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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PÓS GRADUAÇÃO LATO SENSO


COGEAE

PSICANÁLISE E MEDIAÇÃO: UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A


ÉTICA E A TEORIA DO GOZO

Tamara Dias Brockhausen

Orientadora: Profa. Dra. Sandra Dias

Monografia apresentada como parte dos


requisitos para o certificado do curso de
especialização: “Psicanálise e Linguagem:
uma outra psicopatologia”

São Paulo
2006
SUMÁRIO

RESUMO..................................................................................................................3
I INTRODUÇÃO........................................................................................................5
II O CAMPO PSICANALÍTICO: SEUS FUNDAMENTOS
2.1. O CONCEITO DE GOZO EM LACAN.............................................................11
2.2. A ÉTICA DA PSICANÁLISE............................................................................28
III MEDIAÇÃO:
3.1. MODELOS DE MEDIAÇÃO.............................................................................47
3.2. CONCEITOS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO................................................49
3.3. ATRIBUÍÇÕES DO MEDIADOR......................................................................52
3.4. O PROCESSO DE MEDIAÇÃO......................................................................54
3.5. O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO.....................................57
3.6. A MEDIAÇÃO NO FORO DE SANTANA........................................................59
IV CASO DE MEDIAÇÃO......................................................................................64
V ANÁLISE DOS RESULTADOS DA MEDIAÇÃO SOB A ÉTICA DA
PSICANÁLISE
5.1. PRIMEIRO ENCONTRO................................................................................102
5.2. SEGUNDO ENCONTRO...............................................................................103
5.3. TERCEIRO ENCONTRO...............................................................................105
5.4. QUARTO ENCONTRO..................................................................................107
5.5. QUINTO ENCONTRO...................................................................................107
5.6. SEXTO ENCONTRO.....................................................................................109
5.7. SÉTIMO ENCONTRO....................................................................................110
5.8. OITAVO ENCONTRO....................................................................................112
5.9. NONO ENCONTRO.......................................................................................113
5.10. DÉCIMO ENCONTRO.................................................................................115
IV. CONCLUSÃO.................................................................................................117
VI. BIBLIOGRAFIA...............................................................................................123

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Tamara Dias Brockhausen: Psicanálise e mediação: uma articulação entre a ética
e a teoria do gozo. 2006.
Orientadora: Profa. Dra. Sandra Dias
Palavras-chave: psicanálise, mediação jurídica, modelo transformativo, vara da
família

RESUMO

Cada época na historia da humanidade inventou uma forma de solucionar


conflitos de acordo com suas crenças e costumes. Foi na mudança de paradigma
das teorias e práticas das ciências modernas que surgiu a mediação como
solução alternativa de conflito. Ela é um instrumento recente capaz de transformar
os modelos de pensamento que não mais se adequam a realidade complexa da
atualidade. Neste novo modo de pensar o conflito não é visto como bom ou mal,
estas seriam apenas formas de encará-lo, modo este que pode agudizar o conflito,
produzindo verdadeiras guerras. Surge então a mediação com técnicas de manejo
para a busca de novas soluções. Quando as pessoas decidem abandonar os
processos formais e adotam a mediação, um processo mais informal, há o
abandono de posições rígidas.
É exatamente nesse ponto da Mediação que é possível fazer uma
articulação com a psicanálise: ao visar o conflito e propor instrumentos para sua
elaboração para evitar sua reedição ela se aproxima do ponto central da teoria
freudiana assentada sobre o conceito de conflito e de elaboração.
Lacan propõe retomar a experiência analítica através dos três registros: real,
simbólico e imaginário.Lacan coloca que para saber do desejo é necessário
ultrapassar a disputa, a rivalidade , isto é ir além da relação imaginária com o
outro, relação narcísica fundada num amor ou ódio imaginário que impede o
reconhecimento do outro como desejante. Ir além do imaginário, no plano
simbólico, “da troca legal que só pode se encarnar pela troca verbal entre os seres
humanos” (1979, 166) pois “a troca simbólica é que liga os seres humanos entre
si, ou seja a palavra, e que permite identificar o sujeito” (1979, 166). É essa

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dimensão que permite ultrapassar as paixões de amor e ódio que comparecem
nas disputas entre o eu e o outro, disputas narcísicas e mortíferas porque na
rivalidade se exige o reconhecimento de sua posição desejante na negação do
desejo do outro (Lacan, 1979, 309), isto é : aniquilando a posição subjetiva do
outro, transformando-o em objeto de gozo. É por isso Lacan redefiniu o
Inconsciente como discurso do Outro, lugar no qual se localiza seu desejo é que é
acessível pela função narrativa/discursiva, isto é: a retomada da história para
eliminar as cristalizações imaginárias e simbólicas que impedem a criação do novo
e acesso à verdade desejante. Para o mediador a história de vida é criada por ele
próprio e ao mesmo tempo criadora dele, o que nos permite estabelecer o paralelo
com a psicanálise.
O trabalho portanto, pretende relacionar a prática e teoria da mediação
transformativa com os conceitos de ética e gozo em psicanálise através do
referencial teórico de Freud e Lacan.
Foi analisado um caso de mediação jurídica do Foro regional de Santana – I
que durou 10 encontros. Através dos resultados, pode-se perceber que
psicanálise Lacaniana oferece subsídios teóricos para compreensão dos efeitos
do trabalho da mediação enquanto técnica transformativa.

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I. INTRODUÇÃO

Cada época na historia da humanidade inventou uma forma de solucionar


conflitos de acordo com suas crenças e costumes. Tomemos como exemplo a
comunidade dos bosquímanos (Ury, 2000) que vive no deserto de Kalahari.
Durante a briga, os amigos e parentes são convidados a uma conversa
pacificadora com os disputantes. Um membro da comunidade relata que todos se
evolvem muito e sempre podem falar o que desejam, levando algumas vezes dias
para resolverem a contenda. Os membros se empenham em descobrir quais as
regras sociais desrespeitadas que levaram a atual situação e o que é necessário
para restabelecer a harmonia social. Há um tribunal popular, mas o veredicto não
é dado pelo juiz, a decisões são tomadas em consenso de tal forma que ambas as
partes aceitem e a comunidade também. Eles não se retiram enquanto não
tomarem uma decisão.
Na cultura contemporânea se observa os reflexos da globalização, na
velocidade da comunicação, na inversão de valores, no hiperindividualismo, na
violência exacerbada, nas guerras como forma tradicional de resolver problemas,
na hiperespecialização das disciplinas que não se comunicam mais entre si e
também no desenvolvimento de metodologias inovadoras de resolução de
conflitos. Foi na mudança de paradigma das teorias e práticas das ciências que
surgiu a mediação como solução alternativa de conflito. Ela é um instrumento
recente capaz de transformar os modelos de pensamento que não mais se
adequam a realidade complexa da atualidade. Neste novo modo de pensar o
conflito não é visto como bom ou mal, estas seriam apenas formas de encará-lo,
modo este que pode agudizar o conflito, produzindo verdadeiras guerras. Surge
então a mediação com técnicas de manejo para a busca de novas soluções.
Schnitman em Novos Paradigmas em mediação afirma: “Nossa cultura privilegiou
o paradigma ganhar-perder, que funciona com uma lógica determinista binária, na
qual a disjunção e a simplificação limitam as opções possíveis. A forma de colocar
as diferenças, através de litígios e discussões, empobrece o espectro de soluções

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possíveis, dificulta a relação entre as pessoas e gera custos econômicos, afetivos
e relacionais” (1999, 17).
A mediação nasceu na década de 70 nos Estados Unidos como uma nova
instituição encaminhada à solução alternativa de conflitos. Ela parece inicialmente
atrelada ao movimento de “acesso à justiça” que impulsionou o sistema judicial a
implementar mecanismos ágeis capazes de desafogá-lo. Seu crescimento foi tão
rápido por causa dos bons resultados que foi incorporada legalmente, até mesmo
obrigatoriamente, em alguns estados. A Grã Bretanha desenvolveu a mediação
consecutivamente aos Estados Unidos devido o fato ter a mesma língua como
instrumento e teve seu encorajamento decorrente do movimento “Parents
Forever”. Em 1978 já havia o primeiro serviço de mediação familiar, que espalhou
o movimento para o resto deste país, em seguida, a Austrália e o Canadá
implementaram serviços de mediação. Em 1997 o governo de Quebec promulgou
uma lei que crianças e casais envolvidos em conflito familiar teriam acesso a
sessões gratuitas de medição.
Por intermédio da língua francesa usada no Canadá, a mediação chega à
França em 1980 e poucos anos mais tarde é regulada nos termos da lei. A França
foi responsável pela estruturação da mediação no campo da interdisciplinaridade.
Ali, o pensamento binário foi substituído pelo pensamento ternário. No
pensamento binário ou clássico (cartesiano) a alternativa se resume entre certo ou
errado, bom ou mal, culpado ou inocente, procedente ou improcedente. No
pensamento ternário há possibilidade de alternativas em virtude de ser levada em
conta a diferença dos protagonistas (costumes, cultura, crenças, etc).
O projeto-piloto de cultura de paz (El Salvador, 1993) fundado pela Unesco
tem importância extrema nesse processo histórico da mediação. O projeto
resumia-se no estudo e implementação de meios capazes de disseminar uma
mentalidade que atribui a cada indivíduo a sua parcela pela paz mundial. Os
participantes relataram que o projeto era um notável evento político, no qual, os
conflitos daqueles que haviam sido inimigos durante a longa guerra civil, estavam
sendo constantemente revistos, porém eficazmente canalizados para atividades

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construtivas. O relatório final incluía um valioso resumo dos princípios para uma
cultura de paz (transcrito na monografia Cultura de Paz).
Há uma necessidade de o homem ser compreendido de acordo com um
novo paradigma que leve em consideração os fenômenos contemporâneos. Nesse
sentido a atenção para novos modelos de pensamento vêem se disseminando
principalmente em relação a questão das relações humanas (violência
exacerbada, novos modelos de famílias, o sistema jurídico como meio legítimo de
resolução de conflitos, guerras, etc). Essa complexidade da era moderna se inclui
também na dinâmica dos conflitos que para serem resolvidos requerem novos
sistemas, ou seja, mediações que auxiliem as partes na busca de seus interesses
reais, por meio de um trabalho cooperativo. Isso implica em recuperar poderes
individuais, soberania de vontades e na conseqüente retomada da
responsabilidade sobre o desfecho de litígios e disputas, antes transferidas a
juízes, advogados e árbitros.
A mediação como um novo instrumento capaz de transformar o modelo
antigo das ciências e práticas se faz extremamente importante no mundo todo.
Quando as pessoas decidem abandonar os processos formais e adotam a
mediação, um processo mais informal, há o abandono de posições rígidas. O
protagonismo tão falado é a capacidade de fazer-se responsável pelas próprias
ações e conseqüências. Assim a mediação parte do pressuposto que as pessoas
são capazes de enfrentar e solucionar seus próprios conflitos, já que foram elas
mesmas que criaram. É nesse sentido que a chance de sucesso de resolução de
um conflito aumenta pois diminui as chances de reedição da disputa.
É exatamente nesse ponto da Mediação que é possível fazer uma
articulação com a psicanálise: ao visar o conflito e propor instrumentos para sua
elaboração para evitar sua reedição ela se aproxima do ponto central da teoria
freudiana assentada sobre o conceito de conflito e de elaboração.
Freud descobre que no sofrimento humano há sempre um conflito entre as
pulsões sexuais e os interesses do eu e que a impossibilidade de resolução de
conflitos conduz a formação da neurose. A neurose se define pelo uso da defesa
nomeada recalque que objetiva impedir a satisfação da pulsão sexual pois esta

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causaria mal estar, dor ao eu. Mas o recalque tem como preço a repetição
indefinida do conflito porque a pulsão não cessa de insistir porque esta foi situada
por Freud como uma força constante, impossível de eliminar e como motor do
aparelho psíquico. Ao colocar a pulsão na origem do desejo, Freud a instituiu
como o fundamento da repetição que se constata na neurose porque o neurótico
ao recalcar o desejo sexual estaria condenado a repetição infinita visto que o
desejo é indestrutível. A indestrutibilidade do desejo na teoria freudiana se liga ao
fato dele ser movido por uma força do qual não se pode fugir e que só se elabora
ao se traduzir/ inscrever no aparelho psíquico através de representantes: a pulsão.
O destino da pulsão sendo a inscrição em traços mnésicos /representantes implica
em que a repetição é o movimento em direção a captura da pulsão pelo
representante o que Lacan denomina de significante e constitui o simbólico. Isto é:
a repetição só cessa se for elaborada, inscrita na cadeia de representantes
pulsionais, no sistema significante que constitui a ordem simbólica.
Lacan segue a orientação técnica coloca por Freud e que pode ser
resumida através da frase: o que o sujeito não recorda do que esqueceu e
recalcou, expressa-o pela atuação (acting-out), “ele reproduz não como lembrança
mas como ação, repete-o, sem naturalmente saber que o está repetindo” (Freud,
1914, 196). O sujeito repete ou atua ao invés de recordar e repete sob condições
da resistência ; repete tudo, sua inibições, traços patológicos, atitudes inúteis e
seus sintomas (Freud, 1914, 198). Freud aconselha que o primeiro passo para
superar as resistências é revelar a resistência, uma vez que o sujeito a
desconhece, para que ele se familiarize com ela, sendo esta a diferença crucial
entre a psicanálise e outros tratamentos, pois é a parte do trabalho que efetua as
maiores mudanças.
Lacan propõe retomar a experiência analítica através dos três registros:
real, simbólico e imaginário. O real foi caracterizado inicialmente como um buraco,
o que não é simbolizado, o imaginário como a dimensão da relação intersubjetiva
narcísica do eu com o seu semelhante e o simbólico se caracteriza pela relação à
linguagem e a fala. Na dimensão imaginária trata-se duma relação via imagem
ligada ao narcisismo, fundada numa alienação ao Ideal do Outro no qual o sujeito

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captura seu eu, ali onde ele se vê como objeto amado que representa o eu ideal: o
ideal de máxima perfeição (Lacan 1979, 156). O sujeito toma sua imagem da
relação com o outro, isto é; “o eu é aprendido numa certa referencia ao outro, que
é uma referencia falada. O eu nasce em referência ao tu” (1979, 193) mas ignora
que o semelhante encarna o Ideal do Outro. É essa ignorância que existe na
relação narcísica eu-outro, que se torna o ponto de onde se origina a
agressividade ao semelhante, porque no narcisismo a relação sendo dual, se um
ocupa o lugar do eu ideal o outro fica excluído, um ocupa o lugar do mestre e o
outro do escravo, relação mortífera, pois que havendo lugar só para um, a luta só
acabará com a aniquilação de um dos elementos do par. (1979, 175).
A dimensão simbólica “a que define a posição do sujeito como aquele que
vê” (Lacan, 1979, 165) e é a dimensão da palavra, é uma dimensão ternária
porque entre eu e o outro há um elemento de mediação que é a palavra,
permitindo que a relação intersubjetiva não se encaminhe para o domínio da
agressividade. Lacan postula que a palavra é “a função simbólica que define o
maior ou menor grau de perfeição, de completude, de aproximação do imaginário”
(1979, 165) e é com “a dimensão da palavra que cava no real a verdade” (1979,
261). Esse terceiro elemento que se interpõe entre a díade narcísica eu-outro é o
que Freud nominou como Ideal do Eu e que Lacan aponta que “comanda o jogo
das relações de que depende toda a relação ao outrem, sendo que dessa relação
ao outrem é que depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação
imaginária” (Lacan, 1979, 165).
Lacan coloca que para saber do desejo é necessário ultrapassar a disputa,
a rivalidade , isto é ir além da relação imaginária com o outro, relação narcísica
fundada num amor ou ódio imaginário que impede o reconhecimento do outro
como desejante. Ir além do imaginário, no plano simbólico, “da troca legal que só
pode se encarnar pela troca verbal entre os seres humanos” (1979, 166) pois “a
troca simbólica é que liga os seres humanos entre si, ou seja a palavra, e que
permite identificar o sujeito” (1979, 166). É essa dimensão que permite ultrapassar
as paixões de amor e ódio que comparecem nas disputas entre o eu e o outro,
disputas narcísicas e mortíferas porque na rivalidade se exige o reconhecimento

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de sua posição desejante na negação do desejo do outro (Lacan, 1979, 309), isto
é: aniquilando a posição subjetiva do outro, transformando-o em objeto de gozo.
A análise não visa a reconstituição narcísica do sujeito mas a enunciação
da palavra incluída num discurso que revela ao sujeito os significantes recalcados
de sua história que apontam seu desejo e sua alienação no desejo do Outro,
permitindo-lhe uma separação dos Ideais do Outro fixadas em imagens e palavras
que o cativaram e levam a situar o outro no lugar do estranho e hostil. Também na
mediação objetiva-se inserir o sujeito numa narrativa porque só a recolocação de
uma narrativa alternativa permite a resolução do conflito uma vez que se postula
que há uma história primária que geralmente coloniza as outras histórias que
ficam periféricas, histórias que devem ser retomadas para ser criada uma história
alternativa e mais flexível onde haja lugar para o reconhecimento da outra parte.
Para o mediador a história de vida é criada pelo sujeito e ao mesmo tempo
criadora dele próprio, o que nos permite estabelecer o paralelo com a psicanálise.
Se o Inconsciente é um lugar Outro desde onde o sujeito fala e é falado, isto é
constituído, ele é um lugar onde se marca os significantes e imagens em que o
sujeito se alienou e que determina suas ações, fala e modo de se posicionar no
mundo. É por isso Lacan redefiniu o Inconsciente como discurso do Outro, lugar
no qual se localiza seu desejo é que é acessível pela função narrativa/discursiva,
isto é: a retomada da história para eliminar as cristalizações imaginárias e
simbólicas que impedem a criação do novo e acesso à verdade desejante.

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II. O CAMPO PSICANALÍTICO: SEUS FUNDAMENTOS

2.1. O CONCEITO DE GOZO EM LACAN

Para estabelecer a relação do trabalho de mediação com a ética em


Psicanálise é necessário estabelecer uma articulação que leve em consideração o
conceito de gozo, conceito pilar nas questões relativas ao sujeito e seus atos. Na
releitura da obra freudiana, Lacan distingue a palavra lust (prazer) e genuss (gozo)
e passa a utilizar o termo gozo, não mais no sentido da língua corrente, elevará a
palavra gozo ao estatuto de conceito que apresentará diversas formalizações,
muitas vezes opostas, em função dos diferentes momentos de sua articulação
teórico - clinico.
O gozo como conceito não é assimilável à idéia de sensação de prazer
apesar de poder estar vinculado a este significado, mas mais frequentemente ele
se liga ao desprazer, de forma que se pode afirmar que o gozo não é o prazer.
Lacan não retira o termo gozo do dicionário ou da obra freudiana, ele o recorta e
elabora até chegar à sua transformação de conceito central em oposição ao
desejo influenciado pela filosofia do direito de Hegel, onde o gozo aparece “como
algo que é subjetivo, particular, impossível de compartilhar, inacessível ao
entendimento e oposto ao desejo que resulta de um reconhecimento recíproco de
duas consciências e que é objetivo, universal, sujeito à legislação” (Braustein,
1990, 15). Assim o gozo é aquilo que permanece fora da legislação já que fora da
relação possível com os outros, uma experiência subjetiva difícil de ser
transmitida. E cita Hegel: “Se digo que gosto de algo ou se me remeto ao meu
gozo, expresso somente que a coisa vale assim para mim. Com isso, suprimi a
relação possível com os outros, que se baseia no entendimento” (Braunstein,
1990, 16).
O gozo é sinônimo de prazer intenso ou de volúpia enquanto que para o
discurso jurídico ele se liga a idéia de usufruto, fruição, partilha e redistribuição. No
seminário “A ética da psicanálise” Lacan apresentará sua primeira formalização do

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gozo postulado a partir do conceito de das Ding apresentado no texto “ Projeto de
uma psicologia científica”. Neste texto, Freud distingue a Sachevorstellung da
Dingvorstelungen, enquanto a primeira é da ordem do simbólico, a das Ding se
situa em outro lugar, é o fora-do-significado (1988,71), ponto limite além do
Lust/Unlust (1988, 77), real lacaniano.
Freud introduziu a Coisa (das Ding) no Projeto para uma Psicologia
Científica (1895) para teorizar sobre a lógica da origem. A Definição Freudiana de
Coisa segundo Kaufmann (1996): ela opera como eixo em torno do qual se
constitui o advento de um sujeito como corpo e como ser falante. A estrutura da
linguagem não apreende o corpo porque ele passa necessariamente pela imagem
do corpo do Outro e ela se deixa escapar a si mesma para instituir o sujeito como
ponto onde essa falta se configura. Ela aparece para o sujeito como objeto
absoluto inatingível, é ela que atesta para o sujeito do inconsciente que só há
verdade parcial. Assim Lacan dirá que a Coisa é o real do qual o significante
padece. O encontro com o real envolve essa coisa impossível de dizer e de
delinear e que despertaria a ilusão de uma verdade que se mostraria. O sujeito
atribui à Coisa o marco mítico em que se apóia todo o trabalho de seu aparelho
psíquico. É em razão do encontro faltoso com a Coisa que a pulsão de morte se
exercerá como uma “tendência” a querer encontrar a Coisa através da repetição,
quando aquém da reinstauração do desejo não há encontro com nenhum objeto
absoluto.
Lacan retoma o termo freudiano das Ding para torná-lo um conceito
operacional e não ontológico, para situa-lo como esse “esvaziado” da linguagem ,
esse centro vazio em torno do qual se produzem as cadeias significantes e refere-
se a uma divisão original da experiência da realidade, lugar onde se situa o objeto
irremediávelmente perdido, “o Outro absoluto do sujeito que se trata de
reencontrar” (1988, 69), sua função primordial se situa no nível de instauração da
gravitação das Vorstellungen inconscientes mas no nível destas , “ela se distingue
como ausente, alheia” (Laca, 1988, 82). O bom e o mau são efeitos da das Ding,
estão na ordem das vorstellungen; que permitem encontrar os substitutos do
objeto perdido. A Coisa, das Ding, não é bom e nem mau, ela está mais além

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regulando tudo que passa ao discurso, no nível do significante, da lei do
significante. “Das Ding está justamente no centro, e em volta o mundo subjetivo do
inconsciente organizado em relações significantes, “está justamente no centro, no
sentido de estar excluído” (Lacan, 1988, 91), e portando deve ser estabelecido
como exterior, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer, a posição primeira
que é alheia, estranho. As vorstellungens se regulam pelo prazer/desprazer o que
permite situar o bom objeto – das Gute des objekts, enquanto que “das Ding
apresenta-se no nível da experiência inconsciente lugar do incesto e como aquilo
que desde logo constitui a lei” (Lacan, 1988, 93). Trata-se de uma lei de capricho,
arbitraria, de oráculo também, uma lei de signos em que o sujeito não está
garantido por nada, lugar desde onde se organiza a cadeia significante e
correspondente ao real do gozo.
É em torno de das Ding que se orienta o falante em seu movimento de
desejo, primeiro exterior, expulso da cadeia simbólica; é o atrator , a tendência
que funda e tendência a reencontrar, o objeto perdido – a plenitude originária,
objeto que de fato nunca foi perdido pois que mítico. O que foi perdido foi portanto
uma experiência primordial que o falante insiste em recuperar investindo suas
energias em infindáveis objetos. Das Ding é o primeiro objeto a desejar e também
lugar do incesto, lugar em que se situa o desejo da mãe que “não poderia ser
satisfeito pois ele é o fim, o término, a abolição do mundo inteiro da demanda que
é o que estrutura mais profundamente o inconsciente do homem” (Lacan, 1988,
87). Desejar a mãe é desejar das Ding, possuir das Ding é cometer o incesto, o
que a cultura interdita. A função do princípio de prazer é manter a irredutível
distância entre das Ding e die Sache porque das Ding é o objeto impossível e o
que se busca são suas “coordenadas de prazer”. Em “Dois princípios do
funcionamento mental” (1911) Freud observara que embora haja uma tendência
ao prazer nem sempre esta prevalece, o princípio de realidade substitui o princípio
do prazer com intuito de preservar o ego (pulsões de auto-preservação) nas
experiências desagradáveis, adiando a satisfação e tolerando o desprazer como
caminho indireto para o prazer. Das Ding é excluída do real psíquico (Real-Ich) e

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deixa um buraco, um vazio de representação, furo que é o índice de que na
realidade das Ding deve ser estabelecida como exterior.
Freud, na primeira teoria pulsional afirma que os cursos do processo de
excitações na vida mental são dominados pelo princípio do prazer (que este é o
funcionamento primário do aparelho), ou seja, o aparelho se esforça para manter a
quantidade de excitação mínima, ou pelo menos mantê-la constante. Em 1920,
Freud faz uma nova constatação, de que não é possível falarmos na dominância
do princípio do prazer sobre o curso dos processos mentais, pois se assim fosse
os processos mentais deveriam ser acompanhados de prazer ou pelo menos
conduzir a este. Ele observa que algumas situações desagradáveis são impostas
pela mente aos sujeitos em algumas situações, alguns sonhos trazem de volta as
situações que desencadearam traumas. Freud se indaga a respeito deste caráter
de repetição da experiência desagradável visto que o aparelho mental por ele
construído era dominado pelo princípio do prazer. Como poderia a repetição da
experiência aflitiva harmonizar-se com o princípio do prazer? Ele conclui que a
repetição deste desagradável gera certo tipo de prazer. Ele dá um exemplo de
pessoas que em todas as relações humanas tem o mesmo resultado, condenados
a comprovar o mesmo final, Freud fala em “perpétua recorrência da mesma coisa”
(1920, 36). Assim ele afirma que existe na mente uma compulsão à repetição que
sobrepuja o princípio do prazer dando impressão de uma força demoníaca pelo
caráter pulsional em alto grau.
A partir dessas constatações Freud se pergunta qual a relação da pulsão
com a compulsão à repetição. Ele postula que a pulsão é “um impulso, inerente à
vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas (...) e que o objetivo de
toda vida é a morte pois as pulsões procuram alcançar o antigo objetivo” (1920,
54). Assim, as pulsões do ego teriam um papel de caráter conservador e
retrógrado, o retorno ao inanimado e portanto oposto às pulsões sexuais que
exerceriam uma pressão no sentido do prolongamento da vida. Porém Freud
observa que esta oposição não se sustenta a partir o momento em que percebe
que parte das pulsões do ego era libidinal, ou seja, que as pulsões sexuais
operavam no ego também (catexia de objeto). Assim ele postula um novo

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dualismo das pulsões: pulsão de morte x pulsão de vida, em que essa segunda
teoria pulsional, situa as pulsões de auto-conservação e sexuais no interior da
pulsão de vida (cuja energia é a libido) , que por sua vez se subordina à pulsão de
morte (cuja energia é a destrutividade).
A pulsão de morte considerada como pulsão destruição é definida por
Freud em Mal Estar na Civilização (1930) como uma disposição autônoma,
originária do ser humano, pura dispersão que se situa fora do espaço de
representação. Ela opera de modo silencioso e invisível, é um principio disjuntivo,
separador das unidades que Eros busca unificar, implica numa destrutividade e
agressão não erótica. “Ao lado do instinto para preservar a substância viva e para
reuni-la em unidades cada vez maiores, deveria haver outro instinto, contrário
àquele, buscando dissolver essa unidades e conduzi-las de volta a seu estado
primevo e inorgânico. Isso equivaleria dizer que, assim como Eros, existia também
um instinto de morte (Eros x Thanatos). Lacan ressitua Eros e Thanatos na teoria
pulsional como força que insiste e que se repete configurando o Real, o
irrepresentável.
Das Ding não pertence ao espaço representacional, não habita o aparato
psíquico, isto é no nível das vorstellungens algo permanece de não assimilável,
um interior excluído em torno do qual as organização psíquica faz mas aí faz
presença embora ausente. Mas contudo algo a nível das vorstellungens (dos
significantes) sinaliza a coisa, esse vazio que não pode ser preenchido por
adequadamente por nenhum objeto, Lacan denomina esse índice ou testemunha
de das Ding como objeto perdido, esse furo, esse vazio, o objeto a. A Coisa
materna, o exterior, o real primordial, aquilo de que padece o significante (Lacan,
1988, 149), velada por sua natureza, em seus “reachados”, é representada por
outra coisa. Ela é assim procurada nas vias do significante (Lacan, 1988, 149) .
Dessa forma, Lacan articula o gozo ao significante.
Lacan retoma o texto Mal Estar na Civilização para articular a oposição
prazer e gozo. Freud se pergunta sobre a finalidade da existência do homem e
conclui que o homem procura a felicidade, mas que “Esta aspiração tem duas
faces: por um lado evitar a dor e, por outro, procurar intensos gozos” (1930, 71) e

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ainda complementa dizendo que: “A tarefa de evitar o sofrimento relega a segundo
plano a de obter o gozo” (1930, 71). No texto Além do Princípio do
Prazer, Freud afirma “impressões frequentemente dolorosas que são, no entanto,
fonte de intenso gozo” (1920, 19) o que permite concluir que o principio de prazer
funciona como um limite ao gozo. Sendo assim, na obra de Freud o princípio do
prazer é exatamente um princípio de não-desprazer por barrar o caminho ao gozo.
Lacan conclui que “O gozo é um mal”, é um mal porque comporta o mal do
próximo (1988, 225) seguindo o texto de 1930, onde Freud discute um dos ideais
da sociedade civilizada “Amarás teu próximo como a ti mesmo”, exigência que vai
contra a própria natureza humana que fundada sobre a satisfação pulsional, para
o homem o próximo, é “não apenas, um ajudante potencial ou um objeto sexual,
mas também alguém que o tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, a
explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente
sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe
sofrimento, tortura-lo e mata-lo” (Freud, 1930, 133). Freud situa uma
agressividade, destrutividade e crueldade não erótica fundamento mesmo da
natureza humana, por ser habitada pela pulsão de morte; enquanto a pulsão de
vida – Eros, “preserva a substância viva para reuni-la em unidade cada vez
maiores” , há uma outra pulsão contrária, “buscando dissolver essas unidades e
dissolver essas unidades em conduzi-las de volta a seu estado primevo e
inorgânico” (1930, 141). A pulsão de morte é uma pulsão silenciosa que desviada
do mundo externo, vem à luz como pulsão de agressividade e destrutividade, “a
hostilidade de cada um contra todos e de todos contra cada um”, se opõe ao
programa da civilização (Freud, 1930, 145).
A civilização impõe sacrifícios à sexualidade do homem e à agressividade,
é preciso recalcar uma parcela da satisfação pulsional, trocar uma “parcela de
suas possibilidades de felicidade, por uma parcela de segurança” (1930, 137). A
inibição da agressividade operada pelo pacto civilizatório opera através renuncia
da satisfação da pulsão se dá através dos ideais e exigências da cultura que
condena a satisfação pulsional desenfreada, estabelece interdições e faz do amor
um dos fundamentos da civilização. No plano individual, a introjeção da proibição

