SOCIEDADE CIVIL
E DEMOCRACIA
UM DEM TE NECESSÁRIO
^€ D ITO R fl
Conselho Editorial da
área de Serviço Social
Ademir Alves da Silva
Dilséa Adeodata Bonetti
Elaine Rossetti Behring
Maria Lúcia Carvalho da Silva
Maria Lúcia Silva Barroco
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-1292-4
07-4648 CDD-321.8
Sumário
P refácio ................................................................................................................. 11
Introdução................................................................................................. 15
PARTE I
Temática da democracia na tradição liberal e marxista
PARTE II
Questão democrática na transição brasileira
Prefácio
Introdução
1. "Na realidade, totalidade não significa todos os fatos. Totalidade significa: realidade
como um todo estruturado, dialético, no qual ou do qual um fato qualquer (classes de fatos,
conjunto de fatos) pode vir a ser racionalmente compreendido. Acumular todos os fatos não
significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos (reunidos em seu conjunto) não consti
tuem, ainda, a totalidade [...]. A totalidade concreta não é um método para captar e exaurir
todos os aspectos, caracteres, propriedades, relações e processos do real; é a teoria da reali
dade como totalidade concreta. [...] desta concepção da realidade decorrem certas conclu
sões metodológicas que se convertem em orientação heurística e princípio epistemológico
|6 M. L. DURICUETTO
Parte I
Temática da democracia na
tradição liberal e marxista
Capítulo i
1. Como afirma Macpherson (1978: 26-27): "[...] todas a$ teorias democráticas anterio
res ao século XIX se enquadram melhor fora da tradição liberal".
2. Assim, a teoria liberal não se desenvolve como teoria política democrática. Recolhe
as demandas democráticas num arcabouço teórico-político que as repõe sobre um patamar
restritivo. Esse caráter restritivo tem seu fundamento na figura do "cidadão proprietário".
(Netto, 1990:14)
3. Como expõe Netto (1990: 76), "[...] o envolver da ordem capitalista abre a possibili
dade objetiva da moderna democracia política, fundada na generalização do reconhecimen
to social da igualdade jurídico-formal dos indivíduos e comportando a incorporação de
amplos segmentos sociais nos cenários da ação e da intervenção sociais. Dependendo da
capacidade de mobilização organizada destes segmentos — dependendo da sua prática po
lítica, aquela possibilidade converte-se em realidade".
SOCIEDADE CIV IL E DEMOCRACIA 33
4. No entanto, pondera Netto (1990: 72 e 74) que, para não cair em uma postura
"politicista" ou "economicista", a decisão a favor de um ou outro regime político não pode
ser vista com uma simples "função das variáveis econômicas: mas resultou sempre da me
diação política [...] engendrada pela concorrência de múltiplas contradições, conflitos e lu
tas de classes e grupos sociais, e seus agentes políticos, que se posicionavam diferentemente
em face daquelas variáveis". Assim, a democracia é aceita e promovida (formal e limitada
mente) desde que permita a manutenção dos interesses hegemônicos do capital. No entan
to, ela não existe independente das lutas das classes subalternas para sua ampliação.
5. A consolidação da universalização do ordenamento democrático tem sido, historica
mente, uma demanda da prática das classes subalternas "para transformá-lo qualitativa
mente através de rupturas ao longo de um processo onde ele será superado" e onde será
alcançada aquela "igualdade real". E, por sua vez, a progressiva consolidação de um orde
J* M. L. DURICUETTO
8. Na obra Segundo tratado sobre o governo, Locke argumenta que os homens viviam em
estado de natureza, um estado de absoluta liberdade e igualdade para ordenar suas ações e
dispor de posses e pessoas como quisessem. Os homens tornavam-se proprietários à medi
da que transformavam o "estado comum" da natureza através de seu trabalho, visando a
sua subsistência e satisfação. Assim, em Locke os homens passam a se apropriar da nature
za pelo trabalho, tornando-se produtores de valores de troca, e desenvolvem-se desigual
mente no próprio "estado de natureza". A complexificação das relações mercantis (surgi
mento do dinheiro), comércio e indústria levaram à concentração da riqueza, tornando la
tente a ameaça de conflitos, que seriam motivados pela propensão humana "natural" para a
acumulação. O temor da perda da liberdade e da propriedade faz com que os indivíduos
criem uma esfera política para conservá-las.
9. Como assinalou Macpherson, essa soberania está hipotecada aos que têm proprieda
de, pois somente estes têm poder político. O Estado é fundado por eles para proteção de sua
propriedade e de si mesmos. Para Locke, os trabalhadores assalariados não têm uma condu
ta racional, pois a essência desta está na aquisição da propriedade. São por isso seres igno
rantes e inferiores, não podendo pensar ou agir politicamente: viviam e tinham de viver da
"mão para a boca". (Locke apud Macpherson (1979: 238-243)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 37
10. Como nos esclarece Coutinho (1996: 9), "[...] para Rousseau, portanto, o importante
é mostrar que esse indivíduo 'natural' não é de modo algum o lobo de seu semelhante [...] É
um ser que dispõe — diz-nos ele — de dois princípios anteriores à razão, um dos quais
interessa ao nosso bem-estar e à nossa conservação; e o outro que inspira uma repugnância
natural por ver perecer ou sofrer qualquer ser sensível'. Rousseau nos fala assim de um
instinto de conservação, através do qual o indivíduo se refere a si mesmo, mas também nos
fala de um sentimento que designa como 'piedade' ou 'compaixão'
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 39
11. Segundo Coutinho (1996: 23, 26-27), a distinção entre vontade geral e vontade de
todos é um claro ponto de discriminação entre o liberalismo e a democracia. O liberalismo
- em suas diferentes correntes —, ao considerar a sociedade como um agregado de interes
ses individuais privados, vê apenas a possibilidade de uma eventual convergência de pon
tos comuns que interessem, pelo menos, à maioria. Para a grande parte dos teóricos liberais,
essa convergência refere-se apenas às 'regras do jogo', ficando a definição dos conteúdos e
dos valores ao arbítrio individual (liberdade negativa). Para Rousseau, a democracia impli
ca dois pressupostos que estão ligados mutualmente: distribuição mais igualitária da rique
za e da propriedade e a gestação e o domínio de uma vontade geral — que pressupõe um
consenso tanto sobre conteúdos como sobre procedimentos.
*2 M. I, DURICUETTO
tivas e políticas, pois é ela que gera o povo como sujeito coletivo, e é
em direção a ela que ele encaminha suas ações.
Entretanto, como afirma Coutinho, as grandes soluções demo
cráticas apresentadas por Rousseau também apresentam limitações e
ambigüidades, sobretudo no que se refere à determinação do modo
pelo qual se opera a construção da vontade geral. Ao reconhecer que a
"[..•! vontade particular tenderá, pela sua própria natureza, à parciali
dade, enquanto a vontade geral tende para a igualdade[...]", Rousseau
acaba adotando uma posição idealista:
12. Para Coutinho (1996: 29), essa divisão entre citoyen e bourgeois parece ser conse-
qüência do fato de Rousseau adotar o ângulo de visão do camponês e do artesão enraizados
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 43
14. "Para Hegel, a sociedade civil é o 'sistema da atomística': embora cada qual busque
nela o seu interesse privado, a divisão do trabalho que assim se estabelece cria um 'sistema',
levando a que a satisfação dos carecimentos de cada indivíduo dependa do trabalho do
outro. Como o trabalho está dividido por ramos, cada ramo desenvolve interesses particula
res próprios, o que o leva a constituir-se em corporação, a qual tem como objetivo defender
o interesse coletivo dos seus integrantes [...] é através das corporações (ou seja, de um sujei
to coletivo) que a eticidade penetra na sociedade civil". (Coutinho, 1994:133)
15. Hegel define as relações entre as corporações e a sociedade civil, por um lado, e o
Estado, por outro, da seguinte maneira: 'a sociedade civil é o campo de luta do interesse
privado singular de todos contra todos; mas, do mesmo modo, tem aqui lugar o conflito
desse interesse privado com o interesse de grupos particulares, e, por outro lado, desses
dois tipos de interesse com os pontos de vista e ordenamentos mais elevados [universais ou
estatais]. O espírito corporativo, que se gera na legitimação dos interesses particulares, con
verte-se em si mesmo no espírito do Estado, dado que é no Estado que encontra o meio de
alcançar seus fins particulares.' (Hegel apud Coutinho, 1997: 7). Dessa forma, a sociedade
civil é entendida como o campo de realizações parciais da universalidade, cuja completa
realização se opera na legislação pública estatal.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA A7
16. Como afirmará posteriormente, "[...] a sociedade civil abrange todo o intercâmbio
material dos indivíduos [...] Abrange toda a vida comercial e industrial de uma dada fase
[...]" (Marx e Engels, 1993: 53). Assim, "[...) a anatomia da sociedade civil deve ser procura
da na economia política". (Marx, 1977: 24) Ou seja, sociedade civil e estrutura econômica
são, para Marx, a mesma coisa; e o Estado é um produto desta, e não, como pensa Hegel,
uma esfera independente e com racionalidade própria.
‘■ OCIEDAOE CIVIL E DEMOCRACIA *9
sufrágio universal. "Poucos países europeus no século XIX (França em 1848, Alemanha em
1871) tinham franquia para adultos masculinos para a assembléia nacional, mas a assem
bléia não tinha escolha ou controle do governo". (Macpherson, 1979:55) Um outro limite da
democracia política liberal clássica consiste em impedir o surgimento de organizações dos
trabalhadores para fazer valer seus direitos. A lei Le Chapelier decretada em 1791 por um dos
primeiros governos oriundos da Revolução Francesa é um exemplo dessa prática política
proibitiva.
18. Assim, segundo Guimarães (1998:253), a linha política nítida e coerente que preva
lece nas obras de Marx é ,"[...] de um lado, a insuficiência dos direitos políticos liberais para
a emancipação plena do indivíduo que deveria se ver livre também dos constrangimentos
econômicos que o oprimiam e tolhiam o desenvolvimento integral de sua personalidade e,
de outro, a insuficiência da democracia representativa, a crítica radical ao estatismo e ao
burocratismo em favor de formas diretas de autogovemo e de controle social".
