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ONTOLOGIA E PERSPECTIVA NO DOCUMENTÁRIO BRASILEIRO

CONTEMPORÂNEO

DIEGO DA SILVA TAVARES

Anteprojeto de Pesquisa de Doutorado


apresentado como exigência parcial para o
processo seletivo do Programa de Pós-
Graduação em Cinema e Audiovisual na linha
de pesquisa: “Narrativas e Estéticas” da
Universidade Federal Fluminense.

Resumo: este projeto tem por objetivo o estudo das relações e tensões entre real e
ficção no documentário brasileiro contemporâneo. Ele toma como marco o paradigma
digital, onde sujeitos que até então eram objetificados pela câmera, tais como povos
indígenas, o povo negro e outros, passam a dominar o aparato fílmico e se "auto -
representar". Meu intento é investigar este momento antropofágico do cinema
brasileiro, onde estes sujeitos, através da linguagem cinematográfica, explicitam sua
própria realidade frente a uma cultura visual colonial. Para isso, proponho a análise de
três obras cinematográficas: as Hiper-Mulheres (Leonardo Sette, Carlos Fausto e
Takumã Kuikuro, 2011), A vizinhança do Tigre (Affonso Uchoa, 2014) e Branco Sai,
Preto Fica (Ardiley Queirós, 2015). Minha hipótese é de que estes realizadores e suas
obras tencionam a noção de representação clássica da teoria do documentário,
problematizando distinções entre ficcional e documental, real e virtual à luz de um
cinema feito pelo 'outro'. Trata-se, portanto de fazer uma abertura ontológica e se
perguntar o que pode ser o cinema para ontologias não–ocidentais ou realidades
minoritárias. Neste sentido, será preciso fazer uma aproximação entre o Cinema e a
Antropologia.

PALAVRAS-CHAVE: Documentáá rio; Regimes de visuálidáde, Ontologiá


1. Introdução: a propósito do documentário brasileiro contemporâneo

O cinema brasileiro contemporâneo é reconhecidamente diverso, embora quase


nunca representativo, pois é atravessado por diversos movimentos de expressão
fílmica. Isso é verdade sobretudo para o documentário. A recente produção
documental traz consigo uma multiplicidade de temas e abordagens estéticas mas,
mesmo assim, carrega em si algumas marcas comuns, como é consenso entre os
pesquisadores do documentário. São eles: o distanciamento com o “modelo
sociológico” característico do cinema novo dos anos 60 e 701 e a escolha por uma
indistinção entre o documentário e a ficção como negação ao “apelo realista” do
cinema comercial2.
No que se refere ao documentário do tipo sociológico, ele apostava nas
sinédoques e na tipificação, isto é, na construção de tipos representativos ou sujeitos
genéricos para a elaboração de uma imagem do povo ou do proletariado nacional.

Dentre muitos exemplos, destacam-se os ensaios sociológicos: A   opiniao   publica

(Arnaldo Jabor, 1965) e Maioria absoluta (Leon Hisrzman, 1964).

Estabelece-se assim uma relação entre sujeito e objeto. Era a tese sobre o
outro, portanto, e não o encontro com ele, a finalidade do documentário moderno
brasileiro3.
Em meados dos anos 90, o cinema documental ganha uma sobre-vida no
mercado audiovisual durante o ciclo conhecido como Retomada. Mas é mesmo nos
anos 2000 que a produção de fato cresce significativamente no mercado nacional. de
apenas três lançamentos no ano 2000 para 42 produções exibidas em 20094.
O “boom do documentário” nos anos 2000, em parte possibilitado pelo
impacto das vídeo-tecnologias digitais, faz emergir um outro modelo, desta vez
1
BERNADET, Jean Claude.Cineastas e imagens do povo. Companhia das Letras, 2003.
2
(FELDMAN, 2008)
3
O termo documentário moderno se refere a um conjunto de obras em 16mm ou 35mm, podendo ser
de curta ou de média-metragens, realizadas principalmente por documentaristas expoentes do Cinema
Novo”. Neste sentindo, estamos de acordo com LINS, C. ; MESQUITA, Cláudia Cardoso . Filmar o
real - Sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 01. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2008. v. 01. 94p .
4
Para uma análise mais profunda desses dados e da situação do documentário brasileiro no mercado
audiovisual conferir o trabalho de TRINDADE (2014).
“particularizante” ou “performativo5, não mais preocupado com representações
generalizantes do popular: ocorre aqui uma redução do enfoque, que vai em direção às
experiências e perspectivas de um ou poucos sujeitos. Ocorre um privilégio da auto-
exposição e da performance em detrimento de uma representação, levadas à cabo por
uma abordagem dialógica, isto é, o filme como relação e/ ou negociação entre quem
filma e quem é filmado. Para o documentarista contemporâneo, a voz a ser ouvida é a
do outro.
Além disso, as análises recentes que tratam do estado da arte do documentário

