participação e manifestação— fóruns


temáticos de discussão, plenárias, conselhos gestores, conferências —,
que buscam debater, disputar e fundamentar criticamente interesses e
demandas, ampliando-as no âmbito do interesse público e da legiti­
midade do direito.
Segundo Dagnino, é essa nova dinâmica associativa — que emer­
ge mais nitidamente na década de 1990 — que permite visualizar es­
sas organizações, âções e movimentos como redes ou teias que configu­
ram, pela sua multiplicidade e heterogeneidade, não um único proje­
to político, mas um campo ético-político.25 São essas novas práticas que
estão impulsionando processos de construção de um modelo político
de democracia participativa, que se traduz pela ampliação de sua teia
de ações e mediações e pela construção de uma esfera pública não-
estatal que exerce um controle social sobre determinadas políticas
públicas. (Baierle, 2000: 186-189)
Essa trama associativa que se caracteriza pela heterogeneidade,
pluralidade e multiplicidade, a partir de sujeitos, recortes temáticos e
formatos organizacionais diversos, vem revelar, segundo Dagnino,
uma forma de publicização de reivindicações e demandas que não se
processam, exclusivamente, no interior das arenas públicas institu­
cionais. Nessa proliferação de múltiplas esferas públicas não-governa-
mentais ou extra-institucionais está a fundamental contribuição dessa
nova dinâmica associativa para a democracia. E é isso que vem reforçar
a perspectiva "[...] de que mudança da sociedade emerge dela mesma e não da
conquista do Estado". (Dossiê, 1998/1999: 147) (grifos nossos)
Para Dagnino, é através da mediação da cidadania — enquanto
estratégia política — desenvolvida e processada nessas esferas públicas

25. Essa noção de um campo ético-político está relacionada, assim, ao surgimento des­
ta nova configuração associativa em "teias" ou "redes" compostas por sujeitos e organiza­
ções diversas que também se articulam com outras redes internacionais. Entretanto, mais do
que apontar as divergências que atravessam cada um desses movimentos, em que se verifi­
cará uma diversidade de estratégias de lutas, de formato organizativo, da base social e da
representatividade em termos locais, regionais e nacional, formas de mobilização e encami­
nhamento de reivindicações e lutas, o que se enfatiza é que esse campo se caracteriza funda­
mentalmente por estar se articulando em algumas instâncias decisórias no sentido de apre­
sentar propostas consensuais que evitam critérios particulares, comunitários, ideológicos e
partidários, em tomo de algumas políticas mais abrangentes, (cf. Scherer-Warren, 1993;
Alvarez e Dagnino, 1995; Doimo, 1995)
200 M. L. DURIGUETTO

não-governamentais que se conseguem generalizar interesses como in­


teresses coletivos e instituí-los em direitos, contribuindo, por essa via,
para o aprofundamento da democracia.
Essa concepção de cidadania — como estratégia para a amplia­
ção da democracia — distingue-se, segundo Dagnino (1994: 109), da
sua acepção liberal marshalliana, pois não se limita a provisões legais
ou à implementação de direitos formais abstratos, mas está sendo cons­
truída a partir da invenção e criação de novos direitos que emergem
de lutas específicas e da sua prática concreta. Nesse sentido, não está
vinculada a uma estratégia das classes dominantes e do Estado, mas
supõe a "constituição de sujeitos sociais ativos, definindo o que eles
consideram ser os seus direitos e lutando pelo seu reconhecimento".
Desse modo, afirma que a própria definição do significado de direito,
e a afirmação de algum valor ou ideal como um direito, são, em si
mesmas, objetos de luta política.
A "nova cidadania" supõe, assim, a difusão de uma "cultura de
direitos", e se constitui também enquanto uma "proposta de sociabili­
dade" mais igualitária das relações sociais em todos os seus níveis, e
não apenas a incorporação ao sistema político no seu sentido estrito.
Em relação a este, a participação dos cidadãos vêm demandando o
direito de participar de sua própria definição e de sua nova constru­
ção, podendo-se citar como exemplo, o controle e intervenção popu­
lar nas experiências de orçamento participativo nas prefeituras demo-
crático-populares, participação em conselhos, fóruns etc. (Dossiê, 1998/
1999:108-109). Experiências que, segundo Dagnino (2000: 88-89), vêm
contribuindo para a criação de espaços públicos em que os direitos
possam se consolidar como parâmetros para a exposição, debate e
negociação de conflitos trazendo, assim, para o debate público, ques­
tões que envolvem a dimensão da justiça e eqüidade na vida social.
Dessa forma, conclui que é nessa redefinição da noção de cidadania
que se pode perceber o sentido político dessas ações inscritas nessas
esferas públicas.
Encontramos também nas formulações de Benevides (1994: 9)
indicações que apontam para a interpretação do conceito de cidada­
nia como estratégia para a democracia. Nelas, o conceito de cidadania
é analisado na perspectiva de democratizar o Estado, perspectiva que
seria viabilizada pela ampliação dos direitos políticos, através da ins­
tituição da participação direta dos cidadãos. É nessa direção que a
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 201

autora desenvolve seu conceito de "cidadania ativa" — "aquela que


institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas essencial­
mente criador de direitos para abrir novos espaços de participação
política" — em oposição à "cidadania passiva — aquela que é outor­
gada pelo Estado, com a idéia moral do favor e da tutela". Para
Benevides, a construção desta "cidadania ativa" implicaria o reconhe­
cimento da complementaridade entre a representação política tradi­
cional da democracia liberal e a participação popular diretamente
exercida através da criação de canais institucionais e espaços sociais
de "democracia semidireta", como referendo, plebiscito e iniciativa
popular. A criação e ocupação desses novos canais possibilitaria a ins­
crição de novos temas na agenda pública, bem como a disputa de in­
fluência na opinião pública.
Como condição para uma participação cidadã ativa, a autora
aponta a necessidade de uma cotidiana e constante educação política
da população, que poderia ser viabilizada pela informação, conscien­
tização e estímulo à organização e à participação. Nesse sentido, en­
tende como sendo "cidadania ativa" a viabilização da "[...] ampliação
dos direitos políticos para a participação direta do cidadão no proces­
so das decisões de interesse público". (Benevides, 1994: 9)
Analisando especificamente os elementos constitutivos da con­
dição dos direitos, Telles (1994: 92) entende que os direitos de cidada­
nia são regidos pelo imperativo ético da justiça e eqüidade e se inscre­
vem no terreno das relações sociais enquanto princípios reguladores
dos embates, demandas e discursos que se desenvolvem em arenas
públicas para neutralizar desequilíbrios de poder. No entanto, segun­
do a autora, a efetividade do direito — enquanto forma de mediação
da convivência democrática — requer uma normatividade legal e ins­
titucional da vida social e uma cultura pública democrática, que se
abra ao reconhecimento da legitimidade das demandas e dos confli­
tos oriundos da diversidade dos valores e interesses demandados como
direitos.
Constata Telles (1997:216) que as mudanças no mundo do traba­
lho e a minimização da intervenção estatal no campo das instituições
e serviços públicos defendidos pelo projeto neoliberal, estão em aber­
ta oposição à possibilidade de criação dessas dimensões definidoras
do direito — e das relações de direito —, uma vez que impossibilitam
a emersão e o desenvolvimento da noção de público e de responsabi­
202 M. L. DURICUETTO

lidade pública bem como restringem a abertura dos canais de repre­


sentação e negociação, onde necessidades e interesses possam ser for­
mulados como direitos. Essa operação ideológica descaracteriza, as­
sim, a própria noção de direito, uma vez que a regulação das relações
sociais passa a ser feita pela racionalidade econômica do mercado,
submetendo-a aos seus imperativos de eficácia e produtividade.
É esse o cenário que, para ela, constitui "o ponto cego" de nossa
democracia nos anos 1990. Cenário que coloca a exigência da criação de
espaços públicos múltiplos e diferenciados, nos quais a representação
plural dos interesses, diferenças de valores, argumentos e opiniões pos­
sam se expressar e se fazer representar para a construção de uma "no­
ção de bem público, de interesse público e responsabilidade pública,
que tenha como medida os direitos de todos". (Telles, 1994a: 92).
Evidencia que as experiências de abertura de espaços públicos
de participação, representação e negociação nas gestões públicas de­
mocráticas26 vêm possibilitando o exercício de práticas de "cidadania
ativa" e de "democracia participativa", realizando, segundo suas pa­
lavras, o que Habermas chama de "soberania popular descentraliza­
da e pluralizada", em espaços públicos múltiplos e diferenciados27
(1994a: 15).
Sendo assim, a contribuição de Telles caminha no sentido de en­
fatizar que esses novos espaços plurais de organização e representa­
ção de interesses permitem tornar a gestão pública permeável às de­
mandas emergentes da sociedade. Segundo ela, estão presentes, nes­
ses espaços, as possibilidades de construção de uma "nova contratua-
lidade", de uma medida pactuada de justiça e eqüidade a ser cons­