19. Na Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, ao denunciar a construção da natureza
estatal hegeliana, Marx assume a defesa de uma concepção democrática radical nos termos
do Contrato Social rousseauniano. Isso evidencia, segundo Coutinho (1997:48), que "[...] Marx
não critica o modelo democrático de Rousseau por este ser democrático, mas sim por ser
utópico, ou seja, por não contemplar as condições materiais que tomam possível a efetiva
realização de uma ordem democrática". Este é, para Marx, o limite intransponível da teoria
democrática rousseauniana: a dualidade entre o indivíduo privado e o cidadão público.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 5i
20. Apesar de conceberem a revolução proletária como insurreição, Marx e Engels sem
pre defenderam que a libertação do proletariado é fruto de suas lutas políticas cotidianas, e,
por isso, deveríam se organizar, "fazer política", pois é no campo dessas lutas que passa
riam de uma existência factualmente dada à tomada de consciência de seu pertencimento
de classe e de sua emancipação. Marx já anuncia o campo dessa passagem pelas lutas polí
ticas em 1847. "As condições econômicas, inicialmente, transformaram a massa do país em
trabalhadores. A dominação do capital criou para esta massa uma situação comum, interes
ses comuns. Esta massa, pois, é já, face ao capital, uma classe, mas ainda não o é para si
mesma. Na luta [...] esta massa se reúne, se constitui em classe para si mesma. Os interesses
que defende se tornam interesses de classe. Mas a luta entre classes é uma luta política".
(Marx, 1982: 159) Daí a importância político-organizativa que Marx e Engels atribuíam à
criação de sindicatos e partidos operários de massa.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 53
23. Partindo de Marx e de Lênin, Gramsci eleva a conceito um conjunto de novas trans
formações em curso em sua época histórica — consolidação do fascismo, economicismo
americano e a criação de novas formas de hegemonia por meio de uma complexificação das
superestruturas (Estado, cultura, direito, ideologia) e das democracias modernas (seja nos
institutos políticos representativos bem como nos movimentos e organizações da vida ci
vil). É com essa nova e complexa configuração da vida social que Gramsci aponta a necessi
dade da criação de novas estratégias de conquista do poder político. (Semeraro, 1999: 239).
'.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 55
29. Nesse sentido, segundo Coutinho (1994:139-140), pode-se dizer que Gramsci "[...]
introduziu a problemática do contrato no núcleo de sua teoria marxista do Estado e da po-
lílica. A hegemonia implica, em primeiro lugar, um contrato que é feito no próprio nível da
sociedade civil, gerando, em conseqüência, sujeitos coletivos (como sindicatos, partidos,
movimentos sociais etc.) que têm uma clara dimensão pública, 'estatal'; mas implica tam
bém, por outro lado, um contrato entre governantes e governados, fundado no fato de que,
nessas sociedades 'ocidentais', a obrigação política se funda na aceitação consensual, por go
vernantes e governados, de um mínimo de regras e de valores coletivamente partilhados".
30. Como afirma Dias (1994) a oposição sociedade civil (manifestação pura do priva
do) e sociedade política (como o Estado), ou seja, como instância autônoma do real, é uma
formulação liberal. Aqui, a sociedade civil aparece como o conjunto das instituições priva
das, como elemento que articula as individualidades, caracterizando-se por uma neutrali
dade classista. No pensamento gramsciano (na esteira de Marx), a oposição pertinente que
se estabelece é entre as classes em presença e a forma estatal das classes (não entre público
i» privado).
58 M. L. DURICUETTO
31. Concordamos com Guimarães (1998: 265-6) na sua reflexão de que não há, nos tex
tos gramscianos, nada que autorize a interpretação de que, nesta visão processual da revo
lução, "[...] o momento catártico do salto qualidade, de ruptura, esteja negado". Segundo o
autor, o campo teórico de Gramsci combina "guerra de posição" e "guerra de movimento",
com esta última assumindo 'uma função mais tática na sociedade moderna'. "Assim, em
Gramsci, a concepção de revolução em sua dimensão de violência está radicalmente subor
dinada a sua dimensão diretiva, expansiva, criativa [...]. Pois o processo de construção da
hegemonia como desconstituidor da vontade coletiva da ordem e formação de uma força de
•.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 59
estratos, realizando com eles uma aliança". (Gruppi, 1991: 59) A con
quista progressiva de uma unidade político-ideológica — de uma di
reção de classe — requer, assim, a busca do consenso dos grupos so
ciais aliados, alargando e articulando seus interesses e necessidades
na busca da superação dos seus limites corporativos.35
Esse é o processo e o momento que Gramsci denomina de
"catarse", isto é , "[...] a passagem do momento meramente econômico
(ou egoístico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elabora
ção superior da estrutura em superestrutura na consciência dos ho
mens". (Gramsci, 2001:53) É o próprio processo da passagem da cons
ciência corporativa e particularista da "classe em si" para a consciên
cia universal da "classe para si".36 A superação do interesse particular
35. Mas isso não significa que se deva perder a referência do projeto que determina a
direção do processo unificador. Nas palavras de Gramsci (2000a: 48): "O fato da hegemonia
pressupõe indubitavelmente que sejam levados em conta os interesses e as tendências dos
grupos sobre os quais a hegemonia será exercida; que se forme certo equilíbrio de compro
misso, isto é, que o grupo dirigente faça sacrifícios de ordem econômico-corporativa, mas
também é indubitável que tais sacrifícios e tal compromisso não podem envolver o essen
cial, dado que, se a hegemonia é ético-política, não pode deixar de ser também econômica,
não pode deixar de ter seu fundamento na função decisiva que o grupo dirigente exerce no
núcleo decisivo da atividade econômica".
36. Gramsci (2000a: 41) destaca três momentos de avaliação do grau de homogeneida
de, de organização e consciência ideo-política alcançado pelos vários grupos sociais: o pri
meiro é o momento econômico-corpprativo, no qual o grupo profissional toma consciência
dos seus interesses e do dever de organizá-los, mas não desenvolveu ainda unidade com o
grupo social mais amplo; o segundo é o momento sindicalista, "em que se atinge a consciên
cia da solidariedade de interesses entre todos os membros do grupo social, mas ainda no
campo meramente econômico. Neste momento se coloca a questão do Estado, mas apenas
no terreno da obtenção de uma igualdade político-jurídica com os grupos dominantes, já
que se reivindica o direito de participar da legislação e da administração e mesmo de
modificá-las, de reformá-las, mas nos quadros fundamentais existentes". O terceiro momento
é aquele em que se atinge a consciência de classe ou da fase hegemônica, "em que se adquire
a consciência de que os próprios interesses corporativos, em seu desenvolvimento atual e
futuro, superam o círculo corporativo, de grupo meramente econômico, e podem e devem
tornar-se os interesses de outros grupos subordinados. Esta é fase mais estritamente políti
ca, que assinala a passagem nítida da estrutura para a esfera das superestruturas comple
xas; é a fase em que as ideologias geradas anteriormente se transformam em 'partido', en
tram em confrontação e lutam até que uma delas, ou pelo menos uma única combinação
delas, tenda a prevalecer, a se impor, a se irradiar por toda a área social, determinando, além
da unicidade dos fins econômicos e políticos, também a unidade intelectual e moral, pondo
todas as questões em torno das quais ferve a luta não no plano corporativo, mas num plano
'universal', criando assim a hegemonia de um grupo social fundamental sobre uma série de
grupos subordinados".
•.OCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 6l
37. Seu conceito de hegemonia é também o principal ponto de articulação com as no
ções de vontade geral e de contrato, desenvolvidas por Rousseau, e de pluralismo, desen
volvida por Hegel. Tanto em Rousseau quanto em Gramsci, encontramos a idéia de que a
construção de uma nova relação entre governantes e governados pressupõe indubitavel
mente a formação de um consenso ("vontade geral" no primeiro e "vontade coletiva nacio
nal popular" no segundo) no qual se prioriza a formação do espaço de uma esfera pública
centrada no interesse coletivo sobre o privado. Assim, Gramsci retém da formulação rous-
seauniana a concepção da política e da esfera pública como instâncias de formação inter-
subjetiva da hegemonia e do contrato. Entretanto, em Gramsci, a produção de um contrato
do base ético-política universalizadora não se desenvolve com e através da repressão das
vontades particulares (como em Rousseau), mas por um processo em que a pluralidade e
diversidade dos interesses individuais são conservados e elevados a nível superior (como
em Hegel). E é precisamente a necessidade concreta e objetiva da construção consensual do
contrato e da hegemonia pelos sujeitos sociais que Gramsci supera tanto a sua construção
por uma moralidade abstrata (Rousseau) quanto por um "espírito" estatal (Hegel). É com a
absorção do Estado pelos elementos da sociedade civil que se expressa a erradicação da
relação entre governantes e governados em Gramsci. É aqui que a noção de democracia se
concretiza objetivamente. (Coutinho, 1994: 137-142)
62 M. I. DURIGUETTO
38. Insistência oposta às teses defendidas pelo marxismo vulgar que, ao atribuir um
primado automático e mecânico da base econômica nos processos sociais, acaba por anular
a função do sujeito, das expressões da vontade, de ação e de iniciativa política e intelectual,
induzindo ao fatalismo e à passividade. Tal como em Marx, também em Gramsci, o conjunto
das relações sociais de produção determina a práxis política não como um "determinismo
econômico" de sentido unívoco, mas como determinações que limitam e condicionam histo
ricamente o campo de alternativas que se colocam à ação humana. Fiel a este aspecto deci
sivo do pensamento marxiano, Gramsci se importará com os elementos de preparação das
condições ideológicas da práxis revolucionária, uma vez que, de acordo com o método dia
lético, a vida social é um terreno dinâmico de alternativas, de luta de tendências, que são
resolvidas pela e na luta entre vontades coletivas. É nesta direção que acredita que não há
situação histórica que não possa ser mudada pela livre e consciente ação de homens organi-
UH.IIDADE CIVIL E DEMOCRACIA *3
/.idos, mas que também este processo é pensado inseparadamente dos condicionamentos
sociais que os determinam (Gramsci, 2001: Caderno 11, § 12; cf. também Gruppi, 1991:119).