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pela ação do supereu , tem como efeito o sentimento de culpa, e no plano social
gera um mal estar, uma insatisfação permanente pela renuncia feita, preço pago
pelo convívio social. A civilização também regula o modo como se dão os
relacionamentos entre os homens, isto é: os relacionamentos sociais. “A vida
humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte
do que um indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos
isolados”. “O poder dessa comunidade é então estabelecido como direito, em
oposição ao poder do indivíduo, condenado como força bruta”. “A substituição do
poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui passo decisivo da
civilização” (Freud, 1930, 115) “A primeira exigência da civilização, portanto, é a
da justiça, ou seja a garantia de uma lei, uma vez criada, não será violada em
favor de um indivíduo” (Freud, 1930,116). Restringindo o gozo se encontra a lei.
Assim Freud funda o gozo sobre a lei. É uma lei que ordena ao sujeito
gozar o menos possível, ao mesmo tempo em que o sujeito tenta constantemente
transgredir as proibições impostas ao seu gozo, e ir mais além do princípio do
prazer. Não obstante, o resultado de transgredir o princípio do prazer não é mais
prazer sem dor, posto que o sujeito só pode suportar certa quantidade de prazer.
Mais adiante deste limite, o prazer se converte em dor, e este prazer doloroso é o
que Lacan determina de gozo: “gozo é sofrimento” (1988, 184). “O termo gozo
expressa perfeitamente a satisfação paradoxal que o sujeito obtém de seu
sintoma, ou para dizer em outras palavras, o sofrimento que deriva de sua própria
satisfação (o ganho primário da doença) nos termos de Freud.” (Evans, 1997,103)
A proibição simbólica do gozo no Complexo de Édipo ,a proibição do
incesto, é paradoxalmente, a proibição de algo que já é impossível; isto é,
funciona para manter a ilusão neurótica de que o gozo seria alcançável se não
estivesse proibido. A proibição mesma cria o desejo de transgredi-lo, e o gozo é
portanto fundamentalmente transgressor. Assim, o neurótico cria mito de que o
gozo é proibido pois seria possível através da transgressão atingi-lo, quando na
verdade ele é impossível. Esse mito é o mito do incesto ao qual seria possível
obter o objeto inalcançável do desejo através de uma transgressão da lei.A
primeira teoria do gozo, sintetizada no seminário sete, Lacan conceitua o gozo,

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inspirando-se no mito do pai totêmico freudiano. Nesta teoria a idéia central é a
de um gozo absoluto possível ao pai primevo, gozo mítico de um pai violento e
ciumento que guarda para si todas as mulheres e expulsa os filhos homens à
medida que crescem (Freud, 1913, 152). Um pai que goza de todas as mulheres e
que é morto pelos filhos. Uma vez morto esse pai é incorporado numa refeição
totêmica: “O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e o invejado modelo de
cada um do grupo de irmãos , e pelo ato de devorá-lo, realizam a identificação
com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força” (Freud, 1913, 170) .
Freud identifica esse como o mais antigo festival da humanidade: uma repetição e
comemoração do ato memorável e criminoso que foi o começo da organização
social, das restrições morais e da religião.
Esse pai que é exceção e excesso, pai morto será substituído por um totem
e cultuado. Assim após seu assassinato, em seu nome é promulgada uma lei:”o
que fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios
filhos (...) Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e
renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora
tinham sido libertadas” (Freud, 1913, 172). Do sentimento de culpa filial, se
originaram os dois tabus relativos a dois desejos recalcados no complexo de
Édipo:o parricídio e o incesto. O sistema totêmico, que iniciou a moralidade
humana, se faz assim baseado no pacto com o pai. Esses dois interditos: Não
matarás e Não desejarás a mãe, constituindo-se como núcleo fundador da
civilização e organização da fatria. Após o assassinato desse pai temido do qual
nada se pode dizer “se instaura um consentimento inaugural que é um tempo
essencial na instituição dessa lei” (Lacan, 1988, 218), lei vinculada ao crime e
identificada à ambivalência que funda as relações do filho com o pai, isto é retorno
do amor após o ato. À lei que protege o animal totêmico e a que proíbe o incesto
se juntou a lei que proíbe matar o irmão (Freud, 1913, 172).
Mas a instauração da lei não significa contudo, sua absoluta e total
obediência, ela sempre implica em transgressão, é necessária a transgressão
para aceder ao gozo (Lacan, 1988, 217) porque o ato parricida “não abre a via
para o gozo, que sua presença era suposta interditar, mas ele reforça sua

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interdição” (Lacan, 1988,216). “Todo aquele que se aplica em submeter-se à lei
moral sempre vê reforçarem-se as exigências , sempre mais minuciosas, mais
cruéis de seu supereu” (Lacan, 1988, 216). O mito da origem da lei se encarna no
assassinato do pai porque é de lá que se tiram todos os protótipos que
sucessivamente se chamam de animal totêmico, depois de um tal deus e o deus
único, Deus, o Pai (Lacan, 1988, 217). Essas figuras encarnam a idéia de que o
gozo está proibido e interditado seja pela lei de Deus, seja pela lei dos homens,
figura que representam proibições de ordem externa. Mas Lacan destaca no texto
freudiano “o retorno do amor após o ato” não como uma coerção externa mas
como uma coerção interna ao desejo, como limite interno ao gozo.
Passar a teoria do gozo para o social implica assim na possibilidade de vida
em comum, o processo civilizatório, se dá sobre um pacto de renúncia ao gozo. O
gozo que se trata de renunciar aqui é, portanto, o gozo de um bem (Lacan, 1988,
93), o gozo da posse das mulheres do pai, gozo proibido aos filhos que levou ao
parricídio que gerou a culpa, o remorso e o pacto de exogamia. Aquilo que era
imposto pelo pai passa ser regulamentado pelo pacto surgindo a lei, que estipula a
interdição do gozo e ao mesmo tempo que só se tem acesso a ele via
transgressão. Assim junto com a civilização segue um mal estar: tudo aquilo que
transpõe a interdição torna-se objeto de uma divida, daí a culpa. E aquilo que
passa do gozo à interdição cai na exigência superegóica “não deves, não faça”. A
lei funda a transgressão , a oposição entre a civilização e pulsão institui um
paradoxo: quanto mais se renuncia a satisfação da pulsão mas se alimenta o
sentimento de culpa. Haveria ai uma satisfação paradoxal, entre prazer e dor, na
própria renúncia à satisfação. Para situar essa satisfação paradoxal, Lacan cria o
conceito de gozo (1988, 235). Dessa forma Lacan delimita o gozo como diferente
do prazer já que ele supõe prazer na dor, opõe o desejo ao gozo em equivalência
com o par lei-transgressão; o gozo puro correspondendo a morte, o desejo
incluindo um gozo e o mal estar advindo das exigências do supereu.
Em síntese, nesse primeiro momento de teorização do gozo, o gozo
ilimitado é o gozo mítico, referido ao campo da pulsão de morte, em que o desejo
é seu contraponto. Para desejar será necessário recusar o gozo, passando o

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desejo a vigorar como lei. A entrada do sujeito no simbólico está condicionada por
certa renuncia inicial ao gozo no complexo de castração em que esse sujeito
renuncia a suas intenções de ser o falo imaginário para a mãe: “A castração
significa que é preciso que o gozo seja recusado, para que possa ser atingido na
escala invertida da Lei do desejo”. (Lacan, 1998, 841) Assim “o gozo está vedado
a quem fala como tal” (Lacan, 1998, 836); o gozo proibido é um mito criado pelo
neurótico pelo fato de ter passado pela estrutura simbólica da linguagem uma vez
que é o destino de toda pulsão se inscrever no aparelho, ser capturada pela rede
significante, a própria linguagem é que barra o gozo - a descarga total,
restauração do principio de Nirvana. O gozo se define como algo fora de medida,
excessivo que paradoxalmente guarda relação com a lei, com o pecado, o
proibido.
A lei instaurada na tentativa de evitar os excessos, enquanto cria um
suposto obstáculo ao gozo e situa seu campo: o gozo terá a marca da infração ou
da transgressão de limites. A partir do crime primordial a lei e o desejo ficam
indissoluvelmente ligados pois a partir daí haverá sempre um limite ao desejo e a
lei estará presente como anteparo na tentativa de impedir o excesso, tributo do ser
humano pago à cultura por emergir como sujeito. A lei, a moral e a cultura se
fundam a partir do pai concebido como exceção e excesso. Ao passar do mito do
pai da horda primitiva para a estrutura, Lacan passa da natureza à cultura,
estabelecendo a relação do sujeito com a lei, da constituição do sujeito com o laço
social, que se marca por dois lugares, duas possibilidades: o lugar do pai, lugar do
Um, lugar da exceção, acima de toda e qualquer lei e o lugar do filho, lugar da
submissão: todos são iguais perante a lei. A lei, na teoria lacaniana, é antes de
mais nada a lei do significante, o excesso devendo ser entendido como aquilo que
do pai primevo não foi inscrito na cadeia simbólica, o excesso que resiste à
inscrição , portanto faz referência ao real. O desejo como limite, como barreira
interna ao gozo em sua versão amorosa, nascido do retorno do ato ao amor do
pai, indica que o desejo e a lei é uma só coisa: os filhos após o assassinato
legislam sobre o desejo, isto é limitam-no, isto porque o pai, o Nome do pai
sustenta a estrutura do desejo com a lei (Lacan, 1988,84),

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A teorização lacaniana sobre o gozo ao estabelecer uma relação da lei do
incesto com das Ding, onde o principio de prazer entra em ação impondo ao
sujeito uma busca incessante cujo fim não pode ser alcançado, permite situar que
o objeto do incesto – das Ding, é um bem proibido. O que é interditado é o desejo
primordial que circunscreve o percurso do sujeito, devendo o principio de prazer
regular a distância do sujeito em relação a “das Ding” (Lacan, 1988, 93). Lacan
sublinha “que o passo dado por Freud, no nível do princípio do prazer, é o de
mostrar-nos que não há Bem supremo – que o Bem supremo, que é das Ding, que
é a mãe, objeto do incesto, é um bem proibido e não há outro bem. Tal é o
fundamento, derrubado, invertido em Freud, da lei moral” (1988, 90). Das Ding – a
Coisa materna, o objeto proibido na antropologia, o Bem supremo em Aristóteles ,
o pecado no campo da religião, é o que funda a lei moral.
Lacan se pergunta o que é esse Bem, um Bem que é um mal, pois participa
do sintoma, ali onde o sujeito padece e cuja interdição funda a cultura, a religião, a
sociedade e o próprio sujeito. Para tal ele vai recorrer ao pensamento kantiano
que nos Fundamentos da Metafísica dos Costumes distingue na lei moral dois
elementos heterogêneos: um elemento puro e a priori e outro empírico. Para Kant,
só há pureza na razão, faculdade universal a priori, a expressão transcendental
indica a filosofia da razão pura no seu uso teórico e/ou no seu uso prático, na
ordem do conhecimento ou da ação. Na Critica da Razão Prática, a lei moral é
livre e autônoma , desprendida de todo Wohl, isto é desvinculado do bem estar e
de todas as pressões externas. Sua referência é das Gute, ou seja o Bem em seu
sentido absoluto. O bem-estar - Wohl, o conforto do sujeito se coloca no campo do
prazer e está vinculado a todos os engodos bem-sucedidos, signos que a
realidade honra, (Lacan, 1988, 93), ele se refere a das Ding, como seu horizonte e
sua fonte, situada além do princípio do prazer. Das Ding como das Gute,
“apresenta-se no nível da experiência do inconsciente como aquilo que desde logo
constitui a lei” (Lacan, 1988, 93) mas “é uma lei de capricho, arbitrária, de oráculo
também, uma lei de signos que o sujeito não está garantido por nada (...) É por
isso que esse Gute, no nível do inconsciente, é também, e no fundo, o mau objeto”
(Lacan, 1988, 93).

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Se a lei moral se funda na Coisa, então a lei moral se funda contra o prazer,
o conforto, o bem estar. A lei moral tem seu fundamento no gozo, na dor, no além
do principio de prazer: “A lei moral como princípio de determinação da vontade,
pela mesma razão que ela causa danos a todas nossas inclinações , deve
produzir um sentimento que se pode chamar de dor” (Lacan, 1988, 102). O
princípio do prazer como princípio do desprazer ou de menos padecer é feito para
manter afastada a possibilidade de acesso ao gozo. Assim a repetição encontrada
na brincadeira com o carretel, mostra que se retorna sempre ao excesso e ao
pulsional, quando se trata de gozo. A repetição do mesmo na brincadeira, da dor
teria como função retornar ao traumático ( a separação e perda do objeto) , para
captura-lo pelo par significante Fort (Fora) – Da (Aqui), repetição que através da
dor permitiria extrair um prazer pelo acesso ao gozo via simbólico. Nesse sentido
a lei moral, a instância moral é aquilo por meio do qual, em nossa atividade
enquanto estruturada pelo simbólico, se presentifica o real –o real como tal , das
Ding, o gozo aqui compensando o sujeito da satisfação não obtida na vida
cotidiana.
Se o gozo é gozo da Coisa, gozo pela presentificação do real no campo do
simbólico o gozo é um mal e é um mal porque comporta o mal do próximo, do
semelhante, nessa perspectiva Lacan aproxima Kant de Sade. O sujeito só
conhece a Coisa pela Lei, se Kant situa a Coisa como um nôumeno, só
apreensível pelos seus representantes e pela Lei, Sade permite articular melhor o
paradoxal que existe no mandamento moral: Amará o próximo como a ti mesmo.
Sade toma como máxima universal de “nossa ação o direito de gozar do outrem,
quem quer que seja, como instrumento de nosso prazer” (Lacan, 1988, 100). Essa
é a lei universal que devemos reconhecer como fundamento de uma moral que se
funda no Bem supremo. “Se o principio de prazer é a lei do bem, que é o wohl , o
bem estar (...) das Gute, que é objeto da lei moral” (Lacan, 1998,777). Se o bem é
o gozo, sendo um mal ele se opõe ao mandamento de Amar ao próximo. Se Freud
coloca como sendo a natureza do homem da ordem do “Homo, homini, lupus est”
(1930, 108), se a crueldade, a destrutividade é o que habita a ordem humana
como causa de suas ações, se há um prazer em fazer o outro sofrer como

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apontado no Mal estar, então é a ética sadiana que revela a verdade da ética
psicanalítica. Aqui se trata de um sujeito que quer ultrapassar todos os limites
impostos pelas leis humanas e realizar os limites últimos do humano, ali onde se
procede a aniquilação da ordem simbólica, um retorno a mãe Natureza.
O herói sadiano transgride todas as leis, supera todos os obstáculos para
poder gozar de todas as maneiras possíveis, rejeitando qualquer pathos, paixão
ou compaixão, ele conclama o direito ao gozo, o direito a felicidade, satisfação
total como eixo de sua ética. Se antes o gozo não sendo prazer, é nocivo é um
mal para o sujeito, porque está no princípio de sua abolição, encontrar a Coisa é
abolir toda a demanda, que estrutura o inconsciente. Nessa articulação de Kant
com Sade, o objeto sendo separado do sujeito, ele buscará extrair do outro seu
próximo. Sade submisso à lei do Bem supremo, seu direito ao gozo, sua maldade
reconhecida, ao fazer a apologia do crime reconhece a lei de que o Bem é a
Maldade – a Coisa é o mal. (Lacan 1998, 802). Se o significante detém o gozo,
com a formula sadiana se tem o acesso ao gozo sem obstáculo. O herói à serviço
do Ser supremo em maldade (Lacan, 1998, 784), situado no lugar da Coisa,
animado por uma vontade de gozo sem obstáculo, se faz instrumento dessa
vontade e sem o consentimento da vítima, abolindo seu ser, ele atinge esse gozo
devotado a um Outro cruel e mau, cuja satisfação só é encontrada na
fragmentação de todos esses corpos, submetidos ao arbítrio dos seus caprichos,
indicando assim a presença de um supereu que ordena “Goze!”, ultrapassando
assim a barreira do prazer e atingindo o mais além: O meu direito ao gozo, o
egoísmo da felicidade é o teu mal, a tua aniquilação, teu esfacelamento, tua
morte; meu semelhante, meu próximo. Nesse ponto de teorização lacaniana, não
há garantia do que o Outro quer de mim, quanto ao seu bem-querer ou mal-
querer, o sujeito se depara então com o enigma do Gozo do Outro. O gozo do
Outro pode me concernir, me implicar de forma totalmente diferente do que é o
meu bem, isto é o meu mal. Ao mesmo tempo em que o meu gozo do Outro em
seu corpo pode comportar o mal do meu próximo. O reconhecimento dessa
máxima permite instaurar a lei moral como fundamento de toda ação pois a
questão passa a ser: o que fazer com essa maldade?

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No seminário XX “Mais Ainda”, Lacan opera uma transferência conceitual
da teoria do direito (campo das interdições) e da moral (campo dos deveres) para
o campo psicanalítico, constituindo o terceiro momento na teorização do gozo que
nos interessa na articulação Psicanálise e Direito. Juridicamente o gozo pode ter
duas acepções: como propriedade e como usufruto. Uma no sentido da
subjetividade, da experiência íntima, daquilo para o qual não há legislação
possível – o sentido de usufruto. E a segunda, pelo contrário, que trata da
legislação sobre o gozo, definido sobre a posse de bens e dos vínculos sociais
que estabelece: a propriedade. Para se usufruir plenamente de um objeto é
necessário que o outro renuncie às suas pretensões sobre esse objeto. Nesse
ponto há uma interseção entre o campo jurídico e o campo psicanalítico num
espaço comum que é a ética.
É no sentido do Direito que gozar é usufruir de algo. O usufruto no Direito
regulamenta o gozo de modo a preservar o bem que se goza. Porém na
psicanálise temos uma especificidade, não se trata do gozo do objeto de uma
necessidade. Lacan esclarece que ao se considerar a acepção de usufruto deve-
se distinguir o útil e o gozo. “O usufruto quer dizer que podemos gozar de nossos
meios sem enxovalhá-los”. (1982, 11). Isto significa que se pode usufruir de um
bem, uma herança, pode-se gozar dela, à condição de não gastá-la demais. Está
aí a essência do direito diz Lacan “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao
gozo” (1982,11). Mas o gozo é para Lacan, uma instância negativa : “O gozo é
aquilo que não serve para nada” (1982, 11). O direito não é um dever, o que força
alguém a gozar é o superego. “O superego é o imperativo do gozo – Goza!” (1982,
11).
Lacan faz um percurso de Aristóteles à Bentham, filósofo do utilitarismo,
para voltar a se interrogar “o que é do ser, do bem supremo como objeto de
contemplação, a partir do que acreditou-se antes poder edificar uma ética”
(1982,12). Enquanto que para Aristóteles o Bem supremo é a felicidade e esta é a
máxima virtude em Bentham devemos buscar em todas nossas ações o prazer, e
isto é a felicidade, porque esta é o único que se pode considerar um bem. Assim
uma ação é considerada boa quando o resultado que deriva dela é a felicidade

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pois a meta do desejo humano é o prazer, isto é, a finalidade na vida é perseguir o
prazer e escapar da dor. A teoria de Bentham se opôs as teorias que postulavam
uma lei moral que supunha que existiam direitos, deveres e obrigações
independentes e anteriores, isto é, algo dado de modo natural. Ele propõe um
cálculo hedonista da felicidade para buscar o valor de um bem: a soma dos
prazeres contidos numa ação. A ação mais ética é a que expressa uma medição
quantitativa mais alta de prazer. Essa quantidade de prazer obtido numa ação é
de natureza qualitativa e constitui o seu valor, permitindo então que se meça os
benefícios produzidos por uma ação e listar os prejuízos da mesma e deste modo
determinar qual a ação produz mais benefícios ou reduz o custo. Como doutrina,
o utilitarismo ao distinguir o bom e o útil, situa o bom como o útil para os demais,
independente de que coincida ou não com o nosso próprio bem-estar. Enquanto
no egoísmo ético o bom é o que responde ao meu interesse pessoal, o bom
coincide com o bem estar pessoal, no altruísmo ético , exclui-se o interesse
pessoal e só é bom o que responde ao interesse geral assim como valor moral , o
bom é o útil ou o proveitoso para o maior numero de homens, entre cujos
interesses figura também o meu próprio (Bentham, 1984, 14-34).
A felicidade se identifica com o gozo e é um produto da moral; o principio
utilitarista que dirige o direito, a economia e a política e pode ser expresso nas
frases: “A máxima felicidade para a grande maioria” e “ É moralmente bom, o que
é útil para a grande maioria”. Ao situar a busca da felicidade da grande maioria,
identificando o interesse do individuo com o interesse universal, o utilitarismo
elimina a questão ontológica do Bem supremo na sua proposição ética que
sustenta que o bem deve ser partilhado entre os semelhantes, regra de partição
que vai determinar o valor de uso para cada um de um bem. A procura da
felicidade tem por base o útil, que é definindo simbolicamente (Lacan, 1988, 278) .
É na base do simbólico, da linguagem que o pensamento utilitarista constitui o
objeto da partilha – os bens, isto é, aborda o bem através do significante, o que
permite a Lacan ressituar a ética em psicanálise desvinculada da metafísica e em
consonância com a posição freudiana. Freud no texto “Além do principio de
prazer” e em sua filiação ao pensamento de Hobbes de que o homem é o lobo do

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próprio homem, rejeita o princípio ético cristão de “Amar o próximo como a ti
mesmo”, rompe com a perspectiva hedonista e afirma que o homem busca um
mais além do prazer, que tem a ver com a Coisa – das Ding, o gozo. O bem,
Lacan o situa como a barreira que protege o sujeito do confronto com o real do
gozo, que comporta o Mal do sujeito.
No livro “Mais, ainda”, Lacan utiliza a teoria das ficções de Bentham porque
no estatuto do utensílio, demonstra o valor de uso através da linguagem (1982,
12). O filósofo distingue o valor de troca do valor de uso de um objeto, pois no
homem não há necessidades naturais “que determinem naturalmente a produção
deste ou daquele objeto para satisfazê-la” (Julien, 1996,44). Os bens são
produzidos segundo seu valor de troca e de distribuição entre os semelhantes , e
a opinião pública que determina seu valor de uso para cada um. Ou seja, o serviço
de bens é um artifício cultural , uma ficção que não sendo nem o ilusório nem o
engano, é da ordem simbólica, isto é da ordem da linguagem na medida em que a
opinião pública diz o que deve ser, e não o que é. A utilização dos bens se dá na
base do direito de privar o outro dos mesmos e por outro lado o privador será o
pequeno outro, o semelhante, aquele que é dado na relação com o espelho.
Assim o fato de dispor dos bens, institui o direito do outro gozar à sua vontade,
conduzindo-nos a dimensão da maldade que lhe é inerente. Por isso Freud
sustenta um mal estar na Civilização , segundo Lacan o sintoma na cultura, que
desfaz a harmonia postulada por Bentham entre cada indivíduo segundo a lei de
maior felicidade para o maior número. A filosofia utilitarista não realiza seu ideal –
a felicidade porque existe algo, num mais além, que lhe escapa: o que é recusado
pela cultura: o gozo (jouissance). Em síntese: o valor de gozo de um bem não está
no nível do uso mas está ligado ao fato do homem poder dele dispor, dispor de
seus bens, é ter o direito de privar dos outros e se liga ao poder. O gozo sendo
então “aquilo que não serve para nada” (Lacan, 1982,11).
Lacan esclarece a relação do direito com o gozo “O usufruto (...) reúne
numa palavra, (...), a diferença que há entre o útil e o gozo” (...) “O usufruto quer
dizer que podemos gozar de nossos meios, mas que não devemos enxovalhá-los.
Quando temos usufruto de uma herança, podemos gozar dela com a condição de

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não gasta-la demais. É nisso mesmo que está a essência do direito – repartir,
distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo” (1982, 11). O uso é o poder que o
outro tem de gozar de seus bens, isto é de dispor deles como bem lhe aprouver,
sem prestar contas a quem quer que seja. Essa despesa, esse gasto não
utilitários, esse direito de gozar a seu bel prazer, tem uma parte maldita, “que se
afigura como o direito de me privar” (Julien, 1996, 45). O gozo do Outro para além
de seu bem não está sujeito à partilha, mas a privação. Vivo o Outro em pleno
gozo como tendo a intenção de me privar, um gozo que suponho nele a partir de
meu olhar (invidia) o que não me permite amá-lo por estar na posição de um
privador e não de um semelhante com quem possa me identificar, meu próximo
quer o meu mal. Mas essa maldade que o outro comporta nada mais é do que o
gozo que desconheço em mim, verdade que me leva a querer o mal do outro.
Com o conceito de gozo Lacan operou a passagem da libido à pulsão de
morte e à agressividade , permitindo então que esse conceito unifique a libido e
pulsão de morte, como um nó que constitui a clivagem interna do sujeito. O gozo
em si é destruição, destruição que impõe a repetição e a criação e não tem
estatuto de utilidade como um bem, retomando-o no seminário “Mais, ainda, para
situá-lo como outra satisfação, satisfação que se sustenta da linguagem (Miller,
1999, 167). O direito ao gozo é diferente da obrigação ao gozo, isto é, do dever,
este é função do supereu. O supereu “é o imperativo do gozo – Goza! ( Lacan,
1982, 11). Relendo o mal estar na cultura como um mal no sentido que comporta o
mal do próximo, e que o valor de uso é a linguagem, Lacan marca a distinção da
ética psicanalítica que não se baseia num Bem supremo, afirmando que não há
linguagem do ser, no sentido de que a linguagem não tem garantia última para a
verdade do ser.
Lacan identifica nesse seminário o ser do gozo ao objeto a e situa dois tipos
de gozo: o gozo fálico e o Outro gozo. O gozo marcado pelo furo, instaurado pela
linguagem e o outro gozo, infinito, fora da linguagem, que sustenta que relação
sexual não há (1982,16). No seminário 20 todos os significantes têm propriedade
do significante fálico, uma generalização para os significantes da significância
(Miller, 1999, 168). Lacan coloca a satisfação do prazer como um gozo e que não

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há puro prazer, só há diferentes regimes do gozo; mesmo no nível homeostático, o
prazer supõe a inscrição significante, mesmo o gozo a nível do corpo supõe o
significante (Miller, 1999, 168). Gozo do corpo e gozo significante estão
conectados, são duas do mesmo gozo. A tese no seminário XX aponta que não há
gozo antes do significante. Coloca-se como questão fundamental diante da
questão da posse, a propriedade primeira de cada sujeito, seu corpo e as relações
desse corpo com o corpo do outro tal como é assegurado por um discurso e laço
social. Segundo Braunstein, cabe então a pergunta: “meu corpo me pertence ou
está consagrado ao gozo do Outro, de um Outro do significante e da lei que me
despossui desta propriedade” (1990,14). A teoria do direito teria entre suas
atribuições a regulação das restrições impostas ao gozo dos corpos, regularia
portanto o contrato social e os limites do uso do corpo do outro e de seus bens. Se
o liame social se funda sobre a renúncia à satisfação da pulsão, é exatamente
porque esta implica o gozo, aqui no sentido jurídico do termo, de objetos que
poderiam pertencer a outros, ou privá-los, a esses, de seu gozo, o que situa o
gozo no campo do Outro.

2.2. A ÉTICA DA PSICANÁLISE

Freud rejeita a suposição da existência de uma capacidade original do


homem de distinguir o bem do mal, ele acreditava que os juízos éticos não
estavam fundados na razão mas sim nos “desejos” de felicidade dos homens
constituindo uma tentativa de apoiar com argumentos as suas ilusões. A questão
da felicidade para Freud relaciona-se antes à economia da libido do que a regras
éticas que assegurem, pelo seu exercício, o advento do “Supremo Bem”.
É inevitável analisarmos a questão da moral para se falar em ética. Freud
apresenta a origem da moralidade ligada à religião em 1913, no texto Totem e
Tabu, baseado no mito de uma horda primitiva que assassinou o pai e
estabeleceu um pacto que originou os tabus. Os tabus implicam no sagrado e no
proibido e sua violação é passível de punição (Freud, 1913, 38), o tabu “denota

28
tudo – seja pessoa ou lugar, uma coisa ou uma condição transitória – que é o
veículo ou fonte deste misterioso atributo. Também denota as proibições advindas
desse mesmo atributo” (Freud, 1913, 42) e ainda apresenta as características de
sagrado, acima do comum, perigoso, impuro e misterioso. As duas leis básicas do
totemismo são: não matar o animal totêmico e evitar relações sexuais com
membros do clã totêmico do sexo oposto (Freud, 1913, 52). A violação das
proibições e dos tabus constituem um perigo social que deve ser punido ou
expiado por todos os membros da comunidade. O tabu é uma proibição primeva
forçosamente imposta de fora e dirigida contra os anseios mais poderosos a que
estão sujeitos os seres humanos. O desejo de violá-los persiste no inconsciente
(Freud, 1913, 55).
Freud estabelece um paralelo entre o tabu, uma instituição social e uma
criação cultural e a neurose a partir da semelhança entre as proibições dos tabus
e os princípios morais (1913, 93). A neurose e a sociedade, ambas se assentam
sobre desejos poderosos e proibidos porque ameaçam a sociedade - os desejos
incestuosos: dormir com a mãe e matar o pai porque ambas são edificadas sobre
proibições. Ele estabelece a tese de que onde há algo proibido, há algo desejado
(1913, 91), isto é: onde há proibição, há um desejo subjacente, ele afirma que a
existência de uma lei como o incesto ou de um mandamento como “Não matarás”
não seria necessária se não houvesse o desejo de cometê-los (Freud, 1913, 92),
se existem é porque os desejos sexuais são poderosos e trazem discórdias aos
homens. A consciência moral é que faz com que os homens obedeçam às leis e é
“a percepção interna de um determinado desejo a influir dentro de nós” (Freud,
1913, 90)
O estudo do tabu do incesto confirma a hipótese de que a primeira escolha
de objeto que se faz é incestuosa, que a ontogênese repete a filogênese, ou seja,
que o desenvolvimento do indivíduo repete o da civilização. O sujeito é movido por
fortes impulsos sexuais, que se satisfeitos implicam num risco de desintegração
da sociedade e serão alvo de recalque. Viver em sociedade supõe assim uma
forte parcela de renuncia de satisfação pulsional. Freud assinala que há sempre
uma inadequação, ou seja, um conflito entre as exigências da pulsão, que requer

29
imperiosamente satisfação, e as restrições da moral civilizada e conclui que a
civilização é erigida sobre a renúncia das pulsões e dissemina a neurose (Freud,
1930, 118). Mas a moral não é o único fator responsável pela não satisfação da
pulsão: “Algo de nossa própria constituição psíquica que nega satisfação completa
e nos incita a outros caminhos” (Freud, 1930, 126) É a própria pulsão que é
atribuída a impossibilidade de satisfação completa, o princípio do prazer não tem
nenhuma chance de se realizar. Para Freud a moralidade não é algo que no
âmbito das relações sociais se sobrepõe aos desejos individuais com um caráter
repressivo, a necessidade da moral está inscrita na própria constituição psíquica
do homem, na sua forma específica de obter satisfação, o que lhe permite
ultrapassar a oposição simples entre indivíduo e sociedade.
Freud vincula a satisfação pulsional à relação do sujeito com o próximo.
Através do semelhante, do próximo, se dá a primeira apreensão da realidade para
o sujeito. Parafraseando Freud: “um outro ser humano (...) semelhante foi, ao
mesmo tempo, o primeiro objeto hostil e também sua única força auxiliar. É por
esse motivo que é em seus semelhantes que o ser humano aprende a (re)
conhecer” (1895, 438). Assim o sujeito humano está indelevelmente marcado pela
relação com o outro e por isso ele afirma que o desamparo inicial “é a fonte
primordial de todos os motivos morais” (1895, 439). É o registro da alteridade que
se institui simultaneamente ao da formação subjetiva, alteridade essa, que não se
restringe à presença do outro semelhante, mas indica algo mais radical – que esta
presença encobre e desvela ao mesmo tempo o complexo do próximo.
No reconhecimento do próximo, seja como objeto, seja como força auxiliar,
há algo que resiste como uma Coisa, que escapa ao juízo, e que aparece como
estranho ou hostil. Este reconhecimento jamais é total, e isso decorre do fato de
que o objeto da satisfação é perdido, e que todo encontro desse objeto na
realidade é um reencontro de caráter precário. Daí a ambivalência que caracteriza
a relação do sujeito com seu próximo, uma vez que nele está articulado, ao
mesmo tempo, a identidade e a separação. Na busca do objeto do desejo, o
sujeito encontra este outro que “pode servir”, mas que o remete sempre a esse
Outro enigmático. Esse é, ao mesmo tempo, esse Outro pré-histórico impossível