26. Colocando em xeque o histórico padrão autoritário e burocrático da gestão pública,


tais experiências abrem, segundo Telles, possibilidades de redefinição democrática dessas
relações, através da mediação de espaços públicos que se abrem à participação popular e
dão visibilidade aos conflitos pela via da criação de conselhos gestores; das experiências de
discussão pública dos critérios de prioridade na distribuição e usos dos recursos públicos
etc. (cf. Paoli e Telles, 2000)
27. Só para relembrarmos, a defesa que Habermas faz de uma "soberania popular
múltipla e descentralizada", descarta a possibilidade de se atribuir o autogoverno popular
a um "sujeito macrossocial". Sua democracia "discursiva" corresponde à imagem de uma
sociedade descentrada: "[...] uma soberania popular sem sujeito, tornada autônoma e solu­
cionada intersubjetivamente [...J". (Habermas, 1990:111)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA JO J

truída de forma negociada entre os diferentes interesses, valores e as­


pirações (Telles, 1993: 11, 15).2829Isso significa "um outro modo de se
construir uma noção de interesse público: uma noção plural e
descentrada, capaz de traduzir a diversidade e complexidade da so­
ciedade" (Telles, 2000: 121). Nessa direção, afirma:

[...] em um contexto [...] no qual referências identitárias tradicio­


nais são erodidas pela emergência de diferenças sociais, culturais e
simbólicas que escapam aos mecanismos tradicionais de represen­
tação, a questão que está a desafiar a imaginação política é o difícil
problema de tornar comensurável a heterogeneidade inscrita na vida
social. (Telles, 1994: 94)

Pelo exposto, a partir da segunda metade da década de 1980, a


concepção de democracia que emerge das interpretações acerca dos
movimentos e organizações sociais que defendem e representam os
interesses dos setores populares nos autores acima analisados identi­
fica-se não com uma concepção minimalista, mas sim concebem-a com o
modelo de "democracia participativa"P É generalizada a convicção da
necessidade progressiva de criação de novos canais institucionais de
representação de interesses que possibilitem a expressão e o reconhe­
cimento das demandas populares no campo das políticas públicas e
de canais não necessariamente institucionais que possibilitem a
publicização, ou seja, o debate público acerca das identidades e práti­
cas socioculturais. A essa direção prático-política corresponde um

28. Negociação em que são "[...] elaborados acordos, mesmo que frágeis e temporários,
acerca do que a sociedade reconhece como direito. Constituídas em um campo de conflito,
plural e descentrado, essas arenas públicas são feitas, refeitas ou redefinidas a cada momen­
to, seguindo a temporalidade dos próprios conflitos". (Paoli e Telles, 2000:106)
29. "A experiência do Conselho Nacional de Assistência Social, assim como do Conse­
lho Nacional da Criança e do Adolescente, do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho de
Seguridade Social, do Conselho da Previdência Social e tantos outros, demonstra que está
em curso certo 'modelo' de gestão participativa que revela uma inflexão na prática dos
movimentos populares, do movimento sindical, dos partidos de esquerda e do próprio go­
verno, em suas diferentes esferas". (Raichelis, 1998: 178) É nesta nova dinâmica institucio­
nal participativa que a autora visualiza o processo de "democratização". Este é entendido,
assim, no contexto de "[...] ampliação dos fóruns de decisão política que, extrapolando os
condutos tradicionais de representação, permite incorporar novos sujeitos sociais como pro­
tagonistas e contribui para consolidar e criar novos direitos". (Raichelis, 1998: 41)
204 M. L. OURICUfTTO

empenho acadêmico-teórico: os debates passam a se referir à constru­


ção de "uma nova esfera pública, não-estatal e democrática".
A criação e proliferação de canais e espaços institucionais ou ex-
tra-institucionais de democracia participativa é entendida como um
processo em que se está gestando a constituição desta esfera pública
não-estatal. A noção vem, assim, sendo utilizada para expressar novos
canais de interlocução e publicização de interesses e demandas, tanto
em relação aos espaços institucionais de representação — como os
conselhos de gestão e de controle social, que incluem o Estado e
segmentos organizados da sociedade — como também para significar
espaços em que não há a presença do Estado, como fóruns e plenárias
de entidades e movimentos. A noção de esfera pública não-estatal tem
sido, assim, utilizada para expressar a criação desses novos "espaços
públicos" que vêm surgindo como espaços de interface entre Estado e
sociedade.
Desse modo, a alternativa apontada para o aperfeiçoamento dos
processos democráticos radica na estratégia do fortalecimento das esferas
públicas não-governamentais enquanto locus de encaminhamento das
ações coletivas organizadas na definição das prioridades de bens e
serviços sociais, na fiscalização de suas execuções e na publicização
das identidades e práticas socioculturais. É a partir desse entendimento
acerca da "questão democrática" que a categoria de sociedade civil é
pensada em e na articulação com a noção de espaço público, de uma nova
esfera pública, não-estatal e democrática. Ou seja, o conceito de sociedade
civil passa a ser definido pela sua transmutação em esfera pública não-estatal
e o aperfeiçoamento da democracia passa a ser pensado a partir do fortaleci­
mento da sociedade civil — em sua expressão como "esfera pública". So­
ciedade civil é, assim, a esfera em que se desenvolve "uma articula­
ção entre práticas associativas, o universo dos direitos e espaços de­
mocráticos de representação e interlocução pública". (Paoli e Telles,
2000: 115)
Nessa perspectiva, também aqui ganha primazia a redefinição
do conceito de "público". A construção de uma esfera pública não-es­
tatal é vista como um espaço que transcendería a "forma estatal" ou
"privada" (mercantil). Assim, como afirma Raichelis (1998:80-82),"[...]
essa nova esfera pública não-estatal reduz a onipotência do Estado e
aumenta o espaço decisório da sociedade civil". Com isso teremos
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 205

" configurada a idéia de controle público sobre as ações do Estado


mediante o fortalecimento das organizações da sociedade civil, capaz
de limitar sua subordinação automática a interesses puramente priva­
dos e mercantis". A superação da dicotomia entre o privado e o estatal
vai se dar através da mediação desse esfera pública, como expressão
de processos democráticos, publicizadores e de controle social. "Ou
seja, cada vez mais o público não se reduz ao estatal, nem este é capaz,
pelo processo de privatização que ocorre nesta esfera, de representar
o interesse público. Da sua parte, o privado também não se identifica
automática e exclusivamente com a esfera puramente mercantil".30

30. Raichelis (1998: 82) identifica a esfera pública como "espaço de publicização de
interesses heterogêneos, de confronto entre práticas sociais contraditórias e de luta pela he­
gemonia político-cultural em tomo de projetos societários. Assim concebida, a esfera públi­
ca envolve, necessariamente, a organização de segmentos da sociedade civil ante projetos
políticos e, portanto, a representação de interesses coletivos de grupos e classes sociais con­
trapostos". Podemos perceber que a noção de esfera pública explicitada está na direção do
entendimento da concepção de sociedade civil tal como definira Gramsci. Entretanto, ao elu­
cidar o processo histórico de surgimento do que conceitua ser esta esfera pública, a autora
recorre aos fundamentos habermasianos, especialmente à compartimentalizaçáo da socie­
dade em três esferas: a estatal, a privada e a pública. E utiliza essa compartimentalizaçáo
para, no seu interior, definir a construção da esfera pública, a partir da contraposição do par
categorial gramsciano "sociedade política" e "sociedade civil". Diz ela: "[...] a esfera públi­
ca é uma construção histórica tecida no interior das relações entre sociedade política e socie­
dade civil, que visa ultrapassar a dicotomia estatal-privado com instauração de uma nova
esfera capaz de introduzir transformações, nos âmbitos estatizados e privados da vida so­
cial, resultando daí um novo processo de interlocução pública". (Raichelis, 1998: 272) As­
sim, o âmbito estatal é identificado com a sociedade política, a esfera da sociedade civil
correspondería ao âmbito do privado, das relações mercantis, e a esfera pública os transcen­
dería por nela existir a construção dos interesses coletivos a partir do debate e da interlocução
pública. Mas também, no interior desta conceituação, sociedade civil aparece como esfera
pública, como o espaço em que não se efetivam relações meramente mercantis. Dessa for­
ma, ora a sociedade civil aparece — tal como a conceitua Gramsci — como o campo do
confronto, da luta entre projetos societários contraditórios que se expressariam no interior
de uma esfera pública classista, ora sociedade civil é utilizada para referir-se a uma terceira
esfera — mercantil — em contraposição à estatal e à pública não-estatal, ora sociedade civil
é identificada com a noção de esfera pública tal como define Habermas. Isso acaba resultan­
do em uma imprecisa e eclética definição teórica da noção de "sociedade civil" e de "esfera
pública" em suas análises. Para uma melhor visualização dessa definição eclética do con­
ceito de sociedade civil, conferir páginas 45-62 em que a autora recorre às análises de
Habermas, Offe e Rosanvallon. Segundo ela, "[...] é possível observar nas reflexões desses
diferentes autores a busca de superação da antinomia estatal-mercado pela via fecunda da
revalorização da sociedade civil". (Raichelis, 1998: 62)
206 M. L. DURIGUETTO