39. A complementaridade dos dois processos — cultural e econômico — de construção
do uma nova hegemonia é assim explicitado por Gramsci (2000b: 19): "Pode haver reforma
cultural, ou seja, elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, sem uma anterior
reforma econômica e uma modificação na posição social e no mundo econômico? É por isso
que uma reforma intelectual e moral não pode deixar de estar ligada a um programa de
reforma econômica; mais precisamente, o programa de reforma econômica é exatamente o
modo concreto através do qual se apresenta toda reforma intelectual e moral."
«4 M. L. DURIGUETTO
supõe necessariamente uma unidade intelectual e uma ética adequada a uma concepção do
real que superou o senso comum e tomou-se crítica, mesmo que dentro de limites ainda
restritos".
42. Para Gramsci (1971: 29), essa construção do consenso participativo, da vontade
coletiva a partir de uma "reforma intelectual e moral" cabe principalmente ao partido polí-
lico, que operaria a síntese política do consenso gestado na sociedade civil. Entretanto, pon
dera: "O princípio segundo o qual o partido dirige a classe não deve ser interpretado de
íorma mecânica. Não se deve crer que o partido pode dirigir a classe operária impondo-se a
ela do exterior e de forma autoritária: isso não é mais verdadeiro para o período que precede
«i tomada do poder, do que para aquele que sucede [...] Nós afirmamos que a capacidade de
dirigir a classe não se deve ao fato de que o partido se proclame seu 'órgão revolucionário',
mas ao fato de que ele consiga efetivamente, enquanto partido de classe operária, permane
cer em ligação com todas as suas camadas".
66 M. I. DURIGUETTO
43. "[...] Ela surge no tempo, já que só existe política [restrita] quando há governantes e
governados, dirigentes e dirigidos, uma divisão que — como Gramsci indica — tem sua
matriz última na divisão da sociedade em classes e [...] deverá desaparecer [...] na 'socieda
de regulada' (comunista), ou seja, precisamente quando desaparecer a divisão da sociedade
em classes. Do mesmo modo como, nessa 'sociedade regulada', os organismos sociais deve
rão absorver a economia (no sentido de subordinar suas leis espontâneas e aparentemente
naturais ao controle consciente e programado dos produtores associados), assim também —
pensa Gramsci — tais organismos deverão absorver o Estado, pois as funções desse 'corpo
separado' se dissolverão nas relações conscientes e consensuais que caracterizam a socieda
de civil" (Coutinho, 1989: 55).
44. A ideologia é compreendida como "[...] o significado mais alto de uma concepção
do mundo, que se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade econômica, em
SOCIEOAOE CIVIL E DEMOCRACIA 67
45. A amplitude e a solidez das organizações políticas dos trabalhadores é que vão
definir se o processo de reformas é uma etapa da luta de classes pelo socialismo ou se se
trata de um "oportunismo reformista" que a extingue.
46. "Esta ultrapassa os limites do puro respeito às formas exteriores igualitárias e par
lamentares, enfrenta na essência os problemas de organização da vida econômica e políti
ca" (Togliatti, 1966: 116).
47. Nas palavras do autor: "Nós hoje falamos de hegemonia e pluralismo. Eu diria
mais precisamente: hegemonia da classe operária no pluralismo. É uma fórmula que não se
limita a indicar a direção da classe operária baseada no consenso; é uma fórmula que já
alude a uma precisa forma política e estatal do consenso." (Ingrao, 1980: 151-152)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 69
48. "[...] temos de sublinhar a existência desse nexo indissolúvel entre a luta democrá
tica e a luta pelo socialismo, mas também demonstrar [...] que a democracia é algo real e
novo. Queremos que a vontade popular seja verdadeiramente determinante dos desenvol
vimentos políticos, e penetre — transformando-o no próprio tecido da vida econômica, e,
portanto, de toda a sociedade civil [...]. É nossa ação para impulsionar a sociedade no senti
do do socialismo que anima, dá conteúdo e eficiência à nossa luta pela democracia [...]."
(Togliatti, 1980: 190)
70 M. L DURICUETTO
Capítulo 2
das, às firmas terceirizadas, acarretando a expansão dos métodos e procedimentos para toda
a rede de fornecedores. Desse modo, flexibilização, terceirização, subcontratação, círculos
de controle de qualidade, just in time, gerência participativa, são levados para um espaço
ampliado do processo produtivo. A repercussão dessas mutações no mundo do trabalho são
materializadas na desregulamentação dos direitos do trabalho, no aumento da fragmenta
ção no interior da classe trabalhadora, na precarização e terceirização da força de trabalho,
na destruição do sindicalismo de classe e sua conversão num sindicalismo de parceria, ou
mesmo em um "sindicalismo de empresa". (Antunes, 1999: 52-53)
9. Na verdade, como afirma Netto (1995:195), o que a grande burguesia monopolista e
a oligarquia financeira desejam e pretendem em face da crise contemporânea da ordem do
capital, "[...] é erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer componente de
mocrático de controle do movimento do capital. O que desejam e pretendem não é 'reduzir
a intervenção do Estado', mas encontrar as condições ótimas (hoje só possível com o estrei
tamento das instituições democráticas) para direcioná-la segundo seus interesses particula
res de classe".
10. Em relação à crise do Estado de Bem-Estar, Netto (1993: 68) afirma que as suas
causalidades não devem ser buscadas nos aspectos "isolados" que expressam essa crise,
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 83
12. Essa ofensiva era resultado de ações que freqüentemente ocorriam fora e mesmo
contra as organizações sindicais e os mecanismos de negociação políticos instituídos, fican
do conhecidas como movimentos autônomos, (cf. Antunes, 1999: 40-43 e Bihr, 1998: 60-64)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 85
Como nos esclarece Bihr (1998: 154), [...] "essa falta de articula
rão exprimia as insuficiências radicais do movimento operário social-
democrata e das lutas do proletariado pós-guerra e, com isso, indica
va simultaneamente os próprios limites dos 'novos movimentos sociais".
(grifos do autor)
Ou seja, se a conflitualidade proletária não ultrapassou, senão
raramente, os limites do quadro imediato da empresa, o mesmo ocor
reu com a emergência dos "novos movimentos sociais". O duplo ca
ráter de suas lutas — marcadas por temáticas, problemas e objetivos
específicos, situados fora da esfera imediata do trabalho e da produ
ção, e por uma relação de indiferença com as formas organizacionais
clássicas de intermediação do movimento operário, que poderíam ter
garantido sua coordenação e convergência — acabou por imprimir
em suas lutas um caráter disperso e fragmentário.13
Essa fragmentação e desarticulação das lutas sociais potenciali
zou-se a partir da década de 1970. Com o desenvolvimento do proces
so de mudanças na esfera produtiva e na da reprodução social, o capi
15. Todo o construto teórico hayekiano é para elevar a liberdade como um valor supre
mo da vida social. Assim, democracia, justiça social, bem comum, igualdade são, para ele,
instituições, atividades, concepções que obstruem a construção da liberdade. Nesse sentido,
qualquer intervenção estatal na dinâmica da vida social visando garantir padrões ou níveis
de justiça social vai de encontro com a liberdade econômica e, portanto, com a base desta,
ou seja, a liberdade individual (Hayek, 1985: 82-86).
16.0 que significa a não-criação de padrões de justiça social corporificados em políti
cas sociais públicas, universais e não-contratualistas. Para Hayek, esse padrão redistributi-
vo de renda nada mais fez do que criar uma cultura imobilista e desestimuladora nos cida
dãos, tirando-lhes a convicção de que nas suas ações livres e individuais estaria contida a
possibilidade de ascensão e de reconhecimento social. É com a manutenção das desigualda
des sociais que se tem o incentivo para que os indivíduos se esforcem para atingir seu bem-
estar. Nas suas palavras: "[...] é importante que, na ordem de mercado, [...] os indivíduos
acreditem que seu bem-estar depende, em essência, de seus próprios esforços e decisões. De
fato, poucas coisas infundirão mais vigor e eficiência a uma pessoa que a crença de que a
consecução das metas por ela mesma fixadas depende sobretudo dela própria". (Hayek,
90 M. I. DURIGUETTO
1985: 93) Conforme Laurell (1995: 163) "[...] a crítica neoliberal ao Estado do Bem-Estar é
centrada em oposição àqueles elementos das políticas sociais que implicam desmercantili-
zação, solidariedade social e coletivismo".
17.0 que temos aqui é que a "[...] nova direita está preocupada em defender a causa do
'liberalismo' contra a 'democracia', limitando o uso democrático do poder do Estado". (Held,
1987: 220)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 91
18. Para Hayek (apud Merquior, 1991:194-195), "[...] exceto no que diz respeito a âmbi
tos bem delimitados, não há necessidade de acordo quanto a objetivos: "não pomos em vi
gor uma escala unitária de objetivos concretos escreveu ele, "[...] nem tentamos garan
tir que alguma opinião particular sobre o que é mais e o que é menos importante governe
toda a sociedade [...]; aquilo de que necessitamos são antes regras do jogo do que valores e
objetivos partilhados".
19. Segundo Sartori (1994: 209-210; 227-228), "se [...] quisermos uma 'sociedade racio
nar preconcebida e bem planejada, teremos de recorrer aos especialistas e confiar neles". E
acrescenta: "estamos indo na direção de menos poder do povo [...]. À medida que os meca
nismos da vida social e econômica tornam-se mais e mais complexos [...] a opinião do espe
92 M. L. DURICUETTO
cialista deve adquirir um peso muito maior que seu voto como eleitor [...] em nossos dias o
'poder da iniciativa' está muito mais com os trustes intelectuais e os tecno-especialistas".