30
de esquecer apontado por Freud no projeto (1895) que jamais é igualado por
ninguém posteriormente. Esse Outro, alteridade radical cujo fundamento é a Coisa
(das Ding), assimilável no reconhecimento do próximo, e que comanda o desejo
do sujeito. Esta é a via explorada por Lacan para falar de uma ética da
psicanálise: das Ding, a coisa freudiana, ou a causa freudiana, causa do desejo.
A lei fundamental em psicanálise é a lei da interdição do incesto, e a lei do
incesto situa-se na relação do inconsciente com das Ding (Lacan, 1988, 86-87),
lugar onde se situa o real, enquanto que o lugar Sache é a coisa colocada na
questão jurídica, ou no nosso vocabulário, a passagem à ordem simbólica de um
conflito entre os homens (Lacan, 1988, 59). Das Ding, esse Outro pré-histórico,
alheio e exterior, o qual o sujeito tem que estar à uma certa distância, “apresenta-
se no nível da experiência do inconsciente como aquilo que desde logo constitui a
lei” (Lacan, 1988, 93), mas uma lei do capricho, uma lei arbitraria, lei de signos em
que o sujeito não está garantido. Das Ding, como lugar primeiro, a que sempre se
retorna, é o lugar desde onde se elabora a ética (Lacan, 1988, 96). “A lei moral se
articula com a visada do real, na medida em que ele pode ser a garantia da
Coisa”, tese defendida por Lacan (1988, 97). Das Ding, é tomada no prisma
kantiano como a coisa em si, o incognoscível que só se deixa apreender pela
representação e como tal permanece, sendo o núcleo do real, do impossível
simbolizar, mas que origina toda operação de simbolização.
O homem, na ótica freudiana, está condenado a esta forma radical de
intersubjetividade que implica, a um só tempo, em aproximação e afastamento. Na
“Psicologia das massas e análise do eu”, Freud utiliza a metáfora
schopenhaeuriana dos porcos espinhos para afirmar que o homem não suporta
uma aproximação demasiado íntima com o próximo, principalmente por que a
deseja; as relações amorosas estão carregadas de hostilidade; nem sempre
perceptível por causa do recalcamento: “Um grupo de porcos-espinhos apinhou-se
apertadamente em certo dia frio de inverno, de maneira a aproveitarem o calor uns
dos outros e assim salvarem-se da morte por congelamento. Logo, porém ,
sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se separarem
novamente. E depois, quando a necessidade de aquecimento os aproximou

31
novamente, o segundo mal surgiu novamente. Dessa maneira foram
impulsionados, para trás e para frente de um problema para outro, até
descobrirem uma distância intermediária na qual podiam mais toleravelmente
coexistir” (Freud, 128, 1921).
As relações sociais articulam-se, nesse sentido, à constituição subjetiva, o
que redimensiona a oposição sujeito x sociedade, levando Freud a afirmar que a
psicologia individual é ao mesmo tempo psicologia social. Como diz Assoun
(1989, 113) o laço social nesta via da elaboração freudiana, institui-se, assim, não
pela disputa ou partilha de algum objeto social, mas se alimenta justamente da
falta de objeto. Em Totem e Tabu é sobre o sentimento de culpa derivado do
parricídio originário que se funda o laço social, no Mal estar Freud segue a
tradição filosófica de Hobbes e Rousseau sobre a origem da sociedade num
contrato. Mas a originalidade de Freud é que este contrato é fundado em um
crime, uma violência primordial “um ato memorável e criminoso, que foi o começo
de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião”
(Freud, 1913, p170).
A sociedade passa a existir a partir de um ato fundador, inaugural – “no
princípio foi o Ato” – do qual deriva o contrato suscitado pelo sentimento de culpa,
em virtude do crime cometido em comum e pela necessidade de impedir sua
repetição. O contrato não resulta de uma vontade comum racional, que avalia as
desvantagens da violência permanente, mas tem raízes inconscientes, na
ambivalência que caracteriza a relação dos filhos com o pai, no remorso que surge
após o ato, como retorno do amor, nos processos de identificação e idealização
que vão nortear o aparecimento da organização social e das leis morais.
A morte do pai não libera o gozo aos filhos, pois como afirma Freud, “o pai
morto tornou-se mais forte do que fora vivo” (1913), reforçando a interdição. No
mito o pai morto é idealizado pelos filhos em um processo que pressupõe a
identificação, viabilizando a vida em grupo, a partir do recalcamento dessa
violência primordial. Ele passa a ser o fundamento do vínculo social, esse UM
excluído que possibilita a formação do grupo. De uma forma diferente, mítica
pode-se reconhecer no “pai morto” a simbolização desta falta primordial que

32
estrutura as relações humanas, à qual nos referimos anteriormente como a Coisa
freudiana.
Além disso, não se pode negar que a aplicação de determinados conceitos
psicanalíticos à análise das práticas sociais é proveitosa, na medida em que
incorpora a dimensão desejante inconsciente, em geral desconsiderada pelos
cientistas sociais. O conceito de libido certamente pode ser útil na análise de
alguns aspectos dos fenômenos sociais, assim como os conceitos de identificação
e idealização. O exame da questão da identidade social, por exemplo, onde a
delimitação de um determinado grupo é feita por oposição a outros, pode ser
enriquecido pela utilização do conceito freudiano de identificação. Freud observa
que a identificação, como processo narcísico, se faz a partir da construção de
algum ideal comum, ou mesmo de traços comuns, e pelo recalcamento da
hostilidade entre os membros do grupo. Esta hostilidade é desviada para fora, e se
situa na origem de diversos tipos de racismo, onde pequenas diferenças assumem
um papel importante na distinção de grupos. É o que ele denomina “narcisismo
das pequenas diferenças”, que exemplifica através da rivalidade existente entre
povos aparentados, como os alemães do sul e do norte, o inglês e o escocês, o
português e o espanhol. A construção do “nós” se dá por oposição aos “outros”, o
que remete à discussão, no campo da ética, das possibilidades de solidariedade.
Em “O mal estar na civilização”, Freud desenvolve o conceito de supereu,
enfatizando o seu caráter de construção a partir da dependência do sujeito em
relação ao outro, em virtude de seu desamparo primordial. Neste sentido, a
consciência moral não é primária nem inata, sendo as noções de Bem e Mal fruto
de uma construção desenvolvida a partir das relações com os outros, em que a
dependência se transfigura em medo da perda do amor. Neste texto o autor
formula a noção de “supereu cultural”, que desenvolve seus ideais e estabelece
suas exigências ao nível da coletividade, encarnando a ética vigente entre os
homens. Um mandamento que expressa a ordem cultural do supereu e o
surpreende particularmente como impossível de ser cumprido, é aquele de “amar
o próximo como a si mesmo”. Freud: “os homens não são criaturas gentis que
desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas,

33
pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais se deve levar em conta
uma poderosa cota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para
eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém
que os tenta a satisfazer sobre ele sua agressividade, a explorar sua capacidade
de trabalho sem compensação, utiliza-lo sexualmente sem seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilha-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-
lo. ‘Homo homini lupus’” (Freud, 1930, 133).
É em 1930 que Freud dá ênfase a esta face visível da pulsão de morte, que
é a agressividade humana, entendida como disposição inata, inclinação original do
homem para a crueldade e para o mal. Em oposição aparente às suas próprias
afirmações sobre a inexistência de uma capacidade natural do homem para
distinguir o bem do mal, Freud parece alinhar-se aos filósofos que postulam algo a
respeito da natureza moral do homem. A noção de pulsão de morte, tratada em
diferentes momentos de sua obra após 1920, coloca em pauta a idéia de
destrutividade que as observações antropológicas revelam como associada às
noções do mal, e indica esse ponto de abismo que aparece sob a forma da
inexplicabilidade do mal. Freud admite o lugar de irracionalidade, irredutível, como
na referência ao “umbigo do sonho” de onde parte o desejo. Diante dessa
racionalidade inconsciente, Freud esbarra nesta célula de irracionalidade que não
se submete a nenhuma ordem.
A sexualidade humana parte deste ponto e se instaura em um campo
simbólico, sendo marcada pela diversidade, pelo caráter desarmônico, poder-se-ia
dizer mesmo “perverso” em relação à ordem biológica. Lacan afirma que as
articulações de Freud sobre a pulsão de morte conduzem-no a este ponto de
abismo, intransponível, da Coisa, o que o leva a desenvolver uma sublimação
criacionista (1988, 261). A noção de agressividade, enquanto expressão da pulsão
de morte, que aparece como esse lugar de resistência à ordem civilizatória em “O
mal estar na civilização”, não define , portanto, uma natureza humana maléfica,
enquanto inversão do moralismo “bem intencionado”. Esta concepção não está
vinculada a nenhuma essência do homem, constituindo-se a partir de um vazio – o
vazio da Coisa – e operando no sentido da destruição das ligações já

34
estabelecidas. A destrutividade autônoma que ele define em o mal estar aparece
como disjunção de laços, dissolução de nexos, recusa das permanências
subvertendo as forças conservadoras. Assim ela atua como força criadora e
produtora da diferenças. A pulsão de vida por outro lado atua no sentido do
reforço dos laços, da união dos indivíduos em grupos cada vez maiores pela
indiferenciação. Ele aponta para das Ding, a Coisa, esse nada que impulsiona o
desejo, esse “mais além do princípio do prazer”.
A falta de objeto determinado faz com que a sexualidade humana seja
perversa por excelência, na medida em que esta ausência abre uma multiplicidade
de vias de satisfação parcial, vias essas que são simbólicas. Pode-se pensar a
destrutividade como algo que indica basicamente esse ponto de ruptura da ordem
simbólica. Para Lacan essa destrutividade não é destrutividade das coisas do
mundo mas tem como função principal desfazer laços e por isso mesmo é
potência criadora “vontade de criação a partir do nada, vontade de recomeçar”.
(1988,153-154). A criação simbólica se dá a partir desse vazio central da coisa.
Em relação a este vazio que possibilita a criação que Lacan se refere a ética da
psicanálise. “A ética da psicanálise está centrada neste vazio, Real, momento
trágico de afirmação da diferença, como ética do desejo” (1988, 338) . Nesse
sentido opõe-se a qualquer tipo de universalização moral. Não há nenhum Bem a
atingir, como disse Freud.
Assim, Lacan distingue a ética do campo do dever, das obrigações pois se
situa além do bem-estar, “ela começa quando o sujeito coloca a questão do bem”
(1988,97), ou seja quando situa o desejo que Freud descobriu como desejo do
incesto, desejo que nada mais é do que um vazio, visto que esse objeto é
impossível. Lacan segue a definição de ação moral kantiana “Faz de tal modo que
a máxima de tua ação possa ser tomada como máxima universal “ (1988,98). Ao
centrar a sua reflexão sobre a ética, Lacan pretende distanciar não só do caráter
prescritivo, em termos de valores e ideais de conduta, que caracteriza a reflexão
filosófica sobre a moral, como também da moral entendida como conjunto de
regras e normas que funcionam como um sistema de coação social (1988, 378).

35
Para ele, a ética está além do sentimento de obrigação, do mandamento, da lei e
da sociedade, não podendo ser resumida à coação social.
No centro da discussão ética situa-se a questão da verdade, e a psicanálise
não se furta a ela, entendendo-a, entretanto, como a verdade do desejo, imperioso
e irredutível. Como tal, é sempre parcial, não toda, vinculada que está à
metonímia do desejo, e, principalmente, particular, apresentando-se para cada um
em especificidade íntima. Esse desejo que não se submete à normatização não
tem o caráter de uma lei universal, constituindo-se na lei mais particular, “mesmo
que seja universal que essa particularidade se encontre em cada um dos seres
humanos” (1988, 35). Ao fazer essa afirmação, Lacan indica a diferença da ética
psicanalítica em relação à reflexão moralista, uma vez que ela parte da
universalidade do desejo justamente para enfatizar a sua particularidade – a
diferença que o constitui – e não como uma forma de universalização moral,
fundada em algum ideal. O que é universal é a diferença, o que coloca a questão
ética em novos termos.
Em Lacan, como em Freud, o desejo está inextrincavelmente vinculado à
Lei que institui o simbólico, ainda que para o primeiro esta Lei indique, mais do
que uma proibição, a presença da impossibilidade. Lacan propõe uma ética da
psicanálise em que a ação humana esteja orientada por uma referência ao
Real(1988, 31). A noção de Coisa indica esse vazio central em torno do qual se
tece a rede significante, objeto perdido, nunca tido, impossível de alcançar, que
comanda o desejo do sujeito. É o índice, ao mesmo tempo, do anseio de plenitude
e da sua impossibilidade. No “Projeto”, a primeira apreensão da realidade pelo
sujeito se dá através do próximo, onde ele aprende a reconhecer. Este
reconhecimento, contudo, está marcado pela divisão do “complexo do objeto”: de
um lado as qualidades, os atributos que podem ser apreendidos pela memória, e,
de outro, esse elemento estranho, até mesmo hostil, que resiste ao
reconhecimento - das Ding -, com o qual o sujeito se defronta na experiência do
próximo. Há, portanto, uma divisão original da experiência da realidade, uma vez
que, na busca da satisfação, ele se depara com algo de enigmático, de opaco, que
o obriga a fazer o retorno, mas que indica também que alguma coisa na realidade

36
pode servir. A apreensão se dá, assim, de uma forma escolhida, marcada por uma
subjetivação onde o que predomina é a fantasia. Essa fantasia é simbólica, e não
há outro modo de constituição da realidade para o homem. Como afirma
Juranville: “É a fantasia que suporta o mundo para e pelo sujeito, pois torna o
mundo ‘interessante’ ao reencontrar em seus diversos elementos o objeto a
(objeto causa do desejo)”. (Juranville, 1987, 170).A experiência humana
caracteriza-se pela distância entre a articulação do desejo e sua realização, uma
vez que a satisfação é sempre parcial. Isto, para ele, constitui-se na mais profunda
experiência moral.
Para Lacan, esse bem, que é inconscientemente buscado nas estruturas
sociais, não existe. O âmbito dos bens é aquele do nascimento do poder, o que
denomina de “serviço dos bens”. A ética da psicanálise está mais além, pois ,
como afirma, garantir que o sujeito possa encontrar seu bem é uma espécie de
trapaça. A ética psicanalítica é uma ética da castração, uma vez que não há
nenhum bem, pois a Coisa não há. Não se trata, entretanto de uma ética da
resignação ou de uma abdicação. Ao contrário, trata-se de, a partir do
reconhecimento da castração, levar o desejo a seus limites, para além dos quais
não há nenhuma ética possível. É nesse sentido que se pode dizer que a ética da
psicanálise, como ética do desejo fundada no referenciamento da ação humana
ao real, não parte de ideais. Ela não propõe regras, nem normas de conduta, mas
prepara para a ação moral, sem contudo, estabelecer os seus caminhos. Como
diz Lacan, ela se detém nesse limiar, sendo apenas o “prelúdio da ação moral”
(1988, 32).
A Coisa designa aquilo que, no ponto inicial da organização lógica e
cronológica do mundo no psiquismo, aparece como estranho e alheio. Em torno
dela giram as vorstellungen (os atributos, as qualidades) que constituem o mundo
subjetivo do inconsciente, organizado em relações significantes e governado pelo
princípio de prazer. Paradoxalmente, a Coisa está no centro do psiquismo e lhe é
exterior, como o primeiro estranho em relação ao qual o sujeito constitui o seu
caminho desejante. É ao nível das relações significantes, e somente aí, que se
pode falar de bem e mal ou de bom e mau objeto. No campo significante a Coisa

37
não é nada, e tudo o que se articula como bom ou mau relaciona-se sempre à
mesma Coisa, diz Lacan. A qualificação do objeto, assim como daquilo que pode
ser considerado pelo sujeito como seu “bem”, opera no nível do que “nunca
deixará de ser apenas representação”, no campo simbólico e imaginário. É nesse
sentido que, no âmbito das culturas, como mostra a antropologia, as noções de
bem e de mal variam, não estando vinculadas a nenhuma essência ou à “natureza
das coisas”.
A Coisa, porém, situa-se em outro nível, além do universo da linguagem,
fora do espaço da representação, definindo-se como ausente, como realidade
muda que regula a trama significante e o caminho do sujeito em relação ao mundo
do desejo. Ela determina a espera de algo “que está sempre a uma certa distância
da Coisa”. Referindo-se ao texto de Freud de 1925 (“A denegação”), Lacan
identifica das Ding à tendência a retornar que caracteriza a orientação do sujeito
humano em direção ao objeto. O encontro do objeto como diz Freud é sempre um
reencontro, uma vez que o objeto absoluto do desejo não existe. O que se
reencontra está irremediavelmente “a uma certa distância da Coisa”, o que impõe
o caminho da repetição. O Outro absoluto do sujeito, real, das Ding não é
reencontrada, mas apenas suas “coordenadas de prazer”. Ele é, assim, a fonte de
todo bem e de todo o mal, em relação ao qual o sujeito se mantém à distância.
Para Lacan, “o sujeito não pode suportar o “extremo bem” ou o “extremo mal”, o
que é o mesmo, que lhe pode trazer das Ding, e por isso se mantém a distância,
segundo a regra do desejo indestrutível, que surge com a palavra bem x mal que
constitui o âmago do moralismo.
A Coisa para Lacan mais do incognoscível, é impossível, pois é um vazio.
Não há o objeto absoluto do desejo e a Coisa só pode ser pensada enquanto
mítica. A noção de Coisa está associada ao conceito de Real como dimensão
radical do significante, uma vez que o surgimento do simbólico, se por um lado
desperta o desejo de plenitude, por outro impõe a experiência da falta de
plenitude. É por isso que a psicanálise não é um idealismo, o que tem
conseqüências em relação à questão ética. A Coisa aparece no mundo, no
próximo, nas coisas, ainda que seja estranha a esse mundo, não lhe pertencendo,

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como um vazio. No texto “ O Estranho” Freud analisa a palavra em alemão
heimlich que vai de familiar, doméstico e do até algo escondido, secreto, obscuro,
inacessível ao conhecimento coincidindo com seu oposto Unheimelich. É,
portanto, o estranho que, de alguma forma, se apresenta no mais familiar. A
elaboração freudiana aponta para a ambivalência da linguagem que, para Lacan
se explica a partir do nó que articula Real e Simbólico. A Coisa, esse núcleo do
Real, ainda que alheia ao mundo se presentifica a cada momento na própria
linguagem, que não é linguagem do ser mas ficção de palavra, palavra que serve
sempre para dizer outra coisa diferente do que ela diz. É daí que Lacan parte para
falar de sua ética.
Ao situar a ética da psicanálise a partir de uma ética elaborada a partir da
referência à Coisa, ao Real, Lacan pretende mostrar no que a teoria freudiana
avança em relação ao pensamento moralista, pois ela dissolve a oposição Bem x
Mal ao situar a Coisa como algo que está para além do bem e do mal. De uma
maneira semelhante, Lacan afirma que no nível do inconsciente, enquanto
estruturado pelo simbólico, o sujeito mente, esta é a sua maneira de dizer a
verdade, daí a importância do mandamento “Não mentirás”, onde se observa o
laço estreito do desejo com a Lei (1985, 132).
A Lei, no sentido que Lacan lhe confere, situa-se em outro lugar, além, ou
aquém, de todo regulamento, como Lei da fala, onde se dá o advento do sujeito. A
Coisa está, assim, na origem da instituição da Lei, enquanto Lei da palavra. Essa
Lei não se resume à proibição, sendo uma lei positiva que ordena o desejo como
verdade parcial, a partir da castração, já que não há objeto absoluto do desejo. É
uma Lei que institui uma distância irredutível entre sujeito e o objeto do seu
desejo, distância essa que é o próprio desejo. As leis morais vêm reafirmar essa
distância, sob a forma paradoxal da proibição de algo que é, na verdade,
impossível. É essa distância em relação a das Ding que a Lei reafirma, que é
condição da palavra, possibilitando o desenvolvimento do desejo humano. A
função do princípio do prazer, segundo Lacan, “é fazer com que o homem busque
sempre aquilo que ele deve reencontrar, mas que não poderá atingir” (1988, 87).
Para Miller a linguagem ocupa, no pensamento de Lacan, o mesmo lugar que o

39
princípio do prazer em Freud, na medida em que institui a distância em relação à
Coisa.
A Lei constitutiva do desejo é a Lei da castração, inscrita na fala, e não na
proibição tal como se apresenta no mito de Édipo. Nesta, o sujeito se vê imerso na
rivalidade imaginária com o pai que interdita a mãe. A mãe não é proibida, mas
impossível, e essa é a verdadeira castração que o Édipo recobre. O objeto
absoluto do desejo, o Bem, a Coisa, não existe, e a rivalidade edipiana dissimula
isso. O pai de que se fala na Lei é o pai morto, como no mito freudiano de Totem e
Tabu, unicamente como função simbólica, o Nome-do-Pai para Lacan. Esse
caráter de impossibilidade que marca a Lei, no sentido que lhe confere Lacan,
afasta-o de Freud, onde a noção de lei indica basicamente a proibição. Lacan
menciona os Dez Mandamentos como destinados a manter a distância do sujeito
em relação à Coisa, como leis da fala, próximo do que funciona no recalque do
inconsciente. Eles não são puramente negativos, demonstrando o lado positivo da
moral, uma vez que essa distância é condição para que subsista a fala e portanto
o desejo.
Outro aspecto associado à noção de Lei – a idéia de transgressão - através
da qual voltamos à Epístola dos Romanos, mencionada no início desse segmento:
São Paulo se torna pecador na medida em que o pecado surge com a Lei (Lacan,
1988, 106). Segundo Lacan, uma transgressão é necessária para ter acesso ao
gozo. É sob forma de Lei que a transgressão se efetiva, fazendo com que o gozo
seja parcial. Assim “...a transgressão organizada forma com o interdito um
conjunto que define a vida social” (Bataille, 1987, 61). Quanto ao mandamento:
“Não mentirás”, através do qual anunciamos a relação íntima entre a Lei e a
estrutura do desejo, Lacan afirma que a mentira é correlata ao recalque e que, em
nível do inconsciente, enquanto estruturado pelo significante, o sujeito mente
(1985, 104). É por isso que ele fala e pode dizer “ Não mentirás” onde está
incluída a possibilidade da mentira como desejo mais fundamental, com isso
dissolve o peso moral da oposição Verdade x Mentira, ao mostrar que a fala como
tal já é uma mentira e que esta é a única maneira de veicular alguma verdade. “ É
que essa fala, ela própria, não sabe o que diz quando mente, e que, por outro

40
lado, mentindo há alguma verdade que ela promove (1985, 104). E é essa função
antinômica, que a fala condiciona, entre o desejo e a lei, que reside o móvel
primordial que faz desse mandamento, entre os outros dez, uma das pedras
angulares do que podemos chamar de a condição humana, na medida em que ela
merece ser respeitada” (Lacan, 1988, 105). Os mandamentos são expressão,
assim, esse nó entre o desejo e a interdição, uma vez que a transgressão
organizada, como diz Bataille, constitui a própria vida social.
Outro mandamento objeto de preocupações morais “Amai ao próximo como
a ti mesmo “escandalizava” Freud pela impossibilidade de ser cumprido”. A
identificação narcísica é a identificação com o outro, em que o eu se constitui em
relação ao outro. “O eu é um outro”, diz Lacan citando Rimbaud. Cabe ressaltar
que é nessa primeira forma de individuação que Lacan localiza a agressividade,
como tendência impressa numa relação fundada no imaginário. A agressividade
aparece assim, como correlativa à estrutura narcísica, manifestando-se na relação
entre o eu e o outro. O mandamento “amar o próximo como a si mesmo”, nesse
sentido, ao fundamentar-se na identificação imaginária, traz em si essa
agressividade. Freud quando fala em narcisismo das pequenas diferenças
exemplifica que por meio das rivalidades existentes entre os povos aparentados, a
formação de “nós” a partir da identificação se dá por oposição a Outros.
No seminário sobre a Ética, Lacan assinala que o gozo contém essa
agressividade, diante da qual se vê o sujeito recuar. “Seria preciso enfrentar que o
gozo de meu próximo, seu gozo maligno, é ele que se propõe como o verdadeiro
problema para meu amor” (1988, 229). A maldade que Freud se refere em “O Mal-
estar na cultura” como atributo do próximo é, para ele, o gozo. Contudo, é essa
mesma maldade que também habita o sujeito, uma vez que nada é mais próximo
dele do que esse gozo, do qual não ousa se aproximar, pois, ao tentá-lo, surge
essa agressividade que retorna sobre ele, impondo um limite no acesso à Coisa. É
nesse ponto que se pode localizar o masoquismo primordial de que se fala Freud.
Para Lacan o gozo insere um paradoxo. Por um lado ele é ponto em relação ao
qual o outro recua, enquanto gozo absoluto. Por outro lado, o gozo possível que
se tem acesso por uma transgressão à Lei, é um gozo parcial, assim determinado

41
pela própria existência da Lei, enquanto Lei da castração. Para Lacan, Freud
resiste em uma questão pessoal ao afirmar seu horror diante do mandamento, ele
toma o mandamento somente como um gozo indizível, insuportável. Freud toma
ao amor como um bem, situando-o assim no nível da rivalidade imaginária com o
outro. Para ele o mandamento indica um gozo e assim ele perde o aceso ao gozo,
gozo parcial de onde surge todo desejo. Como diz Lacan é preciso consentir num
certo gozo para que surja o desejo.
Assim o próximo é ao mesmo tempo o familiar e o estranho, esse outro que
está em mim, mas que não se confunde com o semelhante, que faço à imagem do
meu eu. É nesse sentido que afirma que é preciso distinguir o “próximo” do
“semelhante” e redescobrir o espaço do próximo como tal. É a partir disso, do
reconhecimento pelo homem liberto da sociedade moderna de seu dilaceramento
original, que se pode pensar não só o rompimento da couraça narcísica, com a
abertura para o próximo enquanto diferente e talvez a recuperação de uma
“fraternidade discreta, à medida da qual somos sempre mais desiguais” (Lacan,
1948, 124).
Em 1929 em "O mal estar na cultura" Freud se indaga a respeito do futuro
da civilização. Ele se retém numa passagem a respeito do mandamento judaico-
cristão "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" e questiona a impossibilidade de
realização do mesmo assim como os perigos implícitos nessa enunciação. Freud
desenvolve a reflexão de que a história nos mostra que esse preceito conduz à
intolerância já que é fundada numa fraternidade sobre a segregação - ao
incentivar o amor ao semelhante cultiva-se o ódio ao diferente - a paixão pela
unicidade, pela semelhança exclui qualquer parceiro. Para ele esse preceito nada
mais significa que para amar o outro ele precisa se parecer tanto comigo que eu
acabo amando a mim mesmo nele, ou seja, se esse outro é meu espelho assim é
muito fácil amá-lo e nem mesmo precisaria de um mandamento para fazê-lo. Ora,
porque existe então esse preceito?
Freud afirma que o preceito existe em função da maldade do próximo.
Exclama que seria um belo ideal amar ao próximo mas que os muitos esforços da
civilização em nome dele não conseguiram surtir grande efeito. Ele afirma "É

42
sempre possível unir entre si pelos laços do amor uma massa maior de homens,
sob a condição de que restem outros fora dela para receber golpes" (1930, 68). É
nesse sentido que o homem de Freud reúne grande parcela de agressividade e a
bondade do ser humano não é inata. Esse recuo de Freud se faz a partir do que
se encobre em tal mandamento - a maldade do próximo. Freud se indaga sobre a
maldade a partir de então, e isso que ele vê no próximo segundo Lacan ,
"remeteria para algo no interior do próprio sujeito que, sendo-lhe extremamente
íntimo, lhe é, contudo, estranho" (Julien, 1998, 10). Para Lacan esse é o gozo, a
maldade que o sujeito vê no outro mas não a reconhece em si mesmo, pois
sendo-lhe extremamente íntimo, lhe é estranho. Isso é, aquilo do qual não
ousamos aproximar do outro é o nosso próprio gozo, onde o outro se faz diferente
deixando de ser o semelhante ao qual é possível amar. “Esse trecho coloca o
gozo em articulação com o gozo desse outro, meu semelhante, isto é, o coloca no
centro da questão da relação especular com esse semelhante (...) levanta a
questão da articulação entre aquilo que o sujeito pode apenas ignorar de si
mesmo e aquilo que ele nota e ataca em seu semelhante” (Laznik-Penot, 1992,
9).
É aí que para Lacan o gozo se faz central na obra freudiana, esse estranho
gozo do próximo como obstáculo ao meu amor. Freud já havia discorrido sobre as
duas faces do outro com o qual nos relacionamos, desse próximo que devemos
amar como a nós mesmos. O outro como semelhante no qual nos reconhecemos
segundo as regras do bem e da identificação; e o outro próximo, um "outro
inomeável, estranho e estrangeiro a mim mesmo, a coisa Freudiana" (Julien, 1998,
10). "Para além do limite da identificação, entramos num terreno em que não
temos nenhuma indicação sobre o que o outro quer de nós, sobre seu bem e seu
mal querer. Defrontamo-nos com o enigma do nosso próprio gozo (...) É
impossível saber sobre o gozo do Outro" (Julien, 1998, 10), pois em última
instância não há fusão, especularidade possível, impossível fazer de dois um. A
diferença é mantida. O amor é a ilusão dessa partilha de gozo, ele se fundamenta
em um mal-entendido. “O movimento pelo qual o Outro se exclui do semelhante
por sua maldade é uma exclusão que me é íntima: exclusão interna, extimidade.