Nessa direção, complementa Genro (2000: 8): "[...] as decisões


desse novo centro de composição de ihteresses e organização dos con­
flitos [esfera pública] não são compreensíveis pela ótica pura do pri­
vado [...]. Nem são decisões 'puras' do Estado já que este, induzido
ou pressionado, assume a redução do seu arbítrio agindo segundo o
interesse público construído fora do âmbito estatal".
Entendida dessa forma, a esfera pública torna-se o campo de dis­
puta dos diferentes e múltiplos interesses sociais pelo reconhecimen­
to social e político de suas demandas.31 Reconhecimento esse que é
consensualmente conquistado a partir do discurso e ação dos sujeitos
sociais que, estabelecendo uma interlocução pública, geram acordos e
entendimentos e deliberam em conjunto as questões que dizem res­
peito a um destino coletivo (Dossiê, 1998/1999: 27).
Particularmente em relação à questão da intermediação e da re­
presentação de interesses, Costa evidencia que o atual entendimento
do conceito de sociedade civil como esfera pública não-estatal é ade­
quado às especificidades da realidade brasileira por abrigar sujeitos e
formas organizativas que sustentam um processo de constituição do
interesse coletivo que se desenvolve fora da esfera estatal e distante
da lógica das outras organizações político-representativas. Enquanto
estas podem ser classificadas a partir de interesses vinculados à esfe­

31. Para Avritzer (1999: 30-31 e 36*37), o conceito de esfera pública tem duas de suas
características centrais ligadas ao debate democrático contemporâneo: "a primeira delas é a
idéia de um espaço para a interação face-a-face, diferenciado do Estado. Nesse espaço, os
indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela autoridade po­
lítica, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao nível da sociedade e
apresentam demandas em relação ao Estado [...]. Nesse sentido, o conceito de publicidade
estabelece uma dinâmica no interior da política que não é movida nem por interesses parti-
cularistas nem pela tentativa de concentrar poder com o objetivo de dominar outros indiví­
duos. Pelo contrário, a idéia aqui presente é de que o uso público da razão estabelece uma
relação entre participação e argumentação pública [...]. Tal colocação significa uma enorme
renovação em termos de teoria democrática, na medida em que ela substitui as hierarquias
de participação pela participação igual associada à autoridade do melhor argumento". O
segundo é a idéia da ampliação do domínio público pela politização de novas questões.
Como componentes desta "esfera pública não-estatal", o autor chama a atenção para o du­
plo papel que nela cumprem os movimentos sociais: apresentam em público, através de
atos comunicativos, novos temas como o da diferença identitária, do ambientalismo, a ques­
tão dos direitos; e com isso redefinem e mostram que a definição do que é político constitui
uma dimensão sempre contestada e que o papel do espaço público é atuar na ampliação
dessa definição.
SOCIEDADí CIVIL C DEMOCRACIA 207

ra da política (partidos, lobbies etc.) e da economia (sindicatos, asso­


ciações empresariais, grupos de interesse etc.), os da sociedade civil
são os que apresentam uma constituição diferenciada nos seguintes
aspectos: conteúdo dos interesses representados, enquanto os demais ato­
res e organizações empenham-se na concretização de demandas de
grupos políticos e econômicos específicos, as associações e atores da
sociedade civil (associações de moradores, fóruns, conselhos, movi­
mentos sociais diversos) tematizam questões e problemas emergentes
ao nível das relações cotidianas e de relevância para toda a sociedade;
base de recursos, a possibilidade de influência política de seus atores
baseia-se na capacidade de canalizar as atenções públicas para suas
campanhas; formas de comunicação, seus atores buscam transformar a
esfera pública numa arena de crítica, de controle do poder e de argu­
mentação e convencimento do conjunto da sociedade sobre a justeza
de seus propósitos; constituição dos grupos, a identidade é constituída
no contexto das próprias ações coletivas segundo adesão voluntária.
(Costa, 1995: 62-63 e 1997: 17)32
Dessa forma, a sociedade civil (transmutada em esfera pública) é
vista como uma esfera que transcende a lógica estatal e privada tanto

32. Como se pode notar, Costa recorre diretamente ao conceito de sociedade civil de­
senvolvido por Habermas e Cohen e Arato. Fedozzi (2000: 69, 71) desenvolve uma leitura
da experiência do "orçamento participativo" também à luz da discussão conceituai haber-
masiana de "esfera pública". Segundo o autor, esse processo "[...] expressa-se através de um
sistema de partilha do poder, onde as regras de participação e de distribuição dos recursos
de investimentos são construídas de forma procedimental e argumentativa, na interação
institucional que se processa entre os agentes do Executivo e as comunidades da socieda­
de civil". E conclui,"[...] o orçamento participativo se constitui de um sistema político que
põe em contato a) o poder administrativo da esfera pública estatal; b) os fluxos comunica­
tivos gerados na esfera pública autônoma constituída pelas associações voluntárias enrai­
zadas no mundo da vida; c) e as instâncias deliberativas criadas por esse contato regular
e, portanto, institucionalizadas pelo funcionamento sistemático e previsível do orçamen­
to participativo".
Outro autor que retoma a contribuição desses autores para pensar o conceito de socie­
dade civil na realidade brasileira contemporânea é Avritzer (1993: 213-222 e 1994: 269-308).
Afirma Avritzer (1996:14): [...] o caminho que leva de Rousseau a Marx, ao prevalecimento
da vontade geral e à redução da discussão política ao conteúdo desta última parece esgota­
do. Novos caminhos se abrem: eles nos conduzem às teorias capazes de conciliar a aceitação
do papel desempenhado pelo mercado e pelo Estado, com a perspectiva de fortalecimento
de uma terceira arena capaz de proporcionar à sociedade instrumentos de defesa contra
processos de mercantilização e burocratização das relações sociais".
208 M. L DURICUEnO

em relação aos interesses que representa quanto em relação à sua di­


nâmica político-organizativa. Nessa direção, infere-se que:

[...] essa percepção de lógicas distintas apresenta o mérito, a nosso


ver, não apenas de oferecer um grau maior de especificidade à cate­
goria sociedade civil frente ao Estado e ao mercado. Permite tam­
bém perceber a sociedade civil como eixo central de projetos políti­
cos autônomos que possibilitam concebê-la como não submissa ao
controle da organização político-institucional, protagonizada pelo
Estado e partidos políticos, e não reduzida aos mecanismos de mer­
cado, como único organizador das relações sociais. Isto nos permite
visualisar, no interior desta arena, um conjunto de práticas sociais
que, preservando sua autonomia em relação ao Estado e ao merca­
do e constituindo-se em um campo de ações e iniciativas próprias,
apresenta um caráter público. (Dossiê, 1998/1999: 36)

Nessa direção, o progressivo fortalecimento da sociedade civil


(leia-se constituição de espaços públicos, de esferas-públicas não-es-
tatais), campo para ser desenvolvida a estatégia da nova cidadania, com­
põe a agenda, no conjunto dessas análises, para o aperfeiçoamento da
democracia na sociedade brasileira.
Passemos, então, a uma análise da utilização desses conceitos —
sociedade civil, esfera pública, democracia e cidadania — que, como
visto, sedimenta, perspectiva/consolida e demarca discussões, deba­
tes e produções acadêmicas.
Uma primeira questão a destacar é a dificuldade de estabelecer,
com precisão, influências teóricas particulares nessas produções teó­
ricas, haja vista a multiplicidade e diversidade de autores e influên­
cias analíticas de que lançam mão na construção de suas premissas
teóricas e prospectivas prático-políticas, o que acaba resultando num
forte ecletismo teórico. Entretanto, não nos está reservada a surpresa de
encontrar algum pensador cuja reflexão se insira ou esteja organica­
mente ligada à tradição marxiana e marxista, e, nesta, particularmen­
te, às reflexões gramscianas. O que podemos perceber é que, quando
aparece, a recorrência aos conceitos de Gramsci vem com a marca da
desqualificação, inapropriação e descaracterização. Assim, sociedade civil
aparece como "esfera pública não-estatal"; Estado aparece despido de sua di­
mensão coercitiva e classista; “guerra de posição" aparece como "guerra de
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 209

interpretação" e "hegemonia" aparece como síntese de direitos civis, políticos


e sociais.33
Não obstante a constatação da forte presença de uma diversida­
de de autores — cujas análises nem sempre são compatíveis para se­
rem coerentemente articuladas — é possível demarcar alguns funda­
mentos teóricos a partir dos quais os conceitos de sociedade civil (con­
vertida em esfera pública), cidadania e democracia são pensados. Tra­
taremos agora de abordar essas definições à luz das fundamentações
teóricas centrais que tendem, a nosso ver, a direcionar as reflexões
acerca destes conceitos no campo teórico em tela. E esse tratamento
será problematizado em relação à perspectiva marxista, particularmen­
te gramsciana.
A conceituação e significação de sociedade civil — convertida
em uma noção de espaço público como "espaço da deliberação con­
junta", em que interesses divergentes se legitimam e se justificam re­
ciprocamente, pela fundamentação em princípios de direito e no inte­
resse públicos — vêm sendo apreendidas e retiradas das formulações
de Habermas e dos autores por ele influenciados, particularmente
Cohen e Arato.
Relembremos, de forma breve e esquemática, a definição do con­
ceito de esfera pública na formulação habermasiana. O que alicerça a
constituição da noção de esfera pública, em Habermas, é a pressupo­
sição da existência de uma "paridade", ou seja, distribuição igualitá­
ria de oportunidades de intervenção entre os sujeitos, permitindo que,
a despeito de suas diferenças reais, eles possam deliberar "como se
fossem iguais". Nesse campo de "iguais" a construção do "consenso"
resulta da participação, expressão, debate e discussão das opiniões e
interesses de todos. A esfera pública passa, assim, a indicar a dimen­
são da sociedade onde esse intercâmbio discursivo torna-se possível.
Nessa direção, a esfera pública à qual Habermas se refere, não é cons­
tituída por interesses em oposição ou campo de enfrentamento entre
Estado e sociedade, mas por uma prática de discurso crítico racional
dos assuntos públicos.