20. Argumenta Sartori (1994:151) que "[...] as questões que entendemos realmente são
aquelas com as quais temos experiência pessoal e que as idéias que realmente dominamos
são aquelas que somos capazes de formular por conta própria". Também concorda com
Schumpeter que as "[...] decisões políticas raramente são geradas pelo povo soberano, são a
eles submetidas. E os processos de formação da opinião realmente não partem do povo,
passam por ele. Mesmo quando as correntes de opinião se materializam de fato, não pode
mos dizer que o fator que as detona reside no povo como um todo. Ao exercer uma influên
cia, o povo também é influenciado. Antes de querer algo, fazem muitas vezes com que o
queiram". (Sartori, 1994a: 172)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 93
dor político", uma vez que este vem tendo reduzida sua capacidade
para a ação e a escolha racional. Ou seja, o problema está na
implausibilidade de se continuar apostando que o fundamento da vida
democrática reside na autonomia, racionalidade e responsabilidade
moral do indivíduo.
Dessa forma, toma-se implausível a defesa das instituições da
democracia como produto do consenso reflexivo e de uma escolha
racional de agentes autônomos. Em seu lugar, as funções protetoras
da integração social são exercidas cada vez mais por uma rede de "go
vernantes privados" — partidos e agentes corporativos autônomos.
Ao invés de se constituir numa esfera aberta à formação e participa
ção das vontades populares, a democracia é vista como um instru
mento de controle social e de um consenso não racional. Mas é princi
palmente na configuração da dinâmica das relações individuais con
temporâneas que esses autores evidenciam a completa inadequação
dos procedimentos democráticos para orquestrar a vida social e redu
zir suas disparidades econômicas e sociais.
Segundo suas elaborações, o que conforma a subjetividade hu
mana é a pluralidade e contingência de interesses e valores, que esti
mulam a adoção de raciocínios específicos de acordo com os diferen
tes contextos em que operam. O indivíduo parece guiar-se, cada vez
mais, pela busca dos seus interesses, não estando dispostos a partici
par dos rituais de homologação e integração coletivas. Em conseqüên-
cia, inexiste um código ético capaz de integrar as nossas diferentes
subjetividades, pois estas se encontram divididas em uma multiplici
dade de particularismos e interesses localizados em diferentes grupos
(profissionais, familiares, sexuais, étnicos, religiosos etc.), o que vem
impossibilitar a nossa capacidade de refletir e atuar como membros
de uma sociabilidade ético-política comum. Nesse sentido, a expres
são política das preferências individuais é incapaz de conduzir a pro
jetos coerentes, definidos e de longo prazo.
Se as condutas individuais estão cada vez mais desapegadas de
qualquer consensualismo político, a erosão, tanto da dimensão públi
ca da vida social como do domínio da autonomia e da subjetividade
política individual, coloca a necessidade de que a dinâmica da esfera
política seja realizada justamente pela desestruturação da esfera pú
blica e do isolamento e dispersão dos agentes políticos. Para Zolo (1994)
e Bellamy (1994) os regimes democráticos têm hoje que apresentar um
9* M. L. DURIGUETTO
21. No entanto, se a atmosfera político-ideológica que cobre hoje a mesma velha pala
vra — liberal — é marcada por diferentes teorizações, como diz Merquior: "a hora pertence
aos liberalismos", as argumentações acerca da relação indivíduo, esfera pública e democra
cia parecem indicar que o véu do neoconservadorismo é o que hoje domina a teoria política
liberal. Essa hegemonia no campo da teoria expressa e revela a "crise global" das proposi
ções e práticas dos dois projetos societários que, cada uma a seu modo, procuraram soluções
alternativas positivas para as contradições próprias à ordem do capital: a crise do Estado de
bem-estar e a crise do chamado "socialismo real", como visto.
96 M. t. OURIGUETTO
22. Para Dahl, protesto e violência são manifestações que ocorrem quando há lacunas
entre expectativas/demandas e respostas/oportunidades concretas. Tais manifestações en
contram suas raízes na derrubada dos valores e normas de "controle social" que conformam
graus de pertencimento e sociabilidade individual, gerando descrença no desenvolvimento
econômico, na responsabilidade política dos líderes e nos valores da sociabilidade primária.
Os indivíduos se tornam "anômicos" pela perda da auto-referência em relação ao outro, das
regras sociais que governam suas condutas e da legitimidade da capacidade governativa.
(1993: 317)
23. A esfera estatal e a esfera econômica são, assim, consideradas relações institucio
nais diferenciadas. A esfera política é uma conseqüência dos procedimentos competitivos
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 99
lie interesses nas "regras do jogo". Mesmo que os interesses econômicos dos grupos influen-
los coincidam com os do Estado, este é visto como uma organização independente que faz
políticas para responder à pressão de inúmeros grupos.
100 M. L. DURICUETTO
24. Segundo Merquior (1991: 216), Bobbio reafirmou a ligação entre o liberalismo e a
democracia e é o contratualista "[...] que mais se aproxima de combinar uma busca da justi
ça e um gosto pela igualdade com um firme senso de estruturas institucionais, tipos de
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 103
regime, e seu respectivo valor, empiricamente avaliados E finaliza: "É porque com-
preende inteiramente isso que Bobbio afirma que 'toda democracia genuína é necessaria
mente uma democracia liberal'".
104 M. I. DURICUETTO
25. Para Habermas (1997:61), a sua teoria coloca o problema das condições nas quais o
Estado pode ao menos desenvolver uma sensibilidade em relação a esses interesses.
108 M. L. DURlOUtTTO
26. Apesar de supor como "ilusória" a separação operada por Marx entre "bourgeois” e
“citoyeri', o entendimento da constituição da esfera pública em Habermas é o de construção
de uma esfera pública burguesa. Seu modelo de esfera pública deriva de alguns contextos
institucionais específicos que deram origem à revolução burguesa — debate científico, par
lamentos modernos e tribunais — mas que tiveram uma programática política e "discursi
va" elitista e exclusivista, uma vez que só homens, brancos e proprietários dela faziam par
te. Assim, a esfera pública analisada por Habermas é burguesa (são os proprietários); e libe
ral (uma vez que se materializa por meio de direitos civis que asseguram a autonomia desta
esfera, servindo como limite para o alcance do poder de Estado). No que se refere ao sistema
político, as relações de debate e publicização acerca da regulação da vida mercantil ocorri
das no espaço da "esfera pública burguesa" passam a exercer uma influência direta nos
processos de decisão política com a organização e consolidação do Estado de Direito liberal-
burguês e com a criação de mecanismos político-institucionais, como o sistema parlamen
tar. Assim, as demandas advindas da esfera pública burguesa passam a ser institucionaliza
das e legalizadas pelo sistema de direito privado que garante a livre iniciativa, o laissez-faire,
a liberdade das relações de troca mercantis e a livre concorrência. Dessa forma, o que o
sistema político expressa são os interesses comuns dos proprietários privados e é essa con
dição de proprietário que permite a eles assumirem a condição de cidadãos políticos ativos.
Assim, os interesses de classe da burguesia adquirem uma aparência de universalidade. Como
se vê, a "ilusão" não está em Marx!
110 M. t. DURIGUETTO
27. Para Habermas, (1997: 75) o mundo da vida representa uma caixa de ressonância
para a tematização e o tratamento de problemas que envolvem a sociedade como um todo.
De acordo com Arato e Cohen (2000: 493), o mundo da vida em Habermas apresenta " [...]
três componentes estruturais — cultura, sociedade e personalidade. Na medida em que os
atores se entendem mutuamente e estão de acordo sobre sua situação, compartem uma tra
dição cultural e, ao coordenarem sua ação por meio de normas reconhecidas intersubjetiva-
mente, atuam como membros de um grupo social solidário. Quando os indivíduos crescem
dentro de uma tradição cultural e participam da vida de grupo, internalizam as orientações
de valor, e desenvolvem identidades individuais e sociais. A reprodução desse ciclo ocorre
por meio da comunicação. Isso implica processos reprodutivos de transmissão cultural, in
tegração social e socialização".
SOCIEDADE CIVIL E OEMOCRACIA UI
28. "De acordo com a concepção habermasiana de esfera pública, o bem comum pode
ser formal e ser pensado em termos da capacidade dos diferentes atores sociais para publicizar
sua luta contra formas privadas de dominação [...], construindo identidades em público, e
estabelecendo novas formas de solidariedade Essa publicidade leva a uma ruptura
adicional com a tradição do elitismo, por essa tradição abandonar idéias de autodetermina
ção, participação, processos discursivos de formação da vontade política entre iguais, entre
outras. Para Habermas, todos os atores sociais são igualmente capazes de dominar a lingua
gem, de argumentar publicamente e de submeter a autoridade pública à crítica. (Avritzer,
1999: 32).
29. Na obra Mudança estrutural da esfera pública, Habermas analisou os condicionantes
de formação do Estado Social. Ao abordar a passagem do Estado de Direito liberal para o
Estado social (versão germânica do Welfare State), o autor destaca o surgimento de uma
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 113
"esfera social repolitizada", cuja base social, ao contrário de pessoas privadas e proprietá
rias, é agora formada por grupos organizados e instituições político-organizativas que pas
sam a assumir a mediação entre sociedade civil e Estado. Essa mudança dos sujeitos sociais
da esfera pública deve-se à progressiva visibilidade das contradições de classe e de suas
organizações na defesa de seus respectivos interesses. As demandas pelo reconhecimento
desses interesses na esfera pública pressionam o Estado que, para legitimar-se ante a socie
dade, passa a intervir cada vez mais sobre os mecanismos reguladores da vida econômica e
social. Dessa forma, Estado e sociedade interpenetram-se e surge uma "esfera de relações
semipúblicas", protagonizada pelos partidos políticos, sindicatos e Estado, que buscam ga
rantir a representação dos seus interesses na esfera pública. Mas é particularmente nessa
conferência que Habermas desenvolveu sua crítica à crescente burocratização do Estado
Social como limite para a garantia de níveis crescentes de justiça social e para a conforma
ção de uma esfera pública democrática.