43
Essa alteridade que me escapa e me escandaliza é de uma proximidade de mim
mesmo" (Julien, 1998, 52) Quando Lacan iniciou seus estudos em Freud,
debruçou-se sobre o aforismo "o inconsciente é estruturado como uma
linguagem". Até este momento tudo se tratava de significante na experiência
analítica. Porém o que Lacan retoma em Freud é que ele diferencia a die Sache e
das Ding, enquanto a primeira é representável pois se encontra no registro do
significante, a segunda é inominável, assim ele conclui que nem tudo é
significante. É nesse ponto que Lacan procede numa evolução introduzindo o
conceito de gozo.
"A lei do bem extrai sua força da identificação com o outro que é meu
semelhante, e revela sua fragilidade no ponto mesmo em que essa identificação
fracassa, com a revelação do gozo do Outro" (Julien, 1998, 47) Assim sendo, o
bem que quero para o outro é aquele mesmo que quero para mim e quero que o
bem do outro se realize através de mim. O problema se dá na medida em que o
Outro não é esse outro semelhante, ele recusa o que quero para ele. Daí decorre
duas maneiras típicas de resistir. Numa rompo a relação e me retiro pois o Outro
não quer minha boa vontade e vou em busca do semelhante com quem posso me
identificar. Ou mantenho firme minha vontade deste bem para você, forço o Outro
contra a sua vontade a realizar esse bem a ponto de me tornar mal com relação
ao próprio gozo. “O gozo é um mal pois comporta o mal do próximo. Lacan, em
sua leitura do Mal estar na Civilização de Freud, aponta que o que faz barreira ao
mandamento de amar o próximo como a si mesmo é o horror diante da maldade
que habita o próximo. Mas daí, ela habita também em mim diz ele. Não ouso me
aproximar de meu gozo, meu âmago” (Péchy, 1999, 18).
A psicanálise aponta como saída, assumir a maldade, em si próprio. "Mas
como é possível ser tão vizinho de sua própria maldade a ponto de nela encontrar
o próximo?" (Lacan, 1998,801) A partir do reconhecimento desse mal, a
psicanálise fundamenta sua ética. Qual o caminho que permite reencontrar o
próximo, esse outro estranho a mim, mas tão íntimo? O que a psicanálise ilumina
como caminho é o sujeito fazer-se próximo de seu próprio gozo, pois é somente
ao reconhecê-lo que é possível renunciá-lo. Essa proximidade seria a do nosso

44
próprio gozo nocivo ao outro e como dizia Freud, aquilo que nos surpreende em
certos atos que não reconhecemos... Mas que são nossos.
Nesse sentido, encontrando o vazio central em seu íntimo estabelece-se
um ponto, não de uma fonte de angústia ou paralisação, mas um ponto que indica
o sentido de um começo, de uma criação. A partir de então, a sublimação se faz
presente delineando a ética psicanalítica. A sublimação abre uma via de
reconciliação com o Outro na sua estranheza deixando de se guiar sobre aquilo
que é semelhante no espelho e alimenta o narcisismo. Assim, a psicanálise
inventa um caminho que permite ao sujeito fazer-se "vizinho o bastante da sua
própria maldade para aí encontrar o próximo" (Lacan, 1998,801). Essa orientação
implica num desafio que é o da ética do bem dizer.
No seminário 7 trata-se do gozo a partir da identificação com o gozo do
Outro. O campo do gozo aqui é o campo do Outro, da relação ao semelhante.
Trata-se do gozo de um bem, passível de disputa na relação ao semelhante. É o
gozo legislável. Existe um outro gozo que não o da rivalidade, mas a partir da
identificação com o gozo do Outro, o semelhante. Visa-se não somente o Outro,
mas o gozo que se supõe no parceiro, isto é, segundo Freud o gozo no sadismo.
Ao alienar-se na imagem do semelhante, acede-se ao gozo identificando-se a ele,
gozar desde o lugar do outro, é distinto de aliená-lo de seus bens e privá-lo de seu
gozo. Trata-se de gozar de um gozo e não de gozar de um bem. A identificação ao
semelhante, faz com que o sujeito retroceda em direção do gozo. Pelo viés da
definição de gozo como satisfação da pulsão, o gozo deve ser situado no campo
do Outro. Ele pode ser compreendido como realização da demanda do Outro, o
que situa, de saída, como gozo do Outro. E talvez possa ser alcançado apenas
enquanto tal. Por esta razão de estrutura o gozo está interditado ao ser falante, o
que equivale dizer que o sujeito está alienado em relação ao seu gozo. O sujeito
está fundamentalmente alienado em relação ao seu gozo. O gozo é sempre o
gozo do Outro.
O sujeito se constitui primeiramente no campo do Outro; seu desejo é o
desejo do Outro na medida em que é enquanto outro que deseja, sua demanda é
demanda do Outro, desta maneira, seu gozo também se constitui no campo do

45
Outro. Aquilo que está interditado, e que deve permanecer insatisfeito, é a
realização do gozo no a nível do sujeito, pois no nível do Outro, não parece
proibido prover a satisfação de seu gozo.

46
III. MEDIAÇÃO

3.1. MODELOS DE MEDIAÇÃO

A mediação não possui um terreno próprio enquanto campo profissional.


Ela se beneficia da transdisciplina, embora para alguns autores possa ser
considerada uma inter-disciplina (direito, psicologia, comunicação entre outros) ou
até mesmo multidisciplinar. Embora existam diferentes modelos de mediação, a
prática da mediação depende muito da natureza do conflito e da experiência e
formação do profissional. Assim, a natureza do conflito e a capacitação do
mediador é que definem diferentes estilos de prática da mediação. A tática de um
mediador diplomata para resolver conflito entre nações certamente será muito
diferente da tática de um mediador psicólogo para resolver problemas familiares
referente à guarda de filhos.
Nos Estados Unidos temos quatro modelos de mediação. O modelo
tradicional, modelo tradicional-linear (Harvard), é proveniente do campo
empresarial e se aproxima mais da negociação. Ele é centrado na satisfação das
partes e busca chegar a um acordo. Os quatro princípios dessa técnica são:
separar as pessoas do problema, focalizar os interesses e não as posições, criar
opções para o benefício mútuo, insistir no uso de critérios objetivos. Tem-se como
causa do conflito somente uma causa ao invés de várias. Também não é levado
em conta como determinante do conflito, o contexto no qual ele se produziu. Como
método se considera importante a expressão no começo do processo para que as
emoções possam sair e não impeçam adiante o processo. Seria como uma
catarse. As partes se comprometem a deixar de fazer algo que faziam sem que
seja trabalhado as mudanças na relação e sim o conteúdo da comunicação.
No início do movimento, a mediação tinha como objetivo promover acordos
e resolução das disputas. Com o tempo, observou-se que a mediação tinha outros
resultados importantes além dos buscados. Os americanos Bush e Folger
centraram-se na busca destes efeitos e desenvolveram o modelo transformativo,

47
centrado no aspecto relacional entre as partes. Neste, a principal meta é a
modificação das partes. O acordo é um desenlace possível. Acreditando que o
conflito é uma oportunidade de mudança, e não algo negativo, busca desenvolver
o empowerment (fortalecimento) das partes no qual as pessoas potencializam
seus recursos que permitem ser um protagonista em sua vida e ser responsável
por suas ações. Também promove-se a postura de consideração pelo outro
(regocnition), isto é, o reconheciento do outro como parte do conflito
(reconhecimento do co-protagonismo). Assim, transformação é alcançada através
de uma revalorização pessoal e reconhecimento do outro. O método é a
causalidade circular que foca transformar os padrões de interação que mantém o
problema ao invés de focar em eliminar a causa, o foco não é o indivíduo mas o
problema. Não existe uma causa única. Existem ainda outros modelos de
mediação como por exemplo o modelo circular-narrativo de Sara Cobb, que
busca tanto as modificações na relação como o acordo. Seu método articula
muitas técnicas do campo da teoria sistêmica provenientes do campo da terapia
familiar sistêmica. Ela utiliza a comunicação circular na qual se considera as
pessoas e a mensagem que se transmite trabalhando-se em cima dos conteúdos
e dos elementos pára-vebais da comunicação (corporais, gestuais, etc) e também
utiliza a causalidade circular. Ela permite com que as diferenças sejam
manifestadas até certo ponto para que o sistema se torne mais flexível ao
introduzir alternativas que não puderam ser previstas. Como conseqüência
constrói-se um lugar legítimo para as pessoas dentro da situação (legitimação) e
também permite mudar o significado da história “verdadeira” que as partes
construíram e que impedem de ver o problema a partir de outra óptica.
Para aplicação das técnicas devemos nos perguntar qual modelo é mais
vantajoso para o conflito que se apresenta, ou até mesmo podemos mesclar os
modelos.

48
3.2. CONCEITOS E PRINCÍPIOS DA MEDIAÇÃO

Os conceitos e princípios que serão explicitados levam em conta o modelo


utilizado no presente caso de mediação. Usamos uma variedade de técnicas
oriundas de dois modelos a mediação transformativa e circular-narrativa.
A mediação é um procedimento de resolução alternativa de disputas (RAD).
Ela tem como objetivo principal facilitar a comunicação entre as partes em conflito
para que se chegue a um possível acordo, ou pelo menos para que as partes
voltem a se comunicar tendo uma relação satisfatória. Ela é um processo breve e
focado em questões específicas e pontuais: conflitos, disputas e questões de
interesse. Ela Inclui o passado na medida em que ele importa para a elucidação
da seqüência do conflito. A questão do futuro é muito específica na medida em
que ao focá-lo obtemos o objetivo das partes no processo de mediação. Não há o
trabalho do passado para que se possa ter um futuro mais ameno, isto seria
demanda para uma terapia. É por esse motivo que a mediação trata de focar o
futuro e ver que recursos disponíveis as partes têm para transformar a situação
indesejada em direção aos pedidos. Não é tarefa do mediador trabalhar recursos
pessoais para que as partes possam fazer um acordo, apesar que como
conseqüência do trabalho isso possa ocorrer. O eixo gira em torno da
reorganização das dinâmicas interpessoais, questões de comunicação e atitude.
A mediação como técnica, ultrapassa os métodos tradicionais de disputa
uma vez que um dos objetivos centrais dela é, através da explanação dos pontos
de vistas, dos diferentes valores e crenças e também da ampliação da discussão,
fazer com que as partes sejam capazes de autodeterminar a solução para o
conflito. Segundo Schnitman (1999) a teoria sobre a resolução de conflitos
subjacentes à mediação "baseia-se na aceitação do fato de que os seres humanos
são entes racionais e capazes de resolver suas diferenças (...) se o terceiro que
intervém exerce coerção sobre uma ou ambas as partes para que cheguem a um
acordo, não realiza uma verdadeira mediação (...) tal coerção interfere no direito
de cada um à autodeterminação, valor que sustenta e deve sustentar a profissão"
(p. 190). Portanto a mediação ocorre através de um terceiro facilitador ao mesmo

49
tempo que neutro. O conceito de neutralidade no papel do mediador
extremamente importante e, portanto será discutido mais profundamente em
"Atribuições do mediador".
Schnitman (1999) contextualiza a técnica. Ela usa o termo
autocomposição como um dos princípios básicos. Neste, as próprias partes
ditam a solução do conflito, ou seja, elas são protagonistas no processo. É por
isso que uma das premissas da mediação é "a participação de pessoas com
aptidão para resolver seus próprios conflitos" (Schnitman, 1999, p. 198), além do
mediador dever ser capaz de aplicar técnicas para driblar as dificuldades dos
integrantes em transformar o conflito, certa parcela de responsabilidade no
sucesso da mediação também é das partes.
É por esse motivo que o mediador nunca deve ser alguém que detém o
poder de decisão, de juízo ou de opinião; mas sim um profissional limitado dentro
de seu dever, que conduz a sessão de modo que os interesses e necessidades
das partes possam ser manifestados acima das posições disputadas e de maneira
não-adversial. Nesse sentido para Cachaputz (2002) a mediação possibilita uma
reconstrução, tornando o processo mais ameno, pois não há a mera aplicação de
uma ordem coativa, mas sim uma decisão mútua. Cobb no prefácio de "Mediación
- conducción de disputas, comunicación y técnicas" (Suares, 1996) faz uma
comparação entre o modelo de resolver disputas de Marx e dos Behavioristas com
o modelo da mediação. Para a teoria marxista e behaviorista uma intervenção
para resolver conflitos é fracassada caso não se erradique a condição causal.
Esse modelo de resolução de conflitos é linear e não circular. Contudo, observa-se
nos modelos de resolução de conflitos, que os sistemas e os indivíduos não são
estáticos como no modelo linear, ao invés disso são interativos e evolutivos; o que
leva o novo modelo de resolução de conflitos a centrar o foco nos significados e
não nos comportamentos. Cobb, afirma que a maneira de explicar o fracasso em
resolver o conflito nesses modelos criticados produz exatamente a mesma
epistemologia que favorece o conflito. O conflito entre os seres humanos sempre
existirão, fazem parte da natureza humana e são necessários à evolução da
humanidade. É por isso não podem ser erradicados. A mediação propõe

50
transformar essa conotação negativa de conflito facilitando o diálogo entre as
partes e despertando sua capacidade de se entenderem sozinhas. As partes
incorporam novas maneiras de resolução de conflitos, onde ambos constroem
suas próprias soluções e passam a funcionar com mais esta alternativa em suas
vidas, através de uma meta-aprendizagem. Ao final do processo de mediação as
partes aprendem a regular seus conflitos nas relações.
O princípio da Imparcialidade - neutralidade coloca que a inclusão do
terceiro cria um novo sistema para que modificações possam ser produzidas. O
mediador não deve favorecer uma das partes para a segurança da totalidade do
grupo. Por isso ele não pode atuar seus preconceitos, crenças, valores e alianças.
Este terceiro neutro está incluso no sistema mas com um papel diferente dos
papéis das partes, é um terceiro que intervém para diminuir a hostilidade entre as
partes. Já a Eqüidistância é a habilidade do mediador em assistir aos disputantes
expressarem seu lado do caso. Algumas vezes é necessário que o mediador se
alie temporariamente com uma das partes para poder elaborar suas posições mas
é um processo ativo (e não uma atuação) pelo qual a parcialidade é utilizada para
criar simetria. Significa estar em igual distância das partes, sem criar alianças.
Outro princípio é a Equidade na qual o mediador realiza manobras para criar um
contexto de equidade, justo entre as partes. Ele deve ajudar as partes a se
expressarem, a serem protagonistas e para isso pode apoiar uma das partes para
dar força e esta conseguir contar como vê o conflito. Nesse sentido ele pode pedir
para que uma dar partes aguarde em silêncio enquanto a oura tenta fazer seu
relato
A Mediação, portanto está ensejada dentro de um novo contexto visto que
rompe com os antigos paradigmas nos métodos de resolução de conflitos. Cabe
ao mediador, como uma das figuras que garante a eficiência da técnica, que saiba
as suas atribuições e tenha as habilidades requeridas uma vez que a mediação
pressupõe um mediador consciente de seu trabalho para ter êxito como técnica.

51
3.3 ATRIBUIÇÕES DO MEDIADOR

Apesar de termos ressaltado os cuidados do mediador em relação ao


princípio da autocomposição de Schnitman (1999), devemos deixar claro que ele
deve atuar com iniciativa suficiente para garantir uma explanação extensa do
conflito a ponto de permitir com que os nós importantes sejam resgatados para
que as partes sejam capazes de construir novos valores e significados orientando
assim o processo rumo a resolução do conflito.
O fato da mediação ser analisada aqui como uma transdisciplina
caracteriza de modo delicado as atribuições do mediador. Ela é considerada um
campo para além das disciplinas de psicologia e direito, diferentemente de
interdisciplina que seria uma teoria no interior destas duas mencionadas. Isso
significa dizer que o mediador não é nem terapeuta que trabalha com as questões
intra-pessoais, nem advogado que defende as partes. A mediação cuida de
problemas relacionais e não psíquicos (inter-relacional e não intra-psíquico).
Assim ao mediador não cabe orientar, assessorar, decidir, influenciar, interpretar,
aconselhar, defender, julgar, opinar. Ele apenas deve aproximar as partes
garantindo ao máximo a comunicação “utilizando suas habilidades expressamente
adquiridas para esses fins, quebrando o gelo entre os disputantes, tirando-os de
suas posições rígidas, abrindo-os, enfim, para soluções criativas" (Schnitman,
p.190). Cabe ao mediador somente interrogar e esclarecer o problema, criando e a
ajudando criar opções para que se chegue num acordo.
Para Benjamin (Mnookin et al, 1997) o mediador deve tolerar a
ambiguidade, deve ser capaz de operar menos formalmente e a meio da
confusão. E muitas vezes, algumas profissões tradicionais como o direito,
interferem na capacidade do mediador resolver conflitos complexos visto que o
modelo de papel das profissões tradicionais são altamente inadequados para o
manejo deste tipo de técnica. O mediador nunca deve desejar um controle do
dilema que se apresenta sendo que rara vezes acede a solução absoluta dos
problemas. Ele deve buscar a "transformação da construção da realidade que

52
trazem as partes na disputa e modificar o contexto a fim de permitir perspectivas
alternativas". (Mnookin et al, 1997, p.17).
A disputa pode persistir mesmo quando existe uma enorme quantidade de
possibilidades de resolução disponíveis se as barreiras para a resolução do
conflito não são adequadamente exploradas. Cabe tanto ao mediador saber a
manejar a técnica no seu melhor sentido e rumo a resolução do conflito como até
mesmo saber identificar quando não é possível mediar em certos conflitos. Em
que sentido cabe ao mediador saber superar estas barreiras se as partes devem
se dispor também a fazê-lo?
O poder do mediador é algo que é muito discutido. Segundo Mnookin
(1997, p.19) quando duas pessoas procuram uma terceira neutra é por que elas
confiam a este o poder de induzir as partes que dêem informação sobre seus
interesses, necessidades, prioridades e aspirações subjacentes que não
revelariam a seu adversário. Assim ele pode ampliar a questão em circunstâncias
em que as partes não podiam fazê-lo e assim promover uma atmosfera de
resolução conjunta de problemas ajudando as partes a ir mais adiante de posturas
políticas e recriminações por equivocações do passado e considerar a mudança
das possíveis ganâncias de uma resolução justa de disputa. Sendo assim, a
relação profissional cliente é desequilibrada porque o cliente interage com o
profissional pois este tem mais conhecimento. "As fontes desse poder residem
tanto em seu verdadeiro saber profissional quanto nos elementos adicionais que o
cliente unilateralmente soma e atribui" (Schnitman, 1999, p.193). O poder apesar
de estar grande parte conferido ao mediador, dentro da ética da profissão é
preciso saber quando usá-lo e quando limitá-lo."Esse profissional tem de reafirmar
o poder em relação ao procedimento, ao mesmo tempo em que abre mão do
poder em relação ao conteúdo" (Schnitman, 1999, p193).
O mediador não deve deixar com que as forças desequilibrem em
decorrência de uma das partes ter mais acesso à informação, conhecimento ou
ainda ter maior poder sobre o outro, capacidade de articulação, persuasão,
expressão, maior interesse em mediar; porque senão a diferença das forças
transformará o conflito em disputa. E nem mesmo deve deixar com que as partes

53
atribuam ao mediador o poder de decisão tornando-se dependentes dele ou ainda
que fiquem pouco ativas e consequentemente pouco abertas ao processo. Enfim,
o mediador "deve controlar o processo, mas as partes devem ser donas do
conteúdo e do resultado. Por isso esse profissional tem de reafirmar o poder em
relação ao procedimento, ao mesmo tempo em que abre mão do poder em
relação ao conteúdo" (Schnitman, 1999, p.193).

3.4. O PROCESSO DA MEDIAÇÃO

O profissional designado inicia primeira etapa da mediação, abertura ou


pré-mediação, explicando de que se trata a técnica, quais os limites, as
características, os objetivos, como é o contrato, assim como o papel do mediador.
Deve haver um ambiente adequado para que não seja interrompido ou cause a
impressão de que não é um ambiente seguro para falar dos problemas. Tendo
explicitado as regras da mediação após as partes concordarem com o seguimento
do processo, inicia-se a mediação. Esta fase inclui a apresentação do objetivo da
mediação, o procedimento, as regras, dúvidas e o incentivo. O mediador pode
tentar gerar motivação caso uma das partes não mostre muito interesse em
mediar. Geralmente ela é feita em várias etapas que duram cerca de uma hora.
Também o mediador pode chamar as partes juntas ou separadas conforme achar
mais adequado ou até mesmo marcar sessões com uma parte somente (sessão
de caucus).
A segunda etapa consiste no relato das histórias por cada parte reduzindo
as tensões e permitindo que o mediador obtenha dados sobre os antecedentes e
desencadeantes da disputa, sobre a rigidez das posições e interesse subjacentes.
Nesta etapa o mediador deve estar atendo ao equilíbrio de poder e não na
hierarquia da relação. Ele deve aclarar os diferentes tipos de poder e as
conseqüências que geram. O mediador não deve colocar-se em proteção do mais
frágil, mas promover o seu encorajamento e envolvimento. O mediador deve
também identificar o que é manejável ou não em relação ao desequilíbrio das

54
relações e quando for necessário suspender a mediação (exemplos de
desequilíbrio de poder: falta de informação, presença de violência ou intimidação,
deficiência física ou mental, doenças psiquiátricas, etc.).
O mediador conforme o tipo de mediação que aplica possui diversas
ferramentas práticas. No exemplo do modelo de circular-narrativo de Sara Cobb,
baseado no construtivismo social, as perguntas circulares são perguntas que
geram abertura de diálogo pois obtêm maiores informações e respostas mais
longas. Não demandam respostas fechadas do tipo sim e não. Existem as
perguntas informativas que permitem que o mediador saiba quanta informação
tem cada parte ou ainda para que ele aumente seu saber acerca da disputa que
trouxeram as partes a mediação. Exemplo: “Quando começou para você essa
disputa?“ Há também as perguntas Re-contextualizantes que permitem as partes
desestabilizarem as idéias esteriotipadas e empobrecidas que têm do conflito
permitindo que a parte modifique a história que traz. Exemplo: “Ele pegou a
criança pois quer roubar meu filho de mim para se vingar.” “Poderíamos pensar
que esta foi a única maneira que ele viu de conseguir ver o filho de vocês já que
vocês não se falam?”.
A conotação positiva é uma técnica que ressalta as características ou
qualidades positivas permitindo que os feitos ou pessoas possam ser valorizados
em seus aspectos positivos, ou seja, para que possa ver as qualidades do que foi
feito ou dito. Exemplo: “Ela fica muito em cima dos nossos filhos. É exagerada.
Eles ficam bem só comigo, sou um pai melhor. Ela sempre quer dar remédio para
a criança ao mínimo resfriado.” Mediador: “Entendo sua preocupação, mas não
podemos pensar também que ela é uma mãe muito zelosa com os filhos?” Já a
legitimação consiste em transformar a posição do narrador vítima naquele que tem
o poder de fazer escolhas, visto que esta posição pode oferecer muitas
resistências a conversa. Exemplo: “Ele que começou tudo, eu só reagi. Eu não
tenho muito o que falar. A mediação depende dele querer.” Mediador: “Muito bem,
como você mesmo disse, você reagiu. Que outras formas de comunicação você
poderia ter proposto a ele para impedir que a situação chegasse nesse ponto?”
Ainda temos a reformulação na qual pedimos a parte que diga de outra forma o

55
que acabou de dizer. Dizer algo de maneira diferente pode fazer uma grande
diferença pois permite entender desde outro contexto o problema. “A nossa filha
está desse jeito por culpa dele pois ele sempre fala que vem buscar ela e acaba
não vindo”. “Você acha que essa maneira de falar é favorável a uma aliança com o
pai de sua filha? Que outra maneira poderia passar essa informação para ele?”
“Fiquei esperando você passar para pegar ela o dia todo, ela se trancou no quarto
e foi chorar. Eu não sei mais o que fazer, fico muito preocupada com a cabeça de
nossa filha cada vez que isso acontece.”
A Equipe Reflexiva de Tom Andersen visa colocar as partes em situação de
escuta. A equipe é composta geralmente por três ou quatro pessoas que ficam
fora do campo da mediação, a certa distância dos mediadores e das partes. A
equipe escuta a sessão inteira e mantém um diálogo interno consigo mesmo. No
momento em que é chamada pelos mediadores a falar ela faz reflexões sobre a
conversação e nunca sobre as partes visando outras formas diferentes das já
tentadas de descrever ou explicar o que ouviu. Ela permite a inclusão de
diferentes versões dos feitos, explicações, atos. As partes podem comentar sobre
o que refletiram a partir do que a equipe externou.
A história alternativa tem como objetivo construir ao longo das sessões de
mediação uma versão do conflito mais flexível depois da história inicial ter sido
desestabilizada permitindo que as partes busquem novas aberturas. Não é uma
história qualquer e tampouco a verdadeira. Ela é construída a partir de todas as
reflexões realizadas acerca das contribuições, dos objetivos, das seqüências , das
personagens dos temas importantes, etc. è um momento de criatividade. Não é
uma versão mais verdadeira do que as outras, mas apenas uma forma diferente
que é mais ampla de conceitualizar a disputa.
Na terceira etapa é estabelecida uma agenda, verificada as alternativas das
partes e o início de uma conversa de negociação. O mediador deve levantar os
pedidos, interesses em comum, delimitar os desacordos, identificar recursos,
recapitular itens discutidos e nomear as soluções já tentadas para resolver o
problema. Nesta etapa, o clima é de colaboração e não mais competitivo. O
medidor deverá apenas incentivar a conversa e cuidar do controle do processo.

56
A quarta etapa consiste no fechamento do processo através da elaboração
de um documento que esboça o processo todo, as intenções e decisões dos
participantes. È um primeiro documento que visa clarear os pontos de acordo para
que depois passe por um exame legal. Esse documento funciona como um acordo
de cavalheiros e tem o poder de ritual que substitui o poder da justiça e restaura a
credibilidade na palavra. Após a elaboração do documento as partes são dirigidas
aos respectivos advogados caso haja necessidade de homologação do acordo.
Algumas vezes não é necessária a elaboração do documento. Existem casos que
passam por um período de experiência do acordo, nesses, a mediação faz o
acompanhamento (exemplo: casos de violência). Não chegar a um acordo pode
ser considerado a uma possibilidade exitosa. Reconhecer a impossibilidade de
acordo é um passo importante.

3.5. O ENFOQUE TRANSDISCIPLINAR DA MEDIAÇÃO

A mediação no presente trabalho se caracteriza pela transdisciplinaridade.


Existe uma linha muito tênue entre as profissões de direito e psicologia na prática
da mediação, pois a maioria dos profissionais que atuam na área vem destas duas
áreas de conhecimento, o que tem como conseqüência que os mediadores
tendem a guiar o processo de acordo com a profissão de origem.
A mediação se tomada como transdiciplina não é um processo que deve
ser combinado com outra área de atuação, ela tem seu corpo teórico próprio
assim como seus aspectos éticos e práticos estabelecidos. Alguns autores
afirmam que ela tem sua forma básica de intervenção cujos requisitos funcionais
são constantes mas cuja forma varia.
Kolb e Rubin em Mediación: una respuesta interdisciplinaria (Mnookin,
1997) discutem os distintos conceitos de mediação que se pode encontrar nas
diferentes disciplinas. Sendo assim, abordam a mediação segundo a natureza
interdisciplinar. Cada modelo de mediação terá suas características definidas de
acordo com a formação do mediador. A discussão de Schnitman (1999) se
envereda por outro lado. Assim como estes autores ela discute as barreiras das

57
diferentes perspectivas na mediação porém não afirma que a mediação pode ser
tomada sob o âmbito de diferentes áreas do conhecimento. Para a autora a
mediação se concentra como técnica, ética e prática em seu corpo próprio,
portanto as áreas de conhecimento do mediador nunca devem ser, senão um
complemento ou acessório desta. Schnitman afirma: "o campo da mediação luta
para se transformar em uma profissão unificada, com um corpo definido de
conhecimentos, habilidades e padrões próprios; embora a mediação tenha surgido
e se desenvolvido a partir de raízes multidisciplinares, essas raízes enriqueceram
a profissão, mas também conseguiram confundir seu sentido de identidade; e na
forma como o mediador vê sua profissão, tem um papel importante o próprio
conhecimento como tal, mas também há elementos que variarão dependendo de
sua profissão de origem" (Schnitman, 1999, p.191).
Um mediador que tem como origem de profissão a psicologia tem certas
tendências em torno da forma de conhecer e abordar as questões da psicologia.
Porém um mediador apesar de ter que saber entender o que ocorre na relação
entre duas pessoas, ele não deve interpretar ou abandonar sua metodologia na
resolução de conflitos. Uma questão emocional pode até bloquear o processo de
mediação, mas não cabe ao mediador lidar com esta questão, talvez encaminhar
para um trabalho psicológico caso haja abertura ou interesse. "Não é
responsabilidade do mediador resolver esses conflitos; reorganizar a dinâmica
interpessoal é tarefa do terapeuta, e negociar acordos por meios de questões
específicas é tarefa do mediador." (Schnitman, 1999, p.194) Se o mediador se
incube na tarefa de resolver certas questões como terapeuta o êxito da mediação
está comprometido, ele deve sempre se preocupar com a resolução do conflito em
relação por meio de questões específicas.
Os mediadores que provém do campo de direito também apresentam
algumas tendências na mediação de acordo com a profissão. Normalmente
conduzem a mediação em termos legais, como uma negociação porque se
sentem mais seguros em um contexto conhecido. Ocorre que o pensamento
jurídico-legal está relacionado ao sistema judicial que tem como finalidade a
adjudicação e não o acordo. Os advogados correm o risco de se tornarem os

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protagonistas do processo e as partes acabam excluídas do mesmo. O poder de
resolução do conflito passa das partes ao mediador-advogado. As partes não
participam do processo de ampliar as opções de resolução, fazendo que com que
só os pontos jurídicos sejam tocados. Ao final, a mediação fracassa, pois seu
conceito de conflito vai além dos termos jurídicos. Sabemos que as necessidades
de uma pessoa envolvida num conflito envolvem questões muito mais complexas
e amplas as que o direito propõe resolver. "O que acontece é que os conflitos
entre as pessoas não são de direito, mas de interesses" (Schnitman, 1999, 196)
"predizer soluções legais ou incluir fatos em normas legais são funções que
excluímos do papel do mediador. O núcleo da mediação em seu sentido original e
amplo concentra-se na facilitação da negociação mediante a criação de um novo
contexto de comunicação de apoio e no emprego de outras habilidades que não
envolvem a aplicação do direito" (Schnitman, 1999, p.198).
De acordo com a profissão de origem do mediador teremos certas
tendências e formas de abordagem. Sendo assim o conhecimento que um
mediador tem de oura área deve ser apenas um complemento e nunca pode
substituir a mediação tal como ela se afirma. É importante ressaltar que o
mediador deve tanto ter a habilidade de lidar com as emoções e relações
humanas como também deve ter conhecimentos sobre as leis vigentes. Sendo
assim a mediação não é nem a prática da psicologia nem mesmo do direito.

3.6. A MEDIAÇÃO NO FORO DE SANTANA

A equipe de mediadores é composta por uma dupla de co-mediadores


(sempre 1 psicólogo e 1 advogado) que atua dentro do campo, isto é, faz a
mediação entre as partes; e uma equipe reflexiva, composta por mais duas
pessoas, que atuam fora de campo (afastados do campo).
As partes são enviadas ao setor de mediação pelas Varas da Família e
Sucessões, Infância e Juventude e Cível. Elas são obrigadas a comparecer no
setor para receber a pré-mediação (explicação do que é mediação) onde podem
optar por aceitar o trabalho ou não. O mesmo pode ser encerrado a qualquer

59
momento caso uma das partes queira. Neste caso o processo é retomado pelo
juiz. Sendo assim, a participação é voluntária.
Os mediadores não recebem o processo nem mesmo tem acesso aos
documentos. Para a mediação, o processo pouco importa, o trabalho que será
feito ocorre através da explanação das versões que cada um tem e de como
percebeu a seqüência do conflito, isto é, o processo é versado em cima das
narrativas que as partes apresentam.
As partes podem ser remetidas ao setor em qualquer parte do processo,
Isto é, antes ou após a contestação, após a juntada de laudo pericial, após
proferida a sentença ou acórdão. A seleção de casos para mediação ocorre
através de casos em que a relação de continuidade entre as partes após o
processo é muito importante. Isso ocorre até mesmo nas varas cíveis. Podemos
dar exemplo de vizinhos que mantém uma disputa que pode chegar a violência ou
até mesmo homicídio. Neste caso, temos uma relação continuada após o
processo, isso significa que uma das partes descontentes com a decisão judicial
pode iniciar novamente uma seqüência de conflitos, o que pode gerar uma
escalada de violência que culmine em prejuízos maiores. A mediação neste caso
pode ser preventiva com relação a questões de violência. Mas existe também nas
varas cíveis ações de despejos entre familiares. Neste caso é comum as famílias
se dividirem em dois para apoiar cada parte. Os prejuízos emocionais em termos
de laço afetivo são muito acentuados. Muitas vezes ocorre também que um pedido
de reparação de danos é em realidade um pedido de reconhecimento de ofensa
por uma das partes. A mediação pode em casos como este dar uma oportunidade
de escuta à parte e gerar transformações na forma das pessoas pensarem os
conflitos. Na Varas de Família a situação entre as partes é sempre de
continuidade e por esse motivo a mediação é altamente indicada para quase todos
os casos. Muitas vezes a sentença do juiz não dá cabo aos mesmos problemas
que geraram o início do processo pois estes são mais complexos e sempre são
acompanhados de problemas subseqüentes a sentença. Esse fato é muito comum
nas ações filhotes em que uma parte não estando satisfeita com a decisão judicial
abre uma nova ação e assim por diante.