contemporâneo   brasileiro   evidenciam   como   uma   importante   característica   dessa

produção   um   projeto   “reflexivo”   que   se   distância   de   um   regime   de   visibilidade

marcado por um apelo ao realismo que produz e dramatiza uma certa realidade. Sendo


assim, uma boa parte da produção documental recente aposta no contrário, isto é, na
“opacidade” da linguagem, na indeterminação entre documentário e ficção. Filmes

como Jogo de cena (Eduardo Coutinho, 2007), Santiago (Joao Moreira Salles, 2007),

Filmefobia  (Kiko Goifman, 2009),  O ceu sobre os ombros  (Sergio Borges, 2010),

Viajo porque preciso, volto porque te amo (Marcelo Gomes e Karim Ainouz, 2009)

formam a constelação deste tipo de cinema.
Nesta “liberdade”6 de transitar entre as fronteiras, a própria prática
documental, baseada no uso de não atores e de ambientes reais como locações, acaba
sendo afetado pelos procedimentos ficcionais (roteiro previamente escrito,
decupagem, recriação de personagens e situações, trilha sonora original). O
documentário brasileiro contemporâneo se torna cada vez mais reflexivo, ao
desconfiar do real tencionando fronteiras rígidas entre os conceitos de realidade
ficção, documental e encenação.
Tal situação descrita acima é atravessada, ainda, por um renovado interesse,
ocorrido a partir da metade dos anos 2000, pela produção de vídeo de forte apelo
popular e social. O movimento do vídeo no Brasil e na América Latina tem suas raízes
nos movimentos sociais dos anos 80, ligados a partidos de esquerda, sindicatos e
ONGs que buscavam a produção de vídeos para a difusão de lutas e ideias, através da

5
BRASIL, 2008.
6
MIGLIORIM, Cezar. “Documentario recente brasileiro e a politica das imagens”. In: MIGLIORIN, 
Cezar (org.) Ensaios no real. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p.9. 
participação direta de seus integrantes. Nos anos 90, tais movimentos passaram a
incentivar a efetiva participação dos grupos, e os projetos passaram a negar para si o
uso da câmera, transferindo–a para os sujeitos, assim como a responsabilidade da
representação7. Havia um desejo, portanto, de que a imagem–realidade destes sujeitos
fosse capturada em seus próprios termos.
Surgem as oficinas de audiovisual, que visavam a autonomia dos sujeitos no
manejo das tecnologias de imagem e som. Já nos anos 2000, com a evolução e
barateio dos equipamentos de vídeo, pululam por todo o Brasil, oficinas de vídeo
realizado por governos e ONGs, oferecendo à novos realizadores, em contextos
culturais e sociais diversos, meios para que se expressem através da linguagem
audiovisual.8Em um verdadeiro movimento de câmera nas mãos, as obras agora
partiam, de dentro do grupo antes representado, em modelos coletivos de realização.
Assim, as oficinas oferecem a oportunidade para que sujeitos-outros, tivessem acesso
à sua imagem e lhes dispuseram os meios para que ela fosse elaborada e recriada, que
encenassem sua realidade.