30. A crítica à "utopia de uma sociedade do trabalho" será aqui desenvolvida por
Habermas apoiando-se em grande medida nas análises de Offe. Habermas (1997:105) afir
ma que "[...] chegou ao fim uma determinada utopia que, no passado, cristalizou-se em
torno do potencial de uma sociedade do trabalho". E conclui: "as condições da vida emanci
pada e digna do homem já não devem resultar diretamente de uma reviravolta nas condi
ções de trabalho, isto é, de uma transformação do trabalho heterônomo [alienado] em auto-
atividade [...]". (1997: 107) Ou seja, o que ele propõe é a substituição da centralidade da
emancipação humana pela erradicação do trabalho alienado por uma nova centralidade
•14 M. I. DURIGUETTO
32. "[...] a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a
igualdade de cidadania seja reconhecida". (Marshall 1967: 62)
Il6 M. I. DURICUETTO
zação. Sendo assim, o que essa nova teoria da sociedade civil reivin
dica é a identificação da democratização com a existência de uma ter
ceira esfera, que teria, como característica central, a interatividade e o
livre associativismo.
Tal como em Habermas, a sociedade civil é também aqui
conceitualizada como uma esfera da interação social que se distingue
tanto do Estado como da economia: "usando um modelo de três par
tes — a economia, a sociedade civil e o Estado — eliminamos a cone
xão que existe quase por definição entre a economia capitalista e a
sociedade civil moderna". (Cohen e Arato, 2000: 456)
Prosseguem introduzindo uma distinção entre as organizações
que operam no interior da sociedade civil das presentes no mercado
(organizações de produção e distribuição) e no Estado (organizações
e partidos políticos e parlamento). Para Arato e Cohen (2000: 9), em
confluência com Habermas, os atores da sociedade política e econô
mica visam à participação direta no poder estatal e na produção eco
nômica, os quais procuram controlar e manejar. Enquanto que o "pa
pel político da sociedade civil, por sua vez, não está relacionado dire
tamente com o controle ou a conquista do poder, mas com a geração
de influência mediante a atividade das associações democráticas e a
discussão não restrita na esfera pública cultural".
Partem da distinção operada por Habermas entre "sistema" e
"mundo da vida", definindo este último como sendo a esfera na qual
os membros de um grupo social, em suas relações cotidianas, desen
volveríam processos comunicativos e interações intersubjetivas com
significados e conteúdos comuns. Mas, para Arato e Cohen (2000:483),
esta esfera requer a criação de instituições cujo objetivo se inscreve na
preservação dessa dinâmica associativa de formação de identidades e
solidariedades. E é essa dimensão institucional do "mundo da vida" que
corresponde ao conceito de sociedade civil nos autores em tela. Assim, a ino
vação que introduzem na conceitualização habermasiana de socieda
de civil está no seu entendimento enquanto arena especializada na
institucionalização, organização e reprodução das tradições, solida
riedades e identidades do "mundo da vida". Dessa forma, a socieda
de civil é "[...] a estrutura institucional de um mundo da vida moder
no estabilizado pelos direitos fundamentais". (2000: 493)
Nesse sentido, demarca-se uma diferença entre sociedade civil,
sociedade política e sociedade econômica. Esta estaria baseada em formas
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 119
34. Como afirma Costa (1995: 59), Arato e Cohen "[...] conceitualizam, assim, o espaço
da sociedade civil como um 'terceiro setor' dotado de autonomia e auto-organização em
relação ao Estado e ao mercado. A esfera 'civil' é o lugar em que se potencializa a expansão
da democracia, através da formação de uma pluralidade de movimentos auto-organizados,
que favorecem a participação interativa e a formação de uma esfera pública na qual as ações
do Estado e do mercado são limitadas e/ou influenciadas pela sociabilidade associativa".
Dessa maneira, procura-se assegurar, de forma procedimental, que a força sócio-integrativa
da solidariedade contrabalance o dinheiro e o poder.
120 M. I. DUR1GUETT0
política etc.) mais complexificadas e desenvolvidas que as anteriores, porque supõem a interação
entre seres sociais, como práxis interativa e intersubjetiva, mas que se constituem como complexos
que ocorrem a partir do trabalho em sua forma primeira. São secundárias, portanto, não quanto à
sua importância, uma vez que a esfera da intersubjetividade é decisiva e dotada de maior
complexidade nas formações societais contemporâneas, mas são secundárias tão-somente em
seu sentido ontológico-genético. Mas entre elas não é possível estabelecer uma disjunção bi
nária e dualista: ao contrário, para Lukács, entre o trabalho (categoria fundante) e as formas
superiores de interação, a práxis interativa, existem nexos indissolúveis, por maior que sejam
as distâncias, os prolongamentos e as complexificações existentes entre essas esferas do ser
social". (Grifos do autor) Assim, "[...] se o trabalho tem o sentido de momento predominan
te, a linguagem e a sociabilidade, complexos fundamentais do ser social, estão intimamente
relacionados a ele, e como momentos da práxis social esses complexos não podem ser sepa
rados e colocados em disjunção. Quando Habermas transcende e transfere a subjetividade e
o momento da intersubjetividade para o mundo da vida, como universo diferenciado e se
parado dos sistemas, o liame ontologicamente indissolúvel se rompe na sua construção ana
lítica". (Antunes, 1999:157)
36. Para Habermas (1990:111), "[...] o poder comunicativo é exercido no modo do assé
dio. Ele atua sobre as premissas dos processos decisórios do sistema administrativo sem
intenção de conquista [...]". E, segundo Cohen e Arato (2000:35),"[...] se bem que a democra
tização total do Estado e da economia não pode ser seu objetivo, a própria sociedade civil é
um importante terreno da democratização, da construção de instituições democráticas
122 M. L. DURICUEnO
ção, as inferências propositivas que apontam para uma vida sem do
minação e democrática estariam na proliferação de fluxos comunica
tivos em arenas públicas. Em outras palavras, as condições para se
levar uma vida emancipada radicam na potenciação da ação comuni
cativa visando a criação de consensos na esfera pública, deixando o
poder político estatal e o econômico imutáveis.
Assim, é notória a ruptura deles com a proposta de organização
política própria ao pensamento marxista, particularmente gramsciano,
uma vez que a dimensão política dos movimentos e organizações das
classes subalternas presentes na sociedade civil não teriam seu pleno
desenvolvimento com a superação do conflito decorrente da organi
zação contraditória da produção material mas sim nos processos de
formação de identidade, produção de solidariedade e argumentação
moral.*37 Ou seja, a relação contraditória dos interesses entre capital e
trabalho é substituída pelas relações consensuais criadas pelas argu
mentações discursivas desenvolvidas no "mundo da vida". Há, as
sim, um ataque à noção marxista de classe social e a substituição da
contradição capital/trabalho por temáticas sociais mais específicas
materializadas nas ações pontuais e focalizadas dos movimentos so
ciais organizados no âmbito do "mundo da vida". Estas, em lugar da
luta de classes, é que passam a ser defendidas como desencadeadoras
das mudanças na sociedade.
Nessa dimensão, concordamos com Petras quando responde que
o marxismo, sem excluir a importância das divisões raciais, de gêne
E ratificam: "Nossa estrutura permite um terceiro enfoque, que não busca corrigir a pene
tração econômica ou estatal da sociedade mediante uma utilização maior ou menor destes
mecanismos orientadores. De fato, a tarefa é garantir a autonomia do Estado e da economia
modernos, ao mesmo tempo que se protege simultâneamente a sociedade civil da penetra
ção e funcionalização destrutivas dos imperativos destas duas esferas [...]" (2000: 44).
37. Nas palavras de Habermas (1997: 105-106): "[...] isso faz com que os movimentos
democráticos oriundos da sociedade civil renunciem às aspirações de uma sociedade auto-
organizada em sua totalidade, aspirações que estavam na base das idéias marxistas da re
volução social. Diretamente, a sociedade só pode transformar-se a si mesma; porém ela pode
influir indiretamente na autotransformação do sistema político constituído como um Esta
do de direito. Quanto ao mais, ela também pode influenciar a programação desse sistema.
Porém ela não assume o lugar de um macro-sujeito superdimensionado, dotado de caracte
rísticas filosófico-históricas, destinado a controlar a sociedade em seu todo, agindo legiti
mamente em seu lugar. Além disso, o poder comunicativo, introduzido para fins de planeja
mento da sociedade, não gera formas de vida emancipadas.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 123
ro, étnicas, dentro das classes, enfatiza "o sistema social mais amplo,
gerador de tais diferenças"; concluindo que
38. "O afastamento mais decisivo de Gramsci, tanto de Hegel como de Marx, é sua
opção muito original por uma estrutura conceituai tripartida"; "Gramsci chegou a concen
trar-se no problema da sociedade civil como independente do desenvolvimento econômico
e do poder do Estado"; "Dentro da estrutura do materialismo histórico marxista clássico,
Gramsci simplesmente buscou afirmar a independência e inclusive a primazia da superes-
trutura". (Arato e Cohen, 2000:174-176)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 115
39. O desinteresse dos indivíduos pelas grandes questões nacionais também é corrobo
rado por Bachrach (1973: 138, 145 e 158), o que o faz deduzir que as principais decisões
político-governamentais devem ser tomadas e adotadas por uma pequena minoria. Tam
bém Macpherson (1978: 101), referindo-se ao mecanismo de iniciativa popular, diz que se
poderia formular questões sobre assuntos simples, que esse mecanismo não poderia ser uti
lizado para formular questões sobre os grandes problemas de política social ou econômica
em geral. Entendimentos que, como vimos, nada diferem dos argumentos elitistas.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA i*7
40. Em relação à propriedade privada dos meios de produção, Pateman (1992:143) diz:
"[...] pouco se disse a respeito da propriedade da indústria em um sistema participativo,
uma vez que isso nos afastaria muito de nosso tema principal".