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Enfim, os casos onde o pedido, a motivação, o desejo das partes encontra-
se muito distante da formulação legal, dificilmente uma decisão judicial poderá
regular o conflito. Num dos casos que atendemos, um ex-marido pedia a guarda
dos filhos. A ex-esposa enfurecida depois que ele abriu o processo passou a
impedir de vez de ver os filhos. Ao iniciar a mediação perguntamos: “Você pede a
guarda, não é?” Ele imediatamente respondeu que não. Que ela era ótima mãe e
jamais tiraria os filhos dela. Mas que o processo era somente uma maneira dele
mostrar a ela que ele também era pai daqueles filhos e que queria que ela
assumisse que havia colocado um homem para morar dentro da casa que ele
havia construído para morar com ela e os filhos. Outros casos não tão explícitos
como este, somente ao longo da mediação, revelam as verdadeiras causas para a
abertura de um processo, processo este em que a outra parte ao ser intimada diz
chegar como “soco”. Bom... mas era essa a intenção! As partes emperram a
comunicação e optam por uma disputa judicial para não desfazer o conflito como
se pudessem concluir que o outro é exatamente aquilo que ele afirma ser.
Ao aceitarem a mediação, as partes assinam um termo de compromisso no
qual a alusão à conduta criminosa ou violenta, maus-tratos ou abuso de menores;
serão relatados aos juizes. No mesmo termo consta que os encontros de
mediação se dão sob sigilo, com exceção das hipóteses mencionadas acima. E
ainda que os mediadores não podem ser convocados como testemunhas em
processos. Ao final dos encontros o juiz apenas recebe um oficio indicando se
houve ou não consenso, ou se houve consenso parcial. As partes são
encaminhadas novamente para o juiz para homologarem o acordo ou retomarem o
processo.
O modelo de mediação neste Foro segue a mediação transformativa com o
uso de algumas técnicas da mediação circular narrativa como por exemplo a
equipe reflexiva.
No trabalho de adesão a mediação, isto é, na pré-mediação explicamos as
informações e regras conforme abaixo:
A mediação é uma possibilidade de conversa para que vocês possam
decidir o que é melhor para vida de vocês. Ninguém sabe mais do que vocês o

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que é melhor para a vida de vocês, nem juiz, nem advogado. O juiz toma uma
decisão sem poder escutar a história de vocês. Depois de uma decisão judicial o
conflito ainda permanece muitas vezes pois a resolução não foi trabalhada dentro
de cada um de vocês. Ela foi imposta, o que vem de fora é engolido a seco, é
artificial. O que pode gerar inúmeras ações a partir daquele que está insatisfeito.
Através da comunicação, de uma conversa respeitosa podemos chegar num
acordo ou numa nova relação que vai gerar paz, saúde e economia de dinheiro. O
enfoque na mediação não é o acordo, mas sim que consigam voltar conversar,
pois conflitos sempre existirão e aqui vocês têm a oportunidade de aproveitar os
desentendimentos para transformação de cada um. O conflito pode ser entendido
como um mal, mas aqui é uma oportunidade de mudança. Todo ser humano
enfrenta conflitos em todas a suas relações. Uma briga boa é a oportunidade de
conversarem ao invés de se agredirem ou desistirem. A mediação não é terapia
pois tratamos de pedidos focados, objetivos. O passado será retomado na medida
em que for importante para esclarecer o conflito. A probabilidade de um acordo
dar certo é maior quando são vocês que escolhem. Se ao final chegarem a um
acordo poderão fazer uma minuta com seus advogados para o juiz homologar.
Vamos explanar alguns princípios do nosso trabalho:
Boa Fé - Querer de fato levar a mediação para frente, querer se entender com a
outra parte independente da dificuldade. Isto significa ter atitudes condizentes na
sessão e fora da sessão. Por isso enquanto estiverem tentando a mediação o
processo ficará suspenso. Não adianta prometer novas atitudes, sair daqui e fazer
B.O., chamar polícia ou entrar com novas petições.
Sigilo - Os mediadores não podem ser testemunhas de processo. Não
acompanhamos o processo, nem mesmo, relatórios ou provas, nem temos contato
com os juizes. Aqui não se trata de provar quem está certo mas sim que cada um
seja capaz de escutar e de conversar com o outro num tom cordial. Isso para
evitar certas atitudes que possam aumentar ainda mais o conflito. O conteúdo do
que é discutido aqui deve ficar entre vocês para não gerar discórdias com as
pessoas próximas de vocês dificultando mais ainda a mediação. Pode-se falar
sobre os sentimentos aqui gerados com as pessoas. Os mediadores fazem

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anotações para nortear nosso trabalho mas serão destruídas após o término do
trabalho.
Cooperação Colaboração – Para dar certo a mediação é preciso a colaboração e
esforço de vocês pois o interesse é de vocês . Nós somos guardiões do processo
mas não do conteúdo. Vocês vão decidir o que é importante ser discutido nos
encontros. Não decidimos nada, nem damos opinião. Também não damos
assistência jurídica para isso podem falar com seus advogados.
Trabalho voluntário – Você participa se quiser. Dizer que quer a mediação não
necessariamente significa querer. Ela envolve muito esforço. Percebemos quando
alguém de fato não quer pois tenta manipular, sabotar, criticar, julgar. Se não
quiser participar não acarretará em nenhum prejuízo, o juiz apenas receberá um
papel sabendo dizendo se houve ou não consenso. Não entregamos nenhum
relatório com o que foi falado aqui. Caso iniciem a mediação e desistirem no meio
também não haverá problema.
Falar em nome próprio – Evitar acusações e para isso falar em nome próprio. È
diferente dizer: “Sua filha ficou chorando pois você nunca cumpre o que promete.
Você não tem jeito” e dizer: “Fiquei esperando você ir buscar nossa filha ontem e
fiquei magoada. O que aconteceu?”. Cada um tem suas verdades, fatos,
sentimento e eles devem ser respeitados pois é a maneira que cada sente o
mundo. As falas devem ser respeitosas e cada um terá tempo igual para expor o
que pensa. Quando alguém ataca o outro nem ouve o que é dito pois já está
pensando em como vai devolver.
Duração – A mediação dura em média de 5 a 10 sessões de acordo com a
necessidade de cada caso e toma uma hora por sessão.
Pontualidade e Assiduidade – Devem chegar no horário e se tiverem problema
avisar com antecedência na recepção para agendar um novo horário e também
para não causar desconfiança na outra parte. É preciso também vir com
constância para que o processo seja efetivo.
Equipe Reflexiva – Temos uma equipe fora do campo que chamamos para fazer
algumas reflexões para poderem pensar melhor e sair do impasse. Vocês serão
chamados para falar o que pensaram sobre o que a equipe disse.

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IV. CASO DE MEDIAÇÃO

Este caso de mediação tem como ação a Destituição do Poder Familiar


cujas partes envolvidas são Elisa e Yuichi versus Atila. Foi encaminhado pela
vara de família e sucessões do Fórum Regional I de Santana.
Elisa e Yuichi são casados e têm três filhos (Mara, 20 anos; Flávia, 17 anos;
Vladimir, 13 anos). Atualmente detém a guarda das duas filhas de Atila (Ingrid e
Lara) cunhado de Elisa. O casal abriu uma ação de Destituição do Poder Familiar
justificando maus tratos e negligência paterna. Atila perdeu a esposa Clara, irmã
de Elisa, de tumor cerebral em 2001. Em seguida, Atila pediu que a cunhada Elisa
cuidasse por um tempo de suas duas filhas pois estava sem condições
psicológicas e financeiras para fazê-lo. Ao tentar retomá-las, foi instaurado um
processo contra ele no qual foi imediatamente determinada a passagem da guarda
à Elisa, enquanto o processo seguia curso. Atila é amasiado há 6 meses com
Fernanda.

Data: 01/12/05 - Primeiro Encontro


(Atila senta-se de modo a não ter que olhar para o casal. Está muito
vermelho e tenso. Fala sempre focando com o olhar para as mediadoras evitando
cruzar o olhar com as outras partes, mantém uma postura rígida. O casal senta-se
junto no sofá. O clima é muito tenso).
Atila: Gostaria de iniciar a reunião com a pergunta - O que vocês querem
com as minhas filhas se são tios?
Mediadora 1: Gostaríamos de perguntar antes qual o contexto do
processo?
Atila: Tenho duas filhas, Ingrid de 9 anos e Lara de 7 anos.
Elisa: Lara tem 6 anos e não sete!
Atila: Mas ela vai fazer 7 logo mais. Então ela tem mais para 7 do que 6
anos. Isso não vem ao caso. Eu era casado com a irmã dela, Clara que é falecida
há 4 anos. Teve câncer no seio e em seguida atingiu o cérebro. Faz dois anos e

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pouco que as meninas moram na casa dos tios. Até iniciar o processo moravam
comigo. Foram morar com os tios pois tive uma dificuldade de emprego depois
que a mãe faleceu. Eu tinha ajuda só das empregadas pois minha família mora no
Chile. Eu também tinha dificuldade de conseguir empregadas. Depois de dois
anos de dificuldade, as coisas ainda pioraram. Estes senhores aqui
presentes faziam visitas à minha casa e ofereceram ajuda para cuidar delas.
Aceitei a ajuda deles. Fui ingênuo. Foi tudo premeditado. Pedi para ficarem
com as crianças de março até o final do ano de 2003, até conseguir uma
empregada fixa e com vínculo. Eles foram consultar seus 3 filhos se eles
aceitavam. Mas depois de 2, 3, 4 meses fizeram um documento que disseram que
iria facilitar cuidar das crianças. Falaram com o advogado e fizeram uma
autorização. Esta foi manipulada e virou uma mudança de guarda
consensual. Ia terminar em dezembro de 2003 . Eu não sabia do alcance
deste documento. Foi assinado em setembro de 2003. Mas aí decidiram
quebrar o acordo e pedir a guarda das crianças. Falaram coisas a meu
respeito. O juiz acatou e deu para eles a guarda. Antes disso eu visitava as
meninas a cada 15 dias ou quando eles ou elas tinham vontade. Íamos uns
na casa do outro. Depois que abriram o processo me senti traído. As visitas
passaram a ser negadas. O juiz negou as visitas. Grande culpa é do advogado
de vocês que não distingui autorização de mudança de guarda. O juiz também é
culpado pois não me escutou.
Mediadora 1: Vamos agora dar tempo igual para Elisa e Yuichi contarem
um pouco como entendem o que aconteceu.
Elisa: Clara conheceu Atila com 15 anos. Ele tinha 30, era casado e tinha 3
filhos. Largou a esposa. Minha mãe era contra. Foi uma confusão, a esposa dele
ia chorar lá em casa. Eu até cuidava dos filhos dele deste primeiro casamento.
Ficaram juntos e quando Clara engravidou da Ingrid, ele a expulsou de casa.
Ela foi morar na minha casa, ai quando a filha nasceu ela foi morar na casa de
nossa outra irmã. Eles se agrediam muito na frente da criança. Quando ela
brigava com ele, ela ia para a casa da nossa mãe que era na frente. Aí ela
engravidou de Lara. A empregada disse que ele tacou álcool nela grávida e

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disse que ia colocar fogo. Aí dessa vez ela foi morar na casa da minha mãe.
Voltaram a ficar juntos na época do ano novo. Lara nasceu. Foi nosso pai que a
levou no hospital para ter o bebê e chamou o Atila. Mas aí com nascimento da
segunda filha ela voltou de novo para casa de Atila. Três dias depois que o bebê
nasceu ela teve convulsão. As crianças ficaram na casa da nossa mãe.
Descobrimos um tumor cerebral. O tumor era maligno e o médico disse que teria 7
meses de vida. Depois de operar ela continuou na casa de Atila com as crianças.
E mesmo operada eles se pegaram de tapa. Toda hora era isso. Todas as
internações e cheques calções foi eu e meu pai que pagamos. Comprávamos
comida e fraldas, ele não dava dinheiro. Ele dizia para eu parar se não ia
levar flores para mim no cemitério. Aí as meninas foram morar com a avó e
nós (as irmãs de Clara) que passamos a sustentar as meninas. Clara gastava
todo o dinheiro no shopping pois sabia que ia morrer. Em Janeiro de 2001 entrou
em coma, ela viveu depois do tumor um ano e meio. Não voltou da coma e
faleceu. Nós pagamos o velório e ele apareceu só as 11 h da manhã, sendo que o
enterro era as 14 h. As crianças ficaram com ele. Ele trouxe um parente do Chile
para cuidar delas, juntou também o cunhado do primeiro casamento e a mãe da
ex- mulher dele. Todos ficaram morando na chácara dele. As crianças ficaram
isoladas e esse parente dele era alcoólatra. Ele não deixava a gente ver as
crianças, nós dizíamos: “Estão acostumadas conosco e perderam a mãe”. Só
depois de um tempo voltamos a ver as crianças a cada 15 dias durante 8 meses.
As crianças vinham com herpes, corrimento, sujeira e piolho. Levamos no
médico e ele disse que elas estavam em péssimas condições. Lara estava com
falta de ar e falou para médica que o pai batia e tinha medo dele. E que queria
ficar com a tia. Ele mudava de empregada toda hora. Trancava as meninas no
quarto escuro. Uma empregada as jogou na piscina, outra Atila tentou abusar e
outra ele contratou e sumiu deixando ela com as crianças uma semana.
Todas as empregadas falavam isso dele. Às vezes ele deixava vermos as crianças
e às vezes não. Nem levou roupa para elas ficarem no reveillon. Largou lá com a
gente por 17 dias. A casa dele estava fechada e eu tinha que viajar dia 10.
Ninguém sabia onde ele tava. Levei as crianças para a minha viagem na praia. Aí,

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quando voltei, elas não queriam mais ir com o pai. Ele proibiu a avó de ver as
crianças e ela resolveu entrar com um processo. Á avó ganhou direito de visita.
Fiz as meninas voltarem para a casa do pai. Foi Atila que sugeriu de
ficarmos com as meninas. Aí pensamos: “Criança não é objeto!”
Meus filhos adoraram as meninas. Clara era muito zelosa com as meninas.
Aceitamos a proposta de Atila, mas Yuichi queria conversar com ele. Aí meu
marido disse: “Criança não é assim, não pode largar e depois pegar quando
quiser. Envolve sentimentos. Se der certo, se elas se adaptarem elas ficam
para sempre.” Atila disse que queria casar de novo para ficar com as
meninas. Yuichi disse que não ia ser fácil. Pegamos psicólogo para as
meninas e cuidamos também da parte escolar. Ele exigiu que a avó tirasse o
processo, aí nós sugerimos um termo consensual de guarda para nós e em
compensação a minha mãe tiraria o processo. Ia ser bom para nós para
facilitar as transações com as meninas. Aí o processo foi extinto com o trato da
guarda temporária. Meu filho teve ciúmes mas não fazíamos diferença de nossos
filhos e das meninas. Comprávamos tudo para todos. O juiz determinou uma
assistente social para ir em minha casa em novembro de 2003. Aí eu disse que
queria a guarda definitiva. Atila não quis dar. Elas eram problemáticas e hoje
estão bem. Ele visitava a cada 15 dias e às vezes ele ficava de final de
semana com elas.
Ele não gosta da minha família. Ele foi na apresentação da escola da Lara e
não queria sentar-se do meu lado pois eu pedi a guarda. Em 2004 ele começou a
falar mal de mim para as crianças. Bruxa, ladra. Ele vinha buscar elas em
casa e me xingava quando chegava. Atrasava para devolvê-las e devolvia
sem sapato, sujas, voltavam com a mesma calcinha. Ele tinha várias
namoradas. Uma delas punha a roupa das meninas nos próprios filhos. As roupas
que eu comprava sumiam. Certa vez ele demorou para devolver as meninas e
Ingrid ligou chorando que estava na casa de alguém e que o pai tinha proibido de
ligar para mim. A advogada dele me ligou e falamos para ela que ele tinha que
devolver as crianças senão íamos pegar um advogado. Sugerimos
regulamentação de visita, pois elas estavam traumatizadas e não queriam ver

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o pai. O juiz determinou que ele as veria a cada 15 dias. Em janeiro deste ano
me chamou de ladra vaca quando foi buscar as meninas e me bateu dentro
do carro. Acelerou o carro para me arrastar. Entramos com suspensão de
visitas. Mas tinham que ir ver o pai por enquanto. Ingrid tinha o histórico de que
alguém a molestou, não sei quem. Disseram à ela que é gostoso enfiar o
cabo de dente dentro da xoxota dela. Aí o juiz falou: “Não tem guarda
definitiva, tem Destituição do Poder Familiar.” Acho isso grave. Sempre o pai
foi visitar, eu deixava.
Yuichi: A mediação foi proposta pelo Atila. (em tom ameaçador). Você deve
vir proposto a conversar, sem atacar pois se não vamos embora. O início da
história dele é verdade. Mas se quiser pedir a guarda das meninas já
colocamos que não vamos dar. É melhor falar logo pois aí já encerramos.
Você deveria apreender com a gente.
Mediadora 2: Estamos todos aqui para ouvir um pouco como cada um
percebeu e sentiu este momento tão difícil e poderem, expondo seus sentimentos,
diminuir a hostilidade e começarem uma conversa. Se você, Yuichi, colocar
limites e condições logo de início estaremos fechando para uma conversa. O
pedidos virão mais para frente. Precisamos primeiro ouvir porque cada um
tem a versão que tem da história. É importante tentar se colocar no lugar do
outro, isso abre novas possibilidades e idéias.
Yuichi: É verdade, me desculpa. Eu não tinha percebido. Mas deixei
claro à ele que as meninas não eram objetos e que não poderia fazer como
quisesse. Eu disse à ele: “Use seu tempo para conquistar as meninas e nos
conquistar. Se você quiser fazer mal à elas é só impedir de verem a avó pois
são loucas pela avó”. Eu trato elas como sobrinhas, digo que o pai é você e
falo que queria tomar cerveja com você.
Atila: Pois para mim minhas filhas estão mal com vocês. A sua moral e
ética são diferentes da minha e eu não as aprovo. Eu concordei somente 8
meses delas ficarem com eles.
Mediadora 2: Que interessante, apesar de ver aqui um conflito, vejo que
todos tem o mesmo objetivo, dar a melhor educação possível para Lara e Ingrid.

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Ambos querem a mesma coisa – o bem das meninas. Vejo um pai, uma tia e um
tio que amam muito as crianças e se perguntam como vão minimizarem os
sofrimentos que elas passaram em função da morte da mãe. Como unir as forças
de vocês 3 ao invés de disputarem quem é a melhor opção? Como desfocar do
conflito, da disputa entre vocês e focar num bem em comum – as meninas?
Atila: Concordo que todos querem o bem, mas não com os mesmo
métodos.
Elisa: Ele dá bichos toda hora para as meninas e elas querem ficar
com os bichos mas na minha casa não dá. Ele nem pergunta se eu posso.
Atila: Eu queria fazer um pedido. Incluir minha esposa. Moro com ela
há seis meses. Ela tem contato com as crianças e poderia estar falando
como eu me relaciono com elas.
Mediadora 1: Achamos muito válido e importante seu pedido. Mas a
relação com ela em comparação ao tempo de relação que vocês 3 tem é mais
recente. Vamos ouvir vocês um pouco mais e aguardar um momento ideal de
introduzi-la. Tudo bem Atila? E vocês também concordam com a presença dela?
Elisa: Tudo bem pois eu falo mais com ela do que com ele. Gosto dela.
Acho uma boa idéia.
Atila: Eu gostaria de discutir as férias delas para a próxima sessão pois o
final do ano está chegando e precisamos resolver.
Elisa:Ta.

Data: 07/12/05 – Segundo encontro

Elisa: Eu queria começar falando pois tenho um assunto urgente. A


formatura da Lara é agora em dezembro. Queríamos convidar o Atila.
Atila: Vocês não entendem que é meu direito de ir lá e vocês se
colocam como os que permitem eu ver minhas filhas.

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Mediadora 1: Entendo o que você possa ter pensado a partir do convite
dela, mas será que ela não pode estar propondo uma maneira de se
reaproximarem?
Atila: Não sei... acho difícil achar que eles podem ter boas intenções.
Elisa: Ele dá animais para provocar a gente. Sabe que na nossa casa não
cabe. Temos já um cachorro que é de todos em casa. Ingrid apareceu com uma
tartaruga numa lata suja que ele deu. Tivemos que comprar o aquário e criar. Aí
demos. Aí chegaram com dois pintinhos que viraram galinhas enormes e tiveram
que dar para a avó. Eles faziam coco em tudo. Aí a Ingrid apareceu com um
coelho e tive que ficar com o coelho que elas colocam dentro da casa. Pago até
hoje 50,00 por mês para uma pessoa cuidar dos coelhos pois elas não deixaram
dar. Eu também não achei certo pois perderam mãe e vão perder animais de
estimação? Fora os pássaros, peixes que ele deu e que não pudemos ficar e que
temos que visitar. Ele deu também um filhote de Puddle que resolvi que não íamos
ficar pois era muito bagunceiro e já tínhamos um cachorro. Aí ele deu outro
Puddle. O cachorro que elas tinham na casa do pai o Atila sumiu com ele. Elas
ficaram traumatizadas. Ele diz que o cachorro fugiu. Vai saber o que ele fez com o
cachorro, né? Fora que ele deu um coelho para uma e não deu para outra e elas
começaram a brigar. Não pode fazer isso com elas.
Mediadora 2: Apesar de tudo você não reconhece a intenção dele ser um
pai presente na vida das filhas através destes animais de estimação?
Elisa: Me desculpa mas eu não reconheço isso não. Ele vê as meninas
quando dá na telha.
Mediadora 2: Mas então vamos ouvir o que ele tem a dizer sobre isso
tudo que você contou. Você não quer saber?
Atila: Eu reconheço que animal é difícil mas saio com as meninas e elas
se agradam com os animais. Falei para elas falarem com a tia antes. E disse que
se você não concordasse eu ficaria com os animais na minha casa.Comprei
um coelho pois não tinha dinheiro para comprar dois ao mesmo tempo. Eu
disse que daria um coelho na semana seguinte para a Lara. Mas aí como ela

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preferiu o Puddle ao coelho na semana seguinte eu dei então o cachorro para ela
e o coelho para a irmã.
Mediadora 1: Como vocês não se comunicam! As crianças fazem a
comunicação entre vocês. Conhecemos bem as crianças, o que será que elas
fizeram com as informações que deram? Atila, você achou que elas iriam dizer
que a tia não quer animais? Vejam que se comunicarem através de um terceiro
pode fazer o conflito aumentar.
Atila: Pela mágoa eu não consigo falar com eles. Eu sinto que minhas
filhas foram tiradas de mim sem uma causa real.
Mediadora 2: Vamos retomar o que entendem como objetivo da
mediação.
Atila: É a saúde das crianças que é ao lado dos seus pais. Eu seria
intransigente se dissesse que só há mediação se eu ficar com elas. Mas não
posso concordar com certos princípios. Eles têm que ceder um pouco.
Mediadora 1: Todos terão que fazer pedidos de outra forma. A
transformação terá que ser de todos pois a responsabilidade, e não a culpa,
pela situação que vivem é de vocês.
Atila:Eu gostaria de pedir novamente para falarmos sobre as férias pois
também acho que uma nova decisão judicial causaria mais danos as meninas.
Não vou ser intransigente de pedir a guarda mas quero conversar sobre a
educação delas.
Mediadora 2: Vamos logo abordar esse tema. Mas antes eu gostaria de
saber o que foi decidido pelo juiz?
Atila: As férias e aniversário foram negados pelo juiz. Quero regular pois se
não vai cair no dia que não tenho direito de visita. E também quero vê-las a cada
15 dias.
Elisa: Quero falar mais uma coisa importante. A Fernanda, mulher do Atila,
ligou hoje lá em casa para a Lara e falou que o cachorro quer ir morar com ela na
casa da tia. Ela ficou mal pois falamos que não pegaríamos o cachorro. Não é
mais para fazer isso. O Atila também combina com as meninas de levar elas para
passear sem falar comigo. Combinou hoje. Ela não tem aula mas tem ensaio da

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escola. (Abre uma pasta e mostra os boletins das duas meninas). Elas tiravam
notas muito baixa quando estavam com o pai. Agora são uma das melhores
alunas.
Mediadora 2: Aqui vocês têm a possibilidade de conversar,
experimentar e combinar o que quiserem. Independente do que foi decidido
judicialmente. Ninguém melhor do que vocês para saber o que querem da vida
de vocês e do juiz. O que decidirem juntos será respeitado.
Elisa: Mas aí tem outro fato. A psicóloga não recomendou pernoite com o
pai pois a filha não fica bem com o pai a noite. Devem ter contato com ele mas
não quero que durmam. Por isso não quero que elas viajem. E elas também não
querem. Tentamos convencer.
Yuichi: Acho importante elas passarem as férias com o pai. Mas temos a
impressão de que vocês falam mal de nós quando estão com elas.
Mediadora 1: Que bom que você disse tenho a impressão e não disse
tenho certeza. Assim você deixa outras possibilidades. Você pode perguntar
diretamente à Atila o que ocorreu ao invés de saber por terceiros.
Elisa: Tá bom então eu vou perguntar sobre coisas que elas falaram.
Reclamaram que viram duas mulheres beijando na boca no seu sitio. Disse
também que viu o pai transar com a namorada e aí ele mandou ela de volta para o
quarto para ler gibi. E que também numa festa ela foi jogada por um adulto na
piscina e quase se afogou.
Mediadora 2: Deve ser complicado para as meninas amarem tanto 3
pessoas que se hostilizam. Como será que elas se sentem com vocês, Atila,
Yuichi e Elisa, quando estão na casa do outro que vocês não gostam mas que
também é muito importante para elas? Elas devem sofrer muito. É comum as
crianças contarem que sofreram, que foram desagradadas por essa outra pessoa
que vocês não gostam para agradá-los. É complicado uma criança ter que dividir o
amor de vocês. Se gosto do papai como faço pois a tia e o tio não gostam e
depois vou retornar para a casa dos tios? Vou me sentir traidora.
Atila: Elas também falam coisas de vocês mas sei que não é verdade pois
sei que são bem tratadas. Eu poderia falar para vocês mas não quis criar caso.

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Percebo que elas distorcem os fatos. Algumas coisas que vocês falaram
aconteceu mas de um jeito totalmente diferente. Se elas estão com as notas tão
boas é porque não estão traumatizadas como vocês dizem. Elas trazem um ar de
felicidade.
Elisa: É porque você não vê como elas relutam em ir para sua casa.
Chegam a chorar. Dizem que não querem ver o pai. Que ele bate e maltrata. Que
ficam sozinhas.
Atila: Vocês trazem uma imagem horrenda do pai. As coisas não ocorreram
dessa forma. A psicóloga nunca me chamou e eu acho errado um tratamento que
nunca incluiu o pai delas. Eu não concordo com essa psicóloga que escolheram.
Eu vou querer escolher uma para elas.
Mediadora 1: E se você a conhecesse antes de recusar o tratamento dela
para sua filha?
Elisa: Ela também nunca nos chamou depois que fomos a primeira vez lá. A
linha dela é assim. Ela trabalha só com a criança. Às vezes falo com ela por
telefone. Mas eu também tentei ir lá e ela disse que não dava no momento mas
que mais tarde ia chamar todos. Então não é nada com você. Ela tenta
estabelecer uma relação de confiança com a criança.
Mediadora 1: O que podemos estabelecer sobre os combinados para
treinarem para a próxima sessão depois de cada um ter feito seu pedido?
Atila: Eu vou ligar para a psicóloga para ir conversar com ela.
Medidora 1: E vocês?
Elisa: A gente pode antes ligar para ela para ela chamar ele. Nas férias se
ele quiser, ele ligando antes pode passar para pegar elas e passar todo o dia com
elas. Só peço para avisar antes pois as vezes temos compromissos.
Atila: Não aceito. Isso é uma esmola. Tenho que implorar para ser pai.
Mediadora 2: Veja que hoje é apenas a segunda sessão de mediação.
Talvez seria importante aceitar esse primeiro passo deles para que voltemos a
conversar sobre pedidos mais abrangentes mais para frente. Isso não será
definitivo, é somente até a próxima sessão. Vocês precisam reconquistar a
confiança uns dos outros.

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Atila: Mas estou sem férias com elas há 2 anos. Isso é um absurdo.
Mediadora 2: Você está olhando a metade do copo vazia e não a que está
cheia. Sei que é difícil aceitar por hora algo que não é exatamente seu objetivo.
Mas talvez tenha que ter um pouco mais de paciência para conseguir aquilo que
quer. Está muito ansioso. Como você disse, está há dois anos sem férias com
elas, e acha que em duas sessões vai resolver um problema de dois anos?
Entendo seu lado, mas é preciso confiar que as coisas poderão ser diferentes se
todos vocês quiserem. Eu vejo aqui 2 tios que querem uma participação maior
do pai na vida das filhas, ou seja, eles querem o mesmo do que você. Isso te
acalma?
Atila: Vamos ver... vamos ver...
Elisa: O natal elas podem passar com o pai. Mas acho melhor
perguntarmos na frente dele se elas querem ir com ele?
Mediadora 2: Vocês tem certeza que essa é a melhor maneira de escolher
as coisas? Como se sentirão as meninas diante da berlinda? Essa é uma
decisão que acabe aos adultos tomarem e sustentarem ao invés de colocar
para duas crianças tão pequenas decidirem. Não acham?
Elisa: Nossa como tem coisas que a gente não percebe. Eu nunca tinha
pensado nisso.
Atila: Tudo bem eu aceito os passeios sem pernoite desde que voltemos a
discutir isso na próxima sessão. Ainda acho essa oferta muito pouco.
Mediadora 1: E como vão organizar essa decisão? Como informarão as
crianças?
Elisa: Ele pode me ligar em casa sem problemas e a gente combina. Isso é
tranqüilo.
Atila: E não combinar através das meninas!

Data: 08/02/06 – Terceiro Encontro

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Elisa: Pensei em cumprir somente o combinado aqui mas não foi assim. O
natal passaram com o pai e foi ótimo. Elas contaram que se vestiram de mamãe
Noela. Ele respeitou muito as crianças. A Ingrid quis voltar e a Lara quis ficar. Aí
ele trouxe de volta a Ingrid. Tenho um bom contato com a mulher dele apesar dele
ter reservas conosco.
Yuichi: Novamente aconteceu o problema do cachorro. Lara disse que
vocês tinham dito que era para ela trazer o cachorro para nossa casa. Não é justo
pois o cachorro da Ingrid nós não deixamos ficar.
Atila: Eu não concordo com a visão dela do natal. Foi uma armadilha que
prepararam para mim.
Elisa: Ele nem foi atrás da psicóloga como disse que ia fazer. Cadê o
interesse dele? Ser pai não é só passar no Mc Donalds e levar para passear.
Mediadora 1: Lembram das regras da mediação? Sem acusações. Vocês
estão disputando quem tem o poder maior de ferir o outro. Se ele joga uma pedra,
eu dou um tiro e aí o outro vai jogar uma bomba. Mas quem terá a coragem de
com palavras gentis desarmar o rancor do outro ao invés de devolver? Quem será
o primeiro corajoso a levantar a bandeira da paz? Devolver é muito fácil, todos nós
sabemos. Mas esse caminho vocês já conhecem e sabem onde vai parar. Por que
não tentar algo novo. Vamos!
Atila: Bom... nas férias elas dormiram no sítio...
Mediadora 2: Você não reconhece portanto a intenção deles de tentar se
entender com você? Deram, por conta própria uns passos a mais do que
acordamos aqui.
Atila: É que elas foram impositivas com eles que elas queriam dormir em
casa. Só por isso que foram e não por que eles deixaram. Depois na segunda
semana nós conversamos e combinamos que elas iam ficar mais uma semana.
Foi razoável as férias.
Elisa: Conta do Natal.
Atila: Elas confeccionaram as próprias roupas de mamãe Noela. Eu comprei
tudo para fazermos juntos.