33. No que tange especificamente à questão da hegemonia, ela muitas vezes aparece
como concluída com a conquista dos direitos de cidadania tal como define Marshall. Assim,
vai se recorrer a Gramsci e Marshall indiscriminadamente, sem estabelecer seus pontos de
coalisão.
210 M. L. DURICUETTO

Se em Habermas a sociedade civil é situada, pensada, analisada


a partir e nos espaços de dimensão públicos, ela ganha nas formula­
ções de Cohen e Arato uma definição mais precisa. Estes, partindo da
distinção de Habermas entre "sistema" e "mundo da vida", definem
este último como sendo a esfera na qual os sujeitos sociais desenvol­
veríam interações intersubjetivas, associativas e comunicativas em
contraposição às ações em busca do poder, que se desenvolvem no
âmbito estatal e da busca do lucro, desenvolvidas no âmbito mercan­
til. Mas essa dinâmica associativa coloca a necessidade de criação de
instituições para preservar, impulsionar e consolidar as solidarieda-
des e identidades criadas. É essa dimensão institucional do "mundo
da vida" que corresponde ao conceito de sociedade civil e de esfera
pública nesses autores. Nesse sentido, a esfera pública é a esfera de
absorção e discussão dos temas e problemas que afetam o conjunto da
sociedade, atuando como instância transmissora dos mesmos que,
tematizados de forma convincente e persuasiva, possam ser assumi­
dos e trabalhados pelo sistema político.
É essa conceituação de sociedade civil, tal como a formula Cohen
e Arato, que é incorporada no campo teórico — guardadas suas dife­
renças adjetivas — dos defensores da criação de crescentes espaços
societais que configurassem, como defino, uma esfera pública não-go-
vernamental da cidadania. A sociedade civil é assim conceitualizada como
uma esfera dotada de autonomia e auto-organização em relação ao
Estado e ao mercado. E a convivência dessas três esferas — Estado,
sociedade civil e mercado — tem seu ponto de equilíbrio no fortaleci­
mento dos processos de interação social desenvolvidos no campo da
sociedade civil ou esfera pública.
Nessa perspectiva, tem-se o entendimento de que as organiza­
ções, ações e movimentos presentes na esfera da sociedade civil (defi­
nida como esfera pública não-estatal em oposição ao Estado e ao mer­
cado, portanto isolada e autônoma) estariam voltados para a defesa
do interesse público, que em conjunto buscariam o "bem comum" atra­
vés da negociação e do entendimento. Assim, imagina-se que a luta
social se faça sem contradições, antagonismos e, por conseguinte, sem
possíveis confrontos de classe, levando o antagonismo entre estas a uma
migração para um campo de simples conflitos de interesses, entre posi­
ções opostas num momento, mas coincidentes em outros, guiados pela
busca da construção de um novo "contrato" ou "pacto social".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 211

Fica evidenciado que a esfera da sociedade dvil é pensada como


indiferenciada, a-classista, homogênea. Nessa direção, como pontua
Dias (1994:129), essa leitura feita sobre o conceito de sociedade civil
demonstra uma forte inspiração liberal, ainda que muitas vezes se
afirme como sendo gramsciana. Como podemos perceber, essa valori­
zação e apologia da sociedade civil (que se define por uma esfera pú­
blica não-governamental de cidadania) nada tem a ver com Gramsci, so­
bretudo porque feita a partir da contraposição dicotômica da socieda­
de civil ao Estado e ao mercado, e como esfera caracterizada por uma
neutralidade classista, como o "terreno do bom e do iluminado".34
Assim, em direção contrária a esses fundamentos teóricos toma­
dos para conceituar a sociedade civil e a essa dimensão sócio-política
deduzida de suas ações e organizações constitutivas, pensar a atua­
ção, os projetos ideopolíticos e prático-operativos do conjunto dos
movimentos, ações e organizações que defendem e representam os
interesses das classes subalternas implica, necessariamente, analisar
a esfera da sociedade civil na perspectiva da totalidade social, enten­
dê-la a partir da contradição central capital/trabalho, espaço em que
se disputam projetos societários antagônicos.
O espaço da sociedade civil não é um espaço sócio-organizativo
de representação de interesses gerais, de orquestração de pactos so­
ciais. Ele é um espaço de luta, de contradição, de relações desiguais
de poder e de acesso diferenciado a recursos econômicos, políticos,
culturais. Nesse marco conceituai, as lutas sociais são interpretadas
como "guerras de posição" ao invés de serem consideradas "guerras
de interpretação".
Uma outra questão a destacar é a segmentação da realidade em
três esferas com suas dinâmicas político-organizativas específicas.
Seguindo a conceituação de segmentação da realidade social, tem-se
a alocação das organizações e interesses nas suas "supostas" esferas
cabíveis: assim, no Estado, tem-se os partidos; no mercado, os sindi­

34. Como afirma Dias (1994:129): "Um dos erros vitais na análise da sociedade civil é
pensá-la como articulação de instituições indiferenciadas. Instituições onde não se coloca a
questão da divisão classista. A sociedade civil é apresentada, normalmente, como não-con-
traditória. O produto dessa visão é uma concepção homogeneizadora, subaltemizante e
que tende a minimizar a percepção dos conflitos sociais e do seu papel na transformação
social".
212 M. I. DURIGUETTO

catos trabalhistas e as organizações empresariais; cabendo à esfera da


sociedade civil o desenvolvimento de ações, movimentos e organiza­
ções — ou seja, movimentos sociais, ONGs, fóruns, canais de partici­
pação institucional descentralizados etc. — que objetivam a expansão
dos processos democráticos para limitar e/ou influenciar as ações do
Estado e do mercado. Sociedade civil passa, então, a significar a esfera
dos espaços públicos autônomos, do discurso, da ação comunicativa.
Sua dinâmica associativa difere daquela presente nas instâncias esta­
tais e mercantis, por se caracterizar pela tematização, publicização e
discussão das questões que atingem o conjunto da sociedade.
Quanto a este aspecto, cabe apontar que a conseqüência prático-
política que decorre dessa análise compartimentalizada da realidade
em esferas e estruturas associativas/organiza tivas autonomizadas e
isoladas é a perda de uma perspectiva teórica e prático-política de ar­
ticulação, convergência e unidade das lutas, organizações e movimen­
tos das classes subalternas. Perde-se, dessa forma, a perspectiva ana­
lítica de pensar a formação de ações político-organizativas que, em­
bora comportem elementos corporativos e se desenvolvam em arenas
particulares, caminhe, progressivamente, para a construção de uma
"vontade coletiva", de um "projeto ético-político" de classe. A perda
dessa perspectiva de unidade, de uma práxis política coletiva e arti­
culada, visando à construção de um novo projeto societário a partir,
com e no pluralismo sócio-organizativo e político-cultural das classes
subalternas presentes na sociedade civil, ajuda a contribuir para que
as mesmas se dispersem ou se esgotem no particularismo, com o que
acaba reforçando a hegemonia do projeto neoliberal-corporativo.
Enfrentar, então, com maior consistência teórico-analítica e prá­
tico-política o projeto neoliberal, implica resgatar o conceito gramsciano
de sociedade civil em sua dimensão fortemente classista, contraditó­
ria e política, ou seja, como espaço de luta organizada e articulada das
classes subalternas na busca da conquista da sua hegemonia e do po­
der político.
Uma outra questão relevante a destacar, ao lado da nova defini­
ção de sociedade civil como esfera pública, é a definição de democracia
defendida nesse campo teórico. O núcleo do conceito de democracia é o
princípio da cidadania.
A noção de cidadania defendida e problematizada nessas
teorizações sofreu um significativo deslocamento referencial. Sua
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA íij