128 M. L. DURIGUETTO
41. "[...] o compromisso ativo a favor da democracia participativa [...] em lugar de con
siderar as pessoas e seus interesses como algo dado, persegue um processo de discussão,
transformação e mudança. Ele não quer dizer que a democracia participativa pressuponha
necessariamente a convergência em alguma Vontade geral' (Phillips, 1996: 87)
Parte II
Questão democrática
na transição brasileira
131
Capítulo III
2. Florestan Fernandes (1975: 204) afirma que, ao contrário de outras burguesias que
forjaram instituições próprias de poder especificamente social e só usaram o Estado para
arranjos mais específicos, "[...] a nossa burguesia converge para o Estado e faz sua unifica
ção no plano político, antes de se converter a dominação sócio-econômica Ou seja, a
nossa burguesia não assumiu o papel de "paladina da civilização,,. Nessa direção, completa
Nogueira (1987: 4): "[...] A transição brasileira para o capitalismo se fez assim longe de qual
quer veleidade jacobina ou liberal-democrática. Não conheceu a emergência de uma bur
guesia revolucionária em condições de se pôr como representante do Interesse geral', nem
foi o resultado de movimentos populares radicais, capazes de empolgar a sociedade e de
mocratizar o poder".
I3A M. L. DURICUETTO
12. Uma correta crítica dessa visão "maniqueísta" da intervenção estatal na economia
oferecida por Cardoso é desenvolvida por Coutinho. Para o autor, o aumento da interven
ção do Estado na economia não pode ser compreendido como resultante de uma política
fundada nos interesses de uma fração de classe, tal como defende Cardoso, mas decorre do
ingresso do Brasil na etapa do capitalismo monopolista de Estado. A passagem para essa nova
etapa do capitalismo depende da integração desse setor estatal com o setor monopolista
privado, que se efetiva em dois níveis: o setor econômico do Estado deve se articular com os
monopólios privados para a ampliação da taxa de lucro e de acumulação monopolista; o
capital monopolista deve assumir uma função hegemônica no bloco de poder que controla
o Estado. (Coutinho, 1980: 5-135)
Ii,2 M. L. DURICUETTO
13. "O importante [...] é pensar menos quais são as políticas adequadas para o Estado,
e procurar definir os objetivos e as políticas para cada agência social, para cada grupo, para
cada problema [...] e qual o limite de solução que o regime e a ordem dada impõem a eles;
como, portanto, reivindicar (Cardoso apud Silva, 1997:48)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA ■ A3
18. Nessa direção, segundo análise de Diniz (2000:70), podemos perceber que a década
de 1980 vai representar um distinto momento no processo de adaptação do país à nova
ordem mundial. Afirma que, nesta década as condições internacionais tomaram-se restriti
vas; observa-se uma ruptura em relação à década anterior, marcada pela amplitude dos
recursos financeiros e por altos níveis de crescimento, em escala mundial. A crise dos anos
1980 se fez acompanhar de uma inversão dessas tendências, com o declínio das taxas de
crescimento e dos fluxos financeiros, restringindo-se drasticamente a disponibilidade de
recursos sob a forma de empréstimos ou investimentos.
19. Segundo Soares (2000: 23), "[...] o 'receituário' do ajuste imposto pelos organismos
multilaterais de financiamento também sofre mudanças. Na década de 1980, o ajuste da
economia, com 'saneamento' das contas públicas e corte de salários, gastos e investimentos,
era para gerar enormes saldos na balança comercial para o pagamento da dívida externa. Já
na década de 1990 muda a fórmula: mantendo-se o corte nos gastos públicos e salários, em
vez de produzir saldos comerciais a ordem era importar muito (sob o argumento de que
com isso se aumentaria nossa competitividade), passando a pagar o rombo das contas exter
nas com os crescentes fluxos de capital externo que entravam nos países em busca do lucro
fácil com títulos públicos e privados, fruto das privatizações e da especulação organizadas
e colocadas à disposição pelos Estados Nacionais". No entanto, o Brasil foi, na década de
1980, o país sul-americano a oferecer maior resistência às políticas voltadas para o ajuste
estrutural preconizado pelo receituário neoliberal ascendente na Europa ocidental e nos
Estados Unidos. Tais ajustes ainda não são, aqui, encarados como objeto de uma política
deliberada do governo, e só ganharam densidade na transição dos anos 1990.
146 M. L. DURIGUETTO
20. Em pesquisa realizada no início da década de 1990, Santos (1993: 97) evidencia
considerável recusa, pela população, em participar e em acreditar nas instituições políticas,
partidárias e associativas.
150 M. L. DURICUETTO
21. Uma análise de alguns desses movimentos pode ser encontrada em 0'Donnell e
Reis (1988). Especificamente acerca do "novo sindicalismo" consultar Antunes (1988).
22. É preciso destacar que é principalmente a partir do surgimento deste "novo sindi
calismo" que os "projetos" se convertem num "processo" de democratização.
23. Este movimento se desenvolveu em tomo da votação da emenda Dante de Olivei
ra, que transformava em diretas as eleições para presidente da República e necessitava da
maioria de 2/3 do Congresso para sua aprovação. A emenda foi votada em abril de 1984 e
não conseguiu essa maioria qualificada.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '5'
24. As elaborações de Coutinho e Weffort foram por nós selecionadas por serem eles,
na época, dois dos proponentes mais importantes da temática da democracia na esquerda
intelectual brasileira. Entretanto, a importância das elaborações destes autores em termos
de qualificação, aprofundamento e densidade teórica é radicalmente diferenciada. O livro
de Weffort — Por que Democracia — é fraco nesses adjetivos, embora tenha sido usado como
referência fundamental no debate político e intelectual para se pensar a questão da demo
cracia naquele período da nossa transição. Quanto a Coutinho, seu texto "A Democracia
como Valor Universal" é um dos mais ricos e expressivos dentro do debate político e intelec
tual do processo de renovação da esquerda brasileira no que tange à necessidade de uma
reavaliação da "questão democrática" e de uma nova atitude em face do vínculo entre
democracia e socialismo. A justificativa da análise da elaboração de Chaui encontra-se no
fato de ela ser recorrentemente referenciada num conjunto expressivo de produções teóri
cas que a tomam como ponto de partida para se entender a temática da sociedade civil e
da democracia a partir da mediação dos movimentos sociais na primeira metade da déca
da de 1980.
15» M. L. DURIGUETTO
25. Originalmente publicado na revista Encontros com a Civilização Brasileira, esse texto
foi publicado em seguida no livro A democracia como valor universal, 1980. Citarei o livro por
ser mais acessível.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA '53
das com a luta imediata pelo socialismo,27 mas sim "com um combate
árduo e provavelmente longo pela criação dos pressupostos políticos,
econômicos e ideológicos que tornarão possível o estabelecimento e a
consolidação do socialismo em nosso país".28
Aponta, como um dos pressupostos, a criação de novos institu
tos políticos democráticos de representação direta dos interesses das
classes subalternas e sua permanente articulação com alguns institu
tos já presentes, como os parlamentos (1980: 25).
29. Coutinho ressalta, assim, como um passo decisivo no sentido de criar os pressupos
tos para o aprofundamento e generalização do processo de renovação democrática no país,
a necessidade de "[...] ampliar a organização dos vários sujeitos coletivos, e, ao mesmo tem
po, respeitadas sua autonomia e diversidade, lutar pela unificação dos mesmos num pode
roso bloco democrático e nacional-popular. [...] [É] este processo que possibilita abrir cami
nho para a transição ao socialismo" (1980: 36).
30. Para Coutinho (1980: 29), é por meio dessas objetivações institucionais — articula
ção entre os organismos populares de democracia de base e os "tradicionais" de representa
ção indireta (como os parlamentos), que permitem a mais ampla realização do valor univer
sal da democracia.
156 M. L. DURIGUETTO
31. Ou seja, "[...] a democracia socialista é, assim, uma democracia pluralista de mas
sas; mas um democracia organizada, na qual a hegemonia deve caber ao conjunto dos traba
lhadores, representados através da pluralidade de seus organismos de massa e sob a direção
política do(s) partido(s) de vanguarda da classe operária [...]". (Coutinho, 1980: 31) (grifo do
autor)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 157
32. Este texto foi apresentado em congresso da CLACSO na Costa Rica em 1978. Utili
zei a versão contida no livro Cultura e Democracia, 1990.
i6o M. L. DURIOUETTO
34. Evidenciou-se que a consideração dos movimentos sociais como novos atores polí
ticos, autênticos, portadores de uma força transformadora, çairia em descrédito se não se
valorizasse a necessidade de se conhecerem suas diferenças, sua eficácia sócio-política, e a
novidade de seu papel mediador entre a sociedade civil e o Estado. Seria importante tam
bém sublinhar o caráter das políticas sociais públicas como elemento de aglutinação e tam
bém de segregação da ação reivindicativa popular (cf. Cardoso, 1983).
35. A demanda pela criação de novos fóruns de participação da sociedade civil no âmbito
das políticas públicas é fruto, assim, da luta de diferentes movimentos coletivos que se or
ganizaram no processo constituinte: movimentos sociais, sindical, pastorais sociais e ONGs,
partidos políticos de esquerda, setores acadêmicos e entidades profissionais, como a OAB, a
ABI e a SBPC.
166 M. L. DURIGUETTO
36. Essa mudança da imagem do "local" é evidenciada nos crescentes estudos de expe
riências de gestões municipais progressistas no sentido de viabilizarem mudanças políticas,
econômicas, sociais e culturais (cf. Lesbaupin [org.J, 1996).
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 167
Capítulo 4
ções para o campo das ideologias práticas, marcadas pelas suas necessidades imediatas.
Nesse sentido, os trabalhadores terminam por reduzir as suas propostas ao campo da preser
vação das conquistas ou, tão-somente, das possibilidades postas pela conjuntura da crise".
5 .0 agravamento das condições de trabalho expresso na informalização, achatamento
salarial e o aumento crescente do desemprego — cuja dimensão supera qualquer outra mar
ca histórica já vista no Brasil — foram as marcas das "modernas" políticas implantadas pós-
Plano Real. Segundo Soares (2000), o que a liberalização indiscriminada das importações
trouxe foi o desmantelamento de segmentos econômicos e a conseqüente elevação de índi
ces de desemprego, uma vez que a reação das empresas, dada a menor competitividade
frente aos concorrentes externos, foi a implementação de medidas de terceirização, raciona
lização da produção (importação de máquinas e equipamentos e redução de custos, sobre
tudo mão-de-obra). Uma exposição de dados que revelam as desastrosas conseqüências eco
nômicas e, sobretudo, sociais do processo do "ajuste brasileiro" pode ser encontrada em
Behring (2003); Praga, Revista de Estudos Marxistas (1998); Lesbaupin (1999) e Soares (2000).