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Mediadora 1: Mas que Natal maravilhoso! Quer dizer, fazia dois anos que
não passava férias com elas e nem pernoite. E agora me conta esse Natal
criativo?
Atila: (orgulhoso) É... elas se divertiram muito. Ficaram muito felizes.
Mediadora 2: Eu vejo que tudo isso foi fruto do que você plantou. Como é
possível conquistarmos certas coisas de maneiras que não havíamos imaginado.
Atila: Agora eu queria que as meninas fossem para o Chile visitar minha
família.
Elisa: (olha com olhar de desconfiança, faz silêncio e em seguida diz) Eu
acho ótimo pois a mãe dele é uma pessoa muito bondosa, maravilhosa.
Atila: A Lara vem falando que quer voltar a morar comigo. A Ingrid já tem
um temperamento diferente e não quer. Lara quer viajar de avião para o Chile pois
nunca foi. Vou pagar a passagem para ela e o resto da família vai de ônibus.
Elisa: Mas ela é muito pequena para isso. E vai dar para uma e não vai dar
para a outra? A Ingrid também vai querer.
Atila: Falei com ela e ela quer ir com o pai de ônibus.
Elisa: Eu acho bom a viagem inclusive pois se dão bem com a Fernanda,
mas me preocupo com a segurança dela. Não se preocupe pois elas sabem que
você é o pai delas. Tem outro assunto que eu queria falar. A psicóloga disse que a
Ingrid é muito agressiva e madura para a idade dela e que não quer mais atender
ela. Eu acho que o Atila tem que participar da psicóloga. Ela é muito difícil. Ficou
um ano e meio com essa psicóloga.
Atila: Eu acho que vocês tomaram decisão sem falar comigo sobre levar
elas no psicólogo. E também de batizar. A psicóloga nunca me chamou. Não
posso acreditar que elas não têm armadilha contra mim sendo que tiraram
minhas filhas. Querem elas por pirraça, vingança e interesse econômico.
Não concordo com estarem com minhas filhas. É uma traição. Não consigo
vê-los com benevolência.
Mediadora 1: Como usar o passado para pensarem como vão fazer
diferente no futuro? Antes vocês não se falavam, o clima estava muito hostil. Até

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que ponto vale a pena levantar todas as questões do passado? Estamos aqui para
todos se transformarem. Como pode ser daqui para frente?
Atila: Eu acho pouco o que tenho até agora.
Mediadora 2:Vamos ver que pedidos cada um gostaria de fazer.
Atila: Eu moro na frente dos avós maternos mas só quero que o casal aqui
presente leve minhas filha lá se eles forem juntos. Não quero elas sozinhas lá. O
avô tem ficha criminal de não sei quantas páginas.
Elisa: Ai que mentira, que absurdo!
Atila: Ele faz transação comercial dentro de casa com constante ameaça e
agressão verbal. O avô tem um jeito de se comunicar gritando e ofendendo. Não
quero minhas filhas num ambiente como este, sozinhas.
Elisa: E os vizinhos reclamam que seus filhos do outro casamento usam
drogas!
Mediadora 1: Mas pela fala de Atila percebo que mesmo com estas
ressalvas ele acha importante elas verem os avós. Não é?
Atila: É verdade que elas gostam muito da avó. Elas podem ver os avós.
Apesar deu achar que a avó fala mal de mim para as meninas. Elas me contam o
que a avó fala de mim. Ela diz: “Não vai para a casa de seu pai”.
Mediadora 1: Você não poderia pedir para a Elisa conversar com a avó das
meninas para dizer que vocês estão na mediação e que ela (avó) também pode
ajudar nesse momento de trégua?
Atila: Acho bom sim.
Yuichi: As meninas só quiseram ir morar com os tios pois o pai proibiu delas
verem a avó. Os avós não são como ele descreve.
Atila: Eles me agridem quando vou lá. “Você perdeu suas filhas!” E além do
mais o contato com os avós está ligado à imagem que elas têm do pai.
Yuichi: Os avós deixam elas atravessarem a rua e ir na casa do pai quando
elas estão lá. No entanto quando estão com o pai elas vão escondido na casa dos
avós para falar tchau.
Mediadora 1: Então fica o combinado que vocês conversarão com os avós
para amenizar a situação?

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Elisa: Tudo bem.
Atila: Que venha dos avós a postura de reconhecimento do pai e respeito.
Permitirei que quando elas estiverem em minha casa que elas possam ir até os
avós. Tem outro assunto. Eu também não liguei para a psicóloga porque tenho
medo que se eu for lá ela faça um laudo contra mim. Eu não confio nela. Acho
bom ela ir na psicóloga pois precisa.
Mediadora 2: Você pode ir até ela somente para conhecê-la. Mesmo
porque ela não tem a mesma função do psicólogo do Foro que faz um laudo para
o juiz. Ela somente trata a sua filha.
Atila: Sendo assim eu posso ir nela e fornecer algumas informações. Já que
estamos terminando, eu queria falar na próxima sessão sobre incluir a Fernanda.

(Recebemos uma ligação desmarcando a sessão por parte de Atila.


Ligamos para o casal avisando para não vir. Atila vem e diz que não desmarcou
nada e que o casal deve ter feito isso para não ter mediação. Diz que não quer
mais vir e que quer a guarda das filhas e que só virá se for para discutir isso.
Explicamos que acreditávamos ser algum erro da secretaria e que ele viesse mais
uma vez. Ele concorda.)
(Novamente Atila vem e o casal não vem. Elisa diz que não ligaram na casa
dela para agendar mediação. A secretária diz ter confirmado com ela. Ele diz que
sabia que eles não queriam mesmo mais vir e que a segunda vez confirmava.
Dissemos que gostaríamos de remarcar novamente pois eles confirmaram a
próxima sessão ao falar com as mediadoras)

Data: 22/03/06 – Quarto encontro

Mediadora 1: Como vocês estão? Quais as notícias? Quem quer começar


a falar?
Elisa: Eu gostaria de falar primeiro. A Lara joga conosco. Percebi que ela
diz que o pai deixa ver certos filmes proibidos e que ele deixou ela trazer um gato.

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Aí resolvemos fazer diferente. Ligamos para o Atila e falamos com ele. Ele disse
que não havia deixado mais. Tiramos a limpo. Ela é esperta, me preocupa.
Teremos que ter rédea curta pois é muito precoce.
Mediadora 2: Vejo que a mediação começou a fazer efeito. Vocês estão
cuidando da relação de vocês e limpando os ruídos.
Atila: Eu também sei disso e tomo providências. Mas é verdade mesmo. Me
preocupo com ela. Quero educar de perto. A sexualização pode ser porque seus
filhos são bem mais velhos que ela e ela convive.
Elisa: De maneira nenhuma, isso é por causa de outras coisas. Meus filhos
cada um tem sua privacidade. Respeitamos a idade delas.
Atila: Estou vendo-as a cada 15 dias por dois dias. Quero ampliar essa
visita. Quero ter mais tempo com elas para passar meus valores de educação. Eu
costumo pegar às 9h no sábado e entregar domingo às 18h.
Elisa: Sabe... Apesar de tudo fomos muito amigos. É verdade que nossos
costumes e moral são diferentes. Acho pertinente a preocupação dele com a
sexualidade da filha. Não concordo quanto a ele trancar elas no quarto de castigo.
Mas não interfiro. Ele conhece meus filhos e gosta deles. Eles têm um
relacionamento de irmãos. Meu filho quis bater num menino que queria namorá-la.
Eu gosto muito da Fernanda também, eu gostaria que eles se casassem.
Atila: Eu gostaria de vê-las todos os finais de semana.
Yuichi: E se tivermos compromisso, Elisa? Tá vamos ver.
Elisa: Relação de Atila com a Ingrid melhorou. Nós mostramos a ela
uma fita de vídeo da época que éramos amigos. Ela disse: “Vocês eram
amigos?” Aí ela se aproximou mais dele. Acho que temos que nos unir.
(Atila sempre faz uma expressão de quem não vai dar o braço a torcer
quando o casal conta seus esforços. Olha para cima e faz não com a
cabeça.)
Mediadora 2: Vemos que a mediação está surtindo efeitos, é muito
positivo esta sua tentativa de reaproximar as meninas do pai.
Elisa: Meu filho Vladimir vai passear com Atila. Eu confio. Ingrid me
perguntou: “Você vai deixar meu pai passear com seu filho?” Eu respondi que

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eu ia deixar sim já que o pai dela deixava ela comigo. Quero uma
convivência com paz.
Mediadora 1: Vamos ver os combinados.
Elisa: Ele poderia pegar as meninas na sexta em casa e devolver segunda
na escola a cada 15 dias. Se ele quiser pegar mais as meninas, a gente combina
por telefone sem problemas. Mas é que todo final de semana é muito pois nós
também estamos acostumados com elas. Desde que tudo seja combinado não
tem porque eu não deixar.
Atila: Mas eu quero que vocês vão buscar elas na minha casa assim como
eu busco na casa de vocês. Porque só eu que tenho que ficar pegando elas?
Me sinto humilhado, a casa deles é muito longe da minha.
Elisa: (Com expressão de quem está cedendo demais) Tá bom então eu
mando minha amiga que vai para aqueles lados levarem elas até sua casa se
sexta e você as devolve na segunda na escola. Acho que ele tem que ter contato
com a escola, acho bom.
Mediadora 1: Vamos experimentar essa nova amplitude de visitas e
marcamos para daqui um mês para ver como se acertaram.
Elisa: A Lara realmente falou que quer voltar a morar com o pai. Não
vou impedir. Só quero garantir que vão ter equilíbrio e estrutura. Estou disposta a
colocar pedra em tudo. Quero que você volte a ser amigo do meu marido e entre
lá em casa.
Atila: Não sei se a mediação dá conta de resolver o problema que a
gente tem do processo.
Mediadora 2: Vamos por passos. Se colocarmos a carroça na frente dos
bois vamos botar tudo a perder. Esse assunto voltará mais tarde. Precisamos
primeiro testar a ponte que vocês estão construindo. Vocês estão progredindo
de maneira que todos aqui estão muito surpresos. Parabéns! São muito fortes e
corajosos e enfrentarem algo tão difícil, pois querem o melhor para duas crianças.

Data: 19/04/06 – Quinto encontro

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(Vêm somente Atila e Elisa)

Atila: As crianças gostaram de ter tempo com pai. Foi bom.


Elisa: Estamos combinando por telefone com antecedência e temos
chegado a um consenso sobre as visitas de final de semana. Ele ficou quase
todos os finais de semana com elas. Elas perguntaram se eu não queria mais ficar
com elas. Eu respondi que eu queria que elas vissem mais o pai. Tiveram coisas
normal de adaptação. Ele não sabia que precisava mandar lanche para a escola e
ela usou isso. Disse que o pai a mandou sem comida para a escola e que passou
fome. Eu não entrei na dela e disse que se ele esqueceu ela poderia ter
avisado. Ela joga um pouco às vezes. Mas tem uma coisa que eu gostaria de
falar que me chateou. A Lara ficou chateada pois esperou duas vezes o pai ir
na psicóloga e ele não foi. Queria falar para ele não fazer mais isso pois ela
ficou esperando. Uma vez ele esqueceu e outra ele não pôde. E não explicou para
ela o porque não foi. A psicóloga veio cobrar as consultas que você não foi. A
Ingrid não quer mais ir brincar na psicóloga, quer conversa de gente grande. Ela
afrontou a psicóloga e esta não quer mais trabalhar com ela. Ela é arredia quanto
à sexualidade. Os banheiros não tem trinco em casa pois tenho medo de
acontecer algo no banheiro e não poder abrir a porta. Mas também eu não entro
se tem alguém. Ela já está com seios e pêlos. Eu me preocupo em cuidar da
sexualidade dela. É muito sensual. Eu queria pedir para o Atila olhar isso.
Não quero que ele deixe dormir na casa de alguém se não sabe quais
crianças estarão. Às vezes vai meninos. Eu queria que a gente combinasse
uma mesma linha de controle.
Atila: Eu vou olhar mais para ela não ter traumas. Mas também não
quero fazer disso um drama. Tem que orientar e deixar fluir.
Elisa: Mas é que não é normal o caso dela, eu tenho medo dela atrair
algumas coisa com a sexualidade desse jeito.
Mediadora 2: Atila, como você poderia aproveitar a informação da Elisa
visto que ela acompanhou muitos fatos na vida de Ingrid? Será que não seria
interessante vocês conversarem mais sobre os ocorridos?

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Atila: Vamos conversar para termos as mesmas condutas. Podemos
trocar as informações sobre as coisas que vêm ocorrendo. Acho importante
termos uma mesma conduta na hora de orientar.
Mediadora 1: Vocês construíram a ponte e o trânsito vi bem. Como não
podemos continuar eternamente aqui, queremos saber de vocês o que mais
pode ser construído aqui?
Atila: No início eu não via aqui a possibilidade de aumentar as visitas. Mas
no intimo nunca descartei a possibilidade de ter a guarda delas. Hoje eu posso
reafirmar essa vontade de ter a guarda, mas sei que agora provocaria um
abalo nos laços com os tios e primos. Eles não podem ser cortados de
maneira brusca. Elas já passaram um trauma com a morte da mãe. Elas
precisam de uma referência feminina. Não podemos decidir isso de uma hora
para outra. Da mesma forma que construímos uma ponte até aqui, podemos
construir uma passagem aos poucos. Estou aberto ao diálogo.
Elisa: Nossa decisão foi amadurecida dentro da família. Eu entendo a
posição de Atila. Mas nós também queremos as meninas e ter o melhor
relacionamento possível com você. Mas nós nos acostumamos com elas. Por
causa disso eu não queria voltar à estaca zero. Como seria para as meninas voltar
com você? Também são acostumadas com o colégio, tem amigos. Eu acho
Destituição do Poder Familiar muito pesada. Foi o jeito que o juiz
determinou. Quando forem mais velhas poderão decidir como quiserem.
Quero educar junto com você. Não vai ser possível devolver elas sem
trauma. Mas não quero voltar às audiências e processos.
Mediadora 2: Que opções criativas além destas vocês podem sugerir e que
possam atender a todos?
Elisa: Podemos aumentar as visitas dele ainda mais. Se ele quiser até
colocamos no papel. Mas guarda compartilhada acho ruim para as crianças.
(Atila fica vermelho e bufa)
Mediadora 1: Que razões temos para o pedido de cada um?
Atila: O processo veio como uma bomba. Não existe razão para dizerem
que não posso ter o Poder Familiar e também não poder ter contato. Insisto

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que essas crianças podem estar com o pai, não que deva. Eu estou apto a
cuidar delas inclusive emocionalmente. Eu gostaria que você pensasse com
muito amor sobre meu papel na vida delas olhando para elas. Eu quero a
guarda e convido vocês para participar na educação delas. Eu também queria
que eles educassem quando deixei elas lá.
Elisa: Eu nunca quis tirar o papel de pai. Não brigamos pela posse de
nada, elas não são objetos. São duas vidas. Nós três construímos essas
vidas juntos. Quero que você reflita sobre o fato delas estarem comigo e terem
dois lares e que estão bem comigo física e emocionalmente. Quero que entremos
em uma comunhão. Eu sou o porto seguro depois da mãe delas ter morrido.
Sabem que não vou abandonar. Se partir delas a vontade de morar com o pai
eu não vou me opor. Elas gostam do pai, mas por enquanto querem morar
comigo.
Atila: há uma decisão final a ser tomada. Não pode ficar eternamente
assim. Temos que pensar muito bem e dar conseqüência pois qualquer decisão
vai afetar diretamente as crianças. A nossa decisão pode refletir contra nós no
olhar delas.
Mediadora 2: Atila, veja que precioso isso que Elisa traz. Ela diz que não
se oporá contra a vontade das meninas se quiserem ir morar com você.
Atila: Construímos uma relação em cima de algo sólido. Aí não fico mais
com medo do que pode ocorrer. Respeito o que elas pensam. Mas nós é que
temos que decidir e não o juiz.
Mediadora 1: Vocês estão num momento importante da fase da mediação.
Poderiam pedir assessoria de um psicólogo e de um advogado para verem as
possibilidades e conseqüências.
Atila: A Lara não anda prestando atenção nas aulas.
Mediadora 1: Falamos disso no próximo encontro se desejar. Nosso tempo
esgotou.

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Data 03/05/06 – Sexto encontro

Elisa: Estou triste. Acredito na mudança das pessoas, acreditei num


trabalho aqui. Andei pensando se o trabalho valia a pena. Atila não fala comigo
quando vai na minha casa, só a Fernanda fala comigo. Numa das vezes, ele
não devolveu as crianças no domingo, daí eu liguei e ele desligou na minha
cara. Mas daí, a Fernanda entrou na minha casa e deu tudo certo. Eu recebi uma
ligação anônima, para eu tomar cuidado que eu ia perder as minhas sobrinhas,
pois ele ia embora para o Chile com elas, fugido. Era uma mulher de um orelhão e
disse ser uma amiga. Lara e Ingrid falaram que se a Fernanda não for, elas não
vão com o pai. Disseram: “A Fernanda nos protege”. Lara me disse que o pai
me chamou de vaca. Ele pediu para as meninas ficarem com ele no próximo
final de semana, porque é aniversário da Fernanda. A Lara disse que não
poderia ir, pois tinha marcado com as amigas de dormirem na minha casa. O
pai disse que ele mandava nelas e não a vaca da tia.
Atila: Você distorce as coisas. Eu disse a ela que você deveria ter
conversado comigo. Fui enérgico com ela. Não a chamei de vaca. Você me
coloca como “o ruim” da história.
Elisa: Meu marido acha que a Lara não mentiu. Ela contou também que o
Atila deixou ela dirigir.
Atila: As falas dela vêm para esclarecer o que é mentira ou não. Isso é
um absurdo.
Elisa: Eu acreditei que ele havia mudado, mas agora me senti traída.
Mediadora 2: Atila, você não gostaria de aproveitar a oportunidade para
esclarecer as questões que ela colocou.
Atila: A Ingrid pediu para dirigir e eu deixei. Mas não foi desse jeito que
vocês imaginam. Foi na chácara, eu tinha o controle, ela dirigiu em linha reta. Ela
ficou muito feliz. Não houve uma irresponsabilidade. Eu comecei a dirigir com essa
idade.

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Elisa: Eu não acho correto. Eu concordei que um final de semana elas
ficariam comigo e outro com você, e eu poderia ser mais maleável no meu final de
semana.
Atila: É que eu queria que elas participassem do aniversário da
Fernanda, pois é importante, somos uma família. As meninas se sentem
muito felizes com a gente. Acho que estão sendo influenciadas para verem o pai
de forma negativa. Outra coisa, combinei de ir na psicóloga delas hoje. Não fui
antes pois queria deixar claro para ela que eu não iria me tornar um cliente dela.
Elisa: Ela cobrou as duas sessões que você faltou da gente. Ah! As
meninas andam reclamando que elas não querem ir com ele pra escola.
Yuichie: Acho que estamos retrocedendo depois que nós cedemos nas
visitas. Ele diz que inventamos, mas ele quem faz tudo isso. O convívio
aumentou e a situação piorou.
Atila: Eu sei que você também já me xingou para elas.
Yuichie: Eu xingo ele de palhaço quando eu vejo que ele também xinga a
gente.
Atila: Eu não deixo as meninas falarem mal de vocês. Temos um interesse
de guarda que é conflituoso. Se um não ceder, vamos ter sempre problema.
Quero então ouvir deles que a mediação terminou.
Mediadora1: Como vocês gostariam que fosse a relação entre vocês e que
mudanças de comportamento gostariam de pedir um ao outro?
Elisa: É muito polêmico quem vai ficar com as meninas. Em primeiro lugar,
quero uma relação boa com o Atila. Me magoa quando elas voltam de lá tristes
para minha casa. Lara me perguntou como seria se a mãe delas tivesse casado
com outro homem. Expliquei para ela que ela só é ela porque saiu desse pai e
dessa mãe. Acho que a guarda compartilhada é muito complicada, elas têm que
ter um canto delas.
Equipe reflexiva (são os dois observadores doa mediação que falam :
- O forte deste trabalho, até aqui, foi o resgate da confiança. Foram muito
corajosos, mas entramos numa nova etapa, o que requer novas transformações.
Vocês voltaram a se comunicar e as meninas hoje têm um pai mais presente.

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- Vocês realmente acharam que ia ser fácil para duas crianças mudarem
dentro da cabeça delas a imagem de vocês três se hostilizando? Acharam
que elas não iriam responder a isso, que não iriam ter que se adaptar, que não
viriam reações difíceis de lidar? O retorno ao processo pode retroceder tudo o que
conquistaram. Como lidar com a comunicação delas? Outra questão também
importante é como vocês podem lidar com o medo da decisão que terão que
tomar no futuro em relação à guarda?
Atila: Se elas vão ser educadas por pessoas diferentes, cabe aos
adultos conversar e ceder. É difícil dizer que o amor do pai chega a ponto de
abrir mão da educação das filhas. Vocês podem estar com boas intenções, mas e
o mal que causam ao colocá-las em cima do muro? Será possível construir
alguma coisa, dadas as características deste processo? Acho que cada um vai ser
intransigente até o fim. Minha parte cabe ceder como pai. Não se questiona
porque um pai é um pai. Ele tem um filho e isso é uma dádiva - cultural, religiosa,
moral, ética e genética. Quem se contrapõe, se contrapõe à isso.
Yuichie: Eu brigo tanto porque tenho obrigação moral. Não quero que
elas se percam. Você deve mudar algumas coisas em você. Por exemplo, você
disse que a escola particular não é importante. Eu achava que elas tinham que ter
uma escola boa. Ele disse que poria numa pública. Segundo: que você não prive
elas de ver os avôs, assim como não quer ser privado de ser pai! Terceiro: você
vai mudar sua posição? Senão, vou continuar brigando pela guarda.
Mediadora 1: Yuichi, você acha que essa maneira de falar pode ajudar a
construir uma aliança que tanto busca aqui na mediação?
Yuichi: Desculpem... mas as vezes é muito difícil.
Atila: Se você devolver a guarda, eu posso mudar tudo isso.
Yuichi: Eu convivi com a Paula, filha do Atila do outro casamento, quando
ela era adolescente. Ela deu problema e ele despachou ela para o Chile. Tenho
medo. É mais uma razão pela qual eu quero a guarda.
Atila: Ela viajou por uma decisão de família. Ela também queria. Ela queria
conhecer a família dela e ia ficar com eles. Eu não mandei, foi ela que quis, foi um
consenso.

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Elisa: Ela tinha 13 anos e foi chorando. Ligou para nós e reclamou.
Atila: Eles querem saber da minha filha mais do que eu, que sou o pai. Ela
tinha 17 anos, foi e voltou comigo.
Elisa: Não tinha 17 anos, e foi sozinha.
Mediadora 1: O ponto da mediação em que vocês se encontram é
delicado. A mediação começa de uma maneira ampla e vai se afunilando para os
pedidos. Foram muito fortes até agora e surpreenderam na capacidade de
mudança de cada um. É preciso achar uma saída criativa para este impasse.
Atila: A existência do processo impede as coisas aqui. Eles só querem
ganhar tempo.
Yuichi: Avançamos, mas acho que precisa terminar a mediação. É murro
em ponta de faca. Tem muita mágoa, não vai avançar mais.
Mediadora 1: Como manter os acordos feitos até então? O que vocês
sugerem?
Elisa: Poderíamos colocar estes acordos num papel, para ficar mais claro
para todo mundo.
(Atila concorda e vão pedir assessoria de advogados)
Elisa: Eu tinha pensado em chamar ele para um almoço na minha casa.
Mediadora 1: Este pode ser um passo criativo.
Atila: A gente mal se fala, acho que seria hipócrita.
Mediadora 2: Gostaríamos de propor uma tarefa para a próxima sessão:
que pensem como será se o processo voltar, quais os efeitos? Se tomarem uma
decisão perante o juiz, ela será definitiva? Consultem seus advogados.

Data: 07/06/06 – Sétimo encontro

Atila: Não teve o almoço. Eles convidaram, mas desmarcaram porque Elisa
estava muito ocupada.

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Elisa: Ampliamos as visitas. Conversei com as meninas que o pai queria
ficar mais tempo com elas. Na quarta-feira, minha cunhada levou elas na casa do
pai, e na quinta ele devolveu na escola. De final de semana alternado ele pode
pegar elas na sexta-feira e devolver no domingo.
Atila: E feriados prolongados, aniversários e férias? Gostaria de pedir mais
um final de semana no mês com elas. Quero que fique esclarecido o que pode
para não ficar em função do humor. Os feriados e férias podem ser divididos meio
a meio.
Yuichi: Acho que pode ser assim, mas e a resistência da Ingrid? Como pais,
podemos impor. Mas existe uma ação judicial. Acho que essa resistência dela tem
que ser trabalhada aos poucos pelo Atila. Se não existir mais, não terá problema.
A gente fala que ela tem que ir, mas não temos toda a experiência para lidar com
isso. Ela diz: “Como você combinou sem falar comigo?”
Mediadora 2: Sabemos que as crianças reagem à hostilidade que existe
entre dois adultos que não se gostam. Não existe culpa de ninguém, existe
responsabilidade das partes. Elas reagem ao tipo de relação que vocês
mantêm. Como será que elas se comportariam se vissem vocês se falando
normalmente?
Atila: É difícil falar a origem dessa resistência. Nós devemos trabalhar essa
questão com elas. Vocês poderiam usar o argumento de que o contato com o pai
é para o bem delas.
Mediadora 2: A mediação requer um tempo de uma certa mudança de
posicionamento das partes. Existe um tempo de processamento individual. E se
deixarmos caminhar o vínculo de vocês, que está surtindo efeito? Precisariam ter
um pouco de paciência, as coisas não mudam magicamante.
Elisa: Eu queria falar uma coisa que aconteceu, que achei importante. Ingrid
dormiu na casa da avó, pois precisava ir no posto de saúde que era na frente da
casa. Eu disse que ela não iria dormir na casa da avó, pois eu tinha combinado
com o pai dela que ela só iria comigo e com o Yuichi na casa da avó. Ela insistiu e
ficou na casa da avó. Depois, eu resolvi contar pra ele mesmo correndo o risco de
ele ficar bravo, pois achei que eu deveria ser sincera, depois de tudo que

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combinamos aqui. Eu tinha ficado culpada. Mas eu disse pra ela: e se seu pai
brigar comigo? Acho que essa é a resistência dela, ela acha que o pai é bravo.
Conversei com minha mãe pra não provocar mais o Atila. Outra coisa, ela
disse: “Por que eu vou hoje com meu pai, se hoje não é dia?” Eu disse que o pai
dela queria ver mais ela. Ela disse: “Eu não quero morar com ele, mas gosto de ir
lá ver ele”.
Mediadora 1: Eu imagino o dilema que você deve ter passado, mas a sua
fala revela que você deu um voto de confiança para o Atila e para a relação de
vocês. Deve ser importante para ele ouvir que está sendo respeitado no seu lugar
de pai.
Atila: Eu não achei que tinha problema dormir na casa da avó, pois era
motivo de doença. Fiquei muito tranqüilo quando ela me contou. Eu acho que eles
vão amadurecer e entender as coisas de forma diferente, e vão ver que se
posicionar. Aí será uma conversa que fará as meninas mudarem de opinião.
Temos que cada um comunicar a verdade a elas, apesar das nossas verdades
serem diferentes. Não temos que fazer uma relação de florzinha, mas sermos
coerentes. Podemos trabalhar isso e conviver em paz, em prol das crianças.
Elisa: O amor por você é de pai. Conosco é de tios. Elas gostam de
você, e acho que têm que vê-lo, mas enquanto elas quiserem ficar comigo,
eu vou brigar.
Atila: Você disse que não abre mão, então vamos conversar sobre as
visitas, e a guarda decide o juiz.
Mediadora 2: Por que colocar na mão do juiz uma decisão que vocês
mesmos podem tomar para a vida de vocês? O que um juiz sabe de todas
essas dores e felicidades que foram ditas aqui, até hoje? Têm certeza que este é
o caminho que vão escolher?
Elisa: E se arquivarmos por um tempo o processo, para priorizar o
processo de mediação? Quando elas fizerem 15 anos, poderão decidir com
quem ficam.

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Mediadora 1: Talvez esse seria o caso de vocês consultarem os
respectivos advogados para ver quanto tempo o juiz suspende o processo, ou qual
outra saída é possível.
Mediadora 2: É isto que eu quis dizer com saída criativa. Existe uma saída
para o impasse de vocês. Que proposta vocês podem fazer, que inclua também o
pedido da outra parte? Eu gostaria de ouvir um pouco de você, Atila, o que você
achou da proposta da Elisa.
Atila: Estamos tentando conviver equilibrados em prol das crianças, e para
isso acordamos um aumento de visita, mas com relação à guarda, se as crianças
tiverem um equilíbrio emocional, a guarda seria irrelevante, se fica com um
ou com outro. Se a nossa relação for transparente, isso é um grande
progresso. Mas com relação a guarda prefiro que a decisão seja tomada pelo
juiz.
Mediadora 2: A visão do juiz não consegue abarcar o contentamento das
duas partes, ela responde a falas de advogados que se contrapõem. Como será
para um se o juiz der a guarda para o outro?
Elisa: Então... Podemos esperar uns 4, 5 anos, até que elas fiquem mais
maduras e possam decidir com quem vão ficar. Não precisam ter 15 anos.
Atila: Para andarmos, é importante deixar bem clara a visita. Podemos
discutir a guarda e descobrir uma saída. Como a guarda era um impasse, eu
tratei de acordar o que dava para acordar – as visitas. Porque vamos ter atritos
durante toda a vida.
Mediadora 2: Temos aqui um exemplo do que se trata a mediação. Muito
interessante o jeito que você colocou a questão. Trata-se de falar do que dá para
ser feito por hora, e quando a relação melhorar, poderão falar dos impasses
que restaram a partir de uma outra posição e aí acharão novas formar de lidar.
Vemos o conflito como uma oportunidade de mudança, e não como algo negativo.
O conflito sempre existirá nas relações humanas, ele é uma oportunidade de
fazer pedidos e se colocar diante do outro. É onde a relação pode passar a um
novo estágio.

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Fernanda: Eu sinto, como mulher, o que a Elisa sente. Eu me apeguei
muito a essas meninas, em um ano. E ela? Pegou amor, então não quer abrir
mão. Está tentando dividir com Atila as meninas. Para ele, dói não sentir a coisa
de pai: botar para dormir, dar café...
Yuichi: Acho importante não deixar definido os feriados, para podermos
conversar. Quando tá registrado, é pau pau, pedra pedra.
Atila: Tudo bem. Regulamos as visitas e o resto podemos rearranjar.
Elisa: Sobre aquele almoço, poderíamos marcar sem as crianças para
discutirmos exatamente o que queremos no acordo, antes de falarmos com os
advogados. Eu via no cartaz a mediação e pensava: “Nunca vou fazer isso, que
perda de tempo”. Esclarecemos coisas que os anos não deram conta. Quando eu
liguei para contar que Ingrid tinha dormido na casa da avó, pensei: “Seja com
Deus”.
Mediadora 2: Foi uma mudança sua, uma aposta na relação de vocês, uma
aposta de confiança.
Atila: Na próxima sessão então vamos trazer os acordos dos advogados.
Mediadora 1: Gostaria de propor uma tarefa para próxima sessão. É
possível suspender o processo? É possível conversar sobre a guarda? Qual o
limite e a amplitude da decisão de vocês?
(Clima mais descontraído, as partes conversam entre si e riem. Atila
tenta manter um certo controle, para não se deixar levar pelas risadas. Não pode
dar o braço a torcer pois quer conseguir mais acordos. Não pode se mostrar
satisfeito.)