Este outro, antes alçado ao posto de objeto pelo documentário brasileiro, agora
passa assumir a primeira pessoa do discurso. Segundo Ailton Krenak, indígena
idealizador da Bienal de Cinema Indígena:

“É gente que vem numa plataforma ancestral chamada cinema de índio,


com as visões do ayahuasca, outras visões”. Os caras estão acostumados a
ver um outro tipo de cinema, um cinema transcendental. É gente que está
acostumada com imagens que não são controladas. Eles se relacionam com
imagens descontroladas. É uma revolta do olhar”9

7
Este novo modelo que se instaura na produção documental no Brasil tematiza a crise de representação
que se abateu nas ciências sociais nos anos 70 e 80 e que na antropologia teve em James Clifford, líder
da cruzada textualista, seu representante máximo. Apontando a impossibilidade, quase que total, da
representação do outro e de sua vida social, nos moldes da etnografia clássica, Clifford defendia novos
horizontes narrativos para a antropologia que questionassem a “autoridade etnográfica” e a relação
sujeito­objeto.   Sendo   assim,   o   córpus   literário   deste   movimento   é   marcado   por   uma   disposição
particularizante através da compilação de relatos nativos individuais. Os textualistas buscavam uma
autoria   compartilhada   em   seus   textos,   explicitando,   desta   forma,   a   etnografia   enquanto   processo
dialógico e negociado, abolindo pretensões cientificistas.
8
Um caso famoso destas oficinas é o do projeto Vídeo das Aldeias que ao longo de mais de vinte anos
de atuação em cerca de 40 comunidades, formou mais de 30 realizadores indígenas e produziu uma
coleção de mais de 70 filmes. Ver o artigo DE QUEIROZ, Ruben Caixeta. Cineastas indígenas e
pensamento selvagem.DEVIRES-Cinema e Humanidades, 2016, 5.2: 98-125.
9
<https://outraspalavras.net/blog/2016/09/23/a-surpreendente-bienal-de-cinema-indigena/>
É neste contexto que nascem diversos coletivos de cinema tais como o CKC
(Coletivo Kuikuro de Cinema) e o Ceicine (Coletivo de Cinema da Ceilândia) que
reúnem estes “atores estranhos” do documentário brasileiro, realizadores vindos de
fora do eixo Rio-São Paulo, vindos da floresta, vindos da “periferia” e que tem
conquistado, à duras penas, seu espaço nas oficinas de audiovisual, em festivais de
cinema e nas salas de exibição. São filmes que se constituem por regimes de
visibilidade outros frente a um regime de visibilidade hegemônico e colonial. Estes
realizadores lançam mão de procedimentos e escolhas dos mais diversos, e trabalham
no limar entre o documental e o ficcional.

1. Objetivo Principal
Este projeto tem por objetivo o estudo das relações entre real e ficção/virtual
no documentário brasileiro contemporâneo à luz de um cinema feito pelo outro. O
que, afinal, estes coletivos buscam mostrar quando produzem, eles próprios, os
filmes? Que regime de visualidade é esse que tais sujeitos explicitam em seu
movimento de filmar o real? Trata-se, portanto de fazer uma abertura ontológica e se
perguntar o que pode ser o cinema para ontologias não – ocidentais ou realidades
minoritárias.
Os filmes que compõem o corpus deste trabalho serão:  as  Hiper­Mulheres

(Leonardo Sette, Carlos Fausto e Takumã Kuikuro, 2011), A vizinhança  do Tigre

(Affonso Uchoa, 2014) e Branco Sai, Preto Fica (Ardiley Queirós, 2015): o primeiro

dirigido por indígenas  do Alto Xingu e os dois seguintes realizados  por cineastas

moradores     da  periferia  que   ao  dramatizarem   sua  realidade  acabam  por  revelar   o

momento em que “a ficção se documentariza e documentário se ficcionaliza”. 10 Sendo


assim, seria possível indagar: se é verdade que a produção documental brasileira dos
últimos 20 anos se aproximou do outro e, neste movimento colocou-se contra a
tendência realista do cinema de ficção comercial será que o estatuto do que seja real
ou ficcional nos moldes clássicos da noção de representação na teoria documentário
permanece a mesma quando se trata de um cinema feito pelo outro?