17* M. L. DURICUETTO
7. Dessa forma, demandas pela descentralização tanto podem estar orientadas por pers
pectivas econômicas e ideopolíticas de defesa da minimização da capacidade regulatória
do Estado no âmbito da gestão e operacionalização de políticas sociais quanto por aquelas
que defendem a expansão e qualificação da responsabilidade pública estatal neste âmbito.
SOCIEDADE CIVIl E DEMOCRACIA 177
11. Segundo Arretche (1997: 128), "[...] passou-se a associar centralização a práticas
não democráticas de decisão, à ausência de transparência de decisões, à impossibilidade de
controle sobre as ações de governo e à ineficácia das políticas públicas. As expectativas
postas sobre a descentralização e a visão negativa das formas centralizadas de gestão impli
cariam, como conseqüência, a necessária redução do escopo de atuação das instâncias cen
trais de governo".
12. De acordo com Arretche (1997:145): "a transição para um outro tipo de Estado, no
sentido de que o governo federal venha a desempenhar novas funções, relacionadas à coor
denação, regulamentação e fiscalização de funções descentralizadas [...] supõe necessaria
mente que o centro do sistema (a União) seja administrativa e institucionalmente forte. Por
tanto, antes que um esvaziamento das funções dos níveis centrais de governo, o sucesso da
descentralização supõe [...] um reordenamento expansivo das agências do governo central
[...] reordenamento este que implica um governo central fortalecido". Ou seja, supõe forta
SOCIEDADE CIV Il E DEMOCRACIA '79
dade, redefinindo o papel socializador do capital e ampliando suas ações para fora da em
presa como 'parceiros' na implementação de políticas sociais". Surge, assim, a figura da
"empresa cidadã".
15. Entretanto, como afirma Netto (1999: 86-87), "[...] o projeto político da grande bur
guesia brasileira não exclui a vigência de políticas sociais, o que exclui é uma articulação de
políticas sociais públicas, cujo formato tenha como suposto um Estado que ponha limites
político-democráticos à lógica do capital [...] que tenha por eixo uma função democrático-
reguladora em face do mercado".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 101
16. Como afirma (Pinheiro, 1994: 6-7), a distinção dessa esfera em relação ao Estado e
ao mercado "[...] obriga o retomo aos valores de uma vida ética e da solidariedade social no
momento em que o mercado se toma um elemento irreversível".
17. Essa tendência também pode ser constatada no que tange aos recursos financeiros
destinados às ONGs pelas agências internacionais. Os financiamentos recentes para ONGs
concedidos por agências filantrópicas européias e norte-americanas, hem como por agên
cias multilaterais comovo Banco Mundial, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvi
mento — PNUD/BID — e Comissão Econômica para América Latina e Caribe — CEPAL —
sugere um deslocamento de bens e serviços de natureza pública para o setor privado —
associações filantrópicas, ONGs e organizações comunitárias — ao qual caberia a produção
e distribuição de bens e serviços. Há, assim, o compromisso crescente com projetos voltados
para fortalecer a "sociedade civil" e promover a "participação dos cidadãos", (cf. Schild,
2000: 157; Simionatto e Nogueira, 2001)
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 105
18. Não encontramos nenhuma produção teórica de Chaui que retratasse as categorias
sociedade civil e democracia no período em tela.
19. Coletânea que reúne textos escritos entre 1989 e 1999 e que retomam os temas trata
dos em Democracia como Valor Universal.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 187
20. Para Coutinho (2000: 129), o título que nominava seu artigo "Democracia como
valor universal" devia ser mudado para "democratização como valor universal", uma vez
que, para o autor, [...] democracia deve ser entendida não como algo que se esgota em deter
minada configuração institucional, mas sim como um processo, "[...] porque a democracia é
necessariamente alguma coisa que se aprofunda e que combina indissoluvelmente reformas
políticas com reformas econômicas e sociais". Embora o entendimento dessa dinâmica seja
melhor traduzido por democratização, pensamos que, no artigo de 1979, Coutinho já explicita
com clareza e radicalidade a diferença entre o "valor universal da democracia" e o limite da
democracia política. Ou seja, naquele texto já aparece explícita a noção de que identificar
democratização e democracia política conduz a um processo de restrição da democratiza
ção. Quartim, em artigo recente, critica a (suposta) reafirmação realizada por Coutinho em
Contra a corrente acerca da universalidade da questão democrática, particularmente da de
mocracia política liberal. Segundo Quartim, o que Coutinho faz "[...] para afirmar a necessi
dade de democracia no socialismo" é "proclamá-la um valor universal, como se o paradig
ma das instituições políticas de toda a humanidade se encontrasse na democracia burguesa
ou seja, Quartim entende que, para Coutinho, "[...] o valor universal da democracia já
estaria historicamente configurado nas instituições políticas dos países liberais". (2001:10)
Ora, se o valor da democracia fosse, para Coutinho, o presente nas instituições políticas
liberais, o autor estaria identificando democracia política com democratização. E isso é abso
lutamente negado tanto no artigo de 1979 quanto no livro em tela.
21. Textos publicados respectivamente em: VAa. A democracia como proposta, 1991; De
mocracia e Socialismo: questões de princípio e contexto brasileiro, 1992; e VAa. Praia Vermelha:
estudos de política e teoria social, 1997.
188 M. L. DURIGUETTO
22. Como exposto no capítulo 2, Dahl defende que o requisito mínimo fundamental
para a existência de um regime democrático é que os cidadãos tenham oportunidades de
formularem suas preferências, expressando-as através da ação individual e coletiva, e de tê-
las igualmente consideradas nas políticas governamentais. Esse requisito exige regras míni
mas para que possa ser operacionalizado, quais sejam: liberdade de organização e de ex
pressão; eleições livres e limpas; sufrágio; direito de concorrer aos cargos eletivos; isonomia
eleitoral; pluralismo de fontes de informação e igual obtenção de informações sobre as alter
nativas apresentadas.
19* M. I. DURIGUETTO
23. A incorporação das análises desenvolvidas por 0'Donnell (2000), justifica-se devi
do à sua significativa produção acerca das características do processo de transição política
brasileira e do desenvolvimento de interpretações acerca dos déficits contemporâneos da
democracia na realidade nacional.
19* M. L. OURICUETTO
24. Na mesma direção, afirma Santos (1992: 97) que a lacuna deixada por essa destitui
ção manifesta-se no mundo social que circunda a precária estabilidade das instituições de
mocráticas. Em pesquisa realizada, o autor evidencia uma profunda recusa de participação
e de confiabilidade, pela população, nas instituições políticas, partidárias e associativas.
Define como "híbrido institucional" o padrão democrático brasileiro, pois se assenta sobre a
existência de uma cidadania não poliárquica — alienada eleitoralmente e refratária a políti
cos, convivendo em interações de mercado com parcela poliárquica da cidadania. E chama
atenção, tal como 0'Donnell, para a insuficiência da cobertura legal e jurídica do Estado, o
que reforça a desconfiança nas instituições e nos poderes constituídos. Dessa forma, conclui
que temos uma democracia peculiar, em que prevalece a ausência de direitos e a falta de
acesso à ordem legal, o que leva à busca de soluções privadas para problemas de ordem
pública e reduz, se não inviabiliza, o exercício da cidadania.