Data: 28/06/06 – Oitavo encontro

Atila: A grosso modo as coisas estão melhorando. As crianças são as


beneficiárias. Os adultos estão mais tolerantes.
Elisa: É, as coisas estão melhores. Ele entrou em casa e conversamos
bastante. O Yuichi estava junto. Chegamos a um acordo do tempo dele com as

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meninas, e elas aceitaram também. Ele pega elas a cada 15 dias na escola, de
sexta-feira, e devolve de segunda-feira na escola. Se for feriado prolongado, ele
pega elas antes. E toda quarta-feira a minha cunhada leva as meninas na casa
dele, à noite, independente do que acontecer no final de semana. Férias, serão 15
dias para cada um. Elas ficaram felizes com isso. No final do ano, se ele quiser
pode ficar mais de 15 dias com elas, desde que avise com antecedência.
Mediadora 1: Vocês chegaram a um acordo em relação às visitas. O que
refletiram sobre a guarda?
Elisa: Não conversamos sobre a guarda, mas pensei em pedir um
tempo no processo. Eu nunca quis destituir o Poder Familiar, isso é muito
sério. A minha advogada falou que não é possível suspender o processo, mas
achei que ela errou. Eu queria 1 ou 2 anos para amadurecer essa nova etapa de
relacionamento. As meninas estarão mais velhas.
Atila: Eu não concordo.
Mediadora 1: É possível, aqui na mediação, experimentarmos um acordo
antes da sentença. Pensem com calma sobre isso, falem com seus advogados. O
que você propõe Atila?
Atila: Demos um passo considerável. Ambos os lados vêem o bem-estar da
criança. Agora, tem a guarda. Ela quer prorrogar o processo – quer participar da
criação das meninas. Eu e ela temos capacidade de criar as meninas. A minha
decisão é que o juiz tome a decisão, se não entrarmos num acordo. Não aceito
uma decisão alternativa.
Mediadora 1: Entrar em acordo seria o quê?
Atila: Eu não tenho uma proposta.
Mediadora 1: Você pode começar a refletir sobre isso. Que proposta
poderia oferecer Atila?
Elisa: Nem a minha proposta? Acho que estamos muito perto de um
equilíbrio, não queria voltar à situação antiga.
Atila: Prolongar o processo seria esperar um ano para voltar no ponto em
que estamos hoje.
Mediadora 2: Explique melhor essa história de prorrogar o processo.

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Elisa: Só com o tempo saberemos se não fará diferença elas voltarem
para o pai, ou ficarem comigo. Vamos experimentar a nova relação! Pode ser
até 6 meses, para daí definirmos de vez. Queria também que ele se colocasse na
minha situação: eu não seria leal com as meninas se, de repente, largasse
elas. O tempo vai colocar tudo no lugar. Vai ser menos doloroso para todos, deste
jeito. Tenho medo que a decisão possa botar tudo o que construímos a perder.
Mediadora 1: Nada impede uma outra proposta.
Atila: Agora não consigo pensar em nada. Não seria honesto de nenhuma
das partes destruirmos o que conseguimos construir. Não vamos morrer de
amor uns pelos outros, mas podemos tolerar e respeitar. Eu não posso abrir
mão da guarda, pois é abrir mão dos filhos. Talvez pensar em um tempo menor
de prorrogação do processo. Tenho que ser sincero, mas eu gostaria também de
falar com meu advogado.
Equipe reflexiva:
- Parabéns para todos, pois fizeram um percurso muito bonito. A mediação
tem dois temas aqui: um que já foi resolvido, e outro que foi falado. Porém, uma
xícara e um pires não vivem um sem o outro. Por que deixar na mão do juiz? A
mediação pode ser maior do que pensam, ela pode vir num segundo tempo, numa
segunda etapa depois de experimentarem acordos maiores.
- Como era pesado falarmos a palavra “destituição do poder familiar”. Hoje
vocês conseguem falar sobre isso. As meninas perderam a mãe, mas tiveram
todas essas pessoas amando elas. Como mais podemos ajudar vocês? O
que precisam para não deixarem isso para o juiz decidir?
Elisa: Todas vocês são pessoas maravilhosas. Sei que eu e o Atila somos
pessoas difíceis, mas conseguimos mudar por causa de vocês.
Mediadora 2: Eu gostaria de pedir para o Atila refletir sobre uma saída.
Atila: Eu pensei em uma, posso pensar em outra.
Elisa: Hoje, ele está estruturado, com uma mulher maravilhosa do lado dele.
As meninas estão mais auto-suficientes, e têm consciência do que acontece.
Atila: Vou parabenizar vocês pela paciência e por conseguirem ver as
coisas de forma diferente. Ela (equipe reflexiva) trouxe uma palavra adormecida.

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(A destituição do poder familiar) É um termo forte, é um castigo. Para
merecer ele, é preciso fazer jus. Deixamos ele de lado para conseguir suavizar as
coisas. Minha proposta é que podemos dividir a segunda fase da mediação em
dois: analisar a questão do poder familiar e a guarda. Poderíamos ter um pedido
em conjunto, para acabar com essa divisão entre duas partes, uma que ataca e
outra que defende. Poderíamos solicitar uma anulação do processo e fica em
suspenso a guarda para uma segunda fase.
Mediadora 1: Vocês precisam consultar um advogado para ver se é
possível extinguir a ação e transformar em pedido de guarda.
Elisa: O termo “Destituição do Poder Familiar” eu nunca usei. Ele não
teve uma atitude que justificasse isso. O que eu queria era estar
acompanhando o crescimento delas. Eu queria uma guarda provisória. Eu
não quero destituir o poder, mas o juiz disse que não existe guarda provisória.
Tive que cancelar esta ação, aí ele sugeriu “Destituição do Poder Familiar”. Na
hora não percebi o peso do processo.
Atila: Antes não tinha como colocar para fora as mágoas. O peso se foi
depois de falar demais ou de menos. Avançamos como pessoas ao nos
tolerarmos. Estou mais leve e feliz, é benéfico para as crianças.
Elisa: Às vezes penso “Por que não fiz diferente?”. Hoje estou muito
tranqüila e aliviada, tirei um peso da alma. As crianças viviam divididas. A
Ingrid hoje externaliza o amor pelo pai. Antes, com a briga, ela não conseguia.
É gratificante. Perder a mãe já é triste, ainda mais perder um pai. Hoje elas podem
gostar de nós dois. Eu gosto do Atila, sempre gostei. Não tenho só tolerância.
Eu já gostava muito dele, antes disso tudo. Ao sair a raiva, aflorou o sentimento
por ele. Aprendi a ter uma boa briga, até mesmo com meus filhos, meu marido....
Aplico o que aprendi na mediação na minha vida.
Mediadora 2: O processo é de vocês. Vocês que foram capazes, pensem
nisso.

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Data: 06/09/06 – Nono encontro

Elisa: Faltamos pois fizemos um documento que teve um item que não
concordei, sobre abrir mão da ação. Aí desmarquei a mediação. Fizemos um
acordo sobre a ação de regulamentação de visitas, mas não sobre a ação de
Destituição de Poder Familiar. Eu não vou extinguir a ação, pois resolver na
audiência. Não vou abrir mão da guarda, para as crianças isso foi positivo. Estou
aberta para as visitas quando ele pedir, independente das cláusulas do contrato,
desde que elas (meninas) cumpram com as responsabilidades (lição de casa,
escola, etc) que elas têm. Acho que ele melhorou muito, mas tem uma coisa: to
com problema com a Lara. Ela fica mais com o pai e é preguiçosa. Ela sempre
quer faltar na aula e eu não deixo, mas ela fica brava comigo. Com o pai, ela falta
mais na escola. Não que ele não incentive a ir na escola....E tem algumas
coisas que você fala para elas, que parece que eu gosto mais da Ingrid.
Mediadora 2: Você não gostaria de perguntar para ele o que ele realmente
falou com ela?
Elisa: Mas é por isso que eu vim aqui... Para perguntar isso pra ele. Ela
falou que quer morar com o pai, pois eu não gosto suficientemente dela. Ela
disse que a Fernanda deixa ela fazer um monte de coisas que eu não deixo.
Voltou da casa do pai outro dia e disse: “O que você faz com meu pai que você
recebe a pensão da minha mãe? Meu pai não tem dinheiro, eu quero esse
dinheiro para fazer uma festa de aniversário. Eu tenho menos dinheiro na
previdência do que você recebe”. Isso não é fala de criança, ele deve ter falado
isso pra ela. Se você quiser eu posso esclarece o que faço com o dinheiro aqui.
Deposito 400 reais na previdência para as duas, e os 400 restantes eu uso, e eu
disse que ela custa mais do que isso. Eu disse que o pai dela não me dá
dinheiro, e é obrigação do pai ajudar os filhos. Eu fiquei muito chateada. Se
quiser, eu posso até depositar o dinheiro integralmente, e aí você ajuda na
pensão.

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Mediadora 1: Estamos passando por um momento em que as meninas
estão reagindo a este novo modelo que vocês encontraram. Acharam que só
vocês iam ter que se esforçar. O que podem fazer para amenizar esta adaptação?
Atila: Tudo bem você querer falar, mas deve ser um diálogo e não um
monólogo. Isso são coisas de criança. Ela pergunta muito de dinheiro para
você e pra mim também. Ela também me diz coisas de você que não se
encaixam no que eu acho normal, mas tenho que conviver com isso. Às
vezes me machuca o que elas falam para mim do que dizem na sua casa. Isso vai
acontecer sempre, elas vão questionar e colocar a gente na balança. Eu não
incentivo isso que elas falam.
Elisa: Eu achei que as questões foram direcionadas, porque elas falaram de
forma adulta.
Atila: Lara tem um problema de identidade, não se define, ela está
desorientada, não sente apoio de nenhuma das partes, quer agradar os dois.
Quem vai ceder para o outro tomar a direção na educação? Ou eu abro mão
da paternidade, ou você. Tem que olhar as crianças, e não o próprio ego, se te
desagrada... Você viu que a menor está desestruturada. Assim, elas ficarão
doentes no futuro. Acho que chegou o ponto de pensarmos o que vamos fazer
com a guarda.
Mediadora 2: O que significa ter cem por cento a guarda? Como fica o
outro?
Atila: Eu acredito que as diretrizes têm que ser de um só. Ou eu ponho
autoridade de pai, ou ela faz isso. Eu procuro, no pouco tempo com elas, não ser
tão duro. Não consigo educar como eu quero. Eu queria que elas fossem para
minha casa e que você tivesse direito de visita.
Elisa: Com relação à desestruturação da Lara, você acha que ela ficou
assim depois que aumentaram as visitas? Me sinto traída, pois com o aumento
das visitas do pai, começaram a falar que gosto mais de uma que de outra. Não
vejo como ceder, ou um tem a guarda, ou o outro. Penso em nós dois
educarmos elas, senão vai ficar ou “tia me deu para o pai”, ou “pai me deu
para tia”.

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Equipe reflexiva:
-É curioso vermos aqui duas famílias que enfrentam uma situação como
casal separados. Como pensam em se responsabilizar por sua parte neste
conflito em favor das crianças? Como acalmar e desfazer isso que está
acontecendo com as crianças?
Atila: Quero o equilíbrio delas. Engulo a seco certas coisas, elas não
deveriam estar neste conflito, está na hora de pensar nelas. Jogamos elas neste
caldeirão. Eu faço elas se aproximarem de mim sem as colocarem contra
vocês, não é de mim fazer isso.
Mediadora 1: A mediação trouxe uma ampliação da questão, e também
uma paz. Conseguiram ver o que cada um faz de bom, mas se tiverem que
escolher entre um e outro, há um impasse. Como escolher uma alternativa que
atenda a ambos? Mas é preciso definir o processo de destituição, que outra
alternativa é possível?
Elisa: Eu deixei para falar um assunto aqui hoje, não quis falar antes.
Pensei em conversar um assunto com ele antes, mas fiquei com medo. Acho que
aqui vocês iam cuidar. A gente tem que ter uma convivência limpa, clara, de
confiança, para manter esta relação. Por que não poderíamos criar elas
juntos?
Atila: Quando entreguei as meninas, fiz porque confiava muito neles.
Mediadora 1: O que ela pode fazer que te atende?
Atila: Acho que ela tem que desistir do processo, ela diz que não há
nada que justifique a destituição. Acho justo ela desistir do processo. Aí sim
poderíamos conversar. Estaríamos num ponto neutro. Mas eu não poderia pegá-
las todos os dias na casa da tia, acho que elas têm que ter contato com os tios,
pai e avós. Fica difícil construir sem a extinção do processo. É como construir
um castelo em cima da água.
Mediadora 1: Você não pode construir alguma coisa independente do
processo?

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Atila: Pode-se tentar. Chegamos num consenso de conversar sobre os
problemas que surgirem com as meninas. Precisamos conversar sobre a Lara e a
festa da Ingrid.

Data: 04/10/06 – Décimo encontro

(Atila conta que sua esposa está grávida e que está muito feliz)
Elisa: Queria pedir desculpas por não ter vindo à sessão passada.
Atila: Eu queria falar se me permite. Já estamos aqui quase há um ano.
Tivemos avanços nos comportamentos e atitudes. As crianças foram
beneficiadas por conviverem mais comigo. Todos se beneficiaram. Porém eu
queria que hoje fosse dedicado à existência do processo. Acho que estamos aptos
a dar uma solução. Não faz sentido continuar com isso. Ou achamos uma
solução ou o Juiz que vai acabar decidindo. Não pode ser infinito. Eu não
posso decidir pois sou réu. Isso cabe a você. Há solução à vista que podemos
dar?
Elisa: Eu tinha pensado muito nisso. Fiz reunião com todos em casa. Lara
quer voltar para o pai. Eu fui na chácara dele e ele me recebeu bem. Foi
muito bom. Ele nos recebeu com um almoço. Há uma convivência muito
respeitosa. Eu penso: “Até que ponto estou certa ou errada. Me coloco na
posição dele. Porque isso aconteceu comigo? O Yuichi diz que o Atila ajudou ele
muito no começo quando abriu um negócio que tem até hoje. Até que ponto ir ou
parar? Até que ponto estou violentando a natureza? Penso que posso pagar pelos
meus atos. Quando tudo começou, elas eram pequenas, ele não tinha condições.
Hoje ele tem a Fernanda que está grávida. As meninas estão muito animadas
com o irmãozinho que virá. Não sei o que faço da vida pois moram comigo
há 4 anos. Eu não sei. Eu queria que você Atila... Lara não sabe o que quer. Eu
pensei em falar para ela ir morar uns meses para ver como é. Aí inverteria, eu que
iria visitar. Falei que depois se ela quiser voltar não sei se vai poder. Falei para ela
pensar bem. Fui sincera. O Atila beija e abraça meus filhos, ele é tio dos meus

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filhos. As meninas disseram: “A gente quer morar com você mas tem dó do
papai”.
Mediadora 2: Entendo sua angústia. Mas esta é uma decisão dos adultos.
Será justo colocar as crianças para escolher? Para ele, ela pode falar o mesmo
em relação a você.
Elisa: Eu queria propor que levássemos uma vida de comunhão. Vai
parecer que você abre mão das suas filhas, mas não é.
Atila: Em relação à Destituição do Poder Familiar você vai ter que dizer sim
ou não.
Elisa: Eu não aceito que você perca o Poder Familiar. Meu marido não
vem mais aqui pois se sente mal em relação à você por causa do processo.
Atila: Se eu não perder o Poder Familiar, ainda tem a guarda para
discutirmos. Podemos tentar algo alternativo. Vamos fazer um teste de 3, 6
meses em que moram comigo.
Elisa: Aí elas mudariam de escola?
Atila: Seria difícil ficarem na mesma escola, pois moro muito longe.
Elisa: Poderíamos rachar a perua para elas continuarem na mesma
escola. Mas se abro mão do processo o juiz pode entender que abro mão da
guarda delas. Mas posso abrir mão da destituição se a guarda delas ficar comigo.
A gente pode fazer este teste. Seis meses comigo e seis com você.
Mediadora 1: Em seis meses voltam a conversar?
Elisa: Mas não sei se isso pode na lei.
Atila: O que escolhermos pode. A guarda fica com você até mais seis
meses e aí elas ficam mais seis comigo. E aí voltamos a conversar. Voltamos
para mediação e as crianças podem também vir. Estamos priorizando o bem
das meninas.
Mediadora 2: Como vocês se transformaram com a mediação. Aprenderam
a ter uma briga boa, a continuar conversando mesmo quando parece que não há
saída.
Elisa: Eu não queria ir à chácara dele pois lembrava minha irmã que
faleceu. Mais aí eu fui e Lara disse: “Como eu te amo por você estar aqui com

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meu pai”. Não é justo tirar eu ou ele da vida delas. È horrível ver uma criança
dividida. Vamos participar das coisas delas. Ser adultos. Deixar os, ai, ai, ai.
Mediadora 1: É possível considerar a proposta de Atila?
Elisa: Vou falar com o advogado. O Yuichi coloca que é tio, ele preserva o
lugar do pai. Ela falou que ia chamar o pai para defendê-la, não pensou no tio. Já
eu sou mãe, não faço diferença dos meus filhos.
Mediadora 2: Vejo que há o reconhecimento do lugar de pai depois de
toda essa transformação.
Elisa: Os pais tinham que assinar suspensão na escola. Eu assinei, mas o
Yuichi não quis e deixou para o Atila assinar. Ela morreu de medo.
Mediadora 2: Elas também reconhecem o lugar de pai.
Equipe Reflexiva:
- Parabéns por terem enfrentado muitas situações de angústia e terem
ultrapassado. Como trabalhar pensando no futuro? Como cuidar dos próximos
passos sem chegar no Juiz?
Elisa: Vamos sentar com o advogado e pensar no que implica cada passo
do que queremos fazer.
Atila. Tudo bem. Temos que dar passos e testarmos. Não acho que temos
que colocá-las na parede para escolher. Eu as poupei quanto a isso. Está ótimo o
que fizemos para priorizar a felicidade delas.
Mediadora 1: Então fica combinado para a próxima sessão trazerem o
resultado da reunião com os advogados.
Mediadora 2: Como farão a transição é uma pergunta para começarem a
pensar. Quando e como? E se elas disserem que querem voltar para tia como vão
lidar? Poderiam pedir uma assessoria das psicólogas.
Elisa: Das psicólogas elas não podem sair. A psicóloga quer falar mais com
o Atila. Não quero tirar da escola pois senão elas perdem a bolsa que ganharam.
Eu não sou de bater mas o Yuichi é. Mas ele não bate nas filhas do Atila pois não
admitiria que alguém batesse nos filhos dele.

100
Atila: As meninas têm mitos na cabeça de que as agredi. Não é que alguém
criou – o tio, a tia, o pai. Isso não é verdade realmente. Elas falam que eu batia.
Como vou provar? Nunca bati.
Mediadora 1: Poderia significar exatamente aquilo que vocês tanto falaram
hoje – que o pai tem o lugar de pai reconhecido, um pai é sempre temido pela
autoridade, pelo respeito e limites que impõe. Enfim... isso pode ser no imaginário,
na fantasia um pai que bate.
Atila: Parece a explicação do que eu pensava e não sabia como falar.
Gostei.
Elisa: Ingrid me disse: “Meu pai me dá Nescau e não chá”. Aí eu disse
para elas que são duas casas com modos diferentes, mas que nenhuma está
errada.
(O processo de mediação está em aberto aguardando uma segunda etapa
de mediação para que as partes possam experimentar os acordos e retornarem
aos encontros com as mediadoras para novos acordos. Esta é uma prática
adotada somente em conflitos muito complexos que devem ser regulados por uma
segunda etapa de mediação. Ficou acordado que Atila permanecerá 6 meses com
as filhas e os tios terão direito de visitas pois ambos chegaram a conclusão que
não é possível determinar um acordo sem antes as meninas terem convivência
com o pai).

101
V ANALISE DOS RESULTADOS DA MEDIAÇÃO SOB A ÉTICA DA
PSICANALISE

5.1. PRIMEIRO ENCONTRO

Inicia-se um diálogo num modelo de interação imaginária com predomínio


da paixão do ódio no qual uma das partes não pode se quer estar no campo da
visão da outra e se dirige a outra parte de modo inquisitório e de rivalidade,
expressa na pergunta: “O que vocês querem com minhas filhas? Revelando o
predomínio da face real do supereu. A intervenção da mediação propõe a fala e a
linguagem como campo necessário na relação com o semelhante Qual o
contexto? visando estabelecer uma narrativa permitindo aparecer uma posição
subjetiva que não se assentasse na destrutividade e produzisse mal estar. Mas as
partes insistem na relação de disputa imaginária , na qual ambas se colocam
como vitimas “Fui ingênuo. Foi tudo premeditado. Abriram processo e me
senti traído” e“ Ele não dava dinheiro. Ele dizia para eu parar se não ia levar
flores para mim no cemitério”. As partes se acusam:“Fizeram um documento
para facilitar ... uma autorização, manipulada” e “ Ele tacou álcool nela .
As crianças vinham com herpes, corrimento, sujeira e piolho. O pai batia e
elas tinham medo dele” e não se responsabilizam: “Eu não sabia do alcance
desse documento”, “Criança não é objeto. Aceitamos a proposta dele. Ele
disse que queria casar de novo para ficar com as filhas. Aí eu disse que
queria a guarda definitiva. Tem destituição do poder familiar. Acho isso
grave”. Quando uma das partes reivindica todo o direito para si: “Se quiser pedir
a guarda das meninas já colocamos que não vamos dar”, há novamente uma
intervenção que visa frear o gozo da privação do objeto do outro: “ Precisamos
primeiro ouvir porque cada um tem uma versão da história” , o que permite
abrir para a questão ética: “As meninas não são objetos . Eu as trato como
sobrinhas e digo que você é o pai”. O pai percebe aí que a disputa não é de um
objeto, um bem porque crianças não podem ser tratadas como objetos e que os
lugares e funções obedecem a lei do interdito do incesto e de parentesco. O

102
reconhecimento simbólico do outro em seu lugar e função permite colocar a
problemática fora do registro imaginário e da moral e situa a ética da diferença
“Para mim minhas filhas estão mal com vocês. A sua moral e ética são
diferentes da minha e eu não as aprovo”. Para evitar que a diferença se
coloque no registro do imaginário, gerando disputa sobre quem tem a verdade,
obrigando a profissional a se posicionar, a mediadora intervêm: “Pai e tio amam
muito as crianças ... como minimizar o sofrimento pela morte da mãe,...
evitar disputar e focar no bem em comum – as meninas” Estratégia bem
sucedida porque ambos partes passam a fazer pedidos que são reconhecidos
mas adiados quanto ao cumprimento, relançando o movimento discursivo entre os
querelantes.

5.2. SEGUNDO ENCONTRO

Inicia-se também pelo registro da rivalidade narcísica e reivindicação


“Queria convidar o Átila” e “ É meu direito (...) e vocês se colocam como os
que permitem eu ver minhas filhas”. A mediadora evita a armadilha de discutir o
mérito da questão e aponta a possibilidade de aproximação entre as partes via
simbólico e resolução de conflito. Aparece uma forte resistência: “Ele faz isso
para nos provocar. Eu não reconheço isso não. Ele vê as filhas quando dá na
telha” fazendo com que a profissional insista na mediação via palavra,
instaurando uma escuta que permite que as certezas podem ser abaladas “Falei
para elas falarem com a tia antes” . Nesse momento de difícil dissolução das
resistências, a mediação opta por uma leitura que aponta o uso das crianças como
terceiro na relação entre as duas partes, o uso de um terceiro que leva a
mensagem e faz o conflito aumentar. Assim, a interpretação entra no campo da
mediação pela leitura das posições subjetivas ao situar os querelantes como
um par que disputa um terceiro: as crianças, mas que este objeto disputado
também é sujeito, leitor da mensagem. Esta relação implica os três elementos no
próprio conflito, das quais todos são responsáveis mas não culpados. Observa-se

103
aqui a distinção entre responsabilidade e culpa operada pela mediadora o que
coincide com afirmação de Lacan que por nossa posição de sujeito somos sempre
responsáveis.
Mas a intervenção da mediadora não impede o aparecimento dos modos
fantasmáticos em que o sujeito se situa no mundo, necessitando de uma
elaboração que passe pela cadeia de significantes de modo que o sujeito possa
aceder ao desejo. “Eu não consigo falar com eles (...) sinto que minhas filhas
foram tiradas sem uma causa real”. Mas essa volta aos significantes recalcados,
a instauração da história dos sucessivos traumas do sujeito não faz parte do
objetivo da mediação e por isso a mediadora insiste no “ objetivo da mediação”
o que estabelece a palavra em sua função pacificadora, reiterada pelo
intervenção que visa que os participantes reformulem seus pedidos, e assumam
suas responsabilidade, prontamente aceito: “ Eu gostaria de pedir para
falarmos da férias novamente”.
As mediadoras sempre ignoram as falas que embora apontem o não
respeito a um limite, trazem implícita uma acusação a outra parte porque isto faria
com que o diálogo resvale novamente para a rivalidade imaginária “Não é mais
para fazer isso” e “Elas tiravam notas muito baixas quando estavam com o
pai”, remetendo ao registro simbólico para evitar a entrada da lei exterior através
do juiz. Esta intervenção viabiliza uma posição subjetiva separada do
funcionamento superegóico, em que as acusações mútuas, impedem a solução do
conflito: “Acho importante elas passarem as férias com o pai. Mas temos a
impressão de que vocês falam mal de nós quando estão com elas”. Quando a
situação persiste no campo das acusações e rivalidade a mediadora utiliza a
intervenção:“Deve ser complicado para as meninas amarem tanto 3 pessoas
que se hostilizam. (...) É comum as crianças contarem que sofreram, que
foram desagradas por essa outra pessoa que vocês não gostam para
agradá-los”. Percebe-se que o manejo da mediadora, na interrupção do assunto,
e a escolha de outra via que não viesse a aumentar a escalada de violência, só
acontece nas situações em que a parte se coloca no modo imaginário de
rivalidade e não quando se trata de uma posição subjetiva. Interessa retornar no

104
passado que se repete na medida em que ele é importante para elucidação do
conflito atual. Mas depois de certa etapa da mediação, não cabe mais trabalhar
estas questões visto que não é terapia. Ou as partes conseguem minimamente se
apropriar dos combinados ou a mediação fracassa. Tomemos o exemplo: “Dizem
que não querem ver o pai. Que ele bate e maltrata” e “Vocês trazem uma
imagem horrenda do pai. (...) Eu não concordo com essa psicóloga que
escolheram”, a mediadora interfere quando essa posição desconhece a outra
parte e surte um efeito: “Eu vou querer escolher uma para elas”: “E se você a
conhecesse antes de recusar?”
A mediação maneja também o tempo evitando soluções apressadas sob a
égide do simbólico sem amarração no real que implicaria num instante de ver e no
momento de concluir sem passar pelo tempo de compreender: “Hoje é apenas a
segunda sessão de mediação (...) Vocês precisam reconquistar a confiança
uns dos outros”.

5.3. TERCEIRO ENCONTRO


Os efeitos da mediação aparecem no terceiro encontro quando as partes
cedem respeitando-se e também considerando a posição subjetiva das crianças “
Pensei em cumprir somente o combinado aqui mas não foi assim. O Natal
passaram com o pai e foi ótimo. (...) A Ingrid quis voltar e a Lara ficar. Aí ele
trouxe de volta a Ingrid” . Quando a fala, novamente resvala para o imaginário, a
mediadora intervém: “Lembram das regras da mediação? Sem acusações.
Vocês estão disputando quem tem o poder maior de ferir o outro”, indicando
para o fato de que as partes avançaram no conflito: Deram, por conta própria,
uns passos a mais do que acordamos aqui”. “(...) fazia dois anos que não
passava férias com elas e nem pernoite”.
Mas o recalcado sempre retorna e quando aparece o novo que ameaça, as
lembranças ligadas a fatos do passado voltam como acusações: “Agora eu
queria que as meninas fossem para o Chile visitar minha família” , “Eu acho
que o Átila tem que participar da psicóloga” e “Vocês tomaram a decisão

105
sem falar comigo sobre levar elas no psicólogo. E também de batizar. A
psicóloga nunca me chamou. Não posso acreditar que eles não têm
armadilha contra mim sendo que tiraram minhas filhas (...) É uma traição.
Não consigo vê-los com benevolência”. A mediação reconhece a força dos
elementos recalcados mas não permite que sejam trabalhados como na terapia.
Não podemos pedir para exporem as fraquezas de um parte na frente do outro
pois isso acirraria as defesas e os conflitos. A mediadora limita o setting, nesse
sentido: “Como usar o passado para pensarem o que vão fazer de diferente
no futuro. Estamos aqui para se transformarem”, pois o campo da mediação
não é o campo da elaboração dos conflitos que se constituíram no passado mas
de resolução de conflitos no presente focando o futuro, embora reconheça que
eles se originaram no passado. É por esse motivo que a mediação foca no conflito
relacional e não intra-pessoal. Em determinada etapa mais avançada da mediação
as partes devem encontrar recursos pessoais para lidar com certas questões
suscitadas pela mediação ou esta fracassa como técnica.
Sempre que o discurso se assenta sobre a disputa e acusação, a
mediadora intervém destacando o simbólico. Uma intervenção nesse ponto é
ressaltar a posição subjetiva do oponente: “(...) mesmo com essas ressalvas
ele acha importante elas verem os avós” quando este cede, reconhecimento
que permite a explicitação dos medos, da crença que fundamenta os juízos e
impedem o reconhecimento das diferenças: “Que venha dos avós a postura de
reconhecimento do pai e respeito. Permitirei que quando elas estiverem em
minha casa que elas possam ir até os avós. Tem outro assunto. Eu também
não liguei para a psicóloga porque tenho medo que se eu for lá ela faça um
laudo contra mim. Eu não confio nela. Acho bom ela ir na psicóloga pois
precisa”.
Quando as partes resistem a mediação insiste na retomada do discurso, as
mediadoras lêem as dificuldades das partes quando ambos cancelam ou desistem
de comparecer ao encontro, marcando-o novamente.

106
5.4. QUARTO ENCONTRO

A mediação lê o vencimento do obstáculo que o imaginário faz em relação a


subjetivação do simbólico como um processo em que as pessoas cuidam da
relação intersubjetiva e limpam os ruídos da comunicação: “A Lara joga com a
gente. (...) Aí resolvemos fazer diferente. Ligamos para o Átila e falamos com
ele”.