Objetivos específicos

10
FIELDMAN, 2012, pag 14.
 Fazer uma análise acerca do processo de criação e modo de produção dos
filmes em análise.

 Traçar um panorama do desenvolvimento do documentário contemporâneo


no Brasil afim de contextualizar a filmografia a ser estudada.
 Revisitar a história das oficinas de vídeo no Brasil e sua importância na
formação de novos cineastas.
 Realizar uma revisão teórica dos conceitos utilizados para análise do
documentário brasileiro contemporâneo propondo alternativas conceituais
à luz de um cinema do outro.
 Verificar o rendimento do conceito antropológico de perspectivismo
ameríndio para pensar o documentário contemporâneo brasileiro
 Estabelecer uma conexão entre o conceito (antropológico) de ontologia
com o debate sobre tal conceito na teoria-prática documental.
 Estabelecer o regime de visibilidade proposto em cada filme a partir de
uma discussão sobre o conceito antropológico de perspectiva.
 Apresentar o debate da representatividade no cinema brasileiro
contemporâneo e o incentivo e a necessidade por novas histórias e formas
de narrar.
 Traçar as influencias do movimento estético Afro-Futurismo no filme
Branco Sai, Preto Fica e analisar a noção de distopia como visão pós-
apocalíptica crítica e anti-racista do nosso presente.

Hipóteses
Teorias hegemônicas naturalizaram a ideia de que o documentário é uma
representação. No entanto, no ato transformar o fato social em mise en scéne 11 os
filmes aqui estudados tencionam este conceito, revelando regimes cosmológicos
outros, instaurando-se na divisa entre o documental e o ficcional. Desta forma, tais
filmes testam os limites dos modelos explicativos clássicos que projetam o divisor

documental/ficção, personagem e pessoa, e outros dualismos cuja base se encontra o
pressuposto cartesiano de um só mundo, múltiplas representações
(Natureza/Culturas). Tais distinções só são cabíveis de serem imaginadas por uma

Talvez “o fato social principal” da contemporaneidade, na concepção do crítico e ensaísta francês 
11

Jean­Louis Comolli. Cf. “Retrospectiva do espectador”. In: Ver e poder: a inocencia perdida – cinema,
televisao, ficcao, documentario. Belo Horizonte: UFMG, 2008, p.98.
ontologia dualista própria à metafísica ocidental que pressupõe o mundo o como que
dividido em unidades.

Estes novos cineastas não duvidam da capacidade de representar o real, pelo


contrário, querem afirmá-lo, criando ficções de forte apelo documental (ou
documentários de forte apelo ficcional). Assim, diz o diretor Affonso Uchoa, sobre
seu o processo de produção de seu A Vizinhança do Tigre:
"Há no filme uma grande mistura entre o improviso e a direção ficcional.
São poucas as cenas em que há puro improviso, sem direção e algum grau
de elaboração dos diálogos. Em geral, repetíamos muito as cenas. As de
diálogos, principalmente, com cenas que eram filmadas durante vários dias
e com mais de 70 takes, por vezes"12,

Isso dito, a hipótese deste trabalho é que, quando a câmera esta na mão deste

outro “antropológico”, os paradigmas do que seja realidade, está claro, se baseiam em

modelos   cosmológicos   distintos   daqueles   que   operam   usualmente   a   câmera.   Tais

filmes, portanto, revelam uma multiplicidade do real, assim como formas outras de

alcançá­lo   através   da   câmera,   agenciando   e   tensionando   as   relações   entre   o

documental e o ficcional.“O documentario[afinal] nao e o que diz ou mostra o que

existe, mas o que inventa a existencia com o que existe”13. 

3­Justificativa

A imagem ganhou uma importância fundamental na contemporaneidade no


âmbito da vida cotidiana. A performance, a auto-representação de si diante de um
dispositivo áudio-visual virou prática social e política. A mise en scéne tornou-se,
desta forma, fato social, e a tela, este “ecrã luminoso”14, mudou nossa forma de se
relacionar com o mundo. Diante deste contexto, entender as relações entre a
produção imagética, como o cinema, e a sociedade ou cultura que a produz, se torna
primordial. Neste sentido, o projeto se torna pertinente para o Programa de Pós-