"nova" noção não se limita aos preceitos liberais-marshallianos, mas


os amplia pela constante proposição de novas demandas e reivindica­
ções advindas das ações, organizações e movimentos presentes na
esfera pública, pela criação e reconhecimento — tanto na relação entre
cidadãos ou entre eles e o Estado — do "direito a ter direitos" e do
"direito a ter novos direitos".
No campo dos direitos e das liberdades civis, essas teorizações
partem dos postulados marshallianos e os ampliam na direção de in­
corporar à análise da cidadania os temas e os meios que galvinizarri a
luta de diferentes grupos, movimentos e organizações para se oporem
às distintas formas de estratificação econômica, cultural — em função
de critérios de gênero, raça e idade, entre outros — e opressão políti­
ca. Dessa forma, essa nova dimensão normativa da cidadania tende
a aparecer materializada nas ações coletivas múltiplas e diferencia­
das presentes na sociedade civil (esfera pública) que fazem ecoar
temas, problemas e demandas, buscando suscitar o debate público e
a incorporação, tanto pelos cidadãos quanto pelo Estado, de suas
proposições.
A ampliação dos direitos políticos de cidadania aparece associa­
da à proposição de mecanismos político-administrativos que efetivem
processos de descentralização do Estado voltados para a criação de
canais institucionais que possibilitem a participação social nos pro­
cessos de discussão, controle e fiscalização das políticas sociais públi­
cas, bem como na criação progressiva de espaços de participação não
institucionalizados. É com uma participação política no âmbito insti­
tucional e extra-institucional de forma ativa e contínua que se aposta
na expansão gradual do "direito a ter direitos" — sociais e culturais. É
esse processo que é descrito como democratização.
Assim, "[...] formular uma visão ampliada de democracia e
operacionalizá-la em termos de luta pela cidadania [...]" (Dagnino,
2000:95), permite pensar projetos de mudança social que não se redu­
zem à transformação econômica nem se concentram na tomada do
poder político. O aperfeiçoamento da democracia e as novas dimen­
sões da cidadania permitem pensar uma transformação da sociedade
a partir da escolha e da tematização pública de questões que os dife­
rentes sujeitos sociais acham relevantes para o bem-estar coletivo. A
cidadania tende a aparecer mais relacionada com as temáticas afins às
liberdades e autonomias civis, e as desigualdades econômicas tendem
214 M. L. DURICUETTO

a se manifestar e a terem a sua resolutividade por meio de uma lin­


guagem comum de direitos.
Isto posto, podemos ressaltar que essa nova concepção de cida­
dania incorpora fortemente uma dimensão de justiça social, de eqüi-
dade, de reconhecimento e respeito pelas diversidades culturais no
conjunto da vida social.3536Entretanto, como acertadamente pondera
Fontes (1995: 32), "se a importância da reflexão sobre a eqüidade não
deve ser negada — dado seu caráter emergencial e pragmático para
reduzir distâncias sociais" — é somente quando ela é pensada para
ampliar progressivamente o aumento da igualdade social que ela ad­
quire uma dimensão ético-universal. E afirma:

A rigor, somente uma reflexão calcada no princípio da igualdade


permite pensar a variedade e a diferença [...] O princípio eqüitati-
vo, no sentido da formulação de políticas diferentes para os desi­
guais, somente ganha todo seu significado se pensado a partir da
matriz simbólica da igualdade. Caso contrário, ele pode implicar num
risco altíssimo: o de legitimar a exclusão [...]. (Fontes, 1995: 32)30

Particularmente no que tange às apologias de "reconhecimento


cultural" das diferenças, é extremamente pertinente a análise desen­
volvida por Rouanet (1993: 53). Para o autor o que essas apologias
pregam é a rejeição do universal e a exaltação de uma particularidade.
Ou seja, o universal é negado em nome do cultural, assumindo-se o
relativismo como ideologia. Assim se o eixo é religioso, fala-se em
cultura católica; se é sociológico, fala-se em cultura da pobreza; se é
etário, fala-se em cultura jovem etc. (Rouanet, 1993: 58) Uma análise
pertinente, que caminha na superação dessa visão "historista" (como
define Rouanet) das diversidades culturais, é oferecida por Nancy
Fraser. A autora propõe a necessidade de análises teóricas e ações po­

35. Para Bobbio (1987a: 12-25), a idéia de eqüidade está próxima do conceito de justiça
social, da idéia de uma balança, de um esforço de equilíbrio que, conseqüentemente, leva
em conta as diferenças individuais de mérito, a diversidade.
36. Na mesma direção, tem-se a afirmação de Oliveira (Oliveira e Paoli, 1991: 77): "[...]
a questão da forma coloca a construção e consolidação da esfera pública como condição sine
qua non da democracia; e a questão do conteúdo pede a explicitação de uma perspectiva
socialista, sem o que as formas democráticas correm o risco de uma apropriação meramente
liberal. Conteúdo é, desta forma, a postulação da igualdade".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 1IS

líticas que defendam a legitimidade das demandas advindas de mo­


vimentos que se mobilizam ao redor de demandas por "reconheci­
mento das diferenças" — etnicidade, raça, gênero e sexualidade —
em combinação com a perspectiva da igualdade política e econômica,
de forma que ambas se sustentem e não enfraqueçam uma a outra.
(Fraser, 2001: 245-246)
Para Fraser (2001: 269), a solução para essas duas desigualdades
— econômica e cültural-valorativa — envolve, de um lado, não um
reconhecimento e valorização positiva da diversidade cultural, pois
reivindicações de reconhecimento freqüentemente adotam a especifi­
cidade de algum grupo para afirmar seus valores, o que tende a pro­
mover particularismos e diferenciações. Por outro lado, as injustiças
econômicas não serão sanadas por mecanismos de redistribuição de
renda, ampliação dos serviços e benefícios sociais, pois também criam
diferenciações entre grupos ao criar classes estigmatizadas de pessoas
vulneráveis percebidas como beneficiárias e, sobretudo, por deixarem
intacta a estrutura econômica e as determinações classistas que deter­
minam as desigualdades econômicas.
Conclui, acertadamente, que a superação dos particularismos
culturais pressupõe uma concepção universalista de reconhecimento
cimentada no valor moral igual das pessoas.37 E essa concepção cultu­
ral universalista só é possível com base na igualdade social, que é
também a solução para a superação dos particularismos dos grupos
atendidos por serviços e benefícios sociais. E, para essa dupla supera­
ção, é necessário pensar em estratégias que articulam as formas de
luta por igualdade econômica com as lutas por reconhecimento de
identidades culturais, de orientação sexual, de gênero ou de raça. E as
prospecções teóricas e prático-políticas voltadas para a construção de
projetos que visam transformar as estruturas profundas da economia
política e da cultura parece ser orientação programática ampla capaz

37. Na mesma direção encontra-se a análise desenvolvida por Rouanet (1993: 71). Em
busca da superação dos "historicismos", o autor chama-nos atenção para a visão limitada
desse tipo de análise ao que tange à etnia e à sexualidade: "o que está em jogo não são os
direitos das mulheres e dos negros, e sim os direitos dos indivíduos de uma certa etnia e
de um certo sexo, que querem emancipar-se da discriminação que sofrem enquanto seres
humanos, e que só podem fazê-lo através de um modelo de homem universal, cujos direitos
incluem a nao-discriminação por motivos de sexo e raça". (Grifos do autor) (cf. também Wood,
E. M., 2003: 219-242)
216 M. L. DURICUETTO

de fazer justiça a todas as atuais lutas contra injustiça. (Fraser, 2001:


281-282)
Especificamente em relação à discussão da democracia, identifi­
car democratização com ampliação das liberdades civis, com demo­
cracia política descentralizada e participativa, conduz a uma perspecti­
va teórica e prático-política que tende a limitar o processo de demo­
cratização. Esse não é identificado com a idéia da criação de uma nova
hegemonia de classe, com a criação de um novo projeto societário,
mas com o reconhecimento e conquista de direitos dentro da ordem
do capital. Em outras palavras, a luta pela cidadania não aparece as­
sociada à criação de um novo projeto de classe contra-hegemônico.
Pelo exposto neste Capítulo, podemos perceber que os funda­
mentos teóricos, ideológicos e políticos que subsidiam as propostas,
prospecções, análises e leituras acerca do que se entende e defende
como sendo o horizonte da nossa democratização e o caminho para se
chegar a ela são extremamente diferenciados e, por vezes, antagôni­
cos. Essa constatação, evidencia a necessidade de colocarmos em prá­
tica a lição que nos foi deixada pelo velho Florestan (1995: 5): "[...] é
preciso refinar os conceitos. Eles precisam ser claros para não haver
confusão quando se pretende explicar a realidade. Senão, não se ex­
plica coisa nenhuma, apenas se desloca a ignorância de um nível para
outro".
217

Conclusões

Afinal, qual é o valor universal da democracia?