5.5. QUINTO ENCONTRO

A mediação permite ultrapassar a barreira do imaginário; “Eu não entrei na


dela e disse que se ele esqueceu ela poderia ter avisado”, lograr acordos que
respeitem as vontades e anseios expressos: “tivemos consenso sobre as
visitas de final de semana”, e possibilitar que as partes não permaneçam na
rivalidade imaginária lendo o que de simbólico existe na situação: “Eu me
preocupo em cuidar da sexualidade dela. É muito sensual. Eu queria pedir
para o Atila olhar isso. Não quero que ele deixe ela dormir na casa de alguém
se não sabe quais crianças estarão. Às vezes vai meninos” e “Eu vou olhar
mais para ela não ter traumas”.
A mediação estimula esse vencimento da barreira imaginária situando-a
como um comportamento a ser seguido: Vocês construíram a ponte. Como não
podemos continuar eternamente aqui, queremos saber de vocês o que mais
pode ser construído aqui?. O reconhecimento da capacidade simbólica dos
sujeitos, a ênfase na dimensão da fala permite um posicionamento ético por parte
dos sujeitos: “Hoje eu posso reafirmar essa vontade de ter a guarda, mas sei
que agora provocaria um abalo nos laços com os tios e primos. Eles não
podem ser cortados de maneira brusca. Elas já passaram um trauma com a
morte da mãe. Elas precisam de uma referência feminina. Não podemos
decidir isso de uma hora para outra” e “Nossa decisão foi amadurecida

107
dentro da família. Eu entendo a posição de Atila. Mas nós também queremos
as meninas e ter o melhor relacionamento possível com você. Eu acho
Destituição do Poder Familiar muito pesada. Foi o jeito que o juiz
determinou. Quando forem mais velhas poderão decidir como quiserem.
Quero educar junto com você”.
Mas o ponto principal do conflito não resolvido reaparece “Mas guarda
compartilhada acho ruim para as crianças” e a mediadora intervêm permitindo
a explicitação das posições subjetivas: “Não existe razão para dizerem que não
posso ter o Poder Familiar e também não poder ter contato. Insisto que
essas crianças podem estar com o pai. Eu estou apto a cuidar delas
inclusive emocionalmente. Eu gostaria que você pensasse com muito amor
sobre meu papel na vida delas olhando para elas. Eu quero a guarda e
convido vocês para participar na educação delas” e “Eu nunca quis tirar o
papel de pai. Não brigamos pela posse de nada, elas não são objetos. São
duas vidas. Nós três construímos essas vidas juntos. Quero que entremos
em uma comunhão. Eu sou o porto seguro depois da mãe delas ter morrido.
Se partir delas a vontade de morar com o pai eu não vou me opor. Elas
gostam do pai, mas por enquanto querem morar comigo”.
A mediação considera a questão do tempo de elaboração, que sempre se
dá fora das sessões e não pressiona para o termino da mediação que poria fim ao
processo legal. Surge a possibilidade de experimentar os acordos por um tempo e
voltarem depois de cerca de seis meses a mediação. Esta proposta é mais comum
em conflitos mais complexos como a Destituição do Poder Familiar. Quando o pai
pressiona para que se resolva logo com relação ao processo: “Mas nós é que
temos que decidir e não o juiz”, a mediadora adia a proposta e propõe outros
mini-acordos sobre as pequenas disputas antes que se possa falar da disputa
maior. Os tios optarem por findar o processo significa que eles concordariam com
a passagem da guarda para o pai, o que ainda não estavam certos e poderiam
retroceder todos os combinados. Com os mini-acordos eles estavam conseguindo
caminhar em direção a um desenlace final e conquistarem unas aos outros a
confiança perdida. Desistir do processo nesse momento ainda precoce implicaria

108
em legitimar que uma das partes não tem razão e outra tem pois o juiz devolveria
automaticamente a guarda ao pai e não poderiam mais conversar sobre como
fariam daqui para frente com relação a presença dos três na vida das meninas. O
processo era a única ferramenta dos tios para que o pai aceitasse uma conversa
pacífica, caso contrário nada garantiria ainda que ao ter as filhas de volta ele iria
optar por manter contato com os tios. Este não seria um final bem sucedido para
mediação. Pois considerando a gravidade do processo, as partes ainda não
estavam maduras o suficiente em seus acordos para extinguir o processo. Nesse
sentido o mediador deve cuidar do processo, ao passo que abre mão do conteúdo
a ser discutido. Os mediadores sabiam que se o pai insistisse em querer findar
com o processo os tios se retirariam da mediação e nenhum poder de
comunicação restaria ao pai.

5.6. SEXTO ENCONTRO

Constata-se que a cada avanço em direção a resolução do conflito há


sempre um certo retrocesso, uma cristalização nas posições subjetivas: “Atila não
fala comigo quando vai na minha casa, só a Fernanda fala comigo. A Lara
disse que não poderia ir, pois tinha marcado com as amigas de dormirem na
minha casa. O pai disse que ele mandava nelas e não a vaca da tia” e “Você
distorce as coisas. Eu disse a ela que você deveria ter conversado comigo.
Fui enérgico com ela. Não a chamei de vaca. Você me coloca como “o ruim”
da história”.
Diante do recuo para a rivalidade imaginária: “Eu acreditei que ele havia
mudado, mas agora me senti traída” a mediadora intervém: permitindo que a
parte acusada esclareça sua posição: “A Ingrid pediu para dirigir e eu deixei.
Mas não foi desse jeito que vocês imaginam. Foi na chácara, eu tinha o
controle, ela dirigiu em linha reta. Ela ficou muito feliz. Não houve uma
irresponsabilidade. Eu comecei a dirigir com essa idade”. A proposição de
instaurar a fala permite s simbolização do momento vivido: ‘’Acho que estamos
retrocedendo depois que nós cedemos nas visitas. Ele diz que inventamos,

109
mas ele quem faz tudo isso. O convívio aumentou e a situação piorou” e “ Eu
não deixo as meninas falarem mal de vocês. Temos um interesse de guarda
que é conflituoso. Se um não ceder, vamos ter sempre problema. Quero
então ouvir deles que a mediação terminou”. Nos momentos de maior
resistência, quando as intervenções das mediadoras não logra efeito a equipe
reflexiva (os dois observadores da mediação) intervêem : “ O forte deste
trabalho, até aqui, foi o resgate da confiança. Vocês realmente acharam que
ia ser fácil para duas crianças mudarem dentro da cabeça delas a imagem de
vocês três se hostilizando? O retorno ao processo pode retroceder tudo o
que conquistaram. Como lidar com a comunicação delas? Outra questão
também importante é como vocês podem lidar com o medo da decisão que
terão que tomar no futuro em relação à guarda? Procedimento que auxilia o
retorno ao processo de comunicação: “Se elas vão ser educadas por pessoas
diferentes, cabe aos adultos conversar e ceder. (...) Minha parte cabe ceder
como pai. Não se questiona porque um pai é um pai”. e “Eu brigo tanto
porque tenho obrigação moral. Você deve mudar algumas coisas em você.”
nem sempre logrado pois a mediação começa de uma maneira ampla e vai se
afunilando em relação as demandas. Nesse ponto as intervenções são mais
pontuais e diretivas pois há possibilidade de rompimento do processo: Como
manter os acordos feitos até então? O que vocês sugerem? e “ Pensem
como será se o processo voltar, quais os efeitos? Se tomarem uma decisão
perante o juiz, ela será definitiva? Consultem seus advogados.

5.7. SÉTIMO ENCONTRO

Como a mediação se afunila no sentido de uma resolução do conflito a


resistência aparece “Não teve o almoço. Eles convidaram, mas desmarcaram
porque Elisa estava muito ocupada” e “Ampliamos as visitas”, pois cada parte
deve ceder no gozo implicado reconhecendo a posição subjetiva da outra parte
como legítima: “Gostaria de pedir mais um final de semana no mês com elas”

110
e “Mas existe uma ação judicial. Acho que essa resistência dela tem que ser
trabalhada aos poucos pelo Atila. Se não existir mais, não terá problema.
Ela diz: “Como você combinou sem falar comigo?”
A mediação ao intervir nas situações de maior resistência assina a
diferença entre culpa e responsabilidade, instrumento de conscientização para sair
do registro do imaginário dual “Elas reagem ao tipo de relação que vocês
mantêm. Como será que elas se comportariam se vissem vocês se falando
normalmente? E implicar os sujeitos na própria queixa tornando-os agentes da
própria situação: “A mediação requer um tempo de uma certa mudança de
posicionamento das partes. Existe um tempo de processamento individual. E
se deixarmos caminhar o vínculo de vocês, que está surtindo efeito?
Precisariam ter um pouco de paciência, as coisas não mudam
magicamente”.
Esse manejo se revela eficaz porque as partes envolvidas revêm sua
posição: “Acho que essa é a resistência dela, ela acha que o pai é bravo.
Conversei com minha mãe pra não provocar mais o Atila”, “Temos que cada
um comunicar a verdade a elas, apesar das nossas verdades serem
diferentes. Não temos que fazer uma relação de florzinha, mas sermos
coerentes. Podemos trabalhar isso e conviver em paz, em prol das crianças.
e “O amor por você é de pai. Conosco é de tios”
Mas quando se cria um impasse diante de uma demanda que uma das
partes se sente prejudicada “Elas gostam de você, e acho que têm que vê-lo,
mas enquanto elas quiserem ficar comigo, eu vou brigar” e evoca-se a lei
exterior, O Outro social: “Você disse que não abre mão, então vamos
conversar sobre as visitas, e a guarda decide o juiz” a mediadora indica que
esta posição abdica da responsabilidade pessoal diante do problema: “O que um
juiz sabe de todas essas dores e felicidades que foram ditas aqui, até hoje?
Têm certeza que este é o caminho que vão escolher?” O que permite uma
saída criativa para o conflito: “E se arquivarmos por um tempo o processo,
para priorizar o processo de mediação? Quando elas fizerem 15 anos,
poderão decidir com quem ficam.” e “ Com relação à guarda, se as crianças

111
tiverem um equilíbrio emocional, a guarda seria irrelevante, se fica com um
ou com outro. Se a nossa relação for transparente, isso é um grande
progresso”.
Mas assumir e sustentar uma posição subjetiva ligada ao desejo é muito
difícil para o sujeito alienado no desejo do Outro: “Mas com relação a guarda
prefiro que a decisão seja tomada pelo juiz”, situação que a mediação não
aceita e interfere: “A visão do juiz não consegue abarcar o contentamento das
duas partes, ela responde a falas de advogados que se contrapõem. Como
será para um se o juiz der a guarda para o outro?” retomando o discurso com
os sujeitos assumindo suas responsabilidades pelas decisões e vidas; “Podemos
esperar uns 4, 5 anos, até que elas fiquem mais maduras e possam decidir
com quem vão ficar”. Esclarece-se assim o objetivo da mediação: “Trata-se de
falar do que dá para ser feito por hora, e quando a relação melhorar, poderão
falar dos impasses que restaram a partir de uma outra posição e aí acharão
novas formar de lidar. Vemos o conflito como uma oportunidade de
mudança, e não como algo negativo.

5.8. OITAVO ENCONTRO

A instalação da fala no processo de disputa permite acordos que são


reconhecidos pelas partes como legítimos: “Chegamos a um acordo do tempo
dele com as meninas, e elas aceitaram também”, “ Não conversamos sobre a
guarda, mas pensei em pedir um tempo no processo. Eu nunca quis destituir
o Poder Familiar, isso é muito sério”, “ Eu queria 1 ou 2 anos para
amadurecer essa nova etapa de relacionamento. As meninas estarão mais
velhas” e “Eu e ela temos capacidade de criar as meninas.”
Assim, a mediação se afunila para chegar a demanda primeira que motivou
o processo legal: “ (...) eu não seria leal com as meninas se, de repente,
largasse elas. O tempo vai colocar tudo no lugar. Vai ser menos doloroso
para todos, deste jeito” e “Eu não posso abrir mão da guarda, pois é abrir

112
mão dos filhos. Talvez pensar em um tempo menor de prorrogação do
processo” e aparece o significante recalcado: “O termo “Destituição do Poder
Familiar” eu nunca usei. Ele não teve uma atitude que justificasse isso. O
que eu queria era estar acompanhando o crescimento delas. Eu queria uma
guarda provisória” que uma vez reconhecido permite uma diminuição do
sofrimento implicado na situação pelo aparecimento da verdade: “O peso se foi
depois de falar demais ou de menos. Avançamos como pessoas ao nos
tolerarmos. Estou mais leve e feliz, é benéfico para as crianças” e “Às vezes
penso “Por que não fiz diferente? Hoje estou muito tranqüila e aliviada, tirei
um peso da alma. As crianças viviam divididas. Perder a mãe já é triste,
ainda mais perder um pai. Hoje elas podem gostar de nós dois. Eu gosto do
Atila, sempre gostei. Não tenho só tolerância.”

5.9. NONO ENCONTRO

Quando chega próximo de um solução definitiva sempre há o recuo de uma


das partes, a que acha que perde com a resolução: “Faltamos pois fizemos um
documento que teve um item que não concordei, sobre abrir mão da ação. Aí
desmarquei a mediação. “ Não vou abrir mão da guarda, para as crianças
isso foi positivo” e aí aparece o imaginário com sua característica dual e
paranóica: “O que você faz com meu pai que você recebe a pensão da minha
mãe? Meu pai não tem dinheiro, eu quero esse dinheiro para fazer uma festa
de aniversário. Eu tenho menos dinheiro na previdência do que você recebe.
Isso não é fala de criança, ele deve ter falado isso pra ela”. Nesse momento
de grande resistência a mediadora lança mão da intervenção: “as meninas estão
reagindo a este novo modelo que vocês encontraram. Acharam que só vocês
iam ter que se esforçar? O que podem fazer para amenizar esta adaptação?
O que permite um reposicionamento:” Ela pergunta muito de dinheiro para você
e pra mim também. Ela também me diz coisas de você que não se encaixam
no que eu acho normal, mas tenho que conviver com isso. Eu não incentivo

113
isso que elas falam. Quem vai ceder para o outro tomar a direção na
educação? Ou eu abro mão da paternidade, ou você. Tem que olhar as
crianças, e não o próprio ego, se te desagrada. Acho que chegou o ponto de
pensarmos o que vamos fazer com a guarda”.
A mediação não deixa precipitar uma decisão que beneficie uma das partes
sob pressão: O que significa ter cem por cento a guarda? Como fica o outro?,
permitindo que as partes façam a contabilidade das perdas: "Eu acredito que as
diretrizes têm que ser de um só. Ou eu ponho autoridade de pai, ou ela faz
isso” e “Me sinto traída, pois com o aumento das visitas do pai, começaram
a falar que gosto mais de uma que de outra. Não vejo como ceder, ou um
tem a guarda, ou o outro. Penso em nós dois educarmos elas, senão vai ficar
ou “tia me deu para o pai”, ou “pai me deu para tia”.
A equipe reflexiva, intervêem sempre nos momentos mais tensos de forma
a impedir a destruição do processo de simbolização e subjetivação das faltas: É
curioso vermos aqui duas famílias que enfrentam uma situação como casal
separados. Como pensam em se responsabilizar por sua parte neste conflito
em favor das crianças? O que permite a retomada do processo de mediação
pelo simbólico: “Quero o equilíbrio delas. Engulo a seco certas coisas, elas
não deveriam estar neste conflito, está na hora de pensar nelas” e
subjetivação das faltas: “Jogamos elas neste caldeirão. Eu faço elas se
aproximarem de mim sem as colocarem contra vocês”.
A volta ao processo da fala como mediação permite ressituar a demanda
inicial: Como escolher uma alternativa que atenda a ambos? Mas é preciso
definir o processo de destituição, que outra alternativa é possível? Sem que
o atendimento dessa demanda implique em aniquilação do outro, aniquilação de
sua demanda e negação de seu desejo:”A gente tem que ter uma convivência
limpa, clara, de confiança, para manter esta relação. Por que não poderíamos
criar elas juntos?” e Acho que ela tem que desistir do processo, ela diz que
não há nada que justifique a destituição.

114
5.10. DÉCIMO ENCONTRO

A mediação logra efeitos na vida dos envolvidos, com modificações reais


que beneficiam a todos: “Já estamos aqui quase há um ano. Tivemos avanços
nos comportamentos e atitudes. As crianças foram beneficiadas por
conviverem mais comigo. Todos se beneficiaram”. Mas há um resto da
demanda inicial que não foi trabalhada: “Porém eu queria que hoje fosse
dedicado à existência do processo. Acho que estamos aptos a dar uma
solução. Ou achamos uma solução ou o Juiz que vai acabar decidindo. Eu
não posso decidir pois sou réu. Isso cabe a você” e “Eu tinha pensado muito
nisso. Fiz reunião com todos em casa. Lara quer voltar para o pai. Eu fui na
chácara dele e ele me recebeu bem. Há uma convivência muito respeitosa.
“Até que ponto estou certa ou errada. Me coloco na posição dele? Penso que
posso pagar pelos meus atos. Quando tudo começou, elas eram pequenas,
ele não tinha condições. Hoje ele tem a Fernanda que está grávida. As
meninas estão muito animadas com o irmãozinho que virá. Não sei o que
faço da vida pois moram comigo há 4 anos.O Atila beija e abraça meus
filhos, ele é tio dos meus filhos. As meninas disseram: “A gente quer morar
com você mas tem dó do papai”. A mediadora intervém: Entendo sua
angústia. Mas esta é uma decisão dos adultos. Será justo colocar as
crianças para escolher?
As intervenções que barram as narrativas de vitimização e de
culpabilização do outro auxiliam na assunção da responsabilização: “Eu queria
propor que levássemos uma vida de comunhão. Vai parecer que você abre
mão das suas filhas, mas não é”, “Em relação à Destituição do Poder
Familiar você vai ter que dizer sim ou não”, Eu não aceito que você perca o
Poder Familiar. Meu marido não vem mais aqui pois se sente mal em relação
à você por causa do processo” e “ Se eu não perder o Poder Familiar, ainda
tem a guarda para discutirmos. Podemos tentar algo alternativo. Vamos fazer
um teste de 3, 6 meses em que moram comigo”, “Poderíamos rachar a perua
para elas continuarem na mesma escola” “Seis meses comigo e seis com

115
você”, “Mas não sei se isso pode na lei”, “ O que escolhermos pode”,
“Voltamos para mediação e as crianças podem também vir” e permitem um
reposicionamento com conseqüências éticas: “ Estamos priorizando o bem das
meninas” e, “Eu não queria ir à chácara dele pois lembrava minha irmã que
faleceu. Mais aí eu fui e Lara disse: “Como eu te amo por você estar aqui
com meu pai”. “Não é justo tirar eu ou ele da vida delas. É horrível ver uma
criança dividida. Vamos participar das coisas delas. Ser adultos. Deixar os,
ai, ai, ai”. Aparece então a verdade no discurso:”Vou falar com o advogado. O
Yuichi coloca que é tio, ele preserva o lugar do pai. Ela falou que ia chamar o
pai para defendê-la, não pensou no tio. Já eu sou mãe, não faço diferença
dos meus filhos”. "Os pais tinham que assinar suspensão na escola. Eu
assinei, mas o Yuichi não quis e deixou para o Atila assinar. Ela morreu de
medo. O reconhecimento do lugar de pai é a transformação operada pela
mediação, coincidindo com a ética psicanalítica, o que é valorizado pela equipe
porque envolveu situações de angústia mas que necessita de um passo a mais:
Como cuidar dos próximos passos sem chegar no Juiz?
“As meninas têm mitos na cabeça de que as agredi. Não é que alguém
criou – o tio, a tia, o pai. Isso não é verdade realmente. Elas falam que eu
batia. Como vou provar? Nunca bati”, reconhecimento da subjetividade do
terceiro envolvido que é aqui assumido como crianças mas como sujeito de desejo
e situado numa teia fantasmática que não prescinde da lei paterna, o que é
assinalado pela mediadora: “ Poderia significar exatamente aquilo que vocês
tanto falaram hoje – que o pai tem o lugar de pai reconhecido, um pai é
sempre temido pela autoridade, pelo respeito e limites que impõe. Enfim...
isso pode ser no imaginário, na fantasia um pai que bate. Permitindo aos
sujeitos a ressignificação da experiência : “Parece a explicação do que eu
pensava e não sabia como falar. Gostei” e “Ingrid me disse: “Meu pai me dá
Nescau e não chá”. Aí eu disse para elas que são duas casas com modos
diferentes, mas que nenhuma está errada”. Diferença assumida.

116
VI CONCLUSÃO

Ao longo de 10 encontros pode-se perceber a entrada dos litigantes pelo


registro do imaginário e instauração do registro do simbólico, onde a palavra
permeia a relação entre os sujeitos e possibilita o acesso ao desejo, permitindo
um posicionamento ético e não moral. Percebe-se também a incidência das
resistências e retornos a posições cristalizadas num gozo que exclui o outro, nega
sua condição de sujeito e visa priva-lo da posse do que se imagina ser seu bem.
A direção estabelecida nos encontros foi a de não forçar nenhuma das partes a
desistir de sua posição de sujeito de direito porque cessando a reivindicação à
ordem jurídica, não haveria mais possibilidade de mediação. A mediação se
coloca assim como um terceiro, isto é , um Outro em posição de testemunha da
relação do sujeito em seus impasses com o próximo. Esse Outro simbólico,
apoiado no Outro da Lei – o juiz enquanto instancia superior que representa os
interesses da criança e da ordem coletiva, realiza intervenções visando desfazer
as cristalizações imaginárias, posições identificatórias que impedem a escuta das
demandas do próximo e reconhecimento de sua posição de sujeito. Nesse sentido
a Mediação se coloca como um instrumento ético pois tem como finalidade
apenas cortar os excessos - o gozo, e desmontar as certezas - o registro do
sentido que obturando o furo do simbólico impede a subjetivação da falta.
A mediação é essencialmente um dispositivo narrativo pois propõe a cada
sujeito narrar sua versão do conflito sem contudo apelar a associação livre, que
levaria o sujeito as causas do conflito na temporalidade do infantil, lá onde se
fixou o gozo que coloca o outro, meu próximo, na posição de ter que ceder tudo –
ser um objeto de gozo ou ao contrário ter que ceder tudo ao outro. Embora não
privilegie a associação livre e não haja um espaço de escuta e para a pontuação
dos significantes recalcados, estes ao insistirem no relato são considerados
porque se solicita que o sujeito reformule sua fala em função da reação negativa
no outro. Nesse ponto é que se coloca a possibilidade de transformação porque o
mediador busca colocar uma pergunta que permita aos oponentes se escutarem.

117
A mediação convoca as partes a utilizar a palavra como mediadora da
relação com o outro, e propicia a escuta entre eles como forma de saída do
impasse da rivalidade imaginária. Mas também recorrem a leituras das posições
subjetivas em que o outro é capturado numa imagem ou num significante
imaginarizado em que o outro é reduzido a dimensão de objeto impedindo a
circulação do discurso. Nesse movimento de fazer circular os discursos, nos
momentos de maior resistência e paralisação com aumento da face hostil no
enfrentamento do conflito constata-se que o mediador apela a interpretação e ao
corte de gozo. Assim ao frear o gozo e propor a narrativa, a mediação apela ao
discurso em sua dimensão de laço social permitindo que cada elemento
reconheça no outro uma legitimidade por que implica numa posição subjetiva
desejante que permite sair do discurso de vitima e de acusação que fomenta a
disputa e o conflito para a posição de responsabilidade frente aos atos.
Embora não haja um referencial interpretativo, nos momentos de difícil
dissolução das resistências, a mediação opta por uma leitura que aponta o uso
das crianças como terceiro na relação entre as duas partes, o uso de um terceiro
que leva a mensagem e faz o conflito aumentar. Assim, a interpretação entra no
campo da mediação pela leitura das posições subjetivas ao situar os querelantes
como um par que disputa um terceiro : as crianças, mas que este objeto disputado
também é sujeito, leitor da mensagem. Esta relação implica os três elementos no
próprio conflito, das quais todos são responsáveis mas não culpados. Observa-se
aqui a distinção entre responsabilidade e culpa operada pela mediadora o que
coincide com afirmação de Lacan que por nossa posição de sujeito somos
sempre responsáveis.
Mas a interpretação não impede o aparecimento dos modos fantasmáticos
em que o sujeito se situa no mundo , necessitando de uma elaboração que passe
pela cadeia de significantes de modo que o sujeito possa aceder ao desejo.
Nesses momentos a mediadora insiste no “objetivo da mediação” que é
estabelecer a palavra em sua função pacificadora, solicitando aos participantes
que reformulem seus pedidos e falas. Ignora-se não só a produção fantasmática
como as conseqüências dessa posição ligadas a função superegóica que tende a

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vitimização e culpabilização do outro com acusações sobre o mal feito. Percebe-
se dessa forma, que a mediação se restringe ao campo terapêutico, isto é ao
campo da fala em seu estatuto simbólico excluindo o real que ai estaria implicado.
Como a mediação não dispõe de instrumento teórico sobre o real na experiência,
ela se atém a impedir que o campo da rivalidade imaginária se sobreponha ao
campo simbólico da fala. Suas intervenções viabilizam uma posição subjetiva
separada do funcionamento superegóico, em que as acusações mútuas, impedem
a solução do conflito, mas quando a situação persiste no campo das acusações e
rivalidade a mediadora utiliza a interpretação: a leitura das posições subjetivas na
disputa.
A mediação maneja também o tempo evitando soluções apressadas,
mantendo-se sob a égide do simbólico propõe sem o saber : um instante de ver,
um tempo de compreender para só depois chegar ao momento de concluir,
efetivamente seu manejo se dá em relação ao tempo de compreender, uma vez
que se insiste para um trabalho reflexivo fora dos encontros. Assim se considera a
um tempo de elaboração, que sempre entre as sessões, não se pressiona para o
termino da mediação que poria fim ao processo legal. Quando a parte propõe um
término rápido ou utilização da ordem jurídica para tal, a mediação propõe
continuar com as narrativas transformadoras impedindo uma resolução sem a
responsabilização das partes, evitando dessa forma uma armadilha para o
profissional em se tornar aquele que sabe e decide.
A mediação reconhece a força dos elementos recalcados mas não permite
que seja colocado em cena : “Como usar o passado para pensarem o que vão
fazer de diferente no futuro. Estamos aqui para se transformarem”, pois o campo
da mediação não é o campo da elaboração dos conflitos que se constituíram no
passado mas de resolução de conflitos no presente, embora reconheça que eles
se originaram no passado. Sempre que o discurso se assenta sobre a disputa e
acusação, a mediadora intervém destacando o simbólico. Uma intervenção nesse
ponto é ressaltar a posição subjetiva do oponente, reconhecimento que permite a
explicitação dos medos, da crença que fundamenta os juízos e impedem o
reconhecimento das diferenças.

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A mediação lê a ultrapassagem do imaginário que faz obstáculo ao
simbólico como um processo em que as pessoas cuidam da relação intersubjetiva
e limpam os ruídos da comunicação. Assim manejados, os registros do imaginário
e do simbólico, a técnica se propõe a restaurar a confianças entre as partes pela
possibilidade de se perceber a versão do oponente e compreender suas
motivações, nesse sentido, ela (o modelo transformativo) se coloca no campo
psicoterapêutico na medida em que possibilita efeitos psicoterapêuticos.
No processo de mediação constata-se que a cada avanço em direção a
resolução do conflito há um retrocesso nas posições subjetivas, uma vez que a
mediação começa de uma maneira ampla e vai se afunilando em relação as
demandas, incidindo sobre a via fantasmática e revelando o ponto não analisado:
o desejo. Nesse ponto as intervenções, se dão em maior numero e são mais
pontuais e diretivas porque há possibilidade de rompimento do processo, pelo
retorno ao imaginário dual ou a des-implicações dos sujeitos apelando para a lei
exterior, O Outro social, na figura do juiz como aquele que sabe decidir.
É neste ponto que a ética da mediação mais se aproxima da ética
psicanalítica: o reconhecimento das diferenças e da subjetivação que há nas
experiências e que o sujeito deve se responsabilizar pelo que lhe acontece.
Embora a mediação se situe a serviço da ordem jurídica na resolução do conflito
ela privilegia a implicação do sujeito no conflito e sua responsabilização pela
decisão/solução. Reconhecendo a ordem jurídica como lei simbólica, a mediação
não se submete os sujeitos a palavra do juiz, mas sim a lei civilizatória que
interdita o assassinato e o incesto, distinguindo sem nomear o Outro da lei e o
sujeito que o encarna. “O que um juiz sabe de todas essas dores e felicidades,que
foram ditas aqui, até hoje?”
Mas assumir e sustentar uma posição subjetiva ligada ao desejo é muito
difícil para o sujeito alienado no desejo do Outro que está diante da ordem jurídica
porque um dia cedeu ao desejo, o que a mediação busca sustentar mas através
da demanda pois confunde vontade com desejo. Na medida em que não
considera a associação livre mas busca fazer o sujeito retomar o discurso,
assumindo suas responsabilidades pelas decisões e vidas; ela ignora que a fala

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não á a posição do sujeito e que esta só é acedida pela elaboração do desejo e
reconhecimento do gozo.
Não dispondo de dispositivo para tratar o real e sendo o objetivo da
mediação: “Trata-se de falar do que dá para ser feito por hora, e quando a relação
melhorar, poderão falar dos impasses que restaram a partir de uma outra posição
e aí acharão novas formar de lidar”; a mediação se configura essencialmente
como um recurso de simbolização do imaginário que em algumas circunstâncias
pode indicar o real em jogo, mas que nunca será tratado. Isto porque se concebe
o conflito como uma oportunidade de mudança, e não como algo negativo,
ignorando o recalcado que esta na sua base. Se as partes se abrirem para uma
demanda terapêutica nos indicamos um serviço.
A instalação da fala no processo de disputa permite acordos que são
reconhecidos pelas partes como legítimos porque o processo de mediação se
afunila para chegar à demanda primeira que motivou o processo legal, o que no
caso analisado seria a destituição do Poder Familiar. Confrontados com essa
questão as partes se reposicionam diante da motivação para o apelo da ordem
jurídica: ”Eu nunca usei. Ele não teve uma atitude que justificasse isso. O que eu
queria era estar acompanhando o crescimento delas. Eu queria uma guarda
provisória”, que ao ser reconhecido permite uma diminuição do sofrimento
implicado na situação pelo aparecimento da verdade. Embora a mediação não
objetive a verdade, o certo, o adequado; sua forma técnica de movimentar as
narrativas, através de perguntas permite que as partes envolvidas ao explicitarem
suas versões dos fatos em litígio e escutarem a da outra parte, modifiquem sua
leitura podendo ceder nas imagens cristalizadas sobre o outro que fazem com que
se acredite que na disputa: se um ganha o outro perde. A fala do réu nesse
processo sintetiza esse argumento: Quem vai ceder para o outro tomar a direção
na educação? Ou eu abro mão da paternidade, ou você. Tem que olhar as
crianças e não o próprio ego, se te desagrada”
A mediação é um processo em que os profissionais nunca tomam partido
de um das partes, por isso não deixa precipitar uma decisão que beneficie uma
das partes sob pressão, permitindo que as partes façam a contabilidade das

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perdas. A equipe reflexiva, intervêem sempre nos momentos mais tensos de
forma a impedir a destruição do processo de simbolização e subjetivação das
faltas, através de leitura das posições subjetivas ou do reforço de uma posição
que avança na solução dos conflitos. Visa sempre o retorno ao processo da fala
como mediação, quando o retorno as demandas iniciais possa implicar na
aniquilação do outro, aniquilação de sua demanda e negação de seu desejo.
Mesmo se mantendo na charneira entre o imaginário, a mediação logra
efeitos na vida dos envolvidos, com modificações reais que beneficiam a todos. As
intervenções barram as narrativas de vitimização e de culpabilização do outro e
auxiliam na assunção da responsabilização pelo contexto atual da vida na qual
todos os envolvidos são considerados protagonistas. No caso, o primeiro
momento foi o reconhecimento do lugar de pai e a impossibilidade de anular esse
lugar, coincidindo com a ética psicanalítica de barrar o gozo de um sujeito sobre o
próximo, tomado como inimigo e objeto a ser destruído. O segundo momento foi o
reconhecimento do objeto disputado é também um sujeito: os filhos respondem ao
Outro parental através de uma leitura sobre a mensagem enviada. E o terceiro
momento foi o reconhecimento da subjetividade do terceiro envolvido: “Elas falam
que eu batia. Como vou provar? Nunca bati”, aqui assumido não como criança-
objeto, mas como sujeito de desejo e situado numa teia fantasmática que não
prescinde da lei paterna, o que é assinalado pela mediadora: “Poderia significar
exatamente aquilo que vocês tanto falaram hoje – que o pai tem o lugar de pai
reconhecido, um pai é sempre temido pela autoridade, pelo respeito e limites que
impõe. Essa leitura interpretativa permite aos sujeitos a ressignificação da
experiência pelas parte litigantes : “Parece a explicação do que eu pensava e não
sabia como falar. Gostei” e “A Ingrid me disse: “Meu pai me dá Nescau e não
chá”. Aí eu disse para elas que são duas casas com modos diferentes, mas que
nenhuma está errada. Diferença assumida, ética reconhecida. “Está aí a essência
do direito diz Lacan “repartir, distribuir, retribuir, o que diz respeito ao gozo”
(1982,11). Mas o gozo é para Lacan, uma instância negativa: “O gozo é aquilo que
não serve para nada” (1982, 11). O direito não é um dever, o que força alguém a
gozar é o superego. O superego é o imperativo do gozo – Goza! (1982, 11).

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