12
< http://bogiecinema.blogspot.com.br/2015/04/resenha-critica-vizinhanca-do-tigre.html>
13
MIGLIORIM, Cezar. “Documentario recente brasileiro e a politica das imagens”. In: MIGLIORIN, 
Cezar (org.) Ensaios no real. Rio de Janeiro: Azougue, 2010, p.10.
14
É assim que os autores LIPOVETSKY e SERROY denominam este novo dispositivo imagético que
surgiu na pós- modernidade e que marca o surgimento de uma “sociedade-tela”: “o século que começa
é o da tela onipresente e multiforme, planetária e multimidiática (2008, pag. 12).
Graduação em Cinema e Audiovisual cuja proposta reside na centralidade da cultura
audiovisual como produção de conhecimento, sentido e experiências.
Além disso, este projeto visa contribuir para a análise da problemática do
documentário contemporâneo brasileiro. Visto muitas vezes como o “primo pobre” do
cinema se comparado à categoria ficcional, nos últimos anos houve uma notável
revalorização deste gênero no Brasil, tanto comercialmente quanto academicamente.
Tal fato se deve a motivos diversos, entre eles, o barateamento das tecnologias de
filmagem e pós produção, o fomento através dos editais de financiamento, assim
como o surgimento de mostras específicas para o documentário. Lançar novos olhares
sobre esta complexa e rica produção é fundamental.
O interesse crescente que o campo do documentário especialmente nos meios
acadêmicos nos últimos anos produziram uma renovação da teoria e da crítica
documental. O PPGCINE, na figura de alguns de seus docentes, tem participado de
forma relevante desta renovação. Sendo assim, este projeto pode vir a se somar à
contribuição do programa às analises e teorias sobre o documentário brasileiro
contemporâneo.
Este projeto visa também potencializar o diálogo entre o Cinema e a
Antropologia, tais disciplinas entendidas como reveladores ou construtores de
mundos-outros. O que se propõe aqui é uma análise do cinema que aborde a
linguagem cinematográfica do ponto de vista de outras sócio-cosmologias. Sendo
assim, este projeto está de acordo com a proposta do PPGCINE de construir uma
teoria do cinema de um ponto de vista interdisciplinar com demais campos do
pensamento articulando distintas abordagens em relação ao cinema e audiovisual.
Com a presença cada vez mais frequente de novos realizadores no campo
cinematográfico, se torna fundamental reconhecer a agência destes sujeitos, iniciando
um projeto de “indigenização” do cinema15 que visa abalar as distinções e essências
cinematográficas impostas por uma racionalidade ocidental-capitalista.Como afirma o
líder indígena Ailton Krenak:
A imagem já está pastel demais. Hollywood pasteurizou a imagem. Nós
queremos despasteurizar, estamos fazendo uma espécie de revolução do
olhar. É mais uma revolta do olhar que uma revolução. É um olhar que não
aguenta mais a mesmice.”

15
BRASIL, André. "Mise-en-abyme da cultura: a exposição do “antecampo” em, Pi’õnhitsi e Mokoi
Tekoá Petei Jeguatá."Significação: Revista de Cultura Audiovisual 40.40 (2013, pag. 248).
Sendo assim, a reflexão sobre que cinema tais realizadores pensam e fazem se
torna pertinente para a linha de pesquisa intitulada Narrativas e Estéticas que busca
entender o cinema e o audiovisual a partir de sua materialidade e estética. Os filmes
que serão aqui analisados tanto em suas dimensões estético-formais quanto em suas
estratégias de realização, funcionaram não apenas como um modo de “imaginar uma
experiência”, mas principalmente uma forma de “experimentar uma imaginação” 16
Isso vai se dar através de uma análise pragmática e antropológica dos aspectos
estéticos e narrativos do filme proposta que faz parte do esforço temático da linha de
pesquisa Narrativas e Estéticas.

4- Referencial Teórico
Em seus traços teórico-metodológicos este projeto se insere nas reflexões
acerca do estado da arte do documentário contemporâneo brasileiro. Segundo diversos
pesquisadores17 a recente produção documental traz consigo, diferentemente das
abordagens totalizantes do documentário moderno dos anos 60 e 70, propostas
particularizantes ou performativas onde segundo a pesquisadora Claudia Mesquita
“evita-se remeter o dado pessoal a um quadro geral; declinam valores tais como
representatividade, generalidade, tipificação, diagnóstico crítico...”18

Os cineastas das décadas de 60 e 70, período marcado por ideais nacionalistas,


tinham como traço importante uma certa consciência histórica, política e social do
Brasil. Com isso, esta geração de cineastas buscavam em suas obras uma dimensão
totalizante do país. Assim, segundo Ismail Xavier:

“Cada filme reitera o seu foco nas questões coletivas, sempre pensadas em
grande escala, [...]onde as personagens se colocam como condensações da
experiência de grif- posT cíassês/naçõ Os filmes centravam foco nas
questões coletivas, sempre representadas em grande es- cala.