É um fato que o estágio do capitalismo em que vivemos — no


Brasil e no mundo — encerra em si uma lógica econômica, política e
cultural que vem problematizando a política enquanto espaço de me­
diação, a partir do qual vontades particulares dão origem a vontades
gerais para a formação de uma nova hegemonia, de um novo projeto
societário. As práticas das organizações sócio-políticas, como parti­
dos e sindicatos, estão sendo erodidas por um progressivo processo
de despolitização e fragmentação de suas protoformas de luta e refe­
renciais políticos de classe.
A crise, experimentada pelo capital e pelos modelos conhecidos
de Welfare State, bem como suas respostas, das quais o neoliberalismo
e a reestruturação produtiva da era da acumulação flexível são ex­
pressão, têm acarretado profundas mudanças na organização da pro­
dução material e nas modalidades de gestão e consumo da força de
trabalho, conformando sociabilidades, formas de organização e repre­
sentação na direção da fragmentação, despolitização e multiplicação
de demandas de grupos de interesses corporativamente posicionados,
ou seja, cada vez mais fechados em si mesmos.
A esfera pública passa a ser descaracterizada como esfera de ex­
plicitação das lutas, conflitos e contradições, e o empenho está em
atribuir ao mercado a tarefa e a função de dar solução aos conflitos de
interesses e às demandas sociais.
Nesse cenário, a questão central colocada pelos "liberais realis­
tas" é que vivemos numa época de crises da governabilidade, da polí­
218 M. L. DURIGUETTO

tica, da democracia, e, sobretudo, dos projetos societários que, cada


um a seu modo, procuraram soluções «para os antagonismos próprios
à ordem do capital: o Estado de Bem-Estar e o "socialismo real".
Segundo suas argumentações, a multiplicidade das demandas
sociais postas às instituições governamentais e políticas provocou sua
incapacidade e ineficiência para dar-lhes resposta. Essa "sobrecarga"
de demandas precisa ser reduzida através da seleção das que pode­
ríam ser atendidas e do desvio da maior parte para o mercado por
meio da privatização e desestatização. Ao lado desta centralização do
mercado, deve-se implementar uma descentralização política do Es­
tado, ou seja, este deve ser fracionado em múltiplos aparatos destina­
dos a operar conforme lógicas em grande parte autônomas. Assim,
objetiva-se o cancelamento de todos os mecanismos reguladores que
contenham qualquer componente democrático de controle do movi­
mento do capital. A política e a democracia aparecem como funcional­
mente atadas às disposições de um mercado sem limites e sem fron­
teiras, independente de regulações, contextos de sociabilidade, sujei­
tos e culturas. A política é reduzida a mero aparato de administração e
de eficácia, e a democracia, a procedimento de proteção do direito dos
grupos de interesses das minorias ativas expressos no âmbito da so­
ciedade civil.
Uma contra-ofensiva à essa crise global e às interpretações "rea­
listas" que dela decorrem requer que nos concentremos no exame das
condições de fortalecimento de üma concepção ampliada e conflitiva de
democracia — em que sua ampliação e universalização esteje condi­
cionada à ruptura com a ordem burguesa — como um objetivo social
e político a construir.
É na busca de fundamentos teóricos e prospecções prático-polí-
ticas que indiquem essa direção que procuramos resgatar o modo pelo
qual a tradição marxista renovou suas categorias analíticas acerca da
categoria da sociedade civil e da democracia, no sentido de oferecer defi­
nições de termos e instrumentos com os quais se pode fazer política na
direção da construção de um novo projeto societário.
E é essa matriz teórica que utilizamos como parâmetro para ana­
lisar o processo da transição democrática no Brasil no que tange ao
tratamento e ao entendimento que tais categorias receberam no deba­
te político e intelectual. Nessa perspectiva, o deslindamento deste en­
tendimento efetivou-se a partir da tensão que se manifestou entre pro­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 219

cesso e projeto, tensão essa que estabeleceu os parâmetros analíticos e


sócio-interventivos da nossa "questão democrática".
Como visto, a nossa abertura política foi palco de diferentes e con­
traditórias interpretações acerca de qual deveria ser o caminho a ser
seguido para consolidarmos a democracia. Quanto a esse aspecto, cabe
elucidar que o modelo vislumbrado pelo projeto de distensão lenta, gra­
dual e segura — no qual se afirmava a necessidade da constituição de
um "Estado de direito" mas com a contenção das ações, movimentos e
organizações populares reivindicativas — bem como o modelo vislum­
brado pelos liberais-democráticos — no qual se defendia a constituição
do "Estado de direito" ao lado da liberdade de ação das organizações
de representação de interesses presentes na sociedade civil — foram os
dois modelos que, juntos, sedimentaram a nossa "transição democráti­
ca". E é a confluência desses dois modelos que se expressa hoje no mo­
delo liberal-corporativo, cuja expressão ideológica é o neoliberalismo.1
As características e elementos típicos que conformam a socieda­
de civil — no que tange às ações, movimentos e organizações que de­
fendem e representam os interesses das classes subalternas — sob a
ótica do capitalismo e dos postulados neoliberais vão na direção de
considerá-la e submetê-la à lógica do mercado e à valorização do indi­
vidualismo, da despolitização e fragmentação das lutas e demandas,
orientando-as para a defesa de interesses puramente corporativos e
setoriais. Essa lógica despolitizadora e mercantil desdobra-se forte­
mente na proposição e implementação de um debilitamento do Esta­
do em suas ações reguladoras e redistributivas, transferindo para o
mercado a tarefa de regular os conflitos de interesses e de satisfazer as
demandas sociais. O produto desta lógica de representação de inte­
resses das organizações das classes subalternas presentes na socieda­
de civil e dessa nova reconfiguração estatal é uma concepção minimalista,
limitada e elitista de democracia.
Particularmente na área social, a des-responsabilização do Esta­
do efetiva-se pela proposta de criação de uma "esfera pública não-
estatal" para a qual se desloca a execução de políticas e de serviços
sociais. Essa esfera pública não-estatal é uma outra roupagem da qual
se veste o conceito de sociedade civil no ideário neoliberal. Aqui, a

1. Esse processo relaciona-se tanto com as bases sócio-políticas da transição democráti­


ca, que não operou rupturas com as estruturas de sustentação econômica do grande capital,
quanto com a atual conjuntura da crise global, como visto no Capítulo 2.
220 M. L. DURIGUETTO

organização da sociedade civil — transmutada em esfera pública não-


estatal, em um suposto "terceiro setor", situado para além do Estado e
do mercado — também passa a ser estimulada como campo de ações
e organizações, só que agora não regidas pela lógica privatista, corpo-
rativista e individualista, mas por uma lógica "solidarista", "filantró­
pica", de auto-ajuda e de ajuda mútua.
Essa conceituação da esfera da sociedade civil como "terceiro
setor", presente nas propostas de desresponsabilização estatal no tra­
to das seqüelas da "questão social", é também resgatada nas elabora­
ções de autores que se autoproclamam de "intenção progressista".
Nessas elaborações, a sociedade civil (transformada em "terceiro se­
tor") é definida como espaço de interação social que se contrapõe ao
domínio estatal e mercantil; protagonizam-se as práticas sociais de
seus atores e organizações para o exercício e a implementação da ci­
dadania, aqui viabilizada nas práticas e nos discursos de solidarieda­
de, filantropia e voluntariado. Nessa direção, tem-se o reforço da des-
politização da sociedade civil pelo deslocamento de suas lutas para o
campo ético-moralizante. Como exposto, essa perspectiva teórica, que
separa as relações entre Estado, mercado e sociedade civil está em com­
pleta correspondência com as estratégias em curso do projeto neolibe-
ral, que identifica a esfera "civil" como espaço de um "terceiro setor"
de relações fraternas e solidárias.
Em oposição a esse modelo de organização societária neoliberal
— que tem como um de seus veios explicativos o protagonismo de
um projeto de democracia que caracterizou a nossa "fraca" transição
—, temos as formulações teóricas e ações prático-políticas que
substantivaram o chamado processo de abertura. Essas formulações e
ações prático-políticas tiveram na materialidade organizacional e
movimentalista das classes subalternas presentes na sociedade civil
dos finais dos anos 1970 e primeiros anos da década seguinte, o seu
solo analítico e prospectivo para pensar a nossa "questão democráti­
ca". Entretanto, esse protagonismo dos de "baixo" na construção da
nossa democracia não formou um campo teórico coeso e indiferencia-
do. E o grande marco definidor das diferenças e incompatibilidades
teóricas e prático-políticas entre os autores foi a forma pela qual se
deu a interpretação da categoria de sociedade civil no contexto da tran­
sição democrática brasileira.
Teceu-se loas à esfera da sociedade civil como esfera de poten­
cial transformador, autonomista, de representação homogênea dos
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 121