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 195
25. Essa noção de um campo ético-político está relacionada, assim, ao surgimento des
ta nova configuração associativa em "teias" ou "redes" compostas por sujeitos e organiza
ções diversas que também se articulam com outras redes internacionais. Entretanto, mais do
que apontar as divergências que atravessam cada um desses movimentos, em que se verifi
cará uma diversidade de estratégias de lutas, de formato organizativo, da base social e da
representatividade em termos locais, regionais e nacional, formas de mobilização e encami
nhamento de reivindicações e lutas, o que se enfatiza é que esse campo se caracteriza funda
mentalmente por estar se articulando em algumas instâncias decisórias no sentido de apre
sentar propostas consensuais que evitam critérios particulares, comunitários, ideológicos e
partidários, em tomo de algumas políticas mais abrangentes, (cf. Scherer-Warren, 1993;
Alvarez e Dagnino, 1995; Doimo, 1995)
200 M. L. DURIGUETTO
28. Negociação em que são "[...] elaborados acordos, mesmo que frágeis e temporários,
acerca do que a sociedade reconhece como direito. Constituídas em um campo de conflito,
plural e descentrado, essas arenas públicas são feitas, refeitas ou redefinidas a cada momen
to, seguindo a temporalidade dos próprios conflitos". (Paoli e Telles, 2000:106)
29. "A experiência do Conselho Nacional de Assistência Social, assim como do Conse
lho Nacional da Criança e do Adolescente, do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho de
Seguridade Social, do Conselho da Previdência Social e tantos outros, demonstra que está
em curso certo 'modelo' de gestão participativa que revela uma inflexão na prática dos
movimentos populares, do movimento sindical, dos partidos de esquerda e do próprio go
verno, em suas diferentes esferas". (Raichelis, 1998: 178) É nesta nova dinâmica institucio
nal participativa que a autora visualiza o processo de "democratização". Este é entendido,
assim, no contexto de "[...] ampliação dos fóruns de decisão política que, extrapolando os
condutos tradicionais de representação, permite incorporar novos sujeitos sociais como pro
tagonistas e contribui para consolidar e criar novos direitos". (Raichelis, 1998: 41)
204 M. L. OURICUfTTO
30. Raichelis (1998: 82) identifica a esfera pública como "espaço de publicização de
interesses heterogêneos, de confronto entre práticas sociais contraditórias e de luta pela he
gemonia político-cultural em tomo de projetos societários. Assim concebida, a esfera públi
ca envolve, necessariamente, a organização de segmentos da sociedade civil ante projetos
políticos e, portanto, a representação de interesses coletivos de grupos e classes sociais con
trapostos". Podemos perceber que a noção de esfera pública explicitada está na direção do
entendimento da concepção de sociedade civil tal como definira Gramsci. Entretanto, ao elu
cidar o processo histórico de surgimento do que conceitua ser esta esfera pública, a autora
recorre aos fundamentos habermasianos, especialmente à compartimentalizaçáo da socie
dade em três esferas: a estatal, a privada e a pública. E utiliza essa compartimentalizaçáo
para, no seu interior, definir a construção da esfera pública, a partir da contraposição do par
categorial gramsciano "sociedade política" e "sociedade civil". Diz ela: "[...] a esfera públi
ca é uma construção histórica tecida no interior das relações entre sociedade política e socie
dade civil, que visa ultrapassar a dicotomia estatal-privado com instauração de uma nova
esfera capaz de introduzir transformações, nos âmbitos estatizados e privados da vida so
cial, resultando daí um novo processo de interlocução pública". (Raichelis, 1998: 272) As
sim, o âmbito estatal é identificado com a sociedade política, a esfera da sociedade civil
correspondería ao âmbito do privado, das relações mercantis, e a esfera pública os transcen
dería por nela existir a construção dos interesses coletivos a partir do debate e da interlocução
pública. Mas também, no interior desta conceituação, sociedade civil aparece como esfera
pública, como o espaço em que não se efetivam relações meramente mercantis. Dessa for
ma, ora a sociedade civil aparece — tal como a conceitua Gramsci — como o campo do
confronto, da luta entre projetos societários contraditórios que se expressariam no interior
de uma esfera pública classista, ora sociedade civil é utilizada para referir-se a uma terceira
esfera — mercantil — em contraposição à estatal e à pública não-estatal, ora sociedade civil
é identificada com a noção de esfera pública tal como define Habermas. Isso acaba resultan
do em uma imprecisa e eclética definição teórica da noção de "sociedade civil" e de "esfera
pública" em suas análises. Para uma melhor visualização dessa definição eclética do con
ceito de sociedade civil, conferir páginas 45-62 em que a autora recorre às análises de
Habermas, Offe e Rosanvallon. Segundo ela, "[...] é possível observar nas reflexões desses
diferentes autores a busca de superação da antinomia estatal-mercado pela via fecunda da
revalorização da sociedade civil". (Raichelis, 1998: 62)
206 M. L. DURIGUETTO
31. Para Avritzer (1999: 30-31 e 36*37), o conceito de esfera pública tem duas de suas
características centrais ligadas ao debate democrático contemporâneo: "a primeira delas é a
idéia de um espaço para a interação face-a-face, diferenciado do Estado. Nesse espaço, os
indivíduos interagem uns com os outros, debatem as decisões tomadas pela autoridade po
lítica, debatem o conteúdo moral das diferentes relações existentes ao nível da sociedade e
apresentam demandas em relação ao Estado [...]. Nesse sentido, o conceito de publicidade
estabelece uma dinâmica no interior da política que não é movida nem por interesses parti-
cularistas nem pela tentativa de concentrar poder com o objetivo de dominar outros indiví
duos. Pelo contrário, a idéia aqui presente é de que o uso público da razão estabelece uma
relação entre participação e argumentação pública [...]. Tal colocação significa uma enorme
renovação em termos de teoria democrática, na medida em que ela substitui as hierarquias
de participação pela participação igual associada à autoridade do melhor argumento". O
segundo é a idéia da ampliação do domínio público pela politização de novas questões.
Como componentes desta "esfera pública não-estatal", o autor chama a atenção para o du
plo papel que nela cumprem os movimentos sociais: apresentam em público, através de
atos comunicativos, novos temas como o da diferença identitária, do ambientalismo, a ques
tão dos direitos; e com isso redefinem e mostram que a definição do que é político constitui
uma dimensão sempre contestada e que o papel do espaço público é atuar na ampliação
dessa definição.
SOCIEDADí CIVIL C DEMOCRACIA 207
32. Como se pode notar, Costa recorre diretamente ao conceito de sociedade civil de
senvolvido por Habermas e Cohen e Arato. Fedozzi (2000: 69, 71) desenvolve uma leitura
da experiência do "orçamento participativo" também à luz da discussão conceituai haber-
masiana de "esfera pública". Segundo o autor, esse processo "[...] expressa-se através de um
sistema de partilha do poder, onde as regras de participação e de distribuição dos recursos
de investimentos são construídas de forma procedimental e argumentativa, na interação
institucional que se processa entre os agentes do Executivo e as comunidades da socieda
de civil". E conclui,"[...] o orçamento participativo se constitui de um sistema político que
põe em contato a) o poder administrativo da esfera pública estatal; b) os fluxos comunica
tivos gerados na esfera pública autônoma constituída pelas associações voluntárias enrai
zadas no mundo da vida; c) e as instâncias deliberativas criadas por esse contato regular
e, portanto, institucionalizadas pelo funcionamento sistemático e previsível do orçamen
to participativo".
Outro autor que retoma a contribuição desses autores para pensar o conceito de socie
dade civil na realidade brasileira contemporânea é Avritzer (1993: 213-222 e 1994: 269-308).
Afirma Avritzer (1996:14): [...] o caminho que leva de Rousseau a Marx, ao prevalecimento
da vontade geral e à redução da discussão política ao conteúdo desta última parece esgota
do. Novos caminhos se abrem: eles nos conduzem às teorias capazes de conciliar a aceitação
do papel desempenhado pelo mercado e pelo Estado, com a perspectiva de fortalecimento
de uma terceira arena capaz de proporcionar à sociedade instrumentos de defesa contra
processos de mercantilização e burocratização das relações sociais".
208 M. L DURICUEnO
33. No que tange especificamente à questão da hegemonia, ela muitas vezes aparece
como concluída com a conquista dos direitos de cidadania tal como define Marshall. Assim,
vai se recorrer a Gramsci e Marshall indiscriminadamente, sem estabelecer seus pontos de
coalisão.
210 M. L. DURICUETTO
34. Como afirma Dias (1994:129): "Um dos erros vitais na análise da sociedade civil é
pensá-la como articulação de instituições indiferenciadas. Instituições onde não se coloca a
questão da divisão classista. A sociedade civil é apresentada, normalmente, como não-con-
traditória. O produto dessa visão é uma concepção homogeneizadora, subaltemizante e
que tende a minimizar a percepção dos conflitos sociais e do seu papel na transformação
social".
212 M. I. DURIGUETTO
35. Para Bobbio (1987a: 12-25), a idéia de eqüidade está próxima do conceito de justiça
social, da idéia de uma balança, de um esforço de equilíbrio que, conseqüentemente, leva
em conta as diferenças individuais de mérito, a diversidade.
36. Na mesma direção, tem-se a afirmação de Oliveira (Oliveira e Paoli, 1991: 77): "[...]
a questão da forma coloca a construção e consolidação da esfera pública como condição sine
qua non da democracia; e a questão do conteúdo pede a explicitação de uma perspectiva
socialista, sem o que as formas democráticas correm o risco de uma apropriação meramente
liberal. Conteúdo é, desta forma, a postulação da igualdade".
SOCIEDADE CIVIL E DEMOCRACIA 1IS
37. Na mesma direção encontra-se a análise desenvolvida por Rouanet (1993: 71). Em
busca da superação dos "historicismos", o autor chama-nos atenção para a visão limitada
desse tipo de análise ao que tange à etnia e à sexualidade: "o que está em jogo não são os
direitos das mulheres e dos negros, e sim os direitos dos indivíduos de uma certa etnia e
de um certo sexo, que querem emancipar-se da discriminação que sofrem enquanto seres
humanos, e que só podem fazê-lo através de um modelo de homem universal, cujos direitos
incluem a nao-discriminação por motivos de sexo e raça". (Grifos do autor) (cf. também Wood,
E. M., 2003: 219-242)
216 M. L. DURICUETTO
Conclusões
ram ser seus direitos, que não se expressa unicamente no controle so
cial sobre as políticas públicas estatais. Isso implica superar posturas
privatistas e corporativas através da construção de novos espaços plu
rais de poder, em que são construídos os parâmetros públicos que
definem o que a sociedade reconhece como direitos, através da cons
trução de uma cultura democrática.
Essas redefinições dos conceitos de sociedade civil e democracia
permite-nos inferir a existência de pontos de confluência desse uni
verso analítico com as elaborações de Habermas, Cohen e Arato, e
com a dos teóricos da "democracia participativa" — Macpherson e
Paterman. Encontramos em Habermas e nos autores por ele influen
ciados os fundamentos teóricos centrais de uma nova concepção de
sociedade civil, que passa a significar a esfera das associações volun
tárias, dos espaços públicos dotados de autonomia e auto-organiza-
ção em relação ao Estado e ao mercado, de solidariedade social, do
discurso, da ação comunicativa. A sociedade civil é o lugar em que se
potencializa a expansão da democracia, através da formação de uma
pluralidade de movimentos que se auto-organizam e que constróem
uma esfera pública na qual as ações do Estado e do mercado são limi
tadas, moderadas e/ou influenciadas pelo agir comunicativo, pelo
estabelecimento de acordos, parcerias e consensos acerca do que deva
ser o verdadeiro interesse público.
É esse referencial heurístico e suas prospecções sócio-interventi-
vas que cimentam as refuncionalizações dos conceitos de sociedade
civil e de democracia no campo teórico brasileiro em tela. Uma pri
meira conclusão que podemos tirar dessas formulações é que a con-
ceituação da sociedade civil como um espaço situado para além da
sociedade política, do Estado e do mercado resulta em um entendi
mento de que seu elemento fundante é a defesa de direitos e de pro
posições de novos direitos.2 Defesas e proposições que implicam par
ciais vitórias e parciais derrotas, pois dependem do diálogo, da parce
ria, da negociação, colaboração e interação estabelecida entre os inte
resses presentes nas organizações da sociedade civil com o Estado,
contra o Estado ou com independência deste.
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