A voz a ser ouvida nesses filmes, portanto, era a do Povo, visto como
identidade pré-estabelecida, uma figura genérica já “lá” à esperar a representação
cinematográfica. Desta forma a “voz do locutor”, umas das características marcantes
deste cinema, reafirma um saber sobre o outro, emoldurado-o pela mensagem que o
16
Ibdem, pag. 249.
17
Cf. BRASIL, 2004; MIGLIORIM, 2010; FELDMAN, 2012; HOLANDA, 2004; MESQUITA 2010,
2012; LINS, 2018.
18
Mesquita, Cláudia. "Retratos em diálogo: notas sobre o documentário brasileiro recente." Novos
estudos CEBRAP 86 (2010, pag. 105)
enunciado deve transmitir. Em  Viramundo (Geral Sarno, 1965), por exemplo, no que

se refere ao locutor, 
“Diferentemente   dos   entrevistados,   nada   lhe   é   perguntado,   fala

espontaneamente e nunca de si, mas dos outros, dos migrantes, não apenas

dos entrevistados, mas dos migrantes em geral que vieram para São Paulo

(…) enquanto os migrantes falam de suas situações particulares, ele fala
19
deles em um plano geral.

Uma chave para entender esse movimento é o manifesto antropofágico de


Oswald de Andrade. O antropófago, personagem conceitual importante na obra do
escritor modernista, deriva da filosofia dos povos Tupimambá e traz consigo a ideia
de que “só me interessa aquilo que não é meu”. O antropófago tem sua existência
renovada por aquilo que vem de fora, mas não uma absorção submissa: o canibal
devora algo, mas para transforma-lo. Seu apetite é por transformação.
Uma característica marcante do Pensamento Ameríndio 20é a atitude deliberada
de incorporar elementos que vem de fora e ao mesmo tempo transformar tais
elementos em algo consubstancial à sua existência, nos termos de sua própria
ontologia. Portanto, é pela devoração do outro que o canibal constitui a si mesmo. É
nesse sentido que o cinema documental é atualizado pela antropofagia desses sujeitos,
tornando- se com isso algo singular. Neste movimento, do outro ter a câmera para si,
novas estéticas e narrativas surgem, outros personagens e realidades aparecem. Trata-
se de um movimento de antropofagia da linguagem cinematográfica.

o que acontece quando a máquina fenomenológica do cinema se encontra com


a máquina xamânica dos povos nativos?”

19
BERNADET, 2003, pag. 16-17.
20
Citár viveiros
Tais distinções só são cabíveis de serem imaginadas por uma ontologia dualista própria à
metafísica ocidental que pressupõe mundo como que dividido em unidades.
A preocupação com um olhar nativo, no entanto, sempre esteve presente nos
anseios da representação visual da ontologia ocidental:
O fascínio dos antropólogos por um modo de ver supostamente “indígena” é
compartido pelos cineastas, igualmente sempre à procura de representações
“nativas”, “diretas”, “imediatas” e, pensa-se, mais “fiéis” em relação ao ponto
de vista daqueles cujas vidas nos interessam”.

Tal disposição romântica No entanto as recentes análises do estado da arte do


documentário brasileiro ou, até mesmo o ficcional, tem dado pouco destaque à cinemas
como o indígena

DE QUEIROZ, Ruben Caixeta. Cineastas indígenas e pensamento selvagem. DEVIRES-Cinema e Humanidades, 2016,
5.2: 98-125.
FELDMAN, Ilana. "Jogos de cena: ensaios sobre o documentário brasileiro contemporâneo." São Paulo: Tese de

Doutorado, Universidade de São Paulo (2012).

Holanda, Karla. "Documentário brasileiro contemporâneo e a micro-história." DEVIRES-Cinema e Humanidades 2.1


(2016): 86-101.
LINS, C. ; MESQUITA, Cláudia Cardoso . Filmar o real - Sobre o documentário brasileiro contemporâneo. 01. ed. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008. v. 01. 94p .
MESQUITA, Cláudia Cardoso . Retratos em Diálogo - notas sobre o documentário brasileiro recente. Novos Estudos
CEBRAP (Impresso) , v. 86, p. 104-119, 2010.
Brasil,André.“Carapiru-Andrea, Spinoza: a variação dos afetos em Serras da desordem”. Devires: Cinema e
Humanidades, 2008, vol. 5 no 2, p. 94.

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