interesses populares, de aversão a toda forma de representação políti-


co-institucional e que se contraporia ao caráter autoritário, repressivo e
burocrático do Estado. Nessa direção, tem-se a valorização, em seu in­
terior, das ações espontâneas, fragmentárias, que, no seu conjunto, con­
figurariam uma convivência democrática pautada na solidariedade, na
identidade e no reconhecimento mútuo, caracterizações que deram pro­
duto a uma visão de democracia eminentemente exercida e vivenciada
nos espaços de convivência de uma sociedade civil "popular".
Por outro lado, a sociedade civil também foi aclamada enquanto
espaço que precisaria ser potencializado nos termos de sua organiza­
ção e participação nos aparatos político-institucionais, particularmente
na reivindicação da oferta de políticas e serviços sociais e na fiscaliza­
ção e avaliação das mesmas. Aqui, a consolidação dos mecanismos
institucionais de democracia política, aliada à ampliação da oferta de
políticas sociais e da ocupação pela sociedade civil dos canais estatais
de sua formulação e implementação, consubstanciaria a nossa conso­
lidação democrática.
Essa interpretação do que seria a nossa consolidação democráti­
ca alimentou grande parte dos debates e produções teóricas em tomo
da questão democrática a partir da segunda metade da década de 1980.
Sobretudo, a defesa de que a relação entre democracia e justiça social
deveria ser objeto de construção político-institucional. Nesse sentido,
sua concretização dependería da natureza das "regras do jogo", per­
mitindo ou não a incorporação de demandas populares. Na direção
assumida aqui, a nossa "revolução" estaria na ampliação e consolida­
ção da democracia política e da justiça social. Ou seja, a ampliação da
ordem democrática se expressaria na participação dos diferentes ato­
res e formas organizativas da sociedade civil nos espaços públicos
demandando uma "medida de eqüidade". A temática da democracia
tende a vir, aqui, associada ao ideário de justiça social.
E, por fim, também tivemos uma definição de sociedade civil
que vai na contra-corrente das duas aclamações assinaladas. Forte­
mente calcada no referencial marxista, particularmente gramsciano, a
concepção de sociedade civil aqui incorporada e defendida é a que a
vê como espaço em que se desenvolvem os processos políticos que
objetivam organizar os interesses de classe e projetá-los em termos de
ação hegemônica na direção da construção de um novo projeto socie­
tário. Desse modo, a própria ação de hegemonia exige, como seu pres­
suposto material-organizativo, uma práxis política consciente, coleti­
222 M. L. DURIGUETTO

va e articulada das classes subalternas. É esse pressuposto que dará


base de massa aos institutos político-democráticos, alterando seus fun­
damentos e dinâmicas, convertendo-se em esforços de totalização e
unificação de interesses.
Nessa direção, tem-se uma concepção de democracia enquanto
"democracia substantiva", enquanto um processo que se constrói,
desenvolve e se consolida a partir de um espaço de luta, de formação
de uma vontade coletiva, de direção ético-política a partir de um refe­
rencial classista e aberto ao avanço para a construção de um novo
projeto societário.
A partir da segunda metade da década de 1980 e, fundamental­
mente, na década de 1990, são reatualizadas bem como formuladas
novas e diferentes interpretações acerca da categoria de sociedade ci­
vil e de democracia a partir dos interesses populares na realidade
brasileira. Tais formulações apresentam fundamentos teóricos e pros-
pecções prático-operativas que vão desde uma radical contraposição
à hegemonia do ideário neoliberal e ao sistema capitalista na sua tota­
lidade, quanto aos que buscam a ampliação cívico-participativa das
dimensões dos direitos de cidadania.
Nos estudos revisitados que se alinham a essa última perspecti­
va, a sociedade civil vem sendo conceitualizada como esfera pública
não-estatal de cidadania que teria sua base material nos discursos e
consensos acerca do que seria o verdadeiro interesse público. O pro­
duto desse universo discursivo e consensual seria a criação, reconhe­
cimento, garantia e consolidação de direitos sociais, políticos e cultu­
rais, base fundante da democracia.
Defende-se a necessidade de se investir na ampliação dos direi­
tos políticos, reforçando a idéia da necessária ultrapassagem dos limi­
tes da democracia representativa liberal através da criação de novos
canais de participação direta dos cidadãos principalmente na gestão,
fiscalização e avaliação das políticas públicas. Essa articulação entre
democracia representativa e novos canais de participação vem possi­
bilitando a construção de uma concepção de democracia participativa
que, segundo essas formulações, amplia as possibilidades de uma efe­
tiva partilha do poder de gestão da sociedade.
Ao lado da abertura de novos canais institucionais de participa­
ção, nos quais os "conselhos de direitos" são percebidos como exem­
plo modelar, também é ressaltada a necessidade de formação de sujei­
tos sociais que participem efetivamente na definição do que conside­
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 2 2J

ram ser seus direitos, que não se expressa unicamente no controle so­
cial sobre as políticas públicas estatais. Isso implica superar posturas
privatistas e corporativas através da construção de novos espaços plu­
rais de poder, em que são construídos os parâmetros públicos que
definem o que a sociedade reconhece como direitos, através da cons­
trução de uma cultura democrática.
Essas redefinições dos conceitos de sociedade civil e democracia
permite-nos inferir a existência de pontos de confluência desse uni­
verso analítico com as elaborações de Habermas, Cohen e Arato, e
com a dos teóricos da "democracia participativa" — Macpherson e
Paterman. Encontramos em Habermas e nos autores por ele influen­
ciados os fundamentos teóricos centrais de uma nova concepção de
sociedade civil, que passa a significar a esfera das associações volun­
tárias, dos espaços públicos dotados de autonomia e auto-organiza-
ção em relação ao Estado e ao mercado, de solidariedade social, do
discurso, da ação comunicativa. A sociedade civil é o lugar em que se
potencializa a expansão da democracia, através da formação de uma
pluralidade de movimentos que se auto-organizam e que constróem
uma esfera pública na qual as ações do Estado e do mercado são limi­
tadas, moderadas e/ou influenciadas pelo agir comunicativo, pelo
estabelecimento de acordos, parcerias e consensos acerca do que deva
ser o verdadeiro interesse público.
É esse referencial heurístico e suas prospecções sócio-interventi-
vas que cimentam as refuncionalizações dos conceitos de sociedade
civil e de democracia no campo teórico brasileiro em tela. Uma pri­
meira conclusão que podemos tirar dessas formulações é que a con-
ceituação da sociedade civil como um espaço situado para além da
sociedade política, do Estado e do mercado resulta em um entendi­
mento de que seu elemento fundante é a defesa de direitos e de pro­
posições de novos direitos.2 Defesas e proposições que implicam par­
ciais vitórias e parciais derrotas, pois dependem do diálogo, da parce­
ria, da negociação, colaboração e interação estabelecida entre os inte­
resses presentes nas organizações da sociedade civil com o Estado,
contra o Estado ou com independência deste.

2. Tais prospecções prático-políticas tendem a se resumir, como nos esclarece Dias, ao


campo da "possibilidade realizável, da utopia possível [...] O projeto da democracia formal
e seu componente fundamental — a cidadania — passam a dominar o seu imaginário e as
suas ideologias" (Dias, 1999: 80).
M* M. L. DURIGUETTO

Em oposição a essas formulações, a concepção gramsciana de


sociedade civil, conforme afirmamos* anteriormente, supõe hegemo­
nia e revolução, supõe confronto entre projetos de classe, em que a
estratégia de "guerra de posição" implica um vencedor. Como afirma
Coutinho (2000:26), "há uma dimensão nitidamente política" no "[...]
conceito gramsciano de 'sociedade civil', sua articulação dialética com
a luta pela hegemonia e a conquista do poder por parte das classes
subalternas".
No debate acerca da esfera pública da cidadania, democracia é plu­
ralismo, é convívio consensual que não gera sujeito coletivo revolu­
cionário, portanto não gera hegemonia. O espaço da sociedade civil é
conceitualizado como espaço em que se desenvolvem as "lutas so­
ciais" dirigidas e articuladas a um mesmo fim: o bem comum, o inte­
resse público. O debate acaba assim por esvaziar essas "lutas sociais"
de qualquer determinação econômica e das contradições e conflitos
de classe. Esvaziamento que é ainda mais reforçado quando se divi­
dem as organizações por esferas supostamente separadas: as lutas sin­
dicais, desenvolvidas no espaço do mercado; as partidárias, no espa­
ço estatal; e as do "bem comum", no espaço da sociedade civil (con­
vertida em esfera pública).
A idéia de democracia daí decorrente é a de uma democracia
autolimitada, não considerada como um produto das lutas de classes:
uma idéia que não põe em questão a possibilidade de superação do
capitalismo, pois não tem comp horizonte, no desenvolvimento da
democracia, a agregação e mobilização potenciais das classes subal­
ternas num projeto ético-político que tenha como perspectiva a cons­
trução de sua hegemonia.
Ao contrário, em Gramsci e nos autores Togliatti e Ingrao, demo­
cracia é pluralismo com hegemonia. É convívio consensual que resul­
ta na formação, conforme Coutinho (2000: 22), de uma "vontade cole­
tiva majoritária, capaz de articular os múltiplos interesses através da
gestação de um espaço público onde se combinem hegemonia e plura­
lismo", uma vez que implica a construção de um sujeito revolucionário
com vistas à progressiva construção de um novo projeto societário.
Para Gramsci, a sociedade civil não é só o espaço da razão dis­
cursiva, do discurso que visa à comunicação e à interação num debate
democrático, mas o campo do confronto de projetos societários, cujo
horizonte, para as classes subalternas, é o da socialização do poder
político e da riqueza socialmente produzida.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA «S

Consideramos importante esclarecer que a ênfase no fortaleci­


mento e expansão da sociedade civil entendida enquanto "esfera pú­
blica não-estatal" — ou seja, a sociedade civil conceituada como um
espaço situado para além da sociedade política, do Estado e do mer­
cado —, também está presente nas formulações e prospecções práti-
co-políticas do campo de "intenção progressista" acerca do "terceiro
setor". Entretanto, os teóricos do "terceiro setor" e os da "esfera públi­
ca de cidadania" diferenciam-se em um aspecto substantivo. No cam­
po teórico dos defensores da criação, ampliação e consolidação de uma
esfera pública de cidadania, a estratégia para o aperfeiçoamento da
democracia é a contínua e progressiva luta pela garantia de direitos
de cidadania e, sobretudo, pela criação de novos direitos que são in­
termitentemente demandados pelo conjunto plural e diferenciado dos
sujeitos sociais presentes na dinâmica societária. O interlocutor, o es­
paço e os direcionamentos políticos e prático-operativos para a con­
quista e ampliação desses direitos não se restringem à esfera estatal:
também são organizados, demandados e publicizados no campo da
sociedade civil — ou seja, da esfera pública de cidadania.
Para os defensores "progressistas" do "terceiro setor", não é a
perspectiva do direito que impulsiona, que move, que orienta as ações
dos movimentos e organizações presentes nessa "suposta" terceira
esfera social, mas os valores da solidariedade, da filantropia, do vo-
luntarismo, da não-política. Sendo assim, o espaço estatal (primeiro
setor, tido como burocrático, ineficiente) e o mercado (segundo setor,
que objetiva o lucro) não são, por essas lógicas, as instâncias escolhi­
das para onde direcionar as demandas sociais. É, então, na lógica da
sociedade civil que esses valores podem ser encontrados, impulsio­
nados e consolidados. E é justamente esse ponto que demarca as con-
fluências dessa perspectiva do "terceiro setor" com o projeto neolibe-
ral. Assim, a perspectiva do direito presente nos defensores de uma
"esfera pública não-estatal da cidadania" é oposta à perspectiva da
concessão, da ajuda-mútua — tal como se apresenta nas concepções
de "intenção progressista" da sociedade civil como "terceiro setor".
Nessa direção, o debate que envolve a construção ampliada e
participativa de uma esfera pública da cidadania não procura ocupar
o espaço da desresponsabilização estatal nas suas funções sociais im­
plementada pelas estratégias da descentralização e privatização das
políticas sociais. Ao contrário, suas prospecções prático-políticas apon­
226 M. L. DURIGUETTO

tam para que as "organizações da sociedade civil" lutem tanto para a


preservação, conquista e ampliação de direitos civis, políticos e sociais.
Assim, a tematização da sociedade civil enquanto esfera pública
não-estatal de cidadania representa um campo teórico e político de re­
sistência ao neoliberalismo. As prospecções prático-políticas incorpo­
radas e defendidas nas produções e debates acadêmicos acerca do ne­
cessário fortalecimento e ampliação de uma esfera pública não-estatal de
cidadania, são de extrema relevância e importância. Estamos inteira­
mente de acordo quanto ao entendimento de que, para um enfrenta-
mento crítico dos efeitos deletérios da reestruturação produtiva im­
postos às classes subalternas, da contra-reforma neoliberal estatal e da
transformação ideológica da sociedade civil em "terceiro setor" (em
que se efetivará a desresponsabilização estatal no trato à questão so­
cial), exige-se que as ações, movimentos e organizações das classes
subalternas presentes no campo da sociedade civil tenham, para além
da luta pela hegemonia, a luta para fazer avançar as conquistas demo-
crático-populares pela defesa e ampliação dos direitos sociais e traba­
lhistas historicamente conquistados (garantidos pelos regimes de
Welfare State nos países centrais) ou a serem conquistados, como é o
caso do Brasil.
Sendo assim, temos clareza de que hoje nenhuma classe com pre­
tensões hegemônicas pode desconsiderar a mediação dos direitos em
suas estratégias e ações prático-políticas. No entanto, qualquer proje­
to efetivo de emancipação tem de descartar o reformismo limitado e
colocar como questão fundamental a necessidade de disputar e con­
quistar o poder de Estado para implementar reformas que abram ca­
minho à socialização da economia e do poder político. Nessa pers­
pectiva, para conferir um caráter crítico e conseqüente de enfrenta-
mento ao projeto neoliberal, é preciso a incorporação de fundamentos
teóricos e a defesa de prospecções prático-políticas que possibilitem
subsidiar debates e encaminhamentos das múltiplas e diversas ações,
movimentos e organizações que representam os interesses das classes
subalternas na sociedade civil na direção da busca de uma permanen­
te articulação de suas reivindicações, demandas e lutas tanto com as
desenvolvidas na esfera da produção quanto com as desenvolvidas
no âmbito estatal.
Frente a isso, recupero uma recomendação de Netto (1990: 69),
de que a
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA *27

[...] validade do discurso teórico não pode ser aferida simplesmen­


te na medida em que é passível de uma direta instrumentalização
pelos agentes políticos, penso mesmo que ele pode contribuir para
a elaboração de modelos de ação e intervenção sócio-política na
própria escala em que, conscientemente, se distancia do quadro
conjuntural.

É nesse sentido que ponderamos ser extremamente positiva a


presença de uma diversidade de ações, movimentos e organizações
que abarquem a defesa de uma multiplicidade de temas e de interes­
ses de grande impacto contemporâneo, como os referentes ao meio
ambiente, à infância e à juventude, à velhice, às etnias, questões de
gênero, sexualidade etc., o que alarga o horizonte dos conflitos e das
disputas ideológicas na sociedade civil. Por outro lado, tais movimen­
tos e ações envolvidos nessa pluralidade e diversidade de temáticas e
demandas podem reduzir a sociedade civil a palco de um "acampa­
mento" de movimentos cada vez mais fechados em si mesmos, a um
processo que torna suas lutas fragmentadas, setorializadas, dessoli-
darizadas, quando estas não são vinculadas a projetos de hegemonia,
ou seja, a projetos que busquem construir uma visão integrada das
necessidades, interesses, reivindicações e ações prático-políticas
advindas dessas lutas, incorporando-as em um quadro mais abran­
gente e classista.
Se os processos e espaços participativos da sociedade civil não
são perspectivados como elementos que possibilitam enfrentar a cons­
trução de uma nova hegemonia, mas apenas valorizados per si — tais
como os movimentos sociais, ONGs, processos de descentralização
—, o que se tem é a tendência ao reforço do corporativismo e das rela­
ções particularistas. As diferentes lutas tendem a se hipertrofiar em
demandas e formas de expressão fragmentadas, despolitizadas, agar­
radas à pragmaticidade e à imediaticidade cotidianas. Na medida em
que não se perspectiva projetos político-ideológicos e sócio-organiza-
tivos portadores de projetos de classe e de uma contra-hegemonia, está se
possibilitando o reforço prático-político do projeto liberal-corporativo.
Ou seja, na medida em que não se perspectiva a formação de uma nova
hegemonia e não são pensadas e problematizadas as instâncias media­
doras da formação de uma "unidade política" tem-se a possibilidade
do reforço da fragmentação corporativa tão cara ao ideário neoliberal.
228 M. L. DURIGUETTO

É justamente por isso que ressaltamos a importância da incorpo­


ração de um entendimento da categoria de sociedade civil tal como
formulada nos termos de Gramsci. É a partir de um parâmetro como
esse que se pode dotar as lutas sociais desenvolvidas em seu interior
de uma perspectiva teórica e ético-política que vise à totalidade so­
cial, que objetive romper com o caráter — cada vez também mais in­
centivado pelo neoliberalismo — da parcialidade e do corporativismo
de suas reivindicações, envolvendo-as e desenvolvendo-as a partir e
no interior de projetos que postulam uma contra-hegemonia.
É na direção contrária à de uma concepção tripartite de organi­
zação societal em setor civil, estatal e mercantil que se situou o rumo
da nossa análise, que visa a reconhecer a sociedade como uma totali­
dade em processo, o que implica considerar as conexões entre estru­
tura econômica e ordenamento político, e coloca, "para a projeção re­
volucionária, inevitavelmente, a indissolubilidade e a sincronia de
transformações organizadas em ambas as instâncias, a econômica e a
política". (Netto, 1990: 87-88) É justamente por ser esse o desafio que
as reflexões de Gramsci e dos autores que nele se inspiram mostram-
se tão úteis na direção de problematizarmos a questão de "[...] como
politizar e unificar a sociedade civil, pensá-la como algo fundido à
economia, à política e ao Estado como espaço para a superação
dos particularismos. "Descobrir como isso poderá se dar no contexto
atual — no qual estão gravemente dificultadas as agregações superio­
res — é o desafio com que teremos de nos haver daqui para a frente.
Por suas proporções e por suas evidentes implicações políticas e so­
ciais, trata-se de um desafio especialmente adequado para reativar o
pensamento crítico de modo pleno, isto é, com a mesma radicalida-
de, contundência e criatividade que sempre o distinguiu. (Noguei­
ra, 1998: 285)
E é com este desafio que abraçamos a indicação de Mandei (1995:
214): "[...] se não fazemos nada, estamos condenados; se atuamos, não
temos nenhuma segurança de vencer, mas temos uma possibilidade
[...]. Toda tentativa de solução individual, parcial, fragmentada, des­
contínua para essas tremendas ameaças que se observam está, desde
o início, condenada ao fracasso. A única possibilidade está na ação
coletiva; democrática [...]". E finaliza: "[...] Essa é a orientação que
devemos adotar para resolver a crise da humanidade".
